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HISTÓRIA

NARRATIVA
01 – História dos Estados Unidos desde 1865, Pierre Melandri
02 – A Grande Guerra – 1914-1918, Marc Ferro
03 – História de Roma, Indro Montanelli
04 – História Narrativa da II Guerra Mundial, John Ray
05 – Hitler – Perfil de um Ditador, David Welch
06 – A Vida de Maomé, Virgil Gheorghiu
07 – Nicolau II, Marc Ferro
08 – História dos Gregos, Indro Montanelli
09 – O Império Otomano, Donald Quataert
10 – A Guerra Secreta, Ladislas Farago
11 – A Guerra de Secessão, Farid Ameur
12 – A Guerra Civil de Espanha, Paul Preston
13 – A Vida Quotidiana no Egipto no Tempo das Pirâmides, Guillemette Andreu
14 – O Amor em Roma, Pierre Grimal
15 – Os Templários, Barbara Frale
16 – No Rasto dos Tesouros Nazis, Jean-Paul Picaper
17 – História do Japão, Kenneth G. Henshall
18 – Artur, Rei dos Bretões, Daniel Mersey
19 – O Islão e o Ocidente. Uma Harmonia Dissonante de Civilizações, Christopher J. Walker
20 – Pós-Guerra. História da Europa desde 1945, Tony Judt
21 – A Guerra Fria, John Lewis Gaddis
22 – História da União Soviética, Peter Kenez
23 – História do Tibete. Conversas do o Dalai Lama, Thomas Laird
24 – A Europa em Guerra – 1939-1945, Norman Davies
25 – Santos e Pecadores. História dos Papas, Eamon Duffy
26 – A Grande Guerra pela Civilização. A Conquista do Médio Oriente, Robert Fisk
Título original:
POSTWAR: A History of Europe Since 1945
© 2005, Tony Judt
All rights reserved
Edição portuguesa em língua portuguesa negociada através da mediação da
Agência Literária Eulama, Roma
Tradução:
Prefácio, Introdução e capítulos I a IX: Victor Silva Capítulos X a XIX: Maria
Manuel Cardoso da Silva
Capítulos XX a XIV e Epílogo: Patrícia Xavier
Revisão:
Pedro Bernardo Luís Abel Ferreira
Capa de FBA
ISBN: 978-972-44-1820-9
Janeiro de 2014
Direitos reservados para língua portuguesa por Edições 70
EDIÇÕES 70, Lda.
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Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em
parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocópia,
sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à lei dos Direitos de
Autor será passível de procedimento judicial.
Para a Jennifer
O ser passado do passado não será tanto mais profundo, tanto mais lendário,
quanto mais imediatamente ceder perante o presente? THOMAS MANN,
AMontanha Mágica
Índice
Prefácio e Agradecimentos
Introdução
I PARTE
PÓS-GUERRA: 1945-1953
I O Legado da Guerra
II A Retribuição
III A Reabilitação da Europa
IV O Acordo Impossível
V O Começo da Guerra Fria
VI No Turbilhão
VII Guerras Culturais
Coda: O Fim da Velha Europa
II PARTE
A PROSPERIDADE E OS SEUS DESCONTENTES: 1953-1973
VIII A Política de Estabilidade
IX Ilusões Perdidas
X A Era da Abundância
Postscriptum: Uma História de Duas Economia s
XI A Hora da Social-Democracia
XII O Espectro da Revolução
XIII O Fim da Aventura
III PARTE
CÂNTICO FINAL: 1971-1989
XIV Expectativas Diminuídas
XV Política com um Novo Registo
XVI Uma Época de Transição
XVII O Novo Realismo
XVIII O Poder dos Sem Poder
XIX O Fim da Velha Ordem
IV PARTE
DEPOIS DA QUEDA: 1989-2005
XX Um Continente Físsil
XXI O Balanço
XXII A Velha Europa – e a Nova
XXIII A Diversidade da Europa
XXIV A Europa como Estilo de Vida
EPÍLOGO
Da Casa dos Mortos: Um Ensaio sobre a Memória Europeia
Contemporânea
Créditos das Fotografias
Índice Remissivo
Prefácio e agradecimentos
A Europa é o continente mais pequeno. Na verdade, nem sequer é um
continente, mas apenas um anexo subcontinental da Ásia. A Europa no seu
todo (excluindo a Rússia e a Turquia) tem apenas cinco milhões e meio de
quilómetros quadrados, o que representa menos de dois terços da área do
Brasil e não mais do que metade do tamanho da China ou dos Estados
Unidos. É uma anã ao lado da Rússia, cujo território cobre 17 milhões de
quilómetros quadrados. Todavia, devido à intensidade dos seus contrastes
internos, a Europa é única. Na última contagem tinha 46 países. A maioria
deles consiste em Estados e Nações com as suas próprias línguas; alguns
deles integram outras nações e possuem outras línguas, a que não
correspondem Estados que lhes sejam próprios. Todos eles possuem história,
política, cultura e memórias diferentes, mas, por outro lado, também as
compartilham. Por fim, todos foram objecto de abundantes estudos. Durante o
breve período de sessenta anos da história da Europa que transcorreu desde a
Segunda Guerra Mundial, a bibliografia secundária em língua inglesa, para
referir apenas esta, é inesgotável. Aliás, foi sobretudo neste período que ela se
desenvolveu tanto.
Por esta razão, ninguém pode ter a pretensão de escrever uma história
geral ou definitiva da Europa contemporânea. A minha inadequação para tal
tarefa é ainda agravada pela proximidade. Tendo nascido pouco depois da
guerra ter terminado, sou contemporâneo da maior parte dos acontecimentos
descritos neste livro e recordo-me de ter ouvido falar, presenciado e até
participado em grande parte desta história à medida que ela se desenrolava.
Será que tudo isso torna mais fácil compreender a história da Europa do pós-
guerra, ou, antes, mais difícil? Ignoro-o. No entanto, sei bem que, por vezes,
pode dificultar bastante o distanciamento desapaixonado do historiador.
Neste livro, não pretendo um tal afastamento olímpico. Sem abandonar,
espero eu, a objectividade e a isenção, apresento em Pós-Guerra uma
interpretação do passado recente da Europa que é declaradamente pessoal.
Fazendo uso de uma palavra que granjeou conotações indesejavelmente
pejorativas, é um livro opinioso. Alguns dos juízos nele emitidos serão talvez
controversos, outros estarão com certeza errados e todos são falíveis. Para o
bem e para o mal, são, no entanto, meus, como o são todos os erros
susceptíveis de se infiltrarem numa obra desta extensão e com este âmbito.
Porém, se o número de erros for limitado e pelo menos algumas das suas
avaliações e conclusões se revelarem sólidas, fico a dever isso, em larga
medida, a muitos estudiosos e amigos com quem pude contar durante a
pesquisa e a redacção.
Um livro deste género surge, em primeiro lugar, apoiado em outros
livros(1). Nos clássicos da historiografia moderna que consultei em busca de
inspiração e exemplo incluem-se The Age of Extremes, de Eric Hobsbawm,
Europe in the Twentieth Century, de George Lichtheim, English History
1914-1945, de A. J. P. Taylor, e The Passing of an Illusion, do falecido
François Furet. Sendo muito diferentes em todos os demais aspectos, estes
livros e os seus autores revelam uma segurança que advém de uma grande
erudição e de um género de autoconfiança intelectual que raramente se
encontra nos seus sucessores, para além de evidenciarem uma clareza de
estilo que deveria servir de modelo para qualquer historiador.
Entre os estudiosos com quem mais aprendi nos livros que dedicaram à
história europeia recente, devo sobretudo referir e agradecer a Harold James,
Mark Mazower e Andrew Moravcsik. A influência marcante dos seus
trabalhos tornar-se-á evidente nas páginas que aqui apresento. Para com Alan
S. Milward – e, de facto, para com todos aqueles que se dedicam ao estudo da
Europa contemporânea – tenho uma especial dívida de gratidão pelos seus
estudos informados e iconoclastas acerca da economia do pós-guerra.
Na medida em que posso afirmar estar familiarizado com a história da
Europa Central e Oriental – assunto muitas vezes negligenciado nas histórias
gerais da Europa, que são escritas por especialistas da metade ocidental do
continente – fico a devê-lo à obra de um conjunto de jovens estudiosos onde
se integram Brad Abrams, Catherine Merridale, Marci Shore e Timothy
Snyder, bem como aos meus amigos Jacques Rupnik e István Deák. Com o
auxílio prestimoso de Timothy Garton Ash fiquei a conhecer não apenas a
Europa Central (assunto a que se dedicou durante muitos anos), mas também,
e sobretudo, as duas Alemanhas na época da Ostpolitik. No decurso de muitos
anos de conversas com Jan Gross – e graças aos seus textos pioneiros – fiquei
não só a conhecer algo da história da Polónia, mas também a compreender as
consequências sociais da guerra, assunto sobre o qual Jan escreveu com
intuição e humanidade inigualáveis.
As secções que neste livro são dedicadas à Itália são claramente tributárias
da obra de Paul Ginsborg e os capítulos dedicados à Espanha reflectem o que
aprendi ao ler e ao escutar Victor Perez-Diaz. Fico a dever agradecimentos
especiais a ambos, bem como a Annette Wieviorka, cuja análise magistral, em
Déportation et Génocide, sobre a resposta ambivalente ao Holocausto por
parte da França do pós-guerra, marcou profundamente a minha descrição
dessa história perturbante. As minhas reflexões conclusivas em «A Europa
como Modo de Vida» foram muito influenciadas pelo textos de uma brilhante
advogada internacional, Anne-Marie Slaughter, cuja obra sobre os «Estados
desagregados» argumenta convincentemente em prol da forma de governo
internacional que é própria da União Europeia, não por ser intrinsecamente
melhor ou representar um modelo ideal, mas porque não há nenhuma outra
que possa funcionar no mundo em que nos é dado viver.
Por toda a Europa, houve amigos, colegas e públicos que me ensinaram
muito mais sobre o passado recente e a actualidade do continente do que
alguma vez poderia ter recolhido em livros e arquivos. Estou particularmente
grato a Krzysztof Czyzewski, Peter Kellner, Ivan Krastev, Denis Lacorne,
Krzysztof Michalski, Mircea Mihaes, Berti Musliu, Susan Neiman e David
Travis pela sua hospitalidade e ajuda. Estou em dívida para com Istvan Rév
devido à sua insistência inestimável para visitar a Casa do Terror em
Budapeste, por mais desagradável que fosse a experiência. Em Nova Iorque,
os meus amigos e colegas Richard Mitten, Katherine Fleming e Jerrold Seigel
foram muito generosos com o seu tempo e as suas ideias. Dino Buturovic
examinou minuciosamente o meu relato do imbróglio linguístico jugoslavo.
Agradeço a Philip Furmansky, Jess Benhabib e Richard Foley, deões da
Faculdade de Artes e Ciências da Universidade de Nova Iorque, por terem
apoiado a minha investigação e ao Remarque Institute, que fundei para
encorajar outros a estudar e a discutir a Europa. Não poderia ter desenvolvido
o Remarque Institute, que acolheu muitas dos workshops e conferências onde
obtive tantos conhecimentos, sem o apoio e o patrocínio generosos de Yves-
André Istel; e não poderia ter escrito este livro enquanto dirigia o instituto
sem a colaboração paciente e ultra-eficiente do seu Director Administrativo
Jair Kessler.
Como muitos outros, estou profundamente reconhecido aos meus agentes
Andrew Wylie e Sarah Chalfant pela sua amizade e os seus conselhos.
Constituíram um apoio sem falhas a um projecto que demorou mais tempo – e
se tornou maior – do que alguma vez poderiam ter previsto. Estou também
grato aos meus editores, Ravi Mirchandani e Caroline Knight, em Londres, e
Scott Moyers e Jane Fleming, em Nova Iorque. Eles sabem quanto lhes devo
pela publicação deste livro. Agradeço a hospitalidade de Leon Wieseltier:
algumas das avaliações e opiniões que surgem nos capítulos 12 e 14 foram
publicadas pela primeira vez sob a forma de ensaio nas páginas notáveis,
dedicadas às Artes, que ele publica na secção final da The New Republic. A
minha maior dívida profissional é, de longe, a que tenho para com Robert
Silvers, incomparável editor de The New York Review of Books, que durante
anos me encorajou a percorrer áreas políticas e históricas cada vez mais
amplas, com todos os riscos e vantagens que esse aventureirismo implica.
Este livro beneficiou em larga medida da contribuição de estudiosos da
Universidade de Nova Iorque. Alguns deles, e em particular os doutores
Paulina Bren, Daniel Cohen (que está agora na Rice University) e Nicole
Rudolph, ajudaram-me a compreender com as suas próprias investigações
históricas o período que este livro cobre, que reconhecerão ao longo destas
páginas. Outros, como Jessica Cooperman e Avi Patt, realizaram um trabalho
inestimável como assistentes de investigação. Michelle Pinto – acompanhada
de Simon Jackson – transformou-se resignadamente numa pesquisadora
especializada de fotografias e foi responsável pela localização de muitas das
ilustrações mais apelativas, nomeadamente o Lenine embrulhado que se
encontra no fim da III Parte. Alex Molot identificou e reuniu com diligência
os relatórios estatísticos publicados e não publicados e as bases de dados de
que um livro deste género não pode deixar de depender. Na verdade, não o
poderia ter escrito sem eles.
A minha família conviveu com este livro sobre a Europa do pós-guerra
durante muito tempo, e no caso dos meus filhos, durante toda a sua vida. Não
apenas foram tolerantes com as minhas ausências, viagens e obsessões, mas
deram contributos notáveis para o seu conteúdo. O título do livro fica a dever-
se a Daniel; a Nicholas, a observação de que nem todas as histórias acabam
bem. À minha mulher, Jennifer, o livro é muito devedor, nomeadamente de
duas revisões bastante atentas e construtivas. Porém, o seu autor deve-lhe
muito, muito mais do que isso. É a ela que Pós-Guerra é dedicado.
-
(1) As notas insertas no livro pertencem, na sua maior parte, ao género tradicional, isto é, tecem
comentários ao texto e não se destinam tanto a identificar as fontes. Para evitar que este livro, destinado
ao leitor comum, se tornasse ainda maior, quando já era tão extenso, não figura nele todo o conjunto
habitual de referências bibliográficas. Em vez disso, as fontes e a bibliografia completa utilizadas estão
disponíveis para consulta e download no site do Remarque Institute
(http://www.nyu.edu/pages/remarque/postwar.html).
Pós-Guerra
Introdução
«Cada época é uma esfinge que mergulha no abismo assim que o seu enigma
é solucionado.»
Heinrich Heine
«As circunstâncias (que alguns cavalheiros consideravam inutéis!) conferem,
na verdade, a cada princípio político o seu tom distintivo e o seu efeito
discriminativo.»
Edmund Burke
«Os acontecimentos, meu rapaz, os acontecimentos.»
Harold Macmillan
«A história mundial não é terreno onde cresça a felicidade. As épocas de
felicidade são nela páginas vazias.»
Georg Wilhelm Friedrich Hegel
Decidi escrever este livro quando mudava de comboio em Westbahnhof, a
principal estação terminal de caminhos-de-ferro de Viena. Foi em Dezembro
de 1989, um momento propício. Acabava de regressar de Praga, onde os
dramaturgos e historiadores do Fórum Cívico de Vaclav Havel estavam a
desalojar o Estado policial comunista e a varrer quarenta anos de «socialismo
real» para o caixote do lixo da história. Algumas semanas antes, o Muro de
Berlim caíra inesperadamente. Na Hungria e na Polónia, todos estavam
ocupados com os desafios da política pós-comunista: o velho regime – todo-
poderoso apenas alguns meses atrás – estava a desaparecer. O Partido
Comunista da Lituânia acabara de se declarar a favor da independência
imediata em relação à União Soviética. No táxi que me levava à estação, a
rádio austríaca difundia as primeiras reportagens de um levantamento contra a
ditadura nepotista de Nicolae Ceausescu, na Roménia. Um terramoto político
estava a abalar a topografia congelada da Europa que saíra da Segunda Guerra
Mundial.
Acabava uma era e nascia uma nova Europa. Pelo menos isso era óbvio.
Mas com a morte da velha ordem, muitos pressupostos antigos seriam postos
em questão. O que no passado parecia imutável e de alguma forma inevitável
assumiria uma feição mais transitória. A confrontação da Guerra Fria, a cisão
entre Leste e Ocidente, a competição entre o «comunismo» e o «capitalismo»,
as histórias distintas e sem relação entre a Europa Ocidental próspera e os
países satélites do bloco soviético que ficavam a leste, nada disto poderia
continuar a ser interpretado como fruto de uma necessidade ideológica, nem
da lógica férrea da política. Eram resultados acidentais da história, e a história
estava a empurrá-los para o lado.
O futuro da Europa iria parecer muito diferente e o mesmo aconteceria
com o seu passado. Em retrospectiva, os anos 1945-1989 pareciam agora, não
o limiar de uma nova época, mas sim uma época de transição, isto é, um
parêntesis do pós-guerra, uma componente inacabada de um conflito que
terminara em 1945, mas cujo epílogo durou mais meio século.
Independentemente da configuração que a Europa iria ter nos próximos anos,
a história familiar e ordenada do que se passara antes mudara para sempre.
Nesse gélido mês de Dezembro, na Europa Central, parecia-me óbvio que a
história da Europa do pós-guerra necessitava de ser reescrita.
Os tempos eram propícios e o local também. Em 1989, Viena era um
palimpsesto dos passados complexos e imbricados da Europa. No início do
século XX, Viena era a Europa, ela era o eixo – fértil, de contornos nítidos e
que se iludia a si mesmo – de uma cultura e de uma civilização prestes a
avançar para o apocalipse. No período entre as duas guerras, tendo passado de
metrópole imperial gloriosa a capital pura e simples de um Estado periférico e
sem importância, Viena perdeu a graciosidade de forma gradual e contínua,
acabando por se tornar num posto avançado e provinciano de um império nazi
a que muitos dos seus cidadãos prestaram com entusiasmo fidelidade.
Após a derrota da Alemanha, a Áustria ficou no campo ocidental e
adquiriu o estatuto de «primeira vítima» de Hitler. Este golpe de sorte,
duplamente imerecido, permitiu que Viena exorcizasse o seu passado.
Convenientemente esquecida a sua fidelidade nazi, a capital austríaca – uma
cidade «ocidental» rodeada pela Europa «oriental» soviética – adquiriu uma
nova identidade, como pioneira e modelo do mundo livre. Para os seus
antigos súbditos que estavam então enclausurados na Checoslováquia, na
Polónia, na Hungria, na Roménia e na Jugoslávia, Viena simbolizava a
«Europa Central», uma comunidade imaginária de civilidade cosmopolita e
de que os europeus se haviam de alguma forma esquecido no decurso do
século. Durante os anos de agonia do comunismo, a cidade tornar-se-ia uma
espécie de posto de escuta da liberdade, um local rejuvenescido de encontros
e partidas para os europeus de Leste que fugiam para o Ocidente e de
ocidentais que se aproximavam do Leste.
Em 1989, Viena era, por estas razões, um bom local para «pensar» a
Europa. A Áustria encarnava todos os atributos algo presunçosos da Europa
Ocidental do pós-guerra: a prosperidade capitalista sustentada por um rico
Estado-providência, a paz social garantida por empregos e complementos
salariais generosamente distribuídos por todos os principais grupos sociais e
pelos partidos políticos, e a segurança externa garantida implicitamente pelo
guarda-chuva nuclear ocidental, embora a Áustria permanecesse
complacentemente «neutral». Entretanto, para lá dos rios Leitha e Danúbio, a
apenas alguns quilómetros para leste, ficava a «outra» Europa, a da pobreza
sombria e dos agentes da polícia secreta. A distância que separava as duas
Europas era rigorosamente sintetizada no evidente contraste entre a estação de
Westbahnhof, impulsiva e enérgica, com homens de negócios e turistas a
entrar em comboios-expresso modernos e brilhantes para Munique, Zurique
ou Paris, e a de Südbahnhof, lúgubre e nada convidativa, uma montra
miserável, sombria, gasta e ameaçadora de estrangeiros pobres que desciam
de comboios sujos e velhos oriundos de Budapeste ou Belgrado.
Tal como as duas principais estações de caminho-de-ferro reflectiam
involuntariamente o cisma geográfico da Europa – uma delas olhando
optimista e proveitosamente para ocidente, a outra cedendo negligentemente à
vocação oriental de Viena –, também as ruas da capital austríaca
comprovavam o silêncio abissal que separava o presente tranquilo da Europa
do seu passado desconfortável. Os edifícios imponentes e assertivos que se
alinhavam na grande Ringstrasse eram uma recordação da vocação imperial
de outrora – embora o próprio anel circular parecesse demasiado grandioso
para servir de mera artéria quotidiana para ser utilizada pelos utentes dos
transportes públicos de uma capital europeia de média dimensão – e a cidade
orgulhava-se, com razão, dos seus edifícios públicos e dos seus espaços
cívicos. De facto, Viena era muito dada a invocar as velhas glórias. Já no que
dizia respeito ao passado mais recente, era manifestamente mais reservada.
Todavia, era em relação aos judeus – que em tempos haviam ocupado
muitos dos edifícios do interior da urbe e contribuído decisivamente para a
arte, a música, o teatro, a literatura, o jornalismo e as ideias que foram a
cidade de Viena no seu apogeu – que ela se mostrava mais reticente. A própria
violência com que os judeus de Viena foram expulsos das suas casas,
despachados para leste e varridos da memória, ajuda a explicar o presente
calmo e comprometido da cidade. A Viena do pós-guerra – à semelhança da
Europa Ocidental deste mesmo período – era um edifício imponente que
assentava sobre um passado inexprimível. Grande parte do que houve de pior
neste passado ocorreu nas terras que ficaram sob controlo soviético, razão que
explica por que era esquecido com tanta facilidade no Ocidente e suprimido
no Leste. Com o ressurgimento da Europa de Leste não se tornava mais fácil
falar do passado, mas era agora inevitável fazê-lo. Após 1989, nada – nem o
futuro, nem o presente nem sobretudo o passado – voltaria a ser igual.
Embora tivesse sido em Dezembro de 1989 que decidi levar a cabo uma
história da Europa do pós-guerra, o livro não pôde ser escrito durante muitos
anos. As circunstâncias tiveram o seu papel. Retrospectivamente, tal facto foi
uma vantagem: muitas coisas que hoje se tornaram um pouco mais claras
eram então ainda obscuras. Os arquivos foram abertos. As confusões
inevitáveis que acompanham uma transformação revolucionária
esclareceram-se por si mesmas e pelo menos algumas das consequências de
longo prazo da sublevação de 1989 podem ser agora compreendidas. Aliás, as
réplicas de 1989 não se extinguiram logo. Na vez seguinte em que estive em
Viena a cidade esforçava-se para acolher milhares de refugiados das vizinhas
Croácia e Bósnia.
Três anos depois, a Áustria abandonou a autonomia que cuidadosamente
cultivara no pós-guerra e integrou-se na União Europeia, cuja emergência
como força participante nos assuntos europeus foi uma consequência directa
das revoluções no Leste europeu. Ao visitar Viena em Outubro de 1999,
encontrei Westbahnhof coberta de cartazes do Partido da Liberdade, de Jörg
Haider, que, apesar da sua admiração pelos «homens ilustres» dos exércitos
nazis que «cumpriram o seu dever» na frente leste, obteve nesse ano 27% dos
votos, ao mobilizar a ansiedade e a incompreensão dos seus compatriotas
austríacos perante as mudanças por que o seu mundo passara na década
anterior. Após cerca de meio século de imobilidade, Viena – tal como o resto
da Europa – reentrava na história.
* * *
Este livro relata a história da Europa desde a Segunda Guerra Mundial, e
por isso começa no ano de 1945 – Stunde nul, a hora zero, como os Alemães
lhe chamam. Mas como tudo o mais no século XX, a sua história é
ensombrada pela guerra de trinta anos que começou em 1914, quando o
continente europeu iniciou a sua caminhada para a catástrofe. A própria
Primeira Guerra Mundial foi um campo de matanças traumático para todos os
que nela participaram (metade da população masculina da Sérvia
compreendida entre os 18 e os 55 anos morreu em combate), mas não
resolveu nada. A Alemanha, ao contrário do que era geralmente admitido na
época, não foi esmagada na guerra, nem no acordo posterior a esta. Caso
contrário, seria difícil de explicar o facto de ter atingido uma posição de
domínio quase total sobre a Europa passados apenas vinte e cinco anos. Na
verdade, a Alemanha não pagou as suas dívidas referentes à Primeira Guerra
Mundial, tendo o custo da vitória dos Aliados sido superior aos custos da
derrota daquela, que, por isso, emergiu relativamente mais forte do que estava
em 1913. «O problema alemão», que surgira na Europa com a ascensão da
Prússia uma geração antes, continuou sem solução.
Os pequenos países que emergiram do colapso dos velhos impérios
territoriais em 1918 eram pobres, instáveis, inseguros e ressentidos com os
seus vizinhos. No período entre as duas guerras, a Europa estava cheia de
Estados «revisionistas»: Rússia, Alemanha, Áustria, Hungria e Bulgária
foram todos derrotados na Grande Guerra e aguardavam a oportunidade de
recuperar territórios. Após 1918, a estabilidade internacional não regressou,
nem se recuperou o equilíbrio entre as várias potências, houve apenas um
interlúdio motivado pela exaustão. A violência da guerra não acalmou. Em
vez disso, transferiu-se para os assuntos internos sob a forma de polémicas
nacionalistas, preconceitos raciais, lutas entre classes e guerras civis. Nos
anos 20 e sobretudo nos anos 30, a Europa penetrou numa zona crepuscular
entre a sequência de uma guerra e a antecipação vaga e indistinta da seguinte.
Os conflitos internos e os antagonismos entre os Estados, nos anos entre as
duas Guerras Mundiais, foram exacerbados – e em certa medida provocados –
pelo colapso concomitante da economia europeia. De facto, a vida económica
da Europa recebeu nestes anos um triplo choque. A Primeira Guerra Mundial
distorceu o emprego interno, destruiu o comércio e devastou regiões inteiras,
para além de ter levado os Estados à bancarrota. Muitos países, sobretudo na
Europa Central, nunca recuperaram dos seus efeitos. Os que o conseguiram
foram atingidos pela crise económica dos anos 30, quando a deflação, as
falências e os esforços desesperados para criar tarifas protectoras contra a
concorrência externa provocaram não só taxas de desemprego nunca antes
atingidas e capacidade industrial não aproveitada, mas também o colapso do
comércio internacional (entre 1929 e 1936 o comércio franco-alemão caiu
cerca de 83%), que foram acompanhados por uma feroz competição e por
ressentimentos entre os Estados. Depois, iniciou-se a Segunda Guerra
Mundial, cujo impacto sem precedente sobre as populações civis e as
economias das nações em causa será discutido na I Parte deste livro.
O efeito acumulado destes golpes foi a destruição de uma civilização. Os
contemporâneos tinham perfeita consciência da dimensão assumida pelo
desastre que a Europa a si mesma causava. Tanto na extrema-esquerda como
na extrema-direita, viram na auto-imolação da Europa burguesa uma
oportunidade para lutarem por algo melhor. Os anos 30 foram a «década
abjecta, desonesta» de que falou W.H. Auden, mas foram também uma época
de compromissos e fé política que culminaram nas ilusões e nas vidas
perdidas da guerra civil espanhola. Foram o fruto tardio das visões radicais do
século XIX, agora investidas nos comprometimentos ideológicos violentos de
uma época mais desapiedada: «Que aspiração tão grande a uma nova ordem
humana havia nesta época entre Guerras e que fracasso tão miserável foi
tentar viver à sua altura» (Arthur Koestler).
Perdidas as esperanças em relação à Europa, alguns empreenderam a fuga:
primeiro, para as democracias liberais que subsistiam na Europa Ocidental,
depois – se chegaram a ter tal oportunidade – para as Américas. Outros ainda,
como Stefan Zweig e Walter Benjamin, acabaram com as suas vidas. Na
véspera do continente cair no abismo, a Europa parecia não ter futuro.
Independentemente do que se perdeu com a implosão da civilização europeia,
uma perda cujas implicações há muito haviam sido intuídas por Karl Kraus e
Franz Kafka na Viena de Zweig, nunca mais se recuperaria. Segundo o filme
clássico de Jean Renoir, realizado em 1937, a Grande Ilusão da época foi
recorrer à guerra e aos mitos da honra, casta e classe que a acompanham. No
entanto, em 1940, para os europeus perspicazes, a maior das ilusões da
Europa, desacreditada então para além de qualquer recuperação possível, foi a
própria «civilização europeia».
À luz do que sucedeu antes, compreende-se, portanto, que seja tentador
narrar a história da recuperação inesperada da Europa após 1945 de uma
forma auto-elogiosa e até lírica. De facto, é este o tema mais acentuado nas
histórias da Europa desde a Segunda Guerra Mundial, nomeadamente nas que
foram escritas antes de 1989, tal como foi o tom adoptado pelos homens de
Estado europeus ao reflectirem sobre as suas próprias realizações no decurso
destas décadas. A mera sobrevivência e o mero ressurgimento de Estados
independentes na Europa continental depois do cataclismo da guerra total, a
ausência de disputas entre os Estados e o contínuo desenvolvimento de
formas institucionalizadas de cooperação intra-europeia, a recuperação
sustentada, depois de trinta anos de desintegração das economias, e a
«normalização» da prosperidade, do optimismo e da paz, tudo isto suscitou
uma resposta hiperbólica. A Europa «pós-nacional» aprendeu as cruéis lições
da história recente. Surgiu um continente irénico, pacífico, como uma Fénix
renascida das cinzas do seu passado assassino, suicidário.
Como muitos outros mitos, este relato agradável sobre a Europa da
segunda metade do século XX contém um núcleo de verdade, mas exclui uma
parte significativa. A Europa de Leste – desde a fronteira austríaca aos
Montes Urais e de Talin a Tirana – não se revê nela. As suas décadas
posteriores à Segunda Guerra Mundial foram certamente pacíficas quando
postas em contraste com o que se passou anteriormente, mas graças apenas à
presença não solicitada do Exército Vermelho: foi a paz do pátio da prisão
imposta pelos tanques. Se os Estados-satélites do bloco soviético se
empenharam numa cooperação internacional que se pode comparar,
superficialmente, com os desenvolvimentos que se iam dando mais a oeste,
foi apenas porque Moscovo lhes impôs à força instituições e trocas
«fraternas».
As histórias das duas metades da Europa posterior à Segunda Guerra
Mundial não podem ser contadas isoladamente. A herança da Segunda Guerra
Mundial (mas também as décadas e a guerra antecedentes) impôs aos
governos e aos povos da Europa de Leste e da Europa Ocidental algumas
escolhas difíceis quanto à forma de organizar os seus assuntos, para evitar
qualquer regresso ao passado. Uma das opções, constituída pela continuação
do programa radical dos movimentos de frente popular dos anos 30, foi de
início bastante popular em ambas as partes da Europa (o que nos alerta para o
facto de o ano de 1945 não ter sido o novo começo que por vezes parece).
Mas na Europa de Leste era inevitável uma espécie de transformação radical.
Não era possível regressar a um passado desacreditado. O que poderia então
substituí-lo? O comunismo pode ter sido uma solução errada, mas o dilema a
que procurava dar resposta era suficientemente real.
No Ocidente, as perspectivas de mudança radical foram suavemente
afastadas, em larga medida devido à ajuda (e à pressão) dos Americanos.
Extinguira-se o entusiasmo pelos programas da frente popular e do
comunismo: eram receitas para tempos difíceis e no Ocidente, pelo menos
após 1952, os tempos já não o eram assim tanto. Por isso, as incertezas dos
anos imediatamente a seguir à guerra foram esquecidas nas décadas
posteriores. Todavia, a possibilidade de as coisas seguirem um rumo diferente
e, na verdade, a probabilidade de que efectivamente assim viesse a ser,
pareceram muito fortes em 1945. Foi para impedir o regresso dos velhos
demónios (o desemprego, o fascismo, o militarismo alemão, a guerra, a
revolução) que a Europa Ocidental encetou aquela nova via com que estamos
hoje familiarizados. A Europa pós-nacional, do Estado-providência,
cooperativa e pacífica, não emergiu do projecto optimista, ambicioso e aberto
ao futuro que hoje, retrospectivamente, os euro-idealistas imaginam com
orgulho. Ela é uma filha insegura da ansiedade. Sob o espectro da História, os
seus líderes implementaram reformas sociais e ergueram novas instituições
como medida profiláctica para manter o passado à distância.
Isto é mais fácil de perceber se nos recordarmos que as autoridades do
bloco soviético estavam essencialmente empenhadas no mesmo projecto.
Também elas estavam preocupadas acima de tudo em erguer uma barreira
contra um regresso ao passado político, se bem que nos países governados
pelo poder comunista este fosse evitado não tanto com o progresso social,
mas sobretudo com a utilização da força física. A história recente foi reescrita
– e os cidadãos foram encorajados a esquecê-la – de acordo com a asserção de
que a revolução social conduzida pelo comunismo tinha definitivamente
abolido não apenas as insuficiências do passado, mas também as condições
que as tornaram possíveis. Como veremos, também esta afirmação é um mito,
ou, pelo menos, uma meia verdade.
No entanto, o mito comunista atesta involuntariamente a importância (e a
dificuldade) de gerir uma herança pesada em ambas as metades da Europa. A
Primeira Guerra Mundial destruiu a velha Europa, a Segunda Guerra Mundial
criou as condições para uma nova. Porém, a Europa no seu todo viveu durante
várias décadas após 1945 sob a longa sombra projectada pelos ditadores e
pelas guerras do seu passado imediatamente anterior. Esta é uma das
experiências que os europeus posteriores à Segunda Guerra Mundial possuem
em comum e que os distingue dos Americanos, aos quais o século XX trouxe
lições bastante diferentes e globalmente mais optimistas. Deve ser também o
ponto de partida de todos os que pretendam compreender a história europeia
antes de 1989 e reconhecer quanto ela depois mudou.
* * *
Ao referir-se à perspectiva de Tolstoi sobre a história, Isaiah Berlin fez
uma distinção importante entre dois estilos de raciocínio intelectual, citando
uma frase famosa do poeta grego Arquíloco: «A raposa conhece muitas
coisas, mas o ouriço-cacheiro conhece uma coisa grande.» Para utilizar as
palavras de Isaiah Berlin, este livro não é manifestamente um ouriço-
cacheiro. Não tenho uma grande teoria da história europeia contemporânea
para propor nestas páginas, um tema abrangente a expor, uma história para
contar que tudo englobe. Tal não significa, porém, que eu pense que a história
da Europa posterior à Segunda Guerra Mundial não possua uma estrutura
temática. Pelo contrário, possui mais do que uma. Tal como a raposa, a
Europa conhece muitas coisas.
Em primeiro lugar, esta é a história da redução da Europa. Após 1945, os
Estados que formavam a Europa já não podiam aspirar a um estatuto
internacional ou imperial. As duas excepções a esta regra – a União Soviética
e, em parte, a Grã-Bretanha – eram apenas semieuropeias aos seus próprios
olhos e, em todo o caso, no fim do período que aqui nos ocupa encontravam-
se muito reduzidas. A maior parte do resto da Europa continental fora
humilhada pela derrota e pela ocupação. Não conseguira libertar-se do
fascismo pelo seu próprio esforço, nem conseguira manter afastado o
comunismo sem ajuda. A Europa foi libertada – ou enclausurada – por
Estados exteriores. Foi apenas com esforços consideráveis e no decurso de
várias décadas que os europeus recuperaram o controlo do seu destino.
Privados dos seus territórios ultramarinos, os impérios europeus, inicialmente
marítimos (Grã-Bretanha, França, Holanda, Bélgica e Portugal), recuaram
todos, ao longo deste período, para os seus núcleos no continente,
redireccionando a sua atenção para a própria Europa.
Em segundo lugar, nas últimas décadas do século XX assistimos ao
desaparecimento das «grandes narrativas» da história europeia: as grandes
teorias da História do século XIX, que, com os seus modelos de progresso e
de mudança, de revolução e de transformação, alimentaram os projectos
políticos e os movimentos sociais que dilaceraram a Europa na primeira
metade do século passado. Também isto só tem sentido num quadro que
abranja toda a Europa: o declínio do fervor político no Ocidente (excepção
feita a uma minoria intelectual marginalizada) foi acompanhado, por razões
muito diversas, pela perda da fé política e pelo descrédito do marxismo oficial
no Leste. Nos anos 80, e decerto apenas durante um breve momento, pareceu
que a direita intelectual poderia encenar um ressurgimento do projecto
igualmente oitocentista de desmantelar a «sociedade» e de abandonar os
assuntos públicos a um mercado sem entraves e a um Estado minimalista. No
entanto, o arroubo passou. Após 1989, não havia na Europa qualquer projecto
ideológico global da direita ou da esquerda, se exceptuarmos a perspectiva da
liberdade que era, para a maioria dos europeus, uma promessa incumprida.
Em terceiro lugar, e como substituto modesto das defuntas ambições do
passado ideológico da Europa, surgiu tardiamente, e em grande parte por
acaso, o «modelo europeu». Fruto de uma mistura eclética de legislação
social-democrata e democrata-cristã e do alargamento institucional da
Comunidade Europeia e da sua sucessora, a União Europeia, esta foi uma
forma caracteristicamente «europeia» de regular os intercâmbios sociais e as
relações interestaduais. Abrangendo tudo, desde os cuidados infantis até às
normas legais interestaduais, esta abordagem europeia não traduz apenas as
práticas burocráticas da respectiva União e dos seus Estados-membros. No
início do século XXI, tornou-se um farol e um exemplo para os Estados que
aspiram a ser membros da União e um desafio global aos Estados Unidos e ao
«modo de vida americano» rival.
Esta transformação da Europa de mera realidade geográfica (além disso
bastante conturbada) em modelo e foco de atracção tanto para indivíduos
como para países – que inegavelmente não estava prevista – foi um processo
lento e cumulativo. Usando a expressão irónica de Alexander Wat sobre as
ilusões dos políticos polacos no período entre as duas guerras, a Europa não
estava «condenada à grandeza». Certamente que o seu aparecimento nesta
qualidade não poderia ter sido previsto em 1945, nem sequer em 1975, tendo
em consideração as respectivas circunstâncias. Esta nova Europa não foi um
projecto comum planeado: ninguém pensara torná-la realidade. Porém, desde
que em 1992 ficou claro que a Europa tinha este novo papel na ordem
internacional, as suas relações com os Estados Unidos assumiram contornos
diferentes, quer para os europeus, quer para os Americanos.
O quarto tema desta apresentação da Europa posterior à Segunda Guerra
Mundial é o da relação complicada e frequentemente mal entendida com os
Estados Unidos da América. Os europeus ocidentais quiseram que os Estados
Unidos se envolvessem nos assuntos europeus a partir de 1945, mas também
ficaram ressentidos com tal envolvimento e com o que representava em
termos de declínio da Europa. Para além disso, apesar da presença dos
Estados Unidos na Europa, sobretudo nos anos que se seguiram a 1949, os
dois lados do «Ocidente» continuaram a ser lugares muito diversos. Por
exemplo, a Europa Ocidental interpretava a Guerra Fria de um modo muito
diferente da reacção alarmista despertada nos Estados Unidos. Por outro lado,
a subsequente «americanização» da Europa nos anos 50 e 60 foi muitas vezes
exagerada, como iremos ver.
A Europa de Leste, é claro, via a América e os seus atributos de uma
forma muito diferente. Mas também neste caso não devemos exagerar a
influência dos Estados Unidos enquanto modelo para os europeus de Leste,
quer antes quer depois de 1989. Críticos dissidentes de ambas as partes da
Europa, como foi o caso de Raymond Aron em França e Vaclav Havel na
Checoslováquia, tiveram o cuidado de salientar que não encaravam de forma
alguma a América como um modelo ou um exemplo para as suas próprias
sociedades. Embora as gerações mais novas, nos anos posteriores a 1989,
tivessem pretendido, de facto, liberalizar os seus países segundo o modelo
americano, com serviços públicos reduzidos, baixos impostos e um mercado
livre, a moda não pegou. O «momento americano» da Europa pertence ao
passado. Por isso, o futuro das «pequenas Américas» da Europa de Leste
reside inequivocamente na própria Europa.
Por último, convém notar que a história da Europa desde a Segunda
Guerra Mundial está ensombrada por silêncios, por ausências. Houve um
tempo em que a Europa foi uma mistura intrincada e enredada de línguas,
religiões, comunidades e nações que se sobrepunham. Muitas das suas
cidades, sobretudo as mais pequenas e inseridas nas zonas de intersecção
entre os antigos e os novos impérios, como Trieste, Sarajevo, Salonica,
Cernovitz, Odessa ou Vilnius, eram verdadeiras sociedades multiculturais
avant le mot, onde católicos, ortodoxos, muçulmanos, judeus e outros viviam
numa justaposição familiar. Não devemos idealizar esta velha Europa. Aquilo
a que o escritor polaco Tadeusz Borowski chamou «o incrível e quase cómico
cadinho de povos e nacionalidades a crepitar perigosamente mesmo no
coração da Europa» era periodicamente atravessado por tumultos, massacres e
pogroms – mas era real e sobreviveu na memória viva.
Contudo, entre 1914 e 1945, essa Europa desfez-se em pó. A Europa mais
bem organizada que emergiu, cintilante, na segunda metade do século XX
tinha menos pontas soltas. Graças à guerra, às ocupações, aos ajustamentos de
fronteiras, às expulsões e aos genocídios, quase todos viviam agora no seu
próprio país e entre o seu povo. Durante os 40 anos que se seguiram à
Segunda Guerra Mundial, os europeus das duas metades do continente
viveram em enclaves nacionais herméticos em que as minorias religiosas e
étnicas que sobreviveram – por exemplo, os judeus em França –
representavam uma magra percentagem da população em geral e foram
completamente integradas na política e na cultura dominantes. Só a
Jugoslávia e a União Soviética – que era um império, não um país e, em todo
o caso, apenas parcialmente europeu, como já salientámos – ficaram fora
desta nova Europa de Estados homogéneos.
No entanto, a partir dos anos 80 e, sobretudo, desde a queda da União
Soviética e do alargamento da União Europeia, a Europa depara com um
futuro multicultural. Refugiados, trabalhadores convidados, naturais das
antigas colónias europeias atraídos para as metrópoles imperiais pela
perspectiva de emprego e de liberdade e os emigrantes voluntários e
involuntários dos Estados falhados ou repressivos situados nas margens cada
vez mais afastadas da Europa transformaram Londres, Paris, Antuérpia,
Amsterdão, Berlim, Milão e uma dúzia de outros lugares em cidades
cosmopolitas mundiais, quer gostem ou não.
Esta nova presença dos «outros» a viver na Europa – por exemplo, cerca
de 15 milhões de muçulmanos na União Europeia actual, com mais 80
milhões na Bulgária e na Turquia à espera de entrar – realçou não só o mal-
estar actual do continente perante a perspectiva de uma diversidade ainda
maior, mas também a facilidade com que os «outros», já mortos, do seu
passado foram esquecidos. Depois de 1989, tornou-se mais claro do que antes
em que medida a estabilidade da Europa posterior à Segunda Guerra Mundial
tinha raízes nas actuações de Estaline e de Hitler. Com o apoio de
colaboracionistas durante a guerra, estes ditadores nivelaram a base
demográfica sobre a qual as fundações de um continente novo e menos
complicado foram depois lançadas.
Este ponto fraco na narrativa suave do progresso da Europa em direcção às
«amplas terras altas iluminadas pelo Sol» (Winston Churchill) foi em grande
medida deixado sem referência nas duas metades da Europa do pós-guerra,
pelo menos até aos anos 60, sendo depois habitualmente invocado para falar
do extermínio dos judeus pelos Alemães. Se exceptuarmos as controvérsias
ocasionais, os registos dos outros culpados e das outras vítimas foram
mantidos fechados. A história e a memória da Segunda Guerra Mundial
mantiveram-se particularmente circunscritas a um conjunto de convenções
morais: o Bem contra o Mal, os Antifascistas contra os Fascistas, os
Resistentes contra os Colaboracionistas, etc.
A partir de 1989, com a superação de inibições há muito radicadas, foi
possível reconhecer (por vezes, a despeito de oposições e negações virulentas)
o custo moral que foi pago pelo renascimento da Europa. Os Polacos, os
Franceses, os Suíços, os Italianos, os Romenos e outros estão agora em
condições mais favoráveis para conhecer, se o desejarem, o que realmente
aconteceu nos seus países há apenas algumas décadas. Até mesmo os
Alemães estão a rever, com consequências paradoxais, a história nacional que
herdaram. Actualmente, pela primeira vez após algumas décadas, o que é
objecto de atenção são o sofrimento e a vitimização alemães provocados
pelos bombardeiros britânicos, os soldados russos ou os checos que os
expulsaram. Como é de novo cautelosamente sugerido em alguns círculos
respeitáveis, os judeus não foram as únicas vítimas…
Saber se estas discussões são benéficas ou prejudiciais é matéria para
debate. Todo este rememorar público será um sinal de saúde política, ou,
como De Gaulle muito bem sabia, será, por vezes, mais prudente esquecer?
Esta questão será retomada no Epílogo. Neste momento, assinalarei apenas
que estas últimas ocorrências de um regresso perturbador ao passado não têm
necessariamente que ser entendidas – como são por vezes, sobretudo nos
Estados Unidos, quando associadas a irrupções de preconceitos étnicos ou
raciais – como uma prova sinistra do Pecado Original da Europa, ou seja, da
sua incapacidade para aprender com os crimes do passado, da sua nostalgia
amnésica, da sua propensão, sempre prestes a manifestar-se, para regressar a
1938. Não se trata, como diz Yogi Berra, de um «déjà vu que se repete».
A Europa não está a retornar ao tempo conturbado da guerra. Pelo
contrário, está a deixá-lo para trás. Aliás, a Alemanha, tal como o resto da
Europa, está hoje mais consciente da sua história do século XX do que jamais
estivera nos últimos 50 anos. Todavia, tal não significa que esteja a ser
atraída para ela. É que essa história nunca desapareceu. Como este livro
procura mostrar, a grande sombra da Segunda Guerra Mundial projecta-se
gravemente sobre a Europa do pós-guerra. Não poderia, no entanto, ser
totalmente aceite. O silêncio que caiu sobre o passado recente da Europa foi a
condição necessária para a construção do seu futuro. Na sequência de debates
públicos dolorosos que tiveram lugar em quase todos os outros países da
Europa, actualmente parece ser de alguma forma adequado (e, aliás,
inevitável) que também os Alemães se disponham a pôr em causa os cânones
da memória oficial bem-intencionada. Podemos não nos sentir muito à
vontade com isso, pode mesmo não constituir um bom presságio, mas é como
que uma conclusão. Sessenta anos após a morte de Hitler, esta guerra e as
suas consequências estão a entrar para a História. O pós-guerra na Europa
durou muito tempo, mas está finalmente a ser encerrado.
I Parte

Pós-Guerra (1945-1953)
I

O Legado da Guerra
«O que aconteceu ao mundo europeizado não foi uma lenta decadência.
Outras civilizações decaíram e desfizeram-se em pó, a civilização europeia,
digamos assim, explodiu.»
H. G. Wells, War in the Air (1908)
«Ninguém imaginou ainda, nem muito menos enfrentou, o problema humano
que a guerra irá deixar atrás de si. Nunca aconteceu uma tal destruição, uma
tal desintegração da estrutura da vida.»
Anne O’Hare McCormick
«Em toda a parte se desejam milagres e curas.
A guerra lançou de novo os Napolitanos para a Idade Média.»
Norman Lewis, Naples ‘44
Em consequência da Segunda Guerra Mundial, a perspectiva que a Europa
oferecia era de miséria e desolação. As fotografias e os documentários da
época mostram torrentes deploráveis de civis desamparados, viajando em
carroças através de paisagens bombardeadas, por cidades devastadas e
campos áridos. Crianças órfãs vagueiam desoladas à frente de grupos de
mulheres exaustas, vasculhando destroços de casas em ruínas. Deportados
com as cabeças rapadas e internados em campos de concentração, vestindo
pijamas às riscas, olham apaticamente para a câmara, esfomeados e doentes.
Até mesmo os eléctricos, seguindo irregularmente ao longo das linhas
danificadas, movidos por uma corrente eléctrica intermitente, parecem
traumatizados pelos rebentamentos das granadas. Tudo e todos – com a
notável excepção das bem alimentadas forças de ocupação aliadas – parecem
gastos, sem recursos, exaustos.
Esta imagem necessita de ser atenuada se quisermos compreender como
este continente destruído foi capaz de recuperar tão rapidamente nos anos
seguintes. Todavia, traduz uma verdade essencial sobre a condição europeia
depois da derrota da Alemanha. Os europeus sentiam-se desesperados,
estavam exaustos, e por uma razão compreensível. A guerra europeia, que
começara com a invasão da Polónia por Hitler, em Setembro de 1939, e
terminara com a rendição incondicional da Alemanha, em Maio de 1945, foi
uma guerra total. Incluiu não só os soldados, mas também os civis.
De facto, nos países ocupados pela Alemanha nazi, desde a França à
Ucrânia, da Noruega à Grécia, a Segunda Guerra Mundial foi, em primeiro
lugar, uma experiência civil. Os combates militares ficaram limitados ao
princípio e ao fim do conflito. No intervalo, esta foi uma guerra de ocupação,
de repressão, de exploração e de extermínio, na qual os soldados, as tropas de
choque e os polícias tiveram ao seu dispor o quotidiano e a própria existência
de dezenas de milhões de pessoas cativas. Em alguns países, a ocupação
durou a maior parte da guerra, levando a todo o lado o medo e as privações.
Portanto, ao contrário da Primeira Guerra Mundial, a segunda – a guerra
de Hitler – foi uma experiência quase universal e durou muito tempo, quase
seis anos para os países que estiveram nela envolvidos desde o início, como
foi o caso da Grã-Bretanha e da Alemanha. Na Checoslováquia começou
ainda antes com a ocupação dos Sudetas, em Outubro de 1938. Na Europa de
Leste e nos Balcãs nem sequer terminou com a derrota de Hitler, uma vez que
a ocupação pelo Exército Soviético e a guerra civil continuaram muito para
além do desmembramento da Alemanha.
É claro que as guerras de ocupação não eram desconhecidas na Europa,
longe disso. A memória popular da Guerra dos 30 Anos, que decorreu na
Alemanha do século XVII e durante a qual os exércitos estrangeiros de
mercenários viviam da terra e aterrorizavam as populações locais, ainda
sobreviviam três séculos mais tarde nos mitos locais e nos contos de fadas.
Durante os anos 30 do século XX, as avós espanholas admoestavam as
crianças teimosas ameaçando-as com Napoleão. Mas a Segunda Guerra
Mundial trouxe consigo uma experiência de ocupação particularmente
intensa. Isto ficou a dever-se, em parte, à peculiar atitude dos nazis para com
as populações subjugadas.
Os exércitos ocupantes anteriores – os Suecos na Alemanha do século
XVII, os Prussianos em França, após 1815 – viviam da terra e atacavam e
matavam os civis locais de forma ocasional e até aleatória, mas os povos que
caíram em poder dos Alemães, depois de 1939, ou foram postos ao serviço do
Reich ou foram condenados à destruição. Para os europeus foi uma
experiência nova. Fora do continente, nas suas colónias, os Estados europeus
forçaram ou escravizaram legalmente as populações indígenas em benefício
próprio. Não deixaram, aliás, de recorrer à tortura, às mutilações e aos
assassínios em massa para forçar as suas vítimas à obediência. Todavia, desde
o século XVIII que estas práticas eram quase desconhecidas entre os próprios
europeus, pelo menos a oeste dos rios Bug e Prut.
Foi portanto na Segunda Guerra Mundial que a força do Estado europeu
moderno foi mobilizada pela primeira vez com o objectivo principal de
conquistar e explorar outros europeus. Para lutar na guerra e vencê-la, os
Britânicos exploraram e delapidaram os seus próprios recursos: para o fim, a
Grã-Bretanha gastava mais de metade do produto nacional bruto com o
esforço de guerra. A Alemanha nazi, porém, participava, sobretudo nos
últimos anos, graças à substancial ajuda da pilhagem das economias das suas
vítimas, muito à semelhança do que Napoleão fizera depois de 1805, mas com
uma eficiência incomparavelmente superior. A Noruega, a Holanda, a
Bélgica, a Boémia-Morávia, e sobretudo a França, deram contributos
involuntários significativos para o esforço de guerra alemão. As suas minas,
fábricas, explorações agrícolas e caminhos-de-ferro foram orientados para
satisfazer as exigências alemãs e as suas populações foram obrigadas a
trabalhar na produção de guerra alemã, inicialmente nos seus próprios países
e mais tarde na própria Alemanha. Em Setembro de 1944, havia 7 487 000
estrangeiros na Alemanha, a maioria dos quais contra a sua vontade,
constituindo 21% da força de trabalho do país.
Os nazis viviam o mais que podiam à custa da riqueza das suas vítimas e,
de facto, o sucesso foi tal que só em 1944 é que os próprios Alemães
começaram a sentir o impacto das restrições e carências do tempo de guerra.
Nessa altura, porém, o conflito militar estava a apertar o cerco sobre eles,
primeiro com as campanhas de bombardeamentos dos Aliados, depois com o
avanço simultâneo dos Exércitos de leste e oeste. Foi neste último ano de
guerra, durante o breve período de campanha activa a ocidente da União
Soviética, que teve lugar a maior parte das destruições materiais.
Do ponto de vista dos contemporâneos, o impacto da guerra não foi
medido em termos de lucros e perdas industriais, nem do valor líquido da
riqueza nacional em 1945 quando comparada com a existente em 1938, mas
sim dos danos visíveis provocados no seu ambiente imediato e nas suas
comunidades. É por estes que devemos começar se quisermos compreender o
trauma que existe por trás das imagens de desolação e desespero que
captaram a atenção dos observadores em 1945.
Foram muito poucas as vilas e cidades europeias, independentemente da
sua dimensão, que ultrapassaram a guerra incólumes. Por acordo tácito ou
pura sorte, os centros antigos do Renascimento e da Idade Moderna de
algumas poucas cidades europeias famosas – Roma, Veneza, Praga, Paris,
Oxford – nunca foram alvos de ataque. No entanto, no primeiro ano de
guerra, os bombardeiros alemães arrasaram Roterdão e destruíram a cidade
industrial inglesa de Coventry. AWehrmacht destruiu completamente muitas
pequenas vilas ao longo das suas vias de penetração através da Polónia e,
mais tarde, da Jugoslávia e da URSS. Bairros inteiros do centro de Londres,
nomeadamente os quarteirões mais pobres em redor das docas, no East End,
foram vítimas da blitzkrieg da Luftwaffe.
Todavia, os maiores danos materiais foram causados pela campanha de
bombardeamento sem precedentes por parte das forças aliadas, em 1944 e
1945, e do avanço implacável do Exército Vermelho desde Estalinegrado até
Praga. As cidades costeiras francesas de Royan, Le Havre e Caen foram
devastadas pela Força Aérea dos Estados Unidos. Hamburgo, Colónia,
Düsseldorf, Dresden e dúzias de outras cidades alemãs foram reduzidas a
escombros por séries de bombas lançadas por aviões britânicos e americanos.
A leste, 80% da cidade bielorrussa de Minsk estava destruída no fim da
guerra. Kiev, na Ucrânia, era uma ruína a arder lentamente. Por sua vez,
Varsóvia foi sistematicamente incendiada e dinamitada, casa a casa, rua a rua,
pelo Exército alemão em retirada, no Outono de 1944. Quando acabou a
guerra na Europa – após Berlim ter caído em poder do Exército Vermelho, em
Maio de 1945, depois de ter sido atingida por 40 000 toneladas de bombas nas
duas semanas anteriores – grande parte da capital alemã estava reduzida a
escombros fumegantes de pedras e de metal retorcido. Setenta e cinco por
cento dos seus edifícios ficaram inabitáveis.
As cidades arruinadas eram a prova mais óbvia e gráfica da devastação e
serviriam como símbolo visual universal dos pavores da guerra. Como muitos
dos danos foram causados às casas e edifícios de apartamentos e, em
consequência, muitas pessoas ficaram sem lar (cerca de 25 milhões de
pessoas na União Soviética e outros 20 milhões na Alemanha, 500 000 das
quais apenas em Hamburgo), uma paisagem urbana juncada de pedras era a
recordação mais imediata da guerra que acabava de terminar. Mas não era a
única. Na Europa Ocidental, os transportes e as comunicações estavam
gravemente afectados: de 12 000 locomotivas em França antes da guerra,
apenas 2800 estavam ao serviço quando os Alemães se renderam. Muitas
estradas, vias-férreas e pontes foram destruídas à bomba pelos Alemães em
retirada, pelos Aliados que avançavam ou pela Resistência francesa. Foram
afundados dois terços da marinha mercante francesa. Só em 1944-1945 a
França perdeu 500 000 habitações.
No entanto, os Franceses, tal como os Britânicos, os Belgas, os
Holandeses (que perderam 219 000 hectares de terras, alagadas pelos
Alemães, e em 1945 ficaram reduzidos a 40% dos transportes por caminhos-
de-ferro, estrada e canais que existiam antes da guerra), os Dinamarqueses, os
Noruegueses (que perderam 14% do seu capital durante a ocupação alemã) e
mesmo os Italianos foram comparativamente afortunados, embora o
desconhecessem. Os verdadeiros horrores da guerra foram vividos a leste. Os
nazis trataram os europeus ocidentais com algum respeito, embora para os
explorar melhor, e estes retribuíram o cumprimento fazendo relativamente
pouco para destruir ou contrariar o esforço de guerra alemão. Na Europa de
Leste e do Sudeste, os ocupantes alemães foram impiedosos, o que não se
ficou a dever apenas ao facto de os guerrilheiros locais, sobretudo na Grécia,
na Jugoslávia e na Ucrânia, os terem combatido implacavelmente, embora
sem esperança.
As consequências materiais da ocupação alemã no Leste, o avanço
soviético e as lutas de guerrilha constituíram assim uma experiência de guerra
completamente diferente da que se deu no Ocidente. Na União Soviética, 70
000 aldeias e 1700 vilas foram destruídas no decurso da guerra, para além de
32 000 fábricas e mais de 64 000 quilómetros de vias-férreas. Na Grécia,
perderam-se dois terços da frota da marinha mercante do país, que era vital,
ficou arruinado um terço das suas florestas e foi destruído um milhar de
aldeias. Entretanto, a política alemã de fixar o pagamento dos custos de
ocupação segundo as suas necessidades militares, e não a capacidade de os
Gregos o cumprirem, gerou uma hiperinflação.
A Jugoslávia perdeu 25% das suas vinhas, 50% do seu gado, 60% das
estradas, 75% de todas as suas vias e pontes ferroviárias, uma em cada cinco
habitações e um terço da sua limitada riqueza industrial. Para além disso,
perdeu também 10% da população que tinha antes da guerra. Na Polónia, três
quartos das vias-férreas de bitola-padrão ficaram inutilizáveis e uma em cada
seis explorações agrícolas estava inoperacional. A maioria das vilas e cidades
do país dificilmente podia funcionar (embora apenas Varsóvia tivesse sido
totalmente destruída).
Porém, mesmo estes números, por mais dramáticos que sejam, apenas
deixam ver parte do cenário: o terrível panorama físico. Ora, os danos
materiais que os europeus sofreram durante a guerra, ainda que terríveis,
foram insignificantes quando comparados com as perdas humanas. Calcula-se
que entre 1939 e 1945 morreram 36,5 milhões de europeus (o que equivale à
população total da França no início das hostilidades) de causas relacionadas
com a guerra, número em que não se incluem as mortes por causas naturais,
nem qualquer estimativa do número de crianças que não foram concebidas ou
não nasceram, então ou depois, por causa da guerra.
A taxa de mortalidade global é assombrosa (e note-se que os dados aqui
apresentados não incluem os Japoneses, os Americanos, nem outros não
europeus mortos). Por ignominiosos que sejam os números referentes à
mortalidade durante a Grande Guerra de 1914-1918, ficam bastante mitigados
em comparação com estes. Nenhum outro conflito na história levou à morte
de tantas pessoas em tão curto espaço de tempo. Mas o que é flagrante é o
número de civis não combatentes que foram mortos: pelo menos 19 milhões,
ou seja, mais de metade do total. Esse número ultrapassou as perdas militares
nos casos da URSS, Hungria, Polónia, Jugoslávia, Grécia, França, Holanda,
Bélgica e Noruega. Apenas no Reino Unido e na Alemanha as perdas
militares ultrapassaram significativamente as de civis.
As estimativas de mortos civis na União Soviética são muito variáveis,
embora o número mais provável ultrapasse os 16 milhões de pessoas (cerca
do dobro do número de perdas militares, das quais 78 000 pereceram na
batalha de Berlim). As mortes civis ocorridas em território polaco antes da
guerra foram aproximadamente 5 milhões, na Jugoslávia totalizaram 1,4
milhões, na Grécia 430 000, em França 350 000, na Hungria 270 000, na
Holanda 204 000, na Roménia 200 000. Particularmente relevantes nos dados
referentes à Polónia, à Holanda e à Hungria, a morte de 5,7 milhões de
judeus, a que se têm de acrescentar de 221 000 ciganos (Roma).
Entre as causas de morte dos civis contam-se os extermínios em massa em
campos de morte e locais de massacres desde Odessa até ao Báltico; as
doenças, a má nutrição e a fome (provocada ou não); o fuzilamento e a
queima de reféns pela Wehrmacht, pelo Exército Vermelho e guerrilheiros de
todo o género; as represálias contra os civis; os bombardeamentos; o efeito
das batalhas de artilharia e de infantaria nos campos e nas cidades da frente
leste durante toda a guerra e no Ocidente desde o desembarque na Normandia,
em Junho de 1944, até à derrota de Hitler, no mês de Maio seguinte; o
bombardeamento deliberado de colunas de refugiados; e o esforço até à morte
de trabalhadores escravos nas indústrias de guerra e nos campos de
prisioneiros.
As maiores perdas militares foram suportadas pela União Soviética, que se
pensa ter perdido 8,6 milhões de homens e mulheres, pela Alemanha, que teve
4 milhões de baixas; pela Itália, que perdeu 400 000 soldados, marinheiros e
elementos da Força Aérea; e pela Roménia, em que cerca de 300 000
militares foram mortos, a maioria dos quais acompanhando os exércitos do
Eixo na frente russa. Todavia, em proporção com as respectivas populações,
foram os Austríacos, os Húngaros, os Albaneses e os Jugoslavos que sofreram
as maiores perdas militares. Considerando a totalidade dos mortos, quer civis
quer militares, os mais afectados foram a Polónia, a Jugoslávia, a URSS e a
Grécia. A Polónia perdeu cerca de 20% da sua população anterior à guerra,
incluindo uma percentagem maior de população instruída, propositadamente
referenciada como alvo de destruição pelos nazis(1). A Jugoslávia perdeu um
em cada oito elementos da sua população de antes da guerra, a URSS um em
cada 11, a Grécia um em cada 14. Em contraste, a Alemanha sofreu perdas de
um em 15, a França de um em 77, a Grã-Bretanha de um em 125.
Nas perdas soviéticas em particular, estão incluídos os prisioneiros de
guerra. Os Alemães capturaram cerca de 5,5 milhões de soldados soviéticos
durante a guerra, três quartos dos quais nos primeiros sete meses a seguir ao
ataque à URSS, em Junho de 1941. Destes, 3,3 milhões morreram de fome,
frio e maus tratos, nos campos alemães. Morreram mais Russos nos campos
de prisioneiros de guerra alemães nos anos de 1941-1945 do que em toda a
Primeira Guerra Mundial. Dos 750 000 soldados soviéticos capturados
quando os Alemães tomaram Kiev, em Setembro de 1941, apenas 22 000
sobreviveram para ver a Alemanha derrotada. Por sua vez, os Soviéticos
fizeram 3,5 milhões de prisioneiros de guerra (na sua maioria Alemães,
Austríacos, Romenos e Húngaros). A maioria deles regressou a casa depois da
guerra.
Face a estes números, não surpreende que a Europa, sobretudo a Central e
a de Leste, tenha sofrido de uma grave escassez de homens depois da
Segunda Guerra Mundial. Na União Soviética o número de mulheres era
superior em 20 milhões face aos homens, um desequilíbrio que levaria mais
de uma geração a corrigir. Deste modo, a economia rural soviética dependia
essencialmente das mulheres para a realização de trabalhos de todo o género,
não só pela escassez de homens, mas também de cavalos. Na Jugoslávia,
devido a acções de represália alemãs em que foram fuzilados todos os homens
com mais de 15 anos, houve muitas aldeias em que não restou sequer um
homem adulto. Mesmo na Alemanha, dois em cada três homens nascidos em
1918 não conseguiram sobreviver à guerra de Hitler: no subúrbio berlinense
de Treptow, entre os adultos de idades compreendidas entre os 19 e os 21
anos de idade, havia precisamente 181 homens para 1105 mulheres, em
Fevereiro de 1946.
Muito se comentou sobre esta representação desmedida de mulheres,
sobretudo na Alemanha, no período a seguir à Segunda Guerra Mundial. O
estatuto humilhante e diminuído dos homens alemães – que passaram de
super-homens dos exércitos esplendorosos de Hitler a uma trupe andrajosa de
prisioneiros, regressando a casa para encontrar, com assombro, uma geração
de mulheres endurecidas, obrigadas a aprender a sobreviver e a orientar-se
sem eles – não é uma ficção (o antigo chanceler alemão Gerhard Schröder é
uma de muitos milhares de crianças que cresceram sem o pai depois da
guerra). Rainer Fassbinder utilizou cinematograficamente esta imagem da
feminilidade alemã posterior à Segunda Guerra Mundial em O Casamento de
Maria Braun (1979), onde a heroína epónima tira partido da sua bela
aparência e da sua energia cínica, apesar das súplicas da mãe para que não
faça nada «que possa ferir a tua alma». Mas enquanto a Maria de Fassbinder
carregava o fardo da desilusão ressentida de uma geração posterior, as
mulheres que pertenceram de facto à Alemanha de 1945 enfrentaram
dificuldades mais prementes.
Nos meses finais da guerra, à medida que os exércitos soviéticos
avançavam para ocidente através da Europa Central e da Prússia Oriental,
milhões de civis, na maior parte alemães, fugiam diante deles. George
Kennan, um diplomata americano, descreveu a cena nas suas memórias: «O
desastre que ocorreu nesta região devido à entrada das forças soviéticas não
encontra paralelo na experiência moderna da Europa. Houve vastos sectores
em que, a julgar por todas as provas existentes, nenhum homem, mulher ou
criança da população local foi deixado vivo depois da passagem inicial das
forças soviéticas […]. Os Russos […] fizeram uma limpeza total das
populações nativas de uma forma que não tem paralelo desde os tempos das
hordas asiáticas.»
As principais vítimas foram os homens adultos (no caso de restarem
alguns) e as mulheres de todas as idades. As clínicas e os médicos relataram
que, após a chegada do Exército Vermelho à cidade, 87 000 mulheres de
Viena foram violadas pelos soldados soviéticos. Em Berlim, foram violadas
mulheres em número ainda um pouco superior durante o avanço soviético
pela cidade, a maioria delas entre 2 e 7 de Maio, precisamente uma semana
antes da rendição alemã. Estes números estão certamente subestimados. Aliás,
neles não se incluem os incontáveis ataques às mulheres das aldeias e vilas
que se encontravam no caminho das forças soviéticas no seu avanço pela
Áustria e pela Polónia Ocidental em direcção à Alemanha.
O comportamento do Exército Vermelho não foi segredo para ninguém.
Milovan Djilas, colaborador próximo de Tito no exército jugoslavo de
partisans e que era, nesse tempo, um fervoroso comunista, falou mesmo do
assunto a Estaline. A resposta do ditador, tal como Djilas a registou, é
reveladora: «Saberá Djilas, ele mesmo um escritor, o que são o sofrimento e o
coração humano? Não poderá ele compreender o soldado que passou pelo
sangue, fogo, e morte, se se divertir com uma mulher ou com alguma
ninharia?»
Com os seus modos grotescos, Estaline em parte tinha razão. Não havia
autorização para licenças no exército soviético. Grande parte da infantaria e
muitas tripulações de tanques combatiam há três anos, vindas de muito longe,
numa série ininterrupta de batalhas e de marchas através do ocidente da
URSS, da Rússia e da Ucrânia. Durante o seu avanço viram e ouviram falar
das abundantes atrocidades dos Alemães. O tratamento dado pela Wehrmacht
aos prisioneiros de guerra, aos civis, aos guerrilheiros e, na verdade, a
qualquer pessoa ou a qualquer coisa que se lhe atravessasse no caminho,
primeiro no seu avanço em direcção ao Volga e às portas de Moscovo e de
Leninegrado e, depois, na sua cruel e sangrenta retirada, deixou a sua marca
na face da terra e na alma do povo russo.
Quando finalmente o Exército Vermelho alcançou a Europa Central, os
seus soldados exaustos depararam com outro mundo. O contraste entre a
Rússia e o Ocidente foi sempre grande – o czar Alexandre I lamentava-se há
muito de ter deixado que os Russos vissem como viviam os ocidentais – e
aumentou ainda mais durante a guerra. Enquanto os soldados alemães se
saciavam com as devastações e os assassínios em massa no Leste, a
Alemanha continuava próspera, a tal ponto que a população civil pouca
consciência teve do custo da guerra até ao conflito estar bastante avançado.
Durante a guerra, a Alemanha era um mundo de cidades com electricidade,
comida, vestuário, lojas e bens de consumo e com mulheres e crianças
razoavelmente alimentadas. O contraste com a sua própria pátria devastada
deve ter sido inimaginável para o soldado soviético comum. Os Alemães
fizeram coisas horríveis à Rússia, agora era a sua vez de sofrer. As suas
riquezas e as suas mulheres estavam ali para ser tomadas. Com o
consentimento tácito dos seus comandantes, o Exército Vermelho foi deixado
à solta entre a população civil das terras alemãs recém-conquistadas.
No seu caminho para oeste, o Exército Vermelho violou e pilhou (a
expressão, neste caso, é brutalmente adequada) na Hungria, na Roménia, na
Eslováquia e na Jugoslávia, mas foram as mulheres alemãs que mais
sofreram. Nasceram entre 150 000 e 200 000 «bebés russos», em 1945-1946,
na zona alemã ocupada pelos Soviéticos, e estes dados não consideram a
enorme quantidade de abortos, em resultado dos quais, a par dos seus fetos
não desejados, muitas mulheres morreram. Muitos dos bebés que
sobreviveram juntaram-se ao número cada vez maior de crianças órfãs e sem
lar: os destroços humanos da guerra.
Apenas em Berlim, havia 53 000 crianças perdidas no final de 1945. Os
jardins do Quirinal, em Roma, tornaram-se famosos como lugar de reunião de
milhares de italianos mutilados e desfigurados e de crianças abandonadas. Na
Checoslováquia libertada, havia 49 000 crianças órfãs, na Holanda 60 000, na
Polónia estima-se que houvesse cerca de 200 000, na Jugoslávia talvez 300
000. Poucas destas eram judias. As crianças judias que sobreviveram aos
pogroms e aos extermínios dos anos da guerra eram na sua maioria
adolescentes. Quando o campo de Buchenwald foi libertado, foram
encontradas 800 crianças vivas, em Belsen apenas 500, algumas das quais
tinham até sobrevivido à marcha da morte desde Auschwitz.
Sobreviver à guerra era uma coisa, sobreviver na paz, outra. Graças à
intervenção pronta e eficaz da Administração para o Alívio e a Reabilitação
das Nações Unidas (UNRRA) e aos exércitos ocupantes aliados, foram
evitadas as epidemias em grande escala e a propagação descontrolada de
doenças contagiosas. A memória da gripe asiática que varreu a Europa a
seguir à Primeira Guerra Mundial estava ainda fresca. Mas a situação era
suficientemente ameaçadora. Na maior parte do ano de 1945, a população de
Viena subsistiu com uma ração de 800 calorias por dia. Em Budapeste, em
Dezembro de 1945, a ração fornecida oficialmente era de apenas 556 calorias
diárias (as crianças das enfermarias recebiam 800). No «Inverno da fome»
holandês em 1944-1945 (quando algumas partes do país já tinham sido
libertadas), em algumas regiões a ração semanal de calorias ficou abaixo da
ração diária que era recomendada pela Força Expedicionária Aliada aos seus
soldados. Morreram 16 000 cidadãos holandeses, na sua maioria velhos e
crianças.
Na Alemanha, a ingestão média diária de calorias por adulto fora de 2445
em 1940-1941, de 2078 em 1943, mas caiu para 1412 em 1945-1946. Em
Junho de 1945, na Zona de Ocupação Americana, a ração diária oficial para
consumidores alemães «normais» (excluindo as categorias de trabalhadores
favorecidas) era de apenas 860 calorias. Estes números conferem um triste
significado à anedota alemã durante o conflito segundo a qual «é melhor
gozar a guerra; a paz vai ser terrível». No entanto, na maior parte da Itália, a
situação não era muito melhor e piorava em alguns distritos da Jugoslávia e
da Grécia(2).
O problema resultava, por um lado, das explorações agrícolas destruídas,
por outro, das vias de comunicação que não funcionavam e, sobretudo, da
grande quantidade de bocas desamparadas e improdutivas a necessitar de ser
alimentadas. Onde os agricultores podiam produzir alimentos, ficavam
relutantes em os fornecer às cidades. A maioria das moedas europeias não
tinha qualquer valor, e mesmo que houvesse recursos para pagar os produtos
alimentares aos camponeses em alguma moeda forte, estas não lhes
interessavam, porque nada havia para comprar. Por isso, a comida aparecia no
mercado negro, mas a preços que só os criminosos, os ricos e os ocupantes
podiam pagar.
Entretanto, as pessoas passavam fome e ficavam doentes. Em 1945, um
terço da população do Pireu, na Grécia, sofria de tracoma devido a uma grave
carência de vitaminas. Em Julho de 1945, durante o surto de disenteria de
Berlim, em resultado do sistema de esgotos danificado e das águas
contaminadas, morriam 66 crianças em cada 100 nascimentos. Robert
Murphy, o conselheiro político americano para a Alemanha, relatou, em
Outubro de 1943, que morriam em média dez pessoas por dia na estação
ferroviária de Lehrter, em Berlim, devido a exaustão, má nutrição e doenças.
Na Zona Britânica de Berlim, em Dezembro de 1945, a taxa de mortalidade
das crianças com menos de um ano de idade era de cerca de 25%, ao passo
que nesse mesmo mês houve 1023 novos casos de febre tifóide e 2193 de
difteria.
Finda a guerra, no Verão de 1945, durante muitas semanas houve um grave
risco, sobretudo em Berlim, de doenças provocadas pelos corpos em
decomposição. Em Varsóvia, uma pessoa em cada cinco sofria de tuberculose.
As autoridades checoslovacas divulgaram, em Janeiro de 1946, que metade
das crianças carenciadas estava infectada com a doença. Crianças de toda a
Europa sofriam da síndrome de privação, sobretudo tuberculose e raquitismo,
mas também pelagra, disenteria e impetigo. As crianças doentes tinham
poucos recursos: para as 90 000 crianças da cidade de Varsóvia libertada
havia apenas um hospital com 50 camas. Por outro lado, crianças saudáveis
morriam por escassez de leite (foram mortas milhões de cabeças de gado nas
batalhas do Sul e do Leste da Europa, em 1944-1945) e a maioria delas sofria
de subnutrição crónica. A mortalidade infantil, em Viena no Verão de 1945,
era quase quatro vezes superior à taxa de 1938. Mesmo nas ruas relativamente
prósperas das cidades ocidentais as crianças passavam fome e a comida era
estritamente racionada.
O problema de alimentar, alojar, vestir e cuidar dos civis europeus
maltratados (e dos milhões de soldados prisioneiros das antigas potências do
Eixo) era complicado e aumentava devido à crise sem precedentes dos
refugiados. Esta era, de certa forma, uma experiência nova para a Europa.
Todas as guerras afectam as vidas dos não combatentes, ao destruírem a sua
terra e as suas casas, ao inutilizarem as suas comunicações, ao alistarem e
matarem maridos, pais e filhos. Todavia, na Segunda Guerra Mundial, foram
as políticas dos Estados, e não o conflito armado, que provocaram os danos
mais graves.
Estaline continuou a sua prática, já anterior à guerra, de proceder à
transferência de populações inteiras no interior do império soviético. Entre
1939 e 1941, a partir da Polónia, do Leste da Ucrânia e das terras do Báltico
ocupadas pelos Soviéticos, foi deportado para leste um número de pessoas
que ultrapassava em muito o milhão. Nesses mesmos anos, os nazis também
expulsaram para leste 750 000 camponeses da Polónia Ocidental, oferecendo
as terras deixadas vagas aos Volksdeutsche – pessoas de etnia alemã da
Europa de Leste ocupada que eram convidadas a «regressar a casa» no novo
Reich em expansão. Esta oferta atraiu 120 000 Alemães do Báltico, mais 136
000 da Polónia ocupada pelos Soviéticos, 200 000 da Roménia e outros para
além destes, sendo todos eles expulsos, por sua vez, alguns anos mais tarde. A
política hitleriana de transferências raciais e de genocídio nas terras do Leste
conquistadas deve ser entendida, por isso, em relação com o projecto nazi de
fazer regressar ao Reich (e de as fixar nas propriedades recém-desocupadas
das suas vítimas) todas as longínquas colónias de Alemães que remontavam à
Idade Média. Os Alemães afastaram os Eslavos, exterminaram os judeus e
importaram trabalhadores escravos, quer do Ocidente, quer do Oriente.
Em conjunto, Estaline e Hitler desenraizaram, transferiram, expulsaram,
deportaram e dispersaram cerca de 30 milhões de pessoas, nos anos de 1939-
1943. Com a retirada dos exércitos do Eixo, o processo inverteu-se. Os
Alemães recém-instalados juntaram-se aos milhões de Alemães das
comunidades fixadas em toda a Europa de Leste numa fuga precipitada à
frente do Exército Vermelho. Aos que chegaram em segurança à Alemanha,
juntou-se outra multidão de deslocados. William Byford-Jones, um oficial do
Exército britânico, descreveu assim a situação em 1945:
Náufragos! Mulheres que perderam os maridos e os filhos, homens que
perderam as mulheres, homens e mulheres que perderam as suas casas e
os seus filhos, famílias que perderam as suas vastas explorações agrícolas
e propriedades, lojas, destilarias, fábricas, moinhos e mansões. Havia
também crianças sozinhas, carregando consigo uma pequena trouxa e com
um distíco patético afixado. De uma maneira ou de outra, ficaram
separadas das mães, ou estas morreram e foram enterradas por outros
deslocados, em qualquer lugar à beira da estrada.
Do Leste vieram Bálticos, Polacos, Ucranianos, Cossacos, Húngaros,
Romenos e outros. Alguns fugiam apenas aos horrores da guerra, outros
escapavam para ocidente para evitar ser apanhados pelo poder comunista. Um
repórter do New York Times descreveu uma coluna de 24 000 soldados e
famílias cossacos atravessando o Sul da Áustria «de uma forma que não
diferia em nada de essencial do que um artista poderia ter pintado nas guerras
napoleónicas».
Dos Balcãs, não vieram apenas elementos de etnia alemã, mas mais de 100
000 Croatas do derrubado regime fascista de Ante Pavelic, que fugiam à ira
dos comunistas de Tito(3). Na Alemanha e na Áustria, para além dos milhões
de soldados da Wehrmacht detidos pelos Aliados e dos soldados aliados
recém-libertados dos campos de prisioneiros de guerra, havia muitos não
Alemães que tinham lutado ao lado dos exércitos germânicos ou sob o seu
comando contra os Aliados: soldados russos, ucranianos e outros do exército
anti-soviético do general Andrei Vlasov; voluntários das Waffen SS da
Noruega, Holanda, Bélgica e França; e combatentes auxiliares alemães,
pessoal dos campos de concentração e outros elementos recrutados na
Letónia, Ucrânia, Croácia e outros países. Todos tinham razões para procurar
evitar a retaliação soviética.
Havia também os homens e as mulheres recém-libertados que foram
recrutados pelos nazis para trabalhar na Alemanha. Trazidos de todo o
continente para quintas e fábricas alemãs, totalizavam muitos milhões
espalhados pelo território alemão e pelos territórios anexados e constituíam,
em 1945, o maior grupo de pessoas deslocadas pelos nazis. As migrações
económicas involuntárias foram, assim, para muitos civis europeus, a
experiência social primordial desta Segunda Guerra. Neles se incluíam 280
000 Italianos removidos à força para a Alemanha pelo seu antigo aliado, após
a rendição da Itália aos Aliados em Setembro de 1943.
A maioria dos trabalhadores estrangeiros da Alemanha foi levada contra a
sua própria vontade, mas não aconteceu o mesmo com todos. Alguns
trabalhadores estrangeiros apanhados na corrente da derrota alemã, em Maio
de 1945, tinham para lá ido de livre vontade, como sucedeu com os
Holandeses desempregados que aceitaram ofertas para trabalhar na Alemanha
nazi antes de 1939 e aí permaneceram(4). Mesmo com os ridículos salários
pagos pelos empregadores alemães durante a guerra, os homens e mulheres da
Europa de Leste, dos Balcãs, da França e do Benelux estavam em melhores
condições do que se tivessem ficado nos seus próprios países. Os
trabalhadores soviéticos (de que havia mais de 2 milhões na Alemanha, em
Setembro de 1944), apesar de terem sido levados à força para a Alemanha,
não se lamentavam, como um deles, Elena Skrjabena, recordou depois da
guerra: «nenhum protestou contra a forma como os Alemães os enviaram para
trabalhar na sua indústria. Para todos eles, constituía a única possibilidade de
saírem da União Soviética.»
Outro grupo de deslocados, os sobreviventes dos campos de concentração,
vivia esta situação de maneira muito diferente. Os seus «crimes» foram
vários: oposição política ou religiosa ao nazismo ou ao fascismo, resistência
armada, serem abrangidos pelas punições colectivas por ataques aos soldados
ou às instalações da Wehrmacht, transgressões menores aos regulamentos dos
ocupantes, actividades criminosas reais ou inventadas, caírem sob a alçada
das leis raciais nazis. Sobreviveram nos campos em que os corpos mortos
eram acumulados em pilhas e as doenças de todos os géneros eram
endémicas: disenterias, tuberculose, difteria, febre tifóide, tifo,
broncopneumonias, gastroenterites, gangrenas e muitas mais. Mas até estes
sobreviventes estavam melhor do que os judeus, porque não estava previsto o
seu extermínio sistemático e colectivo.
Restaram poucos judeus. Dos que foram libertados, quatro em cada dez
morreram poucas semanas depois da chegada dos exércitos aliados. A sua
condição ultrapassava os conhecimentos da medicina ocidental. Mas os
judeus que sobreviveram encontraram maneira de ficar na Alemanha, tal
como sucedeu com a maioria dos outros milhões de desalojados da Europa.
Era na Alemanha que deviam ficar as agências e os campos aliados e, em todo
o caso, a Europa de Leste ainda não era segura para os judeus. Depois de uma
série de pogroms na Polónia, depois da guerra, muitos dos judeus
sobreviventes foram-se embora em definitivo: entre Julho e Setembro de
1946, chegaram 63 387 judeus à Alemanha, vindos daquele país.
O que estava a acontecer em 1945 e se prolongava já há um ano, pelo
menos, era, portanto, um exercício sem precedentes de limpeza étnica e de
transferência de populações. Era, em parte, o resultado de uma separação
étnica «voluntária»: por exemplo, os sobreviventes judeus abandonaram a
Polónia, onde não estavam seguros e não eram desejados, e os Italianos
preferiram deixar a península da Ístria a viver sob o poder jugoslavo. Muitas
minorias étnicas que colaboraram com as forças de ocupação fugiram
(Italianos na Jugoslávia, Húngaros no Norte da Transilvânia, ocupada pelos
Húngaros e devolvida então ao poder romeno, Ucranianos no ocidente da
União Soviética, etc.), acompanhando a Wehrmacht em retirada, para evitar
retaliações das maiorias locais ou o avanço do Exército Vermelho, e nunca
mais regressaram. A sua partida pode não ter sido legalmente mandatada ou
forçada pelas autoridades locais, mas tinham poucas alternativas.
Noutros lugares, era esta a política oficial que estava em curso muito antes
de a guerra terminar. É claro que foram os Alemães a iniciá-la com a
deslocação e o genocídio dos judeus e as expulsões em massa de Polacos e de
outras nações eslavas. Entre 1939 e 1943, Romenos e Húngaros, sob a égide
dos Alemães, movimentaram-se de um lado para o outro das novas linhas de
fronteira da disputada Transilvânia. Por sua vez, as autoridades soviéticas
organizaram uma série de trocas forçadas de populações entre a Ucrânia e a
Polónia. Um milhão de Polacos fugiram ou foram expulsos das suas casas
situadas no que é actualmente o Oeste da Ucrânia, enquanto que meio milhão
de Ucranianos trocaram a Polónia pela União Soviética, entre Outubro de
1944 e Junho de 1946. Em poucos meses, o que fora antes uma região em que
se misturavam várias fés, línguas e comunidades transformou-se em dois
territórios mono-étnicos distintos.
A Bulgária transferiu 160 000 Turcos para a Turquia; a Checoslováquia,
no âmbito de um acordo em Fevereiro de 1946 com a Hungria, trocou 120
000 Eslovacos que viviam na Hungria por um número equivalente de
Húngaros das comunidades a norte do Danúbio, na Eslováquia. Ocorreram
outras transferências deste género entre a Polónia e a Lituânia e entre a
Checoslováquia e a União Soviética. 400 000 pessoas do Sul da Jugoslávia
foram deslocadas para norte para tomar o lugar de 600 000 Alemães e
Italianos que haviam partido. Aqui, como em toda a parte, as populações em
causa não foram consultadas. Contudo, o grupo afectado mais numeroso foi o
alemão.
Os Alemães da Europa de Leste teriam provavelmente fugido para
ocidente em qualquer circunstância. Em 1945, não eram desejados nos países
em que as suas famílias se tinham fixado há muitos séculos. Perante o
genuíno desejo popular de punir os Alemães de origem local, por causa das
devastações da guerra e da ocupação e a exploração desta atitude pelos
governos do pós-guerra, as comunidades de língua alemã da Jugoslávia, da
Hungria, da Checoslováquia, da Polónia, da região báltica e da parte ocidental
da União Soviética, estavam condenadas e tinham consciência disso.
Neste caso, não tinham alternativa. Logo em 1942, os Britânicos
concordaram secretamente com os pedidos checoslovacos para que a
população alemã dos Sudetas fosse transferida após a guerra e os Russos e os
Americanos entraram no acordo no ano seguinte. Em 19 de Maio de 1945, o
presidente da Checoslováquia, Edvard Benes, decretou que «decidimos
acabar de uma vez por todas com o problema alemão na nossa república»(5).
Os Alemães (bem como os Húngaros e outros «traidores») teriam as suas
propriedades sob controlo do Estado. Em Junho de 1945, as suas terras foram
expropriadas e em 2 de Agosto desse ano perderam a cidadania checoslovaca.
Cerca de 3 milhões de Alemães, a maioria deles da região checa dos Sudetas,
foram depois expulsos para a Alemanha, nos 18 meses seguintes. Durante
estas expulsões, morreram aproximadamente 267 000. Enquanto que em 1930
os Alemães representavam 29% da população da Boémia e da Morávia, em
1950, eram apenas 1,8%.
Da Hungria, foram expulsos mais 623 000 Alemães, da Roménia 786 000,
da Jugoslávia meio milhão e da Polónia 1,3 milhões. Todavia, o maior
número de refugiados alemães proveio, de longe, das terras orientais da
própria Alemanha: da Silésia, da Prússia Oriental, da Pomerânia Oriental e do
Leste do Brandeburgo. Na cimeira de Potsdam entre os Estados Unidos, a
Grã-Bretanha e a URSS (17 de Julho a 2 de Agosto de 1945), e segundo as
palavras do «Artigo XII» do acordo subsequente, ficou assente que os três
governos «reconhecem que terá de ser realizada para a Alemanha a
transferência de populações alemãs ou de elementos seus que permaneceram
na Polónia, na Checoslováquia e na Hungria». Isto apenas reconhecia, em
parte, o que já tinha ocorrido, mas também representava uma aceitação formal
das implicações da deslocação das fronteiras da Polónia para oeste. Cerca de
7 milhões de Alemães encontravam-se agora em território da Polónia, e as
autoridades polacas (e as forças soviéticas de ocupação) queriam que fossem
afastados, em parte para que os Polacos e outros que perderam as suas terras
nas regiões do Leste, absorvidas então pela URSS, pudessem, por sua vez, ser
reinstalados em novas terras para oeste.
O resultado foi o reconhecimento de jure de uma nova realidade. A Europa
de Leste tinha sido violentamente limpa de população alemã. Tal como
Estaline prometera em Setembro de 1941, tinha feito regressar «a Prússia
Oriental ao mundo eslavo a que pertence». Na Declaração de Potsdam, ficou
acordado «que todas as transferências deveriam ser efectuadas de forma
ordeira e humana», no entanto, dadas as circunstâncias, isso era pouco
provável. Alguns observadores ocidentais ficaram chocados com o tratamento
dado às comunidades alemãs. Anne O’Hare McCormick, uma correspondente
do New York Times, relatou as suas impressões em 23 de Outubro de 1946: «A
escala desta reinstalação e as condições em que ocorre não têm precedentes
na história. Quem assista aos seus horrores não pode ter qualquer dúvida de
que se trata de um crime contra a humanidade, devido ao qual a história
exercerá uma vingança terrível.»
A história não exerceu qualquer vingança. De facto, os 13 milhões de
Alemães expulsos foram instalados e integrados com notável sucesso na
sociedade alemã ocidental, embora permaneçam as memórias e, na Baviera
(para onde foram muitos deles), o assunto ainda suscite sentimentos
profundos. Aos contemporâneos era talvez um pouco chocante ouvir
descrever estas expulsões como um «crime contra a humanidade» apenas
alguns meses depois da revelação de crimes realizados numa escala
completamente diferente e perpetrados em nome desses mesmos Alemães.
Mas na altura, os Alemães estavam vivos e presentes, enquanto as suas
vítimas, sobretudo judias, estavam na sua maior parte ausentes e mortas.
Segundo as palavras de Telford Taylor, Procurador de Justiça dos Estados
Unidos no julgamento de Nuremberga das chefias nazis, escritas muitas
décadas depois, havia uma diferença fundamental entre as expulsões
realizadas depois da guerra e a limpeza de populações durante esta, «quando
os expulsores acompanham os expulsos para se assegurarem que são
mantidos em guetos e depois ou os matam ou os utilizam como trabalhadores
forçados».
No final da Primeira Guerra Mundial, as fronteiras foram redesenhadas e
ajustadas, mas as pessoas foram todas deixadas nos seus locais(6). Após 1945,
o que aconteceu foi precisamente o contrário: salvo uma excepção importante,
as fronteiras foram mantidas mais ou menos intactas e, em vez disso, as
pessoas foram deslocadas. Os dirigentes políticos ocidentais consideravam
que a Sociedade das Nações e as cláusulas referentes às minorias do Tratado
de Versalhes tinham fracassado e que seria totalmente errado tentar ressuscitá-
las. Por esta razão, aceitaram com relativa rapidez que se realizassem as
transferências de populações. Se não era possível conceder protecção efectiva
às minorias sobreviventes da Europa Central e de Leste, era conveniente que
fossem enviadas para locais mais acolhedores. A expressão «limpeza étnica»
não existia ainda, mas a realidade existia de facto, e estava longe de despertar
desaprovação ou embaraços generalizados.
A excepção, como sucedeu muitas vezes, foi a Polónia. Os arranjos
geográficos relativos à Polónia, que perdeu cerca de 178 000 km2 de terras
fronteiriças a leste para a União Soviética e foi compensada com cerca de 103
000 km2 de terras muito superiores nos territórios alemães a leste dos rios
Oder e Neisse, foram dramáticos e tiveram repercussões nos Polacos,
Ucranianos e Alemães das terras afectadas. Todavia, nas circunstâncias de
1945, não eram prática corrente e devem antes ser entendidos como uma
componente do ajustamento territorial global que Estaline impôs em toda a
orla ocidental do seu império: recuperar a Bessarábia à Roménia, retirar
Bucovina e a parte da Ruténia subcarpática à Roménia e à Checoslováquia,
respectivamente, integrar os Estados bálticos na União Soviética e manter a
posse da península da Carélia, conquistada à Finlândia no decurso da guerra.
A ocidente das novas fronteiras soviéticas registaram-se poucas mudanças.
A Bulgária recuperou à Roménia um pedaço de terra na região de Dobrudja,
os Checoslovacos obtiveram da Hungria (uma potência do Eixo que fora
derrotada e estava, por isso, impedida de objectar) três aldeias na margem
direita do Danúbio em frente a Bratislava, Tito conseguiu manter parte do
antigo território italiano em redor de Trieste e na região de Veneza Júlia, que
as suas forças ocuparam no fim da guerra. Foram devolvidos outros territórios
conquistados pela força entre 1938 e 1945 e restaurado o status quo ante.
Com algumas excepções, o resultado foi uma Europa de Estados-nação
mais etnicamente homogéneos do que alguma vez foram. A União Soviética,
é claro, manteve-se como um império plurinacional. A Jugoslávia manteve a
sua complexidade étnica, apesar de lutas sangrentas entre as comunidades
durante a guerra. A Roménia ainda tinha uma considerável minoria húngara
na Transilvânia e um número incontável – milhões – de ciganos. Mas a
Polónia, cuja população em 1938 era apenas constituída por 68% de Polacos,
era esmagadoramente constituída por estes em 1946. A Alemanha quase só
tinha Alemães (não contando com os refugiados temporários e os deslocados).
A Checoslováquia, cuja população antes de Munique era 22% alemã, 5%
húngara, 3% ucraniana dos Cárpatos e 1,5% judaica, era agora quase
exclusivamente checa e eslovaca. Dos 55 000 judeus checoslovacos que
sobreviveram à guerra, só 16 000 não tinham abandonado o país em 1950. As
antigas diásporas da Europa – Gregos e Turcos no Sul dos Balcãs e em redor
do Mar Negro, Italianos na Dalmácia, Húngaros na Transilvânia e no Norte
dos Balcãs, Polacos na Volínia (Ucrânia), Lituânia e Bucovina, Alemães do
Báltico ao Mar Negro e do Reno ao Volga e judeus por toda a parte –
definharam e desapareceram. Estava a nascer uma Europa nova e mais
«ordenada».
A maior parte da gestão das pessoas deslocadas e refugiadas – reuni-las,
criar campos de acolhimento e fornecer-lhes alimentação, vestuário e
cuidados médicos – foi realizada pelos exércitos aliados que ocupavam a
Alemanha, sobretudo o americano. Não existia qualquer outra autoridade,
quer na Alemanha, quer na Áustria e no Norte da Itália, as outras duas zonas
onde se reuniam os refugiados. Só o Exército possuía os recursos e a
capacidade organizativa para administrar o equivalente demográfico a um
país de média dimensão. Era um encargo inédito para uma máquina militar
enorme que, apenas algumas semanas antes, se dedicava quase
exclusivamente à tarefa de combater a Wehrmacht. Como disse o general
Dwight D. Eisenhower (o comandante supremo aliado), no seu relatório de 8
de Outubro de 1945 para o presidente Harry Truman, em resposta às críticas
endereçadas à forma como os militares orientaram as questões referentes aos
refugiados e aos sobreviventes dos campos de concentração: «Em certas
circunstâncias ficámos abaixo do que era exigível, mas gostaria de salientar
que todo o Exército foi confrontado com o intricado problema de ajustar as
suas competências bélicas aos repatriamentos em massa e, depois, à actual
fase estática e aos seus peculiares problemas de assistência.»
No entanto, após o sistema de campos de refugiados ter sido instalado, a
responsabilidade por cuidar e, por fim, repatriar ou reinstalar os milhões de
deslocados recaiu cada vez mais sobre a Administração para a Assistência e a
Reabilitação das Nações Unidas (United Nations Relief and Rehabilitation
Administration– UNRRA). A UNRRA foi fundada a 9 de Novembro de 1943,
numa reunião realizada em Washington, com a presença de representantes de
44 futuros membros das Nações Unidas, antecipando as necessidades
prováveis do pós-guerra. Desempenhou depois um papel vital na situação de
emergência desta época. Esta agência despendeu 10 mil milhões de dólares
entre Julho de 1945 e Junho de 1947, montante financiado na sua quase
totalidade pelos Estados Unidos da América, o Canadá e o Reino Unido. Uma
grande fatia dessa ajuda foi entregue directamente aos antigos aliados da
Europa de Leste – a Polónia, a Jugoslávia e a Checoslováquia – e à União
Soviética, bem como à administração dos deslocados, quer na Alemanha quer
noutros países. Dos antigos países do Eixo, apenas a Hungria recebeu ajuda
da UNRRA e, ainda assim, não foi muito significativa.
No final de 1945, a UNRRA actuava em 227 campos e centros de auxílio
para deslocados e refugiados na Alemanha, com mais 25 na vizinha Áustria e
alguns outros em França e nos países que formavam o Benelux. Em Junho de
1947, tinha 762 destas unidades na Europa Ocidental, a esmagadora maioria
das quais nas zonas ocidentais da Alemanha. No seu ponto máximo, em
Setembro de 1945, o total de civis libertados (isto é, não incluindo civis dos
antigos países do Eixo) a cargo das Nações Unidas ou repatriados pela
UNRRA era de 6 795 000, a que se devem adicionar mais 7 milhões sob
autoridade da União Soviética e muitos outros milhões de deslocados
alemães. Por nacionalidades, os maiores grupos provinham da União
Soviética: prisioneiros libertados e antigos trabalhadores forçados. Seguiam-
se 2 milhões de Franceses (prisioneiros de guerra, trabalhadores e
deportados), 1,6 milhões de Polacos, 700 000 Italianos, 350 000 Checos, mais
de 300 000 Holandeses, 300 000 Belgas e uma quantidade incontável de
outros.
O fornecimento de alimentos pela UNRRA teve um papel vital sobretudo
no abastecimento da Jugoslávia: sem os contributos da agência, teriam
morrido muito mais pessoas nos anos de 1945-1947. Na Polónia, a UNRRA
ajudou a manter o consumo de alimentos a um nível que representava 60% do
que fora antes da guerra e na Checoslováquia a 80%. Na Alemanha e na
Áustria partilhou a responsabilidade de lidar com os deslocados e os
refugiados com a Organização Internacional dos Refugiados (International
Refugee Organisation – IRO), cujos estatutos foram aprovados pela
Assembleia-Geral das Nações Unidas de Dezembro de 1946.
Também a IRO foi em grande parte financiada pelas potências aliadas
ocidentais. No seu primeiro orçamento em 1947, os Estados Unidos da
América participaram com 46%, quota que subiu para 60% em 1949, o Reino
Unido contribuiu com 15% e a França com 4%. Devido ao desacordo entre os
aliados ocidentais e a União Soviética sobre as repatriações forçadas, a IRO
foi sempre encarada pela URSS (e mais tarde pelo bloco soviético) como um
mero instrumento ocidental e os seus serviços limitaram-se, por isso, aos
refugiados das áreas controladas pelos exércitos ocidentais de ocupação. Para
além disso, dado que se destinava a servir as necessidades dos refugiados, os
Alemães deslocados estavam também excluídos dos seus benefícios.
A distinção entre deslocados (que se presumia terem um lar para onde ir) e
refugiados (que se considerava carecerem de lar) era apenas uma das muitas
subtilezas que foram introduzidas nestes anos. As pessoas eram tratadas de
forma diferente consoante pertencessem a países aliados de guerra (a
Checoslováquia, a Polónia, a Bélgica, etc.) ou a antigos inimigos (a
Alemanha, a Roménia, a Hungria, a Bulgária, etc.). Esta distinção foi também
invocada para estabelecer as prioridades na repatriação dos refugiados. Os
primeiros a ter o seu processo organizado e a ser repatriados foram os
cidadãos de países membros das Nações Unidas: os libertos dos campos de
concentração, depois os prisioneiros de guerra e, em terceiro lugar, os
deslocados (em muitos casos, antigos trabalhadores forçados); seguiram-se os
deslocados da Itália e, por fim, os naturais dos antigos Estados inimigos. Os
Alemães seriam deixados no país e integrados localmente.
O regresso dos cidadãos franceses, belgas, holandeses, britânicos ou
italianos aos seus respectivos países foi uma tarefa relativamente fácil e os
únicos impedimentos foram de natureza logística: determinar quem tinha
direito a partir e para onde e encontrar comboios em quantidade suficiente
para os transportar. Em 18 de Junho de 1945, de 1,2 milhões de Franceses que
se encontravam na Alemanha aquando da rendição, que ocorrera um mês
antes, apenas 40 550 não tinham regressado a França. Os Italianos tiveram de
esperar mais tempo, por pertencerem a um país ex-inimigo e porque o
governo italiano não dispunha de nenhum plano coordenado para repatriar os
seus cidadãos. Todavia, até eles estavam todos no seu país em 1947. No
Leste, porém, houve duas complicações importantes. Alguns deslocados da
Europa de Leste eram tecnicamente apátridas e não tinham qualquer país a
que regressar. Aliás, muitos não desejavam regressar a casa. Os
administradores ocidentais de início ficaram confusos com a situação.
Segundo um acordo assinado em Halle, na Alemanha, em Maio de 1945,
todos os ex-prisioneiros de guerra e outros cidadãos da União Soviética
deveriam regressar e supunha-se que o desejariam. Havia uma excepção: os
Aliados ocidentais não reconheceram a integração dos Estados bálticos na
URSS, efectuada durante a guerra, e aos Estónios, Letões e Lituanos que
estavam em campos de deslocados nas zonas ocidentais da Alemanha e da
Áustria foi dada, por isso, a opção de regressar ao Leste ou de procurar um
novo lar no Ocidente.
Mas não foram apenas os bálticos que não desejaram voltar. Um grande
número de antigos cidadãos soviéticos, polacos, romenos e jugoslavos
também preferiu permanecer nos campos temporários da Alemanha em vez
de regressar aos seus países. No caso dos cidadãos soviéticos, esta relutância
resultava muitas vezes de um receio justificado de represálias contra todos os
que permaneceram algum tempo no Ocidente, ainda que tivessem estado em
campos de prisioneiros. No caso dos bálticos, dos Ucranianos, dos Croatas e
de outros, havia relutância em regressar a países que agora estavam de facto,
se não formalmente, sob controlo comunista. Em muitos casos esta relutância
era induzida pelo receio de castigo por crimes de guerra reais ou imputados,
mas era também motivada pelo mero desejo de fugir para o Ocidente em
busca de uma vida melhor.
Nos anos de 1945 e 1946, as autoridades ocidentais preferiram ignorar
estes sentimentos e obrigar os cidadãos soviéticos e de outros países de Leste
a regressar a casa, por vezes recorrendo à força. Com os funcionários
soviéticos a reunir activamente os seus próprios cidadãos nos campos
alemães, os refugiados de Leste procuravam desesperadamente convencer os
espantados funcionários franceses, americanos e britânicos de que não
queriam regressar a «casa» e que, entre todos os lugares, preferiam
permanecer na Alemanha. Nem sempre tinham êxito: entre 1945 e 1947, os
Aliados ocidentais fizeram regressar 2 272 000 cidadãos soviéticos.
Houve cenas terríveis de lutas desesperadas, sobretudo nos primeiros
meses do pós-guerra, quando emigrés russos, que não eram cidadãos
soviéticos, guerrilheiros ucranianos e muitos outros foram reunidos pelas
tropas britânicas e americanas e empurrados, por vezes literalmente, através
da fronteira para os braços da NKVD, que os aguardava(7). Uma vez em
poder dos Soviéticos, juntaram-se a centenas de milhares de outros Soviéticos
repatriados, bem como aos Húngaros, Alemães e outros ex-inimigos
deportados para leste pelo Exército Vermelho. Em 1953, fora repatriado um
total de 5,5 milhões de Soviéticos. Um em cada cinco foi fuzilado ou enviado
para o Gulag. Muitos mais foram enviados directamente para o exílio na
Sibéria ou alistados em batalhões de trabalho.
Os repatriamentos forçados cessaram apenas em 1947, com o despontar da
Guerra Fria e com uma nova disposição para tratar os deslocados do bloco
soviético como refugiados políticos (ao tempo do golpe comunista de Praga,
em Fevereiro de 1948, foi imediatamente concedido este estatuto aos 50 000
Checos que ainda permaneciam na Alemanha e na Áustria). Um milhão e
meio de Polacos, Húngaros, Búlgaros, Romenos, Jugoslavos, Soviéticos e
judeus resistiram assim com êxito ao repatriamento. Em conjunto com os
bálticos, constituíam a esmagadora maioria dos deslocados que ficaram nas
zonas ocidentais da Alemanha e da Áustria, bem como na Itália. Em 1951, a
Convenção Europeia dos Direitos Humanos formalizou a protecção a que tais
estrangeiros deslocados teriam direito e, por fim, colocou-os ao abrigo de
regressos forçados de que resultasse a sua perseguição.
Permanecia, no entanto, uma questão: qual seria o seu destino? Os
refugiados e os próprios deslocados não tinham qualquer dúvida. Segundo as
palavras de Genêt (Janet Flanner), ao escrever para The New Yorker, em
Outubro de 1948, «[Os deslocados] pretendem ir para qualquer lado, excepto
para o seu próprio país.» Mas quem estaria disposto a recebê-los? Os Estados
europeus ocidentais, que tinham falta de trabalhadores e se encontravam em
plena reconstrução económica e material, estiveram de início bastante abertos
a acolher determinadas categorias de trabalhadores apátridas. A Bélgica, a
França e a Grã-Bretanha necessitavam, sobretudo, de mineiros de carvão,
trabalhadores da construção civil e trabalhadores agrícolas. Em 1946-1947, a
Bélgica aceitou 22 000 deslocados (bem com as suas famílias) para trabalhar
nas minas da Valónia. A França recebeu 38 000 pessoas como trabalhadores
manuais de várias qualificações. A Grã-Bretanha, da mesma forma, acolheu
86 000 pessoas, incluindo muitos veteranos polacos e ucranianos que
combateram na Divisão «Halychnya» das Waffen SS(8).
Os critérios de admissão eram simples: os Estados europeus ocidentais
estavam interessados em (homens) trabalhadores manuais e perante esta
necessidade não tinham pejo em favorecer os bálticos, os Polacos e os
Ucranianos, independentemente do que tivessem feito durante a guerra. As
mulheres solteiras eram bem-vindas como trabalhadoras manuais ou
domésticas, embora em 1948 o Ministério do Trabalho canadiano tivesse
rejeitado raparigas e mulheres que pretendiam emigrar para o Canadá para
prestar serviços domésticos quando havia algum indício de possuírem
instrução acima da escola secundária. Por outro lado, ninguém pretendia
gente mais velha, órfãos ou mulheres com filhos. Por isso, em geral, os
refugiados não foram recebidos de braços abertos: no pós-guerra, as
sondagens de opinião nos Estados Unidos da América e na Europa Ocidental
mostravam muito pouca simpatia pela sua situação. A maioria das pessoas
manifestava o desejo de ver reduzida, e não aumentada, a emigração.
O problema dos judeus era distinto. De início, as autoridades ocidentais
lidaram com os deslocados judeus como com quaisquer outros, reunindo-os
em campos na Alemanha juntamente com muitos dos seus antigos
perseguidores. Todavia, em Agosto de 1945, o presidente Truman anunciou
que deveriam ser proporcionadas instalações separadas a todos os deslocados
judeus da zona americana da Alemanha. Segundo o texto de um relatório
sobre este assunto, que o presidente solicitara, os campos e os centros
integrados anteriores «constituíam uma abordagem nitidamente irrealista da
questão. Recusar reconhecer os judeus enquanto tais tem o efeito […] de
fechar os olhos à bárbara perseguição anterior.» No fim de Setembro de 1945,
todos os judeus da zona americana tinham um acolhimento separado.
Nunca se pôs a hipótese de fazer regressar os judeus ao Leste. Na União
Soviética, na Polónia ou em qualquer outro país, ninguém manifestou o
mínimo interesse em tê-los de volta. Mas os judeus também não eram
particularmente bem-vindos no Ocidente, sobretudo se tinham formação ou
qualificação para profissões não braçais. Por isso, bastante ironicamente,
continuaram na Alemanha. A dificuldade de «colocar» os judeus da Europa só
foi resolvida com a criação do Estado de Israel. Entre 1948 e 1951, partiram
para Israel 332 000 judeus europeus, quer a partir de centros de organizações
internacionais de refugiados na Alemanha, quer directamente da Roménia, da
Polónia, etc., no caso dos que ainda se encontravam nesses países. Por fim,
houve mais 165 000 que partiram para a França, a Grã-Bretanha, a Austrália e
as Américas do Norte e do Sul.
A eles se juntariam os restantes deslocados e refugiados da Segunda
Guerra Mundial, a que se deveria acrescentar uma nova geração de refugiados
políticos provenientes de países da Europa Centro-Oriental, nos anos de 1947-
1949. No total, os Estados Unidos da América receberam nestes anos 400 000
pessoas, tendo chegado mais 185 000 nos anos de 1953-1957. O Canadá
autorizou um total de 157 000 refugiados e deslocados, a Austrália recebeu
182 000 (entre eles 60 000 polacos e 36 000 bálticos).
A dimensão deste feito necessita de ser realçada. Algumas pessoas,
nomeadamente algumas categorias de pessoas de etnia germânica da
Jugoslávia e da Roménia, foram deixadas no limbo, porque os acordos de
Potsdam não se aplicavam aos seus casos. Porém, em meia dúzia de anos, os
comandos militares aliados e as agências civis das Nações Unidas, actuando
num continente apavorado, cheio de azedume e empobrecido, que emergia de
uma guerra terrível e que já antecipava as divisões da Guerra Fria,
conseguiram repatriar, integrar ou reinstalar um número sem precedentes –
muitos milhões – de pessoas desesperadas de toda a Europa e de muitas
nações e comunidades. No fim de 1951, quando a UNRRA e as organizações
internacionais para os refugiados foram substituídas pelo recém-criado Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, havia apenas 177 000
pessoas em campos europeus para deslocados, na sua maioria idosos e
doentes, porque ninguém os queria. O último campo para deslocados situado
na Alemanha, em Foehrenwald, na Baviera, fechou em 1957.
Os deslocados e refugiados da Europa sobreviveram não apenas a uma
guerra geral, mas a toda uma série de guerras civis nacionais. De facto, de
1934 até 1949, a Europa assistiu a uma sequência mortífera de conflitos civis
sem precedentes no interior dos Estados então existentes. Em muitos destes
casos, as ocupações estrangeiras posteriores – por Alemães, Italianos ou
Russos – serviram acima de tudo para facilitar e legitimar a continuação dos
projectos e antagonismos políticos anteriores à guerra, com meios novos e
violentos. Os ocupantes não eram neutrais, é claro. Em geral, juntaram as suas
forças a facções das nações ocupadas para combaterem um inimigo comum.
Desta forma, as tendências políticas ou as minorias étnicas que se
encontravam em desvantagem política em tempo de paz puderam aproveitar
as novas circunstâncias para obterem vantagens internas. Os Alemães,
sobretudo, puderam mobilizar e explorar tais sentimentos, não só para dividir
e, dessa forma, melhor conquistar, mas também para reduzir os problemas e
os custos de administrar e policiar os seus territórios conquistados: podiam
confiar nos colaboradores locais para o realizarem por si.
A partir de 1945, o termo «colaboradores» adquiriu uma conotação moral
diferente e pejorativa. Mas as divisões e filiações do tempo da guerra tinham
muitas vezes envolvimentos globalmente mais complicados e ambíguos do
que as ideias de «colaboração» e «resistência» implicavam no pós-guerra. Por
exemplo, na Bélgica ocupada, alguns flamengos, repetindo um erro que já
tinham cometido na Primeira Guerra Mundial, foram tentados pela promessa
de autonomia e pela possibilidade de pôr fim ao ascendente da elite de língua
francesa sobre o Estado belga, acolhendo favoravelmente o domínio
germânico. Aqui, como em todos os demais países, os nazis jogaram de bom
grado a carta da divisão entre comunidades, enquanto tal favorecia os seus
propósitos. Os prisioneiros de guerra belgas de língua flamenga foram
libertados em 1940, quando as hostilidades cessaram, ao passo que os valões,
de língua francesa, permaneceram nos respectivos campos durante toda a
guerra.
Em França e na Bélgica, mas também na Noruega, a resistência aos
Alemães foi real, sobretudo nos dois últimos anos da ocupação, quando os
esforços nazis de obrigar homens novos a integrar a força de trabalho na
Alemanha levou muitos deles a optar pelo maquis como um risco menor. Mas
só depois de ter terminado a ocupação o número de resistentes ultrapassou o
dos que, por convicção, venalidade ou interesse próprio, colaboraram com os
nazis. Calcula-se que em França o número provável de homens e mulheres
totalmente envolvidos fosse aproximadamente o mesmo de ambos os lados:
no máximo, entre 160 000 e 170 000. Na maior parte dos casos, o inimigo
principal de cada um dos lados era constituído sobretudo por resistentes e
colaboracionistas; os Alemães estavam em grande parte ausentes.
Em Itália, as circunstâncias foram mais complicadas. Os fascistas estavam
no poder há 20 anos quando Mussolini foi derrubado por um golpe palaciano,
em Julho de 1943. Talvez por esta razão tenha havido no país pouca
resistência ao regime. Os antifascistas mais activos estavam no exílio. Depois
de Setembro de 1943, quando o país se tornou oficialmente «co-beligerante»,
ao lado dos Aliados, o Norte, ocupado pelos Alemães, estava dividido entre
um governo-fantoche – a «República de Salò», de Mussolini – e uma pequena
mas corajosa resistência, que cooperava com os exércitos aliados que
avançavam e era, por vezes, apoiada por estes.
Mas também aqui o que era apresentado pelos dois campos como sendo
uma maioria de Italianos com ideias de direita envolvidos num conflito com
um bando marginal de terroristas assassinos aliados a uma potência
estrangeira era, de facto, nos anos de 1943-1945, uma verdadeira guerra civil
com um número significativo de Italianos empenhados de ambos os lados. Na
verdade, os fascistas de Salò, que careciam de representatividade, eram
colaboradores de um ocupante brutal, mas o apoio interno com que podiam
contar não era negligenciável e, obviamente, não era menor do que o dos seus
mais agressivos opositores, os guerrilheiros liderados pelos comunistas. A
resistência antifascista era efectivamente um dos lados de uma luta entre
Italianos, cuja memória foi convenientemente obnubilada nas décadas
seguintes à Segunda Guerra Mundial.
Na Europa de Leste as coisas eram ainda mais complicadas. Os Eslovacos
e os Croatas tiraram partido da presença germânica para criarem Estados
independentes nominais, de acordo com os projectos acalentados por partidos
separatistas anteriores à guerra. Na Polónia, os Alemães não procuraram
colaboradores, mas mais a norte, nos Estados bálticos e até na Finlândia, a
Wehrmacht foi inicialmente bem acolhida como alternativa à ocupação e à
absorção pela União Soviética. Os Ucranianos, sobretudo, fizeram tudo o que
puderam para tirar partido da ocupação alemã depois de 1941 e assim
assegurar a sua independência, há muito ambicionada, e, nas terras do Leste
da Galícia e do Oeste da Ucrânia, assistiu-se a um conflito mortífero entre os
guerrilheiros da Ucrânia e da Polónia sob a égide da luta dos guerrilheiros
antinazis e anti-soviéticos. Nestas circunstâncias, uma distinção rigorosa entre
guerra ideológica, conflito entre comunidades e batalha pela independência
política perdia o seu sentido, pelo menos para as populações locais, as
principais vítimas em todos os casos.
Os Polacos e os Ucranianos lutaram tanto a favor como contra a
Wehrmacht, o Exército Vermelho e entre si, conforme o momento e o lugar.
Na Polónia, este conflito, que depois de 1944 se transformou numa guerra de
guerrilha contra o Estado comunista, roubou a vida a 30 000 Polacos nos anos
de 1943-1948. Na Ucrânia, ocupada pelos Soviéticos, o último comandante
guerrilheiro, Roman Shukhevych, foi morto perto de Lviv, em 1950, embora
persistisse alguma actividade anti-soviética esporádica durante mais alguns
anos na Ucrânia e, em especial, na Estónia.
Foi nos Balcãs, todavia, que a experiência da Segunda Guerra Mundial foi
sobretudo a de uma guerra civil, e singularmente mortífera enquanto tal. Na
Jugoslávia, o significado dos rótulos convencionais – colaborador, resistente –
era particularmente confuso. O que era Draza Mihajlovic, o líder sérvio dos
guerrilheiros Chetniks(9)? Um patriota? Um resistente? Um colaborador? O
que levava os homens a combater? A resistência contra o ocupante (alemão,
italiano)? A vingança contra os inimigos políticos internos, originários da
Jugoslávia do período entre as duas guerras? Os conflitos entre as
comunidades de Sérvios, Croatas e muçulmanos? Objectivos pró-comunistas
ou anticomunistas? Para muitas pessoas, havia mais do que um motivo em
jogo.
Assim, o regime Ustashe de Ante Pavelic, no Estado-fantoche croata,
assassinou Sérvios (mais de 200 000) e muçulmanos. Mas os guerrilheiros
realistas de Mihajlovic (sérvios na sua maioria) também mataram
muçulmanos. Por esta razão, embora pudesse ter havido outras, os
muçulmanos da Bósnia cooperaram por vezes com os exércitos alemães em
defesa própria. Os guerrilheiros comunistas de Tito, apesar do seu objectivo
estratégico de libertar a Jugoslávia das forças alemãs e italianas, dedicaram
tempo e esforços a destruir primeiro os Chetniks, sendo uma das razões o
facto de esse ser um objectivo ao seu alcance. Escrevendo uma década depois
e já desiludido com o resultado das batalhas entre guerrilheiros e Chetniks,
nas quais ele próprio teve um papel heróico, Milovan Djilas transmitiu o seu
testemunho da experiência real da guerra e da resistência na Jugoslávia
ocupada: «Durante horas, ambos os exércitos escalaram ravinas rochosas para
escapar à aniquilação ou para destruir um pequeno grupo de compatriotas,
vizinhos muitas vezes, em algum pico saliente a 1800 metros de altitude,
numa terra esfomeada, sangrenta, cativa. Vinha-nos ao espírito que fora nisto
que se transformaram todas as nossas teorias e visões acerca da luta dos
trabalhadores e dos camponeses contra a burguesia.»
Mais para sul, a experiência grega da Segunda Guerra Mundial, tal como
no caso da Jugoslávia, foi de um ciclo de invasões, ocupações, resistências,
represálias e guerras civis, tudo culminando no mês de Dezembro de 1944,
em Atenas, com cinco semanas de confrontos entre comunistas e forças
britânicas que apoiavam os realistas, após o que, em Fevereiro de 1945, foi
firmado um armistício. Contudo, a luta irrompeu de novo em 1946 e durou
três anos, terminando no desalojamento dos comunistas das suas posições no
Norte montanhoso. Embora não haja dúvida de que a resistência grega aos
Italianos e aos Alemães foi mais eficaz do que a resistência em França ou em
Itália (mais conhecidas), pois apenas em 1943-1944 matou mais de 6000
soldados alemães, os danos que provocou aos próprios Gregos foram muito
maiores. Os guerrilheiros KKE (comunistas) e o governo da monarquia
sedeado em Atenas e apoiado pelos ocidentais aterrorizaram aldeias,
destruíram vias de comunicação e dividiram o país com consequências que
perduraram décadas. Quando a luta terminou, em Setembro de 1949, 10% da
população não tinha casa. A guerra civil grega não teve muitas das
complexidades étnicas das lutas da Jugoslávia e da Ucrânia(10), mas em
termos humanos teve ainda mais altos custos.
O impacto destas guerras civis europeias após a Segunda Guerra Mundial
foi imenso. Desde logo, significa que a guerra na Europa não terminou em
1945 com a saída dos Alemães. Uma das características traumáticas de uma
guerra civil é que, mesmo depois de derrotado, o inimigo continua ali e com
ele permanece a memória do conflito. Mas as lutas de extermínio mútuo
destes anos fizeram algo mais. Juntamente com a brutalidade sem precedentes
dos nazis e, mais tarde, das ocupações soviéticas, corroeram a própria
essência dos Estados europeus. Depois, já nada seria o mesmo. No sentido
mais verdadeiro de uma expressão de que se abusou muito, transformaram a
Segunda Guerra Mundial – a guerra de Hitler – numa revolução social.
Desde logo, a ocupação sequencial do território pelas potências
estrangeiras corroeu inevitavelmente a autoridade e a legitimidade dos
governantes locais. Alegadamente autónomo, o regime francês de Vichy –
como o Estado eslovaco do padre Józef Tiso ou o regime Ustashi de Pavelic
em Zagreb – era um agente dependente de Hitler e a maioria do povo sabia-o.
Ao nível municipal, as autoridades colaboracionistas na Holanda ou na
Boémia mantinham algum grau de iniciativa, mas apenas se evitassem
contrariar qualquer desejo dos seus chefes alemães. Mais para leste, os nazis
e, mais tarde, os Soviéticos, substituíram as instituições existentes por homens
e organização próprios, excepto quando lhes convinha explorar durante algum
tempo as divisões e ambições locais em seu benefício. Ironicamente, foi
apenas nos países aliados dos nazis – a Finlândia, a Bulgária, a Roménia e a
Hungria –, e, por isso, com autorização para se governarem a si mesmos, que
foi preservado um certo grau de independência nacional efectiva, pelo menos
até 1944.
Com excepção da Alemanha e do interior da União Soviética, todos os
Estados continentais europeus envolvidos na Segunda Guerra Mundial foram
ocupados pelo menos duas vezes: primeiro, pelos seus inimigos, depois, pelos
exércitos de libertação. Alguns países – a Polónia, os Estados bálticos, a
Grécia, a Jugoslávia – foram ocupados três vezes em cinco anos. Em cada
invasão, o regime anterior foi destruído, a sua autoridade desmantelada, as
suas elites reduzidas. O resultado em alguns locais foi uma razia completa,
com todas as antigas hierarquias desacreditadas e os seus representantes
comprometidos. Na Grécia, por exemplo, Metaxas, o ditador anterior à
guerra, tinha afastado a velha classe parlamentar. Os Alemães expulsaram
Metaxas. Depois, estes últimos foram também expulsos e os que colaboraram
com eles ficaram vulneráveis e caíram em desgraça.
A liquidação das velhas elites sociais e económicas constituiu talvez a
mudança mais dramática. O extermínio dos judeus da Europa pelos nazis não
foi apenas devastador por si mesmo. Teve consequências sociais significativas
em muitas cidades e vilas da Europa Central, onde os judeus constituíam as
classes profissionais locais: médicos, advogados, empresários, professores.
Mais tarde, por vezes nessas mesmas cidades e vilas, uma outra parte
importante da burguesia local – os Alemães – foi também expulsa, como
vimos. A consequência foi uma transformação radical da paisagem social e
uma oportunidade para Polacos, bálticos, Ucranianos, Eslovacos, Húngaros e
outros ocuparem os empregos (e as casas) dos que partiram.
Este processo nivelador, pelo qual as populações autóctones da Europa
Central e de Leste ocuparam o lugar das minorias banidas, foi o contributo
mais duradouro de Hitler para a história social europeia. O plano alemão fora
a destruição dos judeus e da intelligentsia local da Polónia e do Ocidente da
União Soviética, reduzir o resto dos povos eslavos a uma condição de nova
servidão e colocar a terra e o governo nas mãos de Alemães reinstalados.
Todavia, com a chegada do Exército Vermelho e a expulsão dos Alemães, a
nova situação revelou-se excepcionalmente adequada aos projectos mais
radicais dos Soviéticos.
Uma das razões para tal foi ter-se assistido não apenas a uma rápida e
sangrenta ascensão social, nos anos da ocupação, mas também ao colapso
total da lei e dos hábitos de um Estado de direito. É enganador pensar que a
ocupação alemã da Europa Continental foi um tempo de pacificação e ordem
sob o olhar de um poder omnisciente e ubíquo. Até na Polónia, o mais
policiado e reprimido de todos os territórios ocupados, a sociedade continuou
a funcionar, desafiando os novos governantes: os Polacos construíram para si
um mundo paralelo subterrâneo de jornais, escolas, actividades culturais,
serviços sociais, trocas económicas e até um exército, tudo proibido pelos
Alemães e levado a cabo à margem da lei e com enormes riscos pessoais.
No entanto, este era precisamente o aspecto mais importante. Viver
normalmente na Europa ocupada significava violar a lei: em primeiro lugar,
as leis dos ocupantes (recolher obrigatório, regulamentos de viagem, leis
raciais, etc.), mas também as leis e as normas convencionais. A maioria das
pessoas comuns, que não tinha acesso a produtos da terra, era obrigada, por
exemplo, a recorrer ao mercado negro ou a trocas ilegais de géneros apenas
para alimentar as suas famílias. O roubo – ao Estado, aos concidadãos ou a
um armazém judeu pilhado – estava tão generalizado, que aos olhos de muitas
pessoas deixara de ser crime. De facto, com os guardas, os polícias e os
presidentes das câmaras como representantes dos ocupantes e ao seu serviço e
com as próprias forças de ocupação a praticar uma criminalidade organizada à
custa de determinados civis, os pequenos crimes transformaram-se em actos
de resistência (embora muitas vezes apenas na perspectiva da época pós-
libertação).
Acima de tudo, a violência tornou-se parte da vida quotidiana. A
autoridade do Estado moderno baseou-se sempre, in extremis, no seu
monopólio da violência e na sua disposição de usar a força se fosse
necessário. Porém, na Europa ocupada, a autoridade dependia apenas da força
exercida sem inibições. É bastante curioso que tenha sido precisamente nestas
circunstâncias que o Estado perdeu o seu monopólio da violência. Os grupos
de guerrilheiros e os exércitos competiam por uma legitimidade que era
determinada pela sua capacidade de impor as suas ordens num dado território.
Este facto era mais evidente nas regiões mais remotas da Grécia, do
Montenegro e nas terras da fronteira oriental da Polónia, onde a autoridade
dos Estados modernos nunca foi muito firme. Todavia, no final da Segunda
Guerra Mundial, isso também era verdade em algumas partes da França e da
Itália.
A violência gerou o cinismo. Enquanto forças ocupantes, tanto os nazis
como os Soviéticos precipitaram uma guerra de todos contra todos.
Desencorajaram não só a obediência à autoridade do regime ou do Estado
anteriores, mas também todo o sentido de civilidade ou de laços entre os
indivíduos, e em geral tiveram bastante êxito. Se o poder existente se
comportou com brutalidade e à margem da lei em relação ao seu próximo –
porque era judeu, ou membro da elite instruída, ou de uma minoria étnica, ou
tinha sido mal visto pelo regime, ou por nenhuma razão óbvia –, então por
que razão deveria alguém mostrar mais respeito por ele? Na verdade, era
muitas vezes prudente procurar captar antecipadamente as boas graças das
autoridades colocando o próximo em dificuldades.
Por toda a Europa ocupada (e mesmo na não ocupada) pelos Alemães e até
ao termo dessa ocupação, o número de relatórios anónimos, acusações
pessoais e meros rumores foi impressionantemente elevado. Entre 1940 e
1944, houve uma enorme quantidade de denúncias às SS, à Gestapo e às
polícias nacionais da Hungria, da Noruega, da Holanda e de França. Muitas
delas nem sequer tiveram por objectivo recompensas ou ganhos materiais.
Sob o domínio dos Soviéticos, nomeadamente na parte oriental da Polónia,
ocupada por estes entre 1939 e 1941, o encorajamento, ao estilo jacobino, dos
informadores e o hábito revolucionário (francês) de lançar dúvidas sobre a
lealdade dos outros também floresceram sem limites.
Em suma, todos tiveram boas razões para recear os demais. Suspeitando
dos motivos dos outros, havia quem os denunciasse rapidamente por causa de
algum suposto desvio ou vantagem ilícita. Não se podia contar com protecção
vinda de cima: de facto, os que detinham o poder eram muitas vezes os que
mais actuavam sem lei. Para a maioria dos Europeus, nos anos de 1939-1945,
os direitos civis, legais e políticos deixaram de existir. O Estado deixou de ser
o repositório da lei e da justiça. Pelo contrário, sob o domínio da Nova Ordem
de Hitler, o próprio governo era o principal predador. A atitude dos nazis para
com a vida ou a integridade física é bem conhecida, mas a forma como lidou
com a propriedade pode ter sido, na verdade, o seu legado prático mais
importante para moldar o mundo posterior à guerra.
Sob a ocupação alemã, o direito de propriedade era, no máximo,
contingente. Os judeus europeus foram simplesmente espoliados de dinheiro,
bens, casas, lojas e negócios. As suas propriedades foram divididas entre os
nazis, os colaboradores e os seus amigos, sendo os restos deixados ao saque e
ao roubo por parte das comunidades locais. Mas o sequestro e o confisco não
se restringiram aos judeus. O «direito» de posse revelou-se frágil, muitas
vezes sem sentido, baseando-se exclusivamente na boa-vontade, nos
interesses e nos caprichos dos que detinham o poder.
Houve ganhadores e perdedores nesta série radical de transacções
involuntárias de propriedades. Com a partida dos judeus e de outras vítimas
étnicas, as suas lojas e apartamentos podiam ser ocupados pela população
local. Os seus utensílios, mobília e vestuário foram confiscados pelos novos
proprietários. Este processo foi mais longe na «zona de morte» de Odessa até
ao Báltico, mas ocorreu por todo o lado. Os sobreviventes dos campos de
concentração, ao regressarem a Paris ou Praga, em 1945, encontraram muitas
vezes nas suas casas «ocupantes ilegais» do tempo da guerra, que afirmavam
furiosamente ter direito a elas e se recusavam a sair. Desta forma, centenas de
milhares de Húngaros, Polacos, Checos, Holandeses, Franceses, etc.,
tornaram-se cúmplices do genocídio nazi, mesmo se apenas como seus
beneficiários.
Em todos os países ocupados, fábricas, veículos, terras, maquinaria e bens
foram expropriados sem qualquer compensação para benefício dos novos
senhores, resultando, de facto, numa nacionalização em larga escala.
Sobretudo na Europa Central e de Leste, grandes propriedades privadas e
algumas instituições financeiras foram apropriadas pelos nazis para a sua
própria economia de guerra. Esta prática não foi sempre um corte radical com
o que se fazia antes. Nesta zona da Europa, após 1931, a viragem desastrosa
em direcção à autarcia implicou, em alto grau, a intervenção e a manipulação
por parte do Estado. Na Polónia, na Hungria e na Roménia, o sector
empresarial do Estado aumentou consideravelmente nos anos que precederam
a guerra e nos primeiros anos desta, como defesa profiláctica contra a
penetração económica alemã. O controlo estatal da economia na Europa de
Leste não começou em 1945.
Depois da guerra, a expropriação das populações alemãs desde a Polónia à
Jugoslávia completou a transformação radical que começara com a expulsão
dos judeus por parte dos próprios Alemães. Muitas pessoas de etnia
germânica dos territórios dos Sudetas, da Silésia, da Transilvânia e do Norte
da Jugoslávia possuíam importantes propriedades fundiárias. Quando estas
passaram para as mãos do Estado para serem redistribuídas, o impacto foi
imediato. Na Checoslováquia, os bens e as propriedades tomados aos
Alemães e aos seus colaboradores correspondiam a um quarto da riqueza
nacional, enquanto só a redistribuição das terras agrícolas beneficiou
directamente 300 000 camponeses, trabalhadores rurais e as suas famílias.
Mudanças desta grandeza só podem ser consideradas revolucionárias. Tal
como a própria guerra, representavam uma cisão radical, uma ruptura clara
com o passado e uma preparação para as grandes mudanças que se seguiriam.
Na Europa Ocidental libertada, havia poucas terras na posse de Alemães
para ser redistribuídas e a guerra não resultou no cataclismo que fora mais a
leste. Todavia, também aqui a legitimidade das autoridades constituídas foi
posta em questão. As administrações locais em França, na Noruega e nos
países do Benelux não se cobriram propriamente de glória. Pelo contrário, em
geral cumpriram com alacridade as ordens dos ocupantes. Em 1941, os
Alemães podiam dirigir a Noruega ocupada com apenas 806 funcionários
administrativos. Os nazis administravam a França com apenas 1500
elementos seus. Estavam tão certos da confiança que a polícia francesa e as
milícias lhes mereciam que designaram uns meros 6000 polícias civis e
militares alemães (para além do seu pessoal administrativo) para assegurar a
obediência de uma nação de 35 milhões de habitantes. O mesmo se passou na
Holanda. Num testemunho prestado depois da guerra, o chefe da segurança
alemã em Amsterdão afirmou que «o principal apoio das forças alemãs no
sector policial e em outros foi a polícia holandesa. Sem ela, nem 10% das
tarefas da ocupação alemã teriam sido cumpridas». Contraste-se isso com a
Jugoslávia, que exigiu a atenção constante de divisões militares alemãs
inteiras apenas para conter os guerrilheiros armados(11).
Esta foi uma das diferenças entre a Europa Ocidental e a de Leste. Outra
foi o próprio tratamento das nações ocupadas por parte dos nazis. Os
Noruegueses, os Dinamarqueses, os Holandeses, os Belgas, os Franceses e,
após Setembro de 1943, os Italianos, foram humilhados e explorados.
Todavia, a menos que fossem judeus, comunistas ou resistentes não foram,
em geral, incomodados. Em consequência disso, os povos libertados da
Europa Ocidental puderam imaginar o regresso a algo que se assemelhasse ao
passado. De facto, mesmo as democracias parlamentares do período entre as
duas guerras pareciam agora um pouco menos debilitadas, graças ao
interlúdio nazi. Hitler lançou no descrédito pelo menos uma das alternativas
radicais ao pluralismo político e ao primado da lei. As populações exaustas da
Europa Ocidental continental aspiravam sobretudo a recuperar a aparência de
uma vida normal num Estado devidamente regulamentado.
A situação nos Estados recém-libertados da Europa Ocidental era,
portanto, suficientemente má. Mas na Europa Central, segundo as palavras de
John J. McCloy da Comissão de Controlo dos Estados Unidos na Alemanha,
havia um «total colapso económico, social e político […] cuja extensão não
tinha paralelo na história, excepto remontando ao colapso do Império
Romano». McCloy falava da Alemanha, onde os Governos Militares Aliados
tiveram de construir tudo a partir do zero: a legislação, a ordem, os serviços,
as comunicações e a administração. Mas, pelo menos, tinham os recursos
necessários para o fazer. Mais para leste, os problemas eram ainda piores.
Por isso, foi Hitler, tanto como Estaline, que introduziu uma separação no
continente e o dividiu. A história da Europa Central – as terras dos impérios
germânico e dos Habsburgo, as regiões do Norte do antigo Império Otomano
e mesmo os territórios ocidentais dos czares russos – foi sempre diferente da
dos Estados-nação do Ocidente. Mas não diferiam totalmente. Antes de 1939,
Húngaros, Romenos, Checos, Polacos, Croatas e bálticos podiam olhar com
inveja para os habitantes mais afortunados da França ou dos Países Baixos,
mas não tinham razão para não aspirarem por direito próprio a uma
prosperidade e a uma estabilidade semelhantes. Os Romenos sonhavam com
Paris. Em 1937, a economia checa ultrapassou o seu vizinho austríaco e era
tão competitiva como a belga.
A guerra tudo mudou. A leste do Elba, os Soviéticos e os seus
representantes locais herdaram um subcontinente onde já se tinha dado uma
ruptura radical com o passado. O que não estava completamente
desacreditado, estava irremediavelmente arruinado. Os governos de Oslo,
Bruxelas ou Haia no exílio podiam regressar de Londres e esperar recuperar a
autoridade legítima que tinham sido forçados a abandonar em 1940. Já os
velhos governantes de Bucareste e Sófia, de Varsóvia, Budapeste e mesmo de
Praga não tinham qualquer futuro: o seu mundo tinha sido varrido pela
violência transformadora dos nazis. Ficava apenas por decidir a configuração
política da nova ordem que deveria agora substituir o passado irrecuperável.
-
(1) E por Estaline, que ordenou o fuzilamento de 23 000 oficiais polacos na floresta de Katyn, em
1940, e depois acusou disso os Alemães.

(2) Para efeitos de comparação, o consumo médio diário em França, em 1990, era de 3618 calorias.

(3) Tinham bons motivos para ter receio. O Exército britânico na Áustria entregá-los-ia mais tarde às
autoridades jugoslavas (devido a um acordo aliado de devolver estes prisioneiros aos governos contra os
quais lutaram) e foram mortos pelo menos 40 000 deles.

(4) No entanto, também eles tinham poucas alternativas reais. Durante a Depressão, quem recusasse
a oferta de um contrato de trabalho por parte da Alemanha arriscava-se a perder os seus benefícios de
desempregado na Holanda.

(5) Num discurso em Bratislava em 9 de Maio de 1945, Benes declarou que os Checos e os
Eslovacos já não desejavam viver no mesmo Estado que os Húngaros e os Alemães. Este sentimento e
as acções subsequentes perseguiram desde então as relações checo-germânicas e eslovaco-húngaras.

(6) Com a significativa excepção dos Gregos e dos Turcos, após o Tratado de Lausanne de 1923.

(7) No fim de Maio de 1945, o Exército britânico devolveu às autoridades jugoslavas 10 000
soldados e civis eslovenos que tinham fugido para a Áustria. A maior parte deles foi enviada de camião
para sul, para as florestas de Kocevje, e sumariamente fuzilada.

(8) A Divisão Halychnya (Galícia), das Waffen SS, era constituída por Ucranianos que foram
cidadãos polacos no período entre as duas guerras mundiais e cuja região de origem foi incorporada na
URSS depois da Segunda Guerra Mundial. Não foram, por isso, repatriados para a União Soviética,
apesar de terem lutado contra ela ao lado da Wehrmacht, e foram considerados apátridas pelas
autoridades ocidentais.

(9) Os guerrilheiros Chetniks do tempo da guerra tomaram o seu nome dos bandos de guerrilheiros
das terras altas que lutaram contra os governantes otomanos da Sérvia no século XVIII.

(10) Mas nem sempre: no pós-guerra, o apoio oportunista dos comunistas gregos à anexação das
regiões eslavas do Norte da Grécia pela Bulgária comunista contribuiu pouco para promover a sua
causa.

(11) Note-se, porém, que o Protectorado da Boémia era dirigido, em 1942, por apenas 1900
burocratas alemães. Neste como noutros aspectos, a Checoslováquia era ocidental, pelo menos em parte.
II

A Retribuição
«Os Belgas, os Franceses e os Holandeses foram levados a crer durante a
guerra que o seu dever patriótico era enganar, mentir, gerir um mercado
negro, desacreditar e defraudar: estes hábitos ficaram entranhados após cinco
anos.»
Paul-Henri Spaak (ministro dos Negócios Estrangeiros da Bélgica)
«A vingança não tem sentido, mas alguns homens não tinham lugar no mundo
que pretendíamos construir.»
Simone de Beauvoir
«Que seja atribuída e executada uma sentença dura e justa, como exige a
honra da nação e é o que o seu maior traidor merece.»
Resolução das Organizações de Resistência da Checoslováquia, exigindo a
severa punição do padre Józef Tiso, em Novembro de 1946
Para que os governos da Europa libertada fossem legitimados, a fim de
reivindicarem para si mesmos a autoridade de Estados adequadamente
constituídos, tiveram de lidar primeiro com o legado dos regimes
desacreditados do tempo da guerra. Os nazis e os seus amigos haviam sido
derrotados, mas dada a dimensão dos seus crimes, obviamente tal não era
suficiente. Se a legitimidade dos governos do pós-guerra se fundamentasse
apenas nas suas vitórias militares sobre o fascismo, como poderiam ser
melhores do que os próprios regimes fascistas do tempo da guerra? Era
importante que as actividades destes últimos fossem definidas como crimes e
punidas em conformidade. Havia uma argumentação legal e política sólida
que apoiava esta posição. A experiência que a maioria dos europeus teve da
Segunda Guerra Mundial não foi de uma guerra de movimento e de batalhas,
mas de uma degradação quotidiana no decurso da qual homens e mulheres
foram traídos e humilhados e forçados a cometer todos os dias pequenos actos
criminosos e auto-humilhações, em que todos perdiam algo e muitos
perderam tudo.
Para além disso, e em nítido contraste com a memória da Primeira Guerra
Mundial, que ainda estava viva em muitos lugares, em 1945 havia pouco por
que estar orgulhoso, muito com que se sentir envergonhado e, mais ainda, um
pouco culpado. Como vimos, a maior parte dos europeus viveu a guerra de
forma passiva, sendo cada país derrotado e ocupado por um grupo de
estrangeiros e libertada por outro. A única fonte de orgulho colectivo nacional
foram os movimentos de resistência formados por guerrilheiros armados que
lutaram contra o invasor. Esta foi a razão de ter sido na Europa Ocidental,
onde a resistência efectiva esteve menos em evidência, que o seu mito
alcançou maior importância. Na Grécia, na Jugoslávia, na Polónia e na
Ucrânia, onde muitas pessoas que foram de facto guerrilheiras enfrentaram
em batalhas as forças de ocupação – e entre si –, as coisas foram, como seria
de esperar, mais complicadas.
Na Polónia libertada, por exemplo, as autoridades soviéticas não
acolheram bem o elogio público aos guerrilheiros armados, cujos sentimentos
eram pelos menos tão anti-soviéticos como eram antinazis. Na Jugoslávia do
pós-guerra, como vimos, alguns resistentes eram mais iguais do que outros,
pelo menos aos olhos do marechal Tito e dos seus combatentes comunistas
vitoriosos. Em 1945, na Grécia, tal como na Ucrânia, as autoridades locais
capturaram, aprisionaram ou fuzilaram todos os guerrilheiros armados que
encontraram.
A ‘resistência’ era, em suma, uma categoria maleável e obscura e, em
alguns lugares, até fictícia. Mas a ‘colaboração’ era outro caso. Os
colaboracionistas podiam ser universalmente identificados e execrados. Eram
homens e mulheres que trabalharam ou dormiram com o ocupante, que
compartilharam a sua sorte com nazis e fascistas, que oportunisticamente
procuraram obter vantagens políticas ou económicas a coberto da guerra.
Eram, por vezes, minorias religiosas, nacionais ou linguísticas e, por isso,
eram já desprezados ou temidos por outras razões. Embora a «colaboração»
não fosse um crime que já existisse num enquadramento legal e com penas
estabelecidas, era razoável que os colaboracionistas fossem acusados de
traição, um crime incontestável que acarretava penas bastante severas.
O castigo dos colaboracionistas (reais ou imaginados) começou antes de a
luta ter terminado. De facto, foi aplicado durante a guerra numa base
individual ou segundo instruções das organizações secretas de resistência.
Todavia, no interregno entre a retirada dos exércitos alemães e o
estabelecimento do controlo efectivo dos governos aliados, as frustrações
populares e as vinganças pessoais, muitas vezes tingidas pelo oportunismo
político e pelos benefícios económicos, deram origem a uma curta mas
sangrenta fase de retaliações. Em França, cerca de 10 000 pessoas foram
mortas durante processos «extrajudiciais», muitos dos quais conduzidos por
bandos independentes de grupos de resistência armada, nomeadamente as
Milices Patriotiques, que capturavam suspeitos de colaboracionismo,
apoderavam-se dos seus bens e, em muitos casos, liquidavam-nos de
imediato.
Cerca de um terço destas execuções sumárias foi cometido antes do
desembarque na Normandia, em 6 de Junho de 1944, e a maioria das restantes
durante os quatro meses seguintes de combates realizados já em solo francês.
Os números são bastante baixos, considerando a intensidade do ódio mútuo e
as suspeitas disseminadas em França após quatro anos de ocupação e de
regime do marechal Pétain em Vichy. Ninguém ficou surpreendido com as
represálias. Segundo as palavras de um velho ex-primeiro-ministro francês,
Edouard Herriot, «a França necessitará de passar primeiro por um banho de
sangue, antes de os republicanos terem a possibilidade de tomar de novo as
rédeas do poder».
Em Itália, o sentimento foi o mesmo. Das represálias e das retaliações não
oficiais, sobretudo nas regiões da Emília-Romana e da Lombardia, resultaram
cerca de 15 000 mortos nos últimos meses da guerra, tendo continuado,
esporadicamente, durante pelo menos mais três anos. Noutros países da
Europa Ocidental, o derramamento de sangue foi muito inferior: na Bélgica
foram linchados ou executados desta forma cerca de 265 homens e mulheres e
na Holanda menos de 100. Contudo, propagaram-se outras formas de
vingança. Eram muito comuns acusações contra mulheres por aquilo que os
cínicos de língua francesa já apelidavam de «collaboration horizontale». Na
Holanda, as «moffenmeiden» eram cobertas de alcatrão e penas e por toda a
França houve cenas de mulheres despidas e de cabelo rapado nas praças
públicas, muitas vezes no dia em que a localidade se libertava dos ocupantes,
ou muito pouco tempo depois.
A frequência com que as mulheres eram acusadas, muitas vezes por outras
mulheres, de se relacionarem com Alemães era reveladora. Havia alguma
verdade em muitas das acusações, porque oferecer serviços sexuais em troca
de comida, roupa ou ajuda pessoal de um género ou de outro era uma
possibilidade, e muitas vezes a única, acessível a mulheres e famílias em
situação desesperada. Todavia, a popularidade da acusação e o prazer da
vingança provocado pelo castigo eram sinais de que a experiência da
ocupação, tanto para os homens como para as mulheres, foi sobretudo de
humilhação. Jean-Paul Sartre descreveria mais tarde a colaboração em termos
nitidamente sexuais como «submissão» ao poder do ocupante e, em vários
romances franceses dos anos 40, os colaboracionistas foram apresentados
como mulheres ou como homens fracos («efeminados»), seduzidos pelo
charme dos seus governantes teutónicos. Satisfazer a vingança em mulheres
caídas em desgraça era uma forma de superar a desagradável memória da
impotência individual e colectiva.
Na Europa de Leste libertada estes actos anárquicos de violência
retributiva também se disseminaram, assumindo, no entanto, diferentes
formas. No Ocidente, os Alemães procuraram diligentemente os
colaboracionistas; nas terras eslavas ocupadas governaram directamente e
pela força. A única colaboração que encorajaram de maneira regular foi a dos
separatistas locais e mesmo neste caso apenas quando era útil aos objectivos
germânicos. Em consequência, quando os Alemães se retiraram, as primeiras
vítimas da vingança espontânea no Leste foram as minorias étnicas. As forças
soviéticas e os seus aliados locais nada fizeram para desencorajar tal
vingança. Pelo contrário, os ajustes de contas espontâneos (alguns dos quais
não inteiramente impulsivos) contribuíram para mais uma expulsão das elites
e dos políticos locais, que poderiam tornar-se um impedimento para as
ambições comunistas no pós-guerra. Na Bulgária, por exemplo, a recém-
constituída «Frente da Pátria» encorajou as retaliações não oficiais sobre os
colaboracionistas de todos os partidos, invocando indiscriminadamente a
acusação de «simpatizante do fascismo» e convidando a denunciar todos os
que fossem suspeitos de simpatias pelo Ocidente.
Na Polónia, o principal alvo da vingança popular foram muitas vezes os
judeus. Foram mortos 150 judeus nos primeiros meses de 1945. Em Abril de
1946, este total chegava quase aos 1200. Ataques em menor escala tiveram
lugar em Velké Topolcany (na Eslováquia), em Setembro de 1945, e em
Kunmadaras (na Hungria), em Maio de 1946, mas o pior pogrom ocorreu em
Kielce (na Polónia), em 4 de Julho de 1946, quando 42 judeus foram
assassinados e muitos mais foram feridos após ter corrido um rumor de rapto
e morte ritual de uma criança. Num certo sentido, estas represálias eram
dirigidas também contra colaboracionistas, porque aos olhos de muitos
Polacos (incluindo os antigos guerrilheiros antinazis) os judeus eram
suspeitos de simpatia face aos ocupantes soviéticos.
Desconhece-se o número exacto de pessoas mortas na Europa de Leste
ocupada pelos Soviéticos e na Jugoslávia durante os primeiros meses de
purgas e mortes «não autorizadas». Todavia, em todo o lado os ajustes de
contas não regulamentados foram de curta duração. Não era do interesse dos
novos governos – frágeis, longe de serem universalmente aceites e muitas
vezes evidentemente provisórios – permitir que bandos armados percorressem
o país prendendo, torturando e matando à sua vontade. A primeira tarefa das
novas autoridades foi assegurar o monopólio da força, da legitimidade e das
instituições da justiça. Se fosse necessário prender e acusar alguém de crimes
cometidos durante a ocupação, essa responsabilidade era das autoridades
adequadas, se fosse preciso haver julgamentos, deveriam ter lugar sob o
primado da lei, se fosse preciso haver derramamento de sangue, este era um
assunto exclusivo do Estado. A transição teve lugar logo que os novos
poderes se sentiram suficientemente fortes para desarmar os antigos
guerrilheiros, impor a autoridade da sua própria polícia e abrandar as
exigências populares de penas pesadas e castigos colectivos.
O desarmamento dos resistentes revelou-se surpreendentemente pacífico
no Ocidente e na Europa Central, pelo menos. Fecharam-se os olhos aos
assassinatos e a outros crimes já cometidos nos meses agitados da libertação:
o governo provisório da Bélgica aprovou uma amnistia para todos os crimes
cometidos pela resistência e em nome desta no período de 41 dias seguintes à
data oficial da libertação do país. Todavia, era tacitamente aceite por todos
que as instituições de governação recém-constituídas deveriam chamar a si a
tarefa de punir os culpados.
Foi aqui que começaram os problemas. O que era um «colaboracionista»?
Com quem colaborara e com que fim? Para além dos casos óbvios de
assassinato ou de roubo, de que seriam culpados os «colaboracionistas»?
Alguém tinha de pagar pelo sofrimento da nação, mas como se deveria definir
esse sofrimento e a quem se poderia atribuir a responsabilidade? O contorno
destas difíceis questões variou de país para país, mas o dilema era comum,
pois não havia precedentes para a experiência europeia dos últimos seis anos.
Em primeiro lugar, qualquer lei que fosse aplicada aos colaboradores dos
Alemães teria necessariamente de ser retroactiva. Desconhecia-se,
anteriormente a 1939, o crime de «colaboração com o ocupante». Houve
outras guerras em que os exércitos de ocupação procuraram e obtiveram
cooperação e ajuda do povo cuja terra invadiram. No entanto, excepto em
casos muito particulares – como o dos nacionalistas flamengos na Bélgica
ocupada pelos Alemães em 1914-1918 –, isso era encarado não como um
convite ao crime, mas como um dano colateral da guerra.
Como já referido, o único sentido em que se podia dizer que o crime de
colaboracionismo caía sob a alçada de uma lei já existente era o de traição.
Para tomar um exemplo representativo, muitos colaboracionistas em França –
independentemente dos detalhes do seu comportamento – foram julgados e
condenados, segundo o artigo 75.o do Código Penal de 1939, por
«informações ao inimigo». Todavia, os homens e as mulheres acusados pelos
tribunais franceses muitas vezes não trabalharam para os nazis, mas para o
regime de Vichy, dirigido e administrado por Franceses e, aparentemente, o
herdeiro legítimo do Estado francês anterior à guerra. Neste caso – tal como
em relação à Eslováquia, à Croácia, ao protectorado da Boémia, à República
Social de Mussolini em Salò, à Roménia do marechal Ion Antonescu e à
Hungria do tempo da guerra –, os colaboracionistas podiam alegar em sua
defesa, e fizeram-no, que sempre trabalharam apenas para as autoridades do
seu próprio Estado, ou com elas.
No caso de polícias graduados ou funcionários governamentais
manifestamente culpados de servir os interesses nazis por intermédio dos
regimes-fantoches que os empregavam, esta linha de defesa era, pelo menos,
pouco sincera. Mas as figuras menores, não falando dos muitos milhares que
foram acusados de aceitar emprego nestes regimes ou em agências ou
empresas que trabalharam para eles, podiam gerar uma verdadeira confusão.
Seria correcto, por exemplo, acusar alguém por ser membro, após Maio de
1940, de um partido político que estivera legalmente representado no
parlamento anterior à guerra, mas que passara a colaborar com os Alemães
durante a ocupação?
Os governos francês, belga e norueguês no exílio tentaram precaver-se
contra estes dilemas, publicando durante a guerra decretos que anunciavam a
aplicação de penas severas pós-conflito. No entanto, a sua intenção era
dissuadir as pessoas de cooperar com os nazis, não lidavam com as questões
mais amplas da jurisprudência e da justiça. Acima de tudo, não podiam
resolver antecipadamente o problema de sopesar as responsabilidades
individuais e colectivas. O equilíbrio das forças políticas em 1943-1945 levou
a atribuir um amplo leque de responsabilidades por crimes de guerra e crimes
de colaboracionismo a categorias predeterminadas de pessoas: membros de
certos partidos políticos, organizações militares e agências governamentais.
Todavia, este procedimento deixaria ainda escapar muitos indivíduos cujo
castigo era francamente exigido; aplicar-se-ia a pessoas cujo principal crime
fora a inércia ou a cobardia e, sobretudo, implicaria uma espécie de acusação
colectiva, algo que era um anátema para a maioria dos juristas europeus.
Pelo contrário, as pessoas foram individualmente julgadas, sendo os
resultados muito variáveis consoante o tempo e o lugar. Muitos homens e
mulheres foram injustamente apontados e punidos, mas muitos mais
escaparam a qualquer punição. Houve muitas irregularidades e ironias
processuais, e os motivos dos governos, dos procuradores de justiça e dos
júris estiveram longe da isenção, por interesses próprios, cálculo político ou
motivos emocionais. O resultado não foi perfeito. Todavia, quando avaliamos
os procedimentos judiciais e a catarse pública a eles associada que marcaram
a transição europeia da guerra para a paz, precisamos de ter em atenção o
drama inerente ao que acabava de suceder. Nas circunstâncias de 1945, é
notável que o primado da lei tivesse sido de facto restabelecido. Afinal, nunca
antes um continente inteiro procurara definir, nesta escala, um novo conjunto
de crimes e levar os criminosos perante algo que se assemelhasse à justiça.
O total de pessoas punidas e as suas penas variaram enormemente de país
para país. Na Noruega, que tinha apenas 3 milhões de habitantes, foram
julgados todos os membros do Nasjonal Sammlung, a principal organização
de colaboradores pró-nazis, composta por 55 000 indivíduos, tendo sido
julgados ainda mais outros 40 000. Houve 17 000 homens e mulheres com
penas de prisão e foram ditadas 30 penas de morte, das quais 25 foram
executadas.
Em nenhum outro lugar as proporções atingiram um grau tão elevado. Na
Holanda, foram investigadas 200 000 pessoas. Quase metade delas foi presa,
algumas por terem feito a saudação nazi; 17 500 funcionários públicos
perderam os seus empregos (mas quase ninguém das empresas, do sector da
educação ou das profissões liberais). Foram condenadas à morte 154 pessoas,
tendo sido executadas 40. Na vizinha Bélgica, foram sentenciadas muitas
mais penas de morte (2940), mas as execuções foram 242, o que representa
uma percentagem menor. O total de colaboracionistas enviados para a prisão
foi sensivelmente o mesmo que na Holanda, mas enquanto esta em breve
amnistiou a maioria dos condenados, o Estado belga manteve-os mais tempo
na prisão e os antigos colaboracionistas que foram condenados por crimes
graves nunca recuperaram plenamente os seus direitos civis. Contrariamente
ao mito que havia de perdurar, a população flamenga não foi, de forma
desproporcional, objecto de acusações, mas as elites belgas anteriores à
guerra – católicos, socialistas e liberais –, ao reprimirem os apoiantes da Nova
Ordem durante a guerra, sobretudo flamengos, restabeleceram o seu controlo
quer na Flandres quer na Valónia.
É sugestivo o contraste entre a Noruega, a Bélgica, a Holanda (e a
Dinamarca), cujos governos fugiram para o exílio, e a França, pois para
muitos Franceses o regime de Vichy era o governo legítimo. Na Dinamarca, o
crime de colaboracionismo era praticamente desconhecido. No entanto, 374
em cada 100 000 Dinamarqueses foram condenados a penas de prisão nos
julgamentos do pós-guerra. Em França, a colaboração durante a guerra foi
bastante generalizada e, por isso, a sua punição foi muito leve. Uma vez que o
próprio Estado fora o principal colaborador, parecia cruel e propenso a criar
mais divisões do que seria adequado acusar do mesmo crime cidadãos
comuns, até porque três em cada quatro juízes desses julgamentos tinham eles
mesmos sido contratados pelo Estado colaboracionista. Em resultado, foram
presas 94 em cada 100 000 pessoas – ou seja, menos de 0,1% da população –
por crimes praticados durante a guerra. Dos 38 000 presos, a maioria foi solta
depois da amnistia parcial de 1947 e apenas 1500 dos restantes não foram
soltos aquando da amnistia de 1951.
Nos anos entre 1944-1951, os tribunais oficiais em França sentenciaram
6763 pessoas à morte (3910 in absentia) por traição e crimes relacionados.
Destas sentenças, apenas 791 foram executadas. O principal castigo a que os
colaboracionistas franceses foram condenados foi a «degradação nacional»,
introduzida em 26 de Agosto de 1944, imediatamente após a libertação de
Paris e sardonicamente descrita por Janet Flanner: «A degradação nacional
consiste em ser privado de praticamente tudo o que os Franceses consideram
distinto, como o direito de usar condecorações de guerra, o direito de ser
advogado, notário, professor do ensino público, juiz ou mesmo testemunha, o
direito de dirigir uma editora, uma rádio ou uma companhia cinematográfica
e, sobretudo, o direito de ser director de uma companhia de seguros ou de um
banco.»
Receberam este castigo 49 723 homens e mulheres franceses. Cerca de 11
000 funcionários civis foram expulsos ou sancionados de outro modo
(representando 1,3% dos empregados do Estado, mas um número muito
menor do que os 35 000 que perderam o seus empregos sob o regime de
Vichy), mas a maioria foi readmitida nos seis anos seguintes. Em suma, toda
esta épuration (purga), como era conhecida, abrangeu 350 000 pessoas, mas a
vida e a carreira da maioria não foram afectadas de forma dramática.
Nenhuma foi punida pelo que designaríamos hoje como crimes contra a
humanidade. A responsabilidade por estes e outros crimes de guerra foi
imputada apenas aos Alemães.
Por várias razões, a experiência italiana foi diferente. Embora tendo sido
uma das potências do Eixo, a Itália foi autorizada pelos governos aliados a
conduzir os seus próprios julgamentos e saneamentos. Afinal, mudara de lado
em Setembro de 1943. Mas havia uma considerável ambiguidade sobre o que
deveria ser criminalizado e quem deveria ser acusado. Enquanto no resto da
Europa a maioria dos colaboracionistas era por definição conotada com o
«fascismo», em Itália, o termo tinha um campo de aplicação demasiado vasto
e ambíguo. Tendo sido governado pelos seus próprios fascistas entre 1922 e
1943, o país foi de início libertado do poder de Mussolini por um dos seus
próprios marechais, Pietro Badoglio, cujo primeiro governo antifascista era
constituído, em grande parte, por antigos membros daquele movimento.
O único crime fascista contra o qual se podia obviamente intentar um
processo judicial seria o de colaboração com o inimigo após a invasão alemã
de 8 de Setembro de 1943. Em consequência, a maioria dos que foram
acusados estava no território ocupado no Norte e tinha ligações ao governo
fantoche instalado em Salò, no lago Garda. O muito ridicularizado
questionário «Foi fascista?» (a «Scheda Personale»), que circulou em 1944,
relevava precisamente a diferença entre os fascistas de Salò e os que não eram
de Salò. As sanções contra os primeiros resultaram da aplicação do Decreto
159, aprovado em Julho de 1944 pela Assembleia Legislativa Intercalar, que
descreveu «actos de especial gravidade que, embora não abrangidos pelo
conceito de crime, [foram] considerados contrários às normas de sobriedade e
de decência política».
Este obscuro documento legislativo foi concebido para tornear a
dificuldade de acusar homens e mulheres por actos cometidos quando eram
funcionários de autoridades nacionais reconhecidas. Todavia, o Supremo
Tribunal, criado em Setembro de 1944 para julgar os prisioneiros mais
importantes, era composto por juízes e advogados que eram, na sua maioria,
eles mesmos ex-fascistas, tal como os funcionários dos Tribunais
Extraordinários de Júri, criados para punir empregados subalternos do regime
colaboracionista. Nestas circunstâncias, os procedimentos estabelecidos
dificilmente poderiam granjear muito respeito por parte da população em
geral.
Não surpreende que o resultado não tenha satisfeito ninguém. Em
Fevereiro de 1946, tinham sido investigados 394 000 funcionários
governamentais, dos quais apenas 1580 foram demitidos. A maior parte dos
que foram interrogados invocou o gattopardismo («camaleonismo» ou
«adaptação da cor»), argumentando que entrou num jogo duplo subtil para
enfrentar a coacção fascista. Afinal, havia a obrigatoriedade de todos os
funcionários públicos serem membros do Partido Fascista e como os que
conduziam os interrogatórios poderiam facilmente ter estado do outro lado da
mesa, manifestaram uma clara simpatia por esta linha de defesa. Depois dos
julgamentos muito publicitados de alguns generais e fascistas mais
importantes, o prometido saneamento do governo e da administração
desvaneceu-se pouco a pouco.
O Alto Comissariado a que fora cometida a tarefa de administrar o
saneamento foi extinto em Março de 1946 e três meses mais tarde foram
anunciadas as primeiras amnistias, que incluíam a anulação de todas as penas
de prisão inferiores a cinco anos. Praticamente, todos os prefeitos, presidentes
da câmara e burocratas de nível intermédio que foram saneados nos anos de
1944 e 1945 recuperariam os seus empregos ou evitariam o pagamento das
multas que lhes foram impostas e a maior parte dos quase 50 000 italianos
presos por actividades fascistas pouco tempo passou na prisão(1). Cinquenta
pessoas, no máximo, foram executadas judicialmente pelos seus crimes, mas
neste número não estão incluídos 55 fascistas massacrados pelos guerrilheiros
na prisão de Schio, em 17 de Julho de 1945.
Durante a Guerra Fria, a suspeita transição não dolorosa efectuada pela
Itália, de potência do Eixo para aliado democrático, foi atribuída à pressão
estrangeira (americana), bem como à influência política do Vaticano. Na
verdade, a questão foi mais complicada. É certo que a Igreja Católica emergiu
quase incólume, se atendermos às relações cordiais de Pio XII com o
fascismo e ao facto de o papa ter ostensivamente ignorado os crimes nazis,
quer em Itália quer em outros lugares. A pressão da Igreja fez-se sentir. Por
outro lado, as autoridades militares anglo-americanas estavam certamente
relutantes em afastar os administradores comprometidos na mesma altura em
que tentavam restabelecer a vida normal em toda a península. Em geral, o
saneamento dos fascistas foi mais eficazmente conduzido nas regiões em que
a resistência de esquerda e os seus representantes políticos imperavam.
No entanto, foi Palmiro Togliatti, o líder de 51 anos do Partido Comunista
Italiano, quem, como ministro da Justiça do governo de coligação a seguir à
guerra, elaborou o projecto de amnistia de Junho de 1946. Após duas décadas
no exílio e muitos anos como alto-funcionário da Internacional Comunista,
Togliatti tinha poucas ilusões sobre o que era ou não era possível após o
termo da guerra na Europa. Depois de ter regressado de Moscovo, em Março
de 1944, anunciou em Salerno o compromisso do seu partido com a unidade
nacional e a democracia parlamentar, para surpresa e embaraço de muitos dos
seus seguidores.
Num país em que muitos milhões de pessoas, nem todas pertencentes à
direita política, estavam comprometidas devido à sua associação com o
fascismo, Togliatti via poucos benefícios em conduzir o país à beira da guerra
civil, ou melhor, em prolongar a guerra civil que já estava em curso. Era
preferível trabalhar em prol do restabelecimento da ordem e da vida normal,
deixar para trás a época fascista e procurar alcançar o poder através das urnas.
Para além disso, Togliatti, do seu posto de observação privilegiado como
importante figura do movimento comunista internacional, cuja perspectiva
estratégica pretendia alcançar mais longe do que as praias italianas, tinha em
mente o sinal de alarme constituído pela situação grega.
Na Grécia, apesar do alto grau de colaboracionismo das elites burocráticas
e empresariais durante a guerra, os saneamentos posteriores tiveram por alvo
não a direita política, mas a esquerda. Foi um caso singular, mas revelador. A
guerra civil de 1944-1945 convencera os Britânicos de que só o
restabelecimento firme de um regime conservador daria estabilidade a este
país, que, embora pequeno, era estrategicamente vital. Sanear ou ameaçar de
outro modo os homens de negócios e os políticos que trabalharam com os
Italianos ou os Alemães, poderia ter implicações radicais num país em que a
esquerda revolucionária parecia aguardar o momento de tomar o poder.
Em pouco tempo, a ameaça à estabilidade no Egeu e no Sul dos Balcãs
deixou de vir do Exército alemão em retirada para passar a vir dos bem
entrincheirados comunistas gregos e dos seus aliados guerrilheiros nas
montanhas. Poucas pessoas foram punidas com severidade por causa da sua
colaboração com as potências do Eixo, mas a pena de morte foi usada com
liberalidade na guerra contra a esquerda. Dado que não havia uma distinção
coerentemente estabelecida por Atenas entre os guerrilheiros de esquerda que
combateram Hitler e os guerrilheiros comunistas que tentavam derrubar o
Estado grego do pós-guerra (e, na maior parte das vezes, eram de facto os
mesmos), era mais provável que fossem os resistentes do tempo da guerra, e
não os seus inimigos colaboracionistas, a ser julgados e presos nos anos
seguintes e a ser excluídos da vida civil durante décadas. Mesmo os filhos e
os netos viriam a pagar o seu preço, sendo-lhes muitas vezes recusado
emprego no inchado sector público até meados dos anos 70.
Os saneamentos e os julgamentos na Grécia foram, portanto,
manifestamente políticos. Mas também o eram, em certo sentido, os processos
mais convencionais da Europa Ocidental. É político qualquer processo que
seja aberto em consequência directa da guerra ou de uma luta política. A
atitude dominante durante os julgamentos de Pierre Laval e de Philippe
Pétain, em França, e do chefe de polícia Pietro Caruso, em Itália, dificilmente
poderia pertencer a um processo judicial convencional. Ajustes de contas,
derramamento de sangue, vinganças e cálculos políticos tiveram um papel
fundamental nestes e noutros julgamentos e saneamentos do pós-guerra.
Necessitamos de ter presente este facto quando nos ocuparmos das retaliações
oficiais do pós-guerra na Europa Central e de Leste.
Do ponto de vista de Estaline e das autoridades soviéticas de ocupação nos
territórios sob controlo do Exército Vermelho, não há dúvida de que os
julgamentos e outras punições de colaboracionistas, fascistas e Alemães
foram sempre, e sobretudo, uma forma de limpar a paisagem política e social
locais dos obstáculos que se podiam levantar ao poder comunista. O mesmo
se pode dizer da Jugoslávia de Tito. Muitos homens e mulheres foram
acusados de crimes fascistas quando o seu maior crime foi pertencerem ao
grupo nacional ou social errado, serem membros de uma comunidade
religiosa ou de um partido político inconvenientes ou, simplesmente,
possuírem uma visibilidade ou uma popularidade incómodas na comunidade
local. As purgas, as expropriações de terras, as expulsões, as penas de prisão e
as execuções que visavam eliminar os opositores políticos incriminados eram,
como veremos, encenações importantes num processo de transformação
social e política. No entanto, também tiveram por finalidade punir verdadeiros
fascistas e criminosos de guerra.
Assim, durante o seu ataque à Igreja Católica da Croácia, Tito também
acusou o conhecido cardeal Alois Stepinac, de Zagreb, apologista de alguns
dos piores crimes do regime croata Ustashi, e que se poderia considerar
afortunado por ter passado os 14 anos seguintes em prisão domiciliária, até
morrer na sua cama, em 1960. Draza Mihajlovic, o líder Chetnik, foi julgado
e executado em Julho de 1946. Depois dele, nos dois anos seguintes à
libertação da Jugoslávia, foram mortas muitas dezenas de milhares de outros
não comunistas. Foram todos vítimas de uma vingança politicamente
motivada. Todavia, se considerarmos as suas acções, durante a guerra, nos
Chetniks, nos Ustashi, na Guarda Branca eslovena e como Domobranci
armados, muitos deles teriam recebido pesadas penas em qualquer sistema
legal(2). Os Jugoslavos executaram e deportaram muitos elementos de etnia
húngara pelo seu papel nos massacres militares húngaros na região de
Voivodina, em Janeiro de 1942, e as suas terras passaram para apoiantes não
húngaros do novo regime. Foi uma jogada política calculada, mas em muitos
casos as vítimas eram certamente culpadas do que eram acusadas.
A Jugoslávia foi um caso particularmente complicado. Mais a norte, na
Hungria, os Tribunais Populares do pós-guerra começaram realmente a julgar
criminosos de guerra, nomeadamente os activistas dos regimes pró-
germânicos de Döme Sztójay e Ferenc Szálasi, em 1944. A percentagem de
fascistas e colaboracionistas condenados na Hungria não excedeu a dos que
foram considerados culpados na Bélgica ou na Holanda do pós-guerra e não
há dúvida de que cometeram crimes graves, incluindo a antecipação e o
cumprimento entusiasta dos planos germânicos de prender e transportar para
os campos de morte centenas de milhares de judeus húngaros. Só mais tarde
as autoridades húngaras incluíram categorias como a «sabotagem» e a
«conspiração» com a finalidade evidente de englobar um leque maior de
opositores e outros que pudessem resistir à tomada do poder pelos
comunistas.
Na Checoslováquia, dos Tribunais Populares Extraordinários, criados por
decreto presidencial de 19 de Maio de 1945, saíram 713 condenações à morte,
741 a prisão perpétua e 19 888 condenações menores para «traidores,
colaboradores e elementos fascistas das fileiras das nações checa e eslovaca».
O estilo sugere a linguagem do direito soviético e antecipa certamente o
futuro sombrio da Checoslováquia. Contudo, houve realmente traidores,
colaboradores e fascistas na Checoslováquia ocupada. Um deles, o padre
Tiso, foi enforcado em 18 de Abril de 1947. Saber se Tiso e outros tiveram
um julgamento imparcial – se é que o poderiam ter tido na atmosfera do
tempo – é uma questão legítima. Porém, o tratamento que tiveram não foi pior
do que o de Pierre Laval, por exemplo. A justiça checa do pós-guerra estava
muito preocupada com a categoria perturbadora e vaga de «crimes contra a
nação», um instrumento concebido para impor uma punição colectiva
sobretudo aos Alemães dos Sudetas. No entanto, o mesmo poderia ser dito da
justiça francesa desse tempo, que teria talvez menos razões para isso.
É difícil julgar o sucesso dos julgamentos do pós-guerra e das purgas
antifascistas na Europa anteriormente ocupada. O padrão das sentenças foi
muito criticado na altura. Com efeito, os que foram julgados enquanto a
guerra decorria ou imediatamente após a libertação do país podiam receber
penas mais severas do que os que foram acusados mais tarde. Em resultado
disso, criminosos de menor importância julgados na Primavera de 1945
tiveram penas de prisão muito mais longas do que colaboracionistas
importantes cujos casos não chegaram aos tribunais durante pelo menos mais
um ano. Na Boémia e na Morávia, foi consumada uma elevada percentagem
de sentenças de morte (95%) devido a uma regra que exigia que os
prisioneiros fossem executados nas duas horas seguintes a ser dada a
sentença. Em qualquer outro lado, quem não fosse imediatamente executado
podia esperar que lhe fosse comutada a sentença.
As sentenças de morte foram frequentes nesta altura e levantaram pouca
oposição: a desvalorização da vida durante a guerra tornou-as menos
extremas – e mais justificadas – do que em circunstâncias normais. O mais
afrontoso, e que pode, afinal, ter desvalorizado todo o processo em alguns
lugares, foi a manifesta incoerência das penas, para não dizer que muitas
delas foram emitidas por juízes e júris cuja folha de serviço em tempo de
guerra estava manchada, ou pior do que isso. Os escritores e os jornalistas,
tendo deixado um registo escrito das suas alianças durante a guerra, ficaram
em pior situação. Julgamentos muito publicitados de intelectuais
proeminentes, como o de Robert Brasillach, em Paris, em Janeiro de 1945 –
provocaram protestos de resistentes bona fide como Albert Camus, que
considerou injusto e imprudente condenar e executar homens pelas suas
opiniões, por mais horríveis que pudessem ser.
Pelo contrário, homens de negócios e altos funcionários que beneficiaram
com a ocupação pouco sofreram, pelo menos na Europa Ocidental. Em Itália,
os Aliados insistiram que homens como Vittorio Valletta, da FIAT, fossem
mantidos nos seus lugares, apesar do seu notório envolvimento com as
autoridades fascistas. Outros executivos italianos sobreviveram demonstrando
a sua oposição anterior à República Social de Mussolini, em Salò, mas, de
facto, muitas vezes opuseram-se a ela precisamente por ser demasiado
«social». Em França, os processos por colaboração económica foram
antecipadamente evitados por uma nacionalização selectiva, como, por
exemplo, das fábricas Renault, em retaliação pelo contributo considerável de
Louis Renault para o esforço de guerra alemão. Por todo o lado, empresários,
banqueiros e funcionários que ajudaram a administrar os regimes de
ocupação, a construir a «Muralha Atlântica» contra a invasão da França, a
abastecer as forças alemãs, etc., foram mantidos nas suas posições para
prestar serviços semelhantes às democracias que vieram a seguir, e
proporcionar continuidade e estabilidade.
Tais compromissos eram provavelmente inevitáveis. A própria escala de
destruição e de colapso moral em 1945 significava que, independentemente
do que fosse mantido, aqueles seriam provavelmente necessários como um
elemento para edificar o futuro. Os governos provisórios em funções nos
meses da libertação estavam quase desamparados. A cooperação
incondicional (e agradecida) das elites económicas, financeiras e industriais
parecia vital se se quisesse fornecer alimentos, vestuário e combustível a uma
população carenciada e esfomeada. As purgas económicas podiam ser
contraproducentes e mesmo perturbadoras.
No entanto, houve um preço a pagar em termos de cinismo político e de
um nítido abandono das ilusões e das esperanças que acompanharam a
libertação. Logo em 27 de Dezembro de 1944, o escritor napolitano
Guglielmo Giannini escreveu o seguinte em L’Uomo Qualanque, o jornal de
um novo partido político italiano com o mesmo nome que apelava
precisamente a este sentimento de desencanto irónico: «Eu sou o tipo que, ao
encontrar-se com um ex-gerarca, lhe pergunta ‘Como conseguiu ser um
saneador?’ […] Eu sou o tipo que olha à sua volta e diz ‘Estes são métodos e
sistemas fascistas’ […] Eu sou o tipo que já não acredita no que quer que seja
nem em ninguém.»
A Itália, como vimos, foi um caso difícil. No entanto, sentimentos como os
de Giannini estavam muito difundidos pela Europa no final de 1945 e abriram
caminho para uma rápida mudança de atitude. Tendo condenado o passado
recente e punido quem tinha casos mais infames ou psicologicamente
satisfatórios, a maioria das pessoas das terras há pouco tempo ocupadas pelos
Alemães estava mais interessada em pôr de parte as memórias
desconfortáveis ou dolorosas e em prosseguir a sua vida destroçada. Em todo
o caso, muito poucos homens e mulheres dessa altura estavam dispostos a
condenar os seus compatriotas pelos piores crimes. Por estes, nisso todos
concordavam, deviam ser os Alemães a assumir toda a responsabilidade.
De facto, tão difundida estava a ideia de que, em última análise, a culpa
dos horrores da Segunda Guerra Mundial deveria ser imputada apenas aos
Alemães que até a Áustria dela escapou. Segundo um acordo aliado de 1943,
a Áustria fora considerada a «primeira vítima» de Hitler, o que lhe assegurou
no final de guerra um tratamento diferente do da Alemanha. Este
entendimento deu satisfação à insistência de Winston Churchill nas origens
prussianas do nazismo, perspectiva derivada da obsessão da sua geração com
a emergência da ameaça prussiana no último terço do século XIX. Todavia,
também se adequava aos outros aliados: a posição da Áustria como eixo
geográfico e a incerteza sobre o futuro político da Europa Central tornou mais
prudente separá-la do destino da Alemanha.
Não obstante, a Áustria dificilmente poderia ser encarada apenas como
mais um país ocupado pelos nazis e cujos fascistas e colaboracionistas
necessitavam de ser punidos, podendo a vida normal ser retomada depois.
Num país de menos de 7 milhões de habitantes, havia 700 000 membros do
NSDAP e no fim da guerra havia ainda 536 000 nazis registados na Áustria.
Houve 1,2 milhões de Austríacos que prestaram serviço durante a guerra nas
unidades alemãs. Os Austríacos estavam sobre-representados nas SS e nas
administrações dos campos de concentração. A vida pública e a alta cultura
austríacas estavam cheias de simpatizantes do nazismo. Por exemplo, 45 dos
117 membros da Orquestra Filarmónica de Viena eram nazis (enquanto a
Filarmónica de Berlim tinha apenas 8 membros do Partido Nazi em 110
músicos).
Nestas circunstâncias, e surpreendentemente, a Áustria saiu-se de maneira
airosa. Foram investigados 130 000 Austríacos por crimes de guerra, dos
quais 23 000 foram julgados, 13 600 condenados, 43 sentenciados à morte e
apenas 30 executados. Cerca de 70 000 funcionários públicos foram
demitidos. As quatro potências aliadas ocupantes concordaram, no Outono de
1946, em deixar daí em diante a Áustria lidar com os seus próprios
criminosos e com a sua própria «desnazificação». O sistema educativo,
particularmente infestado, foi devidamente desnazificado: foram demitidos
2943 professores primários e 477 do ensino secundário, mas apenas 27
professores universitários, apesar das notórias simpatias pró-nazis de muitos
dos principais académicos.
Em 1947, as autoridades austríacas aprovaram uma lei que distinguia entre
nazis «mais» e «menos» incriminados. Dos segundos, 500 000 foram
amnistiados no ano seguinte, sendo-lhes devolvido o direito de voto. Os
primeiros – cerca de 42 000 no total – seriam todos amnistiados em 1956.
Depois das amnistias, os Austríacos esqueceram simplesmente todo o seu
envolvimento com Hitler. Uma das razões da facilidade com que os
Austríacos ultrapassaram o seu enamoramento com o nazismo foi o facto de
convir a todos os interesses locais que se moldasse em seu benefício o
passado recente: o conservador Partido Popular, herdeiro do Partido Social-
Cristão anterior à guerra, tinha todas as razões para pôr em destaque as suas
credenciais «não germânicas», bem como as da Áustria, para desviar a
atenção do regime corporativista imposto pela força em 1934. Os sociais-
democratas austríacos, indiscutivelmente antinazis, tiveram, não obstante, de
ultrapassar o seu historial anterior a 1933, quando apelaram ao Anschluss com
a Alemanha. Outra razão foi o facto de todos os partidos estarem interessados
em tranquilizar e lisonjear os votos dos ex-nazis, uma parcela significativa do
eleitorado que iria moldar o futuro político do país. Para além disso, como
veremos, havia as novas configurações originadas pelo início da Guerra Fria.
Na Alemanha, avaliações como estas não estiveram de modo nenhum
ausentes. Mas aqui a população não podia influir no seu próprio destino. Na
mesma declaração de Moscovo, de 30 de Outubro de 1943, que isentou a
Áustria de responsabilidade pela sua aliança nazi, os Aliados avisaram os
Alemães de que seriam considerados responsáveis pelos seus crimes de
guerra. E foram. Numa série de julgamentos entre 1945 e 1947, as potências
ocupantes aliadas que permaneciam na Alemanha acusaram os nazis e os seus
colaboradores por crimes de guerra, crimes contra a humanidade, assassínio e
outros crimes comuns cometidos na prossecução dos objectivos do nazismo.
Destes processos, o Tribunal Militar Internacional de Nuremberga, que
julgou os chefes nazis mais importantes entre Outubro de 1945 e Outubro de
1946, é o mais conhecido, mas houve muitos outros: tribunais militares
americanos, britânicos e franceses julgaram nazis de estatuto mais baixo nas
suas respectivas zonas de ocupação na Alemanha, e juntamente com a União
Soviética enviaram oficiais nazis para outros países, nomeadamente para a
Polónia e a França, para serem julgados onde os crimes foram cometidos. O
programa de Julgamentos de Crimes de Guerra continuou durante a ocupação
aliada da Alemanha: nas zonas ocidentais, mais de 5000 pessoas foram
condenadas por crimes de guerra ou crimes contra a humanidade, das quais
pouco menos de 800 foram condenadas à morte e 486 finalmente executadas,
a última delas na prisão de Landsberg, em Junho de 1951, sob veementes
apelos alemães à clemência.
Dificilmente se poderia julgar Alemães apenas por serem nazis, apesar da
conclusão de Nuremberga de que o Partido Nazi era uma organização
criminosa. O seu número era demasiado elevado e os argumentos contra a
culpabilização colectiva demasiado fortes. Em todo o caso, não se afigura
claro o que poderia resultar se se concluísse que muitos milhões de pessoas
eram culpadas. Contudo, as responsabilidades dos líderes nazis eram claras e
nunca houve qualquer dúvida sobre o seu provável destino. Segundo as
palavras de Telford Taylor, um dos procuradores de justiça dos Estados
Unidos em Nuremberga e procurador principal em julgamentos posteriores:
«Havia demasiadas pessoas a pensar que tinham sofrido injustamente por
causa dos líderes do III Reich e a querer que houvesse um julgamento a esse
respeito.»
Desde o princípio que os julgamentos dos crimes de guerra alemães
procuraram, por um lado, fazer pedagogia e, por outro, justiça. Os
julgamentos que decorreram na sala principal do Tribunal de Nuremberga
foram transmitidos duas vezes por dia na rádio alemã e as provas reunidas
seriam mostradas nas escolas, nos cinemas e nos centros de reeducação por
todo o país. No entanto, as vantagens exemplares dos tribunais nem sempre
eram evidentes. Numa primeira série de julgamentos de comandantes e de
guardas dos campos de concentração, muitos deles ficaram sem qualquer
punição. Os seus advogados exploraram em benefício próprio o sistema de
justiça anglo-americano com campos opostos, contra-interrogando e
humilhando as testemunhas e sobreviventes dos campos de concentração. No
julgamento dos funcionários de Bergen-Belsen (de 17 de Setembro a 17 de
Novembro de 1945), realizado em Lüneberg, os advogados de defesa
britânicos argumentaram com algum sucesso que os seus clientes apenas
obedeceram à lei (nazi): 15 dos 45 arguidos foram absolvidos.
Deste modo, é difícil saber até que ponto os julgamentos dos
colaboradores nazis contribuíram para a reeducação política e moral da
Alemanha e dos Alemães. Muitos ficaram certamente ressentidos com eles,
considerando-os «justiça dos vencedores», e eles eram precisamente isso. Mas
também eram verdadeiros julgamentos de verdadeiros criminosos por
comportamentos reconhecidamente criminosos e abriram um precedente
essencial para a jurisprudência internacional nas décadas que se seguiriam. Os
julgamentos e as investigações dos anos de 1945-1948 (quando a Comissão
de Crimes de Guerra das Nações Unidas foi dissolvida) registaram uma
quantidade enorme de documentos e de testemunhos (nomeadamente sobre o
projecto germânico de exterminar os judeus da Europa) no próprio momento
em que os Alemães e outros estavam sobremaneira dispostos a esquecer tudo
tão depressa quanto fosse possível. Deixaram bem claro que os crimes
cometidos por indivíduos na prossecução de objectivos ideológicos ou de
Estado eram, não obstante, da responsabilidade individual e puníveis de
acordo com a lei. Cumprir ordens não era uma linha de defesa admissível.
Houve, porém, duas falhas inevitáveis na punição dos criminosos de
guerra alemães por parte dos Aliados. A presença de procuradores e juízes
soviéticos foi interpretada por muitos comentadores na Alemanha e na Europa
de Leste como prova de hipocrisia. O comportamento do Exército Vermelho e
as práticas soviéticas nas terras que «libertara» não eram desconhecidos. Na
verdade, eram talvez mais conhecidos e publicitados então do que nos anos
posteriores. Por outro lado, as purgas e os massacres dos anos 30 ainda
estavam frescos na memória de muitas pessoas. Ter os Soviéticos sentados no
julgamento dos nazis – por vezes, por crimes similares aos que eles mesmos
haviam cometido – desvalorizou os julgamentos de Nuremberga e outros, e
fez com que parecessem ser exclusivamente um caso de vingança
antigermânica. Segundo as palavras de George Kennan: «A única implicação
que este procedimento poderia ter era, afinal, que tais crimes eram
justificáveis e perdoáveis quando cometidos por líderes de um governo e em
determinadas circunstâncias, mas injustificável, imperdoável e punível com a
morte quando cometido por outro governo e noutras circunstâncias.»
A presença soviética em Nuremberga foi o preço pago pela aliança firmada
durante a guerra e pelo papel proeminente do Exército Vermelho na derrota de
Hitler. Mas a segunda falha dos julgamentos era inerente à própria natureza
do processo judicial. Precisamente porque a culpa pessoal da liderança nazi,
começando pelo próprio Hitler, foi tão completa e cuidadosamente
estabelecida, muitos Alemães sentiram-se autorizados a acreditar que o resto
da nação estava inocente, que os Alemães, do ponto de vista colectivo, foram
tão vítimas passivas do nazismo como qualquer outro povo. Os crimes dos
nazis podem ter sido «cometidos em nome da Alemanha» (para citar o antigo
chanceler alemão Helmut Kohl, que falava 50 anos mais tarde), mas havia
pouco reconhecimento genuíno de que foram perpetrados por Alemães.
Os Americanos em particular estavam bem conscientes disso e iniciaram
imediatamente um programa de reeducação e desnazificação na sua zona,
cujo objectivo era abolir o Partido Nazi, arrancar as suas raízes e plantar as
sementes da democracia e da liberdade na vida pública alemã. O Exército dos
Estados Unidos foi acompanhado por um grande número de psicólogos e
outros especialistas, que tinham precisamente por tarefa descobrir por que
razão os Alemães se tinham desviado tanto do bom caminho. Os Britânicos
empreenderam projectos semelhantes, embora com maior cepticismo e menos
recursos. Os Franceses evidenciaram muito pouco interesse por esta questão.
Os Soviéticos, por outro lado, estiveram de início totalmente de acordo e as
medidas agressivas de desnazificação foram um dos poucos assuntos em que
as autoridades aliadas puderam estar em consonância, pelo menos durante
algum tempo.
O problema real de qualquer programa coerente que tivesse por objectivo
erradicar o nazismo da vida alemã consistia em não ser praticável nas
circunstâncias de 1945. Nas palavras do general Lucius Clay, o comandante
militar americano, «o nosso maior problema administrativo era encontrar
Alemães razoavelmente competentes que não tivessem sido filiados nem se
tivessem associado de alguma forma ao regime nazi […]. Demasiado
frequentemente, parece que os únicos homens com qualificações […] são os
funcionários públicos de carreira […] muitos dos quais foram mais do que
participantes meramente nominais (segundo a nossa definição) nas
actividades do Partido Nazi».
-
(1) Em 1960, dos 64 prefeitos responsáveis pela administração provincial da Itália, 62 tinham
exercido funções sob o fascismo, o mesmo acontecendo com 135 chefes de polícia.
(2) A Domobran era a Guarda Nacional croata durante a guerra. É claro que os guerrilheiros
comunistas de Tito muitas vezes não se portaram melhor, mas foram eles que venceram.
Clay não exagerou. Em 8 de Maio de 1945, quando terminou a guerra na
Europa, havia 8 milhões de nazis na Alemanha. Em Bona, 102 de um total de
112 médicos eram ou foram membros do Partido. Na cidade destruída de
Colónia, dos 21 especialistas do serviço de fornecimento de água à cidade,
cuja competência era essencial para a reconstrução do respectivo sistema de
águas e do sistema de esgotos, bem como na prevenção das doenças, 18 eram
nazis. A administração pública, a saúde pública, a reconstrução urbana e as
empresas privadas na Alemanha do pós-guerra seriam inevitavelmente
assumidas por homens como estes, embora sob supervisão aliada. Não havia
qualquer possibilidade de os eliminar dos assuntos alemães.
No entanto, foram feitos alguns esforços. Nas três zonas ocupadas da
Alemanha preencheram-se 16 milhões de Fragebogen (questionários), a
maioria dos quais na área sob controlo americano. Aqui, as autoridades
americanas listaram 3,5 milhões de Alemães (cerca de um quarto da
população total da zona) como «casos susceptíveis de acusação», embora
muitos deles nunca tivessem sido conduzidos aos tribunais locais de
desnazificação, constituídos em Março de 1946, sob responsabilidade alemã,
mas com supervisão aliada. Os civis alemães foram obrigados a visitar os
campos de concentração e a assistir a filmes que documentavam as
atrocidades nazis. Os professores nazis foram expulsos, as bibliotecas
reapetrechadas, a impressão e a distribuição de papel ficaram sob controlo
directo aliado e foram entregues a donos e editores com credenciais antinazis
genuínas.
Estas medidas depararam com grande oposição. Em 5 de Maio de 1946, o
futuro chanceler alemão Konrad Adenauer pronunciou-se contra as medidas
de desnazificação num discurso público em Wuppertal, defendendo que «os
simpatizantes do nazismo» fossem deixados em paz. Dois meses mais tarde,
num discurso dirigido à recém-formada União Democrata-Cristã, afirmou o
mesmo: a desnazificação estava a prolongar-se por demasiado tempo e não
era benéfica. A preocupação de Adenauer era genuína. Na sua perspectiva,
confrontar os Alemães com os crimes dos nazis, fosse em julgamentos,
tribunais ou projectos de reeducação, provocaria, mais provavelmente, uma
reacção nacionalista do que um acto de contrição. Era precisamente porque o
nazismo tivera raízes tão fundas no seu país que o futuro chanceler julgava
mais prudente permitir, e até encorajar, o silêncio sobre o assunto.
Adenauer não deixava de ter alguma razão. Nos anos 40, os Alemães
pouco sabiam do modo como o mundo os via. Não compreendiam o
significado do que eles e os seus líderes haviam feito, e estavam mais
preocupados com as suas próprias dificuldades no pós-guerra – escassez de
alimentos, falta de alojamentos, etc. – do que com o sofrimento das suas
vítimas por toda a Europa que ocuparam. De facto, era mais provável que se
vissem no papel de vítimas e, por isso, encarassem os julgamentos e outras
confrontações com os crimes nazis como uma vingança dos Aliados
vitoriosos sobre um regime defunto(3). Com algumas honrosas excepções, as
autoridades políticas e religiosas da Alemanha do pós-guerra pouco se
distanciaram desta posição e os líderes naturais do país – nas profissões
liberais, no sector judiciário, no funcionalismo público – eram os mais
comprometidos de todos.
Por isso, os questionários foram tratados com desprezo. Se serviram para
alguma coisa, foi sobretudo para branquear indivíduos que de outra forma
seriam suspeitos, ajudando-os a obter certificados de bom carácter (os
chamados certificados «Persil», designação inspirada numa marca de sabão
para a roupa). A reeducação teve um impacto realmente limitado. Uma coisa
era obrigar os Alemães a assistir a documentários filmados, outra, muito
diferente, era forçá-los a vê-los e, ainda mais, a pensar no que viam. Muitos
anos mais tarde, o escritor Stephan Hermlin descreveu uma cena num cinema
de Frankfurt em que se exigiu aos Alemães que assistissem a documentários
sobre Dachau e Buchenwald antes de receberem os cartões de racionamento:
«À meia-luz do projector, pude ver que a maioria das pessoas virava a cara
depois do começo do filme e assim ficava até que acabasse. Hoje, penso que
esta recusa de ver era, de facto, a atitude que muitos milhões tinham […]. O
infortunado povo a que eu pertencia era, ao mesmo tempo, sentimental e
insensível. Não estava interessado em ser perturbado pelos acontecimentos,
em nenhum “conhece-te a ti mesmo”»(4).
No início da Guerra Fria, quando os Aliados abandonaram os seus
esforços de desnazificação, era evidente que estes tiveram um impacto
reduzido. Na Baviera, cerca de metade dos professores do ensino secundário
fora despedida em 1946, mas dois anos depois estava de regresso aos seus
empregos. Em 1949, a recém-criada República Federal deu por concluídas
todas as investigações ao comportamento passado dos funcionários públicos e
dos oficiais do Exército. Na Baviera, em 1951, 94% dos juízes e dos
procuradores de justiça, 77% dos empregados do Ministério da Justiça e 60%
dos funcionários públicos do Ministério da Agricultura eram ex-nazis. Em
1952, um de cada três funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros,
em Bona, era ex-membro do Partido Nazi. Do recém-criado Corpo
Diplomático da Alemanha Ocidental, 43% eram antigos membros das SS e
outros 17% serviram no SD [Serviço de Segurança] ou na Gestapo. Hans
Globke, assessor principal de Adenauer durante a década de 50, foi o
responsável pelo comentário oficial sobre as Leis de Nuremberga de 1935,
assinadas por Hitler. O chefe da polícia da Renânia-Palatinado, Wilhelm
Hauser, foi o Obersturmführer responsável pelos massacres na Bielorrússia
durante a guerra.
O mesmo padrão também se encontrava fora do funcionalismo público. As
universidades e os juristas foram as classes menos afectadas pela
desnazificação, apesar da sua notória simpatia pelo regime hitleriano. Os
homens de negócios também se saíram airosamente. Friedrich Flick,
condenado como criminoso de guerra em 1947, foi libertado três anos depois
pelas autoridades de Bona e pôde recuperar o seu estatuto anterior como
principal accionista da Daimler-Benz. Figuras de topo pertencentes aos
complexos industriais incriminados da I.G. Farben e a Krupp foram também
todas libertadas após pouco tempo de prisão e reentraram na vida pública
pouco afectadas. Em 1952, a Fordwerke, a filial alemã da Ford Motor
Company, tinha voltado a juntar todos os seus gestores de topo dos anos do
nazismo. Até os juízes nazis e os médicos dos campos de concentração,
condenados ao abrigo da jurisdição americana, viram as suas sentenças
reduzidas ou comutadas (pelo administrador americano John J. McCloy).
Os dados de inquéritos de opinião nos anos do pós-guerra confirmam o
impacto limitado dos esforços aliados. Em Outubro de 1946, quando foi dado
por concluído o julgamento de Nuremberga, só 6% dos Alemães admitiam
que tinha sido «injusto», mas quatro anos mais tarde já um terço subscrevia
tal opinião. Que pensassem assim não devia surpreender-nos, uma vez que
nos anos de 1945-1949 uma maioria significativa de Alemães acreditava que
«o nazismo foi uma boa ideia mal aplicada». Em Novembro de 1946, 37%
dos Alemães interrogados num inquérito da zona americana concordaram
com a opinião de que «o extermínio dos judeus e dos Polacos e outros não
arianos foi necessário para segurança dos Alemães».
No mesmo inquérito de opinião de Novembro de 1946, um terço dos
Alemães concordou com a afirmação de que «os judeus não deveriam ter os
mesmo direitos dos que pertenciam à raça ariana». Isto não é inesperado,
dado que os inquiridos acabavam de sair de 12 anos sob um governo
autoritário cujo ponto de vista era esse. O que é surpreendente é que num
inquérito realizado seis anos depois uma percentagem ligeiramente maior –
37% – de Alemães ocidentais tenha afirmado que era melhor para a
Alemanha não ter judeus no seu território. Mas, afinal, nesse mesmo ano de
1952, 25% dos Alemães Ocidentais admitiam ter uma «boa opinião» sobre
Hitler.
Na zona ocupada pelos Soviéticos, o legado nazi foi tratado de forma um
pouco diferente. Embora os juízes e advogados soviéticos tenham participado
nos julgamentos de Nuremberga, no Leste a ênfase da desnazificação foi
posta sobretudo na punição colectiva dos nazis e na extirpação do nazismo de
todas as áreas da vida. A chefia comunista local não tinha ilusões sobre o que
acontecera. Walter Ulbrich, o futuro chefe de Estado da República
Democrática Alemã, expressou isso mesmo num discurso aos representantes
do Partido Comunista da Alemanha, em Berlim, apenas seis semanas após a
derrota do seu país: «A tragédia do povo alemão consiste no facto de ter
obedecido a um bando de criminosos […]. A classe operária alemã e os
segmentos produtivos da população fracassaram perante a história.»
Isto era mais do que Adenauer ou a maioria dos políticos alemães
ocidentais estavam dispostos a admitir, pelo menos em público. Mas Ulbrich,
tal como as autoridades soviéticas a quem obedecia, estava menos interessado
em castigar os crimes nazis do que em assegurar o poder comunista na
Alemanha e em eliminar o capitalismo. Em consequência, embora a
desnazificação na zona soviética tenha ido mais longe em alguns casos do que
no Ocidente, fundamentava-se em duas representações erradas do nazismo:
uma delas pertencia à teoria comunista e a outra era calculadamente
oportunista.
Era um lugar-comum marxista e doutrina oficial soviética que o nazismo
era apenas fascismo e que este, por sua vez, era um produto do interesse
egoísta do capitalismo num momento de crise. Segundo este ponto de vista, as
autoridades soviéticas prestaram pouca atenção ao lado caracteristicamente
racista do nazismo e ao genocídio que dele resultou e, em vez disso,
concentraram as prisões e as expropriações nos homens de negócios,
funcionários corruptos, professores e outros responsáveis pela promoção dos
interesses da classe social que supostamente estava por detrás de Hitler. Desta
forma, o desmantelamento soviético da herança do nazismo na Alemanha não
era fundamentalmente diferente da transformação social que Estaline estava a
provocar noutras partes da Europa Central e de Leste.
O aspecto oportunista da política soviética para com os ex-nazis resultou
da fraqueza. Os comunistas na Alemanha ocupada não constituíam um
movimento forte e a sua chegada a reboque do Exército Vermelho
dificilmente os levaria a cativar votantes. A sua única perspectiva política,
para além da violência e da fraude eleitoral, residia no apelo calculado aos
interesses egoístas. A leste e a sul, os comunistas levaram-no a cabo
encorajando a expulsão das populações de etnia germânica e apresentando-se
a si mesmos como garantes e protectores dos novos ocupantes polacos,
eslovacos ou sérvios das explorações agrícolas, dos negócios e dos
apartamentos deixados vagos. Como é óbvio, esta opção não estava em aberto
na própria Alemanha. Na Áustria, o Partido Comunista local cometeu um erro
nas eleições realizadas no final de 1945 ao rejeitar o apoio potencialmente
fundamental de nazis pouco importantes e de antigos membros do respectivo
partido. Com tal recusa, arruinou as perspectivas do comunismo na Áustria do
pós-guerra. Esta lição foi bem entendida em Berlim. O Partido Comunista da
Alemanha (KPD) decidiu, pelo contrário, oferecer os seus serviços e a sua
protecção a milhões de antigos nazis.
As duas perspectivas – a doutrinal e a calculista – não entravam
necessariamente em conflito. Ulbrich e os seus colegas certamente
acreditavam que a maneira de eliminar o nazismo da Alemanha era efectuar
uma transformação socioeconómica: não estavam particularmente
interessados na responsabilidade individual nem na reeducação moral. Porém,
também compreendiam que o nazismo não fora apenas uma artimanha
lançada a um proletariado alemão inocente. A classe operária alemã, tal como
a burguesia, não estivera à altura das suas responsabilidades. Mas
precisamente por essa razão, seria mais provável, e não menos, que se
adaptasse aos objectivos comunistas com um doseamento adequado do
chicote e da cenoura. Aliás, em todo o caso, as autoridades da Alemanha de
Leste, tal como as do Ocidente, tinham poucas possibilidades de escolha: com
quem poderiam governar o país, a não ser com os ex-nazis?
Deste modo, se, por um lado, as forças de ocupação soviéticas despediram
dos seus empregos uma quantidade enorme de nazis – 520 000 em Abril de
1948 – e nomearam «antifascistas» para cargos administrativos na sua zona
de ocupação, por outro, os chefes comunistas alemães encorajaram
activamente antigos nazis, cujos historiais não estavam publicamente
demasiado comprometidos, a juntarem-se-lhes. Não surpreende que tenham
tido um grande sucesso. Os ex-nazis não poderiam deixar de ficar bastante
satisfeitos por anularem o seu passado, compartilhando a sorte dos
vencedores. Como membros do partido, administradores locais, informadores
e polícias revelaram-se singularmente bem adaptados às necessidades do
Estado comunista.
O novo sistema, afinal, era notavelmente semelhante ao que conheceram
antes: os comunistas assumiram simplesmente o controlo das instituições
nazis, como as Frentes dos Trabalhadores e as administrações dos blocos
residenciais, e deram-lhes novos nomes e novos chefes. Mas a adaptabilidade
dos ex-nazis foi também uma consequência da sua vulnerabilidade à
chantagem. As autoridades soviéticas estavam bastante inclinadas a conspirar
com os seus antigos inimigos, mentindo sobre a natureza e a extensão do
nazismo na Alemanha de Leste, afirmando que o capitalismo da Alemanha e a
herança nazi estavam confinados às zonas ocidentais e que a futura República
Democrática Alemã era uma terra de trabalhadores, camponeses e heróis
antifascistas – mas também sabiam mais do que isso e tinham os ficheiros
nazis para o provar, se houvesse necessidade. Vendedores no mercado negro,
exploradores da guerra e ex-nazis de todos os géneros revelaram-se assim
excelentes comunistas, uma vez que todos tinham motivos para querer
agradar.
No início dos anos 50, mais de metade dos reitores dos institutos
superiores da Alemanha de Leste eram antigos membros do Partido Nazi, e
dez anos depois o mesmo sucedia com mais de 10% dos parlamentares. A
recém-criada Stasi (a agência de segurança do Estado) chamou a si não
apenas o papel e as práticas da Gestapo nazi, mas também muitos milhares de
empregados e informadores. As vítimas políticas do regime comunista que se
iniciava, muitas vezes acusadas, de forma vaga, como «criminosos nazis»,
foram presas por polícias ex-nazis, julgadas por juízes ex-nazis e guardadas
por guardas prisionais ex-nazis em prisões e campos de concentração do
tempo do nazismo, controlados em bloco pelas novas autoridades.
A facilidade com que estes indivíduos e instituições mudaram do nazismo
ou do fascismo para o comunismo não se confinou à Alemanha de Leste,
excepto talvez na extensão em que tal aconteceu. Em Itália, a resistência do
tempo da guerra deu guarida a alguns ex-fascistas de várias espécies, e a
moderação do Partido Comunista Italiano no pós-guerra ficou talvez a dever
alguma coisa ao facto de muitos dos seus potenciais apoiantes estarem
comprometidos com o fascismo. Na Hungria do pós-guerra, os comunistas
cortejaram abertamente antigos membros da Cruz Flecha fascistas, indo
mesmo ao ponto de lhes oferecerem apoio contra os judeus que procuravam
recuperar os seus bens. Em Londres, durante a guerra, os comunistas
eslovacos Vlado Clementis e Eugen Löbl foram perseguidos por agentes
soviéticos recrutados nos partidos fascistas checos anteriores à guerra, cujo
testemunho seria usado contra eles no seu julgamento encenado, uma década
mais tarde.
Os comunistas não foram os únicos a fechar os olhos ao passado nazi ou
fascista das pessoas, em compensação por serviços políticos no pós-guerra.
Na Áustria, os antigos fascistas eram muitas vezes favorecidos pelas
autoridades ocidentais, sendo-lhes permitido trabalhar no jornalismo e noutras
ocupações sensíveis: a sua associação com o regime corporativista e
autoritário da Áustria anterior à guerra foi neutralizada pela invasão nazi e
pela sua credível e crescentemente útil antipatia pela esquerda. O governo
militar aliado na zona de fronteira do Nordeste da Itália protegeu antigos
fascistas e colaboradores, muitos deles procurados pelos Jugoslavos, ao
mesmo tempo que os serviços de informação ocidentais recrutavam em todo o
lado ex-nazis com experiência e bem informados – incluindo o «carniceiro de
Lyon», o oficial da Gestapo Klaus Barbie – para serem utilizados no futuro;
nomeadamente contra os ex-nazis do serviço secreto soviético, que estavam
em excelentes condições para identificar.
No seu primeiro discurso oficial ao parlamento da República Federal da
Alemanha, em 20 de Setembro de 1949, Konrad Adenauer disse o seguinte
sobre a desnazificação e o legado nazi: «O governo da República Federal,
acreditando que muitos expiaram subjectivamente uma falta que não era
grave, está determinado a esquecer o passado, onde for aceitável fazê-lo.»
Não há dúvida de que muitos Alemães concordaram sinceramente com esta
afirmação. Se a desnazificação abortou foi porque, com objectivos políticos,
os Alemães se «desnazificaram» espontaneamente a 8 de Maio de 1945.
Para além disso, o povo alemão não estava só. Em Itália, o jornal diário do
novo Partido Democrata-Cristão publicou um apelo semelhante ao
esquecimento, no dia da morte de Hitler: «Temos força suficiente para
esquecer!», proclamava. «Esqueçam o mais rapidamente possível!» No Leste,
a réplica mais forte dos comunistas foi a sua promessa de constituírem um
novo início revolucionário em países em que todos tinham algo a esquecer –
coisas que lhes fizeram ou que eles mesmos fizeram. Por toda a Europa havia
uma forte disposição para pôr o passado de lado e começar de novo, seguindo
a recomendação feita por Isócrates aos Atenienses no fim das guerras do
Peloponeso: «Assumamos colectivamente o governo como se nada de mal se
tivesse passado.»
Esta desconfiança perante a memória mais recente, a procura de mitos
úteis de antifascismo – uma Alemanha de antinazis, uma França de resistentes
ou uma Polónia de vítimas – foi o legado invisível mais importante da
Segunda Guerra Mundial à Europa. No seu aspecto positivo, facilitou a
recuperação nacional, ao permitir que homens como o marechal Tito, Charles
de Gaulle ou Konrad Adenauer proporcionassem aos seus compatriotas uma
explicação plausível e até digna de orgulho acerca de si mesmos. Até a
Alemanha de Leste reclamou para si uma origem nobre, uma tradição
inventada: o lendário e em grande parte forjado «levantamento» comunista
em Buchenwald, em Abril de 1945. Estes relatos permitiram aos países que
sofreram passivamente a guerra, como a Holanda, pôr de parte os seus
comprometimentos e, aos que dirigiram o seu activismo numa direcção que se
revelou errada, como a Croácia, sepultá-lo numa história confusa de
heroísmos rivais.
Sem esta amnésia colectiva, a recuperação espantosa da Europa no pós-
guerra não teria sido possível. É claro que muito do que foi afastado dos
espíritos haveria de regressar depois de uma maneira desagradável. Todavia,
só muito mais tarde se tornaria claro quanto a Europa do pós-guerra dependia
de mitos fundadores que se dissolveriam e se transformariam com o passar
dos anos. Dadas as circunstâncias de 1945, num continente coberto de ruínas,
havia muito a ganhar se os europeus agissem como se o passado estivesse
realmente morto e enterrado e estivesse para despontar uma nova época. O
preço pago foi um certo esquecimento selectivo por parte de todos,
nomeadamente na Alemanha. Mas nessa altura, sobretudo na Alemanha,
havia muito para esquecer.
-
(3) Em 1946, o Länderrat (Conselho das Regiões) alemão ocidental recomendou às autoridades
aliadas que, devido às carências existentes na altura na Alemanha, fossem reduzidas as rações
alimentares dos deslocados. O general Lucius Clay limitou-se a responder que os alimentos em questão
eram fornecidos por outras nações europeias vítimas da própria guerra de agressão por parte da
Alemanha.

(4) Stephan Hermlin, Bestimmungsorte (Berlim, 1985), p. 46, citado em Frank Stern, The
Whitewashing of the Yellow Badge (1992), p. xvi.
III

A Reabilitação da Europa
«Todos sabemos agora que depois desta guerra não podemos regressar a uma
ordem social baseada no laissez-faire, que a guerra propriamente dita é a
causadora de uma revolução silenciosa ao preparar o caminho para um novo
tipo de ordem planeada.»
Karl Mannheim
«A opinião quase geral parece ser a de que os métodos capitalistas não estarão
à altura da tarefa da reconstrução.»
Joseph Schumpeter
«Muitos de nós ficámos desapontados com a Grã-Bretanha a que regressámos
[…] ninguém podia transformá-la de um dia para o outro na Grã-Bretanha
que desejávamos.»
Mrs. Winnie Whitehouse (in Paul Addison, Now That the War Is Over)
«A solução consiste em quebrar o círculo vicioso e restaurar a confiança do
povo europeu no futuro económico dos seus próprios países e da Europa
como um todo.»
George C. Marshall
Amera extensão da calamidade que se abateu sobre a Europa proporcionou
novas oportunidades. A guerra tudo mudou. Em quase toda a parte, estava
fora de questão um regresso à forma como as coisas eram antes de 1939. Esta
era, naturalmente, a perspectiva dos jovens e dos radicais, mas era igualmente
evidente para os observadores perspicazes das gerações mais velhas. Charles
de Gaulle, que tinha 54 anos quando a França foi libertada e nascera no seio
da burguesia católica conservadora do Norte do país, apresentou o assunto
com um rigor que lhe era característico: «Durante a catástrofe, sob o peso da
derrota, ocorreu uma grande mudança no espírito dos homens. Para muitos, o
desastre de 1940 pareceu ser a falência da classe dirigente e do seu sistema
em todos os domínios.»
Porém, os problemas não começaram em 1940, quer em França, quer em
outros países. Em todo o lado, os resistentes antifascistas viam-se a si mesmos
em luta não só com os ocupantes do tempo da guerra e os seus delegados
locais, mas também com todo um sistema político e social que consideravam
ser o responsável directo pelas calamidades por que os seus países tiveram de
passar. Foram os políticos, os banqueiros, os homens de negócios, e os
soldados dos anos que mediaram as duas guerras que levaram os seus países à
catástrofe, que traíram os sacrifícios feitos durante a Primeira Guerra Mundial
e prepararam o terreno para a Segunda. Estes, nas palavras de um panfleto
britânico que criticava duramente os conservadores defensores do
apaziguamento antes de 1940, eram os «homens culpados». Eles e o seu
sistema eram o alvo dos planos elaborados já durante a guerra para os tempos
que a ela se seguiriam.
A Resistência era, portanto, em toda a parte, implicitamente
revolucionária. Isto era inerente à sua lógica. Rejeitar uma sociedade que
produzira o fascismo conduzia naturalmente «a sonhar com a revolução que
partiria de uma tabula rasa» (Italo Calvino). Em grande parte da Europa de
Leste, a ardósia fora, de facto, limpa, como já vimos. Mas até na Europa
Ocidental havia uma expectativa generalizada de uma transformação social
espectacular e rápida: afinal, quem se iria interpor no seu caminho?
Encarada do ponto de vista dos movimentos de resistência do tempo da
guerra, a política do pós-guerra seria uma continuação da sua luta anterior,
uma projecção e uma extensão natural da sua existência clandestina. Muitos
homens e mulheres jovens que entraram em cena na clandestinidade durante a
guerra não conheceram qualquer outra forma de vida pública: em Itália desde
1924, na Alemanha, na Áustria e na maior parte da Europa de Leste desde o
início dos anos 30, e em toda a Europa continental ocupada desde 1940, a
política normal era coisa desconhecida. Os partidos políticos foram banidos,
as eleições deturpadas ou abolidas. Opor-se às autoridades, advogar a
mudança social ou mesmo reformas políticas era colocar-se à margem da lei.
Para esta nova geração, a política era resistência: resistência à autoridade,
resistência aos arranjos sociais e económicos convencionais, resistência ao
passado. Claude Bourdet, um activista da resistência francesa, proeminente
editor de revistas de esquerda e escritor dos anos do pós-guerra, captou este
estado de espírito nas suas memórias, L’Aventure incertaine: «A ‘Resistência’
transformou-nos a todos em contestataires em todos os sentidos da palavra,
tanto dos homens como do sistema social.» Depois da resistência ao fascismo,
a resistência ao retorno aos erros dos anos 30 parecia ser um passo natural.
Deste emergiu o invulgar estado de espírito optimista que muitos
observadores notaram logo a seguir à Libertação. Apesar da miséria que os
rodeava – na verdade, por causa dela –, algo novo e melhor estava prestes a
nascer. «Nenhum de nós», escreveram os editores da revista italiana Società,
em Novembro de 1945, «reconhece o seu próprio passado. Parece-nos
incompreensível […]. Hoje a nossa vida é dominada por um sentimento de
estupefacção e por uma busca instintiva de orientação. Estamos simplesmente
desarmados perante os factos.»
O principal obstáculo a uma mudança radical, logo depois da derrota de
Hitler, não eram os reaccionários nem os fascistas que se juntaram aos
ditadores e acabaram juntamente com eles, mas os governos legítimos no
exílio, a maioria dos quais permaneceu em Londres até ao fim da guerra a
planear o seu regresso. Viam as organizações de resistência local dos seus
países como um problema, e não como aliados: jovens descuidados que
tinham de ser desarmados e mandados regressar à vida civil, deixando os
assuntos públicos nas mãos de uma classe política devidamente expurgada de
colaboracionistas e traidores. Menos do que isso significaria a anarquia, ou
então a ocupação por tempo indefinido pelos exércitos aliados.
Os grupos de resistência durante a guerra, organizados entre 1944-1945
em vários movimentos políticos, estavam, por sua vez, igualmente
desconfiados. Para eles, os políticos, os funcionários e os cortesãos que
tinham escapado à ocupação estavam duplamente desacreditados: pelos seus
erros anteriores à guerra e pela sua ausência subsequente. Em França e na
Noruega, os legisladores eleitos em 1936 ficaram desacreditados pelas suas
acções em 1940. Na Bélgica e na Holanda, a sua ausência durante os cinco
anos de guerra levou a um corte das suas sensibilidades e de qualquer noção
dos sofrimentos dos respectivos países e da mudança operada no estado de
espírito do povo com a ocupação nazi. Na Europa Central e de Leste, com a
importante excepção da Checoslováquia, os antigos governos tornaram-se
irrelevantes com a chegada do Exército Vermelho (embora, por vezes,
levassem tempo a percebê-lo).
As autoridades que regressavam aos seus países estavam bastante
desejosas de estabelecer compromissos em matéria política e, sobretudo,
como veremos, sobre as reformas sociais e económicas. Insistiram, contudo,
no que De Gaulle e outros entendiam por «transição ordeira». Uma vez que
esta era também a preferência das forças aliadas de ocupação no Ocidente e
no Leste, as ilusões da resistência em breve se desfizeram. Na Europa de
Leste, com a excepção da Jugoslávia, foram os Soviéticos que determinaram a
configuração dos governos do pós-guerra e que dirigiram a sua acção. Na
Europa Ocidental, autoridades provisórias assumiram funções até à realização
de novas eleições. Em todos os casos, os movimentos de resistência foram
encorajados e, finalmente, obrigados a entregar as suas armas e a dissolver as
suas organizações.
É surpreendente, em retrospectiva, como foi escassa a resistência a esta
restauração do status quo institucional. Na Polónia e em algumas áreas do
Ocidente da União Soviética, mantiveram-se grupos de guerrilheiros armados
durante mais alguns anos, mas a sua luta era especificamente nacional e
anticomunista. Na Noruega, na Bélgica, em França e em Itália a resistência
organizada integrou-se pacificamente em partidos políticos e sindicatos do
pós-guerra, apenas com protestos em surdina. Em Novembro de 1944, na
Bélgica, foram dadas duas semanas aos membros armados da resistência para
que entregassem as suas armas. Isso provocou um grande comício de protesto
em Bruxelas, em 25 Novembro, durante o qual a polícia abriu fogo, ferindo
45 pessoas. No entanto, tais incidentes foram raros(1). Mais característica foi
a integração com êxito de 200 000 combatentes franceses da resistência no
exército regular, quando a sua organização, as Forces Françaises de
l’Intérieur, foi dissolvida sem protesto.
A desmobilização da resistência foi muito facilitada pela estratégia
soviética, que favoreceu a restauração dos regimes parlamentares na Europa
Ocidental (tal como, aparentemente, na Europa de Leste). Líderes comunistas
como Maurice Thorez em França e Palmiro Togliatti em Itália tiveram um
papel importante para que fosse assegurada a cooperação pacífica dos seus
seguidores (por vezes espantados). Todavia, muitos queriam acreditar que as
energias e as ambições da resistência seriam agora canalizadas para projectos
políticos de renovação nacional.
Os contactos feitos na Resistência por vezes, sobreviveram. Por exemplo,
a «despilarização» da sociedade holandesa, ou seja, o derrube da linha
divisória confessional entre comunidades de católicos e de protestantes, que
durava há séculos, teve início nos laços pessoais forjados durante a guerra(*).
Mas os projectos de «Partidos da Resistência», no pós-guerra, falharam em
toda a parte. Estiveram perto de o conseguir realizar em Itália, onde Ferrucio
Parri chegou a primeiro-ministro em Junho de 1945 e prometeu que o seu
Partido da Acção daria continuidade ao espírito e aos objectivos da
Resistência, mas Parri não era um político e quando caiu, seis meses depois, o
poder político passou definitivamente para as mãos dos partidos tradicionais.
De Gaulle, em França, era um estratega político muito superior, mas também
ele preferiu abandonar o cargo (um mês depois de Parri) para não ter de
limitar as suas ambições do pós-guerra à rotina parlamentar – homenageando,
de forma não intencional, o seu próprio sucesso ao restabelecer a
continuidade da República.
Assim, em lugar de ser governada por um nova e fraternal comunidade de
resistentes, a maior parte dos europeus foi dirigida, no imediato pós-guerra,
por coligações de políticos de esquerda e de centro-esquerda bastante
semelhantes às Frentes Populares dos anos 30. Isso tinha sentido. Os únicos
partidos políticos anteriores à guerra capazes de intervir normalmente nestes
anos eram os que possuíam credenciais antifascistas, ou, no caso da Europa
de Leste ocupada pelos Soviéticos, aqueles a quem as novas autoridades
atribuíram tais credenciais – pelo menos durante algum tempo. Na prática,
isso significou os partidos comunistas, socialistas e alguns grupos liberais e
radicais. Estes, conjuntamente com os partidos democratas-cristãos, que
adquiriram então uma nova proeminência, constituíram, assim, os partidos de
governo nos primeiros anos do pós-guerra, mas integrando muitas das
políticas e dos homens da época da Frente Popular.
Os partidos da esquerda existentes ganharam muito com o seu empenho na
resistência durante a guerra, sobretudo em França, onde os comunistas
conseguiram converter os seus feitos, por vezes exagerados, em capital
político e convenceram até os observadores desapaixonados do seu estatuto
moral único; eram «os grandes heróis da Resistência», como Janet Flanner
escreveu, em Dezembro de 1944. Não é de estranhar, portanto, que os
programas de reforma dos governos europeus do pós-guerra tivessem
resquícios e apresentassem reformulações das tarefas inacabadas dos anos 30.
Se, após 1945, os políticos partidários experimentados tiveram tão pouca
dificuldade em afastar os que foram activistas durante a guerra, isso ficou a
dever-se ao facto de a resistência e os seus herdeiros, apesar de partilharem
um ethos antifascista e desejarem, em geral, a mudança, serem bastante vagos
em aspectos concretos. O Partido da Acção, em Itália, procurou abolir a
monarquia, nacionalizar o grande capital e a grande indústria e reformar a
agricultura. O programa de acção do Conselho Nacional da Resistência
Francesa não tinha nenhum rei para depor, mas, a seu modo, as suas ambições
eram também imprecisas. As unidades da resistência estiveram demasiado
preocupadas em combater, ou tão-só em sobreviver, para se ocuparem com
planos pormenorizados de legislação para depois da guerra.
Porém, o que faltava sobretudo aos resistentes era a experiência. Entre as
organizações clandestinas, só os comunistas tinham conhecimento prático da
política, e, excepto no caso francês, também não era muita. Todavia, os
comunistas estavam particularmente relutantes em ficar comprometidos com
afirmações programáticas detalhadas que pudessem afastar futuros aliados
tácticos. Por isso, a resistência pouco legou à posteridade em matéria de
projectos do pós-guerra, para além de afirmações de boas intenções e de
generalidades vagas, e mesmo estas, como disse o aliás complacente François
Mauriac, em Agosto de 1944, eram «programas fantasistas concebidos à
pressa».
Numa coisa, porém, todos os resistentes e políticos concordavam: no
«planeamento». Os flagelos das décadas que decorreram entre as duas guerras
– ou seja, as oportunidades perdidas após 1918, a grande depressão que se
seguiu à quebra do mercado bolsista, em 1929, o desperdício que o
desemprego constituía, as desigualdades, as injustiças e as ineficiências do
capitalismo do laissez-faire, que conduziram tantos à tentação do
autoritarismo, a indiferença descarada de uma elite governante cheia de
arrogância e a incompetência de uma classe política inadequada – pareciam
estar todos relacionados com o completo falhanço na organização da
sociedade. Para a democracia funcionar, para recuperar a sua capacidade de
atracção, tinha de ser planeada.
Diz-se, por vezes, que esta fé no planeamento – a religião política do pós-
guerra – resultava do exemplo da União Soviética, uma economia planeada
que escapou aparentemente aos traumas da Europa capitalista, resistiu ao
ataque nazi e ganhou a Segunda Guerra Mundial graças a uma série de planos
quinquenais detalhados. Este ponto de vista é completamente falso. Na
Europa Ocidental e Central do pós-guerra só os comunistas acreditavam nos
planos de tipo soviético (sobre os quais sabiam muito pouco) e mesmo eles
não tinham qualquer ideia de como tais planos podiam ser aplicados nas
circunstâncias dos seus países. A obsessão soviética com as metas
quantificadas, as quotas de produção e a direcção centralizada era estranha a
todos, com excepção de alguns ocidentais que na altura defendiam o
planeamento. Estes últimos, e havia-os de vários géneros, inspiravam-se num
conjunto de fontes muito diversificado.
A moda dos planos e do planeamento começou muito antes de 1945.
Durante a depressão que ocorreu no período entre as duas Grandes Guerras,
ergueram-se vozes, da Hungria à Grã-Bretanha, a favor de uma economia
planificada, deste ou daquele género. Algumas das ideias que foram
propostas, sobretudo na Áustria e entre os fabianos britânicos, tinham a sua
origem numa tradição socialista mais antiga, mas muitas outras vinham do
reformismo liberal anterior a 1914. O Estado «polícia» do século XIX, com a
sua atenção restringida à segurança e ao policiamento, estava fora de moda.
Ainda que apenas por razões de prudência – evitar perturbações políticas –,
seria necessário intervir nos assuntos económicos para regular os
desequilíbrios, eliminar as ineficiências e compensar as desigualdades e
insuficiências do mercado.
Antes de 1914, a ênfase maior destes projectos reformistas limitava-se ao
apelo aos impostos progressivos, à protecção do trabalho e, ocasionalmente, à
propriedade estatal de alguns monopólios naturais. Mas com o colapso da
economia internacional e a guerra subsequente, o planeamento assumiu uma
maior urgência e ambição. Propostas diversas para um plano nacional em que
o Estado interviria activamente para apoiar, desencorajar, facilitar e, se
necessário, dirigir sectores económicos cruciais, circulavam amplamente entre
engenheiros, economistas e funcionários públicos em França e na Alemanha.
Na maior parte do período entre as duas guerras, os supostos
planificadores e os seus apoiantes estiolavam, frustrados, nas margens da
política. A geração mais velha de políticos era surda aos seus apelos: para
muitos dos que pertenciam à direita conservadora e ao centro, a intervenção
do Estado na economia era uma aberração, enquanto a esquerda socialista
acreditava, em geral, que só uma sociedade saída da revolução poderia
planear racionalmente as questões económicas. Até lá, o capitalismo estava
condenado a suportar as suas próprias contradições e, finalmente, a entrar em
colapso devido a elas. A ideia de que se poderia «planear» a economia
capitalista parecia aos dois lados um absurdo. Os frustrados defensores do
planeamento económico eram por vezes atraídos pelos partidos autoritários da
direita radical, que eram nitidamente mais abertos à sua perspectiva.
Não foi por acaso, portanto, que Oswald Mosley e alguns outros
trabalhistas britânicos se viraram para o fascismo devido à frustração pela
resposta inadequada do seu partido à Grande Depressão. Também na Bélgica,
Hendrik de Man não conseguiu convencer os seus colegas socialistas da
viabilidade do seu «Plano» e começou a propor soluções mais autoritárias.
Em França, alguns dos jovens dirigentes mais brilhantes do Partido Socialista
romperam com este para formar novos movimentos, frustrados com a
incapacidade revelada pelo seu partido em dar uma resposta imaginativa à
crise económica. Muitos deles, e outros, tornaram-se fascistas.
Os líderes dos apoiantes de Mussolini em França e na Grã-Bretanha, antes
de 1940, invejavam o que consideravam ser um sucesso na superação das
desvantagens económicas da Itália mediante o planeamento conduzido pelo
Estado e a criação de agências protectoras de sectores económicos inteiros.
Albert Speer, o administrador da Nova Ordem de Hitler, era muito admirado
no estrangeiro pelo seu programa de organização e regulação económicas. Em
Setembro de 1943, Speer e Jean Bichelonne, o ministro da Produção
Industrial de Vichy, conceberam um sistema de reduções tarifárias baseado
em ideias «planificadoras» do período entre as duas guerras e que se
aproximava muito das relações comerciais europeias e da coordenação
económica franco-germânica que se tornariam efectivas anos mais tarde. Na
«Jeune Europe», o clube formado em 1933 por jovens pensadores e políticos
desejosos de estabelecer uma nova orientação nas concepções políticas, o
futuro estadista belga e eurófilo Paul-Henri Spaak trocou ideias sobre um
maior papel do Estado com contemporâneos seus que tinham a mesma
orientação e que provinham de todo o continente, incluindo Otto Abetz, o
futuro administrador nazi da cidade de Paris durante a ocupação.
O «planeamento» teve, em suma, uma história complicada. Muitos dos
seus defensores tiveram a sua primeira experiência como funcionários
públicos e administradores de empresas nos regimes de ocupação durante a
guerra, em França, na Bélgica e na Checoslováquia, para não falar da
Alemanha e da Itália. A Grã-Bretanha não foi ocupada, mas também aqui foi
a guerra que introduziu e domesticou a ideia de «planeamento»
governamental, que até então permanecia muito abstracta. De facto, na Grã-
Bretanha foi sobretudo a guerra que colocou o governo no centro da vida
económica. A lei dos Poderes de Emergência, de Maio de 1940, autorizou o
governo a mandar fazer qualquer tarefa a qualquer pessoa em prol do
interesse nacional, a assumir o controlo de qualquer propriedade e a afectar
qualquer instalação industrial a objectivos nacionais que seleccionasse.
Segundo as palavras de Kenneth Harris, o biógrafo de Clement Attlee, líder
do Partido Trabalhista do pós-guerra: «O planeamento e a propriedade
nacionais, que no período de 1945 a 1951 pareceram ser a consequência
lógica do governo trabalhista levar à prática princípios socialistas,
constituíam, em grande parte, a herança de um Estado que fora organizado
para lutar numa guerra total.»
O fascismo e a guerra foram, assim, a ponte que ligou ideias heterodoxas,
muito minoritárias e frequentemente controversas, sobre o planeamento
económico à política económica dominante do pós-guerra. No entanto, esta
herança comprometedora teve um impacto reduzido na simpatia que se tinha
pelo planeamento: independentemente das suas associações com a extrema-
direita, a extrema-esquerda, a ocupação ou a guerra, era claro que o
planeamento não estava associado com a política desacreditada dos anos
decorridos entre as duas guerras, um aspecto que era largamente considerado
a seu favor. O que o planeamento realmente significava era a fé no Estado.
Em muitos países, o que esta fé reflectia era uma consciência bem
fundamentada, e impulsionada pela experiência da guerra, de que na ausência
de qualquer outra instância de regulamentação ou de distribuição de
rendimentos, apenas o Estado se interpunha agora entre os indivíduos e a
pobreza. Todavia, o entusiasmo da altura por um Estado intervencionista ia
muito além do desespero ou do interesse próprio. A visão de Clement Attlee,
o líder trabalhista britânico cujo partido derrotou os conservadores de
Churchill nas dramáticas eleições de 1945, captou com precisão o estado de
espírito de então: do que se precisava naquele momento era de «cidades bem
planeadas, bem construídas, de parques e campos de jogos, lares e escolas,
fábricas e lojas».
Havia uma grande fé na capacidade – e não apenas no seu sentido do dever
– do governo para resolver os enormes problemas, ao mobilizar e orientar as
pessoas e os recursos para finalidades colectivas úteis. Esta forma de encarar
as coisas era obviamente atractiva sobretudo para os socialistas, mas a ideia
de que uma economia bem planeada significava uma sociedade mais rica,
mais justa e mais bem orientada foi aceite por grande parte dos eleitorados,
incluindo os dos partidos democratas-cristãos, que então ganhavam
proeminência em toda a Europa Ocidental. O historiador britânico A.J.P.
Taylor disse aos ouvintes da BBC, em Novembro de 1945, que «[n]inguém na
Europa acredita no modo de vida americano, ou seja, na empresa privada. Ou
melhor, os que acreditam nele constituem um partido derrotado que parece
não ter melhor futuro do que os jacobitas em Inglaterra após 1688». Taylor
exagerava como sempre, não tinha razão a longo prazo (mas quem tem?) e
poderia mesmo ter ficado surpreendido ao tomar conhecimento do entusiasmo
planeador de muitos adeptos do New Deal que ocupavam nessa altura
posições de destaque na administração americana na Alemanha. Mas nessa
altura e no conjunto, ele tinha razão.
O que era o «planeamento»? O termo é enganador. O que todos os
planeadores tinham em comum era a crença num maior papel do Estado em
questões sociais e económicas. Para além desta, havia uma grande diversidade
de opiniões, geralmente em consequência de tradições políticas nacionais
diferentes. Na Grã-Bretanha, onde de facto sempre se realizou muito pouco
planeamento, a verdadeira questão era o controlo – dos serviços industriais,
sociais e económicos – através da propriedade estatal como um fim em si
mesmo. Deste modo, as nacionalizações, nomeadamente das minas, dos
caminhos-de-ferro, do transporte de mercadorias e dos serviços públicos, e o
fornecimento de serviços médicos, estão no centro do programa do Partido
Trabalhista desde 1945. Em suma, era o controlo dos «postos de comando» da
economia que importava, mas era apenas isso.
Em Itália, a herança institucional fascista, que tinha sujeitado grande parte
da economia à vigilância do Estado, estava em grande parte intacta depois da
guerra. O que mudou foi a cor política dos partidos que beneficiavam agora
do poder industrial e financeiro que lhes era concedido pela posse de
companhias e de organismos do Estado. Na Alemanha Ocidental, após 1948,
a economia haveria de ficar, na sua maior parte, em mãos privadas, mas
através de acordos detalhados, aprovados publicamente, sobre a gestão das
fábricas, as relações entre empregador e empregado, as condições de emprego
e distribuição de rendimentos. Na Holanda, o planeamento central implicou
uma diversidade de éditos previsionais e prescritivos para serem utilizados
pelas empresas privadas.
A maioria dos países da Europa Ocidental tinha sectores públicos em
rápido crescimento quando medidos pela despesa pública ou pelo número de
empregados. Mas só em França o entusiasmo retórico com o planeamento
estatal o tornou efectivo. Tal como os Britânicos, os governos franceses do
pós-guerra nacionalizaram os transportes aéreos, os bancos, 32 companhias de
seguros, os serviços públicos, as minas, as indústrias de munições, a
construção de aeronaves e o grupo da Renault (como retaliação pela
contribuição do seu proprietário para o esforço de guerra alemão). Em Maio
de 1946, um quinto da capacidade industrial da França era propriedade do
Estado.
Entretanto, em 4 de Dezembro de 1945, Jean Monnet apresentou ao
presidente De Gaulle o seu Plan de Modernisation et d’Equipement. Um mês
mais tarde, foi criado o Commissariat Général du Plan, sob a direcção de
Monnet. Durante os meses seguintes, Monnet criou Comissões de
Modernização para diversas indústrias (minas, electricidade, transportes,
materiais de construção, aço e maquinaria agrícola; mais tarde seriam
acrescentadas as do petróleo, adubos, marinha mercante e fibras sintéticas),
que, por sua vez, entregaram propostas e planos sectoriais. Em Janeiro de
1947, exactamente um ano após a sua criação, o Commissariat viu aprovado
pelo governo francês, sem discussão, o primeiro plano nacional.
O Plano Monnet foi único. Foi obra de um homem singular(2), mas foi
sobretudo o produto de uma cultura política que já favorecia a tomada de
decisões de forma autoritária e a formação de consensos por fiat
governamental. Sob os seus auspícios, a França tornou-se o primeiro país
ocidental a empenhar-se totalmente numa política pública de crescimento e de
modernização económicos. O plano dependia fortemente da possibilidade da
França aceder às matérias-primas e aos mercados dos alemães e, por isso, a
história do seu sucesso faz parte da narrativa das relações do país, quer com a
Alemanha, quer com o resto da Europa, na década que se seguiu à guerra,
uma história que teve muitas falsas partidas, restrições e frustrações.
O primeiro Plano Monnet foi em grande parte uma medida de emergência
para lidar com a crise com que a França se confrontava no pós-guerra. Só
depois foi alargado e adaptado aos termos do Plano Marshall. No entanto, a
concepção fundamental da estratégia económica francesa do pós-guerra
estava nele presente desde o início. O planeamento francês teve sempre uma
natureza meramente «indicativa»: só definiu metas, nunca quotas de
produção. Neste aspecto, era muito diferente do planeamento soviético, cuja
principal característica (e defeito mais importante) era insistir em produções
quantificadas de forma arbitrária e rígida por sector e por mercadoria. O Plano
Monnet limitou-se a fornecer ao governo uma estratégia e instrumentos para
promover de forma activa determinados objectivos. Na época, constituiu um
feito manifestamente original.
Na Checoslováquia, foi criada em Junho de 1946 uma Comissão Central
de Planeamento com algumas características e aspirações que eram
semelhantes ao Comissariado de Monnet, tendo por finalidade orientar e
coordenar o sector público, que tinha uma extensão bastante grande em
resultado das nacionalizações do presidente Benes em 1945. No ano que
antecedeu o golpe comunista de Praga de Fevereiro de 1948, 93% dos
empregados do sector de transportes e 78% dos da indústria já trabalhavam
para o Estado. Os bancos, as minas, as companhias de seguros, os serviços
públicos mais importantes, o aço e as fábricas químicas, as indústrias
alimentares e todas as grandes empresas tinham sido nacionalizados: eram
2119 firmas e delas saía cerca de 75% do produto da indústria
transformadora.
No caso da Checoslováquia, as nacionalizações e o planeamento estatal da
economia começaram, portanto, bem antes da tomada do poder pelos
comunistas e traduziam as preferências políticas de uma efectiva maioria do
eleitorado. Só em Fevereiro de 1949, um ano após o golpe comunista, a
Comissão de Planeamento foi alvo de saneamentos e foi designada como
«Gabinete de Planeamento do Estado» com um âmbito muito diverso. Em
todos os demais países da região, as nacionalizações em larga escala, como as
efectuadas ao abrigo da lei polaca das nacionalizações, de Janeiro de 1946,
tiveram origem em governos de coligação em que os comunistas dominavam.
Mas também nestes casos havia antecedentes pré-comunistas: anos atrás, em
1936, o governo autoritário da República Polaca dera início a um «Plano de
Investimentos Quadrienal» com um sistema rudimentar de planeamento
obrigatório centralizado.
O objectivo principal do planeamento na Europa continental do pós-guerra
era o investimento público. Numa época de grande escassez de capital e com
uma enorme procura de investimentos em todos os sectores, o planeamento
governamental consistia em fazer escolhas delicadas: onde aplicar os recursos
limitados do Estado e à custa de quem. Na Europa de Leste, a ênfase recaiu
inevitavelmente sobre as despesas básicas: nas estradas, nos caminhos-de-
ferro, nas fábricas e nos serviços públicos. Todavia, esta opção deixou muito
pouco para a alimentação e alojamento e muito menos para a assistência
médica, a educação e os outros serviços sociais, e praticamente nada para
bens de consumo não essenciais. Era improvável que este tipo de despesas
pudesse ser do agrado do eleitorado, sobretudo em países que já tinham
sofrido privações materiais durante anos, e não surpreende que este tipo de
planeamento, levado a cabo em condições de escassez extrema, se tivesse
associado, mais cedo ou mais tarde, a um poder autoritário e a um Estado
policial.
Porém, a situação no Ocidente não era muito diversa. Como veremos, os
Britânicos viram-se obrigados a aceitar anos de «austeridade» como preço a
pagar pela recuperação económica. Em França e em Itália, países onde quase
não existia mercado de capitais privados a longo prazo, todos os grandes
investimentos tiveram de ser realizados com financiamentos públicos, razão
pela qual o primeiro Plano Monnet foi orientado para o investimento nas
indústrias mais importantes, à custa do consumo interno, da habitação e dos
serviços. As consequências políticas desta opção eram previsíveis: em 1947, a
França, tal como a Itália, foi ameaçada por greves, manifestações violentas e
um crescimento contínuo do Partido Comunista e dos seus sindicatos. O
abandono deliberado do sector dos bens de consumo e o desvio dos escassos
recursos nacionais para um pequeno lote de sectores industriais cruciais tinha
sentido a longo prazo, mas foi uma estratégia de alto risco.
A teoria económica do planeamento aprendeu directamente com as lições
dos anos 30: uma estratégia de sucesso para a recuperação no pós-guerra
deveria evitar qualquer regresso à estagnação económica, à depressão, ao
proteccionismo e, sobretudo, ao desemprego. Idênticas considerações estão na
base da criação do moderno Estado-providência europeu. Segundo a
sabedoria convencional dos anos 40, o extremar de posições políticas na
década que precedeu a Segunda Guerra Mundial teve directamente origem na
depressão económica e nos seus custos sociais. O fascismo e o comunismo
desenvolveram-se devido ao desespero social, ao enorme abismo que
separava ricos e pobres. Se as democracias pretendiam recuperar, a
problemática da «condição do povo» tinha de ser enfrentada. Segundo as
palavras de Thomas Carlyle, cem anos antes, «se algo não for feito, irá um dia
acontecer por si mesmo e de uma forma que não agradará a ninguém».
Mas o «Estado-providência» – o planeamento social – era mais do que
apenas uma profilaxia contra as convulsões sociais. O nosso actual
constrangimento perante ideias como raça, eugenia, «degeneração» e outras
similares tende a obscurecer o papel importante que tiveram no pensamento
público europeu na primeira metade do século XX. De facto, não foram
apenas os nazis que levaram tais assuntos a sério. Em 1945, duas gerações de
médicos, antropólogos, funcionários de saúde pública e comentadores
políticos europeus tinham dado o seu contributo para amplos debates e
polémicas sobre a «saúde racial», o crescimento populacional, o bem-estar
ambiental e ocupacional e as políticas públicas que os poderiam melhorar e
assegurar. Existia um amplo consenso quanto ao facto de as condições físicas
e morais dos cidadãos serem matéria de interesse comum e, portanto, em
parte, da responsabilidade do Estado.
Por isso, estavam já generalizadas antes de 1945 medidas de assistência
social rudimentares de um género ou de outro, embora a sua qualidade e o seu
alcance variassem muito. A Alemanha, caracteristicamente, era o país mais
avançado, tendo já instituído sistemas de pensões de reforma, seguros de
acidentes de trabalho e médicos entre 1883 e 1889, com Bismarck no poder.
Todavia, outros países começavam a segui-la nos anos imediatamente
anteriores e posteriores à Primeira Guerra Mundial. Na primeira década do
século, foram introduzidos na Grã-Bretanha sistemas embrionários de seguros
de reforma e pensões de reforma e logo após o termo da Grande Guerra, em
1919 e 1920, respectivamente, quer este país quer a França criaram
ministérios da Saúde.
Os seguros de desemprego obrigatórios, que começaram a ser introduzidos
na Grã-Bretanha em 1911, foram institucionalizados depois em Itália (1919),
Áustria (1920), Irlanda (1923), Polónia (1924), Bulgária (1925), Alemanha e
Jugoslávia (1927) e Noruega (1938). A Roménia e a Hungria já tinham
instituído sistemas de seguros de acidentes de trabalho e de doença antes da
Primeira Guerra Mundial, e todos os países da Europa de Leste introduziram
sistemas nacionais de pensões de reforma no período entre as duas guerras.
Os abonos de família eram um elemento crucial dos planos para aumentar a
taxa de natalidade, uma obsessão característica após 1918 nos países
gravemente atingidos pelas perdas da guerra. Foram introduzidos em primeiro
lugar na Bélgica (1930), a seguir em França (1932), e na Hungria e Holanda
precisamente antes da guerra.
Contudo, nenhum destes esquemas, nem mesmo os dos nazis, constituía
um sistema global de previdência. Eram conjuntos de reformas ad hoc, cada
uma das quais pensada em função de um problema social concreto ou
introduzindo aperfeiçoamentos devido às falhas dos esquemas anteriores. Os
vários sistemas de pensões de reforma e de seguros médicos introduzidos na
Grã-Bretanha, por exemplo, tinham benefícios muito limitados e aplicavam-
se apenas aos homens trabalhadores; as suas mulheres e outros dependentes
estavam deles excluídos. Na Grã-Bretanha, no período entre as duas guerras,
o direito ao subsídio de desemprego dependia de uma «Prova de Meios». Esta
inspirava-se no princípio da «menor elegibilidade» da Lei dos Pobres do
século XIX e exigia que o candidato demonstrasse a sua quase pobreza para
que dela pudesse beneficiar. Em nenhum país se reconhecia qualquer
obrigação por parte do Estado de garantir um determinado conjunto de
serviços a todos os cidadãos, fossem homens ou mulheres, empregados ou
sem trabalho, velhos ou novos.
Foi a guerra que mudou tudo isto. Tal como a Primeira Guerra Mundial
tinha suscitado legislação e medidas sociais, ainda que apenas para lidar com
as viúvas, os órfãos, os inválidos e os desempregados dos anos do imediato
pós-guerra, também a Segunda Guerra Mundial transformou, quer o papel do
Estado moderno, quer as expectativas que se criaram à sua volta. A mudança
foi mais acentuada na Grã-Bretanha, onde John Maynard Keynes previu
correctamente que depois da guerra haveria um «grande desejo de segurança
social e pessoal». Porém, no dizer de Michael Howard, em toda a parte «a
guerra e a assistência social andaram de mãos dadas». Em alguns países, a
alimentação e os serviços médicos melhoraram realmente durante a guerra:
mobilizar os homens e as mulheres para uma guerra total significou conhecer
melhor a sua condição de saúde e fazer tudo o que fosse necessário para os
manter produtivos.
Após 1945, os Estados-providência europeus eram muito diversos na
quantidade de recursos que forneciam e na forma de os financiar. No entanto,
podem ser apontados alguns aspectos comuns. O fornecimento de serviços
sociais dizia sobretudo respeito à educação, à habitação e aos cuidados
médicos, para além das áreas urbanas de lazer, dos transportes públicos
subsidiados, da arte e da cultura publicamente financiadas e de outros
benefícios indirectos do Estado intervencionista. A segurança social consistia
sobretudo em seguros proporcionados pelo Estado contra a doença, o
desemprego, os acidentes de trabalho e os riscos associados à velhice. No
pós-guerra, todos os Estados europeus forneciam ou financiavam a maior
parte destes recursos, embora alguns mais do que outros.
As diferenças importantes residiam nos sistemas criados para pagar as
novas prestações públicas. Alguns países arrecadavam receitas através da
fiscalidade e forneciam cuidados e serviços gratuitos ou fortemente
subsidiados, sistema que foi escolhido na Grã-Bretanha, reflectindo a
preferência que na altura existia pelos monopólios do Estado. Noutros países,
eram pagos aos cidadãos subsídios em dinheiro segundo critérios de
elegibilidade socialmente determinados e sendo-lhes concedida a liberdade de
escolha dos respectivos serviços. Em França e em alguns países mais
pequenos, os cidadãos pagavam inicialmente alguns tipos de serviços
médicos, por exemplo, mas podiam depois pedir ao Estado o reembolso de
grande parte das suas despesas.
Estas diferenças reflectem a diversidade dos sistemas das finanças
nacionais e de contabilização, mas também traduzem escolhas estratégicas
fundamentais. Considerada isoladamente, a segurança social, por mais
generosa que fosse, não era, em princípio, politicamente radical, pois já vimos
como foi introduzida relativamente cedo até pelos regimes mais
conservadores. Os sistemas de previdência gerais são, no entanto,
intrinsecamente redistributivos. O seu carácter universal e a escala simples da
sua aplicação requerem a transferência de recursos, normalmente de natureza
fiscal, dos privilegiados para os menos favorecidos. Por isso, o Estado-
providência foi em si mesmo uma realização de natureza radical, e a
diversidade dos Estados-providência após 1945 reflectia, não apenas
procedimentos institucionais, mas também cálculos políticos.
Na Europa de Leste, por exemplo, os regimes comunistas, em geral, não
favoreceram habitualmente sistemas universais de previdência, depois de
1948. Não necessitavam de o fazer, porque tinham liberdade de redistribuir
imperativamente os recursos sem despender os escassos fundos do Estado em
serviços públicos. Os camponeses, por exemplo, eram muitas vezes excluídos
dos acordos de segurança e de pensões sociais, por motivos políticos. Na
Europa Ocidental, após 1945, apenas seis países – a Bélgica, a Itália, a
Noruega, a Áustria, a República Federal da Alemanha e o Reino Unido –
introduziram seguros obrigatórios e universais de desemprego. Continuaram a
existir esquemas voluntários subsidiados na Holanda, até 1949, em França,
até 1967, e na Suíça, até meados dos anos 70. Nos países católicos, os apoios
locais e comunais contra o desemprego, que existiam há muito tempo,
impediram, provavelmente, que se desenvolvessem sistemas universais de
segurança, por haver menos necessidade deles. Nos países em que o
desemprego no período entre as duas guerras foi particularmente traumático,
como foi o caso do Reino Unido e da Bélgica, as despesas com a previdência
foram motivadas, em parte, pela vontade de manter o pleno emprego, ou
quase. Nos países onde não foi tão significativo, como em França e em Itália,
por exemplo, tal facto deveu-se a outro equilíbrio de prioridades.
Embora a Suécia e a Noruega, mas não a Dinamarca, estivessem na
vanguarda da atribuição de prestações num amplo domínio de serviços sociais
e a Alemanha Ocidental mantivesse as prestações assistenciais herdadas dos
regimes anteriores (incluindo os programas da época nazi que tinham por
objectivo aumentar a taxa de natalidade), foi na Grã-Bretanha que foram
feitos os esforços mais ambiciosos para construir desde o princípio um
genuíno «Estado-providência». Em parte, esta abordagem reflectia a situação
singular do Partido Trabalhista, que obteve uma vitória absoluta nas eleições
de Julho de 1945 e que, não estando condicionado por parceiros de coligação,
ao contrário do que sucedia na maioria dos outros países europeus, tinha
liberdade para transformar em lei todo o seu programa eleitoral. Por outro
lado, era também o resultado das fontes muito diversas do reformismo
britânico.
No pós-guerra, a legislação social da Grã-Bretanha baseou-se num
justamente afamado relatório de Sir William Beveridge, elaborado ainda
durante a guerra, publicado em Novembro de 1942, e que se tornou num êxito
de vendas imediato. Beveridge nasceu em 1879, filho de um juiz britânico da
Índia imperial, e tinha a sensibilidade e as ambições dos grandes liberais
reformadores da Grã-Bretanha eduardiana. O seu relatório era desde logo um
libelo contra as injustiças sociais da sociedade britânica anterior a 1939 e
apresentava um modelo reformista completo a levar a cabo depois de
terminada a guerra. Nem mesmo o Partido Conservador ousou opor-se às suas
recomendações essenciais, tendo-se tornado a base moral dos elementos mais
populares e duradouros do programa trabalhista do pós-guerra.
Beveridge partiu de quatro pressupostos sobre as prestações de
previdência no pós-guerra, tendo sido todos incluídos na política britânica da
geração seguinte: deveria haver um serviço nacional de saúde, pensões de
reforma adequadas pagas pelo Estado, abonos de família e quase pleno
emprego. O último deles não era em si mesmo uma provisão do sistema de
previdência, mas sustentava tudo o mais, porque considerava que a situação
normal de um adulto saudável no pós-guerra era ter um emprego pago a
tempo inteiro. Com base neste pressuposto, poderiam ser atribuídas
prestações generosas de seguro de desemprego, pensões de reforma, abonos
de família e serviços médicos e outros, porque estes seriam pagos por
contribuições sobre os montantes dos salários, bem como por uma fiscalidade
progressiva sobre a população trabalhadora no seu conjunto.
As suas implicações foram significativas. As mulheres não trabalhadoras,
que não possuíam seguro privado de saúde, foram pela primeira vez
abrangidas. A humilhação e a dependência social da velha lei dos pobres e da
prova de meios terminaram: nas supostamente raras ocasiões em que o
cidadão do Estado-providência necessitasse de assistência pública, tinha
legalmente direito a ela. Os serviços médicos e dentários eram facultados sem
encargos aquando da sua prestação, as pensões de reforma tornaram-se
universais e foram introduzidos os abonos de família (a 5 shillings por
semana pelo segundo filho e seguintes). A principal lei do parlamento sobre
estas prestações recebeu aprovação real em Novembro de 1946 e o estatuto do
Serviço Nacional de Saúde (National Health Service – NHS), que constitui o
núcleo do sistema de previdência, foi aprovado pela lei de 5 de Julho de 1948.
O Estado-providência britânico foi o resultado quer de um ciclo de
reformas anteriores, com raízes nos Factory Acts de meados do século XIX,
quer de um começo realmente radical. O contraste entre a Grã-Bretanha de
Road to Wigan Pier, de George Orwell, obra publicada em 1937, e a da
resposta cortante («nunca se esteve tão bem») do primeiro-ministro
conservador Harold Macmillan a um interpelante, vinte anos mais tarde, é um
tributo ao Serviço Nacional de Saúde e às prestações de segurança social, bem
como à manutenção dos rendimentos e do emprego que o acompanharam.
Olhando hoje retrospectivamente para os erros de cálculo dos primeiros
reformadores do pós-guerra, é demasiado fácil minimizar e até negar o
alcance do que fizeram. Poucos anos depois, muitos dos benefícios gerais do
Serviço Nacional de Saúde revelaram-se insustentavelmente caros, a
qualidade dos serviços prestados não foi mantida ao longo dos anos e, com o
tempo, foi ficando claro que alguns dos pressupostos actuariais fundamentais,
incluindo a previsão optimista do pleno emprego, não estavam inteiramente
correctos, ou estavam mesmo errados. Todavia, quem quer que tenha crescido
na Grã-Bretanha do pós-guerra (como foi o caso do autor) tem boas razões
para estar grato ao Estado-providência.
O mesmo se pode dizer da geração do pós-guerra em todo o continente
europeu, embora fora da Grã-Bretanha não se tenha tentado uma cobertura
social geral em escala tão generosa e de uma só vez. Graças à introdução dos
Estados-providência, os europeus comiam mais e, na sua maioria, melhor,
viviam mais tempo, tinham vidas mais saudáveis, possuíam melhores
alojamentos e vestiam-se com mais qualidade do que alguma vez antes.
Acima de tudo, tinham mais segurança. Não foi por acaso que a maioria dos
europeus, quando se lhes perguntava o que pensavam dos seus serviços
públicos, falavam quase sempre em primeiro lugar da rede de segurança
constituída pelos seguros e pelas pensões de reforma que o Estado lhes
proporcionara no pós-guerra. Até na Suíça, um país abaixo dos padrões
europeus no que respeita a assistência social, a lei federal sobre o seguro da
terceira idade e familiares sobrevivos, de Dezembro de 1948, é considerada
por muitos cidadãos como uma das melhores realizações do seu país.
O Estado-providência não foi barato. Para países que ainda não tinham
recuperado da depressão dos anos 30 e das destruições provocadas pela
guerra, o seu custo foi muito considerável. A França, que dedicava 5% do seu
produto interno bruto (PIB) aos serviços sociais em 1938, destinava-lhe 8,2%
em 1949, um aumento de 64%. Na Grã-Bretanha, em 1949, cerca de 17% da
despesa pública era feita apenas com a segurança social (isto é, não incluindo
a provisão pública para serviços e instalações fora desta rubrica), um aumento
de 50% relativamente ao nível de 1938 numa altura de pressões graves sobre
as finanças do país. Mesmo em Itália, um país muito mais pobre, cujos
governos tentavam evitar a subida dos custos da segurança social, atribuindo
os serviços e as prestações ao sector privado e aos empregadores, as despesas
governamentais em serviços sociais subiram de 3,3% do PIB em 1938 para
5,2% em 1949.
Porque estariam os europeus desejosos de pagar tanto por seguros e outras
prestações de segurança social a longo prazo, numa época em que a vida era
ainda terrivelmente difícil e as carências materiais endémicas? A primeira
razão é que, precisamente porque os tempos eram difíceis, os sistemas de
segurança social do pós-guerra eram uma garantia de um mínimo de justiça
ou equidade. Não era a revolução espiritual e social com que sonharam
muitos dos que pertenceram à resistência armada, mas foi um primeiro passo
para ultrapassar a ausência de esperança e o cinismo dos anos anteriores à
guerra.
Em segundo lugar, os Estados-providência da Europa Ocidental não
suscitavam discordâncias políticas. A sua intenção geral, para alguns mais do
que para outros, era operar uma redistribuição social, e não era, de modo
algum, revolucionária: não «batiam nos ricos». Pelo contrário, embora a
maior vantagem imediata fosse sentida pelos pobres, quem beneficiou, de
facto, a longo prazo, foi a classe média profissional e comercial. Em muitos
casos, os seus elementos não tinham antes direito a assistência médica no
trabalho, nem a subsídios de desemprego ou a pensões de reforma, e foram
obrigados, antes da guerra, a adquirir esses serviços e benefícios ao sector
privado. Agora, tinham total acesso a eles, gratuitamente ou a baixo custo.
Cumulativamente com o ensino secundário e superior fornecido aos seus
filhos pelo Estado, de forma gratuita ou subsidiada, houve uma melhoria da
qualidade de vida e um aumento do rendimento disponível dos profissionais
assalariados e das classes administrativas. Longe de colocar as classes sociais
em conflito, o Estado-providência europeu aproximou-as mais do que nunca,
por ser de interesse comum a sua preservação e defesa.
No entanto, a base de apoio mais importante para a assistência e os
serviços sociais fornecidos pelo Estado foi a consciência popular de que tal
era uma tarefa própria do governo. O Estado do pós-guerra era um Estado
«social», com uma responsabilidade implícita (e, por vezes,
constitucionalmente explícita) pelo bem-estar dos seus cidadãos. O Estado
tinha obrigação, não apenas de facultar as instituições e os serviços
necessários a um país convenientemente regulamentado, seguro e próspero,
mas também de melhorar as condições da população, avaliadas por um leque
de indicadores amplo e cada vez mais alargado. Saber se podia satisfazer
todas estas exigências era outro assunto.
Obviamente, seria mais fácil atingir os ideais do Estado social «do berço à
cova» com a população reduzida de um país rico e homogéneo como a
Suécia, do que num como a Itália. Mas a fé no Estado era tão grande nos
países pobres como era nos ricos, e talvez fosse ainda maior, porque naqueles
apenas o Estado poderia dar esperança ou proporcionar salvação a grande
parte da população. Aliás, depois da Depressão, da ocupação e da guerra civil,
o Estado, enquanto agente de assistência social, segurança e equidade, era um
factor vital de coesão comunitária e social. Muitos comentadores tendem hoje
a ver a propriedade do Estado e a dependência face a este como constituindo
o problema europeu e ideia da salvação vinda de cima como uma ilusão
própria de uma época. Todavia, à geração de 1945 parecia que o único
caminho sensato para evitar cair no abismo era alguma forma de equilíbrio
prático entre as liberdades políticas e a função distributiva racional e
equitativa do Estado administrativo.
O anseio de mudança depois de 1945 foi muito além da prestação de
assistência social. Os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial
constituíram uma espécie de Época de Reforma, durante a qual muitos
problemas que há longo tempo se arrastavam foram tardiamente enfrentados.
Um dos mais importantes era a reforma agrária, que muitos dos mais bem
informados na altura consideravam o dilema mais urgente da Europa. O peso
do passado ainda se fazia sentir fortemente sobre os camponeses europeus.
Apenas em Inglaterra, nos Países Baixos, na Dinamarca, nas terras alpinas e
em algumas áreas da França, se poderia falar de uma classe de agricultores
próspera e independente. A esmagadora maioria da população rural europeia –
que ainda predominava no total da população – vivia em condições de penúria
endividada.
Para esta situação contribuiu o facto de vastas áreas da melhor terra arável
e, sobretudo, das melhores pastagens permanecerem nas mãos de um número
relativamente reduzido de proprietários ricos, muitos vezes ausentes e
contrários a qualquer melhoria das condições das suas terras, dos seus
rendeiros ou dos seus trabalhadores. Outro factor foi o longo declínio dos
preços agrícolas em relação aos industriais, um processo exacerbado desde os
anos 70 do século XIX com a importação a preços baixos de cereais e, mais
tarde, de carne das Américas e dos domínios britânicos. Nos anos 30 do
século XX, os camponeses europeus conviviam há cerca de três gerações com
esta deterioração contínua das suas condições. Provenientes da Grécia, do Sul
da Itália, dos Balcãs e da Europa Central e de Leste, muitos deles emigraram
para os Estados Unidos, a Argentina e outros países. Os que permaneceram
foram muitas vezes presas fáceis dos demagogos nacionalistas e fascistas. A
seguir à guerra, era crença generalizada, particularmente entre a esquerda, que
o fascismo fazia sobretudo apelo a camponeses desesperados e que o seu
possível redespertar na Europa começaria no campo. O problema agrário
apresentava, assim, um duplo aspecto: como melhorar as perspectivas dos
camponeses e, portanto, como afastá-los da tentação autoritária.
O primeiro objectivo já fora tentado depois da Primeira Guerra Mundial,
com uma série de reformas agrárias, nomeadamente na Roménia e em Itália,
mas, para além destes países, em toda a parte, em maior ou menor escala. As
suas metas eram redistribuir as grandes propriedades, reduzir o número de
«microfúndios» (terrenos ineficientes) e facultar aos agricultores uma melhor
oportunidade de produzir com eficiência para o mercado. Todavia, estas
reformas não alcançaram as suas metas, em parte porque, nas desastrosas
circunstâncias económicas do período entre as duas guerras, com os preços a
cair ainda mais rapidamente do que antes de 1914, os camponeses
proprietários «recém-independentes» ficaram, de facto, mais vulneráveis do
que nunca.
Após a Segunda Guerra Mundial, tentou-se de novo realizar a reforma
agrária. Numa lei romena de reforma da terra, de Março de 1945, foram
retirados um milhão de hectares das mãos dos kulaks e dos «criminosos de
guerra» e distribuídos a mais de 600 000 camponeses que até aí eram pobres
ou não possuíam terras. Na Hungria (onde o regime do almirante Horthy, no
período entre as duas guerras, bloqueara as redistribuições de terras que
tivessem área significativa) foi expropriado um terço da área do país de
acordo com o programa Szeged, de Dezembro de 1944, aprovado pelo
governo provisório de coligação do pós-guerra. O governo da Frente Nacional
Checoslovaca, resultante da Segunda Guerra Mundial, elaborou no mesmo
ano um projecto de programa semelhante e, em conformidade, nos primeiros
meses do pós-guerra redistribuiu grandes áreas de terra, sobretudo
explorações retiradas aos Alemães dos Sudetas e aos Húngaros. Entre 1944 e
1947, todos os países da Europa de Leste assistiram à criação de uma
numerosa classe de pequenos proprietários, gratos às novas autoridades pelas
terras que receberam. Alguns anos depois, estes mesmos pequenos
proprietários seriam por sua vez expropriados pelos regimes comunistas,
devido à sua política de colectivização. Ao mesmo tempo, aliás,
desapareceram classes inteiras da pequena nobreza terratenente e de grandes
proprietários da Polónia, da Prússia Oriental, da Hungria, da Roménia e da
Jugoslávia.
Na Europa Ocidental, apenas no Sul da Itália se assistiu a algo de
comparável às mudanças que aconteceram mais a leste. Em 1950, leis de
reformas radicais sancionaram a redistribuição de propriedades fundiárias em
toda a Sicília e no Mezzogiorno, depois de confiscações e ocupações de terras
em Basilicata, nos Abruzzi e na Sicília. Todavia, pouco mudou com toda esta
agitação: grande parte das terras redistribuídas que pertenciam aos antigos
latifúndios carecia de água, estradas e habitações. Dos 74 000 hectares
redistribuídos na Sicília após a Segunda Guerra Mundial, 95% eram
constituídos por terras «marginais» ou inferiores, impróprias para o cultivo.
Os camponeses empobrecidos a quem foram oferecidas não tinham dinheiro
nem qualquer acesso a crédito. Pouco podiam fazer com as suas novas
propriedades. A reforma da terra na Itália falhou. O objectivo que anunciou, a
solução da «Questão do Sul», só seria alcançado uma década mais tarde e
mesmo então apenas parcialmente, quando os camponeses, em excesso no
Sul, abandonaram os campos e foram procurar trabalho nas cidades do Norte,
as do «milagre» italiano, que estavam em rápido crescimento.
Mas o Sul da Itália era um caso difícil. Em França e em outros países,
novos direitos legais concedidos aos rendeiros deram-lhes um incentivo para
investir nas pequenas propriedades que exploravam, ao mesmo tempo que
sistemas de crédito e bancos agrícolas inovadores tornaram possível fazê-lo.
Sistemas de apoio aos preços agrícolas, subsidiados pelo Estado, contribuíram
para inverter o declínio que neles se registava havia décadas, e encorajaram os
agricultores a produzir o máximo que lhes era possível, ao mesmo tempo que
lhes era garantida a compra da produção a um preço mínimo fixado.
Entretanto, no pós-guerra, a procura de trabalho sem precedentes que se
verificava nas cidades absorveu os trabalhadores excedentários das regiões
mais pobres, permitindo uma população agrícola mais eficiente e com menos
bocas para alimentar.
Os aspectos políticos da questão agrária foram indirectamente
contemplados no pacote mais alargado de reformas políticas introduzido nos
primeiros anos do pós-guerra. Muitas destas reformas foram de natureza
constitucional, completando uma vez mais a tarefa inacabada de 1918. Em
Itália, em França e na Bélgica foi finalmente concedido às mulheres o direito
de voto. Em Junho de 1946, os Italianos votaram a favor da República, mas a
margem foi estreita (12,7 milhões a favor da abolição da monarquia, 10,7 a
favor da sua manutenção) e as divisões históricas do país foram talvez ainda
mais exacerbadas pelo resultado: o Sul, excepto na região de Basilicata, votou
esmagadoramente a favor do rei (com uma proporção de 4 para 1 em
Nápoles).
Os Gregos, pelo contrário, votaram em Setembro de 1946 a favor da
manutenção da sua monarquia. Os Belgas também mantiveram a sua, mas
afastaram o titular, o rei Leopoldo III, como castigo pela sua cooperação com
os nazis. Esta decisão, tomada sob pressão pública em 1950 e contra o desejo
de uma ligeira maioria da população, dividiu fortemente o país segundo linhas
comunitárias e linguísticas: os Valões francófonos votaram a favor do
afastamento de Leopoldo do trono, ao passo que 72% dos Flamengos de
língua holandesa expressaram a sua preferência pela permanência do rei. Os
Franceses não dispunham de rei sobre o qual pudessem exorcizar a memória
das suas humilhações da guerra e, em 1946, votaram apenas a substituição da
desgraçada III República pela IV. Tal como a Lei Básica alemã de 1949, a
constituição da IV República foi concebida para eliminar, tanto quanto fosse
possível, o risco de qualquer cedência às tentações autoritárias ou cesaristas,
aspiração que se revelaria um fracasso evidente.
As assembleias provisórias ou constituintes, que aprovaram estas
constituições do pós-guerra, propuseram à população referendos sobre tópicos
controversos e votaram reformas institucionais importantes que tendiam, na
sua maior parte, a ser de esquerda. Em Itália, em França e na Checoslováquia,
os partidos comunistas obtiveram bons resultados depois da guerra. Nas
eleições italianas de 1946, o Partito Comunista Italiano (PCI) obteve 19% dos
votos e o Parti Communiste Français (PCF) teve 28,6% nas segundas eleições
francesas desse ano, o seu melhor resultado de sempre. Na Checoslováquia,
nas eleições livres de Maio de 1946, os comunistas asseguraram 38% da
votação nacional (40% no território checo). Em outros países, os comunistas
não tiveram tanto êxito em eleições livres, mas foi superior ao que alguma
vez viriam a registar depois, indo de 13% na Bélgica a apenas 0,4% no Reino
Unido.
A influência política inicial dos comunistas na Europa Ocidental nasce da
sua associação com os partidos socialistas, a maioria dos quais teve
relutância, antes de 1947, em quebrar as alianças do tipo Frente Popular que
se reformularam nos movimentos de resistência. Os partidos socialistas em
França e em Itália conseguiram resultados quase tão bons quanto os
comunistas nas primeiras eleições do pós-guerra e consideravelmente
melhores na Bélgica. Na Escandinávia, os sociais-democratas ultrapassaram
em muito todos os outros partidos, obtendo entre 38% e 41% dos votos na
Dinamarca, na Noruega e na Suécia nas eleições realizadas entre 1945 e 1948.
No entanto, fora da Grã-Bretanha e dos países nórdicos, a «velha
esquerda» de comunistas e socialistas nunca conseguiu governar sozinha. Na
Europa Ocidental, o equilíbrio foi quase sempre mantido, e em muitos casos
dominado, por um novo animal político, os partidos democratas-cristãos. Os
partidos católicos eram conhecidos na Europa continental: há muito tempo
que prosperavam na Holanda e na Bélgica. A Alemanha de Guilherme I, de
Guilherme II e de Weimar, tinha um Partido Católico do Centro e a ala
conservadora da política austríaca esteve muito tempo associada ao católico
Partido Popular. A própria «democracia-cristã» não era uma ideia totalmente
nova: a sua origem reside no reformismo católico e nos movimentos católicos
centristas do início do século XX, que tentaram sem sucesso uma via própria
nos anos turbulentos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial. Todavia,
após 1945, a situação era muito diferente, favorecendo-os totalmente.
Em primeiro lugar, estes partidos, sobretudo a União Democrata-Cristã
(CDU) na Alemanha Ocidental, os Democratas-Cristãos (DC) em Itália e o
Movimento Republicano Popular (MRP) em França, tinham, nesta altura,
quase o monopólio dos votos católicos. Na Europa de 1945, isso ainda era
muito importante: os votos católicos mantinham-se fortemente conservadores,
sobretudo quanto às questões sociais e nas regiões onde havia uma forte
prática católica. Os eleitores católicos tradicionais em França, na Bélgica, na
Holanda e no Sul e Oeste da Alemanha raramente votariam nos socialistas e
quase nunca nos comunistas. No entanto, e esta era a peculiaridade da época
do pós-guerra, os católicos conservadores de muitos países não tinham muitas
vezes alternativa a votar nos democratas-cristãos, apesar da tendência
reformista dos políticos e das políticas desta orientação, porque os partidos
convencionais de direita, ou estavam sob suspeita, ou tinham sido
completamente banidos. Até os conservadores não católicos se viravam cada
vez mais para os democratas-cristãos como barreira contra a esquerda
«marxista».
Em segundo lugar, e por razões que se relacionavam com as primeiras, os
partidos democratas-cristãos eram os maiores beneficiários dos votos das
mulheres: em 1952, em França, cerca de dois terços das mulheres católicas
praticantes votavam no MRP. Não há dúvida de que a influência do púlpito
desempenhava aqui um papel. Porém, uma grande parte da atracção das
mulheres pelos partidos democratas-cristãos resultava do seu programa. Em
contraste com o tom cronicamente insurreccional da retórica usada até pelos
partidos socialistas e comunistas mais moderados, os democratas-cristãos
proeminentes, como Maurice Schumann e Georges Bidault em França, Alcide
De Gasperi em Itália e Konrad Adenauer na República Federal da Alemanha,
sempre puseram a ênfase na reconciliação e na estabilidade.
A democracia-cristã evitou os apelos baseados em classes sociais e
enfatizou, em vez disso, as reformas sociais e morais. Insistiu sobretudo na
importância da família, um tema propriamente cristão e com implicações
políticas importantes numa época em que as necessidades das famílias
monoparentais, dos sem-abrigo e das famílias na pobreza nunca tinham sido
tão grandes. Assim, os partidos democratas-cristãos estavam em posição ideal
para obter vantagens a partir de quase todos os aspectos das condições de vida
do pós-guerra: o desejo de estabilidade e de segurança, a expectativa de
renovação, a ausência de alternativas tradicionais de direita e as expectativas
investidas no Estado, porque, ao contrário dos políticos católicos
convencionais da geração anterior, os líderes dos partidos democratas-cristãos
e os seus jovens seguidores mais radicais não se coibiam de envolver o poder
deste último na realização dos seus objectivos. Quando muito, os democratas-
cristãos dos primeiros anos do pós-guerra consideravam que os seus
principais opositores eram os liberais adeptos do mercado livre, e não a
esquerda colectivista, e desejavam demonstrar que o Estado moderno podia
ser adaptado a formas não socialistas de intervenção benéfica.
Consequentemente, em Itália e na Alemanha Ocidental, os partidos
democratas-cristãos asseguraram (com alguma ajuda americana) durante
muitos anos um quase monopólio do poder político. Em França, graças ao
efeito corrosivo de duas guerras coloniais, seguidas pelo regresso do general
De Gaulle ao poder, o MRP obteve resultados não tão bons. Todavia,
continuou a ser o árbitro do poder até meados dos anos 50, exigindo sem
oposição determinados ministérios cruciais (designadamente o dos Negócios
Estrangeiros). Partidos católicos de inclinação democrata-cristã exerceram o
poder sem interrupções durante mais de uma geração nos países do Benelux e
até aos anos 70 na Áustria.
Os líderes dos partidos democratas-cristãos, como o britânico Winston
Churchill, eram homens de um tempo mais antigo: Konrad Adenauer nasceu
em 1876, Alcide De Gasperi cinco anos mais tarde, o próprio Churchill em
1874. Este facto não era mera coincidência nem curiosidade biográfica. Em
1945, muitos países da Europa continental haviam perdido duas gerações de
líderes potenciais: a primeira morreu ou ficou ferida na Grande Guerra, a
segunda caiu na tentação do fascismo ou então foi morta às mãos dos nazis e
dos seus colaboradores. Esta escassez evidenciou-se nestes anos na qualidade,
em geral bastante medíocre, dos políticos mais novos. Palmiro Togliatti (que
passara a maior parte dos vinte anos anteriores como operacional político em
Moscovo) foi uma excepção. O que cativava particularmente em Léon Blum,
que regressara à vida pública francesa depois de ter sido preso por Vichy e
internado em Dachau e Buchenwald, não era só o seu heroísmo, mas também
a sua idade (nascera em 1872).
Pode parecer muito estranho à primeira vista que uma parte tão
significativa da reabilitação da Europa do pós-guerra fosse obra de homens
que haviam atingido a maturidade e entrado na política muitas décadas antes.
Churchill, que entrou pela primeira vez para o parlamento em 1901, sempre
se apresentou a si mesmo como um «filho da época vitoriana». Também
Clement Attlee era um vitoriano, nascido em 1883. Mas talvez tudo isto não
nos deva surpreender. Em primeiro lugar, estes homens mais velhos eram
excepcionais por terem sobrevivido política e eticamente incólumes a 30 anos
de perturbações, ou seja, com a sua credibilidade política incrementada,
digamos assim, por serem raros. Em segundo lugar, vieram todos da notável
geração de reformadores sociais europeus que atingiram a maturidade entre
1880 e 1910, fossem socialistas (Blum e Attlee), liberais (Beveridge e o
futuro presidente italiano Luigi Einaudi, que nasceu em 1874) ou católicos
progressistas (De Gasperi e Adenauer). Os seus instintos e interesses eram
bastante adequados ao estado de espírito do pós-guerra.
Mas, em terceiro lugar, e talvez mais importante, os homens mais velhos
que reconstruíram a Europa Ocidental representaram a continuidade. No
período que decorreu entre as duas guerras, a moda favorecera o novo e o
moderno. Os parlamentos e as democracias eram considerados por muitos, e
não apenas pelos fascistas e os comunistas, como decadentes, estagnados,
corruptos e, em todo o caso, inadequados às tarefas do Estado moderno. A
guerra e a ocupação dissiparam estas ilusões nos eleitores, se não nos
intelectuais. À luz fria da paz, os compromissos aborrecidos da democracia
constitucional ganharam um novo atractivo. Aquilo por que a maioria das
pessoas ansiava em 1945 era, decerto, o progresso e a renovação social, mas
associados à segurança de fórmulas políticas estáveis e familiares. Se a
Primeira Guerra Mundial originara um efeito de politização e radicalização, a
sua sucessora tivera o efeito contrário: um anseio profundo pela normalidade.
Os homens de Estado cuja experiência remontava às décadas conturbadas
entre as duas guerras e vinha ainda da era mais definida e autoconfiante
anterior a 1914 tinham, por isso, um atractivo particular. Com a continuidade
da sua pessoa podiam facilitar a transição difícil da política demasiado
empolada do passado recente para a era de rápidas transformações sociais que
se aproximava. Independentemente do seu «rótulo» partidário, em 1945, os
estadistas europeus de idade mais avançada eram todos uns praticantes
cépticos e pragmáticos da arte do possível. Este afastamento pessoal dos
dogmas demasiado confiantes da política do período entre as duas guerras
reflectia fielmente o estado de espírito dos seus apoiantes eleitorais.
Começava uma época «pós-ideológica».
As perspectivas de estabilidade política e de reforma social na Europa
depois da Segunda Guerra Mundial dependiam da recuperação da economia
do continente. Por maiores que fossem, não havia planeamento estatal nem
liderança política que pudessem evitar a tarefa gigantesca que os europeus
enfrentavam em 1945. O impacto económico mais óbvio da guerra
relacionava-se com a disponibilidade de alojamento. Os prejuízos em
Londres, onde foram destruídas 3,5 milhões de habitações na área
metropolitana, foram maiores do que os provocados pelo grande incêndio de
1666. Em Varsóvia, foram destruídas 90% das habitações. Em 1945, apenas
27% dos edifícios habitacionais de Budapeste podiam ser utilizados.
Perderam-se 40% dos alojamentos alemães, 30% dos britânicos e 20% dos
franceses. Em Itália, foram destruídas 1 200 000 habitações, a maioria em
cidades de 50 000 ou mais habitantes. O problema da falta de casas, como
vimos, foi talvez a consequência mais óbvia no imediato pós-guerra: na
Alemanha Ocidental e na Grã-Bretanha esta carência durou até meados dos
anos 50.
Uma mulher da classe média à saída de uma exposição sobre as habitações
no pós-guerra, realizada em Londres, disse: «Estou tão desesperadamente a
necessitar de casa que ficaria com o que quer que fosse. Quatro paredes e um
tecto são tudo o que ambiciono»(3).
A segunda área que sofreu destruição evidente foi a dos transportes: navios
mercantes, linhas de caminho-de-ferro, material circulante, pontes, estradas,
canais e eléctricos. Não havia qualquer ponte sobre o Sena entre Paris e o
mar, e apenas uma ficou intacta no Reno. Em consequência, mesmo que as
minas e as fábricas pudessem produzir os bens necessários, não os podiam
transportar. Por exemplo, muitas minas de carvão europeias estavam
novamente a funcionar em Dezembro de 1945, mas a cidade de Viena estava
ainda sem carvão.
O impacto visual foi o pior: muitos países pareciam ter sido bombardeados
e destruídos para além de qualquer esperança de recuperação. Para além
disso, era verdade que em quase todos os países europeus envolvidos na
Segunda Guerra Mundial as economias estavam estagnadas ou em recessão
quando comparadas até com os resultados medíocres dos anos entre as duas
guerras. Todavia, a guerra nem sempre é um desastre económico. Pelo
contrário, pode constituir um estímulo poderoso para um rápido crescimento
em alguns sectores. Graças à Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos da
América alcançaram uma posição de liderança inexpugnável do ponto de
vista comercial e tecnológico, de forma muito semelhante à da Grã-Bretanha
durante as guerras napoleónicas.
De facto, como os sobreviventes em breve verificaram, o impacto
económico destrutivo da guerra contra Hitler não foi tão geral quanto
pensaram de início, mesmo na própria Alemanha. A campanha de
bombardeamentos, apesar de todos os seus custos humanos, provocou uma
menor destruição económica do que os seus proponentes esperavam. Pouco
mais de 20% das instalações industriais alemãs estavam destruídas em Maio
de 1945. Mesmo no Ruhr, onde se concentraram muitos dos
bombardeamentos aliados, dois terços de todas as fábricas e da maquinaria
permaneceram intactos. Em outros países, como a Checoslováquia, por
exemplo, a indústria e a agricultura prosperaram sob a ocupação alemã e
surgiram praticamente intactas. A Eslováquia (tal como algumas áreas da
Hungria) assistiu a uma industrialização acelerada durante os anos da guerra e
saiu realmente dela melhor do que estava antes.
A natureza dramaticamente colateral de muitas das destruições – de tal
forma que foram as pessoas e as localidades que mais sofreram, enquanto as
fábricas e as mercadorias foram relativamente poupadas – contribuiu para
uma recuperação inesperadamente rápida dos sectores económicos
fundamentais depois de 1945. As indústrias de engenharia floresceram
durante a guerra. O Reino Unido, a URSS, a França, a Itália e a Alemanha
(bem como o Japão e os Estados Unidos) acabaram todos com um stock de
máquinas que era superior àquele com que iniciaram a guerra. Em Itália,
apenas as indústrias aeronáutica e de construção naval sofreram danos graves.
As firmas de engenharia, situadas no Norte e, por isso, longe das áreas de
combate da campanha italiana, tiveram um desempenho muito bom (tal como
tiveram na Primeira Guerra Mundial), com a sua produção e o seu
investimento a mais do que compensarem quaisquer danos que pudessem ter
tido. Quanto à indústria de máquinas-ferramentas no que viria a ser a
Alemanha Ocidental, perdeu apenas 6,5% do seu equipamento devido a danos
de guerra.
Em alguns países, é claro, não houve danos de guerra. A Irlanda, a
Espanha, Portugal, a Suíça e a Suécia permaneceram neutrais durante o
conflito. Isso não significa que não foram afectados por ela. Pelo contrário. A
maioria dos países europeus neutrais esteve intimamente empenhada, embora
de forma indirecta, no esforço de guerra nazi. Durante a guerra, a Alemanha
dependia fortemente da Espanha de Franco para o fornecimento de
manganésio. O tungsténio chegava à Alemanha, via Lisboa, vindo das
colónias portuguesas. Durante a guerra, 40% das necessidades alemãs de
minério de ferro eram satisfeitas pela Suécia (com descarregamentos nos
portos alemães a partir de navios suecos). Todos estes fornecimentos eram
pagos em ouro, muito do qual roubado às vítimas da Alemanha e canalizado
através da Suíça.
Os Suíços fizeram mais do que intervir na lavagem de dinheiro e funcionar
como intermediários nos pagamentos efectuados pela Alemanha, o que, em si
mesmo, constituiu uma contribuição substancial para a guerra de Hitler. Em
1941-1942, 60% da indústria de munições, 50% da indústria óptica e 40% da
produção de engenharia da Suíça destinavam-se à Alemanha, que pagava em
ouro. A pequena firma de armamento Bührle-Oerlikon ainda vendia armas de
tiro rápido à Wehrmacht em Abril de 1945. É consensual que durante a
Segunda Guerra Mundial o Reichsbank alemão depositou na Suíça ouro
equivalente a 1 638 000 000 de francos suíços. Aliás, foram as autoridades
suíças que, antes do início do conflito, pediram que os passaportes alemães
indicassem se os seus titulares eram ou não judeus, para melhor restringirem
as chegadas indesejadas.
As autoridades suíças podiam alegar em sua defesa ter boas razões para
manter a amizade dos nazis. Embora o alto-comando da Wehrmacht tivesse
adiado os seus planos de Junho de 1944 para invadir a Suíça, nunca os
abandonou. A experiência da Bélgica e da Holanda era um cruel aviso do
destino que aguardava os Estados neutrais vulneráveis que fossem apanhados
no caminho de Hitler. Por razões semelhantes, os Suecos também
aumentaram a sua cooperação com Berlim, de quem dependiam
historicamente para importar carvão. Vender minério de ferro à Alemanha era
algo que a Suécia fazia há muitos anos: mesmo antes da guerra, metade das
importações alemãs efectuava-se através do Báltico e três quartos das
exportações suecas iam para a Alemanha. Em todo o caso, a neutralidade
sueca há muito que se inclinava para a Alemanha por receio das ambições
russas. A cooperação com os nazis, que permitiu o trânsito de 14 700 soldados
da Wehrmacht no início da operação Barba Ruiva, a passagem dos soldados
alemães que, de licença, deixavam a Noruega a caminho de casa e o
adiamento do recrutamento dos trabalhadores das minas de ferro para
assegurar as entregas regulares à Alemanha, não constituiu, por isso, um
afastamento em relação à prática habitual.
Depois da guerra, os Suíços (mas não os Suecos) foram de início objecto
de suspeitas ressentidas, no plano internacional, como cúmplices do esforço
de guerra alemão. Nos Acordos de Washington, de Maio de 1946, viram-se
constrangidos a oferecer uma contribuição «voluntária» de 250 milhões de
francos suíços para a reconstrução europeia como pagamento final de todas as
reclamações relacionadas com as transacções do Reichsbank através dos
bancos suíços. Todavia, nesta altura a Suíça já estava reabilitada como uma
ilha próspera de rectidão fiscal e com bancos altamente lucrativos e
explorações agrícolas e indústrias de engenharia que forneciam alimentos e
maquinaria para os necessitados mercados europeus.
Antes da guerra, nem a Suíça nem a Suécia eram particularmente
prósperas. Na verdade, tinham áreas significativas de pobreza rural. Mas o
avanço que ganharam no decurso da guerra revelou-se duradouro: ambos os
países estão hoje no topo da Europa e há quatro décadas que nele
permanecem. Em outros países a recuperação foi um pouco mais difícil.
Todavia, mesmo na Europa de Leste, pelo menos a infra-estrutura económica
foi reparada com notável rapidez. Apesar dos esforços destrutivos da
Wehrmacht em retirada e do Exército Vermelho que avançava, as pontes, as
estradas, os caminhos-de-ferro e as cidades da Hungria, da Polónia e da
Jugoslávia foram reconstruídos. Em 1947, as redes de transportes e o material
circulante da Europa Central tinham atingido ou ultrapassado os seus níveis
anteriores à guerra. Na Checoslováquia, na Bulgária, na Albânia e na
Roménia, onde havia menos destruição relacionada com a guerra, este
processo levou menos tempo do que na Jugoslávia ou na Polónia. Contudo,
até mesmo a economia da Polónia recuperou bastante rápido, em parte porque
os territórios recentemente retirados à Alemanha eram de facto mais férteis e
possuíam cidades industriais e fábricas mais bem apetrechadas.
Também na Europa Ocidental os danos materiais foram reparados com
uma rapidez assinalável. Em geral, a Bélgica foi a mais célere, a França, a
Itália e a Noruega foram algo mais lentas e a Holanda – onde as piores
destruições dirigidas contra as explorações agrícolas, os diques, as estradas,
os canais e as pessoas aconteceram nos últimos meses da guerra – foi a mais
lenta de todas. Os Belgas beneficiaram do estatuto privilegiado de Antuérpia
como o único grande porto europeu que estava mais ou menos intacto no fim
da guerra e da elevada concentração de tropas aliadas no seu país, canalizando
um fluxo constante de moedas fortes para a economia, que há muito se
especializara em carvão, cimento e metais semiacabados, produtos que eram
vitais para a tarefa da reconstrução.
Pelo contrário, a Noruega estava consideravelmente pior. Durante a guerra,
perdera metade das frotas de pesca e de comércio, que eram essenciais para o
país. Graças à deliberada destruição alemã, levada a cabo no decurso da
retirada da Wehrmacht, a produção industrial da Noruega em 1945 era apenas
57% do seu nível de 1938, tendo-se perdido aproximadamente um quinto do
capital do país. Em anos posteriores, o contraste do país com a Suécia não
deixou de ser estabelecido com azedume pelos Noruegueses. Mas, no final de
1946, até a Noruega pudera recuperar a maior parte das suas redes de
caminhos-de-ferro e de estradas e, no decurso do ano seguinte, a escassez de
combustíveis e as comunicações inadequadas já não constituíam um
impedimento à recuperação económica (o mesmo se podendo dizer quer da
Europa Ocidental quer da maior parte da Europa de Leste).
Porém, aos observadores contemporâneos, foi a recuperação da Alemanha
que pareceu a mais notável de todas. Foi uma recompensa pelos esforços da
população do país, que trabalhou com uma determinação única para o
objectivo de reconstruir o seu país devastado. No dia em que Hitler morreu,
estavam operacionais 10% dos caminhos-de-ferro e o país estava literalmente
paralisado. Um ano depois, em Junho de 1946, tinham sido reabertas 93% das
linhas de caminho-de-ferro e reconstruídas 800 pontes. Em Maio de 1945, a
produção alemã de carvão mal atingia 10% da que fora em 1939. Um ano
depois, tinha quintuplicado. Em Abril de 1945, parecera a Saul K. Padover,
um observador que acompanhava o exército americano em progressão na
Alemanha Ocidental, que levaria seguramente 20 anos para reconstruir a
cidade de Aachen, que fora arrasada. Porém, algumas semanas depois, já
Padover registava a reabertura das fábricas têxteis e de pneus e o reatar da
vida económica.
Uma das razões da rapidez da recuperação inicial da Alemanha foi que,
após a reconstrução das casas dos trabalhadores e de as redes de transporte
terem sido repostas, a indústria estava mais do que preparada para entregar os
produtos. Nas instalações da Volkswagen, 91% da maquinaria saíra incólume
dos bombardeamentos da guerra e das pilhagens do pós-guerra e, em 1948, a
fábrica estava equipada para produzir 50% dos carros construídos na
Alemanha. A Ford registou poucos danos na Alemanha. Graças ao
investimento durante a guerra, um terço do equipamento industrial alemão
tinha menos de cinco anos em 1945, quando representava apenas 9% em
1939. Por outro lado, as indústrias em que a Alemanha investira durante a
guerra – a óptica, a química, as máquinas ligeiras, os veículos, os metais não
ferrosos – foram precisamente aquelas que formariam a base do boom dos
anos 50. No início de 1947, o principal obstáculo à recuperação alemã já não
eram os danos causados pela guerra, mas sim a falta de matérias-primas e
outros produtos e, sobretudo, a incerteza que pairava sobre o futuro político
do país.
O ano de 1947 revelar-se-ia fundamental, a chave de que dependia o
destino do continente. Até então, os europeus tinham-se consumido em
reparações e reconstruções, ou estiveram ocupados a criar a infra-estrutura
institucional para a recuperação a longo prazo. Nos primeiros dezoito meses
após a vitória aliada, o estado de espírito do continente passou do alívio com a
mera perspectiva da paz e de um novo começo, para uma resignação
permanente e uma crescente desilusão face à magnitude das tarefas que ainda
era necessário realizar. No início de 1947, parecia evidente que as decisões
mais difíceis ainda não tinham sido tomadas e que não podiam ser adiadas por
mais tempo.
Em primeiro lugar, o problema fundamental da alimentação ainda não fora
ultrapassado. A escassez de alimentos era geral, excepto na Suécia e na Suíça.
Só os fornecimentos da UNRRA realizados na Primavera de 1946 impediram
os Austríacos de passar fome nos doze meses seguintes. O fornecimento
diário de calorias por adulto na zona britânica da Alemanha desceu de 1500
em meados de 1946 para 1050 no início de 1947. Os Italianos, que sofreram
dois anos consecutivos de fome em 1945 e 1946, registavam, na Primavera de
1947, os níveis mais baixos de alimentação em toda a Europa Ocidental. Nos
inquéritos de opinião franceses realizados em 1946, a comida, o pão e a carne
ultrapassavam tudo o mais como preocupação pública prioritária.
Parte do problema residia no facto de a Europa Ocidental não se poder
agora virar para os celeiros da Europa de Leste, de que tradicionalmente
dependia, porque também aqui não havia o suficiente para comer. Na
Roménia, em 1945, as colheitas foram um fracasso, devido a reformas
agrárias mal conduzidas e ao mau tempo. Do Oeste da Valáquia até ao Oeste
da Ucrânia e à região soviética do médio Volga, passando pela Moldávia, as
colheitas reduzidas e a seca provocaram, no Outono de 1946, uma situação
que era quase de fome, com as instituições de auxílio a verificarem a
existência de crianças de um ano de idade com apenas três quilos de peso e a
relatarem casos de canibalismo. Os trabalhadores humanitários na Albânia
descreveram a situação vivida como sendo de «angústia terrível».
Veio então o Inverno brutal de 1947, o pior desde 1880. Os canais
gelaram, as estradas ficaram intransitáveis durante semanas a fio, alguns
pontos gelados paralisaram redes inteiras de caminhos-de-ferro. A incipiente
recuperação do pós-guerra foi dolorosamente interrompida. O carvão, cuja
oferta ainda era insuficiente, não conseguia satisfazer a procura interna e, em
todo o caso, não podia ser transportado. A produção industrial entrou em
crise: a produção de aço, que começara a recuperar, desceu subitamente mais
de 40% em relação ao ano anterior. Quando a neve derreteu, muitas áreas da
Europa ficaram inundadas. Alguns meses mais tarde, em Junho de 1947, o
continente entrou num dos verões mais quentes e secos de que há registo. Era
evidente que as colheitas não seriam suficientes, e, em algumas áreas, pelo
terceiro ano consecutivo. A produção agrícola caiu cerca de um terço
relativamente à fraca colheita do ano anterior. A falta de carvão pôde ser
colmatada, em parte, com importações da América (34 milhões de toneladas
em 1947) e também os produtos alimentares puderam ser aí comprados e nos
domínios britânicos, mas todas estas importações tinham de ser pagas em
moeda forte, normalmente em dólares.
Dois problemas estruturais acentuaram a crise europeia de 1947. Um deles
era o efectivo desaparecimento da Alemanha da economia europeia. Antes da
guerra, a Alemanha era um mercado importante para a maioria dos países da
Europa Central e de Leste, bem como para a Holanda, a Bélgica e a região
mediterrânica (em 1939, por exemplo, a Alemanha comprou 38% das
exportações da Grécia e forneceu cerca de um terço das suas importações). O
carvão alemão era um recurso vital para os industriais do aço franceses.
Todavia, até que o seu futuro político fosse resolvido, a economia da
Alemanha, apesar do potencial que fora recuperado, permanecia paralisada,
bloqueando a recuperação do resto da economia do continente.
O segundo problema não dizia respeito à Alemanha, mas aos Estados
Unidos da América, embora os dois estivessem relacionados. Em 1938, em
termos de valor, 44% das importações britânicas de maquinaria provinham
dos EUA e 25% da Alemanha. Em 1947, as percentagens eram de 65% e 3%,
respectivamente. A situação era similar em outros países europeus. Este
enorme crescimento da procura de bens dos EUA era, ironicamente, um
indicador do aumento da actividade económica europeia, só que para pagar os
produtos e matérias-primas americanos eram necessários dólares. Os europeus
não tinham nada para vender ao resto do mundo, mas sem moeda forte não
podiam comprar produtos alimentares para evitar a fome de milhões de
pessoas, nem podiam importar as matérias-primas nem a maquinaria
necessárias para prosseguir com a sua própria produção.
A crise de dólares era grave. Em 1947, o Reino Unido, cuja dívida
nacional aumentara quatro vezes desde 1939, estava a comprar cerca de
metade das suas importações aos EUA e a ficar rapidamente sem divisas. A
França, o maior importador de carvão do mundo, tinha um défice anual de
2049 milhões de dólares com os EUA. A maioria dos outros países europeus
nem sequer tinha divisas com que comerciar. A inflação na Roménia estava
no seu ponto mais elevado em Agosto de 1947. A inflação na vizinha
Hungria, a pior de sempre da sua história e muito superior à da Alemanha em
1923, traduziu-se na taxa de câmbio de 5 quintiliões (530) pengos-papel por
dólar, como valor mínimo, o que significou que, quando em Agosto de 1946 o
pengo foi substituído pelo forinto, o valor em dólares das notas húngaras em
circulação era apenas de um milésimo de cêntimo.
Na Alemanha não havia moeda em circulação. O mercado negro florescia
e os cigarros eram o meio de troca aceite: os professores dos campos de
deslocados recebiam cinco maços por semana em pagamento. O valor de um
pacote de cigarros americanos em Berlim subiu de 60 para 165 dólares, uma
oportunidade para os soldados das forças americanas de ocupação fazerem
conversões e reconversões muito vantajosas dos cigarros que lhes eram
atribuídos: só nos primeiros quatro meses da ocupação aliada, as tropas dos
Estados Unidos em Berlim enviaram para casa mais 11 milhões de dólares do
que recebiam em salários… Em Braunschweig, com 600 cigarros podia-se
comprar uma bicicleta, uma necessidade que não era menos importante na
Alemanha do que era em Itália, como Vittorio de Sica mostrou no seu
inesquecível filme de 1948, Ladrão de Bicicletas.
A gravidade da crise europeia não deixou de ter eco nos Americanos.
Como veremos, foi uma das suas principais razões para exercerem pressão
para se encontrar uma solução para o problema da Alemanha, como ou sem a
cooperação dos Soviéticos. Na opinião de conselheiros presidenciais
esclarecidos, como George Kennan, a Europa estava à beira do abismo na
Primavera de 1947. As frustrações dos europeus ocidentais, que de início
foram levados a esperar uma recuperação e um regresso a condições
económicas normais mais rápidos, e o desespero dos Alemães e de outros
centro-europeus, que foi agravado pela inesperada crise de alimentos de 1947,
apenas podiam fazer aumentar o apelo do comunismo ou, então, o risco de
queda na anarquia.
A atracção pelo comunismo era real. Os partidos comunistas da Itália, da
França e da Bélgica (bem como da Finlândia e da Islândia) permaneceram nas
coligações governamentais até Maio de 1947, onde puderam mobilizar a
irritação popular e tirar partido das falhas dos seus próprios governos através
dos sindicatos que lhes eram afectos e de manifestações populares. Os
sucessos eleitorais dos comunistas a nível nacional, a que se associou a aura
do invencível Exército Vermelho, tornaram plausível e sedutora uma «via
para o socialismo» italiana (ou francesa ou checa). Em 1947, 907 000 homens
e mulheres haviam aderido ao Partido Comunista Francês. Em Itália, o seu
número foi de 2,4 milhões, muitos mais do que na Polónia ou mesmo na
Jugoslávia. Até na Dinamarca e na Noruega, cerca de um oitavo do eleitorado
foi atraído, de início, pela promessa de uma alternativa comunista. Nas zonas
ocidentais da Alemanha, as autoridades aliadas recearam que a nostalgia dos
melhores dias do nazismo, bem como a reacção contra os programas de
desnazificação, a escassez de alimentos e o pequeno crime endémico,
pudessem favorecer uma viragem neonazi ou até os Soviéticos.
Os Estados europeus ocidentais eram talvez afortunados, devido ao facto
de na Primavera de 1947 os seus partidos comunistas ainda prosseguirem a
via moderada e democrática que adoptaram em 1944. Em França, Maurice
Thorez ainda apelava aos mineiros para «produzirem». Em Itália, o
embaixador britânico descreveu Togliatti como uma influência moderadora
sobre os seus aliados socialistas mais «exaltados». Por razões próprias,
Estaline ainda não encorajava os seus muitos apoiantes na Europa Central e
Ocidental a tirar partido da revolta e da frustração populares. Mesmo assim, o
espectro da guerra civil e da revolução nunca esteve muito longe. Na Bélgica,
os observadores aliados qualificaram de graves as tensões comunitárias e
políticas, e consideram que o país, bem como a Grécia e a Itália, eram
«instáveis».
Em França, as dificuldades económicas do Inverno de 1947 estavam já a
levar à desilusão popular relativamente à nova República do pós-guerra. Num
inquérito de opinião realizado no país, em 1 de Julho de 1947, 92% dos
interrogados pensavam que as coisas estavam a ir «mal ou muito mal» no
país. Na Grã-Bretanha, o chanceler trabalhista Hugh Dalton, reflectindo sobre
os entusiasmos injustificados dos primeiros anos do pós-guerra, confidenciou
no seu diário: «Já não há manhãs de uma clareza confiante». O seu homólogo
francês, o ministro socialista da Economia Nacional André Philip, fez a
mesma observação, embora de forma mais dramática, num discurso de Abril
de 1947: «Estamos ameaçados», afirmou, «por uma catástrofe económica e
financeira total».
Este sentimento de desespero e de desastre iminente penetrava em todo o
lado. «Nos últimos dois meses», relatava da capital francesa, em Março de
1947, Janet Flanner, «assistiu-se a um clima de indubitável e crescente mal-
estar em Paris – e talvez em toda a Europa –, como se o povo francês – ou o
povo europeu – esperasse que algo acontecesse ou, pior ainda, esperasse que
não acontecesse nada». Tal como tivera ocasião de notar alguns meses atrás, o
continente europeu estava lentamente a entrar numa nova idade do gelo.
George Kennan teria concordado. Seis meses mais tarde, num documento da
Equipa de Planeamento Político, Kennan aventou que o verdadeiro problema
não era o comunismo, ou, se o fosse, sê-lo-ia apenas indirectamente. A
verdadeira origem do mal-estar europeu eram os efeitos da guerra e o que
diagnosticou como «uma profunda exaustão da capacidade física e do vigor
espiritual». Os obstáculos que o continente enfrentava pareciam demasiado
grandes, agora que se exaurira o impulso inicial da esperança e da
reconstrução no pós-guerra. Hamilton Fish, editor do Foreign Affairs, a
influente revista do establishment da política externa americana, descreveu
assim as suas impressões da Europa em Julho de 1947:
Há muito pouco de todas as coisas: muito poucos comboios, eléctricos,
autocarros e automóveis para transportar as pessoas a fim de começarem a
trabalhar a horas, para não falar de as levar para férias; muito pouca
farinha para fazer pão sem componentes que o adulterem e, mesmo assim,
muito pouco pão para fornecer as energias necessárias ao trabalho duro;
muito pouco papel para que os jornais relatem mais do que apenas uma
pequena parte das notícias do mundo; muito poucas sementes para semear
e muito poucos adubos para as alimentar; muito poucas casas para viver e
vidro para as dotar de janelas; muito poucas peles para sapatos, lã para
camisolas, gás para cozinhar, algodão para fraldas, açúcar para compotas,
gordura para fritar, leite para os bebés, sabão para as lavagens.
Apesar do pessimismo da altura, hoje a generalidade dos especialistas
acredita que a recuperação inicial no pós-guerra e as reformas e os planos do
triénio de 1945-1947 lançaram as bases do futuro bem-estar da Europa. Na
verdade, pelo menos no que dizia respeito à Europa Ocidental, 1947 revelar-
se-ia o ponto de viragem da recuperação do continente. Porém, à época, nada
disto era evidente, antes pelo contrário. Parecia que a Segunda Guerra
Mundial e a incerteza que se lhe seguiu poderiam ter dado início à derradeira
decadência da Europa. Para Konrad Adenauer, tal como para muitos outros, a
extensão do caos na Europa parecia ainda maior do que em 1918. De facto,
tendo em mente o precedente dos erros que se seguiram à Primeira Guerra
Mundial, muitos europeus e Americanos temiam o pior. Segundo pensavam,
na melhor das hipóteses, o continente teria pela frente décadas de pobreza e
luta. Os Alemães que residiam na zona americana pensavam que iriam
decorrer pelo menos vinte anos antes de o seu país estar recuperado. Em
Outubro de 1945, Charles de Gaulle informou enfaticamente os Franceses que
levaria vinte e cinco anos de «trabalho encarniçado» até que a França
ressuscitasse.
Porém, segundo o ponto de vista dos pessimistas, muito antes disso a
Europa continental entraria em colapso com o regresso das guerras civis, do
fascismo e do comunismo. Quando o secretário de Estado americano George
C. Marshall regressou em 28 de Abril de 1947 de um encontro de ministros
dos Negócios Estrangeiros, realizado em Moscovo, desapontado com falta de
vontade de colaboração dos Soviéticos para solucionar o problema da
Alemanha e perturbado com o que vira do estado económico e psicológico da
Europa Ocidental, reconheceu nitidamente que algo radical tinha de ser feito,
e bem depressa. Mais: a julgar pela atitude resignada e lúgubre detectável em
Paris, Roma, Berlim, etc., a iniciativa tinha de vir de Washington.
O plano de Marshall para um programa de recuperação europeu, analisado
com os seus conselheiros nas semanas seguintes e tornado público no famoso
discurso em Harvard [Commencement Adress], em 5 de Junho de 1947, foi
dramático e único. Porém, não nascia do zero. Entre o fim da guerra e o
anúncio do Plano Marshall, os Estados Unidos já tinham despendido muitos
milhares de milhões de dólares em subsídios e empréstimos à Europa. A Grã-
Bretanha e a França foram, de longe, os principais beneficiários, tendo
recebido, respectivamente, 4,4 e 1,9 mil milhões de dólares de empréstimos.
No entanto, nenhum país foi excluído. Em meados de 1947, os empréstimos à
Itália ultrapassavam 513 milhões de dólares, à Polónia 251, à Dinamarca 272,
à Grécia 161 e muitos países ficaram também endividados aos Estados
Unidos.
Todavia, estes empréstimos serviram para suprir faltas e satisfazer
emergências. Até então, a ajuda americana não fora utilizada na reconstrução
nem no investimento a longo prazo, mas em fornecimentos, serviços e
reparações essenciais. Para além disso, a concessão dos empréstimos,
sobretudo aos países europeus ocidentais mais importantes, foi realizada sob
condições. Imediatamente após a rendição japonesa, o presidente Truman
cancelou imprudentemente os acordos de empréstimo e aluguer [lend lease]
do tempo da guerra, levando John Maynard Keynes a avisar o governo
britânico, num memorando de 14 de Agosto de 1945, que o país enfrentava
uma «Dunquerque económica». Nos meses seguintes, Keynes negociou com
êxito com os Americanos um substancial acordo de empréstimo para receber
os dólares de que a Grã-Bretanha necessitaria para adquirir os bens que já não
estavam disponíveis ao abrigo dos acordos de empréstimo e aluguer, mas as
condições americanas eram irrealisticamente restritivas, nomeadamente com a
sua exigência de que a Grã-Bretanha abolisse a preferência imperial dada aos
seus domínios ultramarinos, abandonasse o controlo de câmbios e tornasse a
libra esterlina convertível. Como Keynes e outros anteciparam, a
consequência foi a primeira de muitas procuras intensas à libra britânica no
pós-guerra, o rápido desaparecimento das reservas britânicas em dólares e
uma crise ainda mais grave no ano seguinte.
Os termos do empréstimo negociado em Washington, em Maio de 1946,
entre os Estados Unidos da América e a França eram apenas um pouco menos
limitativos. Para além da anulação da dívida de 2,25 mil milhões de dólares
de empréstimos concedidos durante a guerra, a França obteve centenas de
milhões de dólares em créditos e a promessa de empréstimos futuros a baixo
juro. Em contrapartida, Paris afirmou abandonar as quotas de importação
proteccionistas e conceder entrada livre aos produtos americanos e de outros
países. Tal como o empréstimo britânico, este acordo foi concebido, em parte,
para fazer avançar os planos dos Estados Unidos, que propunham um
comércio internacional mais livre, trocas livres de divisas estáveis e uma
cooperação internacional mais estreita. Na prática, contudo, o dinheiro
desapareceu passado um ano e a sua única herança a médio prazo foi um
ressentimento popular acrescido (em grande parte aproveitado pela esquerda)
contra a exploração pelos Americanos da força económica de que dispunham.
Na Primavera de 1947, portanto, as abordagens bilaterais de Washington
aos problemas económicos da Europa haviam falhado manifestamente. Em
1947, o défice comercial entre esta e os Estados Unidos atingiria 4 742
milhões de dólares, mais do dobro do que fora em 1946. Se isto era um
«sobressalto de crescimento», como sugeriram mais tarde alguns
comentadores, então a Europa estava perto do sufoco. Foi por esta razão que
Ernest Bevin, o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, respondeu ao
discurso de atribuição de Marshall, descrevendo-o como «um dos maiores
discursos da história mundial», e não deixava de ter razão.
As propostas de Marshall constituíam uma ruptura nítida com a prática do
passado. Desde logo, para além de algumas condições orientadoras, era
deixada aos europeus a decisão de aceitar ou não a ajuda americana e de
como a usar, embora os conselheiros e especialistas americanos
desempenhassem um papel proeminente na administração dos fundos. Em
segundo lugar, a assistência fornecida deveria ser repartida por alguns anos e
era, por isso, à partida, um programa estratégico de recuperação e
crescimento, e não um fundo de auxílio para fazer face a uma catástrofe.
Terceiro, as quantias em questão eram, na verdade, muito elevadas.
Quando em 1952 terminou a Ajuda Marshall, os Estados Unidos haviam
despendido 13 mil milhões de dólares, mais do que a totalidade da ajuda
americana ao estrangeiro levada a efeito até então. Daquele montante, o Reino
Unido e a França receberam de longe as maiores quantias em termos
absolutos, mas o impacto relativo na Itália e nos pequenos países que
receberam ajuda foi provavelmente ainda maior: na Áustria, 14% do
rendimento do país no primeiro ano completo do Programa de Recuperação
Europeu (PRE), que decorreu entre Julho de 1948 e Junho de 1949, veio da
Ajuda Marshall. Estes números eram enormes para a época: em termos
monetários, o PRE equivaleria a aproximadamente 100 mil milhões de
dólares de 2004, mas em termos de percentagem do produto interno bruto da
América (consumiu cerca de 0,5% deste nos anos de 1948-1951) um Plano
Marshall no início do século XXI custaria cerca de 201 mil milhões de
dólares.
Logo após o discurso de Marshall, os ministros dos Negócios Estrangeiros
da Grã-Bretanha, da França e da URSS encontraram-se em Paris, por sugestão
de Bevin, para ponderarem a sua resposta. Em 2 de Julho, Vyacheslav
Molotov, ministro dos Negócios Estrangeiros soviético, abandonou o
encontro e dois dias depois a Grã-Bretanha e a França convidaram
formalmente os representantes de 22 países europeus (excluindo apenas a
Espanha e a União Soviética) para discutir as propostas. Em 12 Julho, 16
Estados europeus tomaram parte nestas discussões. Todos eles – Grã-
Bretanha, França, Itália, Bélgica, Luxemburgo, Holanda, Dinamarca,
Noruega, Suécia, Suíça, Grécia, Turquia, Irlanda, Áustria e Portugal –
estariam entre os eventuais beneficiários. Apesar do interesse inicial
manifestado pela Polónia, a Checoslováquia, a Hungria, a Bulgária e a
Albânia, nenhum dos futuros Estados comunistas fez parte ao Programa de
Recuperação Europeu ou recebeu qualquer dólar da ajuda Marshall.
Vale a pena determo-nos um pouco para considerar as implicações deste
facto. Que o dinheiro se devesse confinar ao Ocidente (com a Grécia e a
Turquia como membros europeus ocidentais honorários) tornou mais fácil,
sem dúvida, ao presidente Truman garantir a aprovação no Congresso, no ano
seguinte. Mas nesta altura muito se tinha alterado e o Congresso pretendia que
lhe demonstrassem que a Ajuda Marshall constituía uma barreira económica à
expansão soviética. Todavia, em Junho de 1947, a oferta de ajuda através do
novo programa Marshall foi feita a todos os países sem distinção. Estaline e
Molotov suspeitavam, é claro, das intenções americanas – os termos do
programa que Marshall propôs eram completamente incompatíveis com a
fechada economia soviética –, mas a sua interpretação não tinha muitos
adeptos nos outros países da Europa de Leste, que não constituía ainda um
bloc.
Por exemplo, Jan Masaryk, ministro dos Negócios Estrangeiros
checoslovaco e não comunista, aceitou entusiasticamente o convite conjunto
franco-britânico de 4 de Julho. Logo no dia seguinte, Klement Gottwald, o
líder do Partido Comunista e primeiro-ministro checo, foi convocado a
Moscovo e recebeu de início instruções para assistir à conferência de Paris.
Porém, as suas ordens eram bem claras: devia utilizar a sua presença em Paris
para demonstrar «o carácter inaceitável do plano anglo-francês, evitar que se
tomassem decisões por unanimidade e, depois disso, abandonar a conferência,
trazendo consigo o maior número possível de delegados de outros países».
Quatro dias depois, Estaline reconsiderou. Foi dito a Gottwald para retirar
a aceitação por parte do seu país do convite para ir a Paris. Encontrando-se
com uma delegação do governo checo, incluindo Masaryk, Estaline avisou
que «[c]onsideramos que esta matéria é uma questão essencial de que
depende a amizade [checa] com a URSS. Se forem a Paris, mostram que
desejam cooperar numa acção cujo objectivo é isolar a União Soviética». No
dia seguinte, o governo de coligação checo anunciou formalmente que não
enviaria qualquer delegação a Paris. «A participação checoslovaca seria
considerada como um acto dirigido contra a amizade com a União Soviética e
os seus outros aliados. Este é o motivo por que o governo decidiu por
unanimidade não participar nesta conferência.»
Por que razão se terão os Checos desvinculado? Os seus vizinhos polacos
e húngaros, com os comunistas já no poder e o Exército Vermelho por perto,
não tinham outra opção que não fosse seguir a «orientação» soviética. Mas o
Exército Vermelho há muito que abandonara a Checoslováquia e os
comunistas ainda não monopolizavam o poder. No entanto, Masaryk e os seus
colegas cederam à primeira manifestação de desagrado de Estaline. Se os
partidos não comunistas checos tivessem insistido em aceitar a Ajuda
Marshall, teriam consigo a esmagadora maioria dos seus concidadãos (e
bastantes comunistas checos), tornando muito mais difícil a Estaline justificar
que impusesse o cumprimento da sua vontade. No contexto mais vasto da
política depois de Munique, a decisão checa de aceitar o abraço soviético foi
compreensível, mas quase de certeza abriu caminho para o êxito do golpe
comunista, em Praga, sete meses mais tarde.
A exclusão da Checoslováquia do programa de Ajuda Marshall foi uma
catástrofe económica e política para o país. O mesmo se pode dizer da
«escolha» imposta a todos os outros países da região e, sobretudo, talvez, da
própria União Soviética. A sua decisão de ficar de fora do Programa de
Recuperação Europeu foi um dos maiores erros estratégicos de Estaline.
Independentemente do que pensassem, os Americanos não teriam alternativa
a incluir a Europa de Leste no PRE, pois ofereceram-na a todos, e as
consequências para o futuro teriam sido incomensuráveis. Em vez disso, a
ajuda ficou confinada ao Ocidente e assinalou a separação dos caminhos
seguidos pelas duas metades do continente.
A Ajuda Marshall destinava-se desde o início a autolimitar-se. O seu
objectivo, como o próprio Marshall estabelecera no discurso de Harvard, era
«quebrar o círculo vicioso e restaurar a confiança do povo europeu no futuro
económico dos seus próprios países e da Europa como um todo». Em vez de
oferecer ajuda apenas em dinheiro, propôs o fornecimento gratuito de bens
aos países europeus, com base em requisições anuais formuladas como parte
integrante de um plano de quatro anos de cada um dos países beneficiários.
Estes bens, quando fossem vendidos em cada um deles, gerariam os
chamados «fundos de contrapartida» em moeda nacional, que poderiam ser
utilizados segundo acordos bilaterais estabelecidos entre Washington e cada
um dos respectivos governos. Alguns países usaram estes fundos para pagar
mais importações, outros, como a Itália, transferiram-nos para as suas
reservas nacionais, antecipando necessidades futuras de divisas estrangeiras.
Esta forma invulgar de fornecer ajuda trouxe consigo implicações
inovadoras. Por um lado, o programa obrigou os governos europeus a planear
e a calcular as necessidades futuras de investimentos. Para além disso, impôs-
lhes a exigência de negociar e conferenciar, não só com os Estados Unidos
mas entre si, uma vez que se pretendia que o comércio e as trocas que o
programa implicava deixassem de ser bilaterais e passassem a ser
multilaterais o mais cedo possível. Em terceiro lugar, obrigou os governos, as
empresas e os sindicatos a colaborar no planeamento de níveis de produção
cada vez maiores e das condições que os podiam promover. Por fim e
sobretudo, eliminou as tentações que levantaram barreiras à economia do
período entre as duas guerras: a subprodução, o proteccionismo mutuamente
destrutivo e o colapso do comércio.
Embora os administradores americanos do plano não fizessem segredo das
suas expectativas, permitiram que os europeus assumissem a responsabilidade
de determinar quais os níveis de ajuda e como seria distribuída. Os políticos
europeus – habituados ao egoísmo evidente dos Estados Unidos em
negociações prévias de empréstimos bilaterais – ficaram muito surpreendidos.
A sua perplexidade era compreensível. Os próprios Americanos estavam
divididos quanto aos objectivos do plano. Os idealistas inspirados no New
Deal, e havia muitos na Administração americana do pós-guerra, viram no
Plano uma oportunidade de reconstruir a Europa à imagem da América,
dando ênfase à modernização, ao investimento em infra-estruturas, à
produtividade industrial, ao crescimento económico e à cooperação entre o
trabalho e o capital.
Por esta razão, «missões de produtividade» financiadas pelo Plano
Marshall enviaram aos Estados Unidos muitos milhares de gestores, técnicos
e sindicalistas para estudar o modo de funcionamento da economia americana,
cinco mil dos quais vieram de França (25% do total), entre 1948 e 1952.
Apenas entre Março e Julho de 1951, chegaram aos Estados Unidos 145
«equipas de produtividade europeias», a maioria das quais formadas por
homens (raramente por mulheres) que nunca tinham saído da Europa. Os
adeptos do New Deal na Organização Europeia de Cooperação Económica
(OECE), criada em 1948 para canalizar os fundos do PRE, procuraram
persuadir com insistência os seus colegas europeus das virtudes do comércio
livre, da colaboração internacional e da integração dos Estados.
Estas insistências americanas tiveram, devemos confessar, um sucesso
imediato limitado. A maioria dos políticos e planeadores europeus não estava
ainda pronta para pensar em grandes projectos de integração económica
internacional. Neste aspecto, a maior realização os planeadores do Plano
Marshall foi talvez a União Europeia de Pagamentos, proposta em Dezembro
de 1949 e inaugurada um ano depois. O seu objectivo limitado era
«multilateralizar» o comércio europeu, criando uma espécie de câmara de
compensação de débitos e de créditos expressos em divisas europeias. Esta foi
concebida para ultrapassar o risco de que cada país europeu pudesse tentar
poupar os dólares que eram tão necessários, restringindo as importações
provenientes de outros países do continente, prejudicando todos.
Utilizando o Banco Internacional de Pagamentos como seu agente, os
Estados europeus foram encorajados a fazer um seguro das suas linhas de
crédito em proporção das suas necessidades comerciais. Depois, em vez de
utilizarem os dólares escassos, podiam cumprir as suas obrigações mediante
uma transferência de créditos intra-europeia. O que importava não era quem
seria o parceiro comercial, mas o balanço global de créditos e débitos em
divisas europeias. Quando foi dissolvida, em 1958, a União Europeia de
Pagamentos contribuíra discretamente, não apenas para uma expansão
continuada do comércio europeu, mas para uma colaboração mutuamente
vantajosa num grau sem precedentes, financiada, devemos dizê-lo, por uma
injecção substancial de dólares americanos para abastecer o fundo comum de
créditos inicial.
De uma perspectiva americana mais convencional, todavia, o comércio
livre e os seus concomitantes benefícios constituíam objectivos e justificação
suficientes do PRE. Os Estados Unidos foram muito atingidos pela crise
comercial e nas exportações durante os anos 30 e não se pouparam a esforços
para convencer os outros países da importância da recuperação, no pós-
guerra, dos regimes de tarifas liberalizadas e de divisas convertíveis. Tal
como o entusiasmo dos liberais ingleses pelo comércio livre na época anterior
a 1914, estes apelos dos Americanos ao movimento livre das mercadorias não
estavam inteiramente isentos de interesse próprio.
No entanto, este interesse próprio era manifestamente esclarecido. Afinal,
como afirmou o director da CIA Allen Dulles: «O Plano pressupõe que
desejamos ajudar a recuperar a Europa, que poderá assim competir connosco,
e irá fazê-lo, nos mercados mundiais e por esta mesma razão poderá comprar
uma quantidade substancial dos nossos produtos.» Em alguns casos, havia
benefícios mais imediatos: nos Estados Unidos, foi assegurado o apoio das
organizações laborais ao Plano Marshall com a promessa de que todos os
envios em espécie a partir da América seriam efectuados em navios de
bandeira americana e carregados por estivadores filiados na AFL-CIO.
Porém, este é um caso raro de vantagens directas e imediatas. Em grande
parte Dulles tinha razão: o Plano Marshall iria beneficiar os Estados Unidos
ao recuperar o seu maior parceiro comercial, em vez de reduzir a Europa a
uma dependência imperial.
No entanto, este não é ainda o quadro completo. Se bem que nem todos o
tenham percebido na altura, a Europa tinha que fazer escolhas em 1947. Uma
delas era entre a recuperação ou o colapso, mas a questão mais funda era se a
Europa e os europeus teriam perdido o controlo dos seus destinos, se 30 anos
de conflitos sangrentos entre os europeus não teriam entregue o destino do
continente às duas grandes potências que a enquadravam: os Estados Unidos e
a União Soviética. Esta última estava muito satisfeita ante tal pespectiva.
Como Kennan registou nas suas memórias, a atmosfera de medo que pairava
sobre a Europa em 1947 predispunha o continente a cair como um fruto
maduro nas mãos de Estaline. No entanto, para os que definiam a política na
América, a vulnerabilidade da Europa constituía um problema, não uma
oportunidade. Como dizia um relatório da CIA de Abril de 1947, «[o] maior
perigo para a segurança dos Estados Unidos é a possibilidade do colapso da
Europa Ocidental e a consequente subida de elementos comunistas ao poder».
Um grupo especial ad hoc do comité coordenador dos departamentos de
Estado, da Guerra e da Marinha, referiu este aspecto de forma mais completa
num relatório datado de 21 de Abril de 1947: «É importante manter em mãos
amigas as áreas que contenham ou protejam fontes de metais, petróleo e
outros recursos naturais, onde se integrem objectivos estratégicos ou locais
estrategicamente situados, que tenham um grande potencial industrial, que
possuam efectivos importantes de mão-de-obra ou de forças militares
organizadas ou que, por razões políticas ou psicológicas, permitam aos
Estados Unidos exercer uma influência mais significativa a favor da
estabilidade, da segurança e da paz mundiais.» Este é o contexto mais vasto
do Plano Marshall, uma paisagem sombria em que os interesses americanos
estavam intimamente ligados com os do frágil e desmoralisado subcontinente
europeu.
Os recebedores da Ajuda Marshall mais bem informados, nomeadamente
Bevin e Georges Bidault, seu homólogo no ministério dos Negócios
Estrangeiros francês, no Quai d’Orsay, compreenderam isto perfeitamente. No
entanto, como é evidente, os interesses nacionais dirigidos ao Programa de
Recuperação Europeu e às utilizações que lhe foram dadas variaram
consideravelmente de país para país. Na Bélgica, que era talvez o país em que
a ajuda americana seria menos necessária, o Plano Marshall pode
inclusivamente ter tido um impacto prejudicial a longo prazo, permitindo que
o governo gastasse vastas quantias em fábricas industriais tradicionais e em
indústrias sensíveis do ponto de vista político, como a extracção de carvão,
sem ter em consideração o seu custo a longo prazo.
Em muitos casos, a Ajuda Marshall foi aplicada como estava previsto. No
primeiro ano do plano, a ajuda à Itália foi canalizada sobretudo para as
importações de carvão e cereais, de que havia necessidade urgente, bem como
para as indústrias que lutavam com dificuldades, como a têxtil. No entanto,
mais tarde, 90% dos fundos italianos de contrapartida foram destinados
directamente ao investimento nas indústrias de engenharia, na energia, na
agricultura e nas redes de transporte. De facto, com Alcide De Gasperi e os
democratas-cristãos no poder, o planeamento económico italiano no final dos
anos 40 era muito parecido com o dos países do Leste europeu,
desfavorecendo deliberadamente os bens de consumo, mantendo o consumo
alimentar a níveis anteriores à guerra e desviando os recursos para
investimentos em infra-estruturas. Isto era quase um exagero: os observadores
americanos ficaram nervosos e tentaram sem êxito encorajar o governo a
introduzir impostos progressivos, a abrandar a sua abordagem austera, a
permitir que as reservas baixassem e a evitar provocar uma recessão. Em
Itália, como na Alemanha Ocidental, os planeadores americanos da Ajuda
Marshall gostariam de ver políticas sociais e económicas mais viradas ao
centro e afastadas da perspectiva deflacionista mais tradicional.
Em França, a Ajuda Marshall satisfez muito bem os objectivos dos
«planeadores». Como Pierre Uri, um dos colegas de Monnet, reconheceu mais
tarde: «utilizámos os Americanos para impor ao governo francês o que
considerámos ser necessário», ignorando o desejo americano de liberalização,
mas correspondendo entusiasticamente às exortações dos Estados Unidos para
que se investisse e modernizasse. Os dólares do PRE – 1,3 mil milhões em
1948-1949 e mais 1,6 mil milhões nos três anos seguintes – financiaram quase
50% do investimento público francês ao abrigo do Plano Monnet, durante a
vigência do Plano Marshall, e o país nunca teria podido passar sem eles. Por
isso, é bastante irónico que fosse em França que o Plano Marshall enfrentasse
a maior crítica popular. Em meados dos anos 50, apenas um terço dos
Franceses adultos afirmava ter ouvido falar do Plano Marshall e destes 64%
disseram que era «mau» para o seu país!
A imagem relativamente fraca que o Plano tinha em França representava
uma vitória parcial das relações públicas dos comunistas franceses, e talvez a
maior que registaram(4). Na Áustria, os comunistas, apoiados pelas forças
soviéticas que ocupavam ainda a região leste do país, nunca fizeram qualquer
mossa na popularidade dos Americanos e da sua ajuda. Estes deram comida
às pessoas e isso era o que importava acima de tudo. Na Grécia a situação era
ainda mais clara. Nas circunstâncias de uma brutal guerra civil, a Ajuda
Marshall, alargada ao país em Abril de 1948, marcou a diferença entre a
sobrevivência e a morte. Os 649 milhões de dólares de ajuda americana à
Grécia ao abrigo do PRE apoiaram os refugiados e afastaram a fome e a
doença: a simples entrega de mulas aos agricultores indigentes significou a
diferença entre a vida e a morte para milhares de famílias camponesas. Pode
atribuir-se à Ajuda Marshall 50% do PNB do país em 1950.
Em que medida teve êxito o Programa de Recuperação Europeu? Não há
dúvida de que a Europa Ocidental recuperou e precisamente durante o período
de vigência do Plano Marshall (1948-1951). Em 1949, as produções industrial
e agrícola francesas ultrapassavam, pela primeira vez, os níveis de 1938.
Aplicando o mesmo critério, a recuperação sustentada foi atingida em 1948
pela Holanda, em 1949 pela Áustria e a Itália, em 1950 pela Grécia e a
Alemanha Ocidental. Dos países que foram ocupados durante a guerra,
apenas a Bélgica, a Dinamarca e a Noruega recuperaram mais rapidamente
(1947). Entre 1947 e 1951, o PNB de todos os países da Europa Ocidental
aumentou 30%.
A curto prazo, o principal contributo do Programa para a recuperação foi
certamente o fornecimento de créditos em dólares. Estes serviram de garantia
aos défices comerciais, facilitaram a importação em larga escala das matérias-
primas de que havia necessidade urgente e, desse modo, permitiram que a
Europa Ocidental ultrapassasse a crise de meados de 1947. Quatro quintos de
todo o trigo consumido pelos europeus nos anos de 1949 a 1951 vieram de
países da zona do dólar. Sem a Ajuda Marshall não se vê como poderia ter
sido ultrapassada a escassez de combustíveis, algodão e outras mercadorias a
um preço que fosse politicamente aceitável. Na verdade, embora as
economias da Europa Ocidental pudessem ter continuado durante algum
tempo a crescer sem a ajuda americana, isto só poderia ter acontecido
reprimindo a procura interna, reduzindo os serviços sociais que foram
introduzidos e diminuindo ainda mais o respectivo nível de vida.
Esta hipótese constituía um risco que a maior parte dos governos eleitos
tinha, compreensivelmente, relutância em correr. Em 1947, os governos de
coligação da Europa Ocidental estavam num beco sem saída e sabiam-no.
Podemos reconhecer a posteriori que a Ajuda Marshall «apenas» derrubou a
barreira que estrangulava a recuperação da procura, que a nova abordagem
americana do problema superou uma falta «temporária» de dólares, mas
ninguém poderia ter sabido em 1947 que um défice de 4,6 milhares de
milhões de dólares seria «temporário». E quem nessa altura poderia ter a
certeza de que a barreira não estava a lançar as frágeis democracias europeias
para uma catarata vertiginosa? Mesmo se o PRE apenas antecipou as coisas,
foi uma contribuição essencial, porque tempo era precisamente aquilo que
aparentemente faltava à Europa. O Plano Marshall foi um programa
económico, mas a crise que evitou era política.
Os benefícios a longo prazo do Plano Marshall são de avaliação mais
difícil. Alguns observadores ficaram desapontados com o aparente fracasso
dos Americanos em convencer os europeus a cooperar na integração do seu
planeamento de forma tão ampla quanto se esperava de início. Aliás,
quaisquer que tenham sido os hábitos de colaboração e as instituições que os
europeus finalmente adquiriram, eles só indirectamente resultaram dos
esforços americanos, se é que, na verdade, tiveram neles a sua origem. Porém,
à luz do passado recente da Europa, todos os passos que fossem dados nesta
direcção representavam um progresso. O convite de Marshall pelo menos
forçou os Estados europeus, desconfiados uns dos outros, a sentar-se à mesma
mesa e a coordenar as suas respostas (e até a muito mais do que isso). O
jornal The Times não estava muito longe da verdade quando afirmou, num
editorial de 3 de Janeiro de 1949, que «[q]uando se coloca em confronto os
esforços de cooperação do ano transacto com o forte nacionalismo económico
dos anos decorridos entre as duas guerras, podemos seguramente aventar a
hipótese de que o Plano Marshall está a dar início a uma nova e esperançosa
era da história europeia».
Os benefícios efectivos foram psicológicos. Na verdade, quase podemos
dizer que o Plano Marshall ajudou os europeus a sentirem-se melhor consigo
mesmos. Por um lado, ajudou-os a abandonar decisivamente uma herança de
chauvinismo, depressão e soluções autoritárias. Por outro, fez com que a
definição coordenada da política económica parecesse normal em vez de
excepcional. Por outro ainda, fez com que o comércio conduzido a pedinchar
ao vizinho e as práticas monetárias dos anos 30 parecessem, primeiro,
imprudentes, segundo, desnecessárias e, finalmente, absurdas.
Nada disto seria possível se o Plano Marshall tivesse sido apresentado
como um projecto de «americanização» da Europa. Pelo contrário, os
europeus do pós-guerra tinham uma consciência tão clara da sua dependência
humilhante da ajuda e da protecção americanas que qualquer pressão
insensível vinda deste quadrante seria certamente contraproducente do ponto
de vista político. Ao permitir que os governos europeus levassem a efeito
políticas que resultavam de compromissos e experiências próprios e ao evitar
uma abordagem dos programas de recuperação que obedecesse a um figurino
único, Washington foi forçada a renunciar, de facto, a algumas das esperanças
que alimentava em relação à integração da Europa Ocidental, pelo menos a
curto prazo.
De facto, o PRE não foi lançado no vazio. A Europa Ocidental pôde
beneficiar do auxílio americano porque era uma zona há muito estabelecida
de propriedade privada, economia de mercado e, excepto nos anos mais
recentes, governos estáveis. Mas precisamente por esta razão, a Europa
Ocidental teve de tomar as suas próprias decisões e acabaria por insistir em
tomá-las. Como o diplomata britânico Oliver Franks afirmou: «O cerne do
Plano Marshall era colocar dólares nas mãos de europeus para que
comprassem os instrumentos da recuperação.» O resto, isto é, as divisas
convertíveis, as boas relações laborais, os orçamentos equilibrados e o
comércio liberalizado, dependeria dos próprios europeus.
A comparação óbvia, porém, não era entre as perspectivas americanas e as
práticas europeias, mas entre 1945 e 1918. Em mais aspectos do que aqueles
de que agora nos podemos recordar, as duas eras de pós-guerra foram
estranhamente semelhantes. Já nos anos 20 os Americanos encorajaram os
europeus a adoptar técnicas de produção e relações laborais adoptadas
anteriormente nos Estados Unidos. Nessa altura, muitos observadores
americanos viam a salvação da Europa na integração económica e no
investimento em bens de capital. Aliás, nos anos 20, os Europeus também
olhavam para o outro lado do Atlântico em busca de orientação para o seu
próprio futuro e de ajuda prática para o presente.
Todavia, a grande diferença consiste em que, depois da Primeira Guerra
Mundial, o governo americano apenas concedeu empréstimos, não subsídios,
e foram quase sempre canalizados por intermédio do mercado privado de
capitais. Por isso, tinham uma etiqueta com o preço e eram em geral a curto
prazo. Quando o seu pagamento foi exigido no início da Grande Depressão, o
efeito foi desastroso. Neste aspecto, o contraste é flagrante: depois de alguns
passos em falso no período de 1945 a 1947, os políticos americanos
esforçaram-se por corrigir os erros do pós-guerra anterior. O Plano Marshall é
importante não apenas pelo que fez, mas por aquilo que teve o cuidado de
evitar.
Todavia, houve um problema europeu que o Programa de Recuperação
Europeu não pôde resolver nem evitar, embora tudo o mais dependesse da sua
resolução. Era a «Questão Alemã». Sem a recuperação da Alemanha, o
planeamento francês não chegaria a lado nenhum: a França pretendia utilizar
os fundos de contrapartida para construir enormes indústrias de aço na
Lorena, por exemplo, mas sem o carvão alemão seriam inúteis. Não havia
problema com os créditos do Plano Marshall para comprar carvão, mas o que
sucederia se não houvesse carvão? Na Primavera de 1948, a produção
industrial alemã não ia ainda além de metade da de 1936. A economia
britânica nunca recuperaria enquanto o país gastasse somas sem precedentes
(317 milhões de dólares só em 1947) apenas para sustentar a população
desamparada da sua zona de ocupação no Noroeste da Alemanha. Por outro
lado, sem a Alemanha para comprar a sua produção, as economias comerciais
dos Países Baixos e da Dinamarca estavam moribundas.
A lógica do Plano Marshall requeria o levantamento de todas as restrições
erguidas à produção da Alemanha (Ocidental), para que o país pudesse uma
vez mais dar o seu contributo essencial para a economia europeia. Na
verdade, o secretário de Estado Marshall tornou claro logo de início que o seu
plano significava o fim das esperanças francesas de obter reparações de
guerra por parte da Alemanha. O que se pretendia, afinal, era desenvolver e
integrar a Alemanha, não fazer dela um pária dependente. Porém, para evitar
a repetição trágica dos acontecimentos dos anos 20, em que os esforços
frustrados para obter reparações de guerra a uma debilitada Alemanha
conduziram directamente, como parecia em retrospectiva, à insegurança
francesa, ao ressentimento germânico e à ascensão de Hitler ao poder, era
claro para os Americanos e para os seus amigos que o Plano Marshall só iria
funcionar como parte de um acordo político mais amplo que tanto Franceses
como Alemães admitissem constituir uma vantagem real e duradoura. Não
havia nada de misterioso neste assunto. No pós-guerra, a chave do futuro da
Europa era um acordo sobre a Alemanha e isto era tão evidente em Moscovo
como em Paris, Londres ou Washington. No entanto, os contornos que um tal
acordo deveria ter eram uma questão muito mais controversa.
-
(1) Os últimos guerrilheiros italianos armados foram capturados numa série de operações militares
em redor de Bolonha, no Outono de 1948.

(*) O termo «despilarização» resulta de as comunidades referidas terem sido consideradas os pilares
tradicionais da sociedade holandesa. (N. T.)

(2) Jean Monnet nasceu em Cognac, em 1888, filho de um comerciante de cognac. Depois de deixar
a escola, viveu e trabalhou muitos anos no estrangeiro, nomeadamente em Londres. Após a Primeira
Guerra Mundial foi nomeado secretário-geral da Sociedade das Nações. Passou grande parte da
Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos, negociando fornecimentos de armas em nome do
governo britânico e da França Livre. A sua dedicação ao planeamento económico e a sua contribuição
posterior para o Plano Schuman de cooperação económica na Europa baseava-se na sua familiaridade
com organizações de grandes dimensões e na sua experiência de colaboração entre Estados, o que era
manifestamente incomum num francês pertencente à sua classe e ao seu tempo.

(3) Citado em Maureen Waller, London 1945 (2004), p. 150.

(4) Note-se, todavia, que 40% dos que em França votavam nos comunistas estavam de acordo em
que se aceitasse a Ajuda Marshall, apesar da oposição do partido. A desconfiança francesa em relação
ao Plano Marshall era mais cultural do que política. Parece que muitas pessoas ficaram particularmente
ofendidas com o que descreveram como «des questionnaires insipides et nombreux», que provinham
das várias burocracias americanas, um sinal particularmente irritante da sua subordinação a uma
civilização inferior.
IV

O Acordo Impossível
«Os que ainda não tinham nascido nesta altura podem achar difícil
compreender até que ponto a política europeia dos anos do pós-guerra era
condicionada pelo receio de um renascimento germânico e orientada para
garantir que isso nunca mais iria acontecer.»
Sir Michael Howard
«Não tenham ilusões. Todos os Balcãs, à excepção da Grécia, vão ser
bolcheviquizados e não há nada que eu possa fazer para o impedir. Também
não há nada que possa fazer pela Polónia.»
Winston Churchill, Janeiro de 1945
«Lembra-me os déspotas do Renascimento: sem princípios, recorre a
quaisquer métodos, mas também não tem uma linguagem floreada. É sempre
um sim ou um não, embora só se possa acreditar nele quando diz não.»
Clement Atlee, referindo-se a Estaline
«No espaço de cinco anos adquirimos um formidável complexo de
inferioridade.»
Jean-Paul Sartre (1945)
«No mundo, ninguém pode compreender o que os europeus sentem em
relação aos Alemães até falar com os Belgas, os Franceses ou os Russos. Para
eles os únicos Alemães bons são os que estão mortos.» O autor destas
palavras, escritas no seu diário em 1945, foi Saul K. Padover, o observador
que acompanhava os exércitos americanos que encontrámos no capítulo 3. A
sua observação deve estar presente no nosso espírito perante qualquer
explicação da divisão da Europa no pós-guerra. O objectivo da Segunda
Guerra Mundial na Europa era derrotar a Alemanha e quase todas as outras
considerações foram postas de parte enquanto a luta prosseguia.
A principal preocupação dos Aliados durante a guerra foi que todos nela
continuassem: os Britânicos estavam permanentemente preocupados com a
possibilidade de Estaline firmar uma paz separada com Hitler, sobretudo após
a União Soviética ter recuperado o território que perdera depois de Junho de
1941. Estaline, por seu lado, viu o atraso na criação da segunda frente
ocidental como uma manobra dos Aliados ocidentais para esgotar a Rússia
antes de avançarem para colher as vantagens do seu sacrifício. Ambos os
lados podiam interpretar o apaziguamento e os pactos anteriores à guerra
como prova de que o outro não era de confiança. Só o inimigo comum os
unia.
Este mal-estar mútuo permite perceber os acordos e os entendimentos dos
três aliados mais importantes durante a guerra. Em Janeiro de 1943, em
Casablanca, foi acordado que a guerra na Europa só iria terminar com a
rendição incondicional da Alemanha. Em Teerão, 11 meses mais tarde, os
«Três Grandes» (Estaline, Roosevelt e Churchill) concordaram, em princípio,
no desmantelamento da Alemanha depois de terminada a guerra, no regresso
à chamada «linha Curzon»(1) entre a Polónia e a URSS, no reconhecimento
da autoridade de Tito na Jugoslávia e no acesso soviético ao Báltico pelo
porto de Königsberg, que pertencera à Prússia Oriental.
O beneficiário evidente destes acordos foi Estaline, mas uma vez que o
Exército Vermelho teve o papel mais importante na luta contra Hitler, tal fazia
sentido. Pela mesma razão, quando Churchill se sentou com Estaline em
Moscovo, em Outubro de 1944, e iniciou o famoso «acordo das
percentagens», estava apenas a conceder ao ditador soviético o território que
este último tinha a certeza de ir conquistar. Neste acordo, rabiscado à pressa
por Churchill e passado para o outro lado da mesa a Estaline, que «pegou no
seu lápis azul e fez nele um grande sinal de verificação», a Grã-Bretanha e a
URSS concordaram que no pós-guerra exerceriam o controlo da Jugoslávia e
da Hungria numa base de 50% para cada, da Roménia com 90% de controlo
russo e da Bulgária com 75%, ao passo que a Grécia seria 90% «britânica».
Há três comentários que merecem ser feitos sobre esta «negociação»
secreta. O primeiro é que as percentagens relativas à Hungria e à Roménia são
puramente formais, porque a verdadeira questão eram os Balcãs. Segundo, a
negociação foi fortemente apoiada de ambos os lados, como veremos. Mas,
terceiro, e por muito insensível que isso possa parecer do ponto de vista dos
países que dela eram objecto, esta negociação não era de facto importante. O
mesmo se pode dizer das discussões em Ialta, em Fevereiro de 1945. «Ialta»
entrou no léxico da política centro-europeia como sinónimo de traição
ocidental, o momento em que os Aliados venderam a Polónia e outros
pequenos Estados situados entre a Rússia e a Alemanha.
Na verdade, no entanto, Ialta pouco contou. É claro que todos os Aliados
assinaram a Declaração sobre a Europa Libertada: «Para promover as
condições em que os povos libertados possam exercer esses direitos
[democráticos], os três governos apoiarão em conjunto o povo de qualquer
Estado europeu libertado ou de qualquer Estado-satélite do Eixo na Europa» a
formar governos representativos, a promover eleições livres, etc. Depois da
guerra, foi o cinismo da União Soviética em relação a este compromisso que
seria atirado à cara do Ocidente por porta-vozes compreensivelmente
ressentidos com as suas nações aprisionadas. Porém, nada foi decidido em
Ialta que não tivesse já sido acordado em Teerão ou em outros locais.
O mais que se pode dizer da Conferência de Ialta é que constitui um
exemplo flagrante de incompreensão, com Roosevelt em particular a ser
vítima das suas próprias ilusões. É que nessa altura, Estaline dificilmente
necessitaria da autorização ocidental para fazer o que bem entendesse na
Europa de Leste, como os Britânicos compreenderam perfeitamente. Os
territórios orientais cedidos a Estaline ao abrigo dos protocolos secretos dos
pactos entre os nazis e os Soviéticos, em 1939 e 1940, estavam uma vez mais
firmemente nas mãos destes últimos: aquando do encontro de Ialta (de 4 a 11
de Fevereiro de 1945), o «Comité Lublin», dos comunistas polacos,
transportado para ocidente a reboque dos Soviéticos para dirigir a Polónia
depois da guerra, já estava instalado em Varsóvia(2).
De facto, Ialta deixou fora da mesa a questão que verdadeiramente
importava – os acordos sobre a Alemanha no pós-guerra – precisamente
porque era tão importante e difícil de tratar. Por outro lado, é improvável que
os líderes ocidentais pudessem ter feito uma melhor negociação com Estaline
nestes últimos meses da guerra, ainda que lhes tivesse ocorrido tentá-la. A
única esperança dos Polacos e de outros era que Estaline se mostrasse
generoso com eles em troca da boa-vontade ocidental. Mas ele dispunha desta
em qualquer caso, e muito tempo depois da derrota de Hitler eram os Aliados
ocidentais que procuravam a cooperação de Estaline, e não o contrário. A
União Soviética tinha de ser mantida na guerra contra a Alemanha (e mais
tarde, segundo se supunha, contra o Japão). O problema da Europa Central
podia esperar pela paz. Se as coisas se tivessem passado de forma diferente,
Roosevelt e Churchill poderiam ter protestado mais fortemente em Agosto de
1944, quando 200 000 Polacos foram mortos pelos Alemães num
levantamento desesperado em Varsóvia, enquanto o Exército Vermelho fazia
figura de espectador do outro lado do Vístula.
Os líderes ocidentais podem não ter partilhado o ponto de vista de Estaline
sobre o Exército Nacional clandestino dos Polacos como sendo «um punhado
de aventureiros e criminosos sedentos de poder», mas não estavam dispostos
a antagonizar o seu aliado militar mais importante apenas seis semanas após o
desembarque do Dia D na Normandia. Desde então, portanto, para os Polacos,
isto era uma traição ao verdadeiro objectivo da guerra, pois, afinal, em
Setembro de 1939, a Grã-Bretanha e a França declararam guerra a Hitler por
causa da invasão da Polónia. No entanto, para os Aliados ocidentais, deixar
Estaline com a mão livre a Leste era algo absolutamente evidente. O objectivo
da guerra era a derrota da Alemanha.
Este objectivo continuou a ser a principal motivação até ao fim da guerra.
Em Abril de 1945, com a Alemanha já derrotada, embora não oficialmente,
Roosevelt ainda podia declarar que, mesmo em relação aos acordos do pós-
guerra sobre a própria Alemanha, «a nossa atitude deveria ser a de estudar e
adiar a decisão final». Havia boas razões para adoptar esta posição: a procura
de uma solução para a Questão Alemã iria revelar-se extremamente difícil,
como os observadores perspicazes podiam já reconhecer, e tinha sentido
defender durante o máximo de tempo possível a aliança antigermânica que
unira os parceiros na guerra. Porém, em consequência disto, o delineamento
da Europa do pós-guerra foi ditado, em primeiro lugar, não pelos acordos
feitos durante a guerra, mas sim pela localização dos exércitos ocupantes
quando os Alemães se renderam. Estaline explicou a Molotov quando este
manifestou dúvidas sobre a redacção da bem-intencionada «Declaração sobre
a Europa Libertada»: «Podemos cumpri-la à nossa maneira. O que importa é a
correlação de forças.»
No Sudeste da Europa, a guerra terminara no final de 1944 com as forças
soviéticas a obter o controlo absoluto do Norte dos Balcãs. Em Maio de 1945,
na Europa Central e de Leste, o Exército Vermelho libertara e reocupara a
Hungria, a Polónia e a maior parte da Checoslováquia. As tropas soviéticas
atravessaram a Prússia e entraram na Saxónia. No Ocidente, onde os
Britânicos e os Americanos faziam guerras quase separadas no Noroeste e no
Sudoeste da Alemanha, respectivamente, Eisenhower poderia certamente ter
chegado a Berlim antes dos Russos, mas Washington desencorajou-o de o
fazer. Churchill gostaria de ter assistido a um avanço ocidental sobre Berlim,
mas Roosevelt conhecia a preocupação dos seus generais com a perda de
vidas (pois um quinto das perdas das tropas dos Estados Unidos na Segunda
Guerra Mundial ocorreu na batalha das Ardenas belgas, no ano anterior), bem
como o interesse de Estaline pela capital germânica.
Em resultado disto, na Alemanha e na Checoslováquia (onde o exército
dos Estados Unidos avançou inicialmente até 29 quilómetros de Praga e
libertou a região de Pilsen, no oeste da Boémia, apenas para a entregar ao
Exército Vermelho pouco depois), a linha que dividia a Europa que ainda não
era «de Leste» e «Ocidental» ficou situada um pouco mais a ocidente do que
o resultado da guerra poderia ter sugerido, mas apenas um pouco: por mais
que os generais Patton e Montgomery pudessem ter pressionado, o resultado
final não seria muito diferente. Entretanto, mais a sul, a 2 de Maio de 1945, o
Exército de Libertação Nacional jugoslavo e o 8.o Exército britânico
encontraram-se face a face em Trieste, traçando uma linha que se tornaria na
primeira grande fronteira da Guerra Fria, situada numa das mais cosmopolitas
cidades da Europa Central.
É claro que a Guerra Fria «oficial» ainda se situava no futuro, mas em
certos aspectos começara muito antes de Maio de 1945. Enquanto a
Alemanha fosse o inimigo, era fácil esquecer as disputas e os antagonismos
mais fundos que separavam a União Soviética dos seus aliados de guerra. Mas
eles mantinham-se. Quatro anos de cooperação cautelosa, numa luta de vida
ou de morte contra um inimigo comum, pouco tinham feito para ultrapassar
cerca de 30 anos de suspeitas mútuas. De facto, a Guerra Fria começou na
Europa, não depois da Segunda Guerra Mundial, mas depois da Primeira.
Este facto era perfeitamente claro na Polónia, que travou uma luta
desesperada com a nova União Soviética em 1920; na Grã-Bretanha, onde
Churchill ganhou a reputação que teve entre as duas guerras com o Perigo
Vermelho do início dos anos 20 e com o tema do antibolchevismo; em França,
em que o anticomunismo foi o trunfo mais forte da direita nas questões
internas desde 1921 até invasão alemã de Maio de 1940; em Espanha, em que
Estaline e Franco beneficiaram por empolar a importância do comunismo na
guerra civil espanhola; e sobretudo, é claro, na própria União Soviética, em
que o monopólio do poder detido por Estaline e as suas purgas sangrentas dos
críticos do Partido se basearam fortemente na acusação de que o Ocidente e
os seus associados no país conspiravam para minar a União Soviética e
destruir a experiência comunista. O período entre 1941 e 1945 não foi mais
do que um interregno num combate internacional entre as democracias
ocidentais e o totalitarismo soviético, uma luta cujos contornos foram
obscurecidos, mas não fundamentalmente alterados, pela ameaça para ambos
os lados constituída pela ascensão do fascismo e do nazismo no centro do
continente.
Foi a Alemanha que juntou a Rússia e o Ocidente em 1941, muito à
semelhança do que acontecera antes de 1914. Todavia, a aliança estava
condenada à partida. De 1918 a 1934, a estratégia soviética na Europa Central
e Ocidental, dividindo a esquerda e encorajando a subversão e os protestos
violentos, ajudou a formar uma imagem do «bolchevismo» que o apresentava
como tendo uma natureza fundamentalmente estranha e hostil. Quatro anos de
alianças conturbadas e controversas de «Frente Popular» contribuíram de
algum modo para dissipar esta impressão, apesar dos julgamentos e
assassinatos em massa na própria União Soviética. Porém, o pacto Molotov-
Ribbentrop, de Agosto de 1939, e a colaboração de Estaline com Hitler no
desmembramento dos vizinhos comuns no ano seguinte, prejudicou
consideravelmente os resultados da propaganda durante os anos de Frente
Popular. Só o heroísmo do Exército Vermelho e dos cidadãos soviéticos nos
anos de 1941 a 1945 e os crimes sem precedentes dos nazis ajudaram a
dissipar estas memórias anteriores.
Quanto aos Soviéticos, nunca abandonaram a sua desconfiança em relação
ao Ocidente, que era muito anterior a 1917, é claro, mas que foi muito
alimentada pela intervenção militar durante a guerra civil de 1917-1921, pela
ausência da União Soviética das instituições e das questões internacionais nos
15 anos seguintes, pela suspeita fundamentada de que a maioria dos líderes
ocidentais preferia os fascistas aos comunistas, se fosse obrigada a escolher, e
pela intuição de que a Grã-Bretanha e a França, sobretudo, não lamentariam
ver a União Soviética e a Alemanha nazi empenhar-se num conflito em que
ambos se destruiriam, para benefício dos outros. Mesmo depois de se ter
constituído a aliança de guerra e de se tornar claro o interesse comum na
derrota da Alemanha, o grau de desconfiança recíproca era flagrante. Por
exemplo, durante a guerra, a troca de informações sensíveis entre o Ocidente
e o Leste era muito reduzida.
O fim da aliança de guerra e a divisão subsequente da Europa não se
ficaram assim a dever a um erro, a um egoísmo patente ou à maldade. Tinham
raízes na história. Antes da Segunda Guerra Mundial, as relações entre os
Estados Unidos e o Reino Unido, por um lado, e a URSS, por outro, foram
sempre tensas. A diferença era que nenhum deles fora antes responsável por
amplas áreas do continente europeu. Para além disso, tinham-se separado
devido à presença da França e da Alemanha, entre outros factores. Contudo,
com a humilhação francesa em 1940, e a derrota alemã cinco anos mais tarde,
tudo mudou. Foi sempre provável que a Guerra Fria regressasse à Europa,
mas não era inevitável. Foi provocada pelos objectivos e as necessidades, que
se revelaram afinal incompatíveis, das diferentes partes interessadas.
Devido à agressão germânica, os Estados Unidos eram agora, pela
primeira vez, uma potência na Europa. Que os Estados Unidos possuíam uma
força enorme era evidente, mesmo para os que ficaram hipnotizados com os
sucessos do Exército Vermelho. O PNB dos Estados Unidos duplicara no
decurso da guerra e na Primavera de 1945 a América possuía metade da
capacidade manufactureira mundial, a maioria dos seus excedentes de
alimentos e praticamente todas as reservas financeiras. Os Estados Unidos
reuniram 12 milhões de homens armados para combater a Alemanha e os seus
aliados e, quando o Japão se rendeu, a frota americana era maior do que as
frotas dos outros países em conjunto. O que fariam os Estados Unidos com o
seu poder? Depois da Primeira Guerra Mundial, Washington optou por não o
exercer. Seriam muito diferentes as coisas após a Segunda? O que pretendia a
América?
No que dizia respeito à Alemanha – e 85% do esforço de guerra americano
foi feito em luta contra ela –, a intenção inicial americana era muito severa.
Uma directiva da Junta de Chefes do Estado-Maior, a JCS 1067, foi
apresentada ao presidente Truman em 26 de Abril de 1945, duas semanas
após a morte de Roosevelt. Reflectindo o ponto de vista de Henry
Morgenthau, o secretário de Estado do Tesouro – para além de outras figuras
– recomendava que: «Deve ser explicado claramente aos Alemães que a
guerra cruel conduzida pela Alemanha e a resistência fanática dos nazis
destruíram a economia alemã e tornaram inevitáveis o caos e o sofrimento e
que os Alemães não podem evitar a responsabilidade pelo que lhes aconteceu.
A Alemanha não será ocupada com um propósito de libertação, mas como
uma nação inimiga derrotada», ou, como disse o próprio Morgenthau, «[é] da
maior importância que todas as pessoas na Alemanha tomem consciência que
desta vez a Alemanha é uma nação derrotada».
Em suma, o aspecto essencial era evitar um dos grandes erros do Tratado
de Versalhes, segundo parecia retrospectivamente aos que definiam a política
em 1945: a falha de não se ter explicado aos Alemães toda a extensão dos
seus pecados e a némesis que os visitara. A lógica desta abordagem inicial
americana à questão alemã requeria, portanto, a desmilitarização, a
desnazificação e a desindustrialização, para privar a Alemanha dos seus
recursos militares e económicos e reeducar a população. Esta política foi
devidamente aplicada, pelo menos em parte: a Wehrmacht foi formalmente
dissolvida (em 20 Agosto de 1946), os programas de desnazificação foram
levados à prática sobretudo na zona ocupada pelos Americanos, como vimos
no capítulo 2, e foram definidos limites estritos à capacidade e à produção
industriais alemãs, com a produção de aço a ser severamente restringida, de
acordo com o «Plano para o Nivelamento da Economia (Alemã) do Pós-
Guerra», de Março de 1946.
Porém, a «estratégia Morgenthau» foi energicamente criticada desde o
início na própria Administração americana. De que serviria reduzir a
Alemanha, sob controlo americano, a uma condição virtualmente pré-
industrial? A maior parte das melhores terras agrícolas alemãs antes da guerra
estava agora sob controlo soviético ou tinha sido transferida para a Polónia.
Entretanto, a Alemanha Ocidental estava inundada de refugiados sem terra,
que não podiam aceder a esta nem a alimentos. As restrições à produção
urbana ou industrial podiam manter a Alemanha prostrada, mas não iriam
alimentá-la nem reconstruí-la. Esse fardo, aliás bem pesado, recairia sobre os
ocupantes vitoriosos. Mais cedo ou mais tarde teriam de transferir a sua
responsabilidade para os próprios Alemães, momento em que se teria de
permitir que estes reconstruíssem a sua economia.
Os críticos americanos em relação à linha «dura» que os Estados Unidos
adoptaram de início acrescentaram outra consideração a estas preocupações.
Era correcto que se obrigasse os Alemães a tomar consciência da sua própria
derrota, mas a menos que se lhes oferecesse alguma perspectiva de um futuro
melhor, o resultado poderia ser idêntico ao anterior: uma nação ressentida,
humilhada e vulnerável à demagogia da direita ou da esquerda. Como disse o
antigo presidente Herbert Hoover ao próprio Truman, em 1946: «Pode-se
obter vingança ou a paz, mas não as duas.» Se no tratamento dado pelos
Americanos à Alemanha a ponderação das vantagens se inclinou cada vez
mais para a «paz», isso ficou largamente a dever-se às perspectivas sombrias
das relações americano-soviéticas.
Em Washington, num círculo restrito de pessoas bem informadas, era
óbvio desde o início que a incompatibilidade dos interesses soviéticos e
ocidentais conduziria a um conflito e que zonas de poder claramente definidas
poderiam ser uma solução prudente para os problemas do pós-guerra. Esta era
a perspectiva de George Kennan. Escreveu ele em 26 de Janeiro de 1945:
«Por que razão não poderíamos estabelecer um compromisso aceitável e
definitivo com [a URSS], isto é, dividir abertamente a Europa em zonas de
influência e manter-nos fora da esfera russa e os Russos fora da nossa? […]
Em qualquer esfera de acção que nos fosse concedida poderíamos pelo menos
[…] depois da guerra, [tentar] restaurar a vida numa base digna e estável.»
Num memorando de Averell Harriman, o embaixador dos Estados Unidos
em Moscovo, foi proposta ao presidente Roosevelt, seis semanas depois, uma
resposta mais pessimista e de confronto implícito às iniciativas soviéticas: «A
não ser que pretendamos aceitar uma invasão bárbara da Europa no século
XX, com a repressão a ser cada vez maior também a leste, temos de encontrar
forma de suster a política soviética de dominação […] Se não enfrentarmos
agora e sem rodeios as questões, a história irá designar os anos da próxima
geração como a época soviética.»
Harriman e Kennan divergiam quanto à forma de responder às iniciativas
soviéticas, mas não estavam em desacordo nos seus relatos do que Estaline
estava a fazer. Outros líderes americanos, contudo, eram muito mais
optimistas, e não apenas na Primavera de 1945. Charles Bohlen, outro
diplomata americano e destinatário da carta de Kennan citada acima,
acreditava na possibilidade de um acordo no pós-guerra baseado em
princípios gerais de autodeterminação e de cooperação entre as grandes
potências. Reconhecendo a necessidade de manter a cooperação com a União
Soviética para procurar uma solução para a questão da Alemanha, Bohlen e
outros, como o secretário de Estado James Byrnes, apostaram na ocupação
militar dos Estados que fizeram parte do Eixo, bem como dos seus satélites, e
em eleições livres segundo as linhas esboçadas em Ialta. Só mais tarde, depois
de – sob os auspícios de Conselhos de Controlo Aliados, sobretudo na
Roménia e na Bulgária – terem observado o modo de actuação da potência
soviética, reconheceram que estes objectivos eram incompatíveis e
concordaram com a preferência dada por Kennan à realpolitik das esferas de
influência distintas.
Uma das razões do optimismo inicial foi a perspectiva amplamente
partilhada de que Estaline não estava interessado em provocar a confrontação
e a guerra. Como o próprio general Eisenhower disse ao presidente Truman e
aos seus chefes de Estado-Maior, em Junho de 1946: «não acredito que os
Vermelhos pretendam uma guerra. O que poderão eles ganhar agora com um
conflito armado? Acabaram de ganhar mais ou menos tudo aquilo que podiam
assimilar.» Num sentido restrito, Eisenhower estava certo: Estaline não se
preparava para a guerra com os EUA (embora a conclusão razoável a tirar,
isto é, que então a União Soviética tinha interesse em cooperar totalmente
com o seu antigo aliado, não fosse de facto verdadeira). Sendo assim, os
Estados Unidos, que possuíam o monopólio das armas nucleares, arriscavam
pouco ao manter abertos os canais de comunicação com a União Soviética e
ao procurar soluções mutuamente aceitáveis para os problemas comuns.
Outro elemento da política dos Estados Unidos depois da guerra foi
constituído pelas instituições internacionais que os Americanos ajudaram a
criar e cujo sucesso sinceramente desejavam. Destas, as Nações Unidas – cuja
carta foi ratificada em 24 de Outubro de 1945 e cuja primeira Assembleia-
Geral se reuniu em Janeiro de 1946 – é, evidentemente, a instituição mais
conhecida. No entanto, as realizações mais importantes para os decisores
políticos da altura talvez fossem as agências financeiras e económicas e os
acordos associados a «Bretton Woods».
Aos olhos dos Americanos, pareceu que o desfazer da economia nos anos
que mediaram entre as duas guerras foi a raiz principal da crise europeia (e
mundial). A menos que as divisas fossem convertíveis e as nações
beneficiassem permanentemente do comércio em crescimento, nada podia
evitar o regresso dos maus dias de Setembro de 1931, quando o sistema
monetário que se seguiu à Primeira Guerra Mundial se desfez. Liderados por
John Maynard Keynes – o espírito que instigou o encontro de Julho de 1944
no centro de conferências de Bretton Woods, em New Hampshire –
economistas e homens de Estado procuraram uma alternativa ao sistema
financeiro internacional anterior à guerra, algo que fosse menos rígido e
deflacionário do que o padrão-ouro, mas mais fiável e mutuamente
sustentável do que um regime de taxas de câmbio flutuantes. Qualquer que
viesse a ser este novo regime, ele necessitaria, argumentou Keynes, de algo
que se assemelhasse a um banco internacional, funcionando sobretudo como
um banco central de uma economia nacional com a tarefa de a administrar:
manteria as taxas de câmbio fixas, ao mesmo tempo que encorajaria e
facilitaria as transacções cambiais internacionais.
Isto foi, no essencial, o que ficou acordado em Bretton Woods. Criou-se o
Fundo Monetário Internacional (com dinheiro dos Estados Unidos), «para
facilitar a expansão e o crescimento equilibrado do comércio internacional»
(artigo I). O primeiro Conselho Executivo, segundo o modelo do Conselho de
Segurança das Nações Unidas, tinha representantes dos Estados Unidos, do
Reino Unido, da França, da China e da URSS. Foi proposta uma organização
do comércio internacional, que assumiria finalmente a forma do Acordo Geral
de Tarifas e Comércio [GATT] (e que se tornaria mais tarde a Organização
Internacional do Comércio). Os seus membros concordaram em fazer
concessões tarifárias e outras aos parceiros contratuais, bem como em
introduzir códigos de práticas de comércio e de procedimentos para lidar com
as violações do acordo e com as disputas. Tudo isto configurava uma ruptura
radical com as anteriores abordagens «mercantilistas» do comércio e
pretendia inaugurar, no momento oportuno, uma nova época de comércio
livre.
Implícito nos objectivos e nas instituições saídas de Bretton Woods, onde
se incluía um «Banco Mundial», estava um grau de interferência externa sem
precedentes nas práticas nacionais. Para além disso, as divisas deveriam
passar a ser convertíveis, uma condição necessária do comércio internacional
sustentado e previsível, tendo por base a sua relação com o dólar americano.
Na prática, tudo isto se revelou problemático: a Grã-Bretanha e a França
opuseram-se à convertibilidade; os Britânicos devido à sua «zona do
esterlino»(3) e à fraqueza da sua economia no pós-guerra, os Franceses por
causa da sua antiga obsessão com o «franco forte» e ao seu desejo de manter
taxas de câmbio múltiplas para sectores e produtos distintos, uma herança
neocolbertiana de uma época há muito ultrapassada. Demorou toda uma
década para se conseguir a convertibilidade completa, com o franco e a libra a
juntarem-se finalmente ao sistema de Bretton Woods em 1958 e 1959,
respectivamente (a que se seguiria o Deutschmark em Maio de 1959 e a lira
italiana em Janeiro de 1960).
Vemos assim que o sistema de Bretton Woods não foi criado de uma só
vez. Os participantes em Bretton Woods previram a convertibilidade
internacional universal para o final dos anos 40, mas os seus cálculos não
tomaram em consideração as consequências políticas e económicas da Guerra
Fria (nem, de facto, do Plano Marshall). Dito de outro modo: os grandes
ideais que deram origem aos planos e às instituições destinados a um sistema
internacional mais aperfeiçoado pressupuseram que iria existir uma era
estável de cooperação internacional em que todos ganhariam. A União
Soviética, de início, participava inteiramente no sistema financeiro proposto
em Bretton Woods. Esteve para ser o terceiro contribuinte mais importante
para o total de quotas do Fundo Monetário Internacional. Foi talvez ingénuo
da parte dos Americanos (e de alguns Britânicos) imaginar que estas
propostas poderiam ser aceites pelos decisores políticos russos – ou até
franceses. Em qualquer caso, contornaram este impedimento com o
expediente simples de elaborar os seus planos sem consultar os Russos, os
Franceses ou quem quer que fosse.
No entanto, esperavam sinceramente que os benefícios mútuos a obter
com o aumento do comércio internacional e a estabilidade financeira
acabariam por ultrapassar as tradições nacionais e a desconfiança política. Por
isso, quando a União Soviética anunciou abruptamente, no início de 1946,
que não faria parte das instituições de Bretton Woods, o departamento do
Tesouro dos Estados Unidos ficou genuinamente desconcertado. Foi para
explicar a ideia subjacente à jogada de Estaline que George Kennan enviou de
Moscovo, na noite de 22 de Fevereiro de 1946, o seu famoso Longo
Telegrama, o primeiro acto de reconhecimento, por parte da América, de que
se aproximava a confrontação.
Expor assim este assunto tem por efeito apresentar os construtores da
política externa dos Estados Unidos como extremamente ingénuos, se
exceptuarmos George Kennan. Na verdade, talvez o fossem, e não seriam
apenas os que, como o senador Estes Kefauver ou Walter Lippmann,
simplesmente se recusaram acreditar no que lhes contavam sobre as actuações
da União Soviética na Europa de Leste e, de facto, em todo o mundo. Pelo
menos em meados de 1946, muitos dos líderes dos Estados Unidos falaram e
agiram como se acreditassem verdadeiramente na continuidade da sua
associação com Estaline, que vinha do tempo da guerra. Até Lucretius
Patrascanu, um figura de topo da liderança comunista romena (e mais tarde
vítima de um julgamento encenado no seu próprio país), foi levado a
comentar, durante as negociações do tratado de paz de Paris, no Verão de
1946, que «[o]s Americanos são doidos. Estão a dar aos Russos mais do que
[estes] pedem e esperam»(4).
No entanto, a política americana não era feita apenas de inocência. Em
1945 e durante mais algum tempo, os Estados Unidos esperaram sinceramente
retirar-se da Europa tão rápido quanto fosse possível e estavam assim
compreensivelmente ansiosos por firmar um acordo exequível que não
exigisse uma presença nem uma supervisão americanas. Este aspecto do
pensamento americano no pós-guerra não é convenientemente relembrado
nem compreendido hoje em dia, mas era muito importante nas análises
americanas realizadas na altura. Como Roosevelt explicou em Ialta, os
Estados Unidos não esperavam prosseguir com a ocupação da Alemanha (e,
por isso, ficar na Europa) mais do que dois anos, no máximo.
Houve uma grande pressão sobre Truman para cumprir este compromisso.
O termo abrupto dos acordos de empréstimo e aluguer fazia parte de um corte
geral nos compromissos económicos e políticos com a Europa. O orçamento
de defesa americano foi reduzido em 5/6 entre 1945 e 1947. No fim da guerra,
os Estados Unidos tinham na Europa 97 divisões operacionais. Em meados de
1947, havia apenas 12 divisões, a maioria das quais subequipada e dedicada a
tarefas administrativas. As restantes tinham regressado e foram
desmobilizadas. Isto satisfazia as expectativas do eleitorado americano, do
qual, em Outubro de 1945, apenas 7% consideravam que os problemas
externos eram mais importantes do que as preocupações nacionais. Todavia,
este procedimento provocou grande apreensão entre os aliados europeus da
América, que começaram a recear seriamente um regresso do isolacionismo
do período entre as duas guerras. Estavam apenas parcialmente enganados.
Como os Britânicos sabiam, na eventualidade de uma invasão soviética da
Europa Ocidental depois de 1945, a estratégia americana consistiria numa
retirada imediata para as bases recuadas da Grã-Bretanha, da Espanha e do
Médio Oriente.
Mas ainda que estivessem a reduzir o seu comprometimento militar com a
Europa, os diplomatas americanos estavam a ter uma experiência de
aprendizagem com contornos inesperados. James Byrnes, o mesmo secretário
de Estado que acreditara em acordos feitos durante a guerra e na boa-fé
soviética, fez um discurso em Estugarda, em 6 de Setembro de 1946, em que
procurou tranquilizar o seu auditório alemão: «Enquanto for precisa uma
força de ocupação na Alemanha, o Exército dos Estados Unidos fará parte
dela.» Não se pode dizer que fosse um compromisso formal com a defesa
europeia, mas, despertado talvez por uma carta de Truman, datada de Junho
(«Estou cansado de fazer de ama-seca dos Russos»), reflectia a frustração
cada vez maior que resultava das dificuldades de trabalhar com a União
Soviética.
Os Alemães não eram o único povo a necessitar que lhe fosse garantida a
segurança. Eram sobretudo os Britânicos que estavam ansiosos com o
aparente desejo dos Americanos de abandonarem a sua sobrecarga europeia.
A Grã-Bretanha não era apreciada por todos em Washington. Num discurso de
12 de Abril de 1946, o vice-presidente Henry Wallace recordou ao seu
público que «para além da língua e da tradição literária que partilhamos, não
temos mais em comum com a Inglaterra imperialista do que com a Rússia
comunista». Wallace, é claro, era notoriamente «brando» com o comunismo,
mas a sua aversão pelo envolvimento americano com a Grã-Bretanha era
partilhada por muitos em todo o espectro político. Quando Winston Churchill
pronunciou em Março de 1946, em Fulton, no Missouri, o seu famoso
discurso sobre a «cortina de ferro», o Wall Street Journal comentou
causticamente: «A reacção do país ao discurso do Sr. Churchill em Fulton
deve ser uma prova convincente de que os Estados Unidos não pretendem
qualquer aliança, ou algo que se assemelhe a uma aliança, com qualquer outra
nação.»
Churchill não terá ficado de modo nenhum surpreendido nem com Wallace
nem com o editor do Wall Street Journal. Logo em 1943 ficou plenamente
ciente do desejo de Roosevelt ver acabar o Império Britânico. Na verdade,
houve momentos em que Roosevelt parecia tão preocupado em limitar a Grã-
Bretanha no pós-guerra como em conter a União Soviética. Se é possível falar
de uma estratégia coerente dos Estados Unidos nos anos de 1944-1947 seria
esta: chegar a acordo sobre a Europa continental com Estaline, pressionar a
Grã-Bretanha para que abandonasse o seu império ultramarino e aceitasse o
comércio livre e a convertibilidade da libra e retirar da Europa a toda a
velocidade. Destes três objectivos, apenas o segundo foi atingido,
malogrando-se o terceiro devido à impossibilidade do primeiro.
A perspectiva britânica era muito diferente. Em 1944, um subcomissão do
governo assinalou quatro áreas prioritárias a ter em atenção no
relacionamento com a União Soviética: i) o petróleo do Médio Oriente; ii) a
bacia do Mediterrâneo; iii) «as comunicações marítimas vitais»; iv) a
manutenção e a protecção da força industrial britânica. Há que dizer que das
quatro apenas a segunda área dizia respeito directa e propriamente à Europa, o
que explica o empenhamento britânico na Grécia. Não há qualquer referência
à Europa de Leste. Se os líderes britânicos eram circunspectos ao lidar com
Estaline, não era devido a qualquer ansiedade provocada pelos seus planos
para a Europa Central, mas sim por preverem futuras acções soviéticas na
Ásia Central e no Próximo Oriente.
Isto tinha sentido à luz das permanentes prioridades da Grã-Bretanha no
Leste da Ásia, na Índia, em África e nas Caraíbas. Mas estas mesmas ilusões
imperiais (como já alguns lhes chamavam, e não só em Washington) tornaram
os estrategas britânicos muito mais realistas do que os seus aliados
americanos relativamente à Europa. Do ponto de vista de Londres, a guerra
tinha sido travada para derrotar a Alemanha e se o preço a pagar era um
império soviético na Europa de Leste, então que assim fosse. Os Britânicos
continuaram a ver as questões europeias em termos de equilíbrio de poder.
Segundo as palavras de Sir William Strang, do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, «[é] preferível que a Rússia domine a Europa de Leste do que a
Alemanha domine a Europa Ocidental».
Strang escrevia em 1943. Em 1945, quando se tornava evidente a extensão
do domínio russo, os líderes britânicos estavam menos optimistas do que os
seus colegas americanos. A seguir ao golpe de Bucareste de Fevereiro de
1945, arquitectado pelos Russos, e a subsequente pressão soviética exercida
com mão pesada sobre a Roménia e a Bulgária, era evidente que o preço desta
hegemonia iria ser elevado. Porém, os Britânicos não acalentavam esperanças
destituídas de fundamento de que houvesse melhorias na região. Como
afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros Ernest Bevin ao seu colega
Byrnes, dos Estados Unidos: «Nestes países, temos de estar dispostos a trocar
uns escroques por outros.»
O verdadeiro receio dos Britânicos em relação à Europa não era que a
URSS pudesse controlar a Europa de Leste, porque no final de 1944 isso era
já um fait accompli, mas que pudesse também atrair para a sua órbita uma
Alemanha prostrada e ressentida e firmasse desse modo o seu poder em todo
o continente. Para o evitar, como os chefes do Estado-Maior britânico
concluíram no Outono de 1944, seria provavelmente necessário dividir a
Alemanha e ocupar depois a sua parte ocidental. Nesse caso, como concluía
um relatório confidencial do Tesouro britânico de Março de 1945, uma
resposta ao problema alemão podia ser abandonar a ideia de uma solução
geral e, em vez disso, integrar totalmente essa zona alemã ocidental na
economia europeia. Como o general Alan Brooke, chefe do Estado-Maior
imperial, confidenciou no seu diário, em 27 de Julho de 1944, «A Alemanha
já não é a potência dominante da Europa. A Rússia é […]. Ela […] não pode
deixar de se tornar a maior ameaça nos próximos quinze anos. Por isso,
alimente-se a Alemanha, recupere-se gradualmente e inclua-se numa
Federação da Europa Ocidental. Infelizmente, tudo isto tem de ser feito ao
abrigo de uma santa aliança da Rússia, da Inglaterra e da América.»
Isto foi mais ou menos, como se sabe, o que aconteceu quatro anos depois.
De todas as potências aliadas, foi a Grã-Bretanha que melhor anteviu e
mesmo procurou o acordo que por fim emergiu. Todavia, os Britânicos não
estavam em condições de impor tal resultado, nem, de facto, de impor o que
quer que fosse por sua conta. No fim da guerra, era óbvio que Londres não se
equiparava a Washington ou Moscovo. A Grã-Bretanha esgotara-se no
combate épico com a Alemanha e nem sequer podia manter por muito mais
tempo o aparato exterior de uma grande potência. Entre o dia da vitória na
Europa em 1945 e a Primavera de 1947, as forças britânicas foram reduzidas
de um máximo de 5,5 milhões de homens e mulheres armados para apenas 1,1
milhões. No Outono de 1947, o país foi mesmo forçado a cancelar manobras
navais para poupar combustível. Nas palavras do embaixador americano
William Clayton, um observador que estava longe de ser insensível, «os
Britânicos mantêm-se presos à esperança de que, de uma forma ou de outra,
com a nossa ajuda, possam manter o império britânico e continuar a liderá-
lo».
Nestas circunstâncias, os Britânicos estavam compreensivelmente
preocupados, não com a possibilidade de os Russos atacarem, pois a política
britânica foi definida no pressuposto de que a agressão soviética podia
assumir qualquer forma excepto a guerra, mas que os Americanos pudessem
retirar-se. Uma minoria do Partido Trabalhista no governo gostaria de os ver
partir, apostando em vez disso numa aliança defensiva europeia tendendo para
a neutralidade. Mas o primeiro-ministro Clement Atlee não alimentava tais
ilusões e explicou porquê numa carta ao seu colega Fenner Bockway do
Partido Trabalhista:
«Alguns [no Partido Trabalhista] pensaram que deveríamos concentrar
todos os nossos esforços na construção de uma terceira força na Europa.
Óptimo, não há dúvida. Mas na altura não existia base espiritual nem material
para a levar a efeito. O que restava da Europa não era suficientemente forte
para que pudesse enfrentar corajosamente e por si só a Rússia. Tínhamos de
ter uma força mundial, porque tínhamos pela frente uma força mundial […].
Sem a força dissuasora dos Americanos, os Russos podiam facilmente tentar
varrer tudo à sua frente. Não sei se o fariam, mas não era uma eventualidade
que se pudesse simplesmente ignorar.»
No entanto, poder-se-ia contar com os Americanos? Os diplomatas
britânicos não esqueceram a lei da neutralidade de 1937 e conheciam muito
bem, é claro, a ambiguidade americana quanto ao seu empenho fora do país,
porque não era muito diferente da sua própria posição em tempos mais
recuados. Desde meados do século XVIII até ao envio da força expedicionária
britânica para a França em 1914, os Ingleses preferiram combater por
procuração, não tendo Exército regular, evitando compromissos prolongados
no continente e não mantendo nenhuma força em permanência em solo
europeu. No passado, uma potência marítima que procurasse combater numa
guerra europeia com soldados de outro país podia olhar como aliados para os
Espanhóis, os Franceses, os Suíços, os Suecos, os Prussianos e, é claro, para
os Russos. Todavia, os tempos haviam mudado.
Daí a decisão britânica, em Janeiro de 1947, de avançar com o seu
programa de armas atómicas. Porém, o significado dessa decisão reside no
futuro. Nas circunstâncias dos anos iniciais do pós-guerra, o que os Britânicos
mais poderiam esperar era encorajar o empenho americano na Europa (o que
significava concordar publicamente com a crença americana num acordo
negociado), ao mesmo tempo que colaboravam com os Soviéticos na medida
em que tal opção fosse ainda realista. Enquanto o receio do revanchismo
alemão prevalecesse sobre tudo o mais, esta política poderia mais ou menos
ser mantida.
No início de 1947, contudo, ela estava nitidamente a desagregar-se. Em
que medida a União Soviética constituía ou não um perigo real no momento
presente era incerto (ainda em Dezembro de 1947, até Bevin encarava a
Rússia como uma ameaça menor do que uma futura e ressurgida Alemanha).
Mas o que era penosamente evidente é que a posição da Alemanha num
limbo, com a economia refém de discussões políticas por resolver e os
Britânicos a pagar enormes contas na sua zona de ocupação, não podia
continuar por muito tempo. A economia alemã necessitava de ser revitalizada,
com ou sem o acordo soviético. Os Britânicos, que tinham combatido do
princípio ao fim em duas longas guerras contra a Alemanha e muito tinham
perdido com as suas difíceis vitórias, estavam portanto muito ansiosos por
encerrar este capítulo, estabelecer algum tipo de modus vivendi nas questões
respeitantes à parte continental da Europa e passar adiante.
Em melhores tempos, os Britânicos teriam retirado para as suas ilhas, tal
como tinham grandes suspeitas de que os Americanos queriam retirar para o
seu continente e deixar a segurança da Europa Ocidental aos seus guardiões
tradicionais, os Franceses. Já recentemente, em 1938, foi esta a base dos
cálculos estratégicos dos Britânicos: que se podia ter confiança em que a
França, a maior potência militar do continente, seria não só o contrapeso das
ambições germânicas na Europa Central, mas até das futuras ameaças
soviéticas mais a leste. Esta imagem da França como uma – a – grande
potência europeia foi abalada em Munique, mas fora das chancelarias da
Europa de Leste ainda não tinha sido desfeita. O choque sísmico que ocorreu
em toda a Europa, em Maio e Junho de 1940, quando o grande Exército
francês entrou em colapso e se desfez perante a investida dos Panzer que
atravessaram o Mosa e passaram pela Picardia, foi ainda maior por ser tão
inesperado.
Em seis semanas traumáticas, os pontos de referência das relações entre os
Estados europeus mudaram para sempre. A França deixou de ser não só uma
grande potência, mas também uma potência, e, apesar dos melhores esforços
de De Gaulle, décadas mais tarde, nunca mais voltou a sê-lo, porque à derrota
esmagadora de Junho de 1940 seguiram-se quatro anos de ocupação
humilhante, aviltante e subserviente, com o regime de Vichy do marechal
Pétain a fazer de Uriah Heep para o Bill Sykes da Alemanha(*).
Independentemente do que disseram em público, os líderes e decisores
políticos franceses não podiam deixar de saber o que acontecera ao seu país.
Como um documento interno político francês confessava, uma semana após a
libertação de Paris, em 1944: «Se a França tiver de ser submetida a um
terceiro ataque na próxima geração, é de recear que […] sucumba para
sempre.»
Isto era dito em privado. Em público, os homens de Estado e políticos
franceses do pós-guerra insistiam em reivindicar o reconhecimento do seu
país como membro da coligação aliada vitoriosa, uma potência mundial a que
se deveria dar o mesmo estatuto que aos seus pares. Esta ilusão podia ter
algum apoio, por convir às outras potências fingir que assim era. A União
Soviética queria um aliado táctico no Ocidente que partilhasse as suas
suspeitas quanto aos «anglo-americanos», os Britânicos pretendiam que uma
França revitalizada tomasse o seu lugar nos conselhos da Europa e aliviasse a
Grã-Bretanha de obrigações no continente e até os Americanos viam alguma
vantagem, embora não muita, em conceder a Paris um lugar na mesa
principal. Por isso, foi concedido aos Franceses um lugar permanente no novo
Conselho de Segurança das Nações Unidas, foi-lhes oferecido um papel nas
administrações militares conjuntas de Viena e de Berlim e (por insistência
britânica) foi-lhes entregue uma área de ocupação retirada da zona americana,
no Sudoeste da Alemanha, numa região contígua à fronteira francesa e
bastante a ocidente da linha da frente soviética.
Todavia, o resultado líquido destes encorajamentos foi aumentar a
humilhação de uma nação já posta em situação bastante humilde. Os
Franceses começaram por responder com uma previsível susceptibilidade. No
Conselho de Controlo Aliado, na Alemanha, bloquearam ou vetaram
constantemente a implementação das decisões da conferência de Potsdam dos
Três Grandes, com o fundamento de que a França não tomara parte nela. As
autoridades francesas provisórias recusaram-se inicialmente a cooperar com a
UNRRA e com os governos militares aliados na gestão dos deslocados, com o
argumento de que os refugiados e deslocados franceses deveriam ser situados
e administrados enquanto parte de uma operação independente e
exclusivamente francesa.
Os governos franceses do pós-guerra sentiram, acima de tudo e
profundamente, a sua exclusão dos conselhos supremos de decisão aliada.
Não se devia confiar separadamente nos Britânicos e nos Americanos,
pensavam eles (recordando-se da retirada americana da Europa após 1920 e
da destruição da frota francesa em Mers-el-Kebir, em Julho de 1940, pelos
Britânicos). Mas, principalmente, não se devia confiar neles em conjunto, um
sentimento particularmente vivo em De Gaulle, assombrado por recordações
do seu estatuto aviltante durante a guerra como convidado em Londres e a sua
posição pouco relevante aos olhos de Franklin D. Roosevelt. Os Franceses
acabaram por pensar que as decisões que lhes diziam directamente respeito,
mas que não podiam de modo nenhum influenciar, eram tomadas em
Washington e Londres.
Tal como a Grã-Bretanha, a França era um império, pelo menos no papel.
Mas Paris fora afastada das suas possessões coloniais durante a ocupação. Em
qualquer caso, e apesar das significativas possessões que detinha em África e
no Sudeste da Ásia, a França era sempre e em primeiro lugar uma potência
continental. Por enquanto, as acções soviéticas na Ásia ou a crise que se
aproximava no Médio Oriente eram assuntos que apenas diziam respeito aos
Franceses indirectamente, ao contrário do que se passava com os Britânicos.
Precisamente porque a França estava agora mais pequena, a Europa
agigantava-se no seu campo de visão. Aliás, Paris tinha motivos de
preocupação na Europa. Terminara a influência francesa na Europa de Leste,
uma arena em que a diplomacia francesa fora muito activa entre as duas
guerras: em Outubro de 1938, um Edvard Benes em estado de choque fez a
famosa confidência de que o seu «grande erro perante a História […] terá sido
a minha fidelidade à França», e a sua desilusão era também geral na região(*).
A atenção da França estava agora dirigida para a Alemanha, e, de facto,
fixada nela. Não deixava de ser razoável: entre 1814 e 1940, o solo francês foi
invadido e ocupado pelos Alemães em cinco ocasiões diferentes, três delas
com memórias ainda vivas. O país pagara um preço incalculável em perdas
territoriais e materiais, em vidas humanas e sofrimento. O fracasso após 1918
em edificar um sistema de controlos e alianças capaz de limitar uma
Alemanha renascente e vingativa, assombrava o Quai d’Orsay, sede do
Ministério dos Negócios Estrangeiros francês. A primeira prioridade do país
após a derrota de Hitler era assegurar que esse erro não se repetiria.
Por isso, a posição inicial da França em relação ao problema alemão era
muito clara e derivava directamente das lições do período de 1918 a 1924. De
facto, era tanto assim que aos observadores externos parecia uma tentativa de
repetir o guião dos anos que seguiram à Primeira Guerra Mundial, só que,
desta vez, com o Exército de outrem. O que os decisores políticos franceses
pretendiam era o desarmamento completo e o desmantelamento económico da
Alemanha: deveria ser proibida a produção de armas, ou com estas
relacionada, deveriam ser pagas indemnizações (incluindo serviço obrigatório
de trabalhadores alemães em França) e deveriam ser requisitados e retirados
produtos agrícolas, madeira, carvão e maquinaria. A região mineira do Ruhr,
o Sarre e algumas áreas da Renânia deveriam ser separados do Estado alemão
e os seus recursos e produção colocados à disposição da França.
Se esta lista de exigências tivesse sido imposta teria certamente destruído a
Alemanha durante muitos anos; aliás, esse era o seu objectivo semiconfessado
(um programa político sedutor em França). Mas teria servido também para
colocar os enormes recursos primários da Alemanha ao serviço dos planos de
recuperação que a França tinha. Na verdade, o Plano Monnet pressupunha em
particular a disponibilidade das entregas de carvão alemão sem as quais a
indústria francesa do aço não serviria para nada. Mesmo em 1938, a França
fora o maior importador mundial de carvão, satisfazendo no estrangeiro cerca
de 40% das suas necessidades de carvão e coque. Em 1944, a produção
francesa de coque caíra para menos de metade da de 1938. O país estava
ainda mais dependente do carvão estrangeiro. Mas, em 1946, quando a
produção interna de carvão recuperou para o nível de 1938, as importações
francesas de carvão – 10 milhões de toneladas – ainda eram
desesperantemente insuficientes para as quantidades requeridas. Sem o carvão
e o coque alemães a recuperação francesa seria inviável.
Contudo, havia algumas falhas nos cálculos franceses. Primeiro, davam
lugar às mesmas objecções que Keynes levantara à política francesa um
quarto de século antes. Tinha pouco sentido destruir os recursos alemães se
eram vitais para a própria recuperação da França e não havia simplesmente
nenhuma maneira de obrigar os Alemães a trabalhar em França, quando se
mantinha um baixo nível de vida no país e com poucas perspectivas de
melhoria. O risco de provocar uma reacção nacionalista na Alemanha contra a
opressão estrangeira, depois da guerra, parecia ser tão grande nos anos 40
como fora 20 anos atrás.
Mas a principal objecção dirigida aos planos franceses para a Alemanha
no pós-guerra era não ter em devida consideração os interesses e os planos
dos aliados ocidentais da França, um descuido imprudente numa época em
que estava extremamente dependente desses mesmos aliados, não só para a
sua própria segurança, mas também para os seus meios de subsistência. Nos
aspectos secundários, como a unificação aduaneira e monetária com o Sarre,
que a França conseguiu em 1947, os aliados ocidentais podiam acomodar-se
às exigências francesas. Todavia, quanto à questão central do futuro da
Alemanha, Paris não dispunha de meios para obrigar os «anglo-americanos» a
fazer o que pedia.
A relação da França com a União Soviética era um pouco diferente. A
França e a Rússia fizeram e desfizeram alianças entre si no último meio
século e a Rússia ainda tinha um lugar especial no afecto público francês: os
inquéritos de opinião na França do pós-guerra revelaram um considerável
capital de simpatia pela União Soviética(5). A seguir à derrota alemã, os
diplomatas franceses esperavam que uma concordância natural de interesses –
receio comum da Alemanha e suspeitas em relação aos «anglo-americanos» –
se pudesse traduzir num apoio continuado dos Soviéticos aos objectivos
diplomáticos da França. À semelhança de Churchill, De Gaulle identificava a
URSS com a «Rússia», e era assim que falava dela, raciocinando por meio de
grandes analogias históricas. Em Dezembro de 1944, a caminho de Moscovo
para negociar um tratado franco-russo bastante inócuo contra qualquer
renovação da agressão germânica, o líder francês disse para os que o
rodeavam que negociava com Estaline como Francisco I fizera com Solimão,
o Magnífico, quatro séculos antes, mas com a diferença «de que na França do
século XVI não havia nenhum partido muçulmano».
Estaline, porém, não partilhava das ilusões francesas. Não tinha interesse
em servir de contrapeso para apoiar os Franceses a diminuir o peso político de
Londres e Washington, embora isto só se tornasse claro àqueles em Abril de
1947, quando, num encontro de ministros dos Negócios Estrangeiros, em
Moscovo, Molotov se recusou a secundar as propostas de George Bidault para
uma Renânia separada e o controlo externo da cintura industrial do Ruhr. No
entanto, os Franceses continuaram a sonhar com formas alternativas de
assegurarem uma independência de formulação de políticas que era, na
verdade, impossível. Houve negociações malogradas com a Checoslováquia e
com a Polónia que visavam assegurar o fornecimento de carvão e mercados
para o aço e os produtos agrícolas franceses, e ainda em 1947 o ministro da
Guerra francês pôde propor confidencialmente que a França adoptasse uma
posição de neutralidade internacional, estabelecendo pactos ou alianças
preventivas com os EUA e com a URSS e fazendo frente a qualquer destes
dois que iniciasse uma agressão contra si.
Se a França abandonou finalmente estas fantasias e se aproximou das
posições dos seus parceiros ocidentais em 1947, fê-lo por três razões. Em
primeiro lugar, as estratégias francesas para a Alemanha falharam: não iria
haver desmantelamento da Alemanha e não haveria indemnizações de guerra.
A França não estava em condições de impor uma solução própria para a
Alemanha e não havia mais ninguém que quisesse a que propunha. A segunda
razão do abandono pela França das suas posições iniciais foi a desesperada
situação económica em meados de 1947: como todo o resto da Europa, a
França (como vimos) necessitava urgentemente não só da ajuda da América,
mas também da recuperação da Alemanha. A primeira dependia
indirectamente, mas sem ambiguidades, do acordo francês para uma estratégia
para a segunda.
Mas, em terceiro lugar, e decisivamente, os políticos franceses e o estado
de espírito nacional mudaram definitivamente no segundo semestre de 1947.
A rejeição soviética da Ajuda Marshall e o aparecimento do Comintern (que
analisaremos no próximo capítulo) fez passar o poderoso Partido Comunista
Francês de parceiro incómodo da coligação no governo a crítico feroz de
todas as políticas francesas, tanto internas como externas, de tal modo que, no
final de 1947 e na maior parte de 1948, a França pareceu a muitos estar a
caminho de uma guerra civil. Paralelamente, havia em Paris uma espécie de
receio de uma nova guerra, em que convergiam as preocupações constantes
com o revanchismo germânico e novos rumores de uma iminente invasão
soviética.
Nestas circunstâncias, e depois da recusa de apoio por parte de Molotov,
os Franceses viraram-se com relutância para o Ocidente. Interrogado pelo
secretário de Estado George Marshall em Abril de 1947 se a América «podia
confiar na França», Bidault, o ministro dos Negócios Estrangeiros, respondeu
«sim» – em devido tempo e se a França pudesse evitar a guerra civil.
Compreensivelmente, Marshall não ficou muito impressionado, tal como não
ficou 11 meses mais tarde ao descrever Bidault como sofrendo «de grande
nervosismo». Marshall pensava que as preocupações da França em relação à
Alemanha estavam «fora de moda e [eram] irrealistas»(6).
O que Marshall disse sobre os receios franceses em relação à Alemanha
era sem dúvida verdade, mas dá a entender alguma falta de empatia pelo
passado recente da França. Não foi por isso um facto destituído de significado
a aprovação, em 1948, pelo parlamento francês, dos planos anglo-americanos
para a parte ocidental da Alemanha, embora com uma votação
significativamente equilibrada de 297 votos contra 289. Os Franceses não
tinham alternativa e sabiam-no. Se queriam a recuperação económica e
algumas garantias de segurança por parte dos Americanos e dos Britânicos
contra uma revitalização da Alemanha ou uma expansão soviética, então
teriam de alinhar com eles, sobretudo num momento em que a França estava
envolvida numa guerra colonial dispendiosa na Indochina e para a qual
necessitava urgentemente da ajuda americana.
Os Americanos e os Britânicos podiam dar garantias à França contra uma
ameaça militar renovada por parte da Alemanha. Por outro lado, a política
americana podia manter a sua promessa de recuperação económica da
Alemanha. Todavia, nem uma coisa nem outra resolviam o profundo dilema
com que a França lidava: como garantir o acesso francês privilegiado aos
materiais e aos recursos situados na Alemanha? Se estes objectivos não iriam
ser obtidos pela força nem pela anexação, então tinham de ser encontradas
formas alternativas. A solução, tal como surgiu no pensamento francês nos
meses seguintes, consistia na «europeização» do problema alemão: como
disse Bidault, uma vez mais, em Janeiro de 1948: «No plano económico, mas
igualmente no político, devemos […] propor como objectivo aos Aliados e
aos próprios Alemães a integração da Alemanha na Europa […] é […] a única
forma de dar vida e coerência a uma Alemanha politicamente descentralizada,
mas economicamente próspera.»
Em suma, se não podemos destruir a Alemanha, então juntemo-nos a ela
num quadro europeu em que não possa causar militarmente danos, mas sim
trazer benefícios económicos. Se esta ideia não ocorreu aos líderes políticos
franceses antes de 1948 não foi por carecerem de imaginação, mas porque era
claramente entendida como um pis aller, como uma segunda escolha. Uma
solução «europeia» para o problema alemão da França apenas poderia ser
adoptada depois de a solução propriamente «francesa» ter sido abandonada, e
demorou três anos para que os líderes franceses aceitassem isto. Na verdade,
nestes três anos, a França teve de aceitar a súbita negação de 300 anos de
história. Nestas circunstâncias, não foi feito de somenos.
A situação da União Soviética em 1945 era precisamente oposta à da
França. Após duas décadas de exclusão efectiva das questões da Europa, a
Rússia voltara a emergir. A capacidade de resistência da população soviética,
os êxitos do Exército Vermelho e, devemos dizê-lo, a capacidade dos nazis
para virar contra si até as nações com mais fortes sentimentos anti-soviéticos,
deram a Estaline credibilidade e influência, tanto nos conselhos de ministros
como nas ruas.
Esta nova atracção pelos bolcheviques baseava-se na sedução do poder,
porque, na verdade, a URSS era muito poderosa: apesar das suas enormes
perdas nos seis primeiros meses da invasão germânica, quando o Exército
Vermelho perdeu 4 milhões de homens, 8000 aviões e 17 000 tanques, os
exércitos soviéticos recuperaram a ponto de, em 1945, constituírem a maior
força militar que a Europa alguma vez vira. Só na Hungria e na Roménia
mantiveram, ao longo de 1946, uma presença militar de cerca de 1 600 000
homens. Estaline tinha o controlo directo ou, no caso da Jugoslávia, indirecto
de uma enorme fatia da Europa de Leste e Central. Os seus exércitos foram
apenas bloqueados por um triz pelo rápido avanço dos Britânicos sob o
comando de Montgomery, o que os impediu de atravessar o Norte da
Alemanha até à fronteira dinamarquesa.
Como os generais ocidentais bem sabiam, nada teria impedido o avanço do
Exército Vermelho até ao Atlântico, se Estaline o tivesse ordenado. É claro
que os Americanos e os Britânicos tinham uma clara vantagem em capacidade
de bombardeamento estratégico e a América possuía a bomba atómica, como
Estaline bem sabia, mesmo antes de Truman lho ter dito em Potsdam, em
Julho de 1945. Não há dúvida de que Estaline queria uma bomba atómica
soviética. Foi uma das razões para ter insistido no controlo soviético das áreas
do Leste da Alemanha e, sobretudo, da Checoslováquia, onde havia depósitos
de urânio. Poucos anos depois, 200 000 leste-europeus estariam a trabalhar
nessas minas, integrados no programa atómico soviético(7).
Mas a bomba atómica, embora preocupasse os líderes soviéticos e tornasse
Estaline ainda mais desconfiado do que já estava acerca dos motivos e dos
planos dos Americanos, pouco contribuiu para alterar os cálculos militares
dos primeiros. Estes cálculos derivavam directamente das metas políticas de
Estaline, que, por sua vez, se inspiravam em objectivos soviéticos e russos há
muito definidos. O primeiro deles era territorial: Estaline pretendia recuperar
os territórios que os bolcheviques perderam com o tratado de Brest-Litovsk,
em 1918, e na guerra com a Polónia dois anos mais tarde. Este objectivo fora
em parte atingido com as cláusulas secretas dos seus pactos de 1939 e 1940
com Hitler. A parte restante conseguiu ele com a decisão de Hitler de invadir
a União Soviética em Junho de 1941, permitindo que o Exército Vermelho
reocupasse, por sua vez, os territórios em disputa quando avançou para
Berlim. Desta forma, a ocupação soviética e a anexação da Bessarábia e da
Bucovina (retiradas à Roménia), da Ruténia subcarpática (à Checoslováquia),
do Oeste da Ucrânia (à Polónia), do Leste da Finlândia, das três repúblicas
bálticas independentes e de Königsberg/Kalininegrado, na Prússia Oriental,
podiam ser todas apresentadas como um espólio de guerra, e não como o
resultado de acordos suspeitos com o inimigo fascista.
Para a União Soviética, a relevância deste acréscimo territorial era dupla.
Primeiro, punha termo ao seu estatuto de pária. Esta questão assumia alguma
importância para Estaline, que se tornava agora líder de um bloco euro-
asiático enorme, com voz nas questões mundiais, ficando simbolizado este
novo poder com a insistência da União Soviética num sistema de vetos no
recém-criado Conselho de Segurança das Nações Unidas. Porém, o território
não significava apenas prestígio, mas também, e acima de tudo, segurança.
Do ponto de vista soviético, um talude situado a oeste, uma ampla faixa de
território na qual, sobretudo os Alemães, teriam de passar se quisessem atacar
a Rússia, constituía uma preocupação de segurança que se afigurava vital. Em
Ialta, e depois também em Potsdam, Estaline insistiu bastante em que estes
territórios entre a Rússia e a Alemanha, se não ficassem totalmente
absorvidos pela própria URSS, deveriam ser governados por regimes amigos
«livres de elementos fascistas e reaccionários».
A interpretação destas últimas palavras revelar-se-ia controversa, no
mínimo. No entanto, em 1945, os Americanos e os Britânicos não estavam
dispostos a conceder novos argumentos a Estaline. Sentia-se que os
Soviéticos obtiveram o privilégio de definir a sua segurança como lhes
convinha, tal como fora inicialmente acordado que Moscovo estava no seu
direito de obter indemnizações, saque, trabalho e material militar dos antigos
países do Eixo (Alemanha, Áustria, Hungria, Roménia, Bulgária e Finlândia).
Retrospectivamente, podemos ser tentados a ver nestas apropriações
territoriais e espoliações económicas as primeiras fases da bolchevização da
metade oriental da Europa, e assim foram de facto. Todavia, nessa altura isso
não era evidente a todos. Para os observadores internacionais havia até algo
de familiar e tranquilizadoramente tradicional na posição inicial de Moscovo
no pós-guerra(8), e existia, aliás, um precedente.
Em geral, não é possível compreender o regime comunista da Rússia a
menos que levemos a sério as suas afirmações e ambições ideológicas.
Todavia, houve momentos, e os anos 1945-1947 foram um deles, em que,
mesmo se conhecêssemos pouco da doutrina bolchevique, poderíamos
compreender razoavelmente bem a estratégia externa soviética, olhando
apenas para as políticas dos czares. Afinal, foi Pedro, o Grande, quem
introduziu a estratégia segundo a qual a Rússia dominaria os seus vizinhos
mediante a sua «protecção»; foi Catarina, a Grande, quem dirigiu o império
para sul e sudoeste; e foi sobretudo o czar Alexandre I que criou o modelo de
envolvimento imperial russo na Europa.
No Congresso de Viena de 1815, em que, tal como em 1945, as potências
aliadas vitoriosas e mutuamente desconfiadas se encontraram para
restabelecer o equilíbrio do continente, após a derrota de um tirano, os
propósitos de Alexandre foram bastante explícitos. As preocupações das
nações pequenas deveriam ser subordinadas às das grandes potências. Uma
vez que os interesses britânicos se situavam no ultramar e nenhuma outra
potência continental se comparava à Rússia, o czar faria de árbitro num
acordo continental do pós-guerra. Os protestos nacionais seriam considerados
ameaças ao acordo em geral e esmagados com a energia apropriada. A
segurança russa seria definida pelo território sob controlo do czar – nunca
mais um exército ocidental poderia chegar sem entraves a Moscovo – e pelo
sucesso com que os seus ocupantes seriam integrados à força no novo
sistema.
Não há nada nesta descrição que não se aplique aos cálculos soviéticos de
1945. Na verdade, Alexandre e os seus ministros não encontrariam nada com
que sofismar num memorando político escrito por Ivan Maisky, o comissário
do povo delegado para os Negócios Estrangeiros, em Novembro de 1944:
«Depois da guerra, a situação mais vantajosa para nós seria a existência de
apenas uma grande potência continental na Europa – a URSS – e uma grande
potência marítima – a Grã-Bretanha.» É claro que a uma distância de 130
anos nada seria exactamente igual. Em 1945, Estaline estava mais preocupado
com a Ásia Central e o Próximo Oriente do que Alexandre estivera (embora
os sucessores imediatos de Alexandre tivessem estado muito activos nas duas
regiões). Em contrapartida, os estrategas soviéticos não partilhavam
completamente a obsessão czarista com Constantinopla, os Dardanelos e o
Sul dos Balcãs. Contudo, a continuidade das respectivas políticas ultrapassava
de longe as diferenças. Unia-as, digamos assim, os cálculos de Sazunov (o
ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia quando eclodiu a guerra de
1914), que já perspectivava o futuro da Europa de Leste como um conjunto de
Estados pequenos e vulneráveis, nominalmente independentes, mas, de facto,
clientes da Grande Rússia.
A estes temas persistentes da política externa czarista para a Europa,
Estaline acrescentou particularidades que lhe eram próprias. Esperava
realmente que se desse o colapso económico do Ocidente, extrapolando a
partir dos precedentes do período entre as duas guerras e dos dogmas
marxistas, e exagerou um conflito «inevitável» entre a Grã-Bretanha e os
Estados Unidos como concorrentes imperiais num mercado mundial em
declínio. Deduzia daqui não apenas tempos vindouros de turbulência
crescente – e daí a necessidade da União Soviética garantir os seus ganhos –,
mas a possibilidade real de «dividir» os aliados ocidentais, sobretudo em
relação ao Médio Oriente, mas também, talvez, em relação à Alemanha. Esta
foi uma das razões para não ter mostrado pressa em alcançar um acordo sobre
o primeiro. O tempo estava do seu lado, acreditava Estaline.
Porém, isto não o tornou de modo nenhum mais seguro. Pelo contrário, o
carácter defensivo e as suspeitas prudentes caracterizaram todos os aspectos
da política externa soviética («a perspectiva neurótica do Kremlin sobre as
questões mundiais», como George Kennan a descreveu em 1946). Daí o
famoso discurso de 9 de Fevereiro de 1946, no Teatro Bolshoi, em que
Estaline anunciou que a União Soviética regressava à sua ênfase, anterior à
guerra, na industrialização, na prontidão para a guerra e na inevitabilidade do
conflito entre o capitalismo e o comunismo, e tornou explícito o que já era
óbvio, ou seja, que daí para a frente a União Soviética cooperaria com o
Ocidente apenas quando fosse de sua conveniência.
Não havia aqui nada de novo: Estaline estava a recuar para a linha «dura»
assumida pelos bolcheviques antes de 1921 e de novo entre 1927 e o início
das Frentes Populares. O regime bolchevique fora sempre inseguro. Nascera,
afinal, de um golpe minoritário, em circunstâncias difíceis e num contexto
que lhe era muito adverso. Estaline, como todos os tiranos, necessitava de
invocar ameaças e inimigos, fossem internos ou externos. Para além disso,
Estaline sabia melhor do que a maioria que a Segunda Guerra Mundial fora
ganha por uma unha negra: se em 1941 os Alemães tivessem feito a invasão
um mês antes, (como o calendário de Hitler de início exigia), a União
Soviética poderia ter capitulado. Tal como os Estados Unidos da América
depois de Pearl Harbor, mas com mais razões ainda, a liderança soviética
estava obcecada até à paranóia com «ataques de surpresa» e desafios ao
estatuto que alcançara. Durante muitas décadas, os Russos (mais ainda do que
os Franceses) continuaram a ver a Alemanha como a maior ameaça(9).
O que pretendia então Estaline? Que antevia um esfriamento das relações
com o Ocidente e tentaria tirar o melhor partido dos seus recursos para
beneficiar da fraqueza do Ocidente, é sem dúvida verdadeiro. Mas está longe
de ser evidente que Estaline tivesse uma estratégia que fosse além disso.
Como conclui Norman Naimark, o historiador da ocupação soviética da
Alemanha de Leste no pós-guerra: «Os Soviéticos eram conduzidos pelos
acontecimentos concretos da zona e não por planos preconcebidos ou
imperativos ideológicos». Esta afirmação está de acordo com o que se sabe da
abordagem geral de Estaline e é também válida para casos distintos do da
Alemanha de Leste.
Os Soviéticos não estavam certamente a planear a Terceira Guerra
Mundial a curto prazo. Entre Junho de 1945 e o final de 1947, o Exército
Vermelho foi reduzido de 11 365 000 efectivos para 2 874 000, uma taxa de
redução que é comparável à das forças americanas e britânicas (embora
mantendo ainda um contingente muito maior em campo, incluindo muitas
divisões motorizadas e bem armadas). É claro que as concepções de Estaline
não eram de modo nenhum evidentes aos ocidentais contemporâneos e
mesmo os que viam em Estaline um pragmático cauteloso não podiam estar
inteiramente certos. No entanto, Molotov estava com certeza a dizer a verdade
quando sugeriu nas suas memórias que a União Soviética preferia obter
vantagens nas situações propícias, mas que não iria assumir riscos para as
criar: «A nossa ideologia é a favor de operações ofensivas quando for
possível, e se não for, esperamos.»
O próprio Estaline era bastante conhecido por ser avesso ao risco, razão
por que alguns comentadores lamentaram, tanto na altura como depois, o
fracasso do Ocidente em exercer uma «contenção» mais rápida e mais
pressionante. Porém, nestes anos, ninguém pretendia uma guerra, e ao passo
que Estaline podia ser prontamente dissuadido a não destabilizar Paris ou
Roma (dado que não tinha exércitos nestas cidades), a presença soviética mais
a leste era uma questão insusceptível de negociação, como todos
reconheciam. Nos Conselhos de Controlo Aliados na Bulgária ou na
Roménia, os Soviéticos nem sequer fingiam tomar em consideração os
desejos dos Britânicos ou dos Americanos, e muito menos os dos países onde
estavam. Só na Checoslováquia havia alguma ambiguidade, tendo o Exército
Vermelho retirado há muito.
Deste ponto de vista, Estaline agia respeitando o que em Moscovo se
poderia considerar como boa-fé. Ele e os seus camaradas partiam do princípio
de que os Aliados ocidentais sabiam que os Soviéticos planeavam ocupar e
controlar a «sua» metade da Europa e pretendiam tratar os protestos
ocidentais contra o comportamento soviético na sua zona como um pro forma,
ninharias do palavreado democrático. Quando lhes pareceu que o Ocidente
estava a levar demasiado a sério a sua própria retórica, exigindo liberdade e
autonomia na Europa de Leste, a liderança soviética respondeu com genuína
indignação. Uma nota de Molotov de Fevereiro de 1945, comentando a
interferência ocidental no futuro da Polónia, deu o tom: «Como é que os
governos são organizados na Bélgica, em França, na Grécia, etc., não
sabemos. Não nos perguntaram, embora não digamos se gostamos ou não de
algum destes governos. Não interferimos, porque é a zona anglo-americana de
acção militar.»
Todos esperavam que a Segunda Guerra Mundial terminasse, como a sua
antecessora, com um tratado de paz que englobasse todos e, de facto, foram
assinados cinco tratados distintos em Paris, em 1946. Estabeleciam questões
territoriais e outras na Roménia, na Bulgária, na Hungria, na Finlândia e em
Itália, mas não na Noruega, que permaneceu tecnicamente em estado de
guerra com a Alemanha até 1951(10). Todavia, por muito que estes
desenvolvimentos fossem do interesse das populações envolvidas (e no caso
da Roménia, da Bulgária e da Hungria significavam a sua entrega definitiva
ao domínio soviético), tais acordos podiam ser alcançados porque, afinal,
nenhuma das grandes potências estava disposta a arriscar confrontos por sua
causa.
A questão da Alemanha, todavia, era completamente diferente. Sobretudo
para os Russos, a Alemanha era, de facto, muito importante. Tal como a
guerra tivera a Alemanha por objecto, o mesmo se passava com a paz, e o
espectro do revanchismo germânico pairava ameaçador sobre as conjecturas
soviéticas não menos do que sobre as dos Franceses. Quando Estaline,
Truman e Churchill se encontraram em Potsdam (de 17 de Julho a 2 de
Agosto de 1945, com Atlee a substituir Churchill depois da vitória do Partido
Trabalhista nas eleições gerais britânicas), revelou-se possível chegar a um
acordo sobre a expulsão dos Alemães da Europa de Leste, a subdivisão
administrativa da Alemanha por razões de ocupação e os objectivos de
«democratização», «desnazificação» e «descartelização». No entanto, para
além deste nível de intenções de carácter geral que lhes eram comuns,
começavam as dificuldades.
Assim, concordou-se em lidar com a economia alemã como uma entidade
única, mas garantiu-se também aos Soviéticos o direito de retirar e remover
bens, serviços e activos financeiros da sua zona. Foi-lhes concedido também
10% das indemnizações das zonas ocidentais em troca de produtos
alimentares e matérias-primas a ser fornecidos pelo Leste da Alemanha. Mas
estes acordos introduziram uma contradição, ao considerarem os recursos
económicos a leste e a oeste como se estivessem separados e fossem distintos.
As indemnizações haveriam de ser, portanto, desde o início, uma questão
divisória (como foram depois da Primeira Guerra Mundial): os Russos (e os
Franceses) queriam-nas e as autoridades soviéticas não hesitaram em
desmantelar e remover desde logo fábricas e equipamentos alemães, com ou
sem o consentimento dos seus co-ocupantes.
Não houve acordo final sobre as fronteiras da Alemanha com a Polónia e
até a base comum da democratização deu origem a dificuldades práticas de
implementação. Por isso, os líderes aliados concordaram em divergir e em
adiar, dando instruções aos seus ministros dos Negócios Estrangeiros para se
encontrarem e continuarem as conversações mais tarde. Tiveram início,
portanto, dois anos de encontros dos ministros dos Negócios Estrangeiros
aliados, representando os governos soviético, americano, britânico e, depois,
também o francês. O primeiro encontro teve lugar em Londres, dois meses
após Potsdam, e o último também em Londres, em Dezembro de 1947. O seu
objectivo era, em princípio, redigir acordos definitivos para a Alemanha do
pós-guerra e preparar tratados de paz entre as potências aliadas e a Alemanha
e a Áustria. Foi nestes encontros, e nomeadamente em Moscovo, em Março e
Abril de 1947, que a divergência entre a abordagem soviética e a ocidental do
problema alemão se tornou clara.
A estratégia anglo-americana era ditada por considerações de prudência
política. Se os Alemães da zona ocidental de ocupação permanecessem
dominados e empobrecidos e se não lhes fosse oferecida uma oportunidade de
melhorar, nesse caso voltar-se-iam mais cedo ou mais tarde para o nazismo ou
então para o comunismo. Portanto, nas zonas da Alemanha que estavam
ocupadas pelos governos militares americano e britânico, a ênfase mudou
logo nos primeiros tempos para a reconstrução das instituições cívicas e
políticas e para a atribuição aos Alemães de algumas responsabilidades nos
seus assuntos internos. Isto deu aos políticos alemães em emergência uma
influência muito maior do que aquela que podiam ter esperado quando a
guerra terminou, e não hesitaram em explorá-la, dando a entender que a
menos que os ocupantes seguissem os seus conselhos, não poderiam
responder pelo alinhamento político futuro da nação alemã.
Felizmente para os Aliados ocidentais, as políticas de ocupação
comunistas em Berlim e nos territórios do Leste da Alemanha ocupados pelos
Soviéticos não eram de molde a atrair os sentimentos nem os votos alemães.
Por muito impopulares que os Americanos, os Ingleses ou os Franceses
fossem aos olhos dos ressentidos Alemães, a alternativa era bem pior: se
Estaline pretendia genuinamente que a Alemanha permanecesse unida, tal
como ordenara aos comunistas alemães que o exigissem nos anos iniciais do
pós-guerra, então a táctica soviética era muitíssimo mal escolhida. Desde o
início, os Soviéticos estabeleceram de facto na sua zona de ocupação um
governo de liderança comunista sem o consentimento aliado e começaram a
tornar supérfluos os acordos de Potsdam, retirando e desmantelando
implacavelmente tudo o que caiu nas suas mãos.
Não é que Estaline tivesse muitas alternativas. Nunca houve qualquer
perspectiva de os comunistas controlarem o país ou mesmo a zona soviética, a
não ser pela força. Nas eleições para a cidade de Berlim, em 20 de Outubro de
1946, os candidatos comunistas ficaram muito atrás tanto dos sociais-
democratas como dos democratas-cristãos. Em resultado, a política soviética
endureceu de forma perceptível. No entanto, nessa altura os ocupantes
ocidentais enfrentavam as suas próprias dificuldades. Em Julho de 1946, a
Grã-Bretanha vira-se forçada a importar 112 000 toneladas de trigo e 50 000
toneladas de batatas para alimentar a população da sua zona (o Noroeste
urbano e industrial da Alemanha), pagas com um empréstimo americano.
Os Britânicos estavam a receber no máximo 29 milhões de dólares de
indemnizações da Alemanha, mas a ocupação custava a Londres 80 milhões
de dólares por ano, deixando ao contribuinte britânico o pagamento das
despesas correspondentes à diferença, ao mesmo tempo que o respectivo
governo se via forçado a impor o racionamento do pão no seu próprio país
(um expediente que fora evitado durante a guerra). Na opinião do chanceler
britânico do Tesouro, Hugh Dalton, os Britânicos estavam «a pagar
indemnizações aos Alemães». Os Americanos não estavam sujeitos às
mesmas restrições económicas e a sua zona não tinha sofrido tantos estragos
de guerra, mas a situação não lhes parecia menos absurda. O Exército
americano, em particular, não estava nada satisfeito, pois o custo de alimentar
milhões de Alemães esfomeados recaía sobre o seu próprio orçamento. Como
disse George Kennan: «a rendição incondicional da Alemanha […] deixou-
nos toda a responsabilidade por uma parte da Alemanha que nunca foi auto-
suficiente do ponto de vista económico nos tempos modernos e cuja
capacidade de se sustentar foi catastroficamente reduzida pelas circunstâncias
da guerra e pela derrota alemã. Na altura em que aceitámos essa
responsabilidade, não dispúnhamos de qualquer programa de reabilitação da
economia da nossa zona, tendo preferido deixar a resolução de tudo isso para
um acordo internacional.»
Confrontados com este problema e com o crescente ressentimento alemão
devido ao desmantelamento de fábricas e instalações para serem enviadas
para leste, o governador militar dos Estados Unidos, o general Clay,
suspendeu unilateralmente as entregas de indemnizações da zona americana à
União Soviética (ou a quem quer que fosse) em Maio de 1946, dizendo que as
autoridades soviéticas não cumpriram a sua parte dos acordos de Potsdam. Os
Britânicos fizeram o mesmo dois meses mais tarde. Estes factos assinalaram o
primeiro afastamento, mas não mais do que isso. Os Franceses, tal como a
URSS, ainda queriam indemnizações e os quatro aliados estavam ainda
formalmente obrigados a cumprir o acordo sobre «níveis de indústria», de
1946, segundo o qual a Alemanha deveria manter um nível de vida que não
fosse superior à média europeia (excluindo a Grã-Bretanha e a União
Soviética). Para além disso, o governo britânico, num conselho de ministros
de Maio de 1946, ainda tinha relutância em aceitar uma divisão formal da
Alemanha ocupada em duas metades, a oriental e a ocidental, com todas as
implicações que isso teria para a segurança europeia.
No entanto, estava a tornar-se evidente que as quatro potências ocupantes
não se aproximavam de um acordo. Uma vez terminado o principal
julgamento de Nuremberga, em Outubro de 1946, e finalizados os termos dos
tratados de paz de Paris no mês seguinte, os Aliados de guerra estavam unidos
por pouco mais do que a sua co-responsabilidade pela Alemanha, cujas
contradições passaram cada vez mais para o primeiro plano. No fim de 1946,
os Americanos e os Britânicos concordaram em reunir as economias das suas
duas zonas de ocupação numa chamada «zona dupla», mas mesmo isto não
significava ainda uma divisão assente da Alemanha e muito menos um
compromisso com a integração da zona dupla no Ocidente. Pelo contrário,
três meses depois, em Fevereiro de 1947, os Franceses e os Britânicos
assinaram ostensivamente o tratado de Dunquerque em que se comprometiam
a uma ajuda mútua em caso de qualquer agressão alemã no futuro. Por outro
lado, no início de 1947, o secretário de Estado americano Marshall estava
ainda optimista quanto a não ser necessário dividir a Alemanha,
independentemente dos acordos que fossem feitos para resolver a difícil
questão da economia alemã. Sobre isto, pelo menos, o Leste e o Ocidente
estavam ainda formalmente de acordo.
A ruptura efectiva aconteceu na Primavera de 1947, no encontro dos
ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, da
França e da União Soviética, realizado em Moscovo, entre 10 de Março e 24
de Abril, e convocado uma vez mais para tentar um acordo sobre um tratado
de paz com a Alemanha e a Áustria. Nesta altura as linhas de fractura eram
nítidas. Os Britânicos e os Americanos estavam determinados a erguer a
economia da Alemanha Ocidental para que os Alemães pudessem sustentar-se
a si mesmos, mas também para contribuir para o restabelecimento da
economia europeia em geral. Os representantes soviéticos pretendiam o
restabelecimento das indemnizações a pagar pelas zonas da Alemanha sob
controlo ocidental e com essa finalidade foi encarada a hipótese de uma
administração e de uma economia alemãs unificadas tal como eram
perspectivadas de início (se bem que de forma vaga) em Potsdam. Porém,
agora os Aliados ocidentais já não queriam estabelecer uma administração
alemã unificada, porque ela implicaria não só o abandono da população das
zonas ocidentais da Alemanha – o que era neste momento uma consideração
política válida em si mesma –, mas, de facto, a entrega do país à esfera de
controlo soviética, dada a assimetria militar existente.
Como reconheceu Robert K. Murphy, conselheiro político do governo
militar dos Estados Unidos na Alemanha, «foi a conferência de Moscovo, em
1947 […] que realmente fez descer a cortina de ferro». Ernest Bevin
abandonara qualquer esperança séria de acordo sobre a Alemanha antes
mesmo de chegar a Moscovo, mas para Marshall (e Bidault) este foi o
momento da definição. Sem dúvida, foi-o também para Estaline e Molotov.
Quando os quatro ministros dos Negócios Estrangeiros se voltaram a
encontrar, em Paris, entre 27 de Junho e 2 de Julho, para discutir o
radicalmente novo plano de Marshall, os Americanos e os Britânicos haviam
já concordado, em 23 de Maio, em permitir que a Alemanha estivesse
representada no recém-criado «Conselho Económico» para a Zona Dupla, o
prelúdio embrionário de um governo alemão ocidental.
A partir deste momento, as coisas avançaram rapidamente. Nenhum dos
lados fez ou procurou mais concessões: os Americanos e os Britânicos, que
recearam durante muito tempo uma paz russo-germânica em separado e
deram o seu acordo a adiamentos e compromissos para a evitar, deixaram de
tomar em consideração uma eventualidade que podiam agora descartar. Em
Agosto, aumentaram unilateralmente a produção da zona dupla (contra o coro
de críticas de Soviéticos e Franceses). A directiva JCS 1067 da Junta de
Chefes do Estado-Maior (o «plano Morgenthau») foi substituída pela
directiva JCS 1779, que aceitava formalmente as novas metas americanas: a
unificação económica da zona ocidental da Alemanha e o encorajamento do
seu autogoverno. Sobretudo para os Americanos, os Alemães estavam
rapidamente a deixar de ser o inimigo(11).
Os ministros dos Negócios Estrangeiros Molotov, Bevin, Marshall e
Bidault encontraram-se pela última vez em Londres, de 25 de Novembro a 16
de Dezembro de 1947. Foi uma reunião curiosa, uma vez que as suas relações
já se tinham praticamente rompido. Os Aliados ocidentais avançavam com
planos independentes para a recuperação da Europa Ocidental, ao passo que
Estaline, dois meses antes, criara o Cominform, ordenara aos partidos
comunistas da França e da Itália que adoptassem uma linha de intransigência
nos assuntos internos dos seus respectivos países e incrementara fortemente a
pressão sobre os países que estavam sob controlo comunista, no que
constituía agora o bloco soviético. Tal como no passado, os ministros
analisaram as perspectivas de um governo alemão unificado sob controlo
aliado e outras condições para um eventual tratado de paz. Mas já não houve
acordo sobre a administração comum da Alemanha nem sobre os planos
respeitantes ao seu futuro, pelo que o encontro foi interrompido sem que se
agendasse qualquer outro.
Em vez disso, a Grã-Bretanha, a França e os Estados Unidos iniciaram
discussões tripartidas sobre o futuro da Alemanha numa cimeira alargada que
teve novamente lugar em Londres, com início em 23 de Fevereiro de 1948.
Nessa mesma semana, o Partido Comunista da Checoslováquia levou a cabo,
com êxito, um golpe no país, o que era sinal de que Estaline abandonara
definitivamente a sua estratégia anterior e aceitara a inevitabilidade de uma
confrontação, e não de um acordo, com o Ocidente. Ainda sob o efeito do
golpe de Praga, a França e a Grã-Bretanha transformaram, em 17 de Março, o
seu tratado de Dunquerque num pacto de Bruxelas que reunia, numa aliança
defensiva mútua, a Grã-Bretanha, a França e os países do Benelux.
Nada impedia agora os líderes ocidentais e a conferência de Londres de
concordarem rapidamente em estender o Plano Marshall à Alemanha
Ocidental e esboçarem um eventual governo para o Estado (um acordo
aprovado pela delegação francesa em troca da separação temporária do Sarre
em relação à Alemanha e da proposta de uma autoridade independente para
fiscalizar a indústria do Ruhr). Estes planos constituíram um abandono
explícito do espírito dos acordos de Potsdam e o general Vassily Sokolovsky,
o representante soviético no Conselho de Controlo Aliado (CCA) em Berlim,
protestou veementemente (esquecendo-se de reconhecer os frequentes
incumprimentos desses mesmos acordos por parte da União Soviética).
Em 10 de Março, Sokolovsky condenou os planos para a Alemanha
Ocidental por serem a imposição forçada dos interesses capitalistas a uma
população alemã a quem era negada a oportunidade de demonstrar o seu
desejo de abraçar o socialismo e repetiu as alegações soviéticas de que as
potências ocidentais estavam a abusar da sua presença em Berlim – que
afirmava pertencer à zona soviética – para interferirem nos assuntos da
Alemanha de Leste. Dez dias depois, num encontro do CCA, em Berlim, a 20
de Março, Sokolovsky denunciou as «acções unilaterais» dos Aliados
ocidentais, «enganando a Alemanha Ocidental, e que vão contra os interesses
dos países pacíficos e dos Alemães amantes da paz que procuram uma
unidade e uma democratização pacíficas do seu país». Abandonou em seguida
a sala, seguido da restante delegação soviética. Não foi fixada qualquer data
para um encontro posterior. Acabara a ocupação conjunta da Alemanha pelos
Aliados: menos de duas semanas depois, no dia 1 de Abril, as autoridades
militares soviéticas em Berlim começaram a interferir com a circulação de
superfície entre a Alemanha Ocidental e as zonas de Berlim ocupada pelos
Aliados ocidentais. Assim começava efectivamente a Guerra Fria na Europa.
Deve ser claro a partir deste relato que pouco se ganha em perguntar
«quem começou a Guerra Fria?» Na medida em que o objecto da Guerra Fria
era a Alemanha, o resultado final, um país dividido, era provavelmente aquele
que todos julgavam preferível a uma Alemanha unida contra eles. Ninguém
planeara este resultado em Maio de 1945, mas poucos estariam
profundamente descontentes com ele. Alguns políticos alemães,
nomeadamente o próprio Konrad Adenauer, ficaram mesmo a dever a sua
carreira à divisão do seu país: tivesse a Alemanha continuado com quatro
zonas ou um país unificado e seria quase certo que um obscuro político local
da Renânia católica, situada na longínqua fronteira ocidental da Alemanha,
não conseguiria alcançar o topo.
Porém, dificilmente Adenauer poderia fazer seu o objectivo de uma
Alemanha dividida, por muito que o acolhesse bem em privado. O seu
principal opositor nos primeiros cinco anos da República Federal, o social-
democrata Kurt Schumacher, era um protestante da Prússia Ocidental e um
defensor incansável da unidade da Alemanha. Ao contrário de Adenauer, ele
teria rapidamente aceite uma Alemanha neutral como preço a pagar por um
Estado alemão unificado, que era o que Estaline parecia estar a propor. Aliás,
nessa altura, a posição de Schumacher era provavelmente a mais popular na
Alemanha, razão por que Adenauer tinha que agir com cuidado e assegurar
que a responsabilidade por uma Alemanha dividida recaía inteiramente sobre
as forças ocupantes.
Em 1948, os Estados Unidos, tal como a Grã-Bretanha, não viam com
maus olhos a emergência de uma Alemanha dividida e com uma influência
americana dominante no maior segmento, o ocidental. Mas, embora tivesse
havido alguns, como George Kennan, que anteciparam com perspicácia este
resultado (já em 1945 chegara à conclusão de que os Estados Unidos da
América «não podiam fazer outra coisa senão conduzir a sua parte da
Alemanha […] para um tipo de independência tão próspero, tão seguro, tão
superior que o Leste não a pudesse ameaçar»), foram uma minoria. No
decurso destes anos, os Americanos, tal como Estaline, andaram a improvisar.
É por vezes sugerido que algumas decisões e declarações cruciais americanas,
nomeadamente a doutrina Truman de Março de 1947, precipitaram o
abandono de uma posição de compromisso por parte de Estaline, a favor da
rigidez, e que, neste sentido, a responsabilidade pelas divisões europeias era
imputável à insensibilidade de Washington ou, pior ainda, à sua calculada
intransigência. Todavia, não foi isso que aconteceu.
É que a doutrina Truman, para tomar este exemplo, teve muito pouco
impacto nas opções soviéticas. O anúncio de Truman ao Congresso, em 12 de
Março de 1947, de que «deve ser política dos Estados Unidos apoiar os povos
livres que resistem às tentativas de dominação de minorias armadas ou por
pressões externas», era uma resposta directa à incapacidade de Londres
continuar a ajudar a Grécia e a Turquia, depois da crise económica britânica
de Fevereiro de 1947. A América tinha de assumir o papel da Grã-Bretanha.
Truman procurou por isso que o Congresso aprovasse um aumento de 400
milhões de dólares do seu orçamento de ajuda ao exterior. Para assegurar o
financiamento, apresentou o pedido no contexto de uma crise de revolta
comunista.
O Congresso acreditou nele, mas Moscovo não. Estaline não estava
grandemente interessado na Grécia ou na Turquia, os principais beneficiários
do pacote de ajuda, e compreendeu perfeitamente que a sua própria esfera de
interesses provavelmente não seria afectada pela exibição de Truman para a
plateia. Pelo contrário, continuou a pensar que havia muito boas perspectivas
de uma divisão no campo ocidental, de que a assunção das antigas
responsabilidades britânicas no Mediterrâneo Oriental pelos Americanos era o
sinal e precursor. Independentemente do que levou Estaline a ajustar os seus
cálculos na Europa de Leste, não foi seguramente a retórica da política interna
americana(12).
A causa imediata da divisão da Alemanha e da Europa reside mais nos
próprios erros de Estaline durante estes anos. Na Europa Central, onde teria
preferido uma Alemanha unificada, fraca e neutral, desperdiçou, em 1945 e
nos anos seguintes, a vantagem que possuía, devido à sua rigidez
intransigente e à sua táctica de confrontação. Se a esperança de Estaline era
deixar que a Alemanha apodrecesse até que o fruto do ressentimento e do
desespero alemães caísse nas suas mãos, então errou em muito nos seus
cálculos, embora tivesse havido momentos em que as autoridades aliadas na
parte ocidental da Alemanha se interrogassem da possibilidade de êxito de
Estaline. Nesse sentido, a Guerra Fria na Europa foi um resultado inevitável
da personalidade do ditador soviético e do sistema que dirigia.
Mas permanecia o facto de a Alemanha estar aos seus pés, como os seus
opositores bem sabiam. «O problema é que estamos a brincar com um fogo
tal que não temos nada com que o apagar», como se expressou Marshall no
Conselho Nacional de Segurança, em 13 de Fevereiro de 1948. Tudo o que a
União Soviética precisava de fazer era aceitar o Plano Marshall e convencer a
maior parte dos Alemães da boa-fé de Moscovo ao propor uma Alemanha
neutral e independente. Em 1947, isto teria alterado radicalmente a divisão
das vantagens na Europa. Independentemente do que Marshall, Bevin e os
seus conselheiros pudessem ter pensado de tais manobras, seriam impotentes
para as impedir. Que tais avaliações tácticas estivessem além da capacidade
de Estaline não pode ser atribuído ao Ocidente. Como Dean Acheson disse
em outra ocasião: «Temos sorte com os nossos adversários.»
Analisando retrospectivamente, é de alguma forma irónico que depois de
terem combatido numa guerra mortífera para destruir o poder de uma
Alemanha todo-poderosa e localizada no centro do continente europeu, os
vencedores se tivessem revelado tão ineficazes em chegar a um acordo no
pós-guerra para manter submisso o colosso alemão, tendo acabado por o
dividir entre si para poderem tirar partido separadamente da sua força
restaurada. Tinha-se tornado claro – primeiro para os Britânicos, depois para
os Americanos, tardiamente para os Franceses e finalmente também para os
Soviéticos – que a única forma de evitar que a Alemanha fosse o problema
era mudar os termos do debate e dizer que era nisso que residia a solução. Foi
desagradável, mas resultou. Segundo as palavras de Noel Annan, um
funcionário dos serviços secretos britânicos na Alemanha ocupada: «Era
detestável que, para manter afastado o comunismo, nos aliássemos a pessoas
que estiveram voluntariamente com Hitler. No entanto, a maior esperança do
Ocidente era encorajar os próprios Alemães a criar um Estado democrático
ocidental.»
-
(1) A fronteira entre a Polónia e a Rússia soviética proposta pelo ministro dos Negócios Estrangeiros
britânico após a Primeira Guerra Mundial.

(2) Em 1943, Estaline rompera relações com o governo polaco no exílio, em Londres, depois da
exigência deste último de uma investigação internacional sobre o massacre de Katyn. Os Alemães, que
revelaram o local, afirmaram, com razão, que fora aí que se dera a execução em massa dos oficiais
polacos capturados pelo Soviéticos. As autoridades soviéticas e os seus apoiantes ocidentais negaram-
no irritadamente, quer então, quer no meio século seguinte.

(3) A Índia e alguns dos domínios ultramarinos britânicos dispunham de montantes substanciais de
libras esterlinas, constituídas por créditos acumulados sobretudo durante a guerra. Se a libra fosse
livremente convertível em dólares no imediato pós-guerra muitos destes créditos ter-se-iam reduzido,
diminuindo ainda mais as já reduzidas reservas britânicas de divisas estrangeiras. Foi esta a razão por
que, depois da desastrosa experiência inicial de convertibilidade que Washington impôs como condição
para um empréstimo por parte dos Estados Unidos, a Grã-Bretanha introduziu de novo os controlos
sobre a libra esterlina em 1947.

(4) Segundo Kennan, «[O]s nossos líderes em Washington não têm qualquer ideia do significado que
uma ocupação soviética, apoiada pela polícia secreta russa do tempo de Béria, pode ter para o povo a ela
submetido. Aliás, provavelmente, seriam incapazes de o imaginar.»

(*) Uriah Heep é uma personagem obsequiosa, de humildade melíflua, insincero e ávido, do romance
David Copperfield, de Charles Dickens. Bill Sykes, um ladrão violento e assustador, é personagem de
outro romance de Dickens, Oliver Twist. (N. T.)

(*) Em 29 de Setembro de 1938, foi assinado o acordo de Munique entre Adolf Hitler, Neville
Chamberlain, Édourd Dalladier e Benito Mussolini que dava a região checoslovaca dos Sudetas à
Alemanha. A Checoslováquia aquiesceu no dia seguinte. (N. T.)

(5) Em Fevereiro de 1945, quando interrogados sobre quem contribuiria mais para a recuperação da
França, 25% dos inquiridos responderam que seria a URSS e 24 % os EUA.

(6) Marshall não terá ficado muito convencido quando Bidault lhe disse que a importância que dava
em público à ameaça alemã se destinava estritamente a consumo interno.

(7) Nos termos de um acordo secreto checo-soviético de Março de 1945, a URSS tinha o direito de
prospectar e extrair urânio dos depósitos Jachymov no Oeste da Boémia.

(8) Na Polónia, é claro, era tudo menos tranquilizadora, precisamente por ser tão familiar.
(9) Segundo se soube, o ministro soviético dos Negócios Estrangeiros, Edvard Chevardnaze, afirmou
em 1990 que, apesar de uma Guerra Fria de 40 anos com os Estados Unidos, quando os seus netos
brincavam às guerras, a Alemanha era ainda o inimigo.

(10) A Itália perdeu todas as colónias, pagou 360 milhões de dólares de indemnizações de guerra à
URSS, à Jugoslávia, à Grécia, à Albânia e à Etiópia e cedeu a península da Ístria à Jugoslávia. A
situação da cidade fronteiriça de Trieste permaneceu em disputa por mais oito anos.

(11) Tal revelou ser uma adaptação fácil, de que são sintomáticas as palavras de um soldado raso
americano, agradavelmente surpreendido com a sua recepção na Alemanha, após a resposta francesa
bastante fria aos seus libertadores: «Que diabo, à primeira vista, esta gente é mais sincera e amiga do
que os Franceses. São como nós.» Citado em Earl Ziemke, The U. S. Army in the Occupation of
Germany, 1944-1946 (Washington DC, 1985), p. 142.

(12) Em Setembro de 1947, Andrej Zdanov, falando como sempre pelo seu senhor, informaria os
delegados do congresso fundador do Cominform que a doutrina Truman se dirigia pelo menos tanto
contra a Grã-Bretanha como contra a URSS, «porque significa a expulsão da Grã-Bretanha da sua esfera
de influência no Mediterrâneo e no Próximo Oriente».
V

O Começo da Guerra Fria


«Imaginem o Império Austríaco fragmentado numa multiplicidade de
repúblicas maiores ou menores. Que belo princípio para uma monarquia russa
universal.»
Frantisek Palacky (Abril de 1848)
«Os Jugoslavos querem ficar com a Macedónia grega. Querem também a
Albânia e até algumas partes da Áustria e da Hungria. Isto não é razoável.
Não gosto do modo como estão a agir.»
Estaline, 1945
«A única coisa de que o Exército Vermelho necessitava para atingir o Mar do
Norte eram botas.»
Dennis Healey
«A ideia de uma ordem europeia não é uma criação artificial da Alemanha,
mas uma necessidade.»
Paul-Henri Spaak (Abril de 1942)
«Isto é algo que sabemos, no nosso íntimo, que não podemos fazer.»
Anthony Eden (Janeiro de 1952)
«Esta guerra não é como as do passado. Quem quer que ocupe um
território logo lhe impõe o seu próprio sistema social. Todos impõem o seu
sistema até onde puderem ir os seus exércitos. Não pode ser de outra
maneira.» O famoso aforismo de Estaline, mencionado por Milovan Djilas
nas suas Conversas com Estaline, não é tão original quanto pareceu. A
Segunda Guerra Mundial não foi de forma alguma a primeira guerra europeia
em que os resultados militares determinaram os sistemas sociais: as guerras
religiosas do século XVI terminaram em 1555 com a paz de Augsburgo em
que o princípio cuius regio eius religio autorizou os governantes a estabelecer
no seu próprio território a sua própria religião, e nas primeiras fases das
conquistas de Napoleão, no início do século XIX, os sucessos militares
traduziram-se muito rapidamente em revoluções sociais e institucionais que
obedeciam ao figurino francês.
Não obstante, a frase de Estaline era clara e foi apresentada por Djilas
muito tempo antes da tomada da Europa de Leste pelos comunistas. Do lado
soviético, a guerra foi travada para derrotar a Alemanha e restabelecer o poder
e a segurança russos nas suas fronteiras ocidentais. Independentemente do que
viesse a acontecer à própria Alemanha, a região que a separava da Rússia não
podia ser deixada na incerteza. Os territórios que formavam um arco desde a
Finlândia até à Jugoslávia eram constituídos por pequenos Estados
vulneráveis cujos governos no período que mediou entre as duas grandes
guerras foram todos hostis à União Soviética (com a excepção parcial da
Checoslováquia). A Polónia, a Hungria e a Roménia em particular foram
sistematicamente desfavoráveis a Moscovo, suspeitando das intenções
soviéticas para com elas. O único resultado aceitável para Estaline era a
implantação, nas regiões que não tinham sido antecipadamente absorvidas na
própria URSS, de governos que ele soubesse que nunca representariam uma
ameaça para a segurança soviética.
Todavia, a única forma de garantir este efeito era alinhar os sistemas
políticos dos Estados da Europa de Leste pelo da União Soviética e, desde o
início, isto era o que Estaline queria e tencionava. Por um lado, parecia que
esta meta era manifestamente suficiente: as velhas elites de países como a
Roménia ou a Hungria foram desacreditadas, e não seria difícil afastá-las e
começar de novo. Em muitos locais, os ocupantes soviéticos foram a princípio
bem recebidos como libertadores e prenúncios de mudanças e reformas.
Por outro lado, contudo, a União Soviética não tinha praticamente
influência nos assuntos internos dos seus vizinhos ocidentais, para além da
autoridade decorrente da sua esmagadora presença militar. Na maior parte do
quarto de século anterior, os comunistas foram banidos da vida pública e da
actividade política legal em extensas áreas desta região. Até mesmo onde os
partidos comunistas eram legais, a sua identificação com a Rússia e a táctica
sectária e rígida imposta por Moscovo na maior parte do período posterior a
1927 reduziu-os a uma marginalidade irrelevante na política da Europa de
Leste. A União Soviética contribuiu ainda mais para a sua fraqueza com as
prisões e as purgas de muitos dos comunistas polacos, húngaros, jugoslavos,
etc., que procuraram refúgio em Moscovo. No caso da Polónia, a liderança do
Partido Comunista Polaco de entre as duas grandes guerras foi quase
completamente aniquilada.
Por isso, quando Matyas Rakosi, o líder do Partido Comunista Húngaro,
foi mandado regressar de Moscovo para Budapeste, em Fevereiro de 1945,
podia contar com o apoio de mais ou menos 4000 comunistas na Hungria. Na
Roménia, segundo a própria líder comunista romena Ana Pauker, o partido
tinha menos de 1000 membros numa população de quase 20 milhões. A
situação na Bulgária não era muito melhor: em Setembro de 1944, os
comunistas eram no total cerca de 8000. Apenas nas regiões industriais da
Boémia e na Jugoslávia, onde o partido era identificado com a resistência
guerrilheira vitoriosa, o comunismo possuía algo que se poderia considerar
uma base de massas.
Caracteristicamente cauteloso e, em todo o caso, ainda mantendo relações
de trabalho com as potências ocidentais, Estaline seguiu de início a política já
familiar da Frente Popular dos anos 30 e da prática comunista durante a
guerra civil espanhola: favorecer a formação de governos «frentistas» –
coligações de comunistas, socialistas e outros partidos «antifascistas» – que
excluiriam e puniriam o antigo regime e os seus apoiantes, mas seriam
cautelosos e «democráticos», reformistas e não revolucionários. No final do
ano, ou pouco tempo depois, todos os países da Europa de Leste tinham uma
destas coligações governamentais.
Face aos desacordos contínuos sobre quem foi responsável pela divisão da
Europa, vale a pena talvez salientar que nem Estaline nem os seus
representantes locais tinham qualquer dúvida quanto ao seu objectivo a longo
prazo. As coligações foram o meio de os partidos comunistas chegarem ao
poder numa região em que eram tradicionalmente fracos. Foram sempre
apenas um meio para um fim. Como Walter Ulbricht, chefe dos comunistas da
Alemanha de Leste, explicou em privado aos seus seguidores quando
expressaram o seu espanto com a política do partido em 1945: «É bastante
claro: deve parecer democrático, mas temos de ter tudo sob o nosso controlo.»
O controlo, de facto, importava muito mais do que a política. Não foi por
acaso que em todas as coligações governamentais – «Frente Patriótica»,
«Governo de Unidade» ou «bloco de partidos antifascistas» – na Europa de
Leste, os comunistas procuraram obter o controlo de certos ministérios
cruciais: o Ministério do Interior, que dava ao partido autoridade sobre a
polícia e as forças de segurança, bem como o poder de conceder ou retirar
licenças para imprimir os jornais; o Ministério da Justiça, com controlo sobre
os saneamentos, tribunais e juízes; e o Ministério da Agricultura, que
administrava as reformas agrárias e a redistribuição das terras e estava assim
em condições de conceder favores e comprar a lealdade de milhões de
camponeses. Os comunistas também se instalaram em posições-chave de
comités de «desnazificação», comissões de bairro e sindicatos.
Por outro lado, os comunistas da Europa de Leste não tinham pressa em
reclamar para si os lugares de presidente, primeiro-ministro ou ministro dos
Negócios Estrangeiros, preferindo muitas vezes deixá-los aos seus aliados de
coligação nos partidos socialistas, agrários ou liberais. Esta opção reflectia a
distribuição de lugares dos governos no começo do pós-guerra, com os
comunistas em minoria, e tranquilizou os observadores ocidentais. A
população local não se deixou enganar e tomou as suas precauções (os
membros do Partido Comunista da Roménia subiram para 800 000 em 1945),
mas em muitos aspectos a estratégia comunista era de facto
tranquilizadoramente moderada. Longe de colectivizar a terra, o partido
insistia na sua distribuição por aqueles que não a possuíam. Para além da
confiscação dos bens «fascistas», o partido não exercia pressão para que se
fizessem nacionalizações ou houvesse propriedade do Estado – decerto não
mais e habitualmente bastante menos do que alguns dos seus parceiros de
coligação. Por fim, também não se falava muito do «socialismo» como meta.
O objectivo afirmado dos comunistas em 1945 e 1946 era «completar» as
revoluções burguesas inacabadas de 1848: redistribuir a propriedade, garantir
a igualdade e afirmar os direitos democráticos numa parte da Europa em que
estes três aspectos sempre ficaram abaixo das necessidades. Eram metas
plausíveis, pelo menos à primeira vista, e atraíam muitos, tanto nesta região
como na Europa Ocidental, que queriam pensar bem de Estaline e dos seus
propósitos. No entanto, o seu atractivo para os próprios comunistas diminuiu
abruptamente numa série de eleições locais e nacionais na Alemanha de
Leste, na Áustria e na Hungria. Ficou aí claro muito cedo (no caso da
Hungria, nas eleições municipais de Budapeste de Novembro de 1945) que,
por maior que fosse o seu sucesso em infiltrar-se em posições de influência
local, os comunistas nunca conseguiriam alcançar o poder público pela via
das urnas. Apesar de terem todas as vantagens derivadas da ocupação militar
e do patrocínio económico, os candidatos comunistas eram sistematicamente
derrotados pelos representantes dos velhos partidos liberais, sociais-
democratas e agrários e de pequenos proprietários.
O resultado foi os partidos comunistas terem adoptado, em alternativa,
uma estratégia de pressão encoberta, a que seguiu o terror e a repressão
declarados. No ano de 1946 e mesmo em 1947, os opositores eleitorais eram
difamados, ameaçados, sovados, detidos, julgados como «fascistas» e
«colaboracionistas» e aprisionados ou até fuzilados. As milícias «populares»
ajudaram a criar um clima de medo e insegurança que os porta-vozes
comunistas imputaram aos críticos das suas políticas. Os políticos vulneráveis
ou impopulares dos partidos não comunistas eram transformados em alvos do
opróbrio público, ao passo que os seus colegas aceitaram este mau tratamento
na esperança de que não se estendesse a si mesmos. Assim, na Bulgária, logo
no Verão de 1946, sete dos 22 membros do Presidium da União Agrária e 35
dos 80 membros do conselho governativo estavam na prisão. Caso típico das
acusações foi a que atingiu o jornalista Kunev, do Partido Agrário,
imputando-lhe ter, «de uma forma verdadeiramente criminosa, chamado ao
governo búlgaro sonhadores políticos e económicos».
Os partidos agrários, liberais e outros igualmente importantes revelaram
ser um alvo fácil, sendo envolvidos por acusações de «fascismo» ou de serem
antinacionais e destruídos um a um por fases. O obstáculo mais complicado
foram os partidos socialistas e sociais-democratas, que partilhavam as
ambições de reforma dos comunistas. Não era fácil acusar os sociais-
democratas da Europa Central e de Leste de serem «fascistas» ou de
colaboração, porque, realmente, foram tão vítimas da repressão quanto os
comunistas. Por outro lado, na medida em que havia uma classe trabalhadora
industrial com direito de voto numa Europa de Leste esmagadoramente rural,
a sua adesão era tradicionalmente aos socialistas, não aos comunistas. Por
isso, uma vez que os socialistas não podiam ser facilmente derrotados, os
comunistas preferiram, em vez disso, juntar-se a eles.
Diríamos talvez melhor: fizeram com que os socialistas se lhes juntassem.
Esta era uma máxima tradicional comunista. A táctica inicial de Lenine entre
1918 e 1921 foi dividir os partidos socialistas da Europa, separar os elementos
mais radicalmente de esquerda para formar movimentos comunistas e
condenar os restantes como reaccionários e ultrapassados pela história. Mas
quando os partidos comunistas se encontraram em minoria nas duas décadas
seguintes, a abordagem de Moscovo alterou-se e os comunistas ofereceram
aos partidos socialistas (maiores na generalidade dos casos) o objectivo da
«unidade» da esquerda, mas sob o seu próprio auspício. Nas circunstâncias da
Europa de Leste após a libertação, esta pareceu uma proposta razoável a
muitos socialistas.
Mesmo na Europa Ocidental, alguns membros dos partidos socialistas
francês e italiano mais à esquerda foram atraídos por convites comunistas
para formar uma força política única. Na Europa de Leste a pressão revelou-
se literalmente irresistível. O processo começou na zona soviética de
ocupação da Alemanha, para a qual os comunistas decidiram (num encontro
secreto em Moscovo, em Fevereiro de 1946) uma fusão com os seus
«aliados» socialistas muito mais numerosos. Esta fusão foi consumada dois
meses depois com o nascimento do Partido Socialista Unitário (era
característico destas fusões que o termo «comunista» fosse deliberadamente
evitado em favor do recém-criado partido da unidade). Alguns ex-dirigentes
dos sociais-democratas da Alemanha de Leste revelaram-se submissos em
relação à fusão e foram-lhe atribuídos lugares honoríficos no novo partido e
depois no governo. Os socialistas que protestaram ou se opuseram ao novo
partido foram denunciados, expulsos e, pelo menos, forçados a abandonar a
vida pública ou a ir para o exílio.
No resto do bloco soviético, estas «uniões» entre comunistas e socialistas,
de estrutura similar, chegaram um pouco mais tarde, no decurso do ano de
1948: na Roménia em Fevereiro, na Hungria e na Checoslováquia em Junho,
na Bulgária em Agosto e na Polónia em Dezembro. Nesta altura os partidos
socialistas ficaram cada vez mais divididos sobre a questão da fusão, de modo
que deixaram de ser uma força política efectiva nos seus países muito antes de
desaparecerem. Tal como na Alemanha, os antigos sociais-democratas que se
juntaram aos comunistas foram devidamente recompensados com títulos
vazios: o primeiro chefe de Estado da Hungria comunista, nomeado em 30 de
Julho de 1948, foi Arpad Szakasits, um ex-socialista.
Os sociais-democratas estavam numa posição impossível na Europa de
Leste. Os socialistas ocidentais encorajavam-nos muitas vezes a fundir-se
com os comunistas, quer devido à crença ingénua de que todos beneficiariam
com isso, quer na esperança de moderar o comportamento comunista. Já em
1947 os partidos socialistas independentes da Europa de Leste (isto é, os
socialistas que recusaram cooperar com os seus camaradas comunistas) foram
proibidos de participar nas organizações socialistas internacionais com o
argumento de que eram um obstáculo à aliança das forças «progressistas».
Entretanto, internamente, eram submetidos a humilhações e violências.
Mesmo quando aceitaram o abraço comunista, a sua situação pouco
melhorou. No congresso da fusão dos dois partidos, em Fevereiro de 1948, a
dirigente comunista Ana Pauker acusou os seus antigos colegas socialistas de
sabotagem sistemática, servilismo para com os governos reaccionários e
«calúnias» anti-soviéticas.
Depois da dizimação, prisão ou absorção dos seus principais opositores, os
comunistas obtiveram, de facto, resultados muito melhores nas eleições de
1947 e posteriores com a ajuda de alguns ataques violentos aos seus restantes
adversários, intimidações nas mesas de voto e contagens eleitorais
gritantemente adulteradas. Depois, como era característico, seguia-se a
formação de governos em que o Partido Comunista, ou o partido
«trabalhador» ou «unitário» recém-criado, era claramente maioritário: os
parceiros de coligação, se os havia, eram reduzidos a papéis nominais ou
vazios. De acordo com esta transição de coligações frentistas unitárias para o
monopólio comunista do poder, a estratégia soviética em 1948 e 1949 passou
a ser uma política radical de controlo estatal, colectivizações, destruição da
classe média e saneamentos e castigos de opositores reais ou imaginários.
Este relato da tomada inicial do poder pelos Soviéticos na Europa de Leste
representa um processo comum a todos os países desta região. Os cálculos de
Estaline eram caracteristicamente alheios às diferenças nacionais. A
preferência de Estaline, pelo menos durante o Outono de 1947, recaía na
obtenção de poder comunista por meios legais, ou aparentemente legais, onde
fosse razoável esperar que o conseguissem. Mas o importante era o poder, não
a legalidade, razão por que a táctica dos comunistas se tornava mais
conflituosa e menos constrangida por limitações de ordem judicial ou política,
mesmo à custa de alienar a simpatia internacional, quando se tornava claro
que o sucesso eleitoral lhes iria escapar.
Não obstante, houve diferenças nacionais significativas. Foi na Bulgária e
na Roménia que a mão soviética foi mais pesada, em parte porque ambos os
países estiveram em guerra com a URSS, em parte também devido à fraqueza
dos comunistas locais, mas sobretudo por estarem tão obviamente destinados
pela geografia a pertencerem desde o princípio à esfera soviética. Na
Bulgária, o líder comunista (e antigo secretário do Comintern) Georgy
Dimitrov disse abertamente logo em Outubro de 1946 que quem votasse pela
oposição anticomunista seria considerado traidor. Mesmo assim, nas eleições
gerais seguintes os adversários do comunismo obtiveram 101 lugares
parlamentares em 465. Todavia, a oposição estava antecipadamente
condenada. O único factor que impedia o Exército Vermelho ocupante e os
seus aliados locais de destruírem aberta e imediatamente toda a oposição era a
necessidade de trabalhar com os Aliados ocidentais num tratado de paz com a
Bulgária e assegurar o reconhecimento anglo-americano de um governo
chefiado pelos comunistas como constituindo a autoridade legítima.
Uma vez assinados os tratados de paz, os comunistas não tinham nada a
ganhar com a espera, e a cronologia dos eventos é, por isso, reveladora. Em 5
de Junho de 1947, o Senado dos Estados Unidos ratificou os tratados de paz
de Paris com a Bulgária, a Roménia, a Hungria, a Finlândia e a Itália, apesar
das apreensões dos diplomatas americanos em Sófia e Bucareste. Logo no dia
seguinte foi preso o principal político anticomunista da Bulgária, o líder
agrário Nikola Petkov (que se recusara juntar aos membros mais moldáveis na
Frente Patriótica Comunista). O seu julgamento decorreu de 5 a 15 de Agosto.
Em 15 de Setembro o tratado de paz búlgaro entrou em vigor e quatro dias
depois o governo dos Estados Unidos da América propôs-se reconhecer
diplomaticamente o governo de Sófia. Petkov foi executado 96 horas depois,
tendo a sua sentença sido adiada até ao anúncio oficial americano. Com
Petkov judicialmente assassinado, os comunistas búlgaros não tinham mais
obstáculos a recear. Como afirmou o general soviético Biryuzov, ao analisar
retrospectivamente o apoio do Exército Vermelho aos comunistas búlgaros
contra os partidos «burgueses»: «Não tínhamos o direito de recusar o apoio
aos esforços do povo búlgaro para esmagar este réptil.»
Na Roménia, a posição dos comunistas era ainda mais fraca do que na
Bulgária, onde pelo menos havia uma história de sentimentos pró-russos em
que o partido comunista poderia esperar apoiar-se(1). Embora os Soviéticos
tivessem garantido a devolução do Norte da Transilvânia à Roménia
(atribuída à Hungria sob coacção em 1940), Estaline não tinha intenção de
devolver a Bessarábia ou a Bucovina, ambas incorporadas na URSS, nem a
região Sul de Dobrudja, no Sudoeste da Roménia, e que fazia agora parte da
Bulgária. Em consequência, os comunistas romenos foram forçados a
justificar esta perda territorial significativa, muito à semelhança do que se
passou no período entre as duas grandes guerras, quando ficaram
embaraçados perante a exigência soviética da Bessarábia, então território
romeno.
Pior ainda, os líderes comunistas romenos geralmente não eram sequer
romenos, pelo menos segundo critérios tradicionais do país. Ana Pauker era
judia, Emil Bodnaras ucraniano, Vasile Luca era de origem germânica da
Transilvânia. Outros eram húngaros ou búlgaros. Entendidos como uma
presença estranha, os comunistas romenos dependiam totalmente das forças
soviéticas. A sua sobrevivência no país não dependia da conquista do voto
popular – nunca considerado, nem sequer remotamente, como um objectivo
prático – mas da velocidade e da eficácia com que pudessem ocupar o Estado
e dividir e destruir os seus opositores dos partidos «históricos» do centro
liberal, tarefa em que se revelaram manifestamente peritos: logo em Março de
1948, a lista do governo obteve 405 dos 414 lugares em disputa nas eleições
nacionais. Na Roménia, tal como na Bulgária (ou na Albânia, onde Enver
Hoxha mobilizou as comunidades dos Tosk, no Sul, contra a resistência tribal
dos Ghegs, no Norte), a subversão e a violência não eram opções entre outras:
eram a única via de acesso ao poder.
Após a Segunda Guerra Mundial, os Polacos estavam à partida igualmente
condenados a pertencer à esfera soviética devido à sua localização, pois
ficavam no caminho que ia de Berlim a Moscovo; e à sua história, como
obstáculos de longa data às ambições imperiais russas no Ocidente, e porque
também na Polónia eram mínimas as perspectivas de um governo com
simpatias pelos Soviéticos emergir espontaneamente da escolha popular. A
diferença entre a Polónia e os Estados balcânicos, contudo, era que a Polónia
fora vítima de Hitler, não seu aliado. Centenas de milhares de soldados
polacos combateram nos exércitos aliados nas frentes leste e ocidental e os
Polacos alimentavam determinadas expectativas em relação ao seu futuro
depois da guerra.
Do que se soube, essas expectativas não eram assim tão más. Os
comunistas polacos no chamado «Comité Lublin», criado pelas autoridades
soviéticas para disporem de um governo pré-formado que pudesse ser posto
em funções quando chegassem a Varsóvia, dificilmente poderiam afirmar ter
uma base de massas, mas tinham algum apoio no país, sobretudo entre os
jovens, e podiam indicar alguns benefícios reais da «amizade» soviética: uma
garantia efectiva contra o revanchismo territorial da Alemanha (uma
preocupação genuína na altura) e uma política de trocas segundo a qual a
Polónia seria «limpa» do que restava da sua minoria ucraniana e os Polacos
do Leste seriam reinstalados no interior das novas fronteiras do país. Estas
considerações permitiram aos comunistas polacos, apesar da sua importância
marginal (muitos deles eram também de origem judia), reclamar um lugar nas
tradições políticas nacionais, e até nacionalistas, da Polónia.
No entanto, os comunistas polacos seriam sempre uma minoria
insignificante em termos eleitorais. O Partido Camponês Polaco de Stanislaw
Mikolajczyk tinha cerca de 600 000 membros em Dezembro de 1945, dez
vezes mais do que o número de activistas no comunista Partido Polaco dos
Trabalhadores (que passou a ser o Partido Operário Unificado Polaco depois
de ter absorvido os socialistas em Dezembro de 1948). Mas Mikolajczyk,
primeiro-ministro do governo no exílio durante a guerra, ficou fatalmente
desfavorecido devido à sua insistência, caracteristicamente polaca, de ser
tanto antinazi como anti-soviético.
Estaline era mais ou menos indiferente ao sucesso do «socialismo» na
Polónia, como os acontecimentos posteriores haveriam de demonstrar. Mas
estava longe de ser indiferente à orientação geral da política polaca, sobretudo
da política externa. De facto, a par da resolução do impasse alemão, ela era
mais importante para si do que tudo o resto, pelo menos na Europa. Por tal
razão, o Partido Camponês foi firmemente posto de lado, os seus apoiantes
ameaçados, os seus líderes atacados e a sua credibilidade impugnada. Nas
eleições parlamentares polacas de Janeiro de 1947, claramente fraudulentas, o
«Bloco Democrático», liderado pelos comunistas, obteve 80% dos votos e o
Partido Camponês apenas 10%(2). Nove meses depois, receando pela própria
vida, Mikolajczyk fugiu do país. Alguns elementos que restavam do Exército
Nacional, que combateu na Segunda Guerra Mundial, continuaram uma luta
de guerrilha com as autoridades comunistas durante mais alguns anos, mas a
sua causa também era em vão.
A União Soviética tinha um interesse tão óbvio na ordenação política da
Polónia que as ilusões polacas do tempo da guerra – antes e depois de Ialta –
podem parecer quixotescas. Na Hungria, porém, ideias como «a via húngara
para o socialismo» não eram totalmente fantasiosas. No pós-guerra, o
interesse principal da Hungria para Moscovo era enquanto salvo-conduto para
as tropas do Exército Vermelho, no caso destas necessitarem de se
movimentar para ocidente, para a Áustria (ou, mais tarde, para sul, para a
Jugoslávia). Se tivesse havido um apoio público amplo aos comunistas do
país, os seus conselheiros soviéticos poderiam ter usado a táctica
«democrática» durante mais tempo do que a usaram efectivamente.
Mas também na Hungria os comunistas se revelaram coerentemente
impopulares, mesmo em Budapeste. Apesar de ter sido acusado de
reaccionário e fascista, o Partido dos Pequenos Proprietários (que equivalia
aos partidos agrários de outros países) obteve a maioria absoluta nas eleições
nacionais de Novembro de 1945. Com o apoio dos socialistas (cuja líder,
Anna Kethly, recusou acreditar que os comunistas descessem tão baixo ao
ponto de manipular as eleições), os comunistas conseguiram expulsar do
parlamento alguns deputados do Partido dos Pequenos Proprietários e em
Fevereiro de 1947 acusaram-nos de conspiração e, no caso do seu líder Bela
Kovacs, de espionagem contra o Exército Vermelho (Kovacs foi enviado para
a Sibéria, de onde regressou em 1956). Em novas eleições realizadas em
Agosto de 1947, despudoradamente falsificadas pelo ministro do Interior
comunista Laszlo Rajk, os comunistas ainda só conseguiram assegurar apenas
22% dos votos, embora os pequenos proprietários se vissem
convenientemente reduzidos a 15%. Nestas circunstâncias, a via húngara para
o socialismo aproximou-se rapidamente da dos seus vizinhos mais a leste.
Nas eleições seguintes, em Maio de 1949, a «Frente Popular» obteve 95,6%
dos votos.
É fácil ver, em retrospectiva, que as esperanças de uma Europa de Leste
democrática após 1945 não tinham fundamento. A Europa Central e de Leste
tinha poucas tradições democráticas ou liberais próprias. No período entre as
duas grandes guerras, os regimes nesta parte da Europa eram corruptos,
autoritários e, em alguns casos, criminosos. As velhas castas governantes
eram muitas vezes venais. A classe que verdadeiramente governava nesta
época era a burocracia, recrutada nos mesmos grupos sociais que forneciam
os quadros administrativos dos Estados comunistas. Apesar de toda a retórica
do «socialismo», a transição do autoritarismo retrógrado para a «democracia
popular» comunista foi um pequeno e fácil passo. Não surpreende muito que
a história tenha sido o que foi.
Entretanto a alternativa de um regresso dos políticos e das políticas da
Roménia, da Polónia e da Hungria anteriores a 1939 enfraqueceu
significativamente a opção anticomunista, pelo menos até que toda a força do
terror soviético se fizesse sentir depois de 1949. Afinal, como perguntou
hipocritamente o líder comunista francês Jacques Duclos no diário comunista
L’Humanité, em 1 de Julho de 1948, não seria a União Soviética a melhor
garantia destes países, não apenas contra o regresso dos maus velhos tempos,
mas para terem a sua própria independência nacional? Nesta época, tal era, de
facto, a opinião de muitos. Como disse Churchill: «Haverá um dia em que os
Alemães quererão de volta o seu território e os Polacos não serão capazes de
os impedir.» A União Soviética era o protector autodesignado das novas
fronteiras da Roménia e da Polónia, para não falar das terras redistribuídas
dos Alemães e de outras nacionalidades expulsas em toda a região.
Tudo isto era um aviso – como se tal fosse necessário – da omnipresença
do Exército Vermelho. Em Setembro de 1944, o 37.o Exército da 3.a Frente
Ucraniana foi destacado das forças que ocupavam a Roménia e estacionado
na Bulgária, onde permaneceu até à assinatura dos tratados de paz, em 1947.
As forças soviéticas permaneceram na Hungria até meados dos anos 50 (e
novamente após 1956) e na Roménia até 1958. A República Democrática
Alemã esteve sob ocupação militar soviética ao longo de todos os 40 anos da
sua existência e havia tropas soviéticas que transitavam regularmente pela
Polónia. A União Soviética não pensava abandonar esta parte da Europa, cujo
futuro estava, por isso, intimamente ligado ao destino do seu gigantesco
vizinho, como os acontecimentos posteriores haviam de mostrar.
A excepção aparente era a Checoslováquia. Muitos Checos aclamaram os
Russos como libertadores. Graças a Munique, tinham poucas ilusões sobre as
potências ocidentais. Por outro lado, o governo de Edvard Benes no exílio,
sedeado em Londres, foi o único que, sem ambiguidades, estabeleceu pontes
com Moscovo muito antes de 1945. Como o próprio Benes apresentou a sua
posição a Molotov, em Dezembro de 1943, «no que toca a assuntos da maior
importância, […] [nós] falaríamos e agiríamos sempre de uma forma que
fosse do agrado dos representantes do governo soviético.» Benes pode não ter
estado tão avisado como o seu mentor, o antigo presidente Tomas Masaryk,
quanto aos riscos de um abraço russo ou soviético, mas também não era
inconsciente. Praga seria amistosa com Moscovo pela mesma razão que
buscara laços estreitos com Paris antes de 1938: porque a Checoslováquia era
um país pequeno e vulnerável da Europa Central e necessitava de um
protector.
Apesar de ser, sob muitos aspectos, o mais ocidental dos países «orientais»
da Europa, com uma cultura política historicamente pluralista, um sector
urbano e uma indústria significativos, uma economia capitalista florescente
antes da guerra e uma política social-democrata de inspiração ocidental
depois dela, a Checoslováquia era também o aliado mais próximo da União
Soviética na região, após 1945, apesar de ter perdido o seu distrito mais
oriental da subregião da Ruténia subcarpática para satisfazer os
«ajustamentos» territoriais soviéticos. Esta foi a razão por que Benes foi o
único dos primeiros-ministros no exílio dos países da Europa de Leste e do
Sudoeste que conseguiu regressar com o seu governo ao respectivo país. Em
Abril de 1945, remodelou-o com sete comunistas e onze ministros dos outros
quatro partidos.
Os comunistas checos, sob a liderança de Klement Gottwald, acreditaram
genuinamente que as suas possibilidades de chegar ao poder através das urnas
eram boas. Tiveram um desempenho respeitável nas últimas eleições antes da
guerra, obtendo 849 000 votos (10% do total) em 1935. Não dependiam do
Exército Vermelho, que abandonou a Checoslováquia em Novembro de 1945
(embora a União Soviética mantivesse em Praga, como em todo o lado, aliás,
uma presença significativa dos serviços de informação e da polícia secreta
através da sua representação diplomática). Nas eleições checoslovacas
verdadeiramente livres, embora psicologicamente tensas, de Maio de 1946, o
Partido Comunista obteve 40,2% dos votos nos distritos checos da Boémia e
da Morávia e 31% na Eslováquia, maioritariamente rural e católica. Apenas o
Partido Democrata Eslovaco fez melhor, mas a sua base eleitoral estava
limitada, por definição, ao terço eslovaco da população(3).
Os comunistas checos anteviram um sucesso continuado, razão por que
aceitaram bem a perspectiva da Ajuda Marshall e empreenderam campanhas
de recrutamento para melhorar as suas possibilidades em futuras eleições. Os
membros do partido subiram de cerca de 50 000 em Maio de 1945 para 1 220
000 em Abril de 1946 e alcançaram 1 310 000 em Janeiro de 1948 (numa
população de apenas 12 milhões de indivíduos). Os comunistas não deixaram
certamente de utilizar os favores e as pressões para garantirem apoios e, como
nos outros países de Leste, tomaram a precaução de ficar com os ministérios
fundamentais e de colocar os seus homens em posições decisivas na polícia e
nas restantes instituições. Todavia, antecipando as eleições de 1948, os
comunistas da Checoslováquia preparavam-se para alcançar todo o poder por
uma «via checa» que parecia ainda muito diferente das seguidas a leste do
país.
Não se sabe se a liderança soviética acreditou nas garantias dadas por
Gottwald de que o Partido Comunista da Checoslováquia triunfaria sem
ajuda, mas pelo menos até ao Outono de 1947 Estaline deixou a
Checoslováquia em paz. Os Checos expulsaram os Alemães dos Sudetas (o
que os expôs à hostilidade germânica e tornou deste modo o seu país ainda
mais dependente da protecção soviética) e a ênfase dada pelos governos de
Benes no pós-guerra ao planeamento económico, à propriedade do Estado e
ao trabalho exigente fizeram recordar a pelo menos um jornalista francês, em
Maio de 1947, a retórica e a atitude do stakhanovismo soviético anterior. Os
cartazes de rua tinham o retrato de Estaline ao lado do próprio presidente
Benes, muito tempo antes de os comunistas terem estabelecido um governo
seu e, portanto, de terem garantido o monopólio do poder. Vimos que o
ministro dos Negócios Estrangeiros Jan Masaryk e os seus colegas não
hesitaram em recusar a Ajuda Marshall, por ordem de Moscovo, no Verão de
1947. Em suma, Estaline não tinha nada de que se queixar no comportamento
checoslovaco.
No entanto, em Fevereiro de 1948, aproveitando a demissão imprudente de
ministros não comunistas (por causa de uma importante mas obscura questão
de infiltração comunista na polícia), os comunistas engendraram um golpe em
Praga, para obter o controlo do país. O golpe de Praga teve um significado
enorme, precisamente porque aconteceu num país mais ou menos
democrático que parecia ser muito amigo de Moscovo. Galvanizou os Aliados
ocidentais, que deduziram dele que o comunismo estava em marcha para
ocidente(4). Provavelmente salvou os Finlandeses: graças aos problemas que
o golpe de Praga lhe causou não só na Alemanha, mas em toda a parte,
Estaline foi forçado, em Abril de 1948, a entrar em compromissos com
Helsínquia e a assinar um tratado de amizade (tendo tentado de início impor à
Finlândia uma solução europeia oriental ao dividir os sociais-democratas,
forçando-os a fundir-se com os comunistas numa «Liga de Defesa do Povo da
Finlândia», de forma a conduzi-los ao poder).
No Ocidente, Praga despertou os socialistas para as realidades da vida
política na Europa de Leste. Em 29 de Fevereiro de 1948, o idoso Léon Blum
publicou no jornal socialista francês Le Populaire um artigo de enorme
influência, criticando a falha dos socialistas ocidentais em falar abertamente
do destino dos seus camaradas da Europa de Leste. Graças a Praga, uma parte
significativa da esquerda não comunista em França, em Itália e em outros
países situar-se-ia agora firmemente no campo ocidental, uma evolução que
isolaria e conduziria gradualmente à impotência os partidos comunistas dos
países que estavam fora do alcance soviético.
Se Estaline engendrou o golpe de Praga sem antecipar completamente
estas consequências, não foi apenas porque sempre pretendeu impor de uma
certa forma a sua ordem em todo o bloc, nem porque a Checoslováquia
tivesse uma grande importância no panorama geral. O que aconteceu em
Praga – e estava a acontecer ao mesmo tempo na Alemanha, onde a política
soviética se afastava rapidamente do levantamento de barreiras
intransponíveis e de desacordos, em direcção a uma confrontação aberta com
os seus antigos aliados – foi um regresso de Estaline a um estilo e a uma
estratégia de uma época anterior. Esta mudança foi motivada, em termos
gerais, pela ansiedade sentida por não conseguir modelar como queria as
questões da Europa e da Alemanha, mas também, e sobretudo, pela sua
irritação crescente com a Jugoslávia.
* * *
Em 1947, o governo comunista da Jugoslávia, dirigido por Josip Broz
Tito, tinha um estatuto único. Caso singular entre os partidos comunistas da
Europa, os Jugoslavos chegaram ao poder pelos seus próprios esforços, sem
dependerem de aliados locais nem da ajuda externa. É claro que os Britânicos
deixaram de enviar ajuda, em Dezembro de 1943, aos guerrilheiros rivais
Chetniks, deslocando o seu apoio para Tito, e, nos anos do imediato pós-
guerra, a Administração para a Assistência e a Reabilitação das Nações
Unidas (United Nations Relief and Rehabilitation Administration – UNRRA)
gastou mais dinheiro (415 milhões de dólares) em ajuda à Jugoslávia do que
em qualquer outro lugar na Europa, com 72% desse financiamento a ter
origem nos Estados Unidos. Todavia, para os contemporâneos, o que
importava era que os guerrilheiros comunistas jugoslavos tinham sido os
únicos resistentes a combater com sucesso os ocupantes alemães e italianos.
Sentindo-se arrebatados com a sua vitória, os comunistas de Tito não
entraram de forma alguma em coligações do género das que foram
estabelecidas noutros países da Europa de Leste libertada e começaram de
imediato a aniquilar todos os seus opositores. Em Novembro de 1945, nas
primeiras eleições depois da guerra, os votantes estavam perante uma escolha
sem ambiguidades: a «Frente do Povo» de Tito ou uma urna publicamente
conhecida como «oposição». Em Janeiro de 1946, o Partido Comunista da
Jugoslávia introduziu uma constituição que tomou directamente por modelo a
da URSS. Tito prosseguiu com detenções em massa, prisões e execuções dos
seus opositores, a par de colectivizações forçadas da terra, numa época em
que os comunistas nas vizinhas Hungria e Roménia estavam ainda a passar
cuidadosamente uma imagem mais moderada. Segundo parecia, a Jugoslávia
pertencia ao lado mais duro do comunismo europeu.
Aparentemente, o radicalismo jugoslavo e o êxito do Partido Comunista da
Jugoslávia em assumir o controlo firme de uma região de importância
estratégica crucial, favoreciam os Soviéticos. As relações entre Moscovo e
Belgrado eram cordiais. Moscovo elogiava prodigamente Tito e o seu partido,
despertava um grande entusiasmo pelos seus sucessos revolucionários e
apontava a Jugoslávia como um modelo a imitar. Os líderes jugoslavos, por
seu lado, aproveitaram todas as ocasiões para insistir no seu respeito pela
União Soviética. Viam-se a si mesmos a introduzir nos Balcãs os modelos
bolcheviques de revolução e de governo. Tal como Milovan Djilas recordou,
«estávamos todos com uma predisposição de espírito favorável [à URSS] e
todos teríamos permanecido devotados a ela, se não fossem os seus elevados
padrões de lealdade enquanto grande potência».
Todavia, do ponto de vista de Estaline, a devoção jugoslava ao
bolchevismo era demasiado entusiasta. Estaline, como já vimos, estava menos
interessado na revolução do que no poder. Era da alçada de Moscovo
determinar a estratégia dos partidos comunistas, decidir quando era
conveniente uma abordagem moderada e quando devia ser adoptada um linha
radical. Como origem e fonte da revolução mundial, a União Soviética não
era um modelo para a revolução, mas o modelo. Em circunstâncias adequadas
podia acontecer que houvesse menos partidos comunistas a seguir essa via,
mas seria pouco avisado cortar com um ‘trunfo’ a ‘mão’ soviética. Ora, esta
era a grande fraqueza de Tito aos olhos de Estaline. Na sua ambição de
estabelecer o padrão comunista no Sudoeste da Europa, o antigo general
guerrilheiro estava a antecipar-se aos cálculos dos Soviéticos. Os sucessos
revolucionários estavam a subir-lhe à cabeça: estava a ficar mais papista do
que o papa.
Estaline não chegou de imediato a esta conclusão, apesar de já haver
registos, de Janeiro de 1945, relativamente à sua frustração com o
«inexperiente» Tito. Para além da consciência que havia em Moscovo de que
Tito estava a ir longe demais e a erigir a revolução nacional jugoslava em
contramodelo da dos Soviéticos, os desacordos entre Estaline e Tito
começaram sobre questões práticas de política regional. Os Jugoslavos
dirigidos por Tito alimentavam ambições, com raízes na antiga história dos
Balcãs, de absorver a Albânia, a Bulgária e algumas partes da Grécia numa
Jugoslávia alargada que faria parte de uma nova «Federação Balcânica». Esta
ideia tinha algum eco fora das fronteiras da Jugoslávia. Tinha sentido
económico para a Bulgária, segundo Traicho Kostov, um dos líderes
comunistas de Sófia, e representaria mais uma ruptura com o nacionalismo de
pequeno Estado que tanto prejudicou as ambições destes países antes da
guerra.
De início, o próprio Estaline não era contrário a que se falasse de uma
federação balcânica e Dimitrov, o confidente de Estaline no Comintern e o
primeiro líder comunista da Bulgária, falou abertamente desta perspectiva já
em Janeiro de 1948. Mas havia dois problemas com o plano, aliás sedutor, de
englobar o Sudoeste da Europa num acordo federativo sob o poder comunista.
O que começou como uma base de cooperação mútua entre comunistas da
região em breve começou a parecer, aos olhos desconfiados de Estaline,
sobretudo uma tentativa de hegemonia regional feita por um deles. Com o
tempo, só isto teria levado Estaline a restringir as ambições de Tito. Mas, para
além disso, o que era crucial, Tito estava a provocar problemas a Estaline no
Ocidente.
Os Jugoslavos apoiaram e encorajaram abertamente a insurreição grega,
tanto em 1944 como, o que é mais significativo, quando a guerra civil grega
eclodiu novamente três anos depois. Este apoio era coerente com o activismo
bastante narcisista de Tito – que ajudava os comunistas gregos a emular os
seus próprios sucessos – e era influenciado também pelos interesses
jugoslavos nas disputadas regiões «eslavas» da Macedónia grega. Todavia, a
Grécia pertencia à esfera de influência de interesses do Ocidente, como
Churchill e mais tarde Truman haviam tornado muito claro. Estaline não
estava interessado em provocar uma disputa com o Ocidente por causa da
Grécia, uma questão secundária para ele. Os comunistas gregos acreditaram
ingenuamente que a sua insurreição espoletaria a ajuda soviética, talvez até a
intervenção das forças soviéticas, só que isso nunca esteve previsto. Pelo
contrário, Estaline considerava-os uns aventureiros indisciplinados,
perseguindo uma causa perdida e susceptível de provocar uma intervenção
americana.
Os encorajamentos provocadores de Tito aos insurrectos gregos
incomodaram, portanto, Estaline – que pensou, e bem, que sem a ajuda
jugoslava o imbróglio grego já se tinha resolvido pacificamente há muito(5) –
e afastaram-no ainda mais do seu acólito balcânico. Mas não era apenas a sul
dos Balcãs que Tito causava embaraços a Estaline e aumentava a irritação dos
anglo-americanos. Em Trieste e na península da Ístria, as ambições territoriais
jugoslavas eram um obstáculo ao acordo aliado para um tratado de paz
italiano. Quando, em Setembro de 1947, o tratado foi finalmente assinado,
deixou incerto o futuro da região de Trieste, com tropas aliadas ainda aí
estacionadas para impedir uma conquista jugoslava. Na vizinha Caríntia, o
distrito austríaco mais a sul, Tito exigia um acordo territorial a favor da
Jugoslávia, enquanto Estaline preferia um status quo por resolver (que tinha a
grande vantagem para os Soviéticos de lhes permitir manter um exército no
Leste da Áustria e também na Hungria).
A combinação de irredutibilidade e de fervor revolucionário guerrilheiro
da parte de Tito era, assim, um embaraço cada vez maior para Estaline.
Segundo a Official British History of the Second World War, após Maio de
1945 era opinião muito difundida nos círculos militares ocidentais que se a
Terceira Guerra Mundial começasse em breve seria na região de Trieste. Mas
Estaline não estava interessado em provocar uma Terceira Guerra Mundial e
certamente ainda menos por causa de um qualquer canto obscuro do Nordeste
da Itália. Também não estava muito satisfeito por ver o Partido Comunista
Italiano embaraçado com as impopulares ambições territoriais do vizinho
comunista.
Por todas estas razões, em privado, já no Verão de 1947 Estaline se
manifestara exasperado com a Jugoslávia. Não lhe podia ter agradado que a
estação de caminho-de-ferro da capital búlgara estivesse coberta de cartazes
de Tito ao lado dos de Estaline e Dimitrov, nem que os comunistas húngaros
começassem a falar em imitar o modelo jugoslavo de poder comunista. Até
Rakosi, servilmente leal, fez ao próprio Estaline elogios a Tito num encontro
em Moscovo, no fim do ano de 1947. Tito não era apenas um embaraço
diplomático para a União Soviética nas suas relações com os Aliados
ocidentais, mas estava também a causar problemas no seio do próprio
movimento comunista internacional.
Para os observadores externos, o comunismo era uma entidade política
única, arquitectada e dirigida a partir do «centro» de Moscovo. Todavia, na
perspectiva de Estaline, as coisas eram mais complicadas. Desde os anos 20
até ao início da guerra, Moscovo conseguiu, de facto, impor o seu controlo
sobre o movimento comunista mundial, à excepção da China. Porém, a guerra
tudo mudou. Na sua resistência aos Alemães, a União Soviética foi obrigada a
apelar ao patriotismo, à liberdade, à democracia e a muitos outros objectivos
«burgueses». O comunismo perdeu a sua acutilância revolucionária e tornou-
se deliberadamente parte de uma coligação antifascista mais vasta. Esta foi
também a táctica das Frentes Populares anteriores à guerra, claro, mas nos
anos 30 Moscovo pôde exercer um controlo apertado sobre os seus partidos
estrangeiros, usando as ajudas financeiras, as intervenções pessoais e o terror.
Durante a guerra, esse controlo deixou de existir, facto simbolizado pelo
encerramento do Comintern, em 1943, e não foi completamente recuperado
nos anos depois do termo da guerra. O partido da Jugoslávia foi o único, em
toda a Europa, que chegou ao poder sem a intervenção soviética, mas em
Itália e em França os partidos comunistas, embora continuassem a manifestar
lealdade a Moscovo, funcionavam no dia-a-dia sem conselhos nem instruções
vindos de fora. Os seus líderes partidários não tinham qualquer conhecimento
privilegiado das intenções de Estaline. Tal como os Checos, mas ainda com
menos orientação vinda da URSS, prosseguiram o que chamaram «via
francesa (ou italiana) para o socialismo», trabalhando em coligação e
considerando que os objectivos nacionais eram perfeitamente compatíveis
com os objectivos comunistas.
Tudo isto começou a mudar no Verão de 1947. Os ministros comunistas
foram expulsos dos governos francês e italiano em Maio de 1947. Isto
constituiu de alguma forma uma surpresa para eles, e Maurice Thorez, o líder
comunista francês, continuou durante algum tempo a esperar que o seu
partido pudesse em breve reintegrar a coligação no governo. No congresso do
seu partido realizado em Estrasburgo, em Junho de 1947, disse que os que
advogavam uma oposição total eram «aventureiros». Os comunistas da
Europa Ocidental não sabiam como responder ao Plano Marshall e apenas
tardiamente pegaram na deixa de Estaline ao rejeitá-lo. Em geral, eram fracas
as comunicações entre Moscovo e os seus partidos ocidentais. Depois da
saída dos comunistas franceses do governo, Andrei Zdanov enviou uma carta
confidencial a Thorez (significativamente, com uma cópia enviada ao líder
comunista checoslovaco Gottwald): «Muitos pensam que as acções dos
comunistas franceses foram concertadas [connosco]. Você sabe que não é
verdade e que os passos que vocês deram constituíram uma surpresa total para
o Comité Central.»
Era claro que os comunistas ocidentais estavam a ficar para trás. Em 2 de
Junho, algumas semanas após o envio da carta a Thorez, Moscovo
estabeleceu tratados comerciais com os seus vizinhos e países satélites
europeus de Leste, como parte de uma reacção concertada contra o Plano
Marshall e a ameaça que representava para a influência soviética na região. A
política de cooperação que era praticada em Praga, Paris e Roma, e até então
tacitamente aprovada por Estaline, estava a ser rapidamente substituída por
um recuo para uma política de confrontação, simbolizada pela promulgação
por Zdanov da teoria dos dois «campos» irreconciliáveis.
Para implementar a nova abordagem, Estaline convocou um encontro em
Szklarska Poreba, na Polónia, para o fim de Setembro de 1947. Foram
convidados a tomar parte os partidos da Polónia, Hungria, Roménia, Bulgária,
Checoslováquia, Jugoslávia, França, Itália e, claro, União Soviética. O
objectivo declarado do encontro foi a criação do «Cominform», o Gabinete de
Informação Comunista, que sucedia à Internacional Comunista e cuja tarefa
seria «coordenar» a actividade comunista internacional e melhorar as
comunicações entre Moscovo e os partidos satélites. Todavia, o objectivo real
do encontro e do Cominform (que apenas se reuniu três vezes e foi dissolvido
em 1956) era restabelecer o domínio soviético no movimento internacional.
Precisamente como fizera vinte anos antes com o próprio partido
bolchevique, Estaline planeou castigar e desacreditar os desvios «direitistas».
Em Szklarska Poreba os representantes franceses e italianos foram sujeitos a
conferências paternalistas sobre estratégia revolucionária por parte dos
delegados jugoslavos Edvard Kardelj e Milovan Djilas, cujo «esquerdismo»
exemplar foi considerado digno de louvor por Zdanov e Malenkov, os
delegados soviéticos. Os comunistas ocidentais (bem como os representantes
dos partidos checo e eslovaco, aos quais as críticas também eram claramente
dirigidas) foram apanhados de surpresa. Acabara a coexistência pacífica como
a tinham procurado realizar na política dos seus países. Estava a nascer um
«campo democrático anti-imperialista» (foram as palavras de Zdanov) e havia
uma nova linha a ser seguida. De agora em diante, Moscovo esperava que os
comunistas estivessem mais atentos e subordinassem as considerações
nacionais aos interesses soviéticos.
Depois de Szklarska Poreba, os comunistas passaram a desenvolver
tácticas de confronto em toda a parte: greves, manifestações, campanhas
contra o Plano Marshall e, na Europa de Leste, a aceleração da tomada do
poder. O comité central do Partido Comunista Francês reuniu-se em Paris, em
29 e 30 de Outubro de 1947, e inaugurou oficialmente uma campanha de
difamação dirigida contra os seus antigos aliados socialistas. Os comunistas
italianos demoraram mais algum tempo a mudar, mas no congresso do Partido
Comunista Italiano (PCI) também adoptaram um «novo rumo», cuja ideia
central era «lutar pela paz». Em consequência, os comunistas europeus
ocidentais, foram, é claro, penalizados: foram marginalizados nos assuntos
nacionais e, no caso italiano, tiveram grandes perdas nas eleições de Abril de
1948, nas quais o Vaticano e a embaixada dos Estados Unidos intervieram
intensamente do lado anticomunista(6). Mas isso não importava. Segundo a
teoria dos «campos», de Zdanov, os comunistas no campo ocidental estavam
agora destinados a um papel secundário e dispensável.
Poder-se-á pensar que o hiper-revolucionarismo dos Jugoslavos, até então
um obstáculo à diplomacia de Estaline, passaria a ser uma vantagem, e assim
parecera em Szklarska Poreba, onde ao Partido Comunista Jugoslavo foi dado
o papel de estrela. É claro que os delegados franceses, italianos e de outros
partidos nunca perdoaram aos Jugoslavos o ar de superioridade
condescendente que ostentavam e os privilégios de que gozavam em
Szklarska Poreba: após a ruptura entre Soviéticos e Jugoslavos, os comunistas
de todos os quadrantes não puderam deixar de ficar muito satisfeitos por
condenar o «desvio titista», precisando de pouco encorajamento soviético
para cobrir de calúnias e desprezo os camaradas balcânicos caídos em
desgraça.
Contudo, o afastamento entre Tito e Estaline foi publicamente iniciado
com a condenação por este da ideia de Federação Balcânica, em Fevereiro de
1948, e o cancelamento das negociações comerciais, a que se seguiu a retirada
dos conselheiros soviéticos militares e civis de Belgrado, no mês seguinte.
Prosseguiu com uma série de comunicados e acusações formais em que
ambos os lados afirmavam a melhor das intenções e culminou com a recusa
de Tito em estar presente na segunda conferência do Cominform, que se iria
realizar em 28 de Junho de 1948. A ruptura foi consumada nessa conferência,
com uma resolução formal que expulsou a Jugoslávia da organização por
recusar aceitar o papel principal do Exército Vermelho e da URSS na
libertação e na transformação socialista do país. Oficialmente, Belgrado foi
acusada de conduzir uma política externa nacionalista e de aplicar políticas
internas incorrectas. De facto, a Jugoslávia representava o equivalente
internacional de uma «oposição de esquerda» ao monopólio do poder de
Estaline e, deste modo, o conflito foi inevitável: Estaline precisava de vergar
Tito para tornar muito claro aos camaradas comunistas do líder jugoslavo que
Moscovo não toleraria dissensões.
Tito, é claro, não se vergou. Mas tanto ele como o seu país estavam mais
vulneráveis do que parecia na altura, e, sem o apoio ocidental crescente, Tito
teria dificuldades em conseguir sobreviver ao boicote económico soviético
(em 1948, 46% do comércio jugoslavo era realizado com o bloco soviético,
um número que se reduziu para 14% um ano mais tarde) e às credíveis
ameaças de intervenção soviética. Os Jugoslavos pagaram certamente um
certo preço retórico pelas suas acções voluntariosas. Nos dois anos que se
seguiram, foram lançados ataques constantes pelo Cominform. Na
terminologia bem treinada das calúnias leninistas, Tito tornou-se no «Judas
Tito e os seus cúmplices» e «[n]o novo czar dos pan-sérvios e de toda a
burguesia jugoslava». Os seus seguidores eram «traidores desprezíveis e
mercenários dos imperialistas», «arautos sinistros do campo da morte e da
guerra, traiçoeiros incitadores à guerra e dignos herdeiros de Hitler». O
Partido Comunista da Jugoslávia foi condenado como um «bando de espiões,
provocadores e assassinos», «cães presos a trelas americanas, roendo ossos
dados pelos imperialistas e ladrando em defesa do capital americano».
-
(1) Na verdade, os Búlgaros oscilaram bastante ao longo dos anos entre um entusiástico pró-
germanismo e um ultra-eslavofilismo. Nenhum deles lhes trouxe benefícios. Como na época disse um
comentador búlgaro, a Bulgária escolhe sempre a carta errada… e bate-a na mesa!

(2) Não foi esta a primeira vez que russos armados vigiaram pessoalmente eleições polacas
essenciais: durante as eleições parlamentares de 1772, em que se pediu aos Polacos para escolherem
representantes que confirmassem a partilha do seu país, tropas estrangeiras permaneceriam perto,
ameaçadoras, para garantir o desejado resultado.

(3) O Partido Agrário, do território checo, e o seu parceiro, o Partido do Povo, da Eslováquia, foram
banidos depois da guerra por terem sido coniventes com as políticas nazis.

(4) A opinião pública ocidental foi influenciada também pela morte de Mazaryk, em 10 de Março de
1948, que se disse ter «caído» da sua janela para o pátio do ministério dos Negócios Estrangeiros. As
circunstâncias exactas da sua morte nunca foram esclarecidas.

(5) Quando Tito fechou a fronteira terrestre da Grécia com a Jugoslávia, em Julho de 1949, depois da
sua ruptura com Estaline, a resistência dos comunistas gregos entrou quase imediatamente em colapso.

(6) De facto, o PCI até subiu ligeiramente nas eleições de 1948, mas apenas à custa dos socialistas,
que tiveram grandes perdas. Os democratas-cristãos vitoriosos ultrapassaram o conjunto da esquerda
por mais de quatro milhões de votos.
É significativo que os ataques a Tito e aos seus seguidores tivessem
coincidido com o apogeu do culto estalinista da personalidade e com as
purgas e os julgamentos encenados dos anos seguintes. De facto, restam
poucas dúvidas de que Estaline via em Tito uma ameaça e um desafio, e
receava o seu efeito corrosivo na lealdade e na obediência dos outros regimes
e partidos comunistas. A insistência do Cominform, usando os seus jornais e
publicações, no «agravamento da luta de classes no período de transição do
capitalismo para o socialismo» e no «papel dirigente» do partido, arriscava-se
a recordar às pessoas que estas foram precisamente as políticas do partido
jugoslavo desde 1945. Daí a insistência paralela na lealdade à União Soviética
e a Estaline, a rejeição de todas as vias «nacionais» ou «particulares» para o
socialismo e a exigência de um «redobrar da vigilância». Estava a começar a
segunda idade de gelo estalinista.
Se Estaline se deu a tanto trabalho para afirmar e reafirmar a sua
autoridade na Europa de Leste, foi em larga medida porque estava a perder a
iniciativa na Alemanha(7). Em 1 de Junho de 1948, os Aliados ocidentais,
reunidos em Londres, anunciaram planos para criar um Estado alemão
separado. Em 18 de Junho, foi anunciada a nova moeda, o Deutsche Mark.
Três dias depois foi posto em circulação (as notas foram impressas em grande
segredo nos Estados Unidos e transportadas para Frankfurt sob escolta do
Exército americano). O velho Reichsmark foi retirado de circulação, tendo
cada alemão residente direito a trocar apenas 40 destes pelos novos marcos ao
câmbio de 1 para 1 e os restantes ao câmbio de 10 para 1. De início pouco
popular (porque destruiu as poupanças, fez subir os preços reais e colocou os
bens fora do alcance da maioria das pessoas), a moeda foi rapidamente aceite
porque as lojas se enchiam de mercadorias que os agricultores e os
comerciantes pretendiam agora vender a preços fixos, utilizando um meio de
pagamento que inspirava confiança.
Em 23 de Junho, as autoridades soviéticas responderam fazendo sair um
novo marco na Alemanha de Leste e cortando as linhas de caminho-de-ferro
que ligavam Berlim à Alemanha Ocidental (três semanas depois também
fechariam os canais). No dia seguinte, o governo militar ocidental em Berlim
bloqueou os esforços soviéticos de alargamento do uso da nova moeda da
zona oriental em Berlim ocidental, o que era uma importante questão de
princípio porque a cidade de Berlim estava sob administração das quatro
potências e a zona ocidental não fora até então considerada como fazendo
parte da Alemanha de Leste ocupada pela União Soviética. À medida que as
tropas soviéticas apertavam o controlo sobre as ligações de superfície com a
cidade, os governos americano e britânico decidiram realizar uma ponte aérea
para abastecer as suas próprias zonas e, em 26 de Junho, o primeiro avião de
transporte aterrou no aeroporto de Tempelhof em Berlim (Ocidental).
A ponte aérea durou até 12 de Maio de 1949. Durante estes 11 meses os
Aliados enviaram 2,3 milhões de toneladas de alimentos em 275 500 voos,
com o custo de 73 vidas de tripulantes aliados. O propósito de Estaline ao
fazer o bloqueio a Berlim era forçar o Ocidente a escolher entre deixar a
cidade (tirando partido da ausência de qualquer garantia escrita nos
protocolos de Potsdam quanto ao acesso terrestre por parte dos Aliados) e
abandonar os seus planos de criar um Estado alemão ocidental separado. Mas
se isso era o que Estaline pretendia – Berlim era sempre para ele moeda de
troca –, acabou por não realizar nenhum desses objectivos.
Os Aliados não apenas conseguiram manter a sua parte de Berlim (com
alguma surpresa sua e uma gratidão maravilhada dos próprios berlinenses
ocidentais), mas o bloqueio soviético, que aconteceu pouco depois do golpe
de Praga, apenas aumentou a sua determinação em continuar com os planos
para a Alemanha Ocidental, para além de ter tornado a divisão do país mais
aceitável aos próprios Alemães. A França juntou-se à zona dupla em Abril de
1949, criando uma unidade económica alemã ocidental de 49 milhões de
habitantes (contra 17 milhões na zona soviética).
Tal como a maioria das aventuras diplomáticas de Estaline, o bloqueio de
Berlim foi uma improvisação, e não parte de um desígnio agressivo bem
pensado (embora o Ocidente não possa ser acusado de o ignorar na altura).
Estaline não estava disposto a entrar em guerra por causa de Berlim(8). Por
isso, quando o bloqueio falhou, o líder soviético mudou de orientação. Em 31
de Janeiro de 1949, propôs publicamente levantar o bloqueio em troca de um
adiamento dos planos para um Estado alemão ocidental. Os Aliados
ocidentais não tinham qualquer intenção de fazer tal concessão, mas foi
acordado que se realizasse um encontro para discutir o assunto e a 12 de Maio
a União Soviética terminou o bloqueio em troca apenas de uma conferência
dos ministros dos Negócios Estrangeiros marcada para 23 desse mês.
A conferência realizou-se conforme estava programado e durou um mês,
mas, como se poderia prever, não se encontrou uma base de entendimento. Na
verdade, tinha precisamente começado quando o conselho parlamentar da
Alemanha Ocidental aprovou formalmente em Bona a «Lei Básica» que
criava um governo alemão ocidental. Uma semana mais tarde, Estaline
respondeu, anunciando também planos para a criação de um Estado alemão
oriental, o que aconteceu formalmente em 7 de Outubro(9). Quando a
conferência se iniciou, em 20 de Junho, o governo militar instalado na
Alemanha Ocidental foi substituído por Altos-Comissários dos Estados
Unidos, Grã-Bretanha e França. Foi criada a República Federal da Alemanha,
embora os Aliados tenham reservado para si alguns poderes de intervenção e
mesmo o direito de reassumir o governo directo se o julgassem necessário.
Em 15 de Setembro de 1949, depois do êxito do seu Partido Democrata-
Cristão nas eleições do mês anterior, Konrad Adenauer tornou-se o primeiro
chanceler da república.
A crise de Berlim teve três consequências relevantes. Em primeiro lugar,
conduziu directamente à criação de dois Estados alemães, um resultado que
nenhum dos Aliados pretendera quatro anos antes. Para as potências
ocidentais tinha-se transformado num objectivo apelativo e atingível. Na
verdade, apesar de todos os louvores tecidos à reunificação alemã, ninguém
estaria com muita pressa para a ver concretizar-se. Isso é sugerido, nove anos
depois, na resposta do primeiro-ministro britânico Harold Macmillan ao
presidente Charles de Gaulle quando este lhe perguntou o que pensava de
uma Alemanha unificada: «Em teoria. Em teoria devemos sempre apoiar a
reunificação. Nisso não há perigo.» Depois de perceber que não podia
competir com os Aliados na fidelidade dos Alemães, nem tinha força para os
obrigar a abandonar os seus planos, para Estaline o resultado menos mau foi
um Estado comunista na Alemanha de Leste.
Em segundo lugar, a crise de Berlim deu origem ao compromisso dos
Estados Unidos em ter uma presença militar significativa na Europa por um
tempo indeterminado. Isto foi conseguido por Ernest Bevin, o ministro dos
Negócios Estrangeiros britânico. Foi Bevin que instou os Americanos a
liderar a ponte aérea para Berlim, depois de Marshall e o general Clay (o
comandante americano de Berlim) terem assegurado a Truman que valia a
pena correr o risco. Os Franceses estiveram menos implicados na crise de
Berlim, porque de 18 de Julho a 10 de Setembro o país esteve envolvido
numa crise política sem uma maioria governativa clara na Assembleia
Nacional.
Todavia, em terceiro lugar, e em consequência dos dois pontos
anteriormente referidos, a crise de Berlim conduziu directamente a uma
reavaliação dos cálculos militares ocidentais. Se o Ocidente ia proteger os
seus clientes Alemães da agressão soviética, então ter-se-ia de dotar dos
meios necessários para o fazer. Os Americanos estacionaram bombardeiros
estratégicos na Grã-Bretanha quando começou a crise de Berlim, que estavam
equipados para transportar bombas atómicas, de que os Estados Unidos
possuíam 56 na altura. Mas Washington não tinha uma política definida sobre
a utilização de tais bombas (Truman estava particularmente relutante em usá-
las) e se se desse o caso de a União Soviética avançar, a estratégica dos
Estados Unidos na Europa ainda pressupunha a retirada do continente.
O repensar da estratégia militar iniciou-se com o golpe de Praga. Logo a
seguir a este, a Europa entrou num período de insegurança ainda maior, com
muitas referências a uma nova guerra. Até o general Clay, que não era, em
geral, dado a hipérboles, partilhava os receios comuns: «Durante muitos
meses, baseado em análises lógicas, pensei e defendi que era improvável uma
guerra durante dez anos, pelo menos. Nas últimas semanas, senti que houve
uma mudança subtil na atitude da União Soviética, que não consigo definir,
mas penso poder manifestar-se com um dramatismo súbito.» Foi nesta
atmosfera que o Congresso dos Estados Unidos aprovou a legislação do plano
Marshall e os Aliados assinaram o pacto de Bruxelas, em 17 de Março de
1948. O pacto de Bruxelas, contudo, era um tratado convencional a 50 anos
em que a Grã-Bretanha, a França e os países do Benelux se comprometiam a
«colaborar em medidas de assistência mútua se houvesse uma nova agressão
alemã», ao passo que os políticos europeus estavam claramente a ficar cada
vez mais conscientes da sua exposição desamparada às pressões soviéticas.
Neste aspecto, estavam tão vulneráveis como sempre estiveram. Como o
ministro holandês dos Negócios Estrangeiros Dirk Stikker diria numa análise
retrospectiva: «Nós na Europa temos apenas uma garantia verbal de apoio
americano por parte do presidente Truman.»
Foram os Britânicos que iniciaram uma nova abordagem a Washington.
Num discurso ao parlamento, em 22 de Janeiro de 1948, Bevin declarou que a
Grã-Bretanha integraria com os seus vizinhos continentais uma estratégia
comum de defesa, uma «União Europeia Ocidental», com o argumento de que
as necessidades da defesa britânica já não se podiam isolar das do continente,
o que representava uma ruptura significativa com o pensamento britânico do
passado. Esta União Europeia Ocidental foi inaugurada oficialmente com o
pacto de Bruxelas, mas, como Bevin explicou a Marshall, numa mensagem de
11 de Março, tal acordo estaria incompleto a menos que se transformasse num
conceito mais amplo da segurança do Atlântico Norte como um todo, o que
colhia as simpatias de Marshall numa altura em que Estaline estava a exercer
uma pressão considerável sobre a Noruega para que assinasse um pacto de
«não agressão» com a União Soviética.
Por isso, em resposta à solicitação de Bevin, tiveram lugar em Washington
conversações secretas entre representantes britânicos, americanos e
canadianos para elaborar o projecto de um tratado de defesa do Atlântico. Em
6 de Julho de 1948, dez dias após ter começado a ponte aérea de Berlim e
imediatamente a seguir à expulsão da Jugoslávia do Cominform, estas
conversações foram abertas a outros membros do pacto de Bruxelas, entre os
quais os Franceses, que não ficaram muito satisfeitos quando descobriram que
uma vez mais os «anglo-americanos» tinham estado a organizar o mundo nas
suas costas. Em Abril do ano seguinte, a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (North Atlantic Treaty Organisation – NATO) teve o acordo e a
assinatura dos Estados Unidos, do Canadá e de dez Estados europeus.
A NATO constituiu um desenvolvimento notável. Ainda em 1947, poucos
poderiam prever que os Estados Unidos se comprometeriam numa aliança
militar europeia. De facto, havia muitos congressistas dos Estados Unidos que
estavam manifestamente relutantes em aprovar o artigo V do tratado (que
obrigava os membros da NATO a apoiar qualquer um deles se fosse atacado)
e o tratado só teve assegurada a aprovação do Congresso, depois de três
meses de discussões, porque foi apresentado como um pacto de defesa
atlântica, e não como uma aliança euro-americana. Na verdade, quando Dean
Acheson expôs o projecto da Administração perante o Senado, teve o cuidado
de insistir que a América não iria colocar forças terrestres substanciais na
Europa.
Era esta, precisamente, a intenção americana. Se os Estados Unidos se
comprometiam pela primeira vez a ficar envolvidos numa aliança europeia,
era porque muita gente em Washington via a NATO mais ou menos como
viram o Plano Marshall: como um instrumento para ajudar os europeus a
sentir-se melhor consigo mesmos e a orientar os seus próprios assuntos, neste
caso, a sua própria defesa. Em si mesma, a NATO nada mudou no equilíbrio
militar europeu: das 14 divisões estacionadas na Europa Ocidental, apenas
duas eram americanas. Os Aliados ocidentais estavam ainda em inferioridade
numérica no terreno na proporção de 12 para 1. Os chefes do Estado-Maior
dos Estados Unidos calcularam, em 1949, que só em 1957, na melhor das
hipóteses, se poderia montar uma defesa eficaz no Reno. Não foi de modo
nenhum inapropriado que na cerimónia de assinatura do tratado da NATO, no
Constitutional Hall, em Washington, em 9 de Abril de 1949, a banda tivesse
tocado «I’ve got plenty of nothing…».
No entanto, as coisas pareciam bastante diferentes vistas do lado europeu.
Os Americanos não atribuíam muito significado às alianças militares, mas os
europeus, como Walter Bedell Smith lembrou aos seus colegas do gabinete de
planeamento político do departamento de Estado, «atribuem realmente muito
mais importância ao pedaço de papel com um acordo de ajuda do que nós
alguma vez atribuímos». Isso não surpreende, pois não tinham mais nada. Os
Britânicos ainda estavam numa ilha, mas os Franceses, como todos os demais,
estavam tão vulneráveis como sempre estiveram aos Alemães e, agora,
também aos Russos.
A NATO tinha assim um duplo atractivo, sobretudo para Paris. Primeiro,
situaria a linha de defesa contras as forças soviéticas mais a leste do que até
então. Como disse Charles Bohlen, alguns meses antes do tratado ser
assinado, «o único e tímido elemento de confiança a que [os Franceses] se
apegam é ao facto de as tropas americanas, independentemente da sua força,
se encontrarem entre eles e o Exército Vermelho». Mas, segundo aspecto, e
talvez mais importante, serviria como uma segurança política contra o
revanchismo alemão. Com efeito, foi apenas devido à promessa de protecção
por parte da NATO que o governo francês, ainda sempre em mente com
insistência nas consequências da Primeira Guerra Mundial, deu a sua
aprovação à criação do Estado alemão ocidental.
Portanto, os Franceses acolheram bem a NATO como garantia contra uma
Alemanha revitalizada, o que não haviam conseguido por meios diplomáticos
nos três anos anteriores. Os Holandeses e os Belgas também viram na NATO
um obstáculo ao revanchismo alemão no futuro. Os Italianos foram
igualmente incluídos para fortalecer o apoio interno a Alcide De Gasperi
contra os críticos comunistas. Na sua luta para manter os Estados Unidos
empenhados na defesa da Europa, os Britânicos encararam o tratado da NATO
como uma notável proeza. Aliás, a administração de Truman vendeu o acordo
ao Congresso e ao povo americano como uma barreira contra a agressão
soviética no Atlântico Norte. Daí o bon mot de Lord Ismay, que assumiu em
1952 o seu lugar como primeiro Secretário-Geral da NATO: o propósito da
Organização do Tratado do Atlântico Norte era «manter os Russos de fora, os
Americanos dentro e os Alemães em baixo».
A NATO foi um bluff. Tal como Denis Healey, futuro ministro da Defesa
britânico, disse nas suas memórias, «para a maioria dos europeus, a NATO de
nada valia, a menos que pudesse evitar uma nova guerra. Não estavam
interessados em entrar nela». A originalidade do tratado não residia tanto no
que poderia conseguir, mas no que representava: tal como o Plano Marshall –
e o tratado de Bruxelas de que surgiu –, a NATO ilustrava a mudança mais
significativa que ocorrera na Europa (e nos Estados Unidos) em consequência
da guerra: a vontade de partilhar informações e de cooperar na defesa, na
segurança, no comércio, na regulamentação das moedas e em muito mais.
Enquanto comando aliado integrado em tempo de paz era, afinal, um desvio
inédito em relação às práticas do passado.
Todavia, a NATO não surgiu completamente formada dos acordos de
1949. Na Primavera de 1950, Washington ainda estava preocupada em
explicar aos Franceses e aos outros europeus que a única esperança realista de
defesa da Europa Ocidental era rearmar a Alemanha, um assunto que punha
todos pouco à vontade, e sobre o qual se pensava que poderia provocar uma
resposta imprevisível da parte de Estaline. Em todo o caso, ninguém queria
gastar recursos preciosos em rearmamento. O atractivo da neutralidade como
alternativa à confrontação desarmada estava a crescer, tanto na Alemanha
como em França. Se a guerra na Coreia não tivesse começado precisamente
nesse momento (uma hipótese contrafactual razoável, porque esteve quase
para não acontecer), os contornos da história europeia recente poderiam ter
sido, na verdade, muito diferentes.
O apoio de Estaline à invasão da Coreia do Sul por Kim Il Sung, em 25 de
Junho de 1950, foi o seu maior erro de cálculo. Os Americanos e os europeus
ocidentais tiraram imediatamente a conclusão (errada) de que a Coreia era
uma manobra de diversão, ou um prelúdio, e que a Alemanha viria a seguir,
uma dedução encorajada pelo alarde imprudente de Walter Ulbricht de que a
próxima a cair seria a República Federal. A União Soviética testara com êxito
uma bomba atómica apenas oito meses antes, levando os especialistas
militares americanos a exagerar os preparativos soviéticos para a guerra. Mas,
mesmo assim, os aumentos do orçamento de defesa requeridos no documento
n.o 68 do Conselho Nacional de Segurança (apresentado em 7 de Abril de
1950) quase certamente não teriam sido aprovados se não se tivesse dado o
ataque coreano.
O risco de uma guerra europeia era muito exagerado, mas não era
totalmente inexistente. Estaline considerava um possível ataque à Jugoslávia,
não à Alemanha Ocidental, mas abandonou a ideia devido ao rearmamento
ocidental. Aliás, tal como os ocidentais interpretaram mal o propósito de
Estaline na Coreia, também Estaline – bem informado pelos seus serviços de
espionagem quanto ao rápido crescimento militar dos Estados Unidos –
pensou erradamente que os Americanos tinham eles mesmos intenções
agressivas em relação à sua esfera de controlo na Europa de Leste. Todavia,
nenhuma destas suposições e nenhum destes erros de cálculo eram nítidos na
altura, e os políticos e os generais fizeram o melhor que puderam com base
nas informações limitadas que possuíam e nos precedentes conhecidos.
O nível de rearmamento ocidental era, de facto, muito grande. O
orçamento de defesa dos Estados Unidos subiu de 15,5 mil milhões de dólares
em Agosto de 1950 para 70 mil milhões em Dezembro do ano seguinte,
depois de uma declaração de emergência nacional do presidente Truman. Em
1952-1953, a despesa com a defesa representava 17,8% do PNB dos Estados
Unidos, quando era de apenas 4,7% em 1949. Em resposta a um pedido de
Washington, os aliados da América na NATO também aumentaram os seus
gastos com a defesa: depois da sua redução gradual desde 1946, os custos de
defesa britânicos subiram para quase 10% do PNB em 1951-1952, crescendo
ainda mais rapidamente do que durante o rearmamento febril dos anos
anteriores à guerra. Também a França aumentou as despesas com a defesa
para níveis semelhantes. Em todos os membros da NATO, a despesa com a
defesa atingiu um máximo no pós-guerra nos anos de 1951-1953.
O impacto económico deste aumento súbito no investimento militar
também não tinha precedentes. A Alemanha, sobretudo, foi inundada de
encomendas de maquinaria, ferramentas, veículos e outros produtos que a
República Federal tinha condições únicas para fornecer, tanto mais que os
Alemães Ocidentais estavam proibidos de fabricar armas e podiam assim
concentrar-se em tudo o mais. Só a produção de aço da Alemanha Ocidental,
que fora de 2,5 milhões de toneladas em 1946 e de 9 milhões em 1949,
aumentou para aproximadamente 15 milhões em 1953. O défice em dólares
com a Europa e o resto do mundo caiu 65% num só ano, porque os Estados
Unidos gastaram somas astronómicas no estrangeiro em armas, equipamentos
de reserva, bases militares e tropas. A Fiat, em Turim, obteve os seus
primeiros contratos americanos para manutenção em terra de aviões a jacto
(um contrato em que a embaixada americana em Roma insistiu junto de
Washington, por razões políticas).
Mas nem todas as notícias económicas eram boas. O governo britânico foi
obrigado a desviar dinheiro dos serviços sociais para poder satisfazer os seus
compromissos com a defesa, uma opção que dividiu o Partido Trabalhista no
governo e que contribuiu para a sua derrota nas eleições de 1951. O custo de
vida na Europa Ocidental subiu quando as despesas dos Estados contribuíram
para a inflação. Em França, o índice dos preços no consumidor subiu 40% nos
dois anos que se seguiram ao início da guerra da Coreia. Os europeus
ocidentais, que começavam a colher os benefícios da Ajuda Marshall, não
estavam manifestamente em condições de manter por muito tempo o que
acabava por ser uma economia de guerra. E a lei de segurança mútua dos
Estados Unidos, de 1951, reconheceu-o, acabando efectivamente com o Plano
Marshall, transformando-o num programa de assistência militar. No final de
1951, os Estados Unidos estavam a transferir cerca de 5 mil milhões de
dólares de ajuda militar para a Europa Ocidental.
A NATO deixou de ser um impulso psicológico à confiança europeia para
passar a ser um compromisso militar importante, aproveitando os recursos
aparentemente ilimitados da economia dos Estados Unidos e obrigando os
Americanos e os seus aliados a uma acumulação de homens e material de
guerra sem precedente em tempo de paz. O general Eisenhower regressou à
Europa como comandante supremo aliado e foram criados quartéis-generais
militares e instalações administrativas na Bélgica e em França. A Organização
do Tratado do Atlântico Norte era agora, sem qualquer ambiguidade, uma
aliança. A sua tarefa principal era o que os planeadores militares chamavam a
«defesa avançada» da Europa, ou seja, a confrontação com o Exército
Vermelho no centro da Alemanha. Para cumprir este papel, ficou acordado na
reunião do conselho da NATO de Lisboa, em Fevereiro de 1952, que a aliança
necessitaria de formar pelo menos 96 divisões nos próximos dois anos.
Porém, mesmo com uma presença militar americana significativa e que
não parava de aumentar, havia apenas uma maneira de a NATO atingir as suas
metas: rearmando os Alemães Ocidentais. Por causa da Coreia, os
Americanos sentiram-se obrigados a levantar esta questão sensível (Dean
Acheson falou formalmente dela pela primeira vez numa reunião de ministros
dos Negócios Estrangeiros em Setembro de 1950), se bem que o próprio
presidente Truman estivesse relutante de início. Por um lado, ninguém
pretendia colocar armas nas mãos de Alemães apenas cinco anos após a
libertação da Europa. Por outro, e por analogia com as dificuldades
económicas da zona dupla apenas há três anos, havia algo de perverso em
gastar milhares de milhões de dólares para defender os Alemães Ocidentais de
um ataque russo sem lhes pedir que eles mesmos dessem a sua contribuição.
Aliás, se a Alemanha se iria transformar, como alguns pensavam, numa
espécie de zona-tampão e num futuro campo de batalha, então o risco de
perder as simpatias germânicas e de encorajar sentimentos neutrais não podia
ser ignorado.
Moscovo, é claro, não aceitaria de bom grado o rearmamento da
Alemanha Ocidental. Todavia, a partir de Junho de 1950 as sensibilidades
soviéticas já não eram matéria de preocupação prioritária. Os Britânicos,
embora com relutância, não viram alternativa que não fosse encontrar alguma
forma de armar a Alemanha, ao mesmo tempo que esta seria firmemente
mantida sob controlo aliado. Foram os Franceses que se mostraram sempre
mais adversos a colocar armas em mãos alemãs, e a França não aderira
certamente à NATO apenas para ser um chapéu-de-chuva da remilitarização
alemã. A França conseguiu manobras para bloquear e adiar o rearmamento da
Alemanha, até 1954. Porém, muito antes disso, a política francesa mostrava
sinais de alteração, levando Paris a aceitar com alguma sinceridade um
restabelecimento limitado da Alemanha. Infeliz e frustrada por ser reduzida à
menos importante das grandes potências, a França enveredou por uma
vocação diferente, como iniciadora de uma nova Europa.
A ideia de uma União Europeia, sob uma forma ou outra, não era nova. No
século XIX assistiu-se a uma diversidade de uniões aduaneiras, mais ou
menos fracassadas, na Europa Central e Ocidental, e ainda mesmo antes da
Primeira Guerra Mundial, houve por vezes algumas conversas idealistas
baseadas na ideia de que o futuro da Europa residia em unir as suas diversas
partes. A própria Primeira Guerra Mundial, longe de ter feito desaparecer tais
visões optimistas, parece ter-lhes dado mais força: como insistiu Aristide
Briand, estadista francês e também ele autor entusiasta de propostas e pactos
europeus, chegou a hora de ultrapassar rivalidades do passado e de pensar em
termos europeus, de falar em termos europeus, de sentir como europeus. Em
1924, o economista francês Charles Gide juntou-se a outros signatários de
toda a Europa para lançar um Comité para uma união aduaneira europeia.
Três anos mais tarde, um jovem ministro dos Negócios Estrangeiros britânico
confessar-se-ia «atónito» com a dimensão do interesse do continente pela
ideia «pan-europeia».
Mais prosaicamente, a Grande Guerra tinha conduzido, de forma curiosa,
os Franceses e os Alemães a uma melhor compreensão da sua mútua
dependência. Depois de desaparecidas as divergências do pós-guerra e de
Paris ter abandonado os seus esforços infrutíferos para obter pela força
indemnizações de guerra da Alemanha, foi assinado em Setembro de 1926 um
pacto internacional do aço entre a França, a Alemanha, o Luxemburgo, a
Bélgica e a região do Sarre (então autónoma), para regular a produção de aço
e evitar o excesso de capacidade. Embora ao pacto se tivessem juntado, no
ano seguinte, a Checoslováquia, a Áustria e a Hungria, este nunca passou de
um cartel na sua forma tradicional. Todavia, o primeiro-ministro alemão
Gustav Stresemann viu certamente nele a forma embrionária de futuros
acordos transnacionais. Nisso não estava sozinho.
Tal como outros projectos ambiciosos dos anos 20, o pacto do aço mal
sobreviveu à crise de 1929 e à depressão que se seguiu. Todavia, reconheceu
o que já em 1919 era claro para as siderurgias francesas: depois de ter
duplicado a sua dimensão em resultado da reintegração da Alsácia-Lorena, a
França estaria altamente dependente do coque e do carvão da Alemanha e
seria, por isso, necessário encontrar uma base de colaboração a longo prazo. A
situação era também óbvia para os Alemães, e quando os nazis ocuparam a
França em 1940 e chegaram a acordo com Pétain sobre um sistema de
pagamentos e entregas que se resumiam à utilização obrigatória dos recursos
franceses no esforço de guerra alemão, houve, contudo, muitos que viram
nesta «colaboração» franco-germânica o gérmen de uma nova ordem
económica «europeia».
Por isso, Pierre Pucheu, um alto funcionário de Vichy, que seria mais tarde
executado pelos Franceses livres, perspectivava uma ordem europeia no pós-
guerra em que as barreiras alfandegárias seriam eliminadas e uma única
economia cobriria todo o continente com uma moeda única. A visão de
Pucheu, que era partilhada por Albert Speer e muitos outros, representava
uma espécie de actualização do sistema continental de Napoleão sob os
auspícios de Hitler e seduziu uma jovem geração de burocratas e técnicos do
continente, que sentiram as frustrações da concepção da política económica
dos anos 30.
O que tornava tais projectos particularmente sedutores era o facto de
serem geralmente apresentados em termos de um interesse partilhado, pan-
europeu, e não como projecções de desígnios nacionais separados. Eram
«europeus» e não franceses ou alemães, e foram muito admirados durante a
guerra por aqueles que queriam desesperadamente acreditar que poderia advir
algum bem da ocupação nazi. O facto de os próprios nazis terem
aparentemente unificado grande parte da Europa num sentido técnico,
removendo fronteiras, expropriando bens, integrando redes de transporte, etc.,
tornou esta ideia ainda mais plausível. Para além disso, a atracção de uma
Europa liberta do seu passado e dos seus antagonismos internos também não
se perdera no exterior. Quatro anos depois da derrota do nazismo, em Outubro
de 1949, George Kennan confessaria a Dean Acheson que embora
compreendesse as apreensões perante a importância crescente da Alemanha
nos assuntos da Europa Ocidental, «pareceu-me muitas vezes, durante a
guerra, que ali vivi, que o que havia de errado na nova ordem de Hitler era ser
a de Hitler.»
A observação de Kennan foi feita em privado. Em público, depois de
1945, poucos estariam dispostos a dizer palavras simpáticas a respeito da
Nova Ordem do tempo da guerra, cuja ineficiência e má-fé Kennan muito
subestimava. Os argumentos a favor da cooperação económica intra-europeia
não diminuíram, é claro. Jean Monnet, por exemplo, continuou a acreditar,
depois da guerra, tal como acreditara em 1943, que para gozar de
«prosperidade e de progresso social […] os Estados da Europa devem formar
[…] uma ‘entidade europeia’ que fará deles uma só unidade». Para além
disso, houve os entusiastas do «Movimento para a Europa Unida», criado em
Janeiro de 1947 por instigação de Churchill.
Winston Churchill foi um dos primeiros e mais influentes defensores de
uma assembleia europeia. Em 21 de Outubro de 1942, escreveu a Anthony
Eden: «Tenho de admitir que os meus pensamentos se dirigem, em primeiro,
lugar para a Europa, para a recuperação da glória da Europa […] seria um
desastre enorme se o bolchevismo russo se sobrepusesse à cultura e à
independência dos velhos Estados da Europa. Difícil como é dizê-lo agora,
confio em que a família europeia possa agir de forma unida sob um Conselho
da Europa.» Todavia, as circunstâncias políticas no pós-guerra não pareciam
ser propícias a tais ideais. O melhor que se poderia esperar era a criação de
uma espécie de fórum para conversações europeias, que foi o que propôs um
congresso do Movimento para a Europa Unida, realizado em Haia, em Maio
de 1948. O «Conselho da Europa», que foi criado devido a esta sugestão, foi
inaugurado em Estrasburgo, em Maio de 1949, e teve aqui a sua primeira
reunião, em Agosto desse ano. Tomaram parte delegados da Grã-Bretanha, da
Irlanda, da França, dos países do Benelux, da Itália, da Suécia, da Dinamarca
e da Noruega.
O Conselho não tinha poder nem autoridade, não possuía estatuto legal,
legislativo ou executivo e os seus «delegados» não representavam ninguém. O
dado mais importante era o mero facto da sua existência, embora em
Novembro de 1950 tenha realizado uma «Convenção Europeia sobre os
Direitos Humanos» que viria a ter maior importância nas décadas seguintes.
Como o próprio Churchill reconhecera num discurso realizado em Zurique,
em 19 de Setembro de 1946: «O primeiro passo para a recriação da família
europeia deve ser uma parceria entre a França e a Alemanha.» Contudo,
nesses primeiros anos do pós-guerra, os Franceses, como vimos, não estavam
inclinados a considerar tal parceria.
Os seus pequenos vizinhos a norte, todavia, estavam a movimentar-se
muito rapidamente. Mesmo antes de a guerra ter terminado, os governos no
exílio da Bélgica, do Luxemburgo e da Holanda assinaram o «Acordo do
Benelux», que eliminava as barreiras alfandegárias e perspectivava um
eventual movimento livre de mão-de-obra, capital e serviços entre os seus
países. A União Aduaneira do Benelux teve o seu início a 1 de Janeiro de
1948, a que se seguiram conversações ad hoc entre os países do Benelux, a
França e a Itália sobre projectos de alargar tal cooperação a um espaço mais
amplo. No entanto, todos estes projectos semielaborados para uma «Pequena
Europa» acabaram por naufragar nos escolhos do problema alemão.
Como os negociadores do Plano Marshall já haviam concluído, em Paris,
em Julho de 1947, todos concordaram que a «economia alemã deveria ser
integrada na economia da Europa, de tal modo que contribuísse para o
aumento generalizado do nível de vida». A questão era como. A Alemanha
Ocidental, mesmo depois de se ter transformado em Estado, em 1949, não
tinha ligações orgânicas com o resto da economia do continente, excepto
através dos mecanismos do Plano Marshall e da ocupação aliada, ambos
temporários. A maioria dos europeus ocidentais ainda pensava na Alemanha
como uma ameaça, não como um parceiro. Os Holandeses sempre foram
economicamente dependentes da Alemanha. Antes de 1939, 48% dos
rendimentos «invisíveis» holandeses vinham do comércio alemão, através dos
portos e canais da Holanda, e o ressurgimento económico da Alemanha era
vital para eles. Porém, em 1947, apenas 29% da população holandesa tinha
uma opinião «amigável» dos Alemães, e para a Holanda era importante que
uma Alemanha economicamente recuperada fosse política e militarmente
fraca. Este ponto de vista era profundammente apoiado na Bélgica. Nenhum
dos dois países podia perspectivar uma conciliação com a Alemanha sem que
esta fosse equilibrada com a segurança resultante do envolvimento da Grã-
Bretanha.
O impasse foi ultrapassado pelos acontecimentos internacionais de 1948-
1949. Com o golpe de Praga, o acordo para a criação de um Estado alemão
ocidental, o bloqueio de Berlim e os planos para a NATO, tornou-se claro aos
estadistas franceses, como Georges Bidault e Robert Schuman, que a França
tinha de repensar a sua abordagem da Alemanha. Iria existir agora uma
entidade política alemã ocidental, que integrava o Ruhr e a Renânia. Só o
minúsculo Sarre fora temporariamente separado do território principal da
Alemanha e o carvão desta região não era adequado para o fabrico do coque.
Como se limitariam os recursos da nova República Federal e, ao mesmo
tempo, se mobilizariam em benefício dos Franceses?
-
(7) Não foi mera coincidência os conselheiros soviéticos terem sido retirados da Jugoslávia em 18 de
Março de 1948, precisamente 48 horas antes do general Sokolovski abandonar a reunião do Conselho
de Controlo Aliado, na Alemanha.

(8) Se o tivesse pretendido haveria poucos impedimentos de ordem prática. Na Primavera de 1948, a
União Soviética tinha 300 divisões com Berlim ao seu alcance. Os Estados Unidos tinham apenas 60
000 soldados em toda a Europa, menos de 7000 dos quais em Berlim.

(9) A Lei Básica era deliberadamente provisória, pois destinava-se a «dar uma nova ordem à vida
política durante um período de transição», ou seja, até que o país fosse reunificado.
Em 30 de Outubro de 1949, Dean Acheson fez um apelo a Schuman para
que a França tomasse a iniciativa de integrar a nova Alemanha Ocidental nas
questões europeias. Os Franceses sabiam bem que algo tinha de ser feito.
Como Jean Monnet recordaria mais tarde a Georges Bidault, os Estados
Unidos encorajariam certamente a recém-independente Alemanha Ocidental a
aumentar a sua produção de aço a tal ponto que poderia inundar o mercado,
obrigando a França a proteger a sua própria indústria siderúrgica e, desse
modo, a regressar às guerras comerciais. Como vimos no capítulo 3, o próprio
plano de Monnet – e com ele a recuperação da França – dependia do sucesso
da resolução deste problema.
Foi nestas circunstâncias que Jean Monnet propôs ao ministro dos
Negócios Estrangeiros de França o que ficou historicamente conhecido como
«Plano Schuman». Este constituiu uma genuína revolução diplomática, apesar
de ter estado cinco anos em maturação. Na sua essência, era de uma grande
simplicidade. Segundo as palavras de Schuman: «O governo francês propõe
que toda a produção franco-germânica de carvão e de aço seja colocada sob
uma alta autoridade conjunta no quadro de uma organização que estaria
também aberta à participação de outros países da Europa.» Sendo mais do que
um cartel do carvão e do aço, mas muitíssimo menos do que um projecto de
integração europeia, a proposta de Schuman representou uma solução prática
do problema que preocupava França desde 1945. No esquema de Schuman, a
alta autoridade teria a capacidade de encorajar a concorrência, fixar uma
política de preços, dirigir os investimentos e comprar e vender em nome dos
países participantes. Mas, sobretudo, controlaria o Ruhr e outros recursos
vitais alemães, que não permaneceriam apenas em mãos alemãs. Era uma
solução para um – o – problema francês.
Robert Schuman anunciou o seu plano em 9 de Maio de 1950, tendo
informado Dean Acheson no dia anterior. Os Britânicos não foram
informados com antecedência. O Quai d’Orsay teve nisso um especial prazer:
era a primeira de um conjunto de pequenas retaliações pelas decisões anglo-
americanas que foram tomadas sem consultar Paris. A mais recente delas fora
a desvalorização unilateral da libra esterlina em 30%, precisamente oito
meses antes, quando apenas os Americanos tinham sido previamente avisados
e o resto da Europa fora obrigada a ajustar-se(10). Ironicamente, foi esta
recordação dos riscos de renovados interesses económicos egoístas e da não
comunicação entre os Estados europeus que impeliu Monnet e outros a pensar
em avançar para a solução que estavam agora a propor.
O governo alemão acolheu imediata e favoravelmente a proposta de
Schuman como seria de esperar. Konrad Adenauer respondeu encantado a
Schuman que «este plano do governo francês deu às relações entre os nossos
dois países, que estavam ameaçadas de paralisação devido a desconfianças e
reservas, um novo ímpeto em direcção a uma cooperação construtiva» – ou,
como disse de uma forma mais franca aos seus assessores, «Das ist unser
Durchbruch» («esta é a nossa entrada»). A República Federal da Alemanha
entrava, pela primeira vez, numa organização internacional em igualdade de
condições com outros Estados independentes e estaria agora ligada à aliança
ocidental, tal como Adenauer pretendera.
Os Alemães foram os primeiros a ratificar o Plano Schuman. A Itália e os
países do Benelux fizeram-no a seguir, embora os Holandeses estivessem, de
início, relutantes em comprometer-se sem os Britânicos. Mas estes declinaram
o convite de Schuman e sem eles não se podia pensar na assinatura por parte
dos escandinavos. Por isso, foram apenas seis os Estados europeus ocidentais
que assinaram o tratado de Paris de Abril de 1951, fundando a Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço (CECA).
Vale talvez a pena fazer uma pausa para chamar a atenção para um aspecto
que não deixou de ser notado na altura. Todos os seis ministros dos Negócios
Estrangeiros que assinaram o tratado em 1951 eram membros dos seus
respectivos partidos democratas-cristãos. Os três estadistas dominantes nos
principais Estados-membros, Alcide De Gasperi, Konrad Adenauer e Robert
Schuman, pertenciam todos à periferia dos seus países: De Gasperi era de
Trentino, no Nordeste da Itália, Adenauer da Renânia, Schuman da Lorena.
Quando De Gaspari nasceu e até durante parte da sua idade adulta, o Trentino
fazia parte do Império Austro-Húngaro, e ele próprio estudou em Viena.
Schuman cresceu na Lorena, que foi integrada no império germânico. Quando
era jovem, tal como Adenauer, entrou para associações católicas que, na
verdade, eram as mesmas a que o renano pertencera dez anos antes. Quando
se encontraram, os três homens conversaram em alemão, a sua língua comum.
Para os três, tal como para os seus correlegionários democratas-cristãos do
Luxemburgo bilingue, da Bélgica bilingue e bicultural, e da Holanda, um
projecto de cooperação europeu tinha sentido dos pontos de vista cultural e
económico. Era razoável que pudessem ver nele uma contribuição para a
superação da crise civilizacional que despedaçara a Europa cosmopolita da
sua juventude. Fazendo um apelo a partir da orla dos seus próprios países,
onde as identidades há muito eram diversas e as fronteiras fungíveis,
Schuman e os seus colegas não estavam particularmente inquietos com a
perspectiva de uma certa fusão das soberanias nacionais. Com a guerra e a
ocupação, todos os seis membros da nova CECA haviam visto, muito
recentemente, a sua soberania ignorada e espezinhada. Tinham já pouca
soberania a perder. Para além disso, a sua preocupação comum, de índole
democrata-cristã, com a coesão social e a responsabilidade colectiva,
predispôs todos a sentirem-se à vontade com a ideia de uma «Alta
Autoridade», transnacional, dotada de poderes executivos em prol do bem
comum.
Todavia, mais a norte, as perspectivas eram muito diferentes. Nas terras
protestantes da Escandinávia e da Grã-Bretanha (ou na perspectiva de um
alemão do Norte como Schumacher), a Comunidade Europeia do Carvão e do
Aço deixava atrás de si um certo perfume de incenso autoritário. Tage
Erlander, o primeiro-ministro social-democrata sueco de 1948 a 1968,
imputou à esmagadora maioria católica da nova comunidade a sua própria
ambivalência em aderir. Kenneth Younger, um alto conselheiro de Bevin,
anotou no seu diário, na entrada do dia 14 de Maio de 1950, cinco dias depois
de ter conhecido o Plano Schuman, que, embora estivesse de acordo, em
geral, com a integração económica europeia, as novas propostas poderiam
«por outro lado, […] ser apenas um passo na consolidação da ‘internacional
negra’ católica que sempre pensei que fosse a grande força impulsionadora a
sustentar o Conselho da Europa». Na época, este ponto de vista não era
extremado nem incomum.
A CECA não era uma «internacional negra». Na verdade, não era sequer
um instrumento económico particularmente eficaz, uma vez que a Alta
Autoridade nunca chegou a exercer o tipo de poder que Monnet pretendeu.
Em vez disso, como tantas outras inovações institucionais ao nível
internacional durante estes anos, proporcionava o espaço psicológico
necessário para que a Europa pudesse avançar com uma autoconfiança
renovada. Como Adenauer explicou a Macmillan dez anos mais tarde, a
CECA nem sequer era uma organização económica (e a Grã-Bretanha, na sua
perspectiva, tinha tido assim razão em se manter de fora). Não foi um projecto
de integração europeia, apesar das fantasias de Monnet, mas antes o menor
denominador comum dos interesses mútuos da Europa Ocidental ao tempo da
sua assinatura. Foi um instrumento político sob um disfarce económico, um
meio para ultrapassar a hostilidade franco-germânica.
Entretanto, os problemas a que a Comunidade Europeia do Carvão e do
Aço se destinava a dar resposta começaram a resolver-se por si próprios. No
último trimestre de 1949, a República Federal da Alemanha voltou a atingir
os níveis de produção industrial de 1936. No final de 1950, ultrapassou-os em
um terço. Em 1949, a balança comercial da Alemanha Ocidental com a
Europa baseava-se na exportação de matérias-primas (essencialmente carvão).
Um ano depois, em 1950, essa balança era negativa, porque a Alemanha
estava a consumir as suas próprias matérias-primas para alimentar a sua
indústria. Em 1951, a balança era novamente positiva e assim permaneceria
durante muitos anos, graças às exportações germânicas de produtos
manufacturados. No final de 1951, as exportações alemãs subiram para um
nível seis vezes superior ao de 1948, e o carvão alemão, os produtos acabados
e o comércio estavam a dinamizar a recuperação económica europeia. De
facto, no final dos anos 50, a Europa Ocidental sofria os efeitos do excesso de
carvão. Em que medida tudo isto pode ser atribuído à CECA é matéria de
alguma especulação. Foi a Coreia, não Schuman, que lançou a máquina
industrial da Alemanha Ocidental a alta velocidade. Mas, afinal, isso não era
muito importante.
Se a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço era muito menos do que
se pretendera que fosse – se o compromisso francês com organismos
supranacionais era apenas um instrumento para controlar a Alemanha, de que
continuavam a desconfiar, e se a expansão da economia europeia pouco ficava
a dever às intervenções da Alta Autoridade, cujo impacto na concorrência, no
emprego e nos preços foi mínimo –, então, por que razão se recusaram os
Britânicos a aderir a ela? E porque foi tão importante que se tivesse mantido à
parte?
Os Britânicos não tinham nada contra uma união aduaneira europeia. Eram
bastante a favor dela, pelo menos para os outros europeus. O que lhes causava
algum desconforto era a ideia de um executivo supranacional que uma Alta
Autoridade implicava, ainda que só orientasse a produção e os preços de duas
mercadorias. Londres já há algum tempo esclarecera este ponto. Em 1948,
quando Bevin discutiu no governo trabalhista propostas americanas para uma
futura Organização Europeia para a Cooperação Económica, a sua principal
preocupação era que «o controlo efectivo deveria estar nas mãos das
delegações nacionais […] para evitar que o secretariado (ou um presidente
‘independente’) decidisse por si mesmo as acções a tomar […]. Nem sequer
se deveria pensar na possibilidade de a organização dar instruções a membros
individuais».
A relutância dos Britânicos em abandonar o controlo nacional, por menor
que fosse, era obviamente incompatível com o objectivo de Monnet para a
CECA. Porém, os Britânicos viram na CECA uma lança continental a
introduzir-se nas questões britânicas, e cujas implicações eram ainda mais
perigosas por não serem claras. Como Bevin disse a Acheson, para explicar a
não adesão da Grã-Bretanha: «Quando estão em causa matérias de tal
importância não podemos comprar às cegas e [posso] quase assegurar que se
os Americanos se tivessem encontrado numa situação semelhante teriam
pensado da mesma forma.» Ou, como disse de forma mais expressiva aos
seus assessores, ao manifestar as suas apreensões sobre o Conselho da
Europa: «Se se abrir essa caixa de Pandora nunca se saberá que cavalos de
Tróia de lá saltarão.»
A argumentação dos Britânicos era em parte económica. A economia
britânica, sobretudo a componente que dependia do comércio, parecia estar
em condições muito mais saudáveis do que as dos seus vizinhos continentais.
Em 1947, as exportações britânicas equivaliam em valor às da França, da
Itália, da Alemanha Ocidental, dos países do Benelux, da Noruega e da
Dinamarca em conjunto. Ao passo que, nesta altura, os Estados da Europa
Ocidental comerciavam sobretudo entre si, a Grã-Bretanha mantinha um
comércio significativo em todo o mundo. Aliás, em 1950, o comércio
britânico com a Europa era muito inferior ao que fora em 1913.
Aos olhos dos funcionários britânicos, portanto, o país tinha mais a perder
do que a ganhar se aceitasse participar em acordos económicos vinculativos
com países cujas perspectivas pareciam muito incertas. Um ano antes da
proposta de Schuman, a posição do Reino Unido, expressa em privado por
altos funcionários públicos, era que «não há para nós interesse numa
cooperação económica a longo prazo com a Europa. Na melhor das hipóteses,
haverá perda dos nossos recursos, na pior, pode causar graves prejuízos à
nossa economia». Para além disso, deve ser mencionada a ansiedade do
Partido Trabalhista em participar, com os países do continente, em acordos de
um género tal que pudessem limitar a sua liberdade de continuar internamente
com as políticas «socialistas». Estas políticas estavam relacionadas com os
interesses corporativos dos velhos sindicatos industriais que fundaram o
Partido Trabalhista 50 anos antes. Como o primeiro-ministro Herbert
Morrison explicou ao governo, em 1950, quando a proposta de Schuman foi
(brevemente) considerada: «Não é boa, não podemos aplicá-la, os mineiros de
Durham não a vão aceitar.»
E depois havia a Commonwealth. Em 1950, a Comunidade Britânica
englobava muitas regiões da África, do Sul da Ásia, da Australásia e das
Américas, muitas delas ainda em poder dos Britânicos. Os territórios
coloniais da Malásia à Costa do Ouro (Gana) não tinham receitas em dólares e
tinham somas consideráveis em Londres, os famosos «saldos em libras
esterlinas». A Comunidade Britânica (ou o Império, como muitas pessoas
ainda se referiam a ela) era uma fonte importante de matérias-primas e
alimentos e fazia parte da identidade nacional britânica, ou assim parecia à
época. Evidentemente, para muitos decisores políticos era imprudente, para
além de praticamente impossível, fazer com que a Grã-Bretanha participasse
em qualquer sistema europeu continental que separasse o país desta outra
dimensão da sua própria existência.
A Grã-Bretanha, portanto, era parte da Europa, mas também parte de uma
comunidade imperial anglófona de dimensão mundial, para além de manter
uma relação muito particular com os Estados Unidos. O povo britânico tendia
a ser ambivalente em relação à América, vendo nela, de longe, «um paraíso
de esplendores de consumo» (Malcolm Bradbury), em contraste com a sua
própria vida de restrições, mas alimentando ressentimentos precisamente por
essa razão. Os seus governos, porém, continuaram a manter fé no que seria
mais tarde designado como a «relação especial» entre os dois países. Em certa
medida, esta devia-se à presença da Grã-Bretanha na «mesa principal»
durante a guerra como uma das três grandes potências em Ialta e Potsdam, e
como a terceira potência nuclear depois do teste bem sucedido de uma bomba
em 1952. Devia-se também à colaboração estreita entre os dois países durante
a própria guerra e baseava-se ainda um pouco no sentido peculiarmente
britânico de superioridade em relação ao país que desalojara a Grã-Bretanha
do vértice da pirâmide imperial(11).
Os Americanos estavam frustrados pela relutância do Reino Unido em
associar o seu destino ao da Europa e irritados com a insistência da Grã-
Bretanha em manter o seu estatuto imperial. No entanto, na posição desta, em
1950, havia algo mais do que ilusões imperiais ou má índole. A Grã-Bretanha,
como Jean Monnet reconheceria mais tarde nas suas memórias, não fora
invadida nem ocupada: «não sentia necessidade de exorcizar a história». Os
Britânicos sentiram que a Segunda Guerra Mundial fora um momento de
reconciliação e de mobilização colectivas, e não um rasgão corrosivo no
tecido do Estado e da nação, como era recordada no outro lado do canal. Em
França, a guerra trouxera à superfície tudo o que estava errado na cultura
política da nação, na Grã-Bretanha, parecia confirmar tudo que era correcto e
estava bem nas instituições e nos hábitos nacionais. Para a maioria dos
Britânicos a Segunda Guerra Mundial fora travada entre a Alemanha e a Grã-
Bretanha, tendo saído dela triunfante e demonstrado o seu valor(12).
Este sentimento de orgulho tranquilo com a capacidade de sofrimento, de
persistência e, por fim, de alcançar a vitória, distinguiu a Grã-Bretanha do
continente. Também definiu a cultura política nos anos do pós-guerra. Nas
eleições de 1945, o Partido Trabalhista obteve uma clara maioria parlamentar
pela primeira vez na sua história e, como vimos, forçou um amplo leque de
nacionalizações e de reformas sociais que culminaram na criação do primeiro
Estado-providência do mundo. As reformas governamentais tiveram grande
popularidade, apesar de terem induzido muito poucas mudanças nos hábitos e
afinidades mais profundos da nação. Segundo as palavras de J. B. Priestley,
escritas no New Statesman, em Julho de 1949, «somos uma monarquia
socialista que é, de facto, o último monumento do liberalismo».
A política interna da Grã-Bretanha do pós-guerra estava associada a
questões de justiça social e às reformas institucionais que aquelas exigiam.
Em larga medida, isso foi o resultado de os governos anteriores não
enfrentarem as desigualdades sociais. O tardio recentramento do debate na
necessidade urgente de despesa pública em saúde, educação, transportes,
habitação, pensões de reforma e questões semelhantes pareceu a muitos que
era uma recompensa bem merecida pelos sacrifícios recentes realizados pelo
país. Mas significava também que a maior parte do eleitorado britânico (e
muitos membros do parlamento) não tinha qualquer ideia de quão pobre era o
seu país, nem de quanto lhe custara ganhar o seu combate épico com a
Alemanha.
Em 1945, a Grã-Bretanha estava insolvente. Os Britânicos estiveram
mobilizados mais completamente e durante mais tempo do que qualquer outro
país: em 1945, estavam em armas ou a fabricá-las 10 milhões de homens e
mulheres num total de 21,5 milhões de adultos empregados. Em vez de
ajustar o esforço de guerra britânico aos recursos limitados do país, Winston
Churchill optou pela falência financeira, contraindo empréstimos junto dos
Americanos e vendendo activos do ultramar para manter os fluxos de dinheiro
e material. Como disse durante a guerra um chanceler do Tesouro, assistiu-se
nestes anos à «transição da Inglaterra de nação com a posição de maior credor
mundial para a de maior devedor». O custo da Segunda Guerra Mundial para
a Grã-Bretanha foi o dobro do da primeira. O país perdeu um quarto da
riqueza nacional.
Este facto explica a recorrência da crise de divisas britânica no pós-guerra,
quando o país lutava para liquidar as dívidas em dólares com um rendimento
drasticamente reduzido. Esta é uma razão para o Plano Marshall não ter tido
quase nenhum impacto no investimento e na modernização da indústria da
Grã-Bretanha: 97% dos fundos de contrapartida (percentagem superior à
verificada em qualquer outro país) foram utilizados para liquidar a enorme
dívida do país. Estes problemas já seriam suficientemente maus para qualquer
país europeu de dimensão média que se mostrasse nas circunstâncias
exigentes que a Grã-Bretanha enfrentava no pós-guerra, mas encontravam-se
muito agravadas no caso desta pela escala global das suas responsabilidades
imperiais.
O custo para a Grã-Bretanha em permanecer como grande potência
aumentou consideravelmente desde 1939. A despesa do país com toda a
actividade militar e diplomática nos anos de 1934-1938 foi de 6 milhões de
libras por ano. Em 1947, só para a despesa militar o governo orçamentou 209
milhões de libras. Em Julho de 1950, nas vésperas da guerra da Coreia, isto é,
antes do aumento das despesas que se seguiu ao início desta, a Grã-Bretanha
tinha uma frota naval completa no Atlântico, outra no Mediterrâneo e uma
terceira no oceano Índico, para além de uma permanente «base na China». O
país mantinha 120 esquadrões da Royal Air Force espalhados por todo o
mundo e tinha exércitos ou partes de exércitos estacionados permanentemente
em Hong Kong, Malásia, Golfo Pérsico e Norte de África, Trieste e Áustria,
Alemanha Ocidental e no próprio Reino Unido. Para além disso, havia uma
extensa e dispendiosa rede diplomática, consular e de informação mundial,
para além do funcionalismo associado às colónias, por si só um peso
burocrático e administrativo significativo em si mesmo, embora recentemente
reduzido com a saída da Grã-Bretanha da Índia.
A única maneira de o país pagar as despesas inerentes à via que escolheu
nestas circunstâncias muito exigentes foi os Britânicos imporem a si mesmos
condições restritivas e de penúria sem precedentes, o que explica a referência
frequente a uma característica destes anos: que a orgulhosa e vitoriosa Grã-
Bretanha parecia de alguma forma deparar com mais restrições, pobreza,
desalento e desconfiança do que qualquer um dos países antes derrotados,
ocupados e devastados que ficavam do outro lado do canal. Tudo estava
racionado, limitado, controlado. Em Abril de 1947, o editor e ensaísta Cyril
Connolly, reconhecidamente pessimista mesmo nas melhores circunstâncias,
traduziu, não obstante, bastante bem o espírito desses tempos na comparação
que fez entre a América e a Grã-Bretanha:
«Aqui o ego está sob meia-pressão. A maioria de nós não é constituída
por homens e mulheres, mas por uma vasta classe neutra, gasta,
sobrecarregada de trabalho, emaranhada em legislação, com o nosso
vestuário pesado, os nossos blocos de talões de racionamento e os nossos
livros policiais violentos, as nossas apatias invejosas, estreitas, antiquadas.
Somos um povo assombrado de preocupações. O símbolo deste estado de
espírito é Londres, que é agora a maior, a mais triste e a mais suja de todas
as grandes cidades, com os seus quilómetros de casas semi-habitadas e
sem pintura, os seus restaurantes baratos onde não há carne, os seus bares
onde não há cerveja, os seus quarteirões outrora vivos e que vão perdendo
agora a sua identidade, as suas praças despidas de toda a elegância […] as
suas multidões vagueando em torno das vergas pintadas de verde das
cafetarias, com as suas gabardinas coçadas, sob um céu permanentemente
deprimente e baixo como se fosse uma tampa de metal.»
Esta era uma época de austeridade. Para aumentar as exportações do país
(e obter assim as divisas estrangeiras que eram vitais) quase tudo era
racionado ou simplesmente não existia: carne, açúcar, vestuário, carros,
gasolina, viagens ao estrangeiro, e até doces. O racionamento do pão, que
nunca fora imposto durante a guerra, foi introduzido em 1946 e só foi abolido
em Julho de 1948. Em 5 de Novembro de 1949, o governo celebrou com
ostentação uma «fogueira para queimar os controlos», mas muitos destes
tiveram de ser impostos de novo com o apertar de cinto provocado pela guerra
da Coreia. O racionamento da alimentação básica só acabou em 1954, muito
tempo depois do resto da Europa Ocidental. As cenas de rua na Grã-Bretanha
do pós-guerra seriam familiares aos cidadãos do bloco soviético. Segundo as
palavras de uma dona de casa inglesa, que recordava esses dias, «fazíamos
filas para tudo, sabe, até para o que não sabíamos o que era […] juntávamo-
nos também porque sabíamos que no fim dela havia qualquer coisa».
Os Britânicos mostraram-se particularmente pacíficos perante as suas
privações, em parte porque acreditavam que, pelo menos, elas eram
partilhadas com justiça por toda a comunidade, embora a frustração
acumulada com o racionamento e as regulamentações e um certo ar de
paternalismo puritano que vinha de alguns ministros trabalhistas (sobretudo
do chanceler do Tesouro, Sir Stafford Cripps) tivesse contribuído para a
recuperação eleitoral dos conservadores nos anos 50. A ideia de que não havia
alternativa e que o governo sabia melhor o que se devia fazer moldou a
primeira geração do pós-guerra na Inglaterra: segundo recorda o romancista
David Lodge, dos seus tempos de juventude, ela era «cautelosa, não
afirmativa, agradecida por pequenas mercês e modesta nas suas ambições»,
contrastando em muito com a geração que lhe sucederia. Aliás, as mercês não
pareciam muito pequenas. A conferência anual do Partido Trabalhista de 1950
é assim recordada por Sam Watson, o líder veterano do sindicato mineiro de
Durham: «A pobreza foi abolida. A fome é desconhecida. Os doentes recebem
os seus cuidados. Os idosos são estimados, as nossas crianças vão crescendo
numa terra de oportunidades.»
A Grã-Bretanha continuou a ser uma sociedade deferente, dividida em
classes, e o Estado-providência, como vimos, beneficiou sobretudo a «classe
média». Todavia, o rendimento e a riqueza foram realmente redistribuídos em
resultado da legislação do pós-guerra: o quinhão do 1% mais rico da
população desceu de 56% em 1938 para 43% em 1954 e o desaparecimento,
de facto, do desemprego contrastava nitidamente com a sinistra década
anterior à guerra. Entre 1946 e 1948, emigraram 150 000 Britânicos para o
Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia e muitos mais pensavam seguir os seus
passos. Porém, em 1951 pareceu que já tinha passado a parte pior dos anos de
austeridade e o país apresentava o espectáculo optimista de um «Festival da
Grã-Bretanha», comemorando o centenário da grande exposição do Príncipe
Alberto em 1851.
Os sentimentos da altura são bem retratados no documentário
contemporâneo, da autoria de Humphrey Jennings, filmado sobre a Inglaterra
de 1951 e intitulado «Retrato de Família». O próprio título aponta para algo
peculiar a este país. Nenhum realizador em França, Itália, Alemanha ou
Bélgica pensaria usá-lo. O filme é uma celebração do carácter inglês,
fortemente espelhado por memórias partilhadas de sofrimento e glória em
relação à guerra que findara há pouco, e está impregnado de um orgulho pelas
peculiaridades do país que é apenas parcialmente consciente. Dá muita ênfase
à ciência e ao progresso, ao planeamento e ao trabalho, e não faz qualquer
referência aos vizinhos ou aos aliados da Inglaterra (sic). O país é apresentado
em 1951 como realmente estava em 1940: sozinho.
Em 1828, o poeta alemão Heinrich Heine fez a observação já familiar de
que «nos seus debates parlamentares, raramente é possível aos Ingleses darem
voz a um princípio. Discutem apenas se uma coisa é útil ou prejudicial, e
apresentam factos a favor e contra». Os Britânicos rejeitaram o convite de
Robert Schuman em 1950, em razão do que pensaram ser as consequências
prejudiciais de integrarem o projecto económico europeu e por se sentirem há
muito inquietos com as confusões europeias. No entanto, a decisão britânica
de não aderir à CECA foi sobretudo instintiva, psicológica e até emocional,
um resultado da singularidade extrema da sua experiência recente. Foi assim
que Anthony Eden sintetizou, perante um público nova-iorquino, em Janeiro
de 1952, a decisão britânica: «Isto é algo que nós, no nosso próprio íntimo,
sentimos não poder fazer.»
A decisão não foi final, mas quando tomada revelou-se fatídica. Na
ausência da Grã-Bretanha (e, por causa dela, também dos escandinavos), o
poder na «pequena Europa» Ocidental pendeu, por falta de comparência, para
o lado da França. Os Franceses fizeram o que os Britânicos poderiam ter feito
em outras circunstâncias e modelaram a «Europa» à sua imagem e
semelhança, acabando por criar as instituições e conceber as políticas segundo
um molde que lhes era familiar pela sua história. Nesta altura, foram os
europeus continentais, não os Britânicos, que lamentaram o curso dos
acontecimentos. Muitos líderes europeus proeminentes desejavam
verdadeiramente que a Grã-Bretanha se lhes juntasse. Como disse Paul-Henri
Spaak, o estadista belga e depois também europeu, num lamento
retrospectivo: «Esta liderança moral era só pedi-la.» Também Monnet se
debruçaria sobre o passado e ponderaria como as coisas poderiam ter sido
diferentes se a Grã-Bretanha tivesse optado por tomar a iniciativa numa época
em que a sua autoridade era ainda indisputada. Dez anos depois, é verdade, os
Britânicos voltariam a ponderá-la, mas na Europa do pós-guerra dez anos era
muito tempo e nessa altura os dados já estavam lançados.
-
(10) O ministro francês das Finanças, Henri Queuille, queixou-se ao embaixador dos Estados Unidos
em França da «total falta de lealdade» da Grã-Bretanha.

(11) Um ponto de vista muito bem expresso nas linhas escritas anonimamente durante as
negociações do empréstimo à Grã-Bretanha após a guerra:
Em Washington Lord Halifax In Washington Lord Halifax
Segredou a Lord Keynes: Once whispered to Lord Keynes:
É verdade que eles têm o dinheiro It’s true they have the money bags
Mas nós é que temos a inteligência But we have all the brains.

(12) Compreensivelmente, os Alemães não se recordavam da guerra desta forma e nas décadas
seguintes ficavam surpreendidos quando eram objecto dos cânticos dos adeptos do futebol e dos
cabeçalhos dos tablóides ingleses que se lhes referiam como «Hunos», «Krauts», etc.
VI

No Turbilhão
«Digam o que disserem, os comunistas foram mais inteligentes. Tinham um
programa grandioso, um plano para um mundo totalmente novo em que todos
encontrariam o seu lugar […]. Logo à partida, houve pessoas que
reconheceram faltar-lhes o temperamento adequado para o idílio e
pretenderam deixar o país. Mas como, por definição, o idílio é um mundo
para todos, as pessoas que desejavam emigrar estavam a negar implicitamente
a sua validade. Em vez de irem para o estrangeiro, foram para trás das
grades.»
Milan Kundera
«Era, por isso, necessário ensinar as pessoas a não pensar e a não emitir
juízos, obrigá-las a ver o que não existia e a defender o oposto do que era
óbvio para todos.»
Boris Pasternak, O Doutor Jivago
«Encontrei muitas pessoas no campo que conseguiam combinar uma
consciência viva do que se estava a passar no país em geral com o culto
religioso de Estaline.»
Evgenia Ginsburg, Viagem ao Turbilhão
«O estalinismo significava a morte do homem interior. Independentemente do
que possam dizer os sofistas, independentemente das mentiras que os
intelectuais comunistas possam contar, é a isso que se resume. O homem
interior tem de morrer para que o decálogo comunista possa habitar na sua
alma.»
Alexander Wat
«Aqui primeiro enforcam um homem e depois procedem ao seu julgamento.»
Molière, Monsieur de Pourceaugnac
Aos olhos dos observadores ocidentais, em 1945, a União Soviética
apresentava uma perspectiva assustadora. O Exército Vermelho marchava a
pé e transportava as suas armas e mantimentos em carroças puxadas por
animais de carga. Os seus soldados não tinham direito a licença e, se
hesitassem, não tinham quartel: só em 1941 e 1942, foram executados por
«cobardia» 157 593. Porém, após um início hesitante, a URSS suplantou a
produção e superiorizou-se em combate ao colosso nazi, destruindo o núcleo
da magnífica máquina de guerra germânica. Para amigos e inimigos, a vitória
soviética na Segunda Guerra Mundial era um exemplo das realizações dos
bolcheviques. Justificaram-se as políticas de Estaline, os seus crimes
anteriores à guerra foram largamente esquecidos. O sucesso, como Estaline
bem sabia, era uma garantia de superioridade.
Todavia, a vitória soviética só foi obtida pagando por ela um preço
extremamente elevado. De todos os vencedores da Segunda Guerra Mundial,
e na verdade de todos os países participantes, tanto vencedores como
vencidos, a URSS foi a única a sofrer danos económicos permanentes. As
perdas em pessoas e recursos foram enormes e far-se-iam sentir durante
décadas. Zdenek Mlynar, um comunista checo que estudava em Moscovo em
1950, recorda-se da capital atolada em «pobreza e atraso […] uma aldeia
enorme de casas de madeira». Longe das cidades a situação era muito pior.
Estradas, pontes e caminhos-de-ferro foram destruídos deliberadamente em
grande parte da Bielorrúsia, da Ucrânia e da parte ocidental da Rússia. As
colheitas de cereais no início dos anos 50 foram inferiores às de 1929, as
quais, por sua vez, foram muito mais reduzidas do que a última colheita feita
em tempo de paz, na época dos czares. A guerra foi travada sobre alguma da
melhor terra arável da União Soviética, tendo sido mortos centenas de
milhares de cavalos, vacas, porcos e outros animais. A Ucrânia, que nunca
recuperou da fome propositada e punitiva dos anos 30, enfrentou outra, desta
vez não planeada, no Inverno e na Primavera de 1946-1947.
Contudo, durante a guerra assistiu-se a uma semimilitarização duradoura
da vida soviética. A direcção centralizada e a concentração inflexível na
produção de tanques, armas e aviões transformou a URSS numa máquina de
guerra surpreendentemente eficaz, indiferente à vida e ao bem-estar humanos,
mas bem adaptada, por outro lado, à condução de uma guerra total. A coorte
de burocratas do partido que foi formada durante a guerra – a geração de
Brejnev – identificou o poder e o êxito com a produção em larga escala das
indústrias de defesa e haveria de dirigir o país nos 40 anos seguintes com este
modelo sempre em mente. As persistentes metáforas leninistas da luta e da
confrontação de classes podiam agora ser relacionadas com memórias
orgulhosas da guerra real. O Estado do partido soviético ganhou um novo
mito fundador: a Grande Guerra Patriótica.
Graças ao tratamento infligido pelos nazis às terras e às pessoas que
invadiram, o combate de 1941-1945 levado a cabo pela Rússia foi uma grande
guerra patriótica. Estaline encorajou a expressão autónoma dos sentimentos
nacionais e religiosos da Rússia, permitindo que o partido e os seus objectivos
fossem temporariamente substituídos por uma aura de propósito comum
durante a batalha titânica contra os invasores germânicos. Uma ênfase
semelhante posta nas raízes da União Soviética no passado imperial russo foi
igualmente útil às metas de Estaline para o saque da Europa Central no
período do pós-guerra.
O que Estaline pretendia acima de tudo na Europa era, como vimos, a
segurança. Porém, também estava interessado nos benefícios económicos a
obter das suas vitórias no Ocidente. Os pequenos Estados da Europa Central,
da Polónia à Bulgária, tinham vivido à sombra da dominação germânica
muito antes da Segunda Guerra Mundial: sobretudo nos anos 30, a Alemanha
nazi era o seu principal parceiro comercial e a mais importante fonte de
capital estrangeiro. Durante a guerra, esta ligação transformou-se
simplesmente numa relação senhor-escravo, com a Alemanha a retirar o
máximo de rendimento da terra e das pessoas para o seu esforço de guerra. O
que aconteceu após 1945 foi que a União Soviética assumiu literalmente o
controlo do que a Alemanha abandonara, anexando a Europa de Leste à sua
própria economia como um recurso a ser discricionariamente explorado.
A União Soviética obteve indemnizações de guerra por parte da Hungria e
da Roménia, como antigos aliados de Hitler. Estas indemnizações, como as
que foram pagas em espécie pela zona soviética da Alemanha, pouco
contribuíram para compensar as perdas da Rússia, mas representaram
sacrifícios substanciais por parte dos países que as pagaram: em 1948, as
indemnizações romenas à URSS representaram 15% do rendimento nacional
do país; na Hungria, a percentagem correspondente foi de 17%. Estaline não
exigiu menos dos países que não combateram contra ele, só que em termos
«fraternais» e não punitivos.
Calcula-se que até ao final dos anos 50 a União Soviética cobrou à RDA, à
Roménia e à Hungria consideravelmente mais do que gastou para as controlar.
Na Checoslováquia essas quantias foram equivalentes. A Bulgária e sobretudo
a Polónia custaram provavelmente mais a Moscovo em ajuda, entre 1945 e
1960, do que renderam em comércio e outras entregas. Este padrão de
benefícios económicos mistos entre a metrópole e a sua colónia é conhecido
dos historiadores do colonialismo e neste aspecto a relação entre a URSS e as
terras que lhe ficavam a ocidente foi convencionalmente «imperial» (excepto
que, no caso soviético, o centro imperial era realmente mais pobre e atrasado
do que a sua periferia subjugada).
Onde Estaline divergia dos outros construtores de impérios, e mesmo dos
czares, foi na sua insistência em repetir, nos territórios sob o seu controlo,
formas de governo e de sociedade que eram idênticas às que vigoravam na
União Soviética. Tal como fizera no Leste da Polónia entre 1939 e 1941 e nos
Estados bálticos em 1940 e, uma vez mais (depois da sua reconquista aos
nazis), em 1945, Estaline refez a Europa de Leste à imagem da União
Soviética, reproduzindo a história, as instituições e as práticas soviéticas em
cada um dos pequenos Estados, agora controlados pelos partidos comunistas.
A Albânia, a Bulgária, a Roménia, a Checoslováquia, a Polónia e a
República Democrática Alemã haveriam de ser, nas felizes palavras de um
especialista, «Estados-cópia geograficamente contíguos»(1). Todas deveriam
possuir uma constituição segundo o modelo da soviética (a primeira foi
adoptada na Bulgária, em Dezembro de 1947, a última na Polónia, em Julho
de 1952). Todas deveriam realizar «reformas» económicas e adoptar planos
quinquenais para adaptar as suas instituições e práticas às da União Soviética.
Todas deveriam transformar-se em Estados policiais à semelhança da URSS.
Todas deveriam ser governadas pelo aparelho de um partido comunista
subserviente (de facto, embora não formalmente) ao Partido Comunista
dirigente, em Moscovo(2).
Os motivos de Estaline para reproduzir a sociedade soviética nos Estados-
satélites eram, uma vez mais, bastante simples. Na Europa de Leste, o desejo
de paz, terras, alimentos e de um novo começo, que estava muito difundido
durante o pós-guerra, deve ter facilitado o acesso dos comunistas ao poder,
mas não era uma garantia de apoio local às políticas soviéticas. A preferência
dada aos comunistas, ou a alguma forma de socialismo, sobre os fascistas não
podia ser atribuída à experiência prática do poder comunista em matéria de
sobrevivência. Mesmo a atracção das garantias soviéticas contra o
revanchismo alemão poderia declinar com o tempo.
Estaline necessitava de garantir a aliança constante dos seus satélites
vizinhos e sabia de uma forma de a obter. Primeiro, o partido tinha de
assegurar o monopólio do poder. Nas palavras da constituição húngara de
Agosto de 1949, deveria assumir e manter um «papel dirigente», extinguindo
ou absorvendo todos os outros partidos políticos. O Partido constituiria a
única forma de mobilidade social e a única fonte de patrocínio e de realização
da justiça (com o controlo exercido sobre os tribunais). Inseparável do Estado,
cujas instituições monopolizava, e recebendo directamente as suas instruções
de Moscovo, o partido nacional e o seu aparelho de segurança do Estado eram
os instrumentos mais directos do domínio soviético.
Segundo, o Estado-Partido deveria exercer o monopólio sobre as decisões
económicas. Esta não era uma questão fácil. As economias dos Estados
europeus de Leste eram muito diversas. Algumas, como a da Boémia, eram
modernas, urbanas e industriais, com uma classe operária considerável.
Outras (a maioria) eram rurais e pobres. Algumas, como as da Polónia e da
Hungria, tinham sectores estatais consideráveis, resultantes das estratégias de
protecção contra a penetração alemã anteriores à guerra. Em outras, como a
da Checoslováquia, a propriedade e os negócios tinham estado antes da guerra
sobretudo em mãos privadas. Alguns países e regiões possuíam um sector
comercial florescente, outros assemelhavam-se a algumas parcelas da própria
União Soviética. A maior parte da região tinha sofrido grandemente os efeitos
da Depressão e com as políticas autárcicas adoptadas para a combater. Porém,
como já vimos, durante a guerra alguns sectores industriais, sobretudo na
Hungria e na Eslováquia, beneficiaram realmente com o investimento alemão
na produção bélica.
Apesar desta diversidade, a tomada do poder pelos vários partidos
comunistas foi em breve seguida pela imposição da uniformidade económica
em toda a região. Primeiro, de acordo com a redefinição leninista do
«socialismo» como uma questão de propriedade, e não de relações sociais, o
Estado expropriou as grandes empresas dos sectores dos serviços, do
comércio e da indústria, quando ainda não pertenciam ao sector público. Em
segundo lugar, o Estado tomou conta, forçou a sair da actividade ou instituiu
impostos sobre todas as firmas que empregavam mais de 50 pessoas. Em
Dezembro de 1948, na Checoslováquia, não havia nenhuma empresa com
mais de 20 empregados em mãos privadas, o mesmo se passando, na mesma
data, com 83% da indústria húngara, 84% da polaca, 85% da romena e uns
esmagadores 98% da búlgara.
Um dos meios para eliminar a classe média proprietária na Europa de
Leste foi a reforma monetária. Foi um instrumento eficaz para destruir as
poupanças monetárias tanto dos camponeses como dos homens de negócios,
uma actualização das antigas extorsões como, por exemplo, os impostos sobre
a propriedade. Na Roménia foi aplicada duas vezes, em Agosto de 1947
(quando teve o objectivo legítimo de acabar com a hiperinflação) e em
Janeiro de 1952, quando os camponeses que acumularam poupanças durante
os quatro anos anteriores (havia pouco em que gastar o seu dinheiro) as viram
desaparecer.
Tal como na União Soviética, também na Europa de Leste soviética os
camponeses estavam condenados. As reformas no campo no início do pós-
guerra distribuíram pequenas parcelas a um grande número de agricultores.
Mas por muito populares que fossem, estas reformas apenas exacerbaram a
crise agrária que há muito existia na região: muito poucos investimentos em
maquinaria e adubos, demasiados trabalhadores subempregados e cinco
décadas de preços de produtos agrícolas em queda contínua. Até se terem
anichado firmemente no poder, os partidos comunistas da Europa de Leste
encorajaram activamente a redistribuição ineficiente da terra, mas a partir de
1949 passaram a destruir os nepmen e os kulaks com uma urgência e uma
agressividade cada vez maiores.
Nas primeiras fases da colectivização rural, os camponeses que eram
pequenos proprietários de terras – poucos eram os grandes proprietários que
ainda se mantinham nesta altura – foram sobrecarregados com impostos
punitivos (que muitas vezes ultrapassavam o seu rendimento monetário),
preços diferenciados e quotas que favoreciam as novas explorações colectivas
e estatais, retenção das senhas de racionamento e discriminações exercidas
sobre os filhos, aos quais era negado o acesso à educação pós-primária.
Mesmo nestas condições, continuou a haver um número surpreendente de
camponeses independentes, embora na sua maioria em «microfúndios» de
dois hectares ou menos, insignificantes economicamente.
Na Roménia, onde dezenas de milhares de camponeses foram registados
obrigatoriamente em explorações colectivas, no Outono de 1950, e onde o
regime não coibiu de recorrer à força, só em 1962 o futuro presidente Nicolae
Ceausescu pôde anunciar, orgulhosamente, a colectivização rural completa
«três anos antes do que estava calendarizado». Na Bulgária, durante os dois
primeiros planos quinquenais, com início em 1949, as terras agrícolas viáveis
tinham sido totalmente retiradas de mãos privadas. Nas terras checas, onde a
colectivização começou bastante tarde (em 1956, a maior parte da terra arável
era ainda cultivada por privados), 95% das terras agrícolas seriam
expropriadas nos dez anos seguintes; nas regiões atrasadas e inacessíveis da
Eslováquia foram-no bastante menos (85%). Mas aqui, como na Hungria e em
toda a região, os agricultores independentes sobreviveram apenas
nominalmente. As medidas adoptadas contra eles e a destruição dos mercados
e das redes de distribuição provocaram o seu empobrecimento e a sua ruína.
As características irracionais e, por vezes, surrealistas da prática
económica soviética foram fielmente reproduzidas em todo o bloco. Em 30 de
Setembro de 1948, Gheorge Gheorghiu-Dej, do Partido Comunista Romeno,
anunciou: «Queremos realizar uma acumulação socialista à custa dos
elementos capitalistas do campo», isto num país em que os «elementos
capitalistas» da economia rural estavam manifestamente ausentes. Na
Eslováquia, durante 1951 houve mesmo tentativas de enviar empregados de
escritório e funcionários governamentais urbanos para os campos. «A
Operação 70 000 têm de ser produtivos», como foi chamada, revelou-se
desastrosa e foi rapidamente abandonada, mas este exercício de maoísmo
avant l’heure, apenas a 80 quilómetros a leste de Viena, diz muito sobre o
espírito do tempo. Entretanto, tal como nas novas terras bálticas recém-
sovietizadas, a consequência da reforma agrária comunista foi a instituição da
penúria a longo prazo em países onde até então a alimentação fora abundante
e barata(3).
Para lidarem com este falhanço político evidente, as autoridades
introduziram leis ao estilo soviético, criminalizando o «parasitismo», a
«especulação» e a «sabotagem». Segundo as palavras da Dr.a Zdenka
Patschova, juiz e membro da Assembleia Nacional checoslovaca, dirigindo-se
aos seus colegas legisladores em 27 de Março de 1952: «O desmascaramento
da verdadeira face dos aldeãos ricos é a tarefa prioritária dos procedimentos
criminais […]. Não fazer entregas nem cumprir as metas do plano de
produção [agrícola] devem ter uma punição severa como sabotagem.» Tal
como é sugerido por este eco fiel da retórica soviética dos anos 30, a antipatia
para com os camponeses e o sucesso da colectivização rural constituíam um
dos principais testes de ortodoxia estalinista.
A curto prazo, a implementação dos planos para a indústria, inspirados
pelos Soviéticos, não foi de uma forma tão óbvia um desastre: há algumas
coisas que as economias planificadas podem realizar bastante bem. A
colectivização da terra e a destruição das pequenas empresas possibilitou uma
oferta abundante de homens e mulheres para trabalhar nas minas e nas
fábricas. A estrita ênfase dos comunistas em investir na fabricação de
maquinaria pesada a expensas dos produtos e serviços de consumo assegurou
níveis de produção sem precedentes. Os planos quinquenais foram adoptados
em toda a parte com metas extremamente ambiciosas. Em termos de produção
bruta, as taxas de crescimento nesta primeira fase da industrialização foram
impressionantes, nomeadamente em países como a Bulgária e a Roménia, que
partiam praticamente do zero.
O número de pessoas empregadas na agricultura, mesmo na
Checoslováquia, o Estado mais urbanizado da região, diminuiu 18% entre
1948 e 1952. Na zona soviética da Alemanha, a produção de aço em bruto
cresceu de 120 000 toneladas em 1946 para mais de 2 milhões de toneladas
em 1953. Algumas regiões da Europa de Leste (o Sudoeste da Polónia, a
cintura industrial a noroeste de Bucareste) foram transformadas quase da
noite para o dia: foram construídas cidades inteiramente novas, como Nowa
Huta, perto de Cracóvia, para proporcionar habitação a milhares de
trabalhadores que fabricavam ferro, aço e máquinas-ferramentas. Numa
escala adequadamente menor, a primeira fase da industrialização
semimilitarizada e monolítica da União Soviética, que se dera no período
entre as duas guerras, estava a ser repetida por todo o bloco soviético. Tal
como na Rússia, os comunistas da Europa de Leste estavam a reproduzir uma
versão abreviada e acelerada da revolução industrial do século XIX na Europa
Ocidental.
Vista a esta luz, a história económica da Europa de Leste após 1945 tem
alguma semelhança com o padrão de recuperação da Europa Ocidental nos
mesmos anos. Também nesta última se deu prioridade ao investimento na
produtividade e no crescimento, em detrimento do fornecimento de bens e
serviços de consumo, embora o Plano Marshall tenha atenuado os sacrifícios
inerentes a esta estratégia. Também na Europa Ocidental alguns sectores e
regiões começaram o seu desenvolvimento a partir de níveis baixos e,
sobretudo em Itália e em França, teve lugar uma enorme deslocação de
pessoas do campo para as cidades, durante os anos 50. A característica
diferenciadora da história da Europa de Leste comunista é que, para além do
carvão, do aço, das fábricas e dos blocos de apartamentos, a primeira fase da
industrialização à soviética deu origem a distorções e contradições grotescas,
e ainda mais do que na própria URSS.
Após a criação do Comecon (o Conselho de Assistência Económica
Mútua)(4), em 1949, as regras do comércio entre os Estados comunistas
estavam estabelecidas. Cada país deveria tratar bilateralmente com a União
Soviética (um outro eco das exigências da época nazi, com Moscovo a
substituir Berlim uma vez mais) e fora-lhe atribuído um papel não negociável
na economia comunista internacional. Assim, a Alemanha de Leste, a
Checoslováquia e a Hungria forneceriam produtos industriais acabados à
URSS (a preços fixados por Moscovo), enquanto a Polónia e a Roménia se
deveriam especializar na produção e exportação de produtos alimentares e
industriais primários. Por sua vez, a União Soviética transaccionaria matérias-
primas e combustíveis.
Se exceptuarmos a curiosa inversão de que já demos conta – com a
potência imperial a fornecer matérias-primas e as colónias a exportar produtos
acabados –, esta estrutura é uma reminiscência da colonização europeia em
outros continentes. Como no caso das colónias não europeias, também na
Europa de Leste as economias indígenas foram vítimas de deformações e de
subdesenvolvimento. Alguns países foram impedidos de fabricar produtos
acabados, a outros foram dadas ordens para produzir determinados produtos
em abundância (sapatos na Checoslováquia, camiões na Hungria) e vendê-los
à URSS. Não se prestava qualquer atenção à economia das vantagens
comparativas.
O modelo soviético dos anos 30 – improvisado para lidar com as
circunstâncias únicas da União Soviética, que eram as grandes distâncias, a
abundância de matérias-primas e mão-de-obra sem fim, barata e não
qualificada – não tinha qualquer sentido em pequenos países como a Hungria
ou a Checoslováquia, carecidos de matérias-primas, mas com mão-de-obra
industrial qualificada e mercados internacionais há muito estabelecidos para
produtos de elevado valor acrescentado. O caso checo é particularmente
flagrante. Antes da Segunda Guerra Mundial, as regiões checas da Boémia e
da Morávia (que já eram o coração industrial do Império Austro-Húngaro
antes de 1914) tinham um rendimento per capita superior ao francês,
especializando-se em produtos de pele, veículos a motor, fabricação de armas
de alta tecnologia e uma ampla gama de produtos de luxo. Avaliada pelos
seus níveis de qualificação, produtividade, padrão de vida e quotas nos
mercados internacionais, a Checoslováquia anterior a 1938 era comparável à
Bélgica e estava bastante acima da Áustria e da Itália.
Em 1956, a Checoslováquia comunista não apenas ficara atrás da Áustria,
da Bélgica e do resto da Europa Ocidental, mas era muito menos eficiente e
muito mais pobre do que fora 20 anos atrás. Em 1938, o número de
automóveis per capita na Checoslováquia e na Áustria era semelhante; em
1960 a sua proporção era de 1 para 3. Mesmo os produtos em que o país ainda
podia competir com vantagem – nomeadamente o fabrico de armas de
pequeno calibre – já não traziam aos Checos qualquer benefício, porque
estavam obrigados a dirigir as suas exportações exclusivamente para os seus
senhores soviéticos. Quanto ao estabelecimento de gigantescas instalações
industriais, como as Aciarias Gottwald, em Ostrava, idênticas às existentes na
Polónia, na República Democrática Alemã, na Hungria, na Roménia, na
Bulgária e na URSS, representaram para os Checos, não uma rápida
industrialização, mas um atraso forçado (foram concretizados programas
intensivos de industrialização baseados na fabricação do aço, apesar dos
recursos muito limitados da Checoslováquia em minério de ferro). Depois dos
benefícios irrepetíveis do crescimento inicial das indústrias primárias, o
mesmo se podia dizer, aliás, de todos os outros Estados-satélites. Em meados
dos anos 50, a Europa de Leste soviética estava já no princípio do seu declínio
contínuo em direcção a uma obsolescência «planeada».
Há duas excepções parciais nesta breve descrição das economias do bloco
soviético. Enquanto a primitiva industrialização foi realizada tão
entusiasticamente na Polónia como em qualquer outro local, a colectivização
da terra não o foi. Parece que Estaline se apercebeu que não era viável obrigar
os camponeses polacos a aderir às explorações colectivas, mas esta
consideração só por si dificilmente o levaria a hesitar. A precaução soviética
quando lidava com a Polónia (e teremos ocasião de voltar a este tema) era
estritamente prática. Em grande contraste com outros povos submetidos da
Europa de Leste, o número de Polacos era grande, a sua capacidade e
propensão para se rebelarem contra a servidão russa era conhecida de
gerações de oficiais e burocratas russos e havia na Polónia um ressentimento
mais evidente contra o domínio soviético do que em qualquer outra parte.
Do ponto de vista soviético, a oposição polaca era um embaraço – restos
de organizações secretas polacas do tempo da guerra levaram a efeito acções
de guerrilha contra o regime comunista até pelo menos ao final dos anos 40 –
e sem razão de ser. Não tinham os Polacos ganho 64 000 quilómetros
quadrados de terras agrícolas particularmente boas em troca dos 110 000
quilómetros quadrados de pântanos a oriente transferidos para a URSS após a
guerra? E não era Moscovo a (única) garantia dos Polacos contra a Alemanha,
cuja recuperação todos previam? Para além disso, não estava a Polónia
desembaraçada das suas minorias de antes da guerra? Os judeus foram mortos
pelos Alemães e os Alemães e os Ucranianos foram expulsos pelos
Soviéticos. Se a Polónia era agora mais «polaca» do que em qualquer outra
altura da sua complicada história, devia agradecer a Moscovo.
Todavia, as relações entre os Estados, sobretudo no bloco soviético, não
dependiam da gratidão nem da falta dela. A utilidade da Polónia para
Moscovo era acima de tudo como tampão contra uma agressão alemã ou
ocidental. Era desejável que a Polónia se tornasse socialista, mas era
imperativo que permanecesse estável e de confiança. Em troca da calma
interna polaca, Estaline estava disposto a tolerar uma classe de agricultores
independentes, se bem que ineficientes e ideologicamente desalinhados, e
uma Igreja Católica publicamente activa, assumindo formas que seriam
inimagináveis mais a sul ou a leste. As universidades polacas foram também
deixadas quase intactas, em contraste com os saneamentos que esvaziaram o
pessoal docente das instituições de ensino superior na vizinha Checoslováquia
e nos outros países.
A outra excepção, claro, foi a Jugoslávia. Até à ruptura entre Estaline e
Tito, a Jugoslávia era, como vimos, o mais «avançado» de todos os Estados
da Europa de Leste no seu caminho para o socialismo. O primeiro plano
quinquenal de Tito ultrapassou Estaline ao propor-se conseguir uma taxa de
investimento industrial superior a todas as outras do bloco soviético. Foram
formadas 7000 explorações agrícolas colectivas ainda antes de se ter dado
início às colectivizações nos outros Estados-satélites. Para além disso, a
Jugoslávia posterior à guerra estava bem encaminhada para ultrapassar a
própria Moscovo na eficiência e ubiquidade do seu aparelho repressivo. Os
serviços de segurança dos guerrilheiros da Segunda Guerra Mundial
desenvolveram-se até se transformarem numa rede policial completa cuja
tarefa era, segundo as palavras de Tito, «infundir o terror nos corações dos
que não gostavam deste género de Jugoslávia».
O rendimento per capita da Jugoslávia à época da ruptura com Estaline era
o mais baixo da Europa, excepto o da vizinha Albânia. Uma terra já
empobrecida fora lançada na penúria após quatro anos de ocupação e guerra
civil. A herança amarga da experiência da guerra por parte da Jugoslávia
tornava-se ainda mais complicada devido à sua composição étnica, sendo o
último Estado genuinamente multinacional da Europa. Segundo o censo de
1946, a população da Jugoslávia era de 15,7 milhões de indivíduos,
compreendendo 6,5 milhões de Sérvios, 3,8 milhões de Croatas, 1,4 milhões
de Eslovenos, 800 000 muçulmanos (a maioria deles na Bósnia), 800 000
Macedónios, 750 000 Albaneses, 490 000 Húngaros, 400 000 Montenegrinos,
100 000 Valáquios e um número incerto de Búlgaros, Checos, Alemães,
Italianos, Romenos, Russos, Turcos, judeus e ciganos.
De todos eles, apenas os Sérvios, os Croatas, os Eslovenos, os
Montenegrinos e os Macedónios beneficiavam de um reconhecimento
autónomo, segundo a constituição de 1946, embora fossem encorajados,
como todos os outros, a considerar-se «Jugoslavos»(5). Enquanto Jugoslavos,
as suas perspectivas pareciam na verdade sombrias. Escrevendo de Belgrado a
um amigo grego, no final dos anos 40, Lawrence Durrell tinha isto a dizer do
país: «As condições aqui são bastante pessimistas: quase de guerra,
sobrepopulação, pobreza. Quanto ao comunismo, meu caro Theodore, uma
visita breve por cá é suficiente para levar qualquer um a decidir que vale a
pena lutar pelo capitalismo. Por negro que possa ser, com todas as suas
nódoas sangrentas, é menos pessimista do que este Estado policial inerte e
sinistro.»
Nos meses seguintes à ruptura com Estaline, Tito ficou realmente mais
radical, mais «bolchevique», como que para provar a legitimidade da sua
orientação e a falsidade dos seus críticos soviéticos. Porém, esta posição não
poderia manter-se por muito tempo. Sem ajuda externa e perante a real
perspectiva de uma invasão soviética, virou-se para o Ocidente em busca de
auxílio. Em Setembro de 1949, o US Export-Import Bank emprestou 20
milhões de dólares a Belgrado. No mês seguinte, a Jugoslávia contraiu um
empréstimo de 3 milhões de dólares junto do Fundo Monetário Internacional
e, em Dezembro desse mesmo ano, assinou um tratado comercial com a Grã-
Bretanha e recebeu 8 milhões de dólares de créditos.
A ameaça soviética obrigou Tito a aumentar as suas despesas com a
defesa, de 9,4% do magro rendimento nacional, em 1948, para 16,7%, em
1950. As indústrias de munições do país foram deslocadas para a segurança
das montanhas da Bósnia (o que teve algumas consequências nas guerras dos
anos 90). Em 1950, o Congresso dos Estados Unidos, convencido agora da
possível importância da Jugoslávia na Guerra Fria global, ofereceu mais 50
milhões de dólares ao abrigo da lei de Ajuda de Emergência à Jugoslávia, de
1950, e em Novembro de 1951 fê-los acompanhar de um acordo que permitia
à Jugoslávia receber ajuda militar nos termos da Lei de Segurança Mútua. Em
1953, o défice corrente interno da Jugoslávia foi totalmente coberto pela
ajuda americana. Nos anos de 1949-1955, a ajuda a Tito proveniente de fontes
ocidentais totalizava 1,2 mil milhões de dólares, dos quais apenas 55 milhões
seriam reembolsados. A questão pendente de Trieste, que perturbara as
relações da Jugoslávia com a Itália e o Ocidente desde Maio de 1945, foi
finalmente resolvida num memorando de entendimento assinado pela
Jugoslávia, a Itália, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, em 5 de Outubro de
1954.
A ajuda ocidental permitiu ao regime jugoslavo continuar a favorecer a
indústria pesada e a defesa, como fizera antes da ruptura de 1948. Porém, se a
Liga dos Comunistas Jugoslavos manteve todas as rédeas do poder
autoritário, o ultrabolchevismo dos anos do pós-guerra foi abandonado. Na
Primavera de 1951, apenas os correios, os caminhos-de-ferro, os transportes
aéreos e os transportes fluviais permaneciam sob controlo federal (ou seja, do
governo central). Outros serviços e todas as empresas estavam na mão das
várias repúblicas. Em 1954, 80% das terras agrícolas estavam novamente em
mãos privadas, depois de um decreto de 30 de Março de 1953 que permitia
aos camponeses e às suas terras abandonar as explorações colectivas. Das
7000 que existiam antes, apenas permaneceram 1000.
Estaline emergiu da sua vitória contra Hitler ainda com maior poder do
que tivera antes, exaltando-se com a glória reflectida pelo «seu» Exército
Vermelho, tanto internamente como no estrangeiro. O culto da personalidade
em torno do ditador soviético, já muito desenvolvido antes da guerra, chegava
agora ao seu apogeu. Documentários populares soviéticos sobre a Segunda
Guerra Mundial mostravam Estaline a ganhá-la praticamente sozinho, a
planear a estratégia e a dirigir as batalhas sem qualquer general à vista. Em
quase todas as esferas da vida, da dialéctica à botânica, Estaline era
apresentado como a autoridade suprema e indiscutível. Os biólogos soviéticos
recebiam ordens para adoptar as teorias do charlatão Lysenko, que prometeu a
Estaline melhorias agrícolas nunca sonhadas se as suas teorias sobre o
carácter hereditário das características adquiridas fossem oficialmente
adoptadas e aplicadas nas explorações soviéticas – o que aconteceu, com
efeitos desastrosos(6). No dia do seu 70.o aniversário, em Dezembro de 1949,
a imagem de Estaline, evidenciada por holofotes suspensos de balões,
incendiava o céu nocturno sobre o Kremlin. Os poetas superavam-se uns aos
outros a tecer elogios ao Líder. Uma copla do poeta letão V. Lukss é disso
representativa:
Como um belo fio vermelho nos nossos corações tecemos
O teu nome, Estaline, nosso irmão, nosso pai.
Esta obsequiosa unção neobizantina do déspota, a atribuição de poderes
quase mágicos, desenrolava-se sobre um pano de fundo de tirania e terror
cada vez mais negro. Nos últimos anos da guerra, a coberto do nacionalismo
russo, Estaline expulsou das regiões fronteiriças a ocidente e sudoeste, em
particular do Cáucaso, e em direcção a leste, para a Sibéria e a Ásia Central,
várias pequenas nações: Chechenos, Inguches, Karachays, Nalkares,
Calmiques, Tártaros da Crimeia, etc., que se seguiram aos Alemães do Volga,
deportados em 1941. Este tratamento brutal de pequenas nações não era novo:
centenas de milhares de Polacos e bálticos foram exilados para leste entre
1939 e 1941, Ucranianos nos anos 30 e outros antes deles desde 1921.
Os primeiros julgamentos de colaboracionistas e traidores no pós-guerra,
em toda a região, reflectiam também sentimentos nacionalistas. Líderes de
partidos camponeses da Polónia, da Hungria e da Bulgária foram detidos,
julgados e fuzilados entre 1945 e 1947 por um conjunto de crimes reais ou
imaginários que iam desde as simpatias fascistas até à espionagem a favor do
Ocidente, passando pelo colaboracionismo durante a guerra. Porém, em todos
os casos, os procuradores de justiça tiveram um especial cuidado em pôr em
causa o seu patriotismo e a sua credibilidade enquanto representantes do
«povo» búlgaro, ou húngaro, ou polaco. Os socialistas que recusaram aderir
aos partidos comunistas, como o búlgaro Krastyn Partakhov (julgado em 1946
e sentenciado à prisão, onde morreu três anos mais tarde) eram também
escolhidos para serem punidos como inimigos do povo.
O que nos impressiona nas vítimas não comunistas destes primeiros
julgamentos públicos é que – à excepção dos que verdadeiramente
compartilharam o desígnio dos Alemães e cujas actividades eram, por isso, do
conhecimento geral – recusaram manifestamente afirmar-se culpadas ou
confessar os seus crimes «antinacionais». No espectáculo que foi o
julgamento, evidentemente fraudulento, do líder do Partido Agrário Nikola
Petrov e dos seus «co-conspiradores», que teve lugar em Sófia, em Agosto de
1947, quatro dos cinco acusados proclamaram a sua inocência, apesar das
torturas e dos falsos testemunhos(7).
Depois da crise jugoslava de 1948, a atitude de Estaline mudou. Como
alternativa a Moscovo, Belgrado exercia sobre muitos uma certa sedução. Ao
contrário de Estaline, Tito não representava uma ameaça imperial (excepto no
contexto balcânico) e ao libertar o seu país e ao conduzi-lo para o comunismo
sem a ajuda de Moscovo, o líder jugoslavo abriu um precedente atractivo para
todos os comunistas da Europa Ocidental que ainda estivessem tentados a
basear no sentimento nacional uma revolução nos seus respectivos países.
Estaline era notoriamente paranóico em relação a ameaças ao monopólio do
seu poder, mas isso não significava que não tivesse razão ao considerar Tito e
o «titismo» como verdadeiros perigos. Por isso, daqui em diante, o
nacionalismo («o nacionalismo do pequeno Estado», o «nacionalismo
burguês») deixou de ser um factor local positivo e passou a ser, pelo
contrário, o inimigo principal. O termo «nacionalismo» foi usado pela
primeira vez de forma pejorativa pela retórica comunista na reunião de Junho
de 1948 do Cominform para condenar o «desvio» jugoslavo.
No entanto, com todos os opositores não comunistas nacionais agora
mortos, presos ou no exílio, a que riscos genuínos estava exposto o
monopólio soviético do poder? Os intelectuais podiam ser comprados ou
intimidados e os militares estavam firmemente controlados pelas forças
ocupantes soviéticas. Só os protestos das massas populares constituíam uma
ameaça significativa para os regimes comunistas, porque podiam arruinar
gravemente as credenciais do Estado «camponês e operário». Todavia, nos
seus primeiros anos as democracias populares não eram de forma alguma
sempre impopulares junto dos proletários que diziam representar. Pelo
contrário, a destruição da classe média e a expulsão das minorias étnicas
abriram perspectivas de ascensão aos camponeses e aos trabalhadores
industriais, bem como aos seus filhos.
As oportunidades eram abundantes, sobretudo nos degraus mais baixos da
escada social e para empregos governamentais: havia empregos para
preencher, apartamentos de renda subsidiada para ocupar e lugares nas
escolas reservados para os filhos dos trabalhadores e fechados para os filhos
da «burguesia». A competência importava menos do que a confiança política,
o emprego estava garantido e a florescente burocracia comunista procurava
homens e mulheres que lhe fossem fiéis para ocupar empregos que iam do
organizador de bairro ao interrogador da polícia(8). A maior parte da
população da Europa de Leste sovietizada, sobretudo nas regiões mais
atrasadas, aceitou o seu destino sem protestos, pelo menos nestes anos.
As duas excepções mais conhecidas a esta generalização ocorreram nos
pontos mais urbanizados e desenvolvidos de todo o bloco: na Boémia
industrial e nas ruas da zona da cidade de Berlim ocupada pelos Soviéticos. A
«reforma monetária» de 31 de Maio de 1953 na Checoslováquia,
aparentemente um «golpe esmagador contra os antigos capitalistas», teve por
efeito a diminuição dos salários em 12% (devido à subida dos preços que se
seguiu). Associada à contínua deterioração das condições de trabalho do que
fora antes uma economia industrial desenvolvida baseada em trabalho
qualificado bem remunerado, a reforma espoletou manifestações em massa de
20 000 trabalhadores na fábrica da Skoda em Plzen, um centro industrial
importante da Boémia Ocidental, seguidas de uma marcha para a Câmara
Municipal, em 1 de Junho de 1953, de milhares de trabalhadores
transportando cartazes de Benes e do presidente anterior à guerra, Tomas
Masaryk.
As manifestações de Plzen, confinadas a uma cidade de província,
extinguiram-se. Porém, alguns dias mais tarde, foi desencadeado um protesto
muito maior, a algumas dezenas de quilómetros para norte, na República
Democrática Alemã, devido a grandes aumentos (não pagos) das normas
oficiais de trabalho. Foram impostos por um regime impopular, já muito mais
rígido (e esta não seria a última vez) do que o dos seus senhores soviéticos de
Moscovo e que ignorara o conselho dado à liderança comunista alemã oriental
de aceitar reformas e compromissos para estancar a hemorragia de
trabalhadores qualificados para o Ocidente. Em 16 de Junho, cerca de 400
000 trabalhadores entraram em greve em toda a Alemanha de Leste, com as
maiores manifestações a terem lugar na própria cidade de Berlim.
Tal como sucedera com os manifestantes de Plzen, os trabalhadores
alemães foram facilmente dominados pela Volkspolizei, mas não sem custos.
Cerca de 300 foram mortos, depois de chamados os tanques do Exército
Vermelho, e muitos milhares foram detidos, dentre os quais 1400 foram
condenados a prolongadas penas de prisão. Foram fuzilados 200
«cabecilhas». A insurreição de Berlim foi ocasião para a única obra literária
de Berthold Brecht abertamente divergente em relação ao regime comunista
com que se comprometera com alguma ambiguidade:
A seguir à insurreição de 17 de Junho
o secretário da Liga dos Escritores
distribuiu folhetos na Avenida Estaline
em que se podia ler que o povo
perdera a confiança do governo
e que só a poderia recuperar com redobrados esforços.
Não seria mais simples, nestas circunstâncias,
que o governo dissolvesse o povo
e elegesse outro?
Os trabalhadores enfurecidos e hostis da industrializada margem ocidental
do império soviético eram um pequeno aviso ao comunismo, mas dificilmente
representariam uma ameaça ao poder soviético e não foi coincidência que
tanto a insurreição de Plzen como a de Berlim tivessem lugar após a morte de
Estaline. No tempo de Estaline o verdadeiro desafio ameaçador vinha, ao que
parecia, do interior do próprio aparelho comunista. Esta era a real implicação
do cisma jugoslavo e foi como resposta directa ao «titismo» que Estaline
regressou a métodos mais antigos, embora modernizados e adaptados às
circunstâncias. De 1948 a 1954, o mundo comunista sofreu uma segunda
ronda de prisões, purgas e, sobretudo, «julgamento encenados» de natureza
política.
O precedente mais importante das purgas e dos julgamentos destes anos
foi, é claro, o terror soviético dos anos 30. Também então as vítimas
principais foram os próprios comunistas, com o objectivo de purgar o partido
de «traidores» e de outros desafios à política e à pessoa do secretário-geral.
Nos anos 30, o suposto chefe da insurreição era Leon Trotsky, tal como Tito
um genuíno herói comunista insubmisso a Estaline e com pontos de vista
próprios sobre a estratégia e a prática comunistas. O terror dos anos 30
assegurou e evidenciou o poder e a autoridade sem entraves de Estaline, e as
purgas do pós-guerra tiveram objectivos semelhantes na Europa de Leste.
Porém, enquanto os julgamentos de Moscovo dos anos 30, sobretudo o
julgamento de Nikolai Bukarine, em 1938, foram inovações teatrais sui
generis cujo aspecto chocante residiu no espectáculo sinistro de a revolução
não apenas devorar os seus filhos, mas os seus próprios arquitectos, os
julgamentos e as purgas das décadas posteriores eram cópias despudoradas,
obedecendo às práticas soviéticas do passado como se os regimes satélites
nem sequer merecessem um esforço de autenticidade. Afinal, eram apenas a
ponta final de uma longa lista de purgas judiciais.
Para além dos julgamentos por traição no pós-guerra e dos julgamentos
políticos de políticos anticomunistas, os regimes da Europa de Leste usaram
os tribunais para punir e encerrar as igrejas em toda a parte, excepto a
Polónia, onde o confronto aberto com a Igreja Católica acarretaria demasiados
riscos. Em 1949, os líderes da Igreja Protestante Unificada da Bulgária foram
julgados por conspiração para «restaurar o capitalismo». No ano anterior, a
Igreja Uniata da Roménia foi forçada pelo novo regime comunista a fundir-se
com a mais moldável Igreja Ortodoxa Romena, mantendo-se uma longa
tradição de perseguições que remontava aos czares russos do século XVIII.
Alguns padres católicos foram julgados em Praga, em duas ocasiões distintas,
sob a acusação de espionagem a favor do Vaticano (e dos EUA), indo as
penas dos dez anos de cadeia à prisão perpétua. No início dos anos 50, havia
8000 monges e freiras nas prisões checoslovacas. Monsenhor Grosz, que em
Janeiro de 1949 sucedeu como chefe da Igreja Católica da Hungria ao cardeal
Mindszenty, que estava preso, foi considerado culpado de trabalhar a favor do
regresso dos Habsburgo e de se conluiar com os titistas para armar os
fascistas húngaros.
Os julgamentos dos próprios comunistas eram de dois tipos. O primeiro,
que começou em 1948 e durou até 1950, foi uma resposta imediata à ruptura
Tito-Estaline. Na Albânia, o ministro comunista do Interior Koci Xoxe foi
julgado em Maio-Junho de 1949, declarado culpado e enforcado no mês
seguinte. Acusado de titismo, Xoxe distinguia-se por ter sido realmente um
apoiante de Tito e dos seus planos para os Balcãs, num período em que estes
tinham o acordo de Moscovo. Neste aspecto, o seu caso foi algo invulgar, tal
como foi o facto de ter sido conduzido em segredo.
A este julgamento na Albânia seguiu-se, na Bulgária, a detenção,
julgamento e execução de Traicho Kostov, um dos fundadores do Partido
Comunista Búlgaro. Se algo pode ser dito de Kostov, estropiado pelo que
sofreu às mãos dos governantes búlgaros entre as duas guerras(9), é ter sido
um conhecido opositor de Tito e crítico dos planos deste para integrar a
Bulgária numa federação balcânica (Tito detestava Kostov e o sentimento era
mútuo). De qualquer forma, Estaline não confiava nele – Kostov criticara
imprudentemente um acordo económico sovieto-búlgaro desfavorável ao seu
país – e era um candidato ideal a um julgamento que pretendia exemplificar
os crimes do nacionalismo.
Em Dezembro de 1949, ele e o seu «grupo» («O Grupo Traiçoeiro de
Espionagem e Sabotagem de Traicho Kostov») foram acusados de
colaboração com os fascistas búlgaros antes da guerra, espionagem a favor
dos serviços secretos britânicos e conspiração com Tito. Após ceder sob
tortura continuada e assinar uma «confissão» de culpa, Kostov recusou dizer
o texto pré-acordado quando apareceu na sala do tribunal, retractou-se
publicamente da declaração que fizera aos interrogadores e foi levado do
tribunal protestando a sua inocência. Dois dias mais tarde, em 16 de
Dezembro de 1949, Kostov foi enforcado e os seus «co-conspiradores»
sentenciados a longas penas de prisão, de acordo com as instruções recebidas
de Estaline e do seu chefe de polícia Lavrenti Béria antes do início do
julgamento. O caso de Kostov foi singular, por ter sido o único comunista da
Europa de Leste que se retractou da sua confissão e protestou a sua inocência
num julgamento público. Este facto provocou alguns pequenos embaraços
internacionais ao regime (o julgamento de Kostov foi transmitido pela rádio e
objecto de muitas reportagens no Ocidente), tendo sido dadas instruções para
que tal nunca mais pudesse acontecer. E não aconteceu.
Pouco antes da execução de Kostov, os comunistas húngaros levaram à
cena um julgamento encenado do seu suposto «Tito», o ministro comunista do
Interior Laszlo Rajk. O guião era literalmente idêntico ao da Bulgária, só os
nomes eram diferentes. Acusações, pormenores, confissões, era tudo idêntico,
o que não é nada surpreendente, uma vez que ambos os julgamentos foram
minutados em Moscovo. O próprio Rajk não era inocente. Como ministro
comunista do Interior enviara muitos outros para a prisão ou pior. Porém,
neste caso, o libelo teve o cuidado especial de acentuar o seu «trabalho
traiçoeiro» como «agente pago de uma potência estrangeira». A ocupação
soviética era particularmente impopular na Hungria, e Moscovo não se queria
arriscar a fazer de Rajk um herói do «comunismo nacional».
De facto, não existia esse perigo. Rajk leu as suas deixas como devia,
reconheceu a sua actividade como agente anglo-americano que manobrava
para derrubar o comunismo na Hungria, informou o tribunal de que o seu
verdadeiro nome era Reich (pelo que a sua origem era germânica, e não
húngara) e que fora recrutado em 1946 pelos serviços secretos jugoslavos,
que o ameaçaram de divulgar a sua colaboração durante a guerra com os
húngaros nazis «se não satisfizesse todos os seus desejos». Os procedimentos
do tribunal que julgou Rajk e os seus colegas «conspiradores», incluindo a
própria confissão de Rajk, em 16 de Setembro de 1949, foram transmitidos
em directo pela Rádio Budapeste. O veredicto predeterminado foi anunciado a
24 de Setembro. Rajk e dois outros foram condenados à morte. As execuções,
por enforcamento, tiveram lugar em 15 de Outubro.
Os julgamentos públicos de Rajk e de Kostov foram apenas a ponta do
icebergue dos julgamentos e dos tribunais secretos desencadeados pela caça
aos titistas nos partidos e nos governos comunistas da região. Os mais
afectados foram os pertencentes à «franja sul» dos Estados comunistas que
ficavam mais perto da Jugoslávia: a Bulgária, a Roménia, a Albânia e a
Hungria. Só nesta última, em relação à qual o receio de Estaline de um
despertar do titismo era um pouco mais credível – dada a proximidade da
Jugoslávia, a importante minoria húngara da região de Voivodina, na Sérvia, e
o grande alinhamento das políticas externas húngara e jugoslava em 1947 –,
cerca de 2000 quadros comunistas foram sumariamente executados, mais 150
000 tiveram penas de prisão e aproximadamente 350 000 foram expulsos do
partido (o que significava muitas vezes perder o emprego, o apartamento e o
direito a uma educação universitária).
As perseguições na Polónia e na Alemanha de Leste, embora tivessem
levado à prisão de milhares de homens e mulheres, não deram ocasião a
julgamentos encenados significativos. Houve na Polónia um candidato ao
papel de Tito-Kostov-Rajk: Wladislaw Gomulka, secretário-geral do Partido
Operário Unificado Polaco e vice-presidente do conselho de ministros polaco.
Gomulka criticara abertamente os planos de colectivização da terra na Polónia
e foi publicamente associado a referências a uma «via polaca» para o
socialismo. Na verdade, fora criticado por isso por estalinistas leais do partido
polaco e em Agosto de 1948 foi substituído como secretário-geral por
Boleslaw Bierut. Cinco meses mais tarde, demitiu-se do seu lugar de ministro,
em Novembro de 1949 foi expulso do partido e, em Dezembro, Bierut acusou
publicamente Gomulka e o seu «grupo» de nacionalismo e titismo.
Reduzido ao posto de administrador da segurança social em Varsóvia,
Gomulka foi finalmente preso em Julho de 1951 e apenas libertado em
Setembro de 1954. Porém, não foi molestado e não houve julgamento de
titismo em Varsóvia. Houve julgamentos na Polónia; um deles, em que um
grupo de oficiais foi acusado de conspiração contra o Estado, começou no dia
da prisão de Gomulka, em 1951. Aliás, com um esquema concebido pelos
serviços secretos de Moscovo, Gomulka haveria de ser relacionado com Rajk,
Tito e outros, por intermédio de uma complexa rede de contactos reais ou
imaginários que tinha por centro Noel Field, um americano que dirigia a
actividade de auxílio da Igreja Unitarista na Europa do pós-guerra. Com base
em Budapeste, a rede imaginária de grandes espiões e titistas fora já invocada
nas acusações contra Rajk e outros, e haveria de ser a prova principal contra
Gomulka.
Todavia, os Polacos conseguiram resistir à pressão soviética para fazer
uma caça às bruxas pública e em larga escala, à semelhança da Hungria. A
dizimação do Partido Comunista Polaco no exílio às mãos de Estaline, em
Moscovo, dez anos antes, deu a Bierut uma ideia do seu provável destino se a
Polónia também entrasse numa espiral de detenções, purgas e julgamentos.
Os Polacos também tiveram sorte com o desenvolvimento temporal dos
acontecimentos: dos atrasos na preparação do dossier de Gomulka – recusou
ceder nos interrogatórios e assinar uma confissão fabricada – acabou por
resultar que a morte de Estaline e o assassinato de Béria, seu homem de
confiança, tivessem ocorrido antes de um julgamento polaco poder ser
montado. Por último, alguns líderes soviéticos pensaram que, nestes primeiros
anos, era certamente imprudente desfazer a liderança comunista polaca à vista
de todos.
Contudo, estas cautelas não tinham razão de ser na Checoslováquia, sendo
encenado em Praga o maior de todos os julgamentos, em Novembro de 1952.
Fora planeado um importante julgamento encenado checo para 1950,
imediatamente a seguir às purgas de Rajk e de Kostov. Mas quando, por fim,
estava montado, a ênfase mudara. Tito era ainda o inimigo e as acusações de
espionagem a favor do Ocidente ainda figuravam de forma proeminente nos
libelos, mas dos 14 réus do «Julgamento da Liderança do Centro de
Conspiração Contra o Estado», 11 eram judeus. Na própria primeira página
do libelo acusatório era tornado muitíssimo claro que isto não era um acaso.
Os «trotskistas-titistas nacionalistas-burgueses, traidores e inimigos do povo
checoslovaco,» eram também, e sobretudo, «sionistas».
Estaline era, e sempre fora, um anti-semita, mas até à Segunda Guerra
Mundial a sua antipatia pelos judeus estava tão confortavelmente encaixada
na destruição de outras categorias de pessoas – velhos bolcheviques,
trotskistas, desviacionistas de esquerda e de direita, intelectuais, burgueses,
etc. – que parecia que a sua origem judaica quase não tinha relação com o seu
destino. Aliás, era um dogma que o comunismo nada tinha a ver com
preconceitos raciais ou religiosos, e depois da causa soviética ficar associada
ao slogan do «antifascismo», como aconteceu entre 1935 e Agosto de 1939 e
novamente depois de Junho de 1941, os judeus da Europa não tinham maior
amigo do que o próprio Estaline.
Esta última afirmação é apenas parcialmente irónica. Os partidos
comunistas europeus, sobretudo os da Europa Central e de Leste, contavam
entre os seus membros um número significativo de judeus. Os judeus da
Polónia, da Checoslováquia, da Hungria e da Roménia, no período que
mediou entre as duas guerras, eram uma minoria oprimida e odiada. Os
judeus jovens e seculares tinham poucas opções políticas: o sionismo, o
bundismo(10), a social-democracia (onde fosse legal) e o comunismo. O
comunismo, sendo o mais firmemente antinacionalista e ambicioso de todos,
era particularmente apelativo. Quaisquer que fossem os seus defeitos
transitórios, a União Soviética proporcionava uma alternativa revolucionária
numa época em que a Europa Central e de Leste pareciam ter de escolher
entre um passado autoritário e um futuro fascista.
A atracção da URSS tornou-se ainda maior com a experiência da guerra.
Os judeus que se encontravam na Polónia ocupada pelos Soviéticos, depois de
a Alemanha ter atacado em 1939, foram muitas vezes deportados para leste e
muitos morreram de doença e de privações. Mas não foram sistematicamente
exterminados. O avanço do Exército Vermelho pela Ucrânia e pela
Bielorrússia em direcção aos Estados bálticos, à Roménia, à Hungria, à
Checoslováquia, à Polónia e à Alemanha, salvou os judeus que restavam
nestas terras. Foi o Exército Vermelho que libertou Auschwitz. Certamente
que Estaline não lutou na Segunda Guerra Mundial por causa dos judeus, mas
se Hitler tivesse ganho – se os Alemães e os seus colaboradores tivessem
mantido o controlo dos territórios que conquistaram até à batalha de
Estalinegrado – milhões de outros judeus teriam sido exterminados.
Quando os partidos comunistas tomaram o poder na Europa de Leste,
muitos dos seus quadros dirigentes tinham origem judaica. Isto era
particularmente marcante ao nível imediatamente abaixo do topo: os chefes
das polícias comunistas da Polónia e da Hungria eram judeus e o mesmo se
passava com os decisores da política económica, secretários administrativos,
jornalistas proeminentes e teóricos do partido. Na Hungria, o líder do partido
(Matyas Rakosi) era judeu, na Roménia, na Checoslováquia e na Polónia o
líder do partido não era judeu, mas o principal grupo dirigente era constituído
por judeus. Em todo o bloco soviético, os judeus comunistas deviam tudo a
Estaline. Não foram muito bem-vindos, nem como comunistas, nem como
judeus, nos países a que regressaram, muitas vezes depois de um longo exílio.
A experiência da guerra e da ocupação tornou as populações locais ainda mais
ressentidas do que antes em relação aos judeus («Porque regressaram?»,
perguntou um vizinho a Heda Margolius depois desta ter escapado à marcha
da morte de Auschwitz e de ter voltado para Praga precisamente no fim de
guerra)(11). Podia confiar-se nos judeus comunistas da Europa de Leste –
talvez mais do que em quaisquer outros – para executar as ordens de Estaline.
Nos primeiros anos do pós-guerra, Estaline não revelou hostilidade para
com os seus subordinados judeus. Nas Nações Unidas, a União Soviética era
um apoiante entusiasta do projecto sionista que favorecia a criação de um
Estado judaico no Médio Oriente como obstáculo às ambições imperiais
britânicas. Na União Soviética, Estaline encarou favoravelmente o trabalho do
Comité Antifascista Judaico, formado durante a guerra para mobilizar a
opinião dos judeus da URSS e, no estrangeiro (sobretudo), para apoiar a luta
de Estaline contra os nazis. Os judeus soviéticos, tal como muitos outros sob
o domínio de Moscovo, supuseram ingenuamente que a atitude mais
ecuménica dos anos da guerra, quando Estaline procurou e aceitou ajuda de
qualquer lado de onde viesse, continuaria nos tempos mais fáceis após a
vitória.
De facto, foi o contrário que aconteceu. Antes mesmo da guerra terminar,
Estaline, como vimos, estava a mandar para o exílio, para leste, nações
inteiras e alimentava sem dúvida planos semelhantes para os judeus. O que
sucedia na Europa Central repetia-se nos territórios da União Soviética:
mesmo que os judeus tivessem perdido mais do que quaisquer outros, era fácil
e habitual acusar esses mesmos judeus dos sofrimentos de todos. A invocação
da bandeira do nacionalismo russo durante a guerra levou a retórica soviética
a aproximar-se bastante da linguagem exclusivista dos anti-semitas russos dos
velhos tempos. Isto não prejudicou certamente o regime. Para o próprio
Estaline representou um regresso a um terreno familiar, com os seus instintos
anti-semitas avivados por ter visto o êxito da exploração do anti-semitismo
popular por parte de Hitler.
Por várias razões, minimizar o carácter singularmente racista da
brutalidade nazi serviu sempre os propósitos soviéticos: o massacre de judeus
ucranianos em Babi Yar foi oficialmente comemorado como o «assassinato de
pacíficos cidadãos soviéticos», tal como o memorial do pós-guerra em
Auschwitz se limitou a referências genéricas a «vítimas do fascismo». O
racismo não tinha lugar no léxico marxista. Os judeus mortos foram
postumamente considerados pertencentes às mesmas comunidades locais que
tanto os detestaram quando estavam vivos. Porém, agora as supostas
qualidades cosmopolitas dos judeus – as ligações internacionais de que
Estaline pensou beneficiar nos meses negros que se seguiram ao ataque
germânico – começaram uma vez mais a ser dirigidas contra eles, à medida
que se estabeleciam as linhas de batalha da Guerra Fria e os contactos e as
comunicações internacionais do tempo da guerra se tornaram aos olhos de
Estaline, retrospectivamente, matéria de responsabilização.
As primeiras vítimas foram os líderes judeus do próprio Comité
Antifascista do tempo da guerra. Solomon Mikhoels, o primeiro dinamizador
e figura importante do teatro yiddish da Rússia, foi morto em 12 de Janeiro de
1948. A chegada a Moscovo da embaixadora de Israel Golda Meir, em 11 de
Setembro de 1948, foi uma ocasião para explosões espontâneas de entusiasmo
judaico, com manifestações de rua nos dias de Rosh Hashana e Yom Kippur e
cantando-se «O Próximo Ano em Jerusalém» à porta da legação israelita. Em
qualquer altura, isto seria uma provocação inaceitável para Estaline. Para
além disso, estava a perder rapidamente o seu entusiasmo pelo recém-criado
Estado de Israel. Independentemente das inclinações vagamente socialistas
manifestadas por este, era evidente que não tinha intenção de se tornar num
aliado soviético na região. Pior ainda, num momento delicado, o Estado
judaico estava a demonstrar atitudes pró-americanas alarmantes. O bloqueio
de Berlim começara e a ruptura soviética com Tito entrava numa fase aguda.
Em 21 de Setembro de 1948, o Pravda publicou um artigo de Ilya
Ehrenburg que evidenciava claramente a mudança de rumo do sionismo. A
partir de Janeiro de 1949 começaram a aparecer no Pravda artigos que
atacavam «os cosmopolitas sem pátria», «os grupos não patrióticos de críticos
teatrais», «os cosmopolitas sem raízes», «as pessoas sem identidade» e «os
vagabundos sem passaporte». As escolas e os teatros yiddish foram
encerrados, os jornais yiddish foram banidos e as livrarias fechadas. O próprio
Comité Antifascista Judaico fora extinto em 20 de Novembro de 1948. Os
líderes, artistas, escritores e funcionários públicos que restavam foram presos
no mês seguinte e mantidos na prisão durante três anos. Pressionados sob
tortura a confessar uma conspiração «anti-soviética», estavam nitidamente a
ser preparados para um julgamento encenado.
O coronel das forças de segurança que conduziu a investigação, Vladimir
Komarov, procurou multiplicar as acusações para que englobassem uma
ampla conspiração judaica contra a URSS dirigida a partir de Washington e
Tel Aviv. Como disse a Solomon Lozovsky, um dos prisioneiros: «Os judeus
são pessoas baixas, sujas, todos os judeus são uns porcos bastardos, toda a
oposição ao partido vem dos judeus, os judeus de toda a União Soviética
estão a conduzir uma conspiração secreta anti-soviética. Os judeus querem
aniquilar todos os Russos.»(12) Contudo, um anti-semitismo tão declarado
pode ter sido embaraçoso até para Estaline. No fim, os 15 réus (todos judeus)
foram julgados secretamente no Verão de 1952 por um tribunal militar. Só um
não foi executado. A única sobrevivente, Lina Shtern, foi condenada a dez
anos de prisão.
Entretanto a onda anti-semita estava a ganhar força nos Estados-satélites.
Na Roménia, onde uma parte substancial da população judaica sobrevivera à
guerra, foi lançada no Outono de 1948 uma campanha anti-sionista, mantida
com graus de intensidade variáveis nos seis anos seguintes. Todavia, a
dimensão da comunidade judaica romena e os seus laços com os Estados
Unidos impediram que lhe fossem dirigidos ataques directos. Na verdade, os
Romenos equacionaram durante algum tempo deixar sair os seus judeus. A
partir da Primavera de 1950 foram autorizados pedidos de vistos, autorizações
que só terminaram em Abril de 1952, tendo saído 90 000 judeus romenos só
para Israel.
Os planos para um julgamento encenado centraram-se no líder comunista
romeno Lucretius Patrascanu (que não era judeu). O facto de Patrascanu ter
publicamente manifestado dúvidas acerca da colectivização rural, fez dele um
candidato natural a um «julgamento à Rajk» na Roménia, sob a acusação de
prótitismo. Foi preso em Abril de 1948. No entanto, quando os seus
interrogadores estavam prontos a levá-lo a tribunal os objectivos mudaram e o
caso de Patrascanu associou-se ao de Ana Pauker. Pauker era judia. Filha de
um shochet (açougueiro ritual) judeu da Moldávia, ela foi a primeira ministra
judia da história da Roménia (e a primeira mulher ministro dos Negócios
Estrangeiros em todo o mundo). Foi também uma famosa defensora da linha
dura em matéria doutrinal e política, o que fazia dela um alvo exemplar numa
liderança romena que procurava captar as boas graças da população do país.
A morte de Estaline fez abortar os planos do líder comunista romeno
Gheorghe Gheorghiu-Dej para encenar o julgamento de Pauker e de outros.
Em vez disso, nos anos de 1953 e 1954 o partido romeno realizou uma série
de julgamentos secretos de pessoas sem qualquer importância, acusadas de
espionagem sionista a soldo de «agentes imperiais». As vítimas, que iam
desde membros genuínos dos Sionistas Revisionistas (de direita) aos judeus
comunistas que eram apelidados de sionistas, foram acusadas de relações
ilegais com Israel e de colaboração com os nazis durante a guerra. Tiveram
sentenças que variaram entre os dez anos de prisão e a prisão perpétua. Por
fim, o próprio Patrascanu foi também julgado, em Abril de 1954, depois de
definhar na prisão durante seis anos. Acusado de espiar a favor dos
Britânicos, foi considerado culpado e executado.
Pauker teve mais sorte: protegida por Moscovo (primeiro por Estaline e
depois por Molotov) nunca foi directamente alvo da acusação de «sionista» e
sobreviveu à sua expulsão do partido, desaparecendo na obscuridade até à sua
morte em 1960. O Partido Comunista Romeno, pequeno e mais isolado do
que qualquer outro dos partidos da Europa de Leste, esteve sempre dilacerado
por lutas pessoais. A derrota do «direitista» Patrascanu e da «esquerdista»
Pauker foi sobretudo uma vitória da facção do ditador traiçoeiramente eficaz
Gheorghiu-Dej, cujo estilo de governo (tal como o do seu sucessor Nicolae
Ceaucescu) fazia morbidamente recordar o antigo poder de estilo autoritário
dos Balcãs.
Os judeus foram saneados dos lugares do partido e governamentais
romenos durante estes anos, tal como o foram na Alemanha de Leste e na
Polónia, dois outros países em que uma facção do partido podia mobilizar o
sentimento popular antijudaico contra os «cosmopolitas» do próprio partido.
A Alemanha de Leste era um terreno particularmente fértil. Em Janeiro de
1953, à medida que a «Conspiração dos Médicos» se desenrolava em
Moscovo, judeus proeminentes da Alemanha de Leste e judeus comunistas
fugiram para o Ocidente. Um membro do comité central da Alemanha de
Leste, Hans Jendretsky, exigiu que os judeus – «inimigos do Estado» –
fossem afastados da vida pública. Por sorte, por considerações de
oportunidade ou por prudência, os três Estados evitaram um julgamento anti-
semita totalmente encenado do tipo do que foi planeado em Moscovo e
realizado em Praga.
O Julgamento Slansky, como ficou conhecido, é o clássico julgamento
encenado. Foi meticulosamente preparado durante três anos. O primeiro a ser
«investigado» foi um grupo de líderes eslovacos, nomeadamente o ministro
dos Negócios Estrangeiros Vlado Clementis, detido em 1950 e acusado de
«nacionalismo burguês». A eles juntaram-se vários comunistas checos de
nível intermédio, acusados, com os Eslovacos, de terem tomado parte numa
conspiração titista-trotskista, numa linha semelhante ao caso de Rajk. Mas
nenhum dos implicados e presos em 1950 e 1951 era suficientemente
importante para servir de figura de proa e chefe de conspiração para o grande
julgamento público que Estaline exigia.
Na Primavera de 1951, o chefe da polícia soviética, Béria, deu instruções
aos Checos para mudarem a ênfase das suas investigações, de conspiração
titista para sionista. A partir de então, todo o caso ficou nas mãos dos serviços
secretos soviéticos. O coronel Komarov e outro oficial foram enviados a
Praga para assumir a investigação. A polícia de segurança checa e a liderança
comunista recebiam ordens deles. A necessidade de uma vítima proeminente
levou os Soviéticos a dirigir a sua atenção para a segunda figura da hierarquia
checa depois do presidente Klement Gottwald, o secretário-geral do partido
Rudolf Slansky. Ao contrário de Gottwald, que era uma útil figura de proa e
um fiel e adaptável seguidor do partido, Slansky, embora um eminente
estalinista (como Rajk fora), era judeu.
De início, Gottwald teve relutância em que Slansky fosse preso. Nos três
anos anteriores, ambos trabalharam em estreita colaboração no saneamento
dos seus colegas e se o secretário-geral estava implicado, o próprio Gottwald
podia ser o próximo. Mas os Soviéticos insistiram, apresentando provas falsas
que ligavam Slansky à CIA, e Gottwald cedeu. Em 23 de Novembro de 1951,
Slansky foi preso. Nos dias seguintes, judeus comunistas proeminentes que
estavam ainda em liberdade foram também presos. Os serviços de segurança
dedicaram-se então à tarefa de extrair confissões e «provas» dos seus muitos
prisioneiros para arquitectar um caso importante contra Slansky e os seus
colaboradores. Devido a alguma resistência das suas vítimas (nomeadamente
do próprio antigo secretário-geral), mesmo enfrentando torturas bárbaras, esta
tarefa tomou-lhes quase um ano.
Finalmente, em Setembro de 1952, o libelo ficou pronto. O texto das
confissões, o libelo, as sentenças predeterminadas e a transcrição do
julgamento foram então enviados para Moscovo para aprovação pessoal de
Estaline. De novo em Praga, foi feito e gravado um «ensaio geral» de todo o
julgamento. Destinava-se a fornecer um texto alternativo para «transmitir em
directo», no caso improvável de um dos réus se retractar da sua confissão na
sessão pública do tribunal, como fizera Kostov. Não foi necessário.
O julgamento durou de 20 a 27 de Novembro de 1952. Foi conduzido
segundo precedentes bem estruturados: os réus foram acusados de terem feito
e dito coisas que não fizeram nem disseram (com base em confissões
extraídas à força a outras testemunhas, incluindo os outros réus), foram
censurados por coisas que fizeram, mas a que foram dados outros significados
(assim, três dos homens foram acusados de ter favorecido Israel em negócios
quando esta prática fazia ainda parte da política soviética) e os procuradores
de justiça acusaram Clementis de se ter encontrado com Tito («o assassino-
do-povo-jugoslavo e lacaio-do-imperialismo Tito») numa altura em que
Clementis era vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da Checoslováquia e
Tito estava ainda nas boas graças dos Soviéticos.
Duas características diferenciaram este julgamento de todos os que o
precederam. Os promotores de justiça e as testemunhas salientaram
reiteradamente que a maioria dos acusados era de origem judaica: «o
cosmopolita Rudolf Margolius», «Slansky […] a grande esperança de todos
os judeus do Partido Comunista», «representantes do sionismo internacional»,
etc. A «origem judaica» (por vezes a «origem sionista») serviu como
presunção de culpa de intenções anticomunistas e antichecas. A linguagem
utilizada pelos procuradores de justiça, transmitida pela rádio checoslovaca,
fazia lembrar, e chegava a aperfeiçoar, a vituperação rude do procurador
Vyshinsky nos julgamentos de Moscovo: «traidores repulsivos», «cães»,
«lobos», «ferozes sucessores de Hitler» e outros epítetos do mesmo género.
Tudo isto foi também retomado pela imprensa checa.
No quarto dia de julgamento, o jornal comunista de Praga Rudé Právo
apresentava um editorial que dizia o seguinte: «Trememos de indignação e
repulsa à vista destes seres frios e insensíveis. O judas Slansky», continuava o
jornal, apostava nestes «elementos estranhos, nesta gentalha com o seu
passado sombrio». Nenhum checo, explicava o autor do editorial, poderia ter
cometido tais crimes: «apenas sionistas cínicos, sem pátria […] cosmopolitas
espertos que se venderam ao dólar. Foram orientados nesta actividade
criminosa pelo sionismo, pelo nacionalismo judaico burguês, pelo
chauvinismo racista».
Foram sentenciados à morte e executados 11 dos 14 acusados, três foram
condenados a prisão perpétua. Dirigindo-se à conferência nacional do Partido
Comunista Checoslovaco, um mês depois, Gottwald teve o seguinte a dizer
dos seus antigos camaradas: «Normalmente, banqueiros, industriais, antigos
kulaks não entram no nosso partido. Mas tinham origem judaica e eram de
orientação sionista e foi prestada pouca atenção entre nós à sua origem de
classe. Chegámos a este estado de coisas por causa da nossa aversão pelo
anti-semitismo e do nosso respeito pelo sofrimento dos judeus.»
O julgamento de Slansky foi uma farsa criminal, um assassinato judicial
realizado sob a forma de teatro público(13). Tal como o julgamento do Comité
Antifascista, em Moscovo, que os precedeu, os processos de Praga tinham a
intenção de servir de prelúdio à prisão dos médicos soviéticos judeus, cuja
«conspiração» foi anunciada pelo Pravda, em 13 de Janeiro de 1953. Estes
médicos judeus – «um gang terrorista sionista» acusado de ter assassinado
Andrei Zdanov, conspirado com a «burguesia anglo-americana» e promovido
o «nacionalismo judaico» em conivência com o Comité Conjunto de
Distribuição Americano-Judaico (bem como com o falecido «judeu
nacionalista burguês» Solomon Mikhoels) – iriam a tribunal três meses depois
dos veredictos do julgamento Slansky.
Há indicações de que, por sua vez, este julgamento foi planeado pelo
Kremlin como um preâmbulo e uma desculpa para prisões em massa de
judeus soviéticos e a sua subsequente expulsão para Birobidzan (a «pátria»
atribuída aos judeus no leste) e para a Ásia Central soviética, para onde
muitos judeus polacos foram enviados entre 1939 e 1941. A editora do
MVD(*) imprimiu e preparou a distribuição de um milhão de exemplares de
um panfleto que explicava «Por que Razão Devem os Judeus Ser Deslocados
das Regiões Industriais do País». Mas até Estaline parece ter hesitado (Ilya
Ehrenburg avisou-o do impacto devastador que um julgamento encenado dos
médicos judeus teria na opinião pública ocidental). Em todo o caso, morreu a
5 de Março de 1953, antes de poder tomar uma decisão.
Os preconceitos de Estaline não necessitam de explicação: na Rússia e na
Europa de Leste o anti-semitismo era gratificante em si mesmo. Interessa
mais o objectivo de Estaline em montar toda a sua charada de purgas, libelos,
confissões e julgamentos. Afinal, por que razão necessitou o ditador de
julgamentos? Moscovo tinha condições para eliminar quem desejasse, quem
quer que estivesse no bloco soviético, mediante «procedimentos
administrativos». Os julgamentos podem parecer contraproducentes. Os
testemunhos e as confissões obviamente falsos e a escolha descarada de
determinados indivíduos e categorias sociais dificilmente terão sido
destinados a convencer os observadores estrangeiros da bona fides dos
processos judiciais soviéticos.
Todavia, nos julgamentos encenados do bloco comunista, não era de
justiça que se tratava. Eles eram antes uma forma de pedagogia pública pelo
exemplo, uma venerável instituição comunista (os primeiros julgamentos
deste género realizados na URSS datam de 1928) cujo propósito era ilustrar e
exemplificar as estruturas de autoridade do sistema soviético. Apontavam ao
povo quem estava correcto e quem estava errado, diziam quem era
responsável pelo falhanço das políticas, premiavam a lealdade e a
subserviência e chegavam mesmo a escrever um guião, um vocabulário
aprovado para usar na discussão dos assuntos públicos. Depois de ser preso,
Rudolf Slansky era sempre referido como «o espião Slansky», servindo este
nome ritual como uma forma de exorcismo político(14).
Os julgamentos encenados – ou tribunais, na linguagem do Manual
Soviético de Investigação Criminal, de Vyshinsky (1936) – eram
explicitamente levados a efeito para «mobilização da opinião pública
proletária». Como a «Lei de Organização dos Tribunais» checoslovaca, de
Janeiro de 1953, a sintetizou secamente, a função dos tribunais era «educar os
cidadãos para a dedicação e a lealdade para com a República Checoslovaca,
etc.». Robert Vogeler, um dos réus de um julgamento em Budapeste, em 1948,
observou à época: «A julgar pela forma como os nossos guiões são escritos,
era mais importante estabelecer identidades alegóricas do que provar a nossa
‘culpa’. Cada um de nós, no seu depoimento, era obrigado a ‘desmascarar-se’
em proveito da imprensa e da rádio do Cominform.»
Os acusados eram reduzidos de presumíveis críticos ou opositores
políticos a um bando de conspiradores sem princípios e com propósitos venais
e traiçoeiros. A inépcia do estilo imperial soviético mascara, por vezes, este
objectivo. O que se poderia concluir de uma retórica concebida para mobilizar
a opinião pública da Budapeste metropolitana reiterando os erros dos que se
opuseram à «luta contra os kulaks»? Mas também não se iria pedir ao
«público» que acreditasse no que ouvia. Estava apenas a ser treinado para o
repetir.
Uma das finalidades dos julgamentos públicos era identificar bodes
expiatórios. Se a política económica comunista não estava a ter o sucesso que
fora previamente anunciado, se a política externa soviética ficava bloqueada
ou era obrigada a fazer compromissos, alguém tinha de ser acusado. De outra
forma, como se iriam explicar os passos em falso do Líder infalível? Havia
muitos candidatos: Slansky era muito detestado dentro e fora do Partido
Comunista da Checoslováquia. Rajk fora um ministro do Interior estalinista e
duro. Ora, todos os líderes e ministros aguardavam como vítimas potenciais,
precisamente porque tinham aplicado políticas impopulares que agora se via
que tinham falhado. Tal como os generais derrotados das guerras
revolucionárias francesas eram muitas vezes acusados de traição, também os
ministros comunistas confessaram a sabotagem cometida quando as políticas
que implementaram fracassaram no cumprimento das suas promessas.
A vantagem da confissão, para além do seu uso simbólico como exercício
de transferência de culpa, era confirmar a doutrina comunista. Não havia
desacordos no universo de Estaline, apenas heresias, não havia críticos,
apenas inimigos, não havia erros, apenas crimes. Os julgamentos serviam
tanto para ilustrar as virtudes de Estaline como para identificar os crimes dos
seus inimigos. Também evidenciavam a dimensão da paranóia de Estaline e a
cultura de suspeita que o rodeava. Fazia parte dela uma ansiedade, com
profundas raízes, em relação à inferioridade russa, e mais abrangentemente
«oriental», o receio da influência do Ocidente e a sedução da sua riqueza. No
julgamento dos «Espiões Americanos na Bulgária», realizado em Sófia, em
1950, os réus foram acusados de propagar o ponto de vista «de que as raças
escolhidas vivem apenas no Ocidente, apesar do facto de, geograficamente,
todas terem vindo do Oriente». O libelo prosseguia, descrevendo os acusados
com tendo «um sentimento de desvalorização servil», que os espiões
ocidentais exploraram com êxito.
Por isso, o Ocidente era uma ameaça que tinha de ser repetidamente
exorcizada. Havia de facto espiões ocidentais, é claro. No início dos anos 50,
depois do início da guerra da Coreia, Washington considerou a possibilidade
de desestabilizar a Europa de Leste e os serviços secretos dos Estados Unidos
fizeram algumas tentativas, infrutíferas, de penetrar no bloco soviético,
acreditando, aparentemente, em confissões de comunistas que supostamente
trabalharam para a CIA ou espiaram para os serviços secretos britânicos. Para
além disso, parece que Estaline nos seus últimos anos de vida esperava
verdadeiramente que houvesse uma guerra. Como explicou numa «entrevista»
no Pravda, em Fevereiro de 1951, era inevitável um confronto entre o
capitalismo e o comunismo e, naquele momento, era cada vez mais provável.
De 1947 até 1952, o bloco soviético esteve em permanente pé de guerra: a
produção de armas na Checoslováquia aumentou sete vezes entre 1948 e 1953
e, ao mesmo tempo, foram transferidas mais tropas soviéticas para a RDA e
fizeram-se planos para uma força de bombardeiros estratégicos.
Assim, as detenções, as purgas e os julgamentos eram um alerta público
para a confrontação que se avizinhava, uma justificação para os temores de
guerra soviéticos e uma estratégia (familiar desde as primeiras décadas) para
reduzir o tamanho do partido leninista e o preparar para o combate. A
acusação de 1949, segundo a qual Rajk conspirou com os Estados Unidos e a
Grã-Bretanha para derrubar os comunistas, parecia crível a muitos dos
próprios comunistas e aos seus simpatizantes no Ocidente. Mesmo as
acusações contra Slansky, etc., exageradas sob outros aspectos, baseavam-se
na verdade admitida de que a Checoslováquia tinha muito mais ligações com
o Ocidente do que os outros Estados do bloco. Mas porquê Rajk? Porquê
Slansky? Como eram escolhidos os bodes expiatórios?
Aos olhos de Estaline, todo o comunista que tivesse passado algum tempo
no Ocidente, fora do alcance soviético, devia ser considerado com suspeita,
independentemente do que aí tivesse feito. Os comunistas que estiveram
activos em Espanha durante a guerra civil dos anos 30 – e houve muitos
vindos da Europa de Leste e da Alemanha – foram os primeiros a ficar sob
suspeita. Assim, Laszlo Rajk serviu em Espanha (como comissário político do
«batalhão Rakosi») e o mesmo aconteceu com Otto Sling, um dos co-réus de
Slansky. A seguir à vitória de Franco, muitos dos veteranos espanhóis fugiram
para França, onde acabaram em campos de internamento. A partir daí, um
número significativo deles integrou-se na resistência francesa, onde se
juntaram a comunistas alemães e de outras nacionalidades que se haviam
refugiado em França. Havia desses homens e mulheres em número suficiente
para que o Partido Comunista Francês os tivesse organizado como uma
subsecção da clandestinidade comunista, a Main d’Oeuvre Immigré (MOI).
Comunistas proeminentes do pós-guerra, como Artur London (outro arguido
do julgamento Slansky), estabeleceram muitos contactos com o Ocidente
devido ao seu trabalho no MOI durante a guerra e também isso despertou as
suspeitas de Estaline e foi mais tarde usado contra eles.
O Comité Antifascista Judaico da URSS, do tempo da guerra, recebeu
instruções para estabelecer contactos com o Ocidente e documentar as
atrocidades nazis, actividades que mais tarde constituiriam a base das
acusações de que foram alvo. Comunistas alemães como Paul Merker, que
passou os anos da guerra no México, comunistas eslovacos como o futuro
ministro dos Negócios Estrangeiros Clementis, que trabalhou em Londres,
quem quer que tivesse permanecido na Europa ocupada pelos nazis, todos
eram vulneráveis às acusações de que tinham entrado em contacto com
agentes ocidentais ou trabalhado demasiado intimamente com resistentes
antifascistas. Josef Frank, um comunista checo que sobreviveu à detenção em
Buchenwald, foi acusado no julgamento Slansky de ter feito conhecimentos
suspeitos com «inimigos de classe» durante o tempo em que esteve no campo.
Os únicos comunistas que não eram alvo prima facie das falsidades de
Estaline eram os que tinham passado muito tempo em Moscovo sob a
vigilância do Kremlin. Podia-se ter confiança neles por duas ordens de razões:
por um lado, tendo passado muitos anos à vista das autoridades soviéticas,
tinham poucos ou nenhuns contactos estrangeiros, por outro, se sobreviveram
às purgas dos anos 30 (em que foi eliminada a maior parte das lideranças
exiladas da Polónia, Jugoslávia e de outros partidos comunistas), podia
esperar-se que obedecessem, sem questionar, ao ditador soviético. Os
comunistas «nacionais», por outro lado, homens e mulheres que
permaneceram no solo pátrio, não eram considerados de confiança.
Habitualmente tinham um registo mais heróico na resistência dos seus países
e uma melhor imagem popular do que os seus confrères de Moscovo, porque
estes regressaram por cortesia guerreira do Exército Vermelho. Por outro lado,
tendiam a formar os seus próprios pontos de vista sobre a «via nacional para o
socialismo».
Por estas razões, os comunistas «nacionais» foram quase sempre as
principais vítimas dos julgamentos encenados do pós-guerra. Por exemplo,
Rajk era um comunista «nacional», ao passo que Rakosi e Gerö – os líderes
do partido húngaro que encenaram o seu julgamento – eram «moscovitas»
(embora Gerö também tivesse estado activo em Espanha). Havia pouco mais
que os distinguisse. Na Checoslováquia, os homens que organizaram o
levantamento nacional contra os nazis (incluindo Slansky) eram as vítimas à
mão das suspeitas soviéticas. Estaline não gostou de ter de partilhar os
créditos pela libertação da Checoslováquia. O Kremlin preferia «moscovitas»
confiáveis, que não fossem heróis, destituídos de imaginação e que ele
conhecesse, homens como Klement Gottwald.
Traicho Kostov liderara os guerrilheiros comunistas búlgaros durante a
guerra e até à sua detenção. Depois da guerra, assumiu o segundo lugar da
hierarquia, a seguir a Georgy Dimitrov, recém-regressado de Moscovo, até
que o seu historial do período da guerra foi usado contra si, em 1949. Na
Polónia, Gomulka organizara com Marian Spychalsky a resistência armada
contra os nazis. Depois da guerra, Estaline favoreceu Bierut e outros Polacos
baseados em Moscovo. Spychalsky e Gomulka foram ambos detidos mais
tarde e, como vimos, evitaram por pouco protagonizar o seu próprio
julgamento encenado.
Houve excepções. Na Roménia foi um comunista «nacional», Dej, que
engendrou a queda de outro comunista «nacional», Patrascanu, bem como o
eclipse da impecável moscovita e estalinista Ana Pauker. Até Kostov passou
os anos 30 em Moscovo na secretária dedicada aos Balcãs do Comintern. Foi
também um crítico bem comprovado de Tito (embora pelas suas próprias
razões: Kostov via em Tito o herdeiro das ambições territoriais da Sérvia à
custa da Bulgária). Longe de o ter salvo, contudo, isso apenas agravou o seu
crime – Estaline não estava interessado em acordos, nem sequer em
consentimentos, apenas na obediência fiel.
Por fim, havia um elemento considerável de ajuste de contas pessoais e de
instrumentalismo cínico na escolha das vítimas dos julgamentos e das
acusações feitas contra eles. Como Karol Bacilek explicou na conferência
nacional do Partido Comunista Checo, em 17 de Dezembro de 1952: «A
questão de saber quem é culpado e quem é inocente será decidida, em última
instância, pelo partido com a ajuda dos órgãos de segurança nacional.» Em
alguns casos, fabricaram casos contra pessoas a partir de coincidências ou de
fantasias; em outros, afirmaram exactamente o contrário do que sabiam que se
tinha passado. Por exemplo, dois dos arguidos do julgamento Slansky foram
acusados de sobrefacturar Moscovo no fornecimento de produtos checos.
Habitualmente, os produtos feitos nos países satélites eram deliberadamente
avaliados a preços mais baixos em benefício dos Soviéticos. Apenas Moscovo
podia autorizar excepções. A «sobrefacturação» no caso checo, contudo, era
uma prática estabelecida pelos Soviéticos, como os procuradores de justiça
bem sabiam: era uma maneira de canalizar dinheiro através de Praga em
direcção ao Ocidente, para ser utilizado em operações dos serviços secretos.
Igualmente cínica – e fazendo parte de uma campanha de aviltamento
pessoal – era a acusação contra Ana Pauker, que foi simultaneamente acusada
de direitista e de «desviacionismo» esquerdista: em primeiro lugar, fora
«crítica» da colectivização rural, depois obrigou os camponeses a colectivizar
contra a sua vontade. Rajk foi acusado de dissolver a rede do Partido
Comunista na polícia húngara, em 1947. De facto, fizera-o (na véspera das
eleições de 1947 e com aprovação oficial) como cobertura para a dissolução
da organização social-democrata na polícia, que era muito mais forte. Mais
tarde, restabeleceu secretamente a rede comunista, ao mesmo tempo que
mantinha a proibição dos outros partidos. Mas estas acções, impecavelmente
ortodoxas na altura, foram grão para o moinho dos Soviéticos, quando chegou
a ocasião de o afastar.
Nos julgamentos mais importantes os réus eram todos comunistas. Outros
comunistas foram saneados sem julgamentos públicos nem qualquer processo
judicial. Mas a esmagadora maioria das vítimas de Estaline, na União
Soviética e nos Estados-satélites, não era de modo algum constituída por
comunistas, é claro. Na Checoslováquia, nos anos de 1948-1954, os
comunistas representavam apenas 1% dos condenados a penas de prisão ou
campos de trabalho e um em vinte dos condenados à morte. Na RDA, a Stasi
foi criada em 8 de Fevereiro de 1950 com a tarefa de vigiar e controlar não
apenas os comunistas, mas toda a sociedade. Estaline suspeitava
habitualmente não só dos comunistas com contactos ou experiência no
Ocidente, mas de todos os que viveram fora do bloco soviético.
Era evidente que praticamente toda a população da Europa de Leste se
encontrava sob suspeita nesta altura. Não que a repressão durante o pós-
guerra na União Soviética fosse de algum modo menos abrangente: tal como
se considerou que a exposição dos Russos à influência ocidental nos anos de
1813-1815 abriu caminho à revolta dezembrina de 1825, também Estaline, na
sua própria época, receava a contaminação e os protestos em resultado dos
contactos estabelecidos durante a guerra. Por isso, qualquer cidadão ou
soldado que tivesse sobrevivido à ocupação ou à prisão nazis era objecto de
suspeita. Quando o «Presidium do Soviete Supremo» aprovou uma lei em
1949 que punia os soldados que cometeram violações com 10 a 15 anos em
campos de trabalho, a desaprovação da violência do Exército Vermelho na
parte oriental da Alemanha e na Áustria era a menor das suas preocupações.
O motivo real era a criação de um dispositivo para punir à vontade os
soldados que regressavam.
A escala das punições infligidas aos cidadãos da URSS e da Europa de
Leste na década seguinte à Segunda Guerra Mundial foi monumental e, fora
da União Soviética, completamente sem precedentes. Os julgamentos eram
apenas o pico visível de um arquipélago de repressão: prisão, exílio, trabalhos
forçados. Em 1952, no auge do segundo terror estalinista, havia 1,7 milhões
de prisioneiros em campos de trabalho soviéticos, mais 800 000 em colónias
de trabalho e 2 753 000 em «estabelecimentos especiais». A sentença
«normal» do Gulag era de 25 anos, habitualmente seguida (no caso de
sobreviverem) pelo exílio na Sibéria ou na Ásia Central soviética. Na
Bulgária, numa força de trabalho industrial de pouco menos de meio milhão
de trabalhadores, duas pessoas em cada nove eram escravas.
Calcula-se que na Checoslováquia, no início dos anos 50, houvesse 100
000 prisioneiros políticos numa população de 13 milhões de habitantes, um
número onde não se incluem as muitas dezenas de milhares de trabalhadores
forçados, embora não fossem assim designados, nas minas do país. As
«liquidações administrativas», nas quais homens e mulheres desapareciam na
prisão, tranquilamente fuzilados sem publicidade ou julgamento, eram outra
forma de punição. A família da vítima podia esperar um ano ou mais antes de
saber que ele ou ela «desaparecera». Três meses mais tarde a pessoa era
considerada legalmente morta, embora sem outro reconhecimento ou
confirmação oficial. No auge do terror na Checoslováquia, apareciam todos
os dias na imprensa local cerca de 30 a 40 destes anúncios. Desapareceram
desta forma dezenas de milhares de pessoas e muitas centenas de milhares
foram privadas dos seus privilégios, apartamentos e empregos.
Calcula-se que na Hungria, durante os anos de 1948-1953, cerca de um
milhão de pessoas (num total de menos de dez milhões de habitantes)
sofreram detenções, processos judiciais, penas de prisão ou deportações. Uma
de cada três famílias húngaras foi directamente afectada. Fritzi Loebl, mulher
de um dos «co-conspiradores» de Slansky, foi mantida durante um ano na
prisão de Ruzyn, fora de Praga, e interrogada pelos Russos, que lhe chamaram
«prostituta judia malcheirosa». Depois de libertada, foi exilada para uma
fábrica no Norte da Boémia. As mulheres dos prisioneiros e deportados
perdiam os seus empregos, os seus apartamentos e os seus bens pessoais. No
melhor dos casos, se tivessem sorte, eram esquecidas, como Josephine
Langer, cujo marido, Oskar Langer, testemunha no julgamento Slansky, foi
mais tarde sentenciado, num outro julgamento, a 22 anos de prisão. Ela e as
suas filhas viveram durante seis anos numa cave.
A Roménia assistiu, talvez, às piores perseguições e certamente às mais
longas. Para além de mais de um milhão de detidos nas prisões, campos de
trabalho e no trabalho escravo do canal Danúbio-Mar Negro, dos quais
morreram dezenas de milhares e em cujos números não se incluem os
deportados para a União Soviética, a Roménia distinguiu-se pela severidade
das suas condições prisionais e por diversas prisões «experimentais»,
nomeadamente a de Pitesti, onde, durante três anos, de Dezembro de 1949 até
ao fim de 1952, os prisioneiros eram encorajados a «reeducar-se» uns aos
outros com torturas físicas e psicológicas. A maioria das vítimas era
constituída por estudantes, «sionistas» e presos políticos não comunistas.
O Estado comunista encontrava-se numa situação de guerra permanente e
não declarada contra os seus próprios cidadãos. Tal como Lenine, Estaline
também compreendeu a necessidade de inimigos. Pertencia à lógica do Estado
estalinista a mobilização constante contra os seus inimigos externos e,
sobretudo, internos. Segundo as palavras de Stephan Rais, o ministro da
Justiça checoslovaco, dirigindo-se à conferência de advogados checoslovacos,
em 11 de Junho de 1952:
[o advogado] deve […] confiar na ciência mais amadurecida do mundo
e a única que é correcta, a ciência legal soviética, e aproveitar-se
totalmente das experiências da prática legal soviética […]. Uma
necessidade inevitável do período que atravessamos é a luta de classes,
que não cessa de se desenvolver.
No vocabulário marcial tão do agrado da retórica comunista repercutia-se
esta condição definida pelos conflitos. As metáforas militares eram
abundantes: os conflitos de classe requeriam alianças, ligações às massas,
reviravoltas, ataques frontais. A tese de Estaline de que a guerra de classes se
intensificava à medida que o socialismo se aproximava foi afirmada para
explicar o facto curioso de, apesar das eleições realizadas em toda a parte
mostrarem um apoio de 99% ao partido, os seus inimigos se multiplicarem, a
batalha ter de ser travada com uma resolução cada vez mais firme e a história
interna da URSS ter de ser reproduzida meticulosamente em todo o bloco
soviético.
Os inimigos principais eram, aparentemente, o camponês e o burguês.
Todavia, na prática, os intelectuais eram muitas vezes o alvo mais fácil, tal
como haviam sido para os nazis. O ataque venenoso de Andrei Zdanov a
Anna Akhmatova – «uma freira ou uma prostituta, ou melhor, uma freira e
uma prostituta, que mistura a prostituição com a oração. A poesia de
Akhmatova está completamente afastada do povo»(15) – é um eco da maioria
dos temas anti-intelectuais estalinistas convencionais: a religião, a
prostituição, a alienação em relação às massas. Se Akhmatova fosse judia,
como acontecia com muitos elementos da classe intelectual da Europa
Central, a caricatura teria sido mais completa.
A repressão política, a censura e até a ditadura não eram de forma alguma
desconhecidas na metade oriental da Europa antes de ter chegado o
estalinismo, embora houvesse consenso universal, entre os que podiam fazer a
comparação, que os interrogadores e as prisões da Hungria, da Polónia ou da
Roménia no período entre as duas guerras eram de longe preferíveis às das
«democracias populares». Os instrumentos de controlo e de terror com que o
Estado comunista operava depois de 1947 foram aperfeiçoados pelos homens
de Estaline, mas na sua maior parte não necessitavam de ser importados do
Leste; já existiam no local. Não foi por acaso que a prisão de Pitesti foi
construída e gerida para a Securitate comunista por um tal Eugen Turcann,
que numa encarnação anterior fora um estudante activista da Guarda de Ferro,
o movimento fascista romeno do período entre as duas guerras, na
Universidade de Iasi.
Contudo, o que distinguia o Estado-Partido dos comunistas dos seus
antecessores autoritários não era tanto a eficácia absoluta do seu aparelho
repressivo, mas sim que o poder e os recursos eram agora objecto de
monopólio e de abuso em benefício quase exclusivo de uma potência
estrangeira. A ocupação soviética seguiu-se à nazi com um mínimo de
perturbações durante essa transição e lançou a metade oriental da Europa cada
vez mais profundamente para a órbita soviética (para os cidadãos da
Alemanha de Leste, que saíam de 12 anos de ditadura nazi, a transição foi
ainda mais suave). Este processo e as suas consequências – a «sovietização» e
a «russificação» de tudo o que pertencia à Europa de Leste, desde os
processos de manufactura aos títulos académicos – iriam conduzir, mais cedo
ou mais tarde, à alienação da fidelidade de todos, excepto da dos mais
inveterados estalinistas.
Tiveram também o efeito secundário de esbater as recordações das pessoas
quanto à sua ambivalência inicial em relação às transformações comunistas.
Anos depois, era fácil esquecer que o tom anti-semita e muitas vezes
xenófobo da linguagem pública estalinista encontrara um público favorável
em grande parte da Europa de Leste, tal como sucedera na própria União
Soviética. O nacionalismo económico também tinha raízes populares locais,
de modo que a exploração, a nacionalização, os controlos e a regulamentação
do trabalho por parte do Estado não eram de modo algum desconhecidos. Na
Checoslováquia, por exemplo, ao abrigo do Plano Bienal introduzido em
1946, os trabalhadores recalcitrantes podiam ser exilados para campos de
trabalho (embora também seja verdade que a maioria dos juízes checos
recusou aplicar estas sanções durante os anos de 1946-1948).
Por isso, nas suas primeiras fases, a tomada do poder na Europa de Leste
pelos Soviéticos não foi tão unilateral quanto podia parecer
retrospectivamente, mesmo se levarmos em linha de conta as elevadas
expectativas projectadas num futuro comunista por uma minoria de jovens em
Varsóvia ou em Praga. Mas tal como a brutalidade dos nazis alienou um
sentimento local potencialmente amigável nos territórios que «libertaram» da
URSS em 1941-1942, também Estaline, em breve, dissolveria ilusões e
expectativas nos Estados-satélites.
Já foi referido o resultado de impor uma versão acelerada da própria
história económica sombria da União Soviética aos territórios mais
desenvolvidos que lhe ficavam a ocidente. O único recurso em que os
gestores comunistas podiam coerentemente confiar era na produção intensiva
levada até ao ponto da ruptura. Foi esta a razão por que o terror estalinista em
1948-1953 na Europa de Leste se assemelhava tanto ao seu equivalente
soviético de 20 anos antes: estavam ambos relacionados com uma política de
industrialização coerciva. As economias centralmente planeadas eram na
verdade muito eficazes a extrair pela força a mais-valia aos mineiros e aos
trabalhadores das fábricas, mas isso era tudo o que podiam realizar. A
agricultura do bloco soviético ficava cada vez mais atrasada, com as suas
ineficácias surrealistas ocasionais a serem exemplificadas na URSS pelos
burocratas de Frunze (hoje Bizkek, no Quirguistão), que em 1960
encorajaram os camponeses da região a atingir as suas quotas de entrega de
manteiga (arbitrárias e inatingíveis), comprando os stocks das lojas locais…
Os julgamentos, as purgas e o coro de falsos comentários que os
acompanhavam ajudaram a degradar o que quer que restasse da esfera pública
na Europa de Leste. Os políticos e os governos passaram a ser sinónimos de
corrupção e repressão arbitrária, praticadas por uma clique venal, e em
proveito próprio, e ela própria dilacerada por suspeitas e receios. Esta não era
uma experiência nova na região, é claro. Mas havia uma qualidade
caracteristicamente cínica no desgoverno comunista: os abusos ao estilo
antigo eram agora envolvidos num palavreado retórico acerca da igualdade e
do progresso social, numa hipocrisia de que nem os oligarcas anteriores à
guerra nem os ocupantes nazis sentiram necessidade. Aliás, uma vez mais, foi
uma forma de desgoverno adaptada para benefício quase exclusivo de uma
potência estrangeira, que era a razão por que havia tanto ressentimento contra
o poder soviético fora das fronteiras da própria União Soviética.
O resultado da sovietização da Europa de Leste foi o seu afastamento da
metade ocidental do continente. Enquanto a Europa Ocidental estava prestes a
entrar numa era de transformações profundas e de prosperidade sem
precedentes, a Europa de Leste estava a entrar em coma: era um inverno de
inércia e resignação, pontuado por ciclos de protestos e subjugações que
durariam quase quatro décadas. É sintomático e de alguma forma
compreensível que durante os anos em que o Plano Marshall injectou cerca de
14 mil milhões de dólares na economia em fase de recuperação da Europa
Ocidental, Estaline – mediante indemnizações, entregas forçadas e a
imposição de distorções comerciais tremendamente gravosas – retirasse
exactamente o mesmo valor da Europa de Leste.
A Europa de Leste fora sempre diferente da Europa Ocidental, mas a
distinção entre ambas não fora a única forma de o continente se entender a si
mesmo, nem sequer a mais importante. A Europa mediterrânica era
marcadamente diferente da Europa do Noroeste e a religião tinha uma
importância muito maior do que a política para as fronteiras históricas no seio
dos Estados e entre eles. Na Europa antes da Segunda Guerra Mundial, as
diferenças entre o Norte e o Sul, os ricos e os pobres, o urbano e o rural,
contavam muito mais do que a existente entre o Oriente e o Ocidente.
O impacto do poder soviético sobre os territórios a leste de Viena foi
assim, sob alguns aspectos, ainda mais marcado do que sobre a própria
Rússia. O império russo, afinal, sempre fora apenas em parte europeu, e a
identidade europeia da Rússia posterior a Pedro, o Grande, foi ela própria
muito contestada durante o século que antecedeu o golpe de Lenine. Ao
separarem brutalmente a União Soviética das suas ligações à história e à
cultura europeias, os bolcheviques violentaram grandemente a Rússia, e por
muito tempo. No entanto, as suas suspeitas em relação ao Ocidente e o seu
receio da influência ocidental não eram inéditos, antes tinham raízes
profundas, muito anteriores a 1917, nos escritos e nas práticas
conscientemente eslavófilos.
Não havia tais precedentes na Europa Central e de Leste. Na verdade, fazia
parte do nacionalismo inseguro dos pequenos Estados dos Polacos, dos
Romenos, dos Croatas, etc., verem-se a si mesmos, não como acompanhantes
longínquos e situados nos limites da civilização europeia, mas sim como
defensores não totalmente reconhecidos do essencial da herança desta
civilização, tal como os Checos e os Húngaros se viam a si mesmos,
compreensivelmente, como habitantes do coração do continente. Os
intelectuais polacos e romenos olhavam para Paris em busca de novas modas
em matéria de pensamento e de arte, muito à semelhança da forma como a
intelectualidade de língua alemã do antigo império Habsburgo, desde a
Ruténia subcarpática até Trieste, olhou sempre para Viena.
Essa Europa integrada e cosmopolita existiu sempre apenas para uma
minoria, claro, e morreu em 1918. Todavia, os novos Estados saídos de
Versalhes eram frágeis e, de alguma forma, instáveis desde o seu início. As
décadas que mediaram as duas guerras foram, por isso, uma espécie de
interregno, sem guerra nem paz, durante o qual o destino da Europa Central e
de Leste que sucedeu aos impérios continuou de alguma forma por decidir. O
resultado mais provável – que uma Alemanha renascente fosse de facto a
herdeira dos velhos impérios nos territórios que se estendiam desde Stettin até
Istambul – foi evitado por pouco apenas devido aos erros de Hitler.
Em vez disso, a imposição de uma solução russa, e não germânica,
separou a metade oriental e vulnerável da Europa do corpo do continente. Na
altura, este facto não foi objecto de grande preocupação por parte dos
europeus ocidentais. Exceptuando a Alemanha, que era a nação mais
directamente afectada pela divisão da Europa, mas também aquela em pior
posição para fazer ouvir o seu desagrado em relação a esse facto, todo o resto
da Europa Ocidental ficou largamente indiferente ao desaparecimento da
Europa de Leste. Na verdade, acostumou-se rapidamente a essa divisão e, em
todo o caso, estava tão preocupada com as extraordinárias transformações que
tinham lugar nos países que a constituíam, que parecia muito natural que
houvesse uma barreira militar impenetrável estendendo-se do Báltico ao
Adriático. Porém, para os povos situados a leste dessa barreira, atirados para
um canto sujo e esquecido do seu próprio continente e à mercê de uma grande
potência meio estranha, que não lhes era superior e parasitava os seus
escassos recursos, a própria história ia parar.
-
(1) O professor Kenneth Jowett da Universidade da Califórnia, em Berkeley.

(2) As instituições da República Democrática Alemã eram algo diferentes, o que reflectia a sua
posição intermédia aos olhos dos Soviéticos, mas o espírito das suas leis e das suas práticas era
impecavelmente ortodoxo.

(3) Os Estados bálticos, totalmente incorporados na própria União Soviética, ficaram ainda pior do
que o resto da Europa de Leste. Em 1949, foi exigido aos kolkhozes do Norte da Estónia que mesmo
antes do início das colheitas começassem a entregar cereais para acompanharem a Letónia, 400
quilómetros a sul. Em 1953, as condições rurais na Estónia, até então prósperas, deterioram-se a tal
ponto que as vacas derrubadas pelo vento estavam tão fracas que não podiam reerguer-se sem ajuda.

(4) Os membros iniciais do Comecon foram a Bulgária, a Checoslováquia, a Hungria, a Polónia, a


Roménia e a URSS, a que se juntaram pouco depois a Albânia e a RDA. Anos mais tarde, a Jugoslávia,
a Mongólia, a China, a Coreia do Norte e o Vietname do Norte também se tornaram membros. Em
1963, a percentagem dos países do Comecon no comércio internacional era de 12%; em 1979 era de 9%
e estava em declínio.

(5) Segundo a constituição de 1946, as repúblicas constituintes – a Sérvia, a Croácia, a Eslovénia, a


Bósnia, a Macedónia e o Montenegro – eram livres de se separarem da federação, direito de que foram
privadas sete anos mais tarde.

(6) É significativo que Estaline não interferisse com os seus físicos nucleares e nunca pretendesse
saber mais dos seus cálculos do que eles mesmos. Estaline podia ser louco, mas não era estúpido.

(7) Foram executados, não obstante. Três semanas após a sua morte, o regime publicou a
«confissão» póstuma de Petrov, mas era tão evidentemente falsa que se tornou em breve num embaraço,
mesmo na Bulgária comunista. As autoridades deixaram de falar nela e o chefe da polícia secreta
búlgara, que revelou imprudência ao conseguir que fosse publicada, foi devidamente fuzilado.

(8) Ainda em 1966, quatro quintos dos funcionários públicos polacos tinham apenas a instrução
primária. O país era dirigido por uma casta administrativa surpreendentemente pouco instruída.

(9) Em 1924, Kostov, com 27 anos, foi preso e torturado pela polícia búlgara. Receoso de poder trair
os comunistas (clandestinos), saltou de uma janela de um 4.o andar da sede da polícia, em Sófia, e partiu
as duas pernas.

(10) O Bund foi um movimento de trabalhadores judeus que teve raízes na Rússia czarista anterior à
Primeira Guerra Mundial e cujas actividades entre as duas guerras se confinaram à Polónia.

(11) Cf. Heda Margolius Kovaly, Under a Cruel Star (1986). Nos dezoito meses que se seguiram ao
fim da Segunda Guerra Mundial, foram mortos mais judeus na Polónia, na Hungria e na
Checoslováquia do que nos dez anos anteriores.
(12) Stalin’s Secret Pogrom. The Postwar Inquisition of the Jewish Anti-Fascist Committee (Yale
University Press, 2002), organizado por Joshua Rubenstein e Vladimir Naumov, p. 52. Seguindo um
padrão familiar, o próprio Komarov seria mais tarde preso e executado, alegando até ao fim em sua
defesa as suas credenciais anti-semitas.

(13) Os sobreviventes foram todos libertados em anos posteriores, embora eles e os seus colegas que
também foram vítimas só fossem completamente reabilitados e ilibados em 1968.

(*) Ministerstvo Vnutrennih Del (Ministério do Interior da URSS). (N. T.)

(14) O guião era muito preciso. Quando André Marty foi «julgado» não oficialmente pelo comité
central do Partido Comunista Francês, em Dezembro de 1952, o seu «procurador de justiça», Léon
Mauvais, acusou-o de falar da «Internacional Trotskista» em vez da «Escumalha Trotskista» ou do
«Grupo de Polícias Espiões Trotskistas», que eram os termos comunistas «naturais e habituais» quando
se referiam aos trotskistas. Bastou este lapso linguístico para levantar sobre Mauvais graves suspeitas.

(15) Catherine Merridale, Night of Stone: Death and Memory in 20th Century Russia (2000), p. 249.
VII

Guerras Culturais
«Todos rejeitámos a época precedente. Conhecia-a sobretudo através da
literatura e parecia-me que fora uma época de estupidez e barbaridades.»
Milan Simecka
«Qualquer acção em meados do século XX pressupõe e envolve uma tomada
de posição em relação ao projecto soviético.»
Raymond Aron
«Eu estava certo ao estar errado, ao passo que você e os da sua espécie
estavam errados ao estarem certos.»
Pierre Courtade (para Edgar Morin)
«Gostemos ou não, a construção do socialismo é especial pelo facto de, para a
compreendermos, termos de fazer parte do seu movimento e fazer nossas as
suas metas.»
Jean-Paul Sartre
«Não podemos evitar que as pessoas tenham razão por más razões […]. Este
receio de nos encontrarmos em má companhia não é uma expressão de pureza
política, mas de falta de confiança em si mesmo.»
Arthur Koestler
Com uma alacridade que deixaria perplexas as gerações futuras, mal tinha
acabado a luta entre o fascismo e a democracia na Europa, e já estava a ser
substituída por uma nova ruptura, a que separava comunistas e
anticomunistas. A delimitação de posições políticas e intelectuais a favor ou
contra a União Soviética não começou com a divisão da Europa depois de
terminada a Segunda Guerra Mundial. Porém, foi nestes anos do pós-guerra,
entre 1947 e 1953, que a linha que dividiu o Oriente e o Ocidente, a esquerda
e a direita, foi traçada profundamente no interior da vida cultural e intelectual
da Europa.
As circunstâncias eram particularmente propícias. Entre as duas guerras, a
extrema-direita teve mais apoio do que convinha a muitos recordar. De
Bruxelas a Bucareste, o jornalismo e a literatura polémicos dos anos 30
abundavam em racismo, anti-semitismo, ultranacionalismo, clericalismo e
reaccionarismo político. Os intelectuais, os jornalistas e os professores que
antes e durante a guerra aderiram ao fascismo ou aos sentimentos ultra-
reaccionários, tinham razão para afirmar de forma vociferante as suas novas
credenciais de progressistas ou radicais (ou então retiravam-se para uma
obscuridade temporária ou duradoura). Dado que a maioria dos partidos e dos
jornais de orientação fascista, ou mesmo ultraconservadora, estava agora
banida (excepto na Península Ibérica, onde se passava o contrário), as
expressões públicas de filiação política estavam confinadas ao centro e à
esquerda do espectro político. O pensamento e as opiniões de direita tinham-
se eclipsado da Europa.
Todavia, embora o conteúdo dos escritos públicos se tivesse
metamorfoseado espectacularmente com a queda de Hitler, Mussolini e seus
seguidores, o tom continuou a ser em grande parte o mesmo. A urgência
apocalíptica dos fascistas, o seu apelo a soluções violentas e «definitivas»,
como se uma mudança genuína decorresse necessariamente do arrasamento
do que havia antes, a aversão pelos compromissos e pela «hipocrisia» da
democracia liberal e o entusiasmo por escolhas maniqueístas (tudo ou nada,
revolução ou decadência), todos estes impulsos podiam servir igualmente
bem a extrema-esquerda, e após 1945 assim aconteceu.
Na sua preocupação com a nação, a degenerescência, o sacrifício e a
morte, os escritores fascistas dos anos entre as duas guerras olharam para a
Primeira Guerra Mundial. A esquerda intelectual após 1945 foi também
moldada pela experiência da guerra, mas desta vez como um confronto entre
alternativas morais incompatíveis, excluindo qualquer possibilidade de
compromisso: o Bem contra o Mal, a Liberdade contra a Escravidão, a
Resistência contra a Colaboração. A libertação das ocupações nazis e fascistas
foi geralmente bem acolhida como ocasião para uma mudança política e
social radical, como uma oportunidade para transformar a devastação da
guerra num efeito revolucionário e encetar um novo começo. Porém, como
vimos, quando essa oportunidade foi aparentemente contrariada e a vida
«normal» foi sumariamente restaurada, as expectativas frustradas
transformaram-se facilmente em cinismo, ou então, na extrema-esquerda,
num mundo uma vez mais polarizado em campos políticos irreconciliáveis.
Os intelectuais europeus do pós-guerra tinham pressa e estavam
impacientes para se comprometer. Eram novos. Na Primeira Guerra Mundial
morreu uma geração de jovens, mas, depois da Segunda Guerra Mundial, foi
um grupo mais velho e desacreditado que desapareceu de cena. Em seu lugar
surgiram escritores, artistas, jornalistas e activistas políticos que eram
demasiado jovens para terem conhecido a guerra de 1914-1918, mas que
estavam impacientes para recuperar os anos perdidos com a sua sucessora. A
sua educação política fizera-se na época das frentes populares e dos
movimentos antifascistas e, muitas vezes, obtiveram aclamação pública e
influência em resultado das suas actividades enquanto decorria a guerra, numa
idade muito precoce pelos padrões europeus tradicionais.
Em França, Jean-Paul Sartre tinha 40 anos quando a guerra terminou,
Simone de Beauvoir tinha 37, Albert Camus, o mais influente deles todos,
apenas 32. Da geração mais velha, apenas François Mauriac (que nascera em
1885) podia rivalizar com eles em influência, precisamente por não estar
manchado por um passado de relações com Vichy. Em Itália, de uma geração
anterior de figuras públicas, apenas o filósofo napolitano Benedetto Croce
(nascido em 1866) se mantinha. Na Itália pós-fascista, Ignazio Silone, que
nascera em 1900, era uma das mais velhas figuras intelectuais com influência.
O romancista e comentador Alberto Moravia tinha 38 anos e o editor
comunista e escritor Elio Vittorini era mais novo um ano. Na Alemanha, onde
as simpatias nazis e a guerra tinham imposto o tributo mais pesado aos
intelectuais e escritores públicos, Heinrich Böll – o mais talentoso de uma
nova geração consciente de escritores que se juntou, dois anos após a derrota
de Hitler, para formar o «Grupo 47» – tinha apenas 28 anos quando a guerra
findou.
Na Europa de Leste, onde as elites intelectuais anteriores à guerra estavam
ligadas ao ultraconservadorismo, ao nacionalismo místico ou a coisas piores,
a promoção social da juventude foi ainda mais acentuada. Czeslaw Milosz,
cujo influente ensaio A Mente Cativa foi publicado em 1951 quando tinha
apenas 40 anos e era já um exilado político, não era de modo nenhum um
caso atípico. Jerzy Andrzejewski (que aparece retratado no livro de Milosz de
forma pouco lisonjeira) publicou Cinzas e Diamantes, o seu aclamado
romance sob a Polónia no pós-guerra, quando estava ainda na sua quarta
década de vida. Tadeusz Borowski, nascido em 1922, tinha menos de 30 anos
quando publicou a sua memória de Auschwitz This Way to the Gas, Ladies
and Gentlemen. [«O gás é por aqui, senhoras e senhores»].
Os líderes dos partidos comunistas da Europa de Leste eram habitualmente
homens um pouco mais velhos que sobreviveram aos anos entre as duas
guerras como prisioneiros políticos, ou então no exílio em Moscovo, ou
sucessivamente nas duas condições. Mas logo a seguir a eles estava um grupo
de homens e mulheres muito jovens cujo compromisso idealista com as
tomadas do poder apoiadas pelos Soviéticos teve um papel importante no seu
êxito. Na Hungria, Geza Losonczy, que seria vítima da repressão soviética
depois da revolta húngara de 1956, tinha ainda menos de trinta anos quando
ele e centenas de outros como ele conceberam um esquema para conduzir o
Partido Comunista Húngaro ao poder. O marido de Heda Kovaly, Rudolf
Margolius, um dos arguidos no julgamento Slansky, em Dezembro de 1952,
tinha 35 anos quando foi nomeado ministro do governo comunista da
Checoslováquia. Artur London, outro dos acusados nesse julgamento, era
ainda mais novo, tendo 33 anos quando os comunistas se apoderaram do
poder. London teve a sua educação política na resistência francesa. Como
muitos outros que estiveram na clandestinidade na Checoslováquia, aprendeu
a exercer responsabilidades políticas e militares numa idade muito jovem.
O entusiasmo da juventude por um futuro comunista estava bastante
difundido entre os intelectuais da classe média, tanto no Oriente como no
Ocidente, e era acompanhado por um marcado complexo de inferioridade em
relação ao proletariado, a classe operária. Nos primeiros anos do pós-guerra,
os trabalhadores manuais qualificados estavam valorizados, em contraste
acentuado com os anos da Depressão, ainda frescos na memória colectiva.
Havia carvão a ser extraído, estradas, caminhos-de-ferro, edifícios e linhas de
energia eléctrica a ser reconstruídos ou substituídos, ferramentas a ser
fabricadas e depois aplicadas no fabrico de outros produtos. Para todos estes
empregos havia escassez de trabalhadores qualificados. Como vimos, os
homens novos, fisicamente capazes, dos campos de deslocados tinham pouca
dificuldade em encontrar trabalho e asilo, em contraste com as mulheres e as
suas famílias ou com os «intelectuais» de todo o género.
Uma das consequências desta situação foi a exaltação do trabalho
industrial e dos seus trabalhadores, uma nítida vantagem política para os
partidos que afirmavam representá-los. Homens e mulheres da classe média,
instruídos, de tendências de esquerda e constrangidos com a sua origem social
podiam mitigar o seu mal-estar entregando-se ao comunismo. Mas mesmo
que não fossem tão longe a ponto de aderir ao Partido, muitos artistas e
escritores em França e Itália «prostraram-se diante do proletariado» (Arthur
Koestler) e elevaram a «classe operária revolucionária» (caracteristicamente
imaginada a uma luz bastante realista-socialista/fascista como dura, máscula e
musculada) a um estatuto quase icónico.
Embora o fenómeno fosse pan-europeu no seu âmbito, e transcendesse a
política comunista (na Europa, o intelectual mais conhecido a expor o
«trabalhismo» foi Jean-Paul Sartre, que nunca aderiu ao Partido Comunista
Francês), foi na Europa de Leste que tais sentimentos tiveram de facto
consequências. Estudantes, professores, escritores e artistas da Grã-Bretanha,
França, Alemanha e de outros países afluíram para a Jugoslávia (pré-
cismática) para ajudar a reconstruir caminhos-de-ferro apenas com as suas
mãos. Em Agosto de 1947, Italo Calvino escreveu entusiasticamente sobre
jovens voluntários da Itália que, à semelhança daqueles, estavam empenhados
com o seu esforço na Checoslováquia. A dedicação a um novo começo, o
culto prestado a uma comunidade de trabalhadores real ou imaginada e a
admiração pelos Soviéticos (e pelo seu Exército Vermelho que tudo
conquistara) separava a geração de jovens do pós-guerra das suas raízes
sociais e do seu passado nacional.
A decisão de alguém se tornar comunista (ou «marxista», o que
habitualmente, nas circunstâncias da época, significava comunista) era
tomada na maioria das vezes bem cedo na vida. Por exemplo, Ludek
Pachman, um checoslovaco, afirmou: «Tornei-me marxista no ano de 1943.
Tinha 19 anos e encantou-me a ideia de que de repente tudo compreendia e
tudo podia explicar, bem como a ideia de que podia marchar com proletários
de todo o mundo, primeiramente contra Hitler e depois contra a burguesia
internacional.» Mesmo aqueles que, como Czeslaw Milosz, não ficaram
arrebatados pelos encantos dos seus dogmas, aclamaram sem ambiguidade as
reformas sociais do comunismo: «Fiquei deliciado por, finalmente, ver
esmagada a estrutura semifeudal da Polónia, as suas universidades abertas aos
jovens trabalhadores e camponeses, a reforma agrária realizada e o país a
iniciar a via da industrialização.» Como disse Milovan Djilas, recordando a
sua própria experiência como adjunto próximo de Tito: «De início, o
totalitarismo é entusiasmo e convicção. Apenas mais tarde passa a ser
organizações, autoridade, carreirismo.»
De início, os partidos comunistas seduziam os intelectuais, para os quais
as ambições do comunismo formavam um contraste sedutor com o
paroquialismo das suas pátrias e o violento anti-intelectualismo dos nazis.
Para muitos intelectuais jovens o comunismo era menos uma questão de
convicção do que de fé; como diria Alexander Wat (outro polaco ex-
comunista), a intelectualidade secular da Polónia ansiava por um «catecismo
refinado». Embora os que se tornaram comunistas activos tivessem sido
sempre apenas uma minoria de estudantes, poetas, dramaturgos, romancistas,
jornalistas ou professores da Europa de Leste, foram muitas vezes os homens
e as mulheres mais talentosos da sua geração.
Por exemplo, Pavel Kohout, que décadas depois ganharia renome
internacional como dissidente e também como ensaísta e dramaturgo pós-
comunista, começou a ficar conhecido na sua Checoslováquia natal como
ultra-entusiasta do novo regime do seu país. Em 1969, meditando
retrospectivamente, descreveu a «sensação de certeza» que teve depois de ver
o líder do partido, Klement Gottwald, na Praça da Cidade Velha, em Praga,
apinhada de gente, no dia do golpe checo de Fevereiro de 1948. Aqui,
«naquela massa humana que partira em busca de justiça e neste homem
[Gottwald] que os conduz para a batalha decisiva», Kohout, com os seus vinte
anos, encontrou «o Centrum Securitatis que Coménio tentou em vão
encontrar». Quatro anos mais tarde, cheio de fé, Kohout escreveu «Uma
Cantata ao nosso querido Partido Comunista»:
Cantemos em louvor do partido!
A sua juventude é marcada por jovens trabalhadores Ele tem a razão de
um milhão de cabeças
E a força de milhões de mãos humanas
E o seu batalhão são as
Palavras de Estaline e Gottwald.
Em pleno mês de Maio florido
Em longínquos confins
Sobre o velho castelo a bandeira agita-se Com as palavras «A verdade
vence!» As palavras cumpriram-se gloriosamente: Averdade dos
trabalhadores venceu!
Para um futuro glorioso o nosso país se eleva. Glória ao partido de
Gottwald!
Glória!
Glória!(1)
Este tipo de fé estava muito difundido na geração de Kohout. Como
Milosz haveria de dizer, o comunismo actuava segundo o princípio de que os
escritores não necessitavam de pensar, apenas necessitavam de entender. Para
além disso, até entender requeria pouco mais do que um compromisso, que
era precisamente aquilo que os jovens intelectuais de Leste procuravam.
«Éramos filhos da guerra», escreveu Zdenek Mlynar (que aderiu ao Partido
Comunista Checoslovaco em 1946, com a idade de 15 anos), «que, não tendo
realmente combatido contra ninguém, transportávamos para os primeiros anos
do pós-guerra a nossa mentalidade do tempo da guerra, quando a
oportunidade de combater por algo se apresentava finalmente». A geração de
Mlynar apenas conhecia os anos em que decorrera a guerra e a ocupação nazi,
durante os quais «era ou um lado ou o outro, não havia solução intermédia.
Assim, a nossa experiência introduziu à força em nós a ideia de que a vitória
da concepção correcta significava simplesmente a liquidação, a destruição do
outro»(2).
O entusiasmo inocente com que alguns jovens europeus orientais
mergulharam no comunismo («Estou com essa disposição revolucionária…»,
como o escritor Ludvik Vaculík exclamaria à sua namorada após ter aderido
ao Partido Checo) não diminui a responsabilidade de Moscovo por aquilo que
era, afinal, uma campanha de conquista dos seus países, mas ajuda a explicar
o grau de descontentamento e desilusão que se seguiu. Comunistas um pouco
mais velhos, como Djilas (nascido em 1911), provavelmente sempre
compreenderam, como atestam as suas palavras, que «a manipulação do
fervor é o gérmen da servidão». Todavia, os jovens convertidos, sobretudo os
intelectuais, ficaram aturdidos ao descobrir o rigor da disciplina comunista e a
realidade do poder estalinista.
Por isso, a imposição do dogma das «duas culturas», de Zdanov, após
1948, com a sua insistência na adopção das posições «correctas» sobre tudo,
desde a botânica à poesia, foi um grande choque nas democracias populares
da Europa de Leste. A adesão intelectual servil a uma linha partidária há
muito estabelecida na União Soviética, onde em todo o caso havia uma
herança pré-soviética de repressão e ortodoxia, foi mais difícil em países que
apenas recentemente haviam saído do regime bastante benevolente dos
Habsburgo. Na Europa Central do século XIX, os intelectuais e os poetas
adquiriram o hábito e a responsabilidade de falar em nome da nação. Sob a
alçada do comunismo o seu papel era diferente. Se antes representaram um
«povo» abstracto, eram agora pouco mais do que porta-vozes culturais de
tiranos (reais). Pior ainda, enquanto cosmopolitas, «parasitas» ou judeus, em
breve seriam as vítimas de eleição desses mesmos tiranos, que procuravam
bodes expiatórios para os seus erros.
Por estas razões, a maior parte do entusiasmo dos intelectuais europeus
orientais pelo comunismo, mesmo na Checoslováquia, onde atingiu o seu
grau mais elevado, evaporara-se mais ou menos aquando da morte de
Estaline, embora ainda se arrastasse durante alguns anos sob a forma de
projectos de «revisão» ou de «reforma do comunismo». As divisões no
interior dos Estados comunistas já não se davam entre os comunistas e os seus
opositores. A distinção importante era, uma vez mais, entre os que detinham a
autoridade – o Estado-Partido, com a sua polícia, a sua burocracia e a sua
intelectualidade da casa – e todos os outros.
Neste sentido, a linha de fractura da Guerra Fria não passava tanto entre o
Leste e o Ocidente, mas através da Europa de Leste bem como através da
Europa Ocidental. Na Europa de Leste, como vimos, o partido comunista e o
seu aparelho permaneciam em estado de guerra não declarado com o resto da
sociedade e um conhecimento mais vivo do comunismo levara a traçar novas
linhas de batalha: entre aqueles para quem o comunismo trouxe, de alguma
forma, vantagens sociais práticas e aqueles para os quais significou
discriminação, desapontamento e repressão. Na Europa Ocidental a mesma
linha de fractura colocou intelectuais nos dois lados, mas o entusiasmo teórico
pelo comunismo manifestava-se em proporção inversa da experiência prática
que dele se tinha.
Esta ignorância generalizada sobre o destino da Europa de Leste,
associada a uma indiferença crescente no Ocidente, provocou desorientação e
frustração no Leste. O problema para os intelectuais e outros grupos sociais
da Europa de Leste não era a sua situação periférica. Esse era um destino a
que há muito se haviam resignado. O que os magoava depois de 1948 era a
sua dupla exclusão: da sua própria história, graças à presença soviética, e da
consciência do Ocidente, cujos intelectuais mais conhecidos não prestavam
atenção à sua experiência e ao seu exemplo. No início dos anos 50, nos textos
da Europa de Leste sobre a Europa Ocidental encontramos repetidamente um
tom de ofensa e de desorientação relativamente a esta última, de «amor
desorientado» como Milosz o descreveu em A Mente Cativa. A Europa não
verá, escreveu o exilado romeno Mircea Eliade, em Abril de 1952, que lhe foi
amputada uma parte do seu próprio corpo? «Porque […] todos estes países
estão na Europa, todos estes povos pertencem à comunidade da Europa.»
Todavia, já não lhe pertenciam mais e era isso que importava. O êxito de
Estaline em escavar a sua trincheira de defesa no centro da Europa tinha
retirado do mapa a Europa de Leste. Após a Segunda Guerra Mundial, a vida
intelectual e cultural europeia tinha lugar num palco drasticamente reduzido,
do qual os Polacos, os Checos, etc. foram sumariamente afastados. Apesar de
o desafio do comunismo estar no centro dos debates e das disputas da Europa
Ocidental, prestava-se muito pouca atenção à experiência prática do
«comunismo real» que se dava a poucos quilómetros para leste, e os
admiradores mais fervorosos do comunismo não prestavam nenhuma.
A condição intelectual da Europa Ocidental no pós-guerra não seria
reconhecida por um visitante do passado, ainda que fosse bastante recente. A
Europa Central de língua alemã – a casa das máquinas da cultura europeia
durante o primeiro terço do século XX – deixara de existir. Viena, que já era
uma sombra da sua própria identidade depois do derrube dos Habsburgo, em
1918, estava dividida, como Berlim, entre as quatro potências aliadas.
Dificilmente podia alimentar ou vestir os seus habitantes e muito menos
contribuir para a vida intelectual do continente. Os filósofos, economistas,
matemáticos e cientistas austríacos, tal como os seus contemporâneos da
Hungria e do resto da antiga monarquia dual, exilaram-se (para França, Grã-
Bretanha, domínios britânicos ou Estados Unidos), colaboraram com as
autoridades ou, então, foram mortos.
A própria Alemanha estava em ruínas. A emigração intelectual alemã após
1933 não deixara para trás praticamente ninguém de valor que não estivesse
comprometido com as suas relações com o regime: o famoso enamoramento
de Martin Heidegger com os nazis só era atípico devido às implicações
controversas que tinha com os seus influentes escritos filosóficos. Houve
dezenas de milhares de Heideggeres de menor estatuto, nas escolas,
universidades, burocracias locais e nacional, jornais e instituições culturais,
que ficaram igualmente comprometidos devido ao entusiasmo com que
adaptaram o que escreveram e fizeram às exigências nazis.
O cenário alemão do pós-guerra era ainda mais complicado devido à
existência de duas Alemanhas, com uma delas a reclamar toda a herança do
«bom» passado alemão: antifascista, progressista, iluminado. Muitos
intelectuais e artistas foram tentados a arriscar o seu destino na zona soviética
e na sua sucessora, a República Democrática Alemã. Ao contrário da
República Federal de Bona, não totalmente desnazificada e relutante em
enfrentar o passado alemão recente, a Alemanha de Leste insistia
orgulhosamente nas suas credenciais antinazis. As autoridades comunistas
acolhiam de bom grado historiadores, dramaturgos ou realizadores de cinema
que pretendessem recordar aos seus públicos os crimes da «outra» Alemanha,
desde que respeitassem certos tabus. Alguns dos melhores talentos que vieram
da República de Weimar emigraram para leste.
Uma razão para tal foi a Alemanha de Leste, ocupada pelos Soviéticos, ser
o único Estado do bloco de leste com um doppelgänger ocidental: os seus
intelectuais tinham acesso a um público ocidental que os escritores polacos ou
romenos não tinham. Por outro lado, se a censura e as pressões se tornassem
insuportáveis, havia a opção de regressar ao Ocidente pelos pontos de entrada
de Berlim, pelo menos até 1961 e à construção do muro. Por exemplo,
Berthold Brecht optou por viver na RDA, jovens escritores como Christa
Wolf escolheram lá permanecer e escritores ainda mais novos, como o futuro
dissidente Wolf Biermann, migraram para leste para estudar e escrever (no
caso de Biermann com a idade de 17 nos, em 1953)(3).
O que atraía os intelectuais radicais do Ocidente «materialista» era a
apresentação da RDA como sendo progressista, igualitária e antinazi, uma
alternativa pobre e sóbria à República Federal. Esta última, por um lado,
parecia pesada, com uma história que preferia não discutir e, no entanto, por
outro, curiosamente sem peso, sem raízes políticas e dependente
culturalmente dos Aliados ocidentais, e sobretudo dos Estados Unidos, que a
inventaram. A vida intelectual no início da República Federal carecia de
orientação política. As opções radicais dos dois extremos políticos estavam
expressamente excluídas da vida pública e escritores jovens como Böll
tinham relutância em empenhar-se na política partidária (em nítido contraste
com a geração que viria a seguir).
Não havia certamente carência de ofertas culturais: em 1948, depois da
falta de papel, e em particular de papel de jornal, ter sido ultrapassada e as
redes de distribuição terem sido restabelecidas, circulavam 200 publicações
literárias e políticas na zona ocidental da Alemanha (embora muitas tivessem
desaparecido depois da reforma da moeda) e a nova República Federal podia
alardear ter um leque pouco comum de jornais de qualidade, nomeadamente o
novo semanário Die Zeit, publicado em Hamburgo. No entanto, a República
Federal era, e permaneceria durante muitos anos, periférica em relação à vida
cultural europeia. Melvin Lasky, um jornalista ocidental e editor sedeado em
Berlim, escreveu sobre a condição intelectual germânica em 1950 que «nunca
na história moderna, penso eu, uma nação e um povo se mostraram tão
exaustos, tão destituídos de inspiração e até de talento».
O contraste com a anterior proeminência cultural da Alemanha explica em
parte a desilusão que muitos observadores nacionais e estrangeiros sentiram
quando olhavam para a nova república: Raymond Aron não foi a única pessoa
a recordar que apenas anos antes parecera que aquele era o século da
Alemanha. Com uma extensão tão vasta da cultura alemã contaminada e
desqualificada devido à sua apropriação para os objectivos nazis, deixava
agora de ser claro qual podia ser precisamente o contributo dos Alemães para
a Europa. Como se compreende, os escritores e pensadores alemães estavam
obcecados com os dilemas peculiarmente alemães. É significativo que Karl
Jaspers, a única grande figura do mundo intelectual pré-nazi que tomou parte
nos debates pós-1945, seja mais conhecido por ter dado uma contribuição
singular para um debate interno alemão, com o seu ensaio de 1946 sobre A
Questão da Culpa Alemã. Porém, foi o esquivar-se cuidadosamente da
política ideológica por parte dos intelectuais alemães ocidentais que mais
contribuiu para os marginalizar na primeira década do pós-guerra, numa
época em que as conversas públicas na Europa Ocidental estavam intensa e
fragmentadamente politizadas.
Os Britânicos também eram bastante periféricos em relação à vida
intelectual europeia durante estes anos, embora por razões muito diferentes.
Os argumentos políticos que estavam a dividir o continente não eram
desconhecidos na Grã-Bretanha: as confrontações sobre o pacifismo no
período entre as duas guerras, a Depressão e a Guerra Civil Espanhola
dividiram o Partido Trabalhista e a esquerda intelectual e estas divisões não
foram esquecidas em anos posteriores. Mas na Grã-Bretanha, entre as duas
guerras, nem fascistas nem comunistas conseguiram traduzir as dissensões
sociais em revolução política. Os fascistas estavam maioritariamente
confinados aos bairros mais pobres de Londres, onde durante algum tempo,
nos anos 30, tiraram partido do anti-semitismo popular. O Partido Comunista
da Grã-Bretanha (PCGB) nunca obteve muito apoio fora dos seus baluartes
iniciais na indústria escocesa de construção naval, em algumas comunidades
mineiras e num pequeno grupo de empresas nos West Midlands da Inglaterra.
Mesmo quando atingiu o seu máximo eleitoral, em 1945, o partido teve
apenas 102 000 votos (0,4% do eleitorado nacional) e elegeu dois membros
para o parlamento, tendo ambos perdido os seus lugares nas eleições de 1950.
Nas eleições de 1951, o PCGB atraiu apenas 21 000 votantes numa população
de 49 milhões.
O comunismo no Reino Unido era, portanto, uma abstracção política. Este
facto de modo algum afectou a simpatia intelectual pelo marxismo entre a
intelectualidade londrina e nas universidades. O bolchevismo exerceu desde o
seu início uma certa atracção sobre os socialistas fabianos britânicos, como H.
G. Wells, que reconheceram nas políticas de Lenine e até de Estaline algo de
familiar e simpático: a engenharia social dirigida de cima pelos mais sábios.
Aliás, o mandarinato da esquerda britânica, tal como os seus contemporâneos
no Ministério dos Negócios Estrangeiros, tinha pouco tempo para se debruçar
sobre os problemas dos pequenos países que se situavam entre a Alemanha e
a Rússia, que, de alguma forma, sempre consideraram uma maçada.
Todavia, embora estas matérias suscitassem debates acalorados do outro
lado do canal da Mancha, na Grã-Bretanha o comunismo não mobilizava nem
dividia os intelectuais num grau que fosse sequer comparável. Como disse
George Orwell em 1947, «os Ingleses não estão suficientemente interessados
em questões intelectuais para que se mostrem intolerantes em relação a elas».
Os debates intelectuais e culturais em Inglaterra (e, em menor medida, no
resto da Grã-Bretanha) centravam-se, em vez disso, numa preocupação
interna: as primeiras manifestações de uma ansiedade, que duraria décadas,
sobre o «declínio» nacional. É sintomático da ambivalência do estado de
espírito da Inglaterra no pós-guerra que o país tivesse acabado de disputar e
ganhar uma guerra de seis anos contra o seu inimigo mortal e tivesse dado
início a uma experiência inovadora no capitalismo-providência, e no entanto,
os comentadores culturais estivessem obcecados pelos sinais de insucesso e
de deterioração.
Por exemplo, T. S. Eliot, nas suas Notas para uma Definição de Cultura
(1948), afirmou «com alguma confiança que o período que atravessamos é de
declínio, que os padrões da cultura são mais baixos do que eram há 50 anos e
que as provas deste declínio podem ser vistas em todas as áreas de actividade
humana». Motivada por preocupações semelhantes, a British Broadcasting
Corporation [BBC] iniciou o seu terceiro programa de rádio em 1946, um
produto generoso, de alta cultura, que visava explicitamente o incentivo e a
difusão da «qualidade», e era dirigido ao que na Europa Continental seria
designado como a camada intelectual, mas em que a associação de música
clássica, leituras sobre a actualidade e discussões sérias era indiscutivelmente
inglesa, ao evitar premeditadamente os tópicos que fossem controversos ou
politicamente sensíveis.
Os Britânicos não se desinteressaram dos assuntos europeus. A política e
as letras europeias eram regularmente objecto de semanários e revistas
periódicas, e os leitores britânicos podiam estar bem informados se assim o
desejassem. Os Britânicos também não ignoravam a dimensão do trauma que
a Europa acabava de atravessar. Cyril Connolly, escrevendo no seu próprio
periódico, Horizon, em Setembro de 1945, disse o seguinte sobre a condição
europeia: «Moral e economicamente, a Europa perdeu a guerra. A grande
tenda da civilização europeia, sob cuja luz amarelada todos nós crescemos e
lemos, ou escrevemos, ou amámos, ou trabalhámos, desabou. As espias estão
laças, o mastro central está partido, as cadeiras e as mesas estão todas
destruídas, a tenda está vazia, as rosas definharam nos seus canteiros […].»
Não obstante esta preocupação com a situação do continente, os
comentadores britânicos (e sobretudo os ingleses) permaneceram um pouco à
margem, como se os problemas da Europa e da Grã-Bretanha, embora
obviamente relacionados, fossem, contudo, diferentes em aspectos cruciais.
Com algumas notáveis excepções(4), os intelectuais britânicos não tiveram
qualquer influência nos grandes debates da Europa Continental, olhando-os
de lado. Falando em termos gerais, as questões que eram urgentemente
políticas na Europa despertavam apenas um interesse intelectual na Grã-
Bretanha, ao passo que os tópicos de preocupação intelectual no continente
ficavam habitualmente confinados aos círculos académicos do Reino Unido,
se é que eram realmente notados.
A situação na Itália era quase exactamente a oposta. De todos os países da
Europa Ocidental, foi a Itália que sofreu mais directamente as pragas da
época. O país fora governado durante 20 anos pelo primeiro regime fascista
do mundo. Fora ocupado pelos Alemães e depois libertado pelos Aliados
ocidentais numa guerra de desgaste e destruição que se arrastou por
aproximadamente dois anos, atingiu três quartos do país e levou quase à ruína
grande parte do território e da população. Para além disso, de Setembro de
1943 a Abril de 1945, o Norte do país atravessou uma convulsão que era em
tudo, excepto oficialmente, uma guerra civil total.
Como antigo país do Eixo, a Itália foi objecto de suspeitas, tanto no
Ocidente como no Leste. Até à ruptura de Tito com Estaline, a disputa
territorial com a Jugoslávia deu origem à fronteira mais instável e
potencialmente explosiva da Guerra Fria, e as relações difíceis do país com o
seu vizinho comunista foram agravadas pela presença em Itália do maior
partido comunista fora do bloco soviético: 4 350 000 votos (19% do total) em
1946, que subiram para 6 122 000 (23% do total) em 1953. No mesmo ano, o
Partito Communista Italiano (PCI) alardeava ter 2 145 000 membros que
pagavam quota. A influência do partido no país era ainda mais acentuada
através do seu quase monopólio do poder em certas regiões (nomeadamente
na Emília Romana, em redor da cidade de Bolonha), o apoio que podia
esperar do Partito Socialista Italiano (PSI) de Pietro Nenni(5) e a grande
popularidade do seu subtil e ponderado líder, Palmiro Togliatti.
Por todas estas razões, a vida intelectual na Itália do pós-guerra estava
altamente politizada e intimamente relacionada com a existência do
comunismo. A esmagadora maioria dos jovens intelectuais italianos,
incluindo mesmo alguns tentados pelo fascismo, foi formada à sombra de
Benedetto Croce. A mistura caracteristicamente croceana de idealismo
hegeliano em filosofia e liberalismo oitocentista em política, proporcionou
uma referência ética a uma geração de intelectuais antifascistas, mas, nas
circunstâncias do pós-guerra, tal parecia manifestamente insuficiente. A
escolha real que os Italianos enfrentavam configurava uma alternativa nítida:
ou o clericalismo politizado – a aliança de um Vaticano conservador (dirigido
pelo papa Pio XII) com os democratas-cristãos apoiados pelos Estados
Unidos – ou então, o marxismo político.
O PCI tinha uma qualidade especial que o distinguia dos outros partidos
comunistas do Leste e do Ocidente: desde o início fora dirigido por
intelectuais. Togliatti, tal como António Gramsci e outros jovens fundadores
do partido 20 anos antes, era muito mais inteligente – e respeitador da
inteligência – do que os líderes da maioria dos outros partidos comunistas da
Europa. Para além disso, na década posterior à Segunda Guerra Mundial, o
partido acolheu favorável e abertamente os intelectuais como membros e
aliados, e teve o cuidado de reduzir o tom daqueles elementos da retórica do
partido que eram susceptíveis de os afastar. Na verdade, Togliatti arquitectou
conscientemente o apelo do comunismo aos intelectuais italianos com uma
fórmula da sua autoria que dizia: «metade Croce e metade Estaline.»
A fórmula teve um sucesso muito particular. O caminho que ia do
antifascismo liberal de Croce ao marxismo político foi trilhado por alguns dos
mais talentosos jovens líderes do Partido Comunista Italiano, homens como
Giorgio Amendola, Lucio Lombardo Radice, Pietro Ingrao, Carlo Cassola e
Emilio Sereni, tendo todos eles ido do mundo da filosofia e da literatura para
o da política comunista. Após 1946, associaram-se a homens e mulheres
desiludidos com o fracasso do Partido da Acção em introduzir na prática as
aspirações da resistência do tempo da guerra, assinalando o fim das
esperanças de uma alternativa secular, radical e não marxista na vida pública
italiana. «Croceanos envergonhados» foi o que, à época, lhes chamou um
escritor.
Apresentado como a voz do progresso e da modernidade numa terra
estagnada, e como a maior esperança de reforma social e política, o PCI
reuniu ao seu redor uma corte de académicos e escritores de pensamento
semelhante, que deram ao partido e à sua política uma aura de
respeitabilidade, inteligência e até de ecumenismo. Porém, com a divisão da
Europa, a estratégia de Togliatti ficou sob pressão crescente. A crítica
endereçada pelos Soviéticos ao PCI na primeira reunião do Cominform, em
Setembro de 1947, mostrou a determinação de Estaline em controlar de forma
estrita os comunistas italianos (tal como os franceses). As suas tácticas
políticas deveriam ser mais coordenadas com Moscovo e a sua complacência
nos assuntos culturais deveria ser substituída pela tese de Zdanov das «duas
culturas», a qual não admitia compromissos. Entretanto, com a intervenção
descarada, mas bem sucedida, da América em favor dos democratas-cristãos
nas eleições de 1948, começou a parecer ingénua a política de Togliatti, no
pós-guerra, de trabalhar no seio das instituições da democracia liberal.
Independentemente das suas dúvidas, Togliatti não tinha outra opção que
não fosse exercer um controlo mais apertado e impor normas estalinistas. Isto
provocou dissidências em alguns intelectuais do partido, que até então
sentiram ter liberdade para distinguir entre a autoridade política do partido,
que não questionavam, e o terreno da «cultura», onde prezavam a sua
autonomia. Como o editor do jornal cultural comunista Il Politechnico, Elio
Vittorini, recordou anteriormente a Togliatti, numa carta aberta de Janeiro de
1947, a «cultura» não pode ser subordinada à política, excepto prejudicando-
se a si mesma e sacrificando a verdade.
Togliatti, que tinha passado os anos 30 em Moscovo e desempenhara um
papel de liderança nas operações do Comintern em Espanha, em 1937-1938,
pensava de forma diferente. Num partido comunista, todos recebiam ordens
de cima, tudo estava subordinado à política. A «cultura» não era uma área
protegida que a ordem soviética não precisasse de dirigir. Vittorini e os seus
companheiros teriam de aceitar a linha do partido na literatura, na arte e nas
ideias, ou então teriam de sair. Nos anos seguintes, o partido italiano
aproximou-se mais da autoridade soviética, e Vittorini e muitos outros
intelectuais foram-se devidamente afastando. Apesar da lealdade firme de
Togliatti a Moscovo, o PCI nunca perdeu totalmente uma certa «aura» de não
dogmatismo, sendo o único partido comunista que tolerava e acolhia mesmo
as divergências inteligentes e a autonomia de pensamento. Esta reputação ser-
lhe-ia proveitosa décadas mais tarde.
De facto, os críticos de Togliatti na esquerda não comunista ficavam
constantemente embaraçados pela percepção generalizada que havia no país e
(sobretudo) no estrangeiro de que o PCI não era como os outros partidos
comunistas. Como Ignazio Silone reconheceria mais tarde, os socialistas
italianos e outros só tinham de se culpar a si mesmos. As relações estreitas
entre comunistas e socialistas em Itália, pelo menos até 1948, e a consequente
relutância dos marxistas não comunistas em criticar a União Soviética,
impediram o surgimento na política italiana de uma clara alternativa de
esquerda ao comunismo.
Por outro lado, se a Itália fugia à norma da Europa Ocidental pelas
qualidades relativamente simpáticas dos seus comunistas, ela era atípica,
claro, por outra razão. O derrube de Mussolini, em 1943, não podia fazer
esquecer a cumplicidade de muitos intelectuais com o seu poder ao longo de
20 anos. O ultranacionalismo de Mussolini fora dirigido, entre outras coisas,
contra a cultura e a influência estrangeiras; e o fascismo favoreceu
abertamente os intelectuais «nacionais» ao aplicar à literatura e à arte políticas
autárcicas de protecção e substituição, semelhantes às impostas contra
produtos estrangeiros mais vulgares.
Inevitavelmente, muitos intelectuais italianos (sobretudo os mais novos)
aceitaram o apoio e os subsídios do Estado fascista: a alternativa era o exílio
ou o silêncio. O próprio Elio Vittorini ganhou prémios em concursos literários
fascistas. Vittorio de Sica era um actor bem conhecido dos filmes da era
fascista antes de se tornar o expoente máximo do neo-realismo do pós-guerra.
O seu colega neo-realista Roberto Rossellini, cujos filmes neste mesmo
período eram marcadamente comunistas nas suas simpatias políticas, fizera
documentários e longas-metragens, apenas alguns anos antes, na Itália de
Mussolini, com ajuda das autoridades, e o seu caso não foi único. Em 1943, o
poder de Mussolini era a ordem natural das coisas para os muitos milhões de
Italianos que não possuíam memórias adultas de qualquer outro governo em
tempo de paz(6).
O estatuto moral da grande maioria dos intelectuais italianos nos anos do
pós-guerra espelhava assim a posição internacional bastante ambivalente do
país como um todo, demasiado e desconfortavelmente implicado no seu
passado autoritário para ter um papel de protagonista nos assuntos europeus
dessa altura. Em todo o caso, a Itália estivera durante muito tempo
estranhamente à margem da cultura europeia moderna, talvez devido à sua
história e aos seus pontos centrífugos: Nápoles, Florença, Bolonha, Milão e
Turim formavam pequenos mundos próprios, com as suas próprias
universidades, jornais, academias e grupos intelectuais. Roma era a origem da
autoridade, a fonte do mecenato e a sede do poder, mas nunca monopolizou a
vida cultural da nação.
Em suma, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, só podia
haver um lugar para a vida intelectual propriamente europeia, só podia haver
uma cidade, uma capital nacional cujas obsessões e divisões podiam reflectir
e definir a condição cultural do continente como um todo. Os lugares
concorrentes estavam presos, destruíram-se a si mesmos, ou então estavam
absortos nas suas próprias questões. Desde os anos 20, à medida que os
Estados europeus iam sucessivamente caindo nas mãos de ditadores, os
refugiados políticos e os exilados intelectuais dirigiram-se para França.
Alguns permaneceram durante a guerra e juntaram-se à resistência, tendo
morrido muitos, vítimas de Vichy e dos nazis. Alguns fugiram para Londres,
Nova Iorque ou para a América Latina, mas regressariam depois da
libertação. Outros, como Czeslaw Milosz e o historiador e jornalista político
húngaro François Fejtö, só emigraram quando os golpes de Estado soviéticos
na Europa de Leste os forçaram a fugir, altura em que parecia absolutamente
natural emigrar directamente para Paris.
A consequência foi, pela primeira vez desde os anos 40 do século XIX,
quando Karl Marx, Heinrich Heine, Adam Mickiewicz, Giuseppe Mazzini e
Alexander Herzen viviam todos no seu exílio parisiense, a França ser uma vez
mais a casa europeia natural dos intelectuais deserdados, uma casa de
transações do pensamento e da política europeus. A vida intelectual parisiense
no pós-guerra era assim duplamente cosmopolita: homens e mulheres de toda
a Europa tomavam parte nela e este era o único palco em que as opiniões e as
disputas de um país eram amplificadas e transmitidas a uma grande audiência
internacional.
Assim, apesar da derrota esmagadora da França em 1940, da sua
subjugação humilhante sob a ocupação germânica de quatro anos, da
ambiguidade moral (e pior do que isso) do regime de Vichy do marechal
Pétain e da subordinação embaraçosa do país aos Estados Unidos e à Grã-
Bretanha na diplomacia internacional nos anos que se seguiram à guerra, a
cultura francesa tornou-se novamente no centro da atenção internacional: os
intelectuais franceses adquiriram um significado internacional especial como
porta-vozes da época e a tendência geral dos argumentos políticos franceses
sintetizava a ruptura ideológica do mundo. Uma vez mais – e pela última vez
– Paris era a capital da Europa.
A ironia deste desfecho não escapou aos contemporâneos. Foi um acaso
histórico que nestes anos conduziu os intelectuais franceses para a ribalta,
porque as suas próprias preocupações não eram menos paroquiais do que as
dos intelectuais de todas as outras nações. A França no pós-guerra estava tão
absorta nos seus próprios problemas de ajuste de contas, escassez de bens e
instabilidade política como qualquer outro país. Os intelectuais franceses
reinterpretaram a política do resto do mundo à luz das suas próprias obsessões
e a vaidade narcisista de Paris no seio da França era projectada sem
autocrítica sobre o mundo em geral. Como Arthur Koestler os descreveu de
forma memorável, os intelectuais franceses do pós-guerra («os pequenos
namoros de Saint-Germain-des-Prés») eram «mirones que espreitam os
deboches da História por um buraco na parede». Todavia a História concedeu-
lhes um poleiro privilegiado.
As divisões que iriam marcar a comunidade de intelectuais franceses em
anos posteriores não eram imediatamente evidentes. Quando Jean-Paul Sartre
fundou Les Temps modernes, em 1945, o conselho de redacção incluía não
apenas Simone de Beauvoir e Maurice Merleau-Ponty, mas também Raymond
Aron, reflectindo um amplo consenso em redor da política de esquerda e da
filosofia «existencialista». Esta última designação também abrangia (com
bastante incómodo da sua parte) Albert Camus, que era na altura amigo
íntimo de Sartre e de Simone de Beauvoir e, fazendo uso da sua coluna nas
páginas editoriais do jornal Combat, o escritor mais influente na França do
pós-guerra.
Partilhavam todos uma certa atitude «resistencialista» (embora apenas
Camus tivesse participado de facto na resistência; Aron estava com os
Franceses Livres em Londres e os outros passaram os anos da ocupação mais
ou menos sem pertubações). Segundo as palavras de Merleau-Ponty, a luta
durante a guerra permitiu aos intelectuais franceses a superação do dilema
«ser ou fazer». Daí em diante estavam «na» História e tinham de se empenhar
nela a fundo. A sua situação não mais lhes permitiria o luxo de recusarem
fazer escolhas políticas. A verdadeira liberdade consistia em aceitar esta
verdade. Como disse Sarte, «ser livre não é fazer o que se quer, mas querer
fazer o que se pode».
Outra lição que Sartre e a sua geração afirmaram ter aprendido com a
guerra foi a inevitabilidade – e, por isso, em certa medida, a desejabilidade –
da violência política. Esta lição estava longe de ser uma interpretação
propriamente francesa das experiências recentes: em 1945, muitos europeus
tinham vivido três décadas de violência militar e política. Jovens de todo o
continente estavam habituados a um grau de brutalidade pública, quer nas
palavras quer nos actos, que teria chocado os seus antepassados do século
XIX. Aliás, a retórica política contemporânea proporcionava uma «dialéctica»
com que se podia integrar os apelos à violência e ao conflito: Emmanuel
Mounier, editor da revista Esprit e figura influente na esquerda cristã,
certamente exprimiu o que muitos pensavam quando, em 1949, afirmou ser
uma hipocrisia discordar da violência ou da luta de classes quando a
«violência branca» era exercida todos os dias sobre as vítimas do capitalismo.
No entanto, em França, a atracção das soluções violentas era mais do que
apenas uma projecção das experiências recentes; era também um eco de uma
herança mais antiga. As acusações de colaboracionismo, denúncias e traição,
pedidos de castigo e exigências de um novo começo não começaram com a
Libertação. Recapitularam uma venerável tradição francesa. Desde 1792 que
os pólos revolucionários e contra-revolucionários da vida pública francesa
sempre exemplificaram e reforçaram a divisão do país em duas facções: a
favor e contra a monarquia, a favor e contra a revolução, a favor e contra
Robespierre, a favor e contra as constituições de 1830 e 1848, a favor e contra
a Comuna. Nenhum outro país teve uma tão longa e continuada experiência
de bipolarização política, a qual foi subavaliada pela historiografia
convencional do mito revolucionário nacional na forma como foi inculcada
durante décadas aos alunos franceses.
Para além disso, a França, mais do que qualquer outro Estado-nação
ocidental, era um país cuja intelligentsia aprovava e até prestava culto à
violência como instrumento da política pública. George Sand recorda um
passeio dado ao longo do Sena, em 1835, com um amigo que argumentava a
favor da urgência de uma revolução proletária sangrenta. Só quando o Sena
correr vermelho – dizia ela –, quando Paris arder e os pobres assumirem o seu
devido lugar, poderá haver justiça e paz. Quase exactamente um século
depois, o ensaísta inglês Peter Quennell descrevia no New Statesman, de
Londres, «o culto quase patológico da violência que parece dominar tantos
escritores franceses».
Por isso, quando Edouard Herriot, velho político do Partido Radical,
presidente da Assembleia Nacional francesa até morrer, em 1957, com 85
anos de idade, anunciou durante a Libertação que a vida política normal não
poderia ser restabelecida até que «a França tivesse passado antes por um
banho de sangue», a sua linguagem não destoava aos ouvidos dos Franceses
comuns, mesmo vinda de um parlamentar barrigudo da província que
pertencia ao centro político. Os leitores e escritores franceses há muito que
estavam familiarizados com a ideia de que a mudança histórica e o
derramamento de sangue purificador caminham a par. Quando Sartre e os
seus contemporâneos insistiam que a violência comunista era uma forma de
«humanismo proletário», a «parteira da história», estavam a ser mais
convencionais do que pensavam.
Esta familiaridade com a violência revolucionária que figura no
imaginário francês, aliada a recordações em tons de sépia da velha aliança
franco-russa, predispôs os intelectuais em França a saudar a apologia
comunista da brutalidade soviética com uma atenção manifestamente
aprovadora. A dialéctica também ajudou. Comentando o julgamento Slansky
em Les Temps modernes, de Sartre, Marcel Péju chamava a atenção dos seus
leitores para não haver nada de censurável em matar os inimigos políticos. O
que havia de censurável em Praga era que «a cerimónia com que são mortos
[ou seja, o julgamento encenado] parece uma caricatura do que poderia ser se
esta violência se justificasse de uma perspectiva comunista. Aliás, as
acusações não são prima facie implausíveis».
De visita ao bloco soviético, os intelectuais franceses mostraram mais
entusiasmo lírico perante o comunismo em construção do que a maioria. Por
exemplo, o poeta e surrealista Paul Eluard, dirigindo-se a um público em
Bucareste (espantado, por certo), em Outubro de 1948, afirmou: «Venho de
um país onde já ninguém ri, onde ninguém canta. A França é uma sombra.
Mas vós descobristes o aspecto radioso da Felicidade.» Um ano mais tarde,
declarou o mesmo Eluard, desta vez na Hungria, ocupada pelos Soviéticos:
«Basta que um povo seja dono da sua terra para que em poucos anos a
Felicidade seja a lei suprema e a Alegria o horizonte permanente».
Eluard era comunista, mas o que sentia era partilhado mesmo por muitos
intelectuais e artistas que nunca aderiram ao Partido. Após o golpe de Praga,
em 1948, Simone de Beauvoir tinha a certeza de que os comunistas trilhavam,
em toda a parte, o caminho da vitória. Como o seu contemporâneo Paul Nizan
escrevera muitos anos antes, um filósofo revolucionário só pode ser eficaz se
escolher a classe que apoia a Revolução, e os comunistas eram os
representantes, ungidos por si mesmos, dessa classe. Os intelectuais
comprometidos estavam obrigados a tomar posição ao lado do progresso e da
História, quaisquer que fossem as ocasionais vicissitudes morais(7).
A importância da questão comunista para os intelectuais em França era
também consequência da omnipresença do Partido Comunista Francês (PCF).
Embora nunca tivesse sido tão grande quanto o partido italiano (que teve um
máximo de 800 000 membros), o PCF teve um êxito eleitoral ainda maior
logo no pós-guerra, com 28% de votos, em 1946. Ao contrário dos italianos,
os comunistas franceses não tiveram de enfrentar um partido católico
unificado de centro-direita. Por outro lado, o Partido Socialista Francês,
graças à sua longa experiência da táctica comunista no período que decorreu
entre as duas guerras, não alinhou com os comunistas nas primeiras fases da
Guerra Fria (embora uma minoria dos seus membros tivesse aprovado tal
alinhamento). Por isso, o PCF era mais forte e estava mais isolado do que
qualquer outro partido comunista.
O PCF era também particularmente avesso aos intelectuais. Contrastando
muito com o italiano, o PCF foi sempre dirigido por burocratas do partido,
duros e obtusos, como, por exemplo, o ex-mineiro Maurice Thorez, que
dirigiu o partido de 1932 até morrer, em 1964. Para Estaline, a qualidade mais
importante de Thorez – como a de Gottwald, na Checoslováquia – era poder-
se confiar que faria o que lhe dissessem e que não faria perguntas. Não foi
coincidência que, tendo desertado do Exército francês durante a falsa guerra
de 1939-1940, Thorez passasse os cinco anos seguintes em Moscovo. O
Partido Comunista Francês era, portanto, um partido satélite de confiança,
embora um pouco rígido, um instrumento útil para proclamar e praticar a
linha estalinista.
Para a geração estudantil do pós-guerra, que pretendia liderança, direcção,
disciplina e promessas de acção em aliança com «os trabalhadores», a própria
rigidez do PCF exerceu alguma atracção, pelo menos durante alguns anos, tal
como os seus equivalentes checo e polaco inspiraram inicialmente entusiasmo
entre os seus pares mais a leste. Todavia, para os intelectuais franceses já mais
estabelecidos, o fervor com que os comissários culturais do PCF impunham a
ortodoxia através das páginas túrgidas do diário do Partido, L’Humanité, e de
outras publicações, era um desafio quotidiano às suas crenças progressistas.
Escritores e académicos que decidiram fazer causa comum com o PCF não
podiam esperar, ao contrário do que sucedeu com Vittorini em Itália e o grupo
dos historiadores do Partido Comunista, em Londres, que lhes fosse
concedida alguma margem de manobra(8).
Por esta razão, as afinidades da intelectualidade parisiense são o nosso
guia mais fiável para as linhas de fractura das crenças e das opiniões da
Guerra Fria na Europa. Em Paris, como em nenhum outro lado, os cismas
intelectuais traçaram os contornos dos cismas políticos, tanto no país como no
estrangeiro. Os julgamentos encenados da Europa de Leste foram debatidos
em Paris com particular intensidade, porque muitas das suas vítimas
comunistas viveram e trabalharam em França: Laszlo Rajk fora internado em
França depois da guerra civil espanhola; Artur London trabalhara na
resistência francesa, casara com uma comunista francesa proeminente e era o
futuro sogro de outra; «André Simone» (Otto Katz, outra vítima do
julgamento Slansky) era amplamente conhecido nos círculos jornalísticos
parisienses pelo seu trabalho nos anos 30; Traicho Kostov era bastante
recordado pelo tempo que passara nos serviços búlgaros de Paris – a sua
prisão em Sófia preencheu a primeira página do jornal Combat, de Camus.
Paris foi também o lugar onde se realizaram dois importantes julgamentos
políticos que tiveram por si só grande influência. Em 1946, Viktor
Kravchenko, um burocrata soviético de estatuto intermédio, que desertou para
os Estados Unidos em Abril de 1944, publicou as suas memórias intituladas
Escolhi a Liberdade. Quando apareceram em Paris, em Maio do ano seguinte,
com o título J’ai choisi la liberté, fizeram sensação devido ao relato das
purgas e dos massacres soviéticos e, sobretudo, do sistema de campos de
concentração soviéticos, o Gulag. Em Novembro de 1947, dois meses após a
reunião do Cominform na Polónia, na qual os líderes do PCF levaram uma
severa reprimenda por não se terem conformado com as orientações da nova
linha dura soviética, o periódico intelectual do partido, Les Lettres françaises,
publicou uma série de artigos em que se afirmava que o livro de Kravchenko
era um conjunto de mentiras fabricado pelos serviços secretos americanos.
Quando o jornal repetiu e ampliou estas acusações em Abril de 1948,
Kravchenko interpôs uma acção por difamação.
No julgamento, que durou de 24 de Janeiro a 4 de Abril de 1949,
Kravchenko apresentou a seu favor uma série de testemunhas bastante
obscuras, mas os acusados puderam exibir um conjunto de depoimentos de
intelectuais não comunistas importantes: o romancista da Resistência Vercors,
o físico e prémio Nobel Frédéric Joliot-Curie, Jean Cassou, crítico de arte,
herói da Resistência e director do Museu de Arte Moderna de Paris e muitos
outros. Todos eles atestaram o registo impecável do Partido Comunista
Francês na Resistência, as credenciais revolucionárias indiscutíveis da União
Soviética e as implicações inaceitáveis das afirmações de Kravchenko, se
fossem verdadeiras. No final do julgamento, foi atribuído a Kravchenko
apenas um franco por danos simbólicos por insultos.
Esta vitória «moral» da esquerda progressista coincidiu com a primeira
série de julgamentos encenados na Europa de Leste e o assumir de posições a
favor e contra a União Soviética por parte dos intelectuais. Como Sartre
começou a afirmar alguns meses antes: «Temos de escolher entre a URSS e o
bloco anglo-saxónico.» Todavia, para muitos críticos da União Soviética,
Kravchenko não fora o porta-voz ideal. Tendo sido durante muito tempo um
apparatchik soviético, que escolheu o exílio nos EUA, não atraía aqueles
intelectuais anticomunistas europeus, que constituíam talvez a maioria, que
estavam tão preocupados em manter as suas distâncias em relação a
Washington, como estavam em negar a Moscovo o monopólio das credenciais
progressistas. Em relação a tal pessoa, escreveram Sartre e Merleau-Ponty em
Janeiro de 1950, não podemos ter sentimentos de fraternidade: ele é a prova
viva do declínio «dos valores marxistas na própria Rússia».
Mas houve outro julgamento que se revelou mais difícil de ignorar. Em 12
de Novembro de 1949, quatro semanas após a execução em Budapeste de
Laszlo Rajk, David Rousset publicou no Le Figaro Littéraire um apelo
dirigido aos antigos internados nos campos nazis para o ajudarem a conceber
um inquérito relacionado com os campos de concentração soviéticos.
Baseando-se no código do trabalho correctivo da própria União Soviética,
argumentou que estes não eram campos de reeducação, como era afirmado
oficialmente, mas sim campos de concentração que faziam parte da economia
e do sistema penal soviéticos. Um mês mais tarde, novamente em Les Lettres
françaises, os escritores comunistas Pierre Daix e Claude Morgan acusaram-
no de inventar as suas fontes e de caricaturar a URSS com calúnias vis.
Rousset interpôs uma acção por difamação.
As dramatis personae deste confronto eram particularmente interessantes.
Rousset não era um desertor do Kremlin. Era francês, socialista de longa data,
durante algum tempo trotskista, herói da Resistência e sobrevivente de
Buchenwald e Neuengamme, amigo de Sartre e co-fundador com ele, em
1948, de um movimento político que durou pouco, o Rassemblement
démocratique révolutionnaire. Que tal homem acusasse a União Soviética de
dirigir campos de concentração ou de trabalho era romper drasticamente com
os alinhamentos políticos convencionais da época. Daix também fora preso
por actividades na Resistência e deportado, no seu caso para Mauthausen.
Para que dois homens de esquerda, antigos resistentes e sobreviventes de
campos de concentração, entrassem desta maneira em desacordo
exemplificava até que ponto as alianças e as fidelidades políticas do passado
estavam agora subordinadas à simples questão do comunismo.
A lista de testemunhas de Rousset incluía um diversidade de especialistas
credíveis e com conhecimento directo do sistema prisional soviético,
culminando no depoimento dramático de Margarete Buber-Neumann, que
relatou não só a sua experiência nos campos soviéticos, mas também em
Ravensbrück, para onde fora mandada depois de Estaline a ter devolvido aos
nazis, em 1940, como parte integrante dos pequenos acordos que
acompanharam o Pacto Molotov-Ribbentrop. Rousset ganhou a sua causa.
Teve até algum impacto na consciência e na consciencialização dos seus
contemporâneos. Depois de ser conhecido o veredicto, em Janeiro de 1950,
Maurice Merleau-Ponty confessou que «os factos punham completamente em
questão o significado do sistema russo». Simone de Beauvoir sentiu-se
suficientemente constrangida para inserir no seu novo roman-à-clef, Os
Mandarins, uma série de debates angustiados entre os seus protagonistas
acerca das notícias sobre os campos soviéticos (embora tenha ajustado
lisonjeiramente a cronologia para que parecesse que Sartre e os seus amigos
já conheciam tais matérias no início de 1946).
Para contradizer Rousset e outros como ele – e manter os intelectuais
«progressistas» na linha – os partidos comunistas utilizaram a alavanca moral
do «antifascismo». Esta tinha o atractivo de ser familiar. Para muitos
europeus, a sua primeira experiência de mobilização política foi nas ligas
antifascistas das Frentes Populares dos anos 30. Para muitas pessoas, a
Segunda Guerra Mundial era recordada como uma vitória sobre o fascismo e
foi dessa forma celebrada em França e na Bélgica, sobretudo nos anos do pós-
guerra. O «antifascismo» constituía um laço com tempos mais simples, que
dava segurança e era ecuménico.
No centro da retórica antifascista, tal como era utilizada pela esquerda
oficial, estava uma visão binária da fidelidade política: nós somos o que eles
não são. Eles (os fascistas, os nazis, os franquistas, os nacionalistas) são a
Direita, nós somos a Esquerda; eles são Reaccionários, nós somos
Progressistas; eles são pela guerra, nós somos a favor da paz; eles são as
forças do Mal, nós estamos do lado do Bem. Segundo as palavras de Klaus
Mann, proferidas em Paris, em 1935, independentemente do que o fascismo
seja, nós não somos fascistas e somos contra ele. Como a maioria dos
opositores aos antifascistas tornou claro que a sua política era sobretudo
anticomunista (o que, durante a guerra, fazia parte da atracção do nazismo
junto das elites conservadoras em países tão afastados como a Dinamarca e a
Roménia), esta clara simetria favorecia na polémica os comunistas. O
filocomunismo, ou, pelo menos, o antianticomunismo, era o corolário lógico
do antifascismo(9).
A União Soviética, é claro, tinha todo o interesse em desviar a atenção
para as suas credenciais antifascistas nos anos do pós-guerra, sobretudo
depois de os Estados Unidos terem substituído a Alemanha como seu inimigo.
A retórica antifascista era agora dirigida contra os Estados Unidos, que, em
primeiro lugar, eram acusados de favorecer os fascistas revanchistas e, em
segundo, por extensão, eram apresentados como constituindo uma ameaça
protofascista em si mesma. O que tornou particularmente eficaz esta táctica
comunista foi, evidentemente, o receio geral e genuíno na Europa de um
regresso do próprio fascismo, ou, pelo menos, de uma onda de simpatia
neofascista a partir das ruínas.
O «antifascismo», com o seu subtexto de resistências e alianças, estava
também relacionado com a imagem favorável, que se mantinha, da União
Soviética durante a guerra, a genuína simpatia que muitos europeus ocidentais
sentiam pelos vencedores heróicos de Kursk e Estalinegrado. Como Simone
de Beauvoir escreveu nas suas memórias, numa afirmação caracteristicamente
arrebatada: «Não havia reservas na nossa simpatia pela União Soviética: os
sacrifícios do povo russo provaram que os seus líderes encarnavam os seus
desejos.» Estalinegrado, segundo Edgar Morin, acabava com todas as
dúvidas, com todas as críticas. Também ajudava que Paris tivesse sido
libertada pelos Aliados ocidentais, cujos pecados pareciam assim maiores nas
memórias do país.
Mas a russofilia necessitava de mais razões para ser completamente
explicada. É importante recordar o que estava a acontecer a apenas alguns
quilómetros para leste. No Ocidente, o entusiasmo intelectual pelo
comunismo tendia a ser maior não nos tempos do «comunismo goulash» ou
do «socialismo de rosto humano», mas sim nos momentos em que se davam
as piores crueldades do regime: 1935-1939 e 1944-1956. Escritores,
professores universitários, artistas, professores não universitários e jornalistas
admiravam muitas vezes Estaline, não apesar das suas culpas, mas devido a
elas. Era quando assassinava pessoas numa escala industrial, quando os
julgamentos encenados mostravam o comunismo soviético na sua
representação mais macabra, que os homens e as mulheres que estavam fora
do alcance de Estaline eram mais seduzidos pelo homem e pelo seu culto. Era
o abismo absurdamente grande que separava a retórica da realidade que o
tornava tão irresistível a homens e mulheres de boa-vontade em busca de uma
Causa(10).
O comunismo entusiasmava os intelectuais de uma forma que nem Hitler
nem (sobretudo) a democracia liberal podiam esperar. O comunismo era
exótico, quer em termos nacionais quer em termos de heroicidade. Em 1950,
Raymond Aron fez notar «a surpresa grotesca […] de a esquerda europeia
estar a tomar por seu deus alguém que não passava de um construtor de
pirâmides». Mas seria este facto assim tão surpreendente? Jean-Paul Sartre,
pela sua parte, sentiu-se muito atraído pelos comunistas precisamente quando
o «construtor de pirâmides» encetava os seus projectos finais e mais loucos. A
ideia de que a União Soviética estava empenhada numa momentos a procura,
cuja verdadeira ambição justificava e desculpava as suas falhas, constituía um
atractivo apenas para os intelectuais racionalistas. O grande defeito do
fascismo fora ter objectivos paroquiais, enquanto o comunismo, por seu lado,
se dirigia a metas impecavelmente universais e transcendentes. Os seus
crimes eram desculpados, por muitos observadores não comunistas, como o
preço a pagar, por assim dizer, pelo facto de desempenhar um papel na
História.
Apesar disso, nos primeiros anos da Guerra Fria havia muitos na Europa
Ocidental que podiam ter sido mais abertamente críticos de Estaline, da União
Soviética e dos comunistas dos seus respectivos países, se não tivessem
ficado inibidos pelo receio de ajudar e dar alento aos seus opositores políticos.
Também isto era uma herança do «antifascismo», ou seja, da insistência de
que «não havia inimigos na esquerda» (uma regra a que o próprio Estaline,
verdade seja dita, prestava pouca atenção). Como explicava o abade
progressista Boulier a François
Fejtö, ao tentar impedi-lo de escrever sobre o julgamento de Rajk, chamar
a atenção para os pecados do comunismo era «fazer o jogo dos
imperialistas»(11).
Todavia, este receio de favorecer os interesses anti-soviéticos não era
novo, e no início dos anos 50 era uma consideração importante nos debates
intelectuais europeus, sobretudo em França. Mesmo depois de os julgamentos
encenados da Europa de Leste terem finalmente levado Emmanuel Mounier e
muitos dos que pertenciam ao seu grupo na revista Esprit a distanciar-se, sem
se desculparem, do Partido Comunista Francês, tinham o especial cuidado de
negar qualquer sugestão de que se tinham tornado «anticomunistas» ou, pior
ainda, tinham deixado de ser «antiamericanos». O antianticomunismo estava a
tornar-se um fim político e cultural em si mesmo.
Deste modo, de um lado da divisão cultural europeia estavam os
comunistas e os seus amigos e apologistas: os progressistas e os
«antifascistas». Do outro, muito mais numerosos (fora do bloco soviético),
mas também nitidamente heterogéneos, estavam os anticomunistas. Uma vez
que os anticomunistas ocupavam todo o espectro que ia dos trotskistas aos
neofascistas, os críticos da União Soviética encontravam-se muitas vezes a
partilhar a mesma plataforma ou a assinar a mesma petição com alguns cuja
política muitas vezes abominavam sob outros aspectos. Tais alianças profanas
eram um alvo preferencial dos polemistas soviéticos e, por vezes, era difícil
convencer os liberais que criticavam o comunismo a tornar públicas as suas
opiniões devido ao seu receio de serem acusados de reaccionários. Como
explicou Arthur Koestler a um grande público no Carnegie Hall, em Nova
Iorque, no ano de 1948: «Não podemos evitar que as pessoas tenham razão
por más razões […]. Este receio de nos encontrarmos em má companhia não é
uma expressão de pureza política, mas de falta de confiança em si mesmo.»
Os intelectuais verdadeiramente reaccionários eram poucos na primeira
década do pós-guerra. Mesmos esses, como Jacques Laurent e Roger Nimier,
em França, que se diziam, sem constrangimento, de direita, tinham um certo
prazer em reconhecer que a sua causa era vã, assumindo uma espécie de
nostalgia neoboémia pelo passado desacreditado, e exibindo a sua irrelevância
política como um ponto de honra. Se a esquerda navegava a favor do vento e
tinha a História do seu lado, então uma nova geração de literatos de direita
comprazia-se em ser perdedora e em lançar provocações, transformando a
genuína decadência e o solipsismo mórbido manifestado por escritores do
período que mediou entre as duas guerras, como Drieu la Rochelle e Ernst
Jünger, num estilo social e elegante, antecipando assim os «jovens
conservadores» da Grã-Bretanha de Thatcher.
Mais representativos, pelo menos em França e na Grã-Bretanha, eram os
intelectuais conservadores cuja aversão ao comunismo pouco mudara em
trinta anos. Em ambos os países, como também em Itália, intelectuais
católicos activos tinham um papel proeminente nas polémicas anticomunistas.
Evelyn Waugh e Graham Greene sucederam a Hilaire Belloc e G. K.
Chesterton no espaço reservado pela vida cultural inglesa aos talentosos e
dispépticos tradicionalistas católicos. Mas enquanto os conservadores ingleses
se poderiam enfurecer com a vacuidade da vida contemporânea ou retirar-se
dela completamente, um católico francês como François Mauriac era muito
naturalmente levado a entrar em polémicas com a esquerda política.
Durante o longo empenhamento de François Mauriac nos assuntos
públicos, no período do pós-guerra (depois dos 80 anos ainda escrevia com
regularidade no Le Figaro, tendo morrido em 1970 com 85 anos), os seus
argumentos eram quase sempre construídos numa base ética, primeiro contra
Albert Camus sobre a necessidade das purgas do pós-guerra, mais tarde
contra os seus colegas conservadores sobre a guerra na Argélia – que
desaprovava – e sempre contra os comunistas, que abominava. Como
explicou aos leitores de Le Figaro, em 24 de Outubro de 1949, a justificação
dos comunistas franceses para os julgamentos encenados em Budapeste – que
então decorriam – era «une obscénité de l’esprit». Mas a clareza moral de
Mauriac sobre os crimes do comunismo foi acompanhada nestes anos por
uma antipatia igualmente moral pelos «valores alienantes» da sociedade
americana. Como muitos europeus conservadores, sentia sempre algum
desconforto com o alinhamento com a América que a Guerra Fria exigia
deles.
Isto não constituía problema para realistas liberais como Raymond Aron.
Tal como muitos outros «guerreiros da Guerra Fria» do centro político
europeu, Aron tinha apenas uma simpatia moderada pelos Estados Unidos.
«Não me parece que a economia dos Estados Unidos seja um modelo para a
humanidade nem para o Ocidente», escreveu ele. Todavia, Aron compreendeu
a verdade central da política europeia depois da guerra: os conflitos internos e
externos estavam a partir de agora interligados. «Nos nossos tempos»,
escreveu ele em Julho de 1947, «a escolha que os indivíduos e as nações
enfrentam, e que determina tudo o mais, é de natureza global, ou seja, é, de
facto, uma escolha geográfica. Ou estamos no universo dos países livres ou,
então, nos territórios colocados sob o poder cruel dos Soviéticos. A partir de
agora, em França, todos temos de explicitar a nossa escolha.» Ou, como disse
em outra ocasião: «Nunca se trata de uma luta entre o bem e o mal, mas entre
o preferível e o detestável.»
Os intelectuais liberais, quer de convicções continentais como Aron e
Luigi Einaudi, quer de inclinações britânicas, como Isaiah Berlin, estavam,
portanto, sempre muito mais à vontade do que a maioria dos conservadores no
que respeitava às ligações à América que a história lhes impusera. O mesmo
acontecia, por curioso que tal possa parecer, com os sociais-democratas. Isto
acontecia porque a memória de Franklin D. Roosevelt estava ainda presente, e
muitos diplomatas e decisores políticos americanos com quem a Europa
lidava nestes anos eram adeptos do New Deal, encorajavam um papel activo
do Estado na política económica e social e cujas simpatias políticas se
dirigiam para o centro-esquerda.
No entanto, também foi o resultado directo da política americana. A AFL-
CIO, os serviços de espionagem americanos e o departamento de Estado
julgavam que os partidos sociais-democratas e trabalhistas moderados e que
tinham por base os sindicatos eram a melhor barreira contra o avanço do
comunismo, sobretudo em França e na Bélgica (em Itália, onde o espectro
político era diferente, dirigiram as suas esperanças e a maior parte dos seus
financiamentos para a democracia-cristã). Até meados de 1947, esta foi uma
aposta incerta. Mas a seguir à expulsão dos partidos comunistas dos governos
francês, belga e italiano, nessa Primavera, e sobretudo depois do golpe de
Praga, em Fevereiro de 1948, os socialistas e os comunistas da Europa
Ocidental separaram-se. Confrontos violentos entre sindicatos comunistas e
socialistas e entre grevistas liderados por comunistas e tropas sob as ordens de
ministros socialistas, ao mesmo tempo que eram divulgadas notícias de
socialistas detidos e presos na Europa de Leste, transformaram muitos sociais-
democratas ocidentais em inimigos inveterados do bloco soviético e dispostos
a receber fundos americanos secretos.
Para socialistas como Léon Blum, em França, ou Kurt Schumacher, na
Alemanha, a Guerra Fria impôs escolhas políticas que eram, sob determinado
aspecto, familiares: conheciam há muito os comunistas e já tinham actividade
política há tempo suficiente para se recordarem das amargas lutas fratricidas
nos anos sinistros que antecederam as alianças formadas pelas Frentes
Populares. Homens mais novos não tinham este consolo. Albert Camus – que
aderiu ao Partido Comunista, na Argélia, nos anos 30, e o abandonou passado
pouco tempo – ao terminar a guerra acreditava convictamente, tal como
muitos dos seus contemporâneos, na coligação entre resistentes comunistas,
socialistas e reformadores radicais de todos os matizes. «O anticomunismo»,
escreveu ele em Argel, em Março de 1944, «é o começo da ditadura».
Camus começou a ter dúvidas durante os julgamentos e as purgas do pós-
guerra, em França, quando os comunistas assumiram uma linha dura como o
Partido da Resistência e exigiram expulsões, prisões e penas de morte para
milhares de colaboracionistas reais ou imaginários. Então, à medida que, a
partir de 1947, as artérias da fidelidade política e intelectual começaram a
endurecer, Camus tendeu cada vez mais a duvidar da boa-fé dos seus aliados
políticos, dúvidas que de início abafou por uma questão de hábito e para
manter a unidade. Cedeu o controlo do jornal Combat, em Junho de 1947, já
não tão confiante e optimista do ponto de vista político quanto estivera três
anos antes. No seu romance mais importante, A Peste, publicado nesse
mesmo ano, era evidente que Camus não concordava com o duro realismo
político dos seus camaradas. Como disse pela boca de uma das suas
personagens (Tarrou): «Decidi rejeitar tudo o que, directa ou indirectamente,
faça morrer as pessoas ou justifique que outros as façam morrer.»
No entanto, Camus sentia ainda relutância em vir a público romper com os
seus antigos amigos. Em público, ainda tentava contrabalançar a crítica
sincera ao estalinismo com referências equilibradas e «objectivas» ao racismo
americano e a outros crimes cometidos a par do capitalismo. Todavia, a acção
judicial intentada por Rousset e os julgamentos encenados na Europa de Leste
dissiparam qualquer dúvida que pudesse ter. Na sua agenda privada
confidenciou: «Uma das coisas que lamento é ter cedido demasiado à
objectividade. A objectividade, por vezes, é uma acomodação. Hoje as coisas
estão claras e devemos dizer que uma coisa é ‘concentrationaire’ se é isso que
ela é, mesmo se for o socialismo. Num certo sentido, nunca mais serei bem-
educado.»
Há aqui talvez um eco inconsciente de um discurso na conferência
internacional do Pen Club, dois anos antes, em Junho de 1947, em que
Ignazio Silone, falando sobre La Dignité de l’Intelligence et l’Indignité des
Intellectuels (A Dignidade da Inteligência e a Indignidade dos Intelectuais),
lamentou publicamente o seu próprio silêncio e o dos seus colegas intelectuais
de esquerda: «Colocámos nas prateleiras, como tanques guardados num
depósito, os princípios da liberdade para todos, da dignidade humana, etc.»
Tal como Silone, que escreveria depois um dos melhores ensaios da
colectânea The God That Failed [O Deus que Falhou], de Richard Crossman
(1950), Camus tornou-se a partir daí um crítico cada vez mais acerbo das
ilusões «progressistas», culminando na condenação da violência
revolucionária no seu ensaio de 1951, L’Homme révolté [O Homem
Revoltado], que provocou a ruptura final com os seus antigos amigos da
esquerda intelectual parisiense. Para Sartre, o primeiro dever de um
intelectual radical era não atraiçoar os trabalhadores. Para Camus, como para
Silone, o mais importante era não se atraiçoar a si mesmo. As linhas de
batalha da Guerra Fria cultural estavam traçadas.
É difícil, olhando com a distância de décadas, reconstituir completamente
os grandes contrastes e a retórica da Guerra Fria nestes anos. Estaline ainda
não era um embaraço, pelo contrário. Como Maurice Thorez afirmou em
Julho de 1948, «as pessoas pensam que podem insultar-nos como comunistas,
atirando-nos a palavra ‘estalinistas’. Bem, para nós o rótulo é uma honra que
tentamos merecer completamente». Aliás, como vimos, muitos não
comunistas de talento estavam também relutantes em condenar a liderança
soviética, procurando formas de minimizar os seus crimes ou desculpando-os
totalmente. Ilusões esperançosas sobre a realidade soviética eram
acompanhadas por falsidades – ou pior – bastante divulgados acerca da
América(12).
Os Estados Unidos, bem como a nova República Federal da Alemanha,
eram os alvos principais da retórica violenta dos comunistas. Foi uma táctica
astuciosa. Os Estados Unidos não eram muito populares na Europa Ocidental,
apesar – e em alguns países por causa – da sua ajuda generosa destinada à
recuperação económica. Em Julho de 1947, apenas 38% dos Franceses
adultos acreditavam que a Ajuda Marshall não constituía uma ameaça séria à
independência francesa, uma suspeita sobre os motivos americanos que foi
ainda alimentada pelos receios de nova guerra em 1948 e pelo conflito na
Coreia, dois anos depois. Acusações falsas dos comunistas de que o Exército
dos Estados Unidos estava a usar armas biológicas na Coreia tiveram eco
junto de um público receptivo.
Nas questões culturais, os comunistas nem sequer precisaram de tomar a
iniciativa. O receio do domínio americano e da perda da autonomia e da
iniciativa nacionais conduziram para o campo «progressista» homens e
mulheres de todas as cores políticas, ou sem nenhuma. Comparada com as
suas empobrecidas dependências europeias ocidentais, a América parecia um
carnívoro do ponto de vista económico e obscurantista do ponto de vista
cultural – uma combinação mortal. Em Outubro de 1949, no segundo ano do
Plano Marshall e precisamente quando estavam a ser finalizados os planos
para a NATO, o crítico cultural francês Pierre Emmanuel informou os leitores
do Le Monde que o principal donativo da América à Europa do pós-guerra
fora o… falo. Mesmo na terra de Stendhal, «o falo está a caminho de se tornar
um deus». Três anos depois, os editores cristãos da revista Esprit recordavam
aos seus leitores que «desde o princípio, alertámos para os perigos para o
nosso bem-estar nacional que são suscitados por uma cultura americana que
ataca as próprias raízes da coesão mental e moral dos povos da Europa».
Entretanto, um insidioso artefacto americano estava a espalhar-se pelo
continente. Entre 1947 e 1949, a companhia da Coca-Cola abriu fábricas de
engarrafamento na Holanda, na Bélgica, no Luxemburgo, na Suíça e em
Itália. Cinco anos depois da sua fundação, a Alemanha Ocidental tinha 96
fábricas, e tornar-se-ia o maior mercado fora dos Estados Unidos. Mas se
algumas vozes se ergueram em protesto na Bélgica e em Itália, foi em França
que os planos da Coca-Cola provocaram uma verdadeira tempestade. Quando
o Le Monde revelou que a empresa estabelecera um objectivo de 240 milhões
de garrafas a ser vendidas em França, em 1950, houve objecções que se
fizeram ouvir, encorajadas, mas não orquestradas, pelos comunistas, que se
limitaram a avisar que os serviços de distribuição da Coca-Cola funcionariam
também como uma rede de espionagem dos Estados Unidos. Como dizia o Le
Monde no editorial de 29 de Março de 1950, «a Coca-Cola é a Danzig da
Cultura Europeia».
O furor levantado pela «coca-colonialização» teve facetas mais levianas
(houve rumores de que a companhia planeava colocar o seu logótipo, em
néon, na Torre Eiffel…), mas os sentimentos subjacentes eram graves. O
carácter grosseiro da cultura americana, dos filmes às bebidas, e as ambições
egoístas e imperialistas por trás da presença dos Estados Unidos na Europa
eram lugares-comuns para muitos europeus da esquerda e da direita. A União
Soviética podia ser uma ameaça imediata para a Europa, mas era a América
que representava a agressão mais insidiosa a longo prazo. Esta perspectiva
ganhou consistência depois do início da guerra da Coreia, quando os Estados
Unidos começaram a exercer pressão para que os Alemães Ocidentais se
rearmassem. Os comunistas podiam agora associar os seus ataques aos «ex-
nazis» de Bona à acusação de que a América estava a apoiar o «revanchismo
fascista». A hostilidade nacionalista para com os «anglo-americanos»,
encorajada durante a ocupação da Segunda Guerra Mundial, mas silenciada
desde a libertação, reapareceu e foi posta a funcionar em Itália, em França e
na Bélgica, e também na própria Alemanha (por Brecht e outros escritores
alemães orientais).
Procurando tirar partido deste incipiente mas generalizado receio da guerra
e da suspeição que incidia sobre o que era americano entre as elites europeias,
Estaline lançou internacionalmente o Movimento pela Paz. Desde 1949 até à
morte de Estaline, a «paz» foi a peça central da estratégia cultural soviética. O
Movimento pela Paz foi lançado em Wroclaw, na Polónia, em Agosto de
1948, num «Congresso Mundial de Intelectuais». Ao encontro de Wroclaw
seguiu-se um dos primeiros «Congressos pela Paz», em Abril de 1949,
conduzidos mais ou menos simultaneamente em Paris, Praga e Nova Iorque.
Como protótipo de organização «frentista», o próprio Movimento pela Paz foi
aparentemente liderado por cientistas e intelectuais proeminentes, como
Frédéric Joliot-Curie, mas os comunistas controlaram os seus vários comités e
as suas actividades foram estreitamente coordenadas com o Cominform, cujo
jornal, publicado em Bucareste, foi então rebaptizado «Por uma Paz
Duradoura, Por uma Democracia Popular».
Segundo as suas próprias palavras, o Movimento pela Paz foi um grande
sucesso. Um apelo lançado em Estocolmo, em Março de 1950, pelo «Comité
Permanente do Congresso Mundial dos Partidários da Paz» conseguiu muitos
milhões de assinaturas na Europa Ocidental (para além das dezenas de
milhões reunidas no bloco soviético). Na verdade, reunir estas assinaturas foi
a actividade principal do Movimento, sobretudo em França, onde tinha o
apoio mais forte. Mas a coberto do Movimento pela Paz outras organizações
frentistas procuraram também fazer passar a mensagem de que a União
Soviética estava do lado da paz, ao passo que os Americanos (e os seus
amigos da Coreia, da Jugoslávia e dos governos europeus ocidentais) eram o
partido da guerra. Escrevendo de Paris para a revista The New Yorker, em
Maio de 1950, Janet Flanner estava impressionada: «Neste momento, a
propaganda comunista goza de um sucesso tão extraordinário, sobretudo entre
os não comunistas, como nunca teve em França.»
A atitude dos comunistas para com os seus movimentos de massas foi
puramente instrumental. O Movimento pela Paz sempre foi apenas um
veículo da política soviética, razão por que adoptou subitamente o tema da
«coexistência pacífica» em 1951, recebendo a sua deixa de uma mudança na
estratégia internacional de Estaline. Em privado, os comunistas, sobretudo no
bloco de Leste, não tinham senão desprezo pelas ilusões dos seus
compagnons de route. Durante visitas organizadas às democracias populares,
os apoiantes do Movimento pela Paz (na sua esmagadora maioria
provenientes de França, de Itália e da Índia) eram festejados e honrados pelo
seu apoio. Nas suas costas, eram ridicularizados como «pombos», como uma
nova geração dos «idiotas úteis» de Lenine.
O sucesso dos comunistas em assegurar pelo menos uma simpatia relativa
de muitos europeus ocidentais e a grande encenação que os partidos
comunistas, sobretudo de França e de Itália, fizeram com o apoio que
obtiveram entre uma elite cultural desconfiada da América, induziram a
resposta tardia, mas determinada, de um grupo de intelectuais ocidentais.
Preocupados com a possibilidade de a batalha cultural ser ganha por Estaline
por falta de comparência, iniciaram a formação de uma «frente» cultural
própria. O encontro fundador do Congresso pela Liberdade Cultural (CLC)
teve lugar em Berlim, em Junho de 1950. O Congresso foi concebido como
resposta ao Movimento pela Paz moscovita, uma iniciativa do ano anterior,
mas coincidiu com o início da guerra da Coreia, o que lhe conferiu um
significado suplementar. A decisão de realizar o encontro em Berlim, e não
em Paris, foi deliberada: o Congresso iria assumir desde o seu início a batalha
cultural contra os Soviéticos.
O Congresso pela Liberdade Cultural foi formado com o patrocínio oficial
de Bertrand Russell, Benedetto Croce, John Dewey, Karl Jaspers e Jacques
Maritain, o filósofo católico francês. Estes homens idosos davam
respeitabilidade e autoridade a este novo empreendimento, mas o impulso
político e a energia intelectual que estavam por trás dele vieram de uma
brilhante geração intermédia de intelectuais liberais ou ex-comunistas: Arthur
Koestler, Raymond Aron, A. J. Ayer, Margarete Buber-Neumann, Ignazio
Silone, Nicola Chiaromonte e Sidney Hook. Por seu lado, estes eram apoiados
por um grupo de homens mais novos, sobretudo americanos, que tomaram a
responsabilidade do planeamento e da administração das actividades
quotidianas do CLC.
O CLC acabaria por abrir representações em 35 países de todo o mundo,
mas o foco da sua atenção estava na Europa, particularmente em França, em
Itália e na Alemanha. O seu objectivo era reunir, entusiasmar e mobilizar os
intelectuais e académicos para a luta contra o comunismo, sobretudo com a
publicação e a divulgação de periódicos culturais: Encounter na Grã-
Bretanha, Preuves em França, Tempo Presente em Itália e Der Monat na
Alemanha. Nenhuma destas publicações chegou a ter grande público. O
Encounter, o que teve mais êxito, atingiu uma circulação de 16 000
exemplares em 1958. Nesse mesmo ano, Preuves tinha apenas 3000
assinantes. Todavia, os seus conteúdos eram quase invariavelmente de
elevada qualidade, os seus colaboradores contavam-se entre os melhores
escritores das décadas do pós-guerra e ocuparam um nicho fundamental,
sobretudo em França, onde Preuves proporcionou o único fórum
anticomunista e liberal numa paisagem cultural dominada pelos periódicos
neutralistas, pacifistas, companheiros de estrada ou nitidamente comunistas.
O Congresso e as suas muitas actividades foram publicamente apoiados
pela Fundação Ford e financiados secretamente pela CIA, algo que quase
todos os seus activistas e autores desconheciam, até ser divulgado muitos
anos mais tarde. As implicações de o governo dos Estados Unidos estar a
subsidiar secretamente canais culturais anticomunistas na Europa não foram
tão graves quanto parece retrospectivamente. Numa época em que as
publicações «frentistas» e comunistas eram subsidiadas secretamente a partir
de Moscovo, o apoio americano não teria certamente embaraçado alguns dos
escritores do CLC. Arthur Koestler, Raymond Aron e Ignazio Silone não
precisavam de encorajamento oficial americano para assumir uma linha dura
contra o comunismo e não há provas de que as suas próprias perspectivas
críticas sobre os Estados Unidos fossem alguma vez matizadas ou censuradas
para agradar aos tesoureiros de Washington.
Os Estados Unidos eram neófitos nestas guerras culturais. A União
Soviética criou a sua «Sociedade para as Relações Culturais com as Nações
Estrangeiras» em 1925. Os Franceses, os Alemães e os Italianos financiavam
activamente a sua «diplomacia cultural» no estrangeiro desde antes de 1914.
Os Americanos só começaram a orçamentar tais actividades precisamente
antes da Segunda Guerra Mundial, e foi só em 1946, com a criação do
Programa Fullbright, que entraram a sério neste campo. Até ao Outono de
1947, os projectos culturais e educativos americanos na Europa destinavam-se
à «reorientação democrática». Só nesta altura é que o anticomunismo se
tornou o seu objectivo estratégico principal.
Em 1950, a Agência de Informações dos Estados Unidos tomou a seu
cargo todos os programas de intercâmbio e de informação cultural na Europa.
Em conjunto com a Secção dos Serviços de Informação das autoridades de
ocupação dos Estados Unidos na Alemanha Ocidental e na Áustria (que
tinham o controlo total dos meios de comunicação social e dos canais
culturais na zona americana destes países), a Agência de Informações dos
Estados Unidos passou a poder exercer uma influência enorme sobre a vida
cultural europeia ocidental. Em 1953, no auge da Guerra Fria, os programas
culturais estrangeiros dos Estados Unidos (excepto os subsídios secretos e as
fundações privadas) utilizavam 13 000 pessoas e custavam 129 milhões de
dólares, grande parte deles gastos na batalha pelos corações e as mentes da
elite intelectual da Europa Ocidental.
A «luta pela paz» – que era como a imprensa comunista a apelidava – era
conduzida na «frente» cultural pela «Batalha do Livro» (note-se a linguagem
leninista caracteristicamente militar). Os primeiros recontros tiveram lugar em
França, na Bélgica e em Itália, no início da Primavera de 1950. Autores
comunistas proeminentes – Elsa Triolet, Louis Aragon – visitaram uma série
de cidades da província para fazer palestras, assinar livros e exibir as
credenciais literárias do mundo comunista. Na prática, tudo isto pouco
favoreceu a causa comunista: dois dos livros mais vendidos em França no
pós-guerra foram Trevas ao Meio-Dia, de Arthur Koestler (que vendeu 420
000 exemplares na década de 1945-1955), e Escolhi a Liberdade, de Viktor
Kravchenko (503 000 exemplares vendidos no mesmo período). No entanto, o
que importava não era tanto vender livros, mas lembrar aos leitores e a outros
que os comunistas apoiavam a cultura – a cultura francesa.
A resposta americana foi criar «Casas da América», com livrarias, salas de
leitura de jornais, conferências proferidas por convidados, encontros e aulas
de língua inglesa. Em 1955, havia 69 destas casas na Europa. Em alguns
locais o seu impacto foi muito considerável: na Áustria, onde durante os anos
do Plano Marshall se assistiu à distribuição de 134 milhões de exemplares de
livros em inglês por todo o país, uma percentagem significativa da população
de Viena e de Salzburgo (a primeira sob administração das quatro potências, a
segunda na zona de ocupação americana) visitou a Casa da América local,
para requisitar livros e ler os jornais. O estudo do inglês substituiu o do
francês e das línguas clássicas como primeira opção dos estudantes austríacos
do ensino secundário.
Tal como as redes de rádios que tinham apoio americano (a Rádio Europa
Livre – Radio Free Europe – foi inaugurada em Munique um mês depois do
início da guerra da Coreia), os programas das Casas da América foram, por
vezes, prejudicados pelos imperativos de propaganda grosseira que
emanavam de Washington. No auge dos anos do macartismo, os directores
das Casas da América gastavam a maior parte do tempo a retirar livros das
suas estantes. Entre as dúzias de livros que foram considerados impróprios
encontravam-se não apenas os suspeitos óbvios – John Dos Passos, Arthur
Miller, Dashiell Hammett e Upton Sinclair –, mas também Albert Einstein,
Thomas Mann, Alberto Moravia, Tom Paine e Henri Thoreau. Na Áustria,
pelo menos, pareceu a muitos observadores que na «Batalha dos Livros», os
Estados Unidos eram, por vezes, os seus próprios inimigos mais eficazes.
Felizmente para o Ocidente, a cultura popular americana exercia uma
atracção que a inépcia da política americana pouco podia fazer para
deslustrar. Os comunistas estavam em grande desvantagem porque a sua
desaprovação oficial do jazz e do cinema americanos, que consideravam
decadentes, era muito parecida com as ideias de Josef Goebbels. Enquanto os
Estados comunistas da Europa de Leste baniam o jazz por ser decadente e
alienante, a Rádio Europa Livre difundia mais de três horas de música popular
todas tardes dos dias úteis, interrompidas por dez minutos de notícias em cada
hora. O cinema, o outro meio de comunicação universal da época, nos
Estados sob controlo comunista podia ser regulamentado, mas em toda a
Europa Ocidental a sedução exercida pelos filmes americanos era universal.
Aqui, a propaganda soviética nada tinha com que pudesse competir e até os
progressistas ocidentais, atraídos muitas vezes pela música e o cinema
americanos, estavam em desacordo com a orientação do partido.
A concorrência cultural no início da Guerra Fria era assimétrica. Entre as
elites culturais europeias havia ainda a ideia muito difundida de que, para
além das divisões ideológicas e mesmo independentemente da cortina de
ferro, partilhavam uma cultura comum para a qual a cultura americana
representava uma ameaça. Os Franceses, sobretudo, adoptaram esta linha de
pensamento, fazendo eco dos primeiros esforços dos seus diplomatas, no pós-
guerra, para traçarem uma política internacional que fosse independente do
controlo americano. Sintomaticamente, Félix Lusset, o chefe da Missão
Cultural francesa em Berlim, durante a ocupação, tinha muito melhores
relações com o seu homólogo soviético (Alexander Dymschitz) do que com
os representantes britânico e americano na cidade e, tal como os seus
superiores em Paris, sonhava com o restabelecimento de um eixo cultural que
partisse de Paris, passasse por Berlim e chegasse a Leninegrado.
Os Estados Unidos gastaram centenas de milhões de dólares para tentar
obter as simpatias europeias, mas muitas das publicações e dos produtos que
daí resultaram eram pesados e contraproducentes, confirmando apenas as
suspeitas inatas da intelectualidade europeia. Na Alemanha, a atenção
excessiva da América aos crimes comunistas foi vista por muitos como uma
diversão deliberada para esquecer os crimes dos nazis. Em Itália, as sombrias
campanhas anticomunistas do Vaticano minavam os argumentos anti-
soviéticos de Silone, Vittorini e outros. Só na arte e na literatura, onde os
absurdos da política cultural estalinista chocavam directamente com o
território dos pintores e dos poetas, é que os intelectuais ocidentais
conseguiram distanciar-se firmemente de Moscovo, mas mesmo aqui a sua
oposição foi silenciada pelo receio de ficarem reféns da «propaganda»
americana(13).
Por outro lado, na luta pelas simpatias da grande massa da população
europeia ocidental, os Soviéticos estavam rapidamente a perder terreno. Em
todo o lado, excepto em Itália, o voto comunista caiu regularmente desde o
final dos anos 40 e – a fazer fé nas sondagens de opinião – mesmo os que
votavam comunista consideravam que o seu voto era ou um protesto
simbólico, ou então uma expressão de solidariedade de classe ou de
comunidade. Muito antes das convulsões de 1956, quando as simpatias da
corrente principal de intelectuais europeus se afastariam nitidamente do bloco
soviético, a orientação atlântica da maioria dos outros europeus ocidentais já
estava decidida.
-
(1) Tradução da professora Marci Shore, da Universidade de Indiana, ligeiramente corrigida por T. J.
Agradeço também à professora Shore a citação de Ludek Pachman.

(2) Zdenek Mlynár, Night Frost in Prague (Londres, 1980), p. 2.

(3) Brecht, como era habitual, precaveu-se, ao manter o passaporte austríaco.

(4) O mais bem conhecido era certamente Arthur Koestler, mas nessa altura podia ser igualmente
considerado húngaro, austríaco, francês ou judeu.

(5) Nestes anos, o PSI era singular entre todos os partidos socialistas da Europa Ocidental pela sua
proximidade e subordinação aos comunistas, um padrão muito mais familiar na Europa de Leste.

(6) No filme Sciuscià, de Vittorio de Sica (realizado em 1946 e que se situa nesse mesmo ano), o
director de uma prisão de rapazes não só faz a saudação fascista – um hábito que não consegue perder –,
mas alude com nostalgia indisfarçável às figuras do pequeno crime do tempo de Mussolini.

(7) Apesar das suas próprias falsidades a respeito da política cultural soviética, Paul Eluard recusou
criticar o zdanovismo em frente dos camaradas da classe operária pertencentes à sua célula do Partido.
Explicou ele a Claude Roy: «Pobrezinhos, iria desencorajá-los. Não devemos perturbar os que
participam na luta. Eles não iriam perceber.»

(8) François Fejtö, que vivia em Paris, disse anos mais tarde que, enquanto os comunistas italianos
acolheram calorosamente, se bem que com alguma reserva, a sua história da Europa de Leste, o PCF
condenou-a como sendo apenas uma obra de outro renegado.

(9) Por isso, Emmanuel Mounier, na revista Esprit de Fevereiro de 1946, afirmou que «o
anticomunismo […] é a força cristalizadora necessária e suficiente para um regresso do fascismo».

(10) De igual modo, o culto de Mao atingiu o seu zénite durante a Revolução Cultural, precisamente
quando, e precisamente porque, Mao perseguia escritores, artistas e professores.

(11) Nestes anos, o «progressismo», como fez notar Raymond Aron, de forma mordaz, consistia em
«apresentar os argumentos do comunismo como se emanassem espontaneamente da especulação
independente».

(12) Estes sentimentos são involuntariamente caricaturados neste relato, feito por uma criança, da
primeira aula com um professor primário comunista, em Praga, em Abril de 1948: «Meninos, vocês
sabem todos que na América as pessoas vivem em buracos cavados no chão e são escravos de um
número reduzido de capitalistas, que ficam com todos os lucros. Mas na Rússia todos são felizes e nós
aqui em Praga também somos felizes devido ao governo de Klement Gottwald. Agora meninos, repitam
comigo. ‘Estamos muito contentes e gostamos do governo de Gottwald’.»

(13) O poeta francês Claude Roy, que aderiu ao PCF durante a guerra, depois de um namoro prévio
com a extrema-direita da Action Française, escreveu o seguinte: «Fomos intolerantes com a
imbecilidade nos domínios que conhecíamos bem, mas perdoámos os crimes em matérias de que
conhecíamos pouco.»
CODA

O Fim da Velha Europa


«Depois da guerra a vida mudou surpreendentemente pouco.»
David Lodge
«Passei os meus primeiros anos em cidades fabris e nos seus subúrbios,
entre tijolos e fuligem, e chaminés de fábricas e ruas empedradas. Íamos de
carro nas pequenas viagens e de comboio nas grandes. Comprávamos comida
fresca para cada refeição, não porque fôssemos requintados, mas porque não
tínhamos frigorífico (os produtos menos perecíveis eram guardados numa
cave para legumes). A minha mãe levantava-se todas as manhãs com o frio e
acendia o lume no fogão da sala de estar. A água corrente só existia com uma
temperatura: fria. Comunicávamos por carta e conhecíamos as notícias
sobretudo através dos jornais (éramos suficientemente modernos, todavia,
para possuirmos um rádio que tinha mais ou menos o tamanho de um armário
de arquivo). As minhas primeiras salas de aula tinham fogões bojudos e
carteiras duplas com tinteiros onde mergulhávamos os nossos aparos. Nós,
rapazes, usávamos calções até à cerimónia da communion solennelle, aos
doze anos. E por diante. Mas isto não se passava num recanto desconhecido
qualquer nos Cárpatos, isto era a Europa Ocidental do pós-guerra, em que
“pós-guerra” foi uma temporada que durou quase 20 anos.»(1)
Esta descrição da Valónia industrial nos anos 50, do autor belga Luc Sante,
poderia muito bem ser aplicada nestes anos à maior parte da Europa
Ocidental. O presente autor, que cresceu, depois da guerra, no bairro londrino
interior de Putney, recorda as visitas frequentes a uma doçaria escura de uma
velha mirrada que o avisava reprovadoramente: «vendo chupa-chupas a
rapazinhos como tu desde o Jubileu de Ouro da Rainha», ou seja, desde 1887.
Ela referia-se, é claro, à rainha Vitória, a Rainha(2). Na mesma rua, a
mercearia local, Sainsbury’s, tinha serradura no chão e os seus empregados
eram homens musculosos de camisas às riscas e raparigas alegres de aventais
engomados e bonés. Era exactamente como nas fotografias de cor sépia
penduradas na parede relembrando a inauguração da mercearia, nos anos 70
do século XIX.
Em muitas das suas características essenciais, a vida quotidiana da
primeira década depois da Segunda Guerra Mundial seria muito familiar a
homens e mulheres de há 50 anos. Nessa altura, o carvão ainda satisfazia 90%
das necessidades de combustíveis da Grã-Bretanha, 82% das necessidades da
Bélgica e dos outros países da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço.
Graças, em parte, à omnipresença de queimas a carvão, Londres, uma cidade
de carros eléctricos e de docas, estava ainda periodicamente envolta por um
nevoeiro húmido, tão conhecido das imagens da cidade industrial nos últimos
tempos vitorianos. Os filmes britânicos desses anos têm um ar nitidamente
eduardiano, quer pelo cenário social (por exemplo, The Winslow Boy, de
1948), quer pelo tom da época. Em The Man in a White Suit (1951), a
Manchester dessa altura é representada em todas as suas características
fundamentais como se estivéssemos no século XIX (carros de mão,
habitações, relações sociais), e os patrões e os chefes de sindicato estão de
acordo em considerar que o amadorismo dos empresários é uma virtude
moral, independentemente do preço a pagar em matéria de eficiência
produtiva. Três milhões de homens e mulheres britânicos iam todas as
semanas aos salões de dança registados e havia 70 clubes de trabalhadores só
na cidade de Huddersfield, no Yorkshire, no início dos anos 50 (embora
ambos os tipos de actividade social estivessem a perder o seu atractivo entre
os jovens).
O mesmo sentimento de tempo parado estendia-se a grande parte da
Europa continental. A vida rural da Bélgica poderia ter sido pintada por
Millet: o feno reunido com ancinhos de madeira, a palha batida com
manguais, frutos e legumes apanhados à mão e transportados em carroças
puxadas por cavalos. A Bélgica e a Grã-Bretanha pairavam numa espécie de
limbo, tal como as cidades de província francesas, onde homens de boina, a
caminho de casa, levavam realmente uma baguete comprada na esquina, no
Café de la Paix (caracteristicamente baptizado em 1919), ou da Espanha,
hermeticamente selada pelo poder autoritário de Franco. A Europa do pós-
guerra ainda era aquecida pelas brasas frouxas da revolução económica do
século XIX, que estava praticamente esgotada, deixando atrás de si,
sedimentadas, as provas dos hábitos culturais e das relações sociais cada vez
mais desfasadas em relação à nova era dos aviões e das armas atómicas. Se
houve algo que a guerra fez, foi virar as coisas do avesso. O fervor
modernizante dos anos 20 e mesmo dos anos 30 esgotou-se, deixando atrás de
si uma ordenação da vida mais antiga. Em Itália, como em grande parte da
Europa rural, as crianças ainda entravam no mercado de trabalho depois de
completarem (ou, mais provavelmente, não completarem) a educação
primária. Em 1951, apenas uma em cada nove crianças italianas frequentava
ainda a escola depois dos 14 anos.
A religião, sobretudo a católica, gozava o calor de um breve Verão de São
Martinho de autoridade restaurada. Em Espanha a hierarquia católica tinha os
meios e o apoio político para relançar a contra-reforma: na concordata de
1953, Franco concedeu à Igreja, não só isenção de impostos e a ausência de
qualquer interferência do Estado, mas também o direito de requerer a censura
de qualquer texto ou discurso a que objectasse. Em contrapartida, a hierarquia
eclesiástica mantinha e reforçava a interdependência conservadora da religião
com a identidade nacional. Na verdade, a Igreja estava agora tão
perfeitamente integrada nas narrativas da identidade e do dever nacionais que
o principal manual de História da escola primária, Yo soy español (publicado
pela primeira vez em 1943), ensinava a história espanhola como se tivesse
uma unidade inconsútil, começando no jardim do Paraíso e terminando no
Generalíssimo(3).
A isto acrescentou-se um novo culto dos mortos, os «mártires» do lado
vitorioso na recente guerra civil. Nos milhares de locais comemorativos
dedicados a vítimas do republicanismo anticlerical, a Igreja espanhola
organizou inúmeras cerimónias e comemorações. Uma mistura criteriosa de
religião, autoridade civil e comemorações de vitórias reforçou o monopólio
espiritual e mnemónico da hierarquia clerical. Como Franco precisava do
catolicismo ainda mais do que a Igreja precisava de Franco – de que outra
forma se manteriam no pós-guerra as ténues ligações da Espanha com a
comunidade internacional e o «Ocidente»? –, concedeu-lhe, de facto, um
âmbito ilimitado para recriar na Espanha moderna o espírito de «cruzada» do
ancien régime.
Nos outros países europeus ocidentais, a Igreja Católica teve de enfrentar
posições concorrentes e hostis na obtenção da anuência popular, mas até na
Holanda a hierarquia católica se sentiu suficientemente confiante para
excomungar os eleitores que votaram nos seus opositores trabalhistas, nas
primeiras eleições do pós-guerra. Ainda em 1956, dois anos antes da morte de
Pio XII assinalar o fim da velha ordem, sete em cada dez Italianos assistiam
regularmente à missa. Tal como na Flandres, em Itália a Igreja tinha muito
boa aceitação entre os monárquicos, as mulheres e os idosos, que
representavam uma clara maioria da população em geral. O artigo 7.o da
Constituição italiana, aprovada em Março de 1947, confirmava
judiciosamente os termos da concordata de Mussolini com a Igreja, em 1929:
a hierarquia católica mantinha a sua influência na educação e o seu poder de
vigilância em tudo o que dissesse respeito ao casamento e à moral. Devido à
insistência de Togliatti, até o Partido Comunista votou relutantemente a favor
da lei, se bem que tal não impedisse o Vaticano de excomungar os Italianos
que votaram no PCI no ano seguinte.
Em França, a hierarquia católica e os seus apoiantes políticos sentiram-se
suficientemente confiantes para pressionar no sentido de ter privilégios
educacionais numa guerre scolaire que durante um breve período de tempo
fez eco das lutas entre a Igreja e o Estado que tiveram lugar nos anos 80 do
século XIX. O principal campo de batalha era a velha questão do
financiamento das escolas católicas por parte do Estado, uma exigência
tradicional, mas bem escolhida. Ao passo que a energia que alimentara o
anticlericalismo do século XIX em França, tal como em Itália e na Alemanha,
desaparecera quase completamente ou fora redireccionada para conflitos
ideológicos mais actuais, o custo e a qualidade da educação das suas crianças
era uma das poucas questões em que se podia confiar para mobilizar até os
mais irregulares frequentadores da Igreja.
Das religiões tradicionais da Europa, só os católicos registaram nos anos
40 e 50 um aumento dos seus praticantes. Isto acontecia, em parte, porque a
Igreja Católica tinha partidos políticos que lhe estavam directamente
associados (e em alguns casos que lhe estavam agradecidos pelo seu apoio) na
Alemanha, na Holanda, na Bélgica, em Itália, em França e na Áustria, e, em
parte também, porque o catolicismo estava tradicionalmente implantado
precisamente naquelas regiões da Europa que nestes anos mudavam mais
lentamente. Mas acima de tudo a Igreja Católica podia oferecer aos seus
membros algo de que havia muita falta na altura: um sentimento de
continuidade, de segurança e de confiança num mundo que se alterara
violentamente na década anterior e que se iria transformar ainda mais
dramaticamente nos anos vindouros. Era a associação da Igreja Católica com
a velha ordem – na verdade, a sua posição firme contra a modernidade e a
mudança – que a tornava especialmente apelativa nestes anos de transição.
As diversas igrejas protestantes do Noroeste da Europa não tinham este
atractivo. Na Alemanha, um segmento importante da população não católica
estava agora sob um regime comunista. A posição das igrejas evangélicas
alemãs estava, em todo o caso, algo diminuída devido ao seu compromisso
com Hitler, tal como a semiconfissão de culpa por parte dos líderes
protestantes reconhecera em Estugarda, em 1945. Mas o principal problema,
na Alemanha como em todos os outros países, era que as igrejas protestantes
não ofereciam uma alternativa ao mundo contemporâneo, mas sim uma forma
de viver em harmonia com ele.
Por convenção, a autoridade espiritual do pastor protestante, ou do vigário
anglicano, não era apresentada como concorrente à do Estado, mas sim como
seu parceiro subalterno. Essa é uma das razões por que as igrejas protestantes
da Europa Central foram incapazes de fazer frente à pressão dos Estados
comunistas durante estes anos. Todavia, quando os Estados da Europa
Ocidental assumiram um papel mais significativo como protectores espirituais
e materiais dos seus cidadãos, a distinção entre a Igreja e o Estado como
árbitros dos costumes e da moral públicos ficou bastante confusa. Por isso, o
final dos anos 40 e o início dos anos 50 surgem como uma época de transição
em que as convenções de deferência social e as reivindicações de estatuto e
autoridade ainda imperavam, mas em que o Estado contemporâneo estava a
começar a desalojar a Igreja do papel de árbitro do comportamento colectivo,
e mesmo a assumi-lo.
O carácter da época é bem traduzido num opúsculo com instruções
preparado pela BBC para uso interno: BBC Variety Programmes. Policy
Guide for Writers and Producers (1948). O conceito de responsabilidade
moral que a empresa emissora pública adoptou é muito explícito: «A
influência que [a BBC] pode exercer sobre os seus ouvintes é muito grande e
a responsabilidade por um padrão de gosto elevado é-o também.» Estavam
proibidas piadas sobre religião, como, por exemplo, descrever o gosto musical
fora de moda como «a. C.» – «antes de Crosby»(4). Não deveria haver
referências a «lavabos», nem piadas sobre a «efeminização dos homens». Os
escritores estavam proibidos de usar piadas que se tivessem tornado populares
no ambiente mais permissivo da guerra e de fazerem alusões de sentido duplo
à roupa interior das senhoras, tal como em «o Inverno veste-se». Estavam
proibidas as alusões sexuais de qualquer género, não se deveria falar de
«coelhos», nem de «hábitos de animais» semelhantes aos deles(5).
Para além disso, os membros do parlamento não deveriam aparecer em
programa de rádio que pudessem ser «impróprios ou inadequados» a figuras
públicas, nem deveriam ser ditos gracejos nem feitas referências que
pudessem encorajar «greves ou conflitos na indústria. O mercado negro,
vigaristas e indolentes». Estes termos – «vigaristas» e «indolentes» para
designar pessoas duvidosas e pequenos criminosos, o «mercado negro» como
expressão abrangente de todos os negociantes e clientes que iludiam o
racionamento e outras restrições – mostram em que medida a Grã-Bretanha
viveu, pelo menos alguns anos, sob o espectro da guerra. Ainda em meados
dos anos 50, a BBC repreenderia Peter Eton, produtor da comédia popular
radiofónica The Goon Show, quer por ter permitido que ao «Major Dennis
Bloodnok» (representado por Peter Sellers) fosse condecorado com a OBE
(Ordem do Império Britânico) pela tarefa de «despejar caixotes do lixo no
calor da batalha», quer por ter autorizado um actor a «imitar a voz da rainha
para enxotar pombos de Trafalgar Square».
Estas censuras e as notas que as acompanhavam, de um reformismo
eduardiano fortemente restritivo, eram, talvez, características da Grã-
Bretanha, mas o seu tom pareceria familiar em todo o continente. Na escolas,
nas igrejas, nas estações públicas de rádio, no estilo protector e confiante da
imprensa séria, e até da sensacionalista, e nos discursos e no modo de vestir
das figuras públicas, os europeus estavam ainda muito sujeitos a hábitos e
regulamentos que pertenciam a uma época anterior. Já fizemos notar como
muitos dos líderes políticos desta época eram homens de outros tempos. O
britânico Clement Attlee não estaria deslocado numa missão vitoriana aos
miseráveis bairros industriais e fazia sentido que o primeiro-ministro que
dirigiu a transição da Grã-Bretanha para um Estado-providência moderno
tenha começado a sua carreira pública praticando boas obras no East End, em
Londres, antes da Primeira Guerra Mundial.
A esta imagem de uma Europa mais antiga – seguindo ao ritmo dos velhos
tempos, mudada de repente pela guerra e refreada pela rotinas e pelos hábitos
anteriores a esta – devemos contrapor a forma indubitavelmente moderna da
sua principal fonte de entretenimento. Esta foi a idade de ouro do cinema. Na
Grã-Bretanha, o número de espectadores atingiu o seu máximo logo depois do
fim da guerra, em 1946, com 1700 milhões de lugares vendidos nos 5000
cinemas do país. Nesse ano, uma em cada três pessoas ia todas as semanas ao
cinema local. Mesmo em 1950, quando o número de espectadores começara
já a declinar, o inglês e a inglesa comuns iam ao cinema 28 vezes por ano,
frequência que era cerca de 40% mais elevada do que no último ano antes da
guerra.
Ao passo que o número de espectadores de cinema na Grã-Bretanha
diminuiria regularmente nos anos 50, na Europa continental continuaria a
crescer. Em França, abriram 1000 novas salas de projecção na primeira
metade dos anos 50, mais ou menos o mesmo número na Alemanha e 3000
em Itália, o que elevou para 10 000 o total italiano em 1956. No ano anterior,
a frequência das salas de cinema em Itália atingiu o máximo de 800 milhões
de bilhetes vendidos (metade do número do Reino Unido, que tinha uma
população semelhante). O número de espectadores em França, que atingiu o
seu máximo no final dos anos 40, nunca se aproximou da Grã-Bretanha, nem
mesmo da Itália(6). O mesmo se passou no caso da Alemanha Ocidental,
embora a frequência das salas de cinema na República Federal só tenha
atingido o seu máximo em 1959. No entanto, independentemente dos
números, a frequência do cinema era realmente elevada, como era o caso da
Espanha, onde o número de bilhetes por adulto era, em 1947, um dos mais
elevados da Europa.
Uma das razões deste entusiasmo pelos filmes do pós-guerra foi a procura
insatisfeita durante a guerra, sobretudo de filmes americanos, imposta pela
proibição da maioria dos filmes dos Estados Unidos por parte dos nazis, de
Mussolini (após 1938) e do regime de Pétain, em França, e, mais em geral,
pelas carências da guerra. Em 1946, em Itália, 87% das receitas de bilheteira
provinham de filmes estrangeiros (americanos na sua maioria). De 5000
filmes exibidos em Madrid entre 1939 e o final dos anos 50, 4200 eram
estrangeiros (uma vez mais, americanos na sua maioria). Em 1947, a indústria
cinematográfica francesa produziu 40 filmes, em contraste com os 340 que
foram importados dos Estados Unidos. Aliás, os filmes americanos não
estavam apenas disponíveis em números esmagadores, mas eram também
populares: os filmes com maior sucesso comercial na Berlim do pós-guerra
foram A Corrida do Ouro, de Chaplin, e O Falcão de Malta (realizado em
1941, mas só disponível na Europa depois da guerra).
No entanto, o domínio americano em relação ao cinema europeu do pós-
guerra não foi alcançado apenas devido aos caprichos do gosto popular, havia
um contexto político. Os filmes americanos «positivos» inundaram a Itália
nas cruciais eleições de 1948. A Paramount foi encorajada pelo departamento
de Estado a relançar Ninotchka (1939) nesse ano, para ajudar o voto
anticomunista. Pelo contrário, Washington pediu que As Vinhas da Ira,
realizado em 1940 por John Ford, não fosse distribuído em França: o seu
retrato desfavorável da época americana da Depressão poderia ser explorado
pelo Partido Comunista Francês. Em geral, os filmes americanos faziam parte
da atracção exercida pela América e, enquanto tais, foram armas importantes
da Guerra Fria cultural. Só os intelectuais poderiam ser suficientemente
motivados pelo retrato que Sergei Eisenstein deu de Odessa, em O Couraçado
Potemkin, de modo a transformar a sua apreciação estética em afinidade
política. Ora, pelo contrário, todos – incluindo os intelectuais – podiam
apreciar Humphrey Bogart.
No entanto, a penetração do cinema americano na Europa era sobretudo
motivada por considerações económicas. Os filmes americanos sempre
haviam sido exportados para a Europa e aí realizado dinheiro. Mas depois da
Segunda Guerra Mundial, os produtores americanos, forçados pela
diminuição da frequência das salas de cinema nos Estados Unidos e os custos
crescentes da produção cinematográfica, pressionaram fortemente para aceder
aos mercados europeus. Os governos europeus, pelo contrário, estavam mais
relutantes do que nunca em abrir os mercados internos aos produtos
americanos: as indústrias cinematográficas nacionais, que eram ainda sectores
importantes, sobretudo na Grã-Bretanha e em Itália, necessitavam de
protecção contra o dumping americano, e os dólares eram demasiado escassos
e valiosos para serem gastos na importação de filmes provenientes da
América.
Já em 1927, o parlamento do Reino Unido aprovara uma lei que instituía
um sistema de quotas segundo o qual 20% de todos os filmes distribuídos na
Grã-Bretanha em 1936 teriam de ser de produção britânica. Após a Segunda
Guerra Mundial, em 1948, o objectivo do governo britânico foi fixado em
30%. Os Franceses, os Italianos e os Espanhóis procuraram atingir objectivos
tão ou mais ambiciosos do que estes (a indústria cinematográfica alemã, como
é evidente, não estava em condições de exigir tal protecção). Todavia, na
primeira década do pós-guerra, a forte actividade de lobbying por parte de
Hollywood fez com que se mantivesse a pressão do departamento de Estado
sobre os negociadores europeus: acordos para permitir a entrada de filmes dos
Estados Unidos eram parte integrante de todos os acordos de comércio
bilaterais e concessões de empréstimos importantes assinados entre os
Estados Unidos e os seus aliados europeus.
Assim, nos termos dos acordos Blum-Byrnes, de Maio de 1946, o governo
francês reduziu, com grande relutância, de 55% para 30% a sua quota
proteccionista de filmes produzidos anualmente em França, com a
consequência de, passado um ano, a produção cinematográfica nacional se ter
reduzido a metade. O governo trabalhista britânico também não conseguiu
impedir as importações dos Estados Unidos. Apenas Franco conseguiu
restringir as importações de filmes americanos por parte da Espanha (apesar
de uma tentativa de «boicote» do mercado espanhol pelos produtores dos
Estados Unidos, entre 1955 e 1958), em grande medida por não necessitar de
responder perante a opinião pública e não recear que as suas decisões fossem
politicamente ignoradas. Mas mesmo em Espanha, como vimos, os filmes
americanos eram em número muito superior aos produzidos no país.
Os Americanos sabiam o que estavam a fazer: quando, depois de 1949, os
governos europeus passaram a taxar as receitas do cinema para subsidiar os
produtores de filmes nacionais, os produtores americanos começaram a
investir directamente em produções no estrangeiro, escolhiam o local de
realização de um filme ou grupo de filmes dependendo de montante do
subsídio «nacional» europeu disponível. Com o tempo, os governos europeus
passaram a subsidiar indirectamente a própria Hollywood através dos
intermediários locais. Em 1952, 40% do rendimento da indústria
cinematográfica dos Estados Unidos era gerado no estrangeiro e a maior parte
na Europa. Seis anos mais tarde esta percentagem subiria para 50%.
Em consequência do domínio dos mercados da Europa pelos Americanos,
os filmes europeus deste período nem sempre são o guia mais adequado para
conhecer as experiências e as sensibilidades dos frequentadores de cinema do
continente. O espectador britânico, sobretudo, formou muito provavelmente o
seu conceito do que significava ser inglês, quer a partir do modo como
Hollywood apresentava a Inglaterra, quer, em igual medida, da sua própria
experiência directa. Merece alguma atenção o facto de, entre todos os filmes
dos anos 40, Mrs. Miniver (1942) – uma história muito inglesa de força de
espírito e de capacidade de resistência doméstica, de reserva e perseverança
da classe média, tendo sintomaticamente como pano de fundo o desastre de
Dunquerque, onde se pensaria que todas estas qualidades estariam mais em
evidência – ser um puro produto de Hollywood. No entanto, para a primeira
geração que o viu, o filme permaneceria, durante longo tempo, a
representação mais verdadeira da memória e da imagem nacionais.
O que tornava os filmes americanos tão apelativos, para além do glamour
e do brilho que traziam aos locais cinzentos onde eram vistos, era a sua
«qualidade». Eram bem feitos e tinham habitualmente uma encenação que
estavam muito para além do alcance dos recursos de qualquer produtor
europeu. Não eram, no entanto, «escapistas» à maneira das comédias
«excêntricas» dos anos 30 ou das comédias românticas. Na verdade, alguns
dos filmes mais populares do final dos anos 40 eram (como mais tarde os
admiradores europeus continentais os designariam) film noir. A sua história
poderia ser policial ou um drama social, mas o estado de espírito que
veiculava – e a textura cinematográfica – era mais negro e sombrio do que o
dos filmes americanos de décadas anteriores.
Eram os europeus que nesta altura mais frequentemente faziam filmes
escapistas, como os superficiais «romances» alemães do início dos anos 50,
situados em paisagens de contos de fadas na Floresta Negra ou nos Alpes
bávaros, e as comédias britânicas ligeiras como Piccadilly Incident (1946),
Spring in Park Lane (1948) ou Maytime in Mayfair (1949), realizadas por
Herbert Wilcox, situadas no West End londrino, que estava na moda (e
comparativamente intacto), e protagonizadas por Anne Neagle, Michael
Wilding ou Rex Harrison nos papéis de jovens debutantes ou aristocratas
caprichosos. Os seus equivalentes italianos ou franceses, que não devemos
esquecer, eram mais frequentemente dramas históricos actualizados, com os
camponeses e os aristocratas ocasionalmente substituídos por mecânicos ou
homens de negócios.
Os melhores filmes europeus da década do pós-guerra – aqueles que os
espectadores mais recentes podem facilmente apreciar – tratavam
inevitavelmente, de uma forma ou de outra, da guerra. Depois da libertação,
assistiu-se durante um curto período a uma inundação de filmes da
«Resistência»: Peloton d’exécution (1945), Le Jugement dernier (1945) e La
Bataille du rail (1946), em França; Roma: città aperta (1945), Paisan (1946)
e Un Giorno della vita (1946), em Itália. Em todos eles, um abismo moral
separa os resistentes heróicos dos colaboracionistas cobardes e dos Alemães
brutais. Foram logo seguidos de um grupo de filmes situados nas ruínas
(literais e espirituais) de Berlim: Germania anno zero (1947), de Roberto
Rosselini, A Foreign Affair (1948), americano, mas realizado pelo austríaco
emigrado Billy Wilder, e Murderers are Among Us (1946), de Wolfgang
Staudte, famoso nesta época por ser o único filme alemão a começar a
abordar as implicações morais das atrocidades nazis (mas onde a palavra
«judeu» nunca é pronunciada).
Três destes filmes, Roma: città aperta, Paisan e Germania anno zero
foram realizados por Roberto Rosselini. Tal como Vittorio de Sica, que
realizou Sciuscià (1946), Ladrão de Bicicletas (1948) e Umberto D (1952),
Rosselini foi responsável pelo ciclo de filmes neo-realistas realizados nos
anos de 1945 a 1952, e que lançaram os realizadores italianos para a linha da
frente do cinema internacional. À semelhança de uma ou duas das comédias
inglesas contemporâneas realizadas nos Estúdios Ealing, nomeadamente
Passport to Pimlico (1949), os filmes neo-realistas usavam os danos e a
destruição da guerra, sobretudo nas cidades, como cenário e, de certa forma,
tema do cinema do pós-guerra. Todavia, nem mesmo os melhores filmes
britânicos se aproximaram sequer do humanismo sombrio das obras-primas
italianas.
As «verdades» simples destes filmes reflectem não tanto o mundo europeu
como era na altura, mas este mundo atravessado pelas memórias e os mitos do
tempo da guerra. Os trabalhadores, o campo intacto, acima de tudo as crianças
(sobretudo os rapazes) representam algo de bom, incorrupto e real – mesmo
no meio da destruição e da pobreza urbanas – quando postos em contraste
com os falsos valores de classe, riqueza, cupidez, colaboração, luxe et
volupté. Na maior parte destes filmes, os Americanos estão ausentes
(excepção feita aos soldados americanos a quem são engraxadas as botas no
filme epónimo Sciuscià, ou os posters de Rita Hayworth, que aparecem em
Ladrão de Bicicletas, justapostos ao miserável colador de cartazes). Esta é
uma Europa de europeus que vivem nas margens semiconstruídas e
semidestruídas das suas cidades, filmados quase como documentários (e
sendo, por essa razão, de alguma forma tributários da experiência de
realização de documentários obtida junto dos exércitos, durante a guerra). Tal
como o próprio mundo da Europa do pós-guerra, desapareceram depois de
1952, embora o neo-realismo tivesse uma espécie de semiprolongamento em
Espanha, onde Luis Garcia Berlanga realizou em 1953 Bienvenido Mister
Marshall e Juan Antonio Bardem dirigiu, três anos depois, Morte de um
Ciclista.
Tal como outros divertimentos desta época, ir ao cinema era um prazer
colectivo. Nas pequenas vilas italianas, o filme semanal era visionado e
comentado pela maior parte da população, era um entretenimento público e
publicamente discutido. Em Inglaterra, aos sábados de manhã, havia
espectáculos para as crianças, as canções eram projectadas no ecrã e o público
era encorajado a cantar acompanhando uma pequena bola branca que saltava
a cada palavra. Uma dessas canções, de 1946, aproximadamente, é recordada
numa evocação da infância passada no Sul de Londres, no pós-guerra:
Aparecemos ao sábado de manhã
Saudando toda a gente com um sorriso.
Aparecemos ao sábado de manhã
Sabendo que vale a pena.
Como membros do Odeon que todos queremos ser
Bons cidadãos depois de crescidos
E campeões dos Livres.(7)
O tom didáctico não é representativo – pelo menos de uma forma tão
aberta – e desapareceria em poucos anos, mas esta nota inocente e antiquada
capta bem o momento. As distracções dos trabalhadores manuais, como a
criação de pombos, as corridas de motas e as corridas de galgos, atingiram o
seu ponto mais elevado nestes anos, até entrarem num declínio contínuo, que
se intensificou a partir de finais dos anos 50. As suas raízes, que vinham do
fim da época vitoriana, podiam ser reconhecidas na espécie de chapéus que os
espectadores usavam: tanto o beret (França) como o boné de trabalhador
manual (Inglaterra) tornaram-se populares por volta dos anos 90 do século
XIX e eram ainda de norma em 1950. Os rapazes ainda se vestiam como os
seus avós, excepção feita às calças curtas, omnipresentes.
A dança também era popular, em grande parte graças aos soldados
americanos, que introduziram o swing e o be-bop. Eram dançados em salões
populares e em clubes nocturnos, e foram popularizados pela rádio (antes de
meados dos anos 50, eram poucos os que podiam ter gira-discos e as juke-box
ainda não tinham feito desaparecer os conjuntos de música de dança que
tocavam ao vivo). A diferença de gerações que surgiria na década seguinte
ainda não se notava. O new look de Christian Dior, de Fevereiro de 1947, um
estilo livre e agressivo, que pretendia contrastar com a escassez de tecido do
período da guerra, propondo saias até ao tornozelo, ombros estofados e uma
pletora de laços e plissados, era preferido por mulheres de todas as idades –
quando os podiam comprar. A aparência externa era ainda função da classe
social (e do rendimento) e não da idade.
Havia, é claro, tensões entre as gerações. Durante a guerra, os zoot suits,
de influência americana, eram usados pelos vigaristas londrinos e pelos
zazous parisienses, com muita consternação dos seus parentes mais velhos, e
no final dos anos 40 o entusiasmo de boémios e intelectuais pelo casaco de lã
grosseira, uma adaptação do que fora até então o tradicional casaco dos
pescadores belgas, deixava antever a moda que viria depois em que os jovens
preferiam usar roupa inferior a roupa de qualidade. No ultra-sofisticado clube
nocturno parisiense Le Tabou, inaugurado em Abril de 1947, o vestuário
permissivo era visto com muita seriedade, ao passo que o filme francês de
1949, Rendez-vous de Juillet dá ênfase à ausência de gravitas, durante o
almoço, manifestada pela mimada geração mais recente: numa família
burguesa tradicional, o pai convencional fica consternado com o
comportamento do seu filho mais novo, sobretudo devido à sua insistência em
almoçar sem gravata.
Mas tudo isto eram aspectos menores da revolta dos adolescentes, que
sempre se repete. Na Europa do pós-guerra, a maior parte das pessoas de
todas as idades estava sobretudo preocupada em desenvencilhar-se dos seus
problemas. No início dos anos 50, uma família italiana em cada quatro vivia
na pobreza e a maioria das outras estava pouco melhor. Menos de 50% das
casas tinham retrete interior e apenas uma em cada oito se podia vangloriar de
ter casa de banho. Nas piores regiões do longínquo Sudeste da Itália, a
pobreza era endémica. Na aldeia de Cuto, no Marchesato di Cretone, o
fornecimento de água potável aos 9000 habitantes da povoação consistia
numa única fonte pública.
O Mezzogiorno era um caso extremo. Todavia, em 1950, na Alemanha
Ocidental, 17 dos 47 milhões de residentes eram ainda tidos por
«carenciados», sobretudo porque não tinham onde viver. Até em Londres uma
família que constasse de uma lista de espera para uma casa ou um andar podia
aguardar em média sete anos antes de ser alojada. Entretanto, eram colocadas
em pré-fabricados do pós-guerra, umas caixas de metal instaladas em lotes
desocupados à volta da cidade para acolher os desalojados, até que a
construção de novas habitações pudesse satisfazer as necessidades. Nas
sondagens de opinião, a «habitação» foi sempre a principal preocupação dos
inquiridos. No filme Milagre em Milão (1951), de Vittorio de Sica, a multidão
canta «Queremos uma casa onde viver / Para que nós e os nossos filhos
possamos acreditar no amanhã».
Os padrões de consumo da Europa do pós-guerra reflectiam a penúria
constante do continente, e o impacto duradouro da Depressão e da guerra. Foi
na Grã-Bretanha que o racionamento durou mais tempo, sendo o do pão
introduzido entre Julho de 1946 e Julho de 1948; os cupões para vestuário
permaneceram em vigor até 1949, o regime de vestuário e mobiliário
económicos do tempo da guerra só foi abandonado em 1952, e o
racionamento da carne e de outros alimentos terminou apenas no Verão de
1954, embora tivesse sido temporariamente suspenso para a coroação da
rainha Isabel II, em Junho de 1953, quando a todos foi atribuída mais 450
gramas de açúcar e 120 gramas de margarina(8). Mas até em França, onde o
racionamento (e, portanto, também o mercado negro) desapareceu muito mais
rapidamente, a obsessão com a oferta de produtos alimentares não diminuiu
antes de 1949, pelo menos.
Quase tudo tinha uma oferta reduzida ou era pequeno (o tamanho
recomendado das novas habitações familiares, tão desejadas, construídas pelo
governo trabalhista na Grã-Bretanha, era precisamente de 83,6 m2 para uma
casa com três quartos). Apenas alguns europeus possuíam carro ou frigorífico.
As mulheres da classe trabalhadora do Reino Unido, onde o nível de vida era
mais elevado do que na maioria dos países do continente, iam comprar
comida duas vezes por dia, quer a pé quer utilizando os transportes públicos,
muito à semelhança do que as suas mães e avós fizeram antes delas. Os
produtos que vinham de terras distantes eram exóticos e caros. O sentimento
geral de restrições e limites era ainda reforçado pelos controlos ao comércio
internacional (para poupar as valiosas divisas estrangeiras) e a legislação que
afastava os trabalhadores estrangeiros e outros emigrantes (a República
Francesa manteve em vigor, no pós-guerra, toda a legislação dos anos 30 e da
ocupação, destinada a impedir o trabalho estrangeiro e outros estrangeiros
indesejáveis, permitindo excepções, na sua maioria de trabalhadores manuais
especializados, apenas conforme as necessidades).
A Europa do final dos anos 40 e começo dos anos 50 era, sob muitos
aspectos, menos aberta, com menos mobilidade e mais isolada do que fora em
1913. Estava certamente mais arruinada, e não apenas só Berlim, onde apenas
um quarto dos destroços das casas fora removido em 1950. O historiador
social britânico Robert Hewison descreve os Britânicos desta época como
«pessoas gastas que trabalhavam com máquinas gastas». Ao passo que a
maior parte do equipamento industrial dos Estados Unidos tinha menos de
cinco anos no final dos anos 40, na França do pós-guerra a idade média da
maquinaria era de vinte anos. O agricultor francês típico produzia alimentos
para cinco franceses, o agricultor americano já estava a produzir três vezes
mais. Os 40 anos de guerra e de depressão económica tinham provocado
enormes perdas.
O «pós-guerra» durou, portanto, muito tempo, mais, certamente, do que os
historiadores supuseram, por vezes descrevendo esses anos difíceis à luz
lisonjeira das décadas que se lhe seguiriam. Nessa época, poucos europeus,
estivessem ou não bem informados, poderiam prever a extensão das
mudanças que estavam prestes a acontecer-lhes. A experiência do último meio
século provocara em muitos um pessimismo céptico. Nos anos que
precederam a Primeira Guerra Mundial, a Europa era um continente optimista
em que os estadistas e os comentadores perspectivavam um futuro de
confiança. Passados 30 anos, após a Segunda Guerra Mundial, as pessoas
dirigiam um olhar fixo e nervoso para o terrível passado. Muitos observadores
previam que se prolongasse: outra Depressão no pós-guerra, a repetição das
políticas extremistas, uma Terceira Guerra Mundial.
Todavia, a própria dimensão da miséria colectiva que os europeus
causaram a si mesmos na primeira metade do século teve um efeito
profundamente despolitizador: longe de se virarem para soluções extremistas,
tal como sucedera nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, os
públicos europeus dos anos sombrios após a Segunda Guerra Mundial
afastaram-se da política. Na época, as implicações desta atitude podiam ser
vistas apenas vagamente no fracasso dos partidos fascistas e comunistas em
tirarem vantagem das dificuldades da vida quotidiana, na forma como a
economia substituía a política enquanto meta e linguagem do agir colectivo e
no aparecimento dos entretenimentos e do consumo caseiros em vez da
participação nos assuntos públicos.
Aliás, algo mais estava a acontecer. Como Janet Flanner, da revista
semanal The New Yorker, já referira em Maio de 1946: depois da roupa
interior, a segunda prioridade de produtos «úteis» na França do pós-guerra
eram os carrinhos de bebé. Pela primeira vez em muitos anos, os Europeus
recomeçavam a ter filhos. No Reino Unido, a taxa de natalidade em 1949 era
superior em 11% à de 1937, em França tinha tido um crescimento sem
precedentes de 33%. As implicações desta notável explosão da natalidade,
num continente em que, desde 1913, a característica demográfica mais
marcante fora a morte prematura, eram muito importantes. Em mais aspectos
do que a maioria dos contemporâneos poderia ter previsto, estava a nascer
uma nova Europa.
-
(1) Luc Sante, The Factory of Facts (1998), p. 27.

(2) Não era a única nas suas alusões vitorianas. O primeiro-ministro britânico da altura, Winston
Churchill, costumava lembrar aos seus interlocutores que participara na última carga de cavalaria do
Exército britânico, em Omdurman, no Sudão, em Setembro de 1898.

(3) Nos manuais de História do ensino secundário, a mensagem da subida de Franco ao poder não
carecia de ambiguidades: «O futuro da Espanha unido, passados três séculos, ao destino do passado!
[…] A antiga procissão não terminou […]. Pelo seu caminho avançam os mortos e os vivos, exaltados
pelo cristianismo, em que um mundo desorientado e em convulsões catastróficas se centra e fixa […].
Esta é a grande tarefa para que Deus salvou a Espanha de hoje […]. Um destino excepcional […].
Através do Império até Deus!» Feliciano Cereceda, Historia del imperio español y de la hispanidad
(Madrid, 1943), pp. 273-274, citado em Carolyn Boyd, Historia Patria: Politics, History and National
Identity in Spain, 1875-1975 (Princeton, 1997), p. 252.

(4) Bing Crosby.

(5) Na Grã-Bretanha, o humor durante a guerra concentrava-se habitualmente nas dificuldades


materiais, nas insinuações sexuais moderadas e nos ressentimentos latentes contra os soldados
americanos superprivilegiados.

(6) Mas note-se que a França tinha mais publicações dedicadas ao cinema do que os outros dois
países juntos.

(7) Trevor Grundy, Memoir of a Fascist Childhood (1998), p. 19.

(8) O racionamento na Europa de Leste só foi abolido em 1953 na Checoslováquia, Hungria, Polónia
e Bulgária, em 1954 na Roménia, em 1957 na Albânia e em 1958 na Alemanha de Leste. Mas como a
economia comunista provocava sistematicamente a escassez, as comparações com o Ocidente não são
apropriadas.
II Parte

A Prosperidade e os Seus Descontentes

(1953-1971)
VIII

A Política de Estabilidade
«Para a maioria das pessoas deve ter sido notório, mesmo antes de a Segunda
Guerra Mundial o ter tornado óbvio, que o tempo em que as nações europeias
podiam discutir entre si o domínio do mundo está morto e enterrado. A
Europa nada mais tem a fazer nesse sentido e qualquer europeu que ainda
anseie pelo poder mundial tornar-se-á vítima do desespero ou do ridículo, tal
como sucedeu aos muitos Napoleões dos asilos de loucos.»
Max Frisch (Julho de 1948)
«Porque tivemos ali as nossas tropas, os europeus não cumpriram a sua parte.
Eles não irão fazer os sacrifícios necessários para ter os soldados para sua
própria defesa.»
Dwight Eisenhower
«O principal argumento contra os Franceses possuírem informação nuclear foi
o efeito que teria nos Alemães, encorajando-os a fazer o mesmo.»
John F. Kennedy
«Os tratados, como sabe, são como as raparigas e as rosas: duram enquanto
duram.»
Charles de Gaulle
«Só as instituições políticas são capazes de formar o carácter de uma nação.»
Madame de Staël
No seu estudo clássico sobre o aumento da estabilidade política na
Inglaterra do início do século XVIII, o historiador inglês J. H. Plumb
escreveu: «Há uma crença geral popular, que resulta em grande parte de
Burke e dos historiadores do século XIX, segundo a qual a estabilidade
política tem um crescimento lento, como um coral; é o resultado do tempo,
das circunstâncias, da prudência, da experiência e da sabedoria, construindo-
se lentamente ao longo dos séculos. Nada está, penso eu, mais afastado da
verdade […]. A estabilidade política, quando acontece, surge muitas vezes
bastante rapidamente, tão subitamente quanto a água se transforma em
gelo.»(1)
Aconteceu algo parecido na Europa, – isto é, de forma bastante inesperada,
– na primeira metade dos anos 50.
Entre 1945 e o início de 1953, os europeus viveram, como vimos, sob o
espectro da Segunda Guerra Mundial, e na expectativa de uma terceira. O
acordo falhado de 1919 ainda estava fresco na memória, quer dos homens de
Estado, quer do público em geral. A imposição do comunismo na Europa de
Leste era um eco claro da instabilidade revolucionária que se seguiu à
Primeira Guerra Mundial. O golpe de Praga, as tensões em Berlim e a guerra
da Coreia, no Extremo Oriente, pareciam reminiscências preocupantes das
crises internacionais sucessivas dos anos 30. Em Julho de 1951, os aliados
ocidentais declararam que o «estado de guerra» com a Alemanha acabara,
todavia, nas circunstâncias de uma Guerra Fria que se intensificava
rapidamente, ainda não havia Tratado de Paz, e eram poucas as perspectivas
de vir a existir. Também ninguém podia dar por certo que o fascismo não
voltaria a ter solo fértil no problema da Alemanha, que permanecia por
resolver, ou, de facto, em qualquer outro lugar.
A expansão da rede de alianças, agências e acordos internacionais oferecia
poucas garantias de harmonia internacional. Com a vantagem que dá o olhar
retrospectivo, podemos agora ver que o Conselho da Europa, a Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço, a União Europeia de Pagamentos e sobretudo a
Organização do Tratado do Atlântico Norte eram o gérmen de um sistema
novo e estável de relações entre os Estados. Documentos como a Convenção
para a Protecção dos Direitos Humanos, de 1950, do Conselho da Europa,
haveriam de ter um significado duradouro nas décadas seguintes. Todavia, ao
mesmo tempo, tais documentos, tal como as instituições que os publicavam,
pareciam assemelhar-se muito aos pactos e às ligas dos anos 20, bem-
intencionados mas votados à destruição. Os cépticos da altura podem ser
perdoados por lhes terem prestado pouca atenção.
No entanto, com a morte de Estaline e o fim da guerra da Coreia, a Europa
Ocidental entrava aos tropeções e sem se aperceber numa época notável de
estabilidade política. Pela primeira vez em quatro décadas, os Estados da
metade ocidental do continente nem estavam em guerra nem enfrentavam a
ameaça eminente de alguma, pelo menos entre si. Os conflitos políticos
internos iam diminuindo. Os partidos comunistas começaram em toda a parte,
com excepção da Itália, a retirar-se lentamente para as margens da política e
já não se acreditava na ameaça do regresso ao fascismo, excepto, talvez, nos
comícios comunistas.
Os europeus ocidentais ficavam a dever o seu recente bem-estar às
incertezas da Guerra Fria. A internacionalização das confrontações políticas e
o consequente empenhamento dos Estados Unidos ajudaram a extrair o
veneno aos conflitos políticos internos. As questões políticas que em épocas
mais recuadas teriam quase certamente conduzido à violência e à guerra – o
problema não resolvido da Alemanha, os conflitos territoriais entre a
Jugoslávia e a Itália, o futuro da Áustria ocupada – eram objecto de contenção
e seriam consideradas na devida altura no contexto das confrontações e das
negociações das grandes potências, acerca das quais os europeus tinham
muito pouco a dizer.
A questão alemã continuava sem resposta. Mesmo depois do pânico de
1950 ter diminuído e os líderes ocidentais terem reconhecido que Estaline não
tinha planos imediatos para «fazer uma Coreia» na Europa Central, os dois
lados não estavam mais próximos de um acordo. A posição oficial ocidental
era a de que as duas Alemanhas, surgidas em 1949, deveriam ser unificadas
num Estado democrático apenas. Mas até que todos os Alemães fossem livres
de escolher por si mesmos o regime político em que desejavam viver, tal
reunificação não seria possível. Entretanto, a República Federal da Alemanha
(Ocidental) seria tratada como representante de todos os cidadãos alemães.
Não oficialmente, os Americanos, tal como os europeus ocidentais, não
estavam de modo nenhum insatisfeitos por verem a Alemanha dividida
indefinidamente. Como John Foster Dulles apresentou a questão ao presidente
Eisenhower, em Fevereiro de 1959, havia «muito a dizer a favor do satus
quo», mas não era «uma posição que pudéssemos assumir em público».
A posição soviética era, ironicamente, bastante parecida. Nos seus últimos
anos, Estaline manteve a posição oficial soviética, de que Moscovo pretendia
uma Alemanha unificada e que aceitaria de bom grado que tal Alemanha se
mantivesse neutral, desde que estivesse desarmada. Numa série de notas da
Primavera de 1952, Estaline propôs que as quatro potências ocupantes
redigissem um tratado de paz com o intuito de estabelecer essa Alemanha
neutral e desmilitarizada, com a retirada de todas as forças ocupantes e o seu
governo escolhido por todos os Alemães em eleições livres. Os historiadores
têm criticado Washington pelo seu fracasso em não aceitarem estas propostas
de Estaline, uma «oportunidade perdida» de terminar a Guerra Fria ou, pelo
menos, de diminuir o risco associado ao seu ponto de confrontação mais
perigoso.
É certamente verdade que os líderes ocidentais não levaram muito a sério
as notas de Estaline e recusaram-se a aceitar esta oferta da União Soviética.
De acordo com o que se passou, tiveram razão. Os próprios líderes soviéticos
atribuíram pouca importância às propostas que fizeram, e não esperavam
realmente que os Americanos, os Britânicos e os Franceses retirassem as suas
forças ocupantes e permitissem uma Alemanha neutral e desarmada à deriva
no meio de um continente dividido. Talvez a Estaline e aos seus sucessores
não desagradasse a ideia de assistir à presença militar continuada dos
Americanos em solo germânico. Do ponto de vista dos líderes soviéticos
desta geração, a presença de tropas dos Estados Unidos na Alemanha
Ocidental era uma das garantias de maior confiança contra o revanchismo da
Alemanha. Valia a pena apostar nessa garantia – quando a alternativa que se
oferecia era uma Alemanha desmilitarizada à sombra da União Soviética (um
objectivo pelo qual Moscovo teria abandonado de bom grado os seus clientes
leste-alemães e a sua República Democrática) –, mas nada menos do que isso.
O que os Russos certamente não queriam era uma Alemanha Ocidental
remilitarizada. O objectivo das démarches soviéticas não era chegar a acordo
com o Ocidente sobre a reunificação germânica, mas impedir a perspectiva do
rearmamento iminente da Alemanha Ocidental. Os Americanos tinham
levantado a questão apenas cinco anos após a derrota de Hitler, como
consequência directa da guerra da Coreia. Se o Congresso aceitasse os
pedidos da Administração Truman de incrementar a ajuda militar externa,
então os aliados da América – incluindo os Alemães – teriam de dar a sua
própria contribuição para a defesa do seu continente.
Quando o secretário de Estado americano Dean Acheson iniciou as
discussões sobre o rearmamento alemão com a Grã-Bretanha e a França, em
Setembro de 1950, os Franceses opuseram-se veementemente à ideia. A
proposta confirmou todas as suas suspeitas iniciais de que a NATO, longe de
representar um compromisso firme da América em proteger a França no seu
flanco leste, era simplesmente um pretexto para a remilitarização da
Alemanha. Até os Alemães estavam relutantes, embora por razões que lhes
eram próprias. Konrad Adenauer compreendeu muito bem qual a
oportunidade que lhe era concedida por estas novas circunstâncias: longe de
aceitar de imediato a oportunidade de se rearmar, a República Federal da
Alemanha assumiria uma posição contida. Em contrapartida de uma
contribuição alemã para a defesa ocidental, Bona insistiria no reconhecimento
internacional pleno da RFA e numa amnistia dos criminosos de guerra
alemães mantidos sob custódia dos Aliados.
Antecipando que um tal acordo pudesse ser gizado nas suas costas, os
Franceses evitaram mais discussões sobre uma contribuição militar alemã
para a NATO apresentando uma contraproposta da sua autoria. Em Outubro
de 1950, René Pleven, o primeiro-ministro francês, sugeriu que fosse criada
uma Comunidade Europeia de Defesa, análoga ao Plano Schuman. Para além
de uma assembleia, de um conselho de ministros e de um tribunal de justiça,
esta comunidade teria a sua própria Força Europeia de Defesa (FED). Os
Americanos, tal como os Britânicos, não ficaram contentes com a ideia, mas
concordaram em aceitá-la como segunda solução para o problema de defesa
da Europa.
O tratado da Comunidade Europeia de Defesa (CED) foi portanto assinado
em 27 de Maio de 1952, bem como documentos contingentes que afirmavam
que logo que os países signatários tivessem ratificado o tratado, os Estados
Unidos e a Grã-Bretanha cooperariam completamente com a FED e a
ocupação militar da Alemanha terminaria. Foi este acordo que a União
Soviética tentara sem êxito sabotar com as suas ofertas de um tratado de paz
que desmilitarizasse a Alemanha. O Bundestag da Alemanha Ocidental
ratificou o tratado CED em Março de 1953 e os países do Benelux
ratificaram-no em seguida(2). Só faltava que a Assembleia Nacional francesa
ratificasse o tratado para que a Europa Ocidental criasse algo parecido com
um exército europeu, com contingentes nacionais integrados e mistos,
incluindo um germânico.
Os Franceses, todavia, ainda não estavam satisfeitos. Como Janet Flanner
observou de forma perspicaz, em Novembro de 1953, «para os Franceses em
geral, o problema da CED é a Alemanha – não a Rússia, como para os
Americanos». As hesitações francesas frustraram os Americanos. Numa
reunião do conselho da NATO, em Dezembro de 1953, John Foster Dulles, o
novo Secretário de Estado de Eisenhower, ameaçou com uma «reapreciação
penosa» da política americana se a CED falhasse. Mas embora o plano Pleven
fosse fruto do cérebro de um primeiro-ministro francês, o debate público
revelou a dimensão da relutância francesa em aprovar o rearmamento alemão,
independentemente das condições. Para além disso, as propostas de
rearmamento alemão e de um exército europeu não poderiam ter surgido em
pior altura: o Exército francês estava a ser derrotado e humilhado no
Vietname e o novo primeiro-ministro francês, Pierre Mendès-France, pensou
correctamente que seria imprudente fazer depender o futuro da sua frágil
coligação governamental de uma proposta impopular de rearmar o inimigo
nacional.
Em conformidade, quando o tratado da CED chegou finalmente à
Assembleia Nacional para ratificação, Mendès-France absteve-se de fazer
dele uma questão de confiança e o tratado foi rejeitado em 30 de Agosto de
1954, com 319 votos contra e 264 a favor. O plano de uma Comunidade
Europeia de Defesa, e com ele de uma Alemanha rearmada num exército
europeu, tinha acabado. Numa conversa privada com o ministro dos Negócios
Estrangeiros belga, Paul-Henri Spaak, e o primeiro-ministro do Luxemburgo,
Joseph Bech, um frustrado Adenauer atribuiu o comportamento de Mendès-
France ao facto de ser «judeu», o que ele tentava compensar, segundo o
chanceler alemão, alinhando com o sentimento nacionalista francês. Mais
plausivelmente, o próprio Mendès-France explicou assim o fracasso da CED:
«Na CED havia demasiada integração e demasiado pouca Inglaterra.»
Os europeus e o seu aliado americano voltavam ao ponto de partida.
Todavia, as circunstâncias eram agora diferentes. A guerra da Coreia acabara,
Estaline estava morto e a NATO estava firmemente implantada na cena
internacional. Os Franceses conseguiram adiar por algum tempo o problema
da defesa europeia, mas não o conseguiriam afastar durante muito mais.
Passadas algumas semanas sobre a votação da CED na Assembleia Nacional,
as potências aliadas ocidentais – os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a
França – encontraram-se por duas vezes em conferências convocadas
rapidamente para Londres e Paris. Por iniciativa do ministro britânico dos
Negócios Estrangeiros, Anthony Eden, foi aprovado um conjunto de
propostas(3) – os chamados Acordos de Londres –, o qual, depois de
completado com os Tratados de Paris, seria a base da política europeia de
defesa do próximo meio século.
Para ultrapassar o problema da «demasiado pouca Inglaterra», Eden
propôs destacar forças britânicas (quatro divisões) para uma presença
permanente na Europa continental (pela primeira vez desde a Idade Média). O
Tratado de Bruxelas de 1948 seria alargado para se constituir uma União
Europeia Ocidental (UEO) e a Alemanha e a Itália fariam parte dela (embora
o tratado de 1948 tivesse sido concebido, como vimos, com o propósito
explícito de protecção mútua contra a Alemanha). Em contrapartida, os
Franceses permitiriam um exército da República Federal da Alemanha que
não excedesse meio milhão de homens e a Alemanha integraria a NATO
como Estado soberano(4).
Quando estes tratados fossem ratificados e entrassem em vigor, o estatuto
de ocupação da Alemanha teria prescrito e os Aliados ocidentais teriam
estabelecido de facto a paz com o seu antigo inimigo, embora não
oficialmente. As tropas aliadas permaneceriam na República Federal da
Alemanha para evitar uma reincidência alemã, mas igualmente enquanto parte
de uma presença europeia e por acordo mútuo. Os Franceses não estavam de
modo algum dispostos a aceitar unanimemente estes novos planos, mas tendo
excluído as suas próprias propostas alternativas, não estavam em condições de
protestar, embora a Alemanha Ocidental tivesse obtido melhores condições
nos tratados de 1954 do que obteria com o plano Pleven. Não era a primeira
vez que nas disputas internacionais sobre a Alemanha a França era a maior
inimiga de si mesma. Compreensivelmente, o apoio francês aos tratados de
Paris era algo ambivalente. Quando a Assembleia Nacional votou a sua
ratificação, em 30 de Dezembro de 1954, fê-lo por 287 votos contra 260, uma
maioria de apenas 27 votos.
Se os Franceses estavam hesitantes, os Russos estavam nitidamente
desagradados. Em 15 de Maio de 1955, dez dias depois da incorporação
formal da Alemanha Ocidental na NATO e da abolição da Alta Comissão
Aliada para a República Federal da Alemanha, a União Soviética anunciou a
formação do seu Pacto de Varsóvia. A Polónia, a Checoslováquia, a Hungria,
a Roménia, a Bulgária, a Albânia e a União Soviética formaram uma aliança
de «amizade, cooperação e assistência mútua» sob um comando unificado.
Moscovo anulou os seus tratados de aliança com a Grã-Bretanha e a França,
que datavam do tempo da guerra, e, aceitando o inevitável, afirmou a
soberania plena da República Democrática Alemã e incorporou-a no Pacto de
Varsóvia. A Questão Alemã não fora exactamente resolvida, mas com as duas
partes totalmente integradas nas suas respectivas alianças internacionais,
ficaria posta de parte por algum tempo, sendo o seu lugar ocupado, na devida
altura, pelo problema ainda não solucionado da divisão da antiga capital,
Berlim.
Agora que o futuro imediato da Alemanha fora traçado, ambos os lados se
apressaram a lidar com os conflitos e as tensões menos importantes. Os novos
senhores do Kremlin, sobretudo Nikita Kruschev, levaram a sério o seu
próprio programa de «coexistência pacífica» na Europa e partilhavam o
desejo americano de minimizar os riscos de futuras confrontações. Um dia
depois do Pacto de Varsóvia ser anunciado, as quatro potências ocupantes
assinaram o Tratado do Estado Austríaco. A Áustria seria independente e
neutral, não fazendo parte nem da NATO nem do Pacto de Varsóvia, sendo
livre de escolher o seu próprio caminho(5). Os exércitos das quatro potências
ocupantes deveriam sair do seu território, embora a União Soviética, que já
tinha retirado cerca de 100 milhões de dólares da sua zona de ocupação no
Leste da Áustria, tenha assegurado uma última fatia mediante a obrigação
deste país «adquirir» os interesses económicos soviéticos no seu sector leste
por mais 150 milhões de dólares.
Entretanto, mais a sul, a Jugoslávia e a Itália concordaram em finalizar o
impasse em relação ao caso de Trieste. Num acordo estabelecido em Outubro
de 1954 com intermediação dos Americanos e dos Britânicos, a cidade de
Trieste continuaria a pertencer à Itália, enquanto os seus arredores, povoados
maioritariamente por Eslovenos, reverteria para a Jugoslávia. Os acordos de
Trieste, como muitas outras coisas nestes anos, foram facilitados pelo facto de
serem considerados «provisórios»; embora segundo as palavras do
embaixador italiano nos Estados Unidos, Alberto Tarchiani, o acordo sobre
Trieste «tinha apenas a aparência de ser provisório, quando na verdade era
definitivo».
Os acordos sobre a Áustria, a Jugoslávia e a Itália foram possíveis devido
a uma nova atitude de détente nas questões europeias, simbolizada pela
Cimeira de Genebra, em Julho de 1955 (a primeira desde Potsdam), e a
entrada de 16 novos membros nas Nações Unidas, ultrapassando um impasse
de dez anos entre o Leste e o Ocidente. Para além da atmosfera de
intercâmbio amigável entre Eisenhower, Kruschev e Eden, a questão mais
importante que foi resolvida em Genebra foi o destino de cerca de 10 000
prisioneiros de guerra alemães ainda em poder dos Soviéticos. Em retribuição
da visita de Adenauer a Moscovo, em Setembro de 1955, e do
estabelecimento de relações diplomáticas, os líderes soviéticos deram o seu
acordo ao regresso desses homens, 9626 dos quais foram libertados nesse
mesmo ano e os restantes no final de Janeiro de 1956. Entretanto, os pequenos
vizinhos ocidentais da Alemanha também passaram a ter alguma
proximidade com Bona. Em 1955, os Dinamarqueses alcançaram um acordo
sobre questões fronteiriças menores e uma compensação pelos crimes de
guerra alemães e, um ano mais tarde, foi a vez dos Belgas. O Grão-Ducado do
Luxemburgo, porém, só chegou a acordo com os Alemães em 1959 e os
Holandeses apenas em 1960. Sem que alguém o tenha de facto dito, fechava-
se o livro dos crimes e dos castigos da guerra europeia e das suas
consequências.
Estes progressos tranquilizadores estavam a ter lugar no contexto de uma
importante corrida internacional aos armamentos. Este paradoxo – a formação
de um acordo pacificador europeu enquanto as duas grandes potências da
época se rearmavam completamente e preparavam para a eventualidade de
uma guerra termonuclear – não era tão estranho quanto poderia parecer. A
importância crescente que as armas nucleares e os mísseis intercontinentais
com que seriam lançadas tinham no pensamento estratégico dos Estados
Unidos e da União Soviética libertou os países europeus da necessidade de
competir numa arena em que não podiam esperar recursos equivalentes aos
das superpotências, embora a Europa Central continuasse a ser o campo de
batalha mais provável de uma futura guerra. Por esta razão, a Guerra Fria foi
encarada de uma forma muito diferente na Europa Ocidental e nos Estados
Unidos, ou, de facto, na URSS.
O arsenal nuclear dos Estados Unidos cresceu rapidamente nos anos 50. O
número de armas nucleares à disposição das forças armadas dos Estados
Unidos passou de 9 em 1946, 50 em 1948 e 170 no início da década para 841
em 1952, antes de aumentar para cerca de 2000 na altura em que a Alemanha
entrou para a NATO (atingiria 28 000 na véspera da crise cubana, sete anos
mais tarde). Para lançar estas bombas a força aérea dos Estados Unidos
possuía uma frota de bombardeiros B-29 estacionados em bases aéreas
avançadas, a qual aumentou de 50 unidades no início do bloqueio de Berlim,
em 1948, para mais de 1000 cinco anos mais tarde. Os primeiros
bombardeiros intercontinentais B-52 entraram ao serviço em Junho de 1955.
Dada a superioridade esmagadora da União Soviética em homens e armas
convencionais na Europa, estas armas nucleares transportadas por aviões
teriam de se tornar centrais na estratégia de Washington, sobretudo depois da
ordem secreta do presidente Truman, em 10 de Março de 1950, para que fosse
acelerado o desenvolvimento da bomba de hidrogénio.
A decisão de Truman foi instigada pelo teste bem precedido de uma
bomba atómica por parte da União Soviética, em Agosto de 1949. A diferença
entre a capacidade nuclear americana e a soviética estava a encurtar: o
primeiro teste termonuclear realizado com êxito pelos Estados Unidos
aconteceu no atol de Elugelab, no Pacífico, no dia 1 de Novembro de 1952; o
primeiro teste soviético deste tipo, em Semipalatinsk, foi anunciado apenas
dez meses mais tarde, em 12 de Agosto de 1953. As armas nucleares tácticas
americanas começaram a chegar à Alemanha Ocidental no mês seguinte, e em
Janeiro Dulles anunciou a política New Look de Eisenhower. A NATO seria
«nuclearizada»: a ameaça do uso de armas nucleares tácticas no campo de
batalha europeu deveria fazer parte da estratégia de defesa da Aliança. Para
que a União Soviética acreditasse que o Ocidente poderia efectivamente
atacá-la, deveria ser abolida a distinção entre armas nucleares e
convencionais. Como Dulles explicou numa reunião do conselho da NATO,
em Abril de 1954: «Os Estados Unidos consideram que a capacidade de usar
armas atómicas é essencial para a defesa da área da NATO, em face à ameaça
actual. Em suma, tais armas devem ser agora consideradas como se se
tivessem tornado convencionais.»
A coincidência da nuclearização da NATO com a estabilização do
continente não foi um acaso. Também do ponto de vista soviético, a guerra
convencional na Europa Central e Ocidental estava a perder interesse
estratégico. Também Moscovo estava a acumular armas nucleares: tendo
começado em 1950 com apenas cinco, tinha construído cerca de 1700 no final
da década. Mas a maior ênfase dos Soviéticos era no desenvolvimento de
meios para as usar, não numa guerra na Europa, mas atravessando os oceanos,
para assim compensar os planos americanos de basear as armas nucleares na
Alemanha, apenas a algumas centenas de quilómetros da própria Rússia.
O famoso « gap dos mísseis», de que John F. Kennedy falou quando fez
campanha para a presidência dos Estados Unidos, em 1960, era um mito, um
exercício de propaganda soviética que obteve êxito. O mesmo se pode dizer
dos relatos generalizados sobre a superioridade dos Soviéticos na educação e
no domínio técnico. Duas décadas antes de o chanceler alemão Helmut
Schmidt fazer essa observação, Kruschev e alguns dos seus colegas mais
importantes já tinham compreendido intuitivamente que o império que
governavam era fundamentalmente «o Alto Volta com mísseis». Mas a URSS
estava certamente a realizar grandes esforços no desenvolvimento da sua
capacidade balística. O primeiro teste soviético bem sucedido de um míssil
balístico intercontinental foi realizado em Agosto de 1957, cinco meses antes
dos Americanos. O subsequente lançamento do Sputnik, em 4 de Outubro de
1957, mostrou o que poderia alcançar (para horror dos Americanos)(6).
As armas balísticas – mísseis intercontinentais capazes de lançar ogivas
nucleares do interior soviético para alvos americanos – seduziam muito Nikita
Kruschev em particular: eram mais baratas do que as armas convencionais,
permitiam que Kruschev mantivesse boas relações com a indústria pesada e
os militares, enquanto orientava recursos para a produção de bens de
consumo, e tinham a curiosa consequência, reconhecida por ambos os lados,
de tornar muito menos provável do que fora até aí uma guerra total. As armas
nucleares fizeram com que Moscovo e Washington fossem formalmente mais
beligerantes – era importante que parecessem prontos e dispostos a usá-las –,
mas na prática mais contidos.
Para os Americanos elas tinham mais um aspecto aliciante. Os Estados
Unidos ainda andavam à procura uma forma de se retirarem do emaranhado
europeu em que se viram envolvidos, apesar das melhores intenções dos seus
líderes. A nuclearização da Europa seria uma forma de resolver o problema.
Já não seria necessário pensar numa presença militar americana enorme,
indefinidamente estacionada no coração da Europa. Estadistas e estrategas
militares ansiavam pelo dia em que a Europa seria praticamente capaz de se
defender por si mesma, apoiada apenas na promessa americana de uma
retaliação nuclear em grande escala em caso de ataque soviético. Como
Eisenhower reiterou em 1953, a presença dos Estados Unidos na Europa foi
sempre encarada como uma «operação de substituição para dar confiança e
segurança aos nossos amigos estrangeiros».
Há várias razões que explicam por que os Americanos nunca conseguiram
cumprir os seus planos de deixar a Europa. Em finais dos anos 50, os Estados
Unidos fizeram pressão para que existisse uma força nuclear dissuasora
europeia e sob um comando colectivo europeu. No entanto, a ideia não
agradou aos Britânicos nem aos Franceses. Tal não se ficava a dever ao facto
de os respectivos governos se oporem por princípio às armas nucleares. Os
primeiros fizeram explodir a sua primeira bomba de plutónio no deserto
australiano, em Agosto de 1952; um ano e dois meses depois, era lançada pela
Royal Air Force a primeira bomba atómica. Por razões militares e económicas
os governos britânicos da época estavam bastante desejosos de mudar de uma
estratégia de defesa continental para outra de dissuasão nuclear. Na verdade, a
insistência dos Britânicos foi importante para convencer Eisenhower a
introduzir a sua estratégia New Look e os Britânicos também não objectaram
ao estacionamento de bombardeiros americanos com capacidade nuclear em
solo da Grã-Bretanha(7).
Os Franceses possuíam um programa de armamento atómico, aprovado
por Mendès-France, em Dezembro de 1954, embora a primeira bomba
francesa independente só tenha sido detonada com sucesso em Fevereiro de
1960. No entanto, nem os Britânicos nem os Franceses estavam dispostos a
ceder o controlo das armas nucleares a uma entidade de defesa europeia. Os
Franceses, sobretudo, estavam particularmente atentos a qualquer
possibilidade de os Americanos permitirem o acesso dos Alemães ao botão
nuclear. Os Americanos concordaram relutantemente em que a sua presença
na Europa era indispensável, que era precisamente o que os seus aliados
europeus pretendiam ouvir(8).
Um segundo tópico que ligava os Americanos à Europa era o problema de
Berlim. Graças à derrota do bloqueio em 1948-1949, a antiga capital da
Alemanha permanecia, de alguma forma, uma cidade aberta. Berlim Leste e
Berlim Ocidental estavam ligadas por linhas telefónicas e redes de transporte
que se cruzavam nas várias zonas de ocupação. Era também a única rota de
passagem da Europa de Leste para o Ocidente. Os Alemães em fuga para o
Ocidente podiam chegar a Berlim Leste vindos de qualquer ponto da
República Democrática Alemã, atravessar a zona de ocupação russa em
direcção às zonas ocidentais e depois percorrer por estrada ou caminho-de-
ferro o corredor de ligação de Berlim Ocidental ao resto da República Federal
da Alemanha. Uma vez aqui, tinham automaticamente direito a ser cidadãos
do país.
A viagem não estava inteiramente isenta de riscos e os refugiados só
podiam trazer o que pudessem transportar, mas nenhuma destas considerações
impedia os jovens da Alemanha de Leste a empreendê-la. Da Primavera de
1949 a Agosto de 1961, entre 2,8 a 3 milhões de Alemães Orientais passaram
por Berlim em direcção ao Ocidente, ou seja, 16% da população do país.
Muitos deles tinham instrução e eram homens e mulheres com profissão, o
futuro da Alemanha de Leste. Porém, neste número contavam-se também
milhares de agricultores que fugiam da colectivização rural de 1952 e
trabalhadores que abandonavam o regime depois da violenta repressão de
Junho de 1953.
O curioso estatuto de Berlim era, assim, um embaraço permanente e um
desastre para as relações públicas do regime comunista da Alemanha de
Leste. O embaixador soviético na RDA avisou sensatamente Moscovo, em
Dezembro de 1959: «A existência em Berlim de uma fronteira aberta – e, para
ir directamente ao assunto, sem controlo – entre os mundos socialista e
capitalista leva a população a fazer comparações, ainda que de forma
involuntária, entre ambas as partes da cidade, o que, infelizmente, nem
sempre favorece a Berlim Democrática.» A situação em Berlim tinha a sua
utilidade para Moscovo, bem com para outros. A cidade tornara-se o principal
posto de escuta e o principal centro de espionagem da Guerra Fria. Cerca de
70 agências diferentes operavam ali em 1961 e foi em Berlim que as agências
de espionagem soviéticas alcançaram alguns dos seus maiores sucessos.
No entanto, agora que os líderes soviéticos tinham aceite a divisão da
Alemanha e elevado a zona oriental a Estado independente e soberano, não
podiam continuar indefinidamente a ignorar a permanente hemorragia dos
seus recursos humanos. Não obstante, quando Moscovo dirigiu uma vez mais
a atenção mundial para Berlim e gerou uma crise internacional acerca do
estatuto da cidade, que durou três anos, não foi por consideração para com as
sensibilidades magoadas dos dirigentes da Alemanha de Leste. Em 1958, a
União Soviética estava novamente preocupada com a possibilidade de os
Americanos fornecerem armas aos seus aliados da Alemanha Ocidental, desta
vez nucleares. Este receio não era, como vimos, totalmente insensato. Afinal,
era também partilhado por alguns europeus ocidentais. Por isso, Kruschev
pensou utilizar Berlim – uma cidade a cujo destino os russos seriam de outra
forma indiferentes – como um meio para bloquear a nuclearização de Bona,
questão a que eram de facto muito sensíveis.
O primeiro passo da «crise de Berlim» foi dado em 10 de Novembro de
1958, quando Kruschev fez um discurso público em Moscovo dirigido às
potências ocidentais:
Os imperialistas transformaram a questão alemã num fonte permanente
de tensão internacional. Os círculos governamentais da Alemanha
Ocidental estão a fazer tudo para despertar as paixões militares contra a
República Democrática Alemã […]. Os discursos do chanceler Adenauer
e do ministro da Defesa Strauss, o armamento atómico do Bundeswehr e
os vários exercícios militares indiciam uma tendência inequívoca da
política dos círculos governamentais da Alemanha Ocidental […]. É
evidente que chegou a ocasião adequada para que os signatários dos
acordos de Potsdam abandonem o que resta do regime de ocupação de
Berlim e, dessa forma, tornem possível normalizar a situação na capital da
República Democrática Alemã. A União Soviética, no que lhe compete,
transferiria para a República Democrática Alemã as funções que ainda são
exercidas em Berlim por agências soviéticas.»
O objectivo professado da ofensiva de Kruschev, que se tornou mais
urgente quando o líder soviético exigiu, duas semanas mais tarde, que o
Ocidente se decidisse a abandonar Berlim no prazo de seis meses, era levar os
Americanos a abandonar Berlim, permitindo que se tornasse uma «cidade
livre». Se o tivessem feito, a credibilidade do seu compromisso geral de
defender a Europa Ocidental ficaria seriamente afectada e o sentimento
neutralista e antinuclear na Alemanha Ocidental e em outros países ocidentais
iria provavelmente crescer. Mas mesmo que as potências ocidentais
insistissem em permanecer em Berlim, a URSS poderia estar disposta a trocar
o seu acordo pelo compromisso firme do Ocidente em negar a Bona quaisquer
armas nucleares.
Quando os líderes ocidentais recusaram fazer qualquer concessão
relativamente a Berlim, com o argumento de que a própria União Soviética
negara os seus esforços em Potsdam ao colocar Berlim Leste sob o controlo
total do governo e das instituições do Estado da Alemanha de Leste sem que
houvesse um tratado final acordado entre as partes, Kruschev tentou de novo.
Depois de uma série de conversações infrutíferas dos ministros dos Negócios
Estrangeiros, em Genebra, no Verão de 1959, repetiu as suas exigências,
primeiro em 1960 e novamente em Junho de 1961. A presença militar
ocidental em Berlim tem de terminar, de contrário, a União Soviética retirará
unilateralmente de Berlim, celebrará um tratado de paz separadamente com a
RDA e deixará ao Ocidente a negociação do destino das suas zonas de
ocupação com o soberano Estado Alemão de Leste. De Novembro de 1958
até ao Verão de 1961, a crise de Berlim fermentou, os nervos diplomáticos
esgotaram-se e o êxodo dos Alemães de Leste cresceu até se tornar uma
verdadeira torrente.
O ultimato de Kruschev de Junho de 1961 foi entregue numa cimeira
realizada em Viena com John F. Kennedy, o novo presidente americano. A
última cimeira do género entre Kruschev e Eisenhower, em Maio de 1960,
fora interrompida quando os Soviéticos abateram o U-2 pilotado por Gary
Powers, da Força Aérea dos Estados Unidos, e os Americanos reconheceram
com relutância que vinham efectuando voos de espionagem a grande altitude
(tendo negado de início qualquer conhecimento da matéria). Nas suas
conversas com Kennedy, Kruschev ameaçou «liquidar» os direitos ocidentais
em Berlim se não houvesse acordo até ao final do ano.
Em público, Kennedy assumiu uma atitude dura, tal como Eisenhower
antes dele, insistindo que o Ocidente nunca deixaria de cumprir os seus
compromissos. Washington defendia os seus direitos, que decorriam dos
acordos de Potsdam, e aumentava o seu orçamento de defesa especificamente
para apoiar a presença militar dos Estados Unidos na Alemanha. Todavia, em
privado, os Estados Unidos eram muito mais conciliadores. Os Americanos,
ao contrário dos Alemães Ocidentais, aceitavam a realidade de um Estado
leste-alemão e compreendiam a ansiedade dos Soviéticos com o tom
agressivo dos recentes discursos de Adenauer e, sobretudo, do seu ministro da
Defesa Franz Josef Strauss. Algo tinha de ser feito para que a situação na
Alemanha avançasse. Como Eisenhower disse a Macmillan, em 28 de Março
de 1960, o Ocidente não podia «realmente permitir-se ficar dependente de
uma questão menor durante 50 anos». Com uma disposição de espírito
semelhante, Kennedy garantiu a Kruschev, em Viena, que os Estados Unidos
não «desejavam actuar de um modo que privasse a União Soviética dos seus
laços com a Europa de Leste», o reconhecimento velado de que os Russos
podiam manter o que tinham, incluindo a zona oriental da Alemanha e os
antigos territórios da Alemanha agora na posse da Polónia, da Checoslováquia
e da União Soviética(9).
Pouco depois de Kennedy ter regressado a Washington, as autoridades da
Alemanha de Leste começaram a impor restrições aos que queriam emigrar.
Numa resposta imediata, o presidente dos Estados Unidos reafirmou
publicamente o compromisso do Ocidente para com Berlim Ocidental,
admitindo assim implicitamente que a metade oriental da cidade pertencia à
esfera de influência da União Soviética. O êxodo através de Berlim aumentou
mais do que nunca: 30 415 pessoas partiram para o Ocidente em Julho, no fim
da primeira semana de Agosto de 1961 mais 21 828 tinham seguido os seus
passos, metade dos quais tinha menos de 25 anos de idade. A este ritmo a
República Democrática Alemã em breve estaria sem ninguém.
A resposta de Kruschev foi cortar o nó górdio de Berlim. Depois de os
ministros dos Negócios Estrangeiros aliados, numa reunião em Paris, a 6 de
Agosto, terem rejeitado mais uma nota que ameaçava com um tratado de paz
separado com a RDA, se não fosse alcançado um acordo, Moscovo autorizou
os Alemães de Leste a traçar literalmente uma linha que separasse os dois
lados de uma vez para sempre. Em 19 de Agosto de 1961, as autoridades de
Berlim Leste puseram soldados e trabalhadores a construir uma divisória
através da cidade. Em três dias foi erguido um muro grosseiro, suficiente para
impedir movimentos ocasionais entre as duas metades de Berlim. Nas
semanas seguintes, foi elevado e fortificado. Foram acrescentados projectores,
arame farpado e postos de guarda. As portas e as janelas dos edifícios que
confinavam com o muro foram inicialmente bloqueadas e depois muradas. As
ruas e as praças foram cortadas ao meio e todas as vias de comunicação que
atravessavam a cidade dividida foram sujeitas a um policiamento apertado ou
completamente suprimidas. Berlim tinha o seu Muro.
Oficialmente, o Ocidente ficou horrorizado. Durante três dias, em Outubro
de 1961, os tanques soviéticos e os tanques americanos estavam frente a
frente nos pontos de passagem que separavam as respectivas zonas – umas
das poucas ligações que restavam entre eles –, enquanto as autoridades da
Alemanha de Leste testavam a vontade das potências ocidentais para
afirmarem e defenderem a manutenção do seu direito de acesso à zona
oriental, como estipulava o acordo original entre as quatro potências. Perante
a intransigência do comandante local americano, que recusou reconhecer
qualquer direito leste-alemão de impedir os movimentos aliados, os
Soviéticos admitiram com relutância que tinha razão. Durante os 30 anos
seguintes as quatro potências ocupantes permaneceram no local, embora
ambos os lados tivessem concedido a administração efectiva das suas
respectivas zonas de controlo às autoridades alemãs locais.
Nos bastidores, muitos líderes ocidentais ficaram secretamente aliviados
com o surgimento do muro. Durante três anos Berlim ameaçara ser o rastilho
de um confronto internacional, tal como sucedera em 1948. Kennedy e outros
líderes ocidentais concordaram em privado que um muro a dividir Berlim era
um resultado muito melhor do que uma guerra. Independentemente do que se
dissesse em público, poucos políticos ocidentais podiam seriamente imaginar
pedir aos seus soldados para «morrerem por Berlim». Como Dean Rusk (o
secretário de Estado de Kennedy) disse com serenidade, o muro tinha a sua
utilidade: «em termos realistas, é provável que torne mais fácil um acordo
sobre Berlim».
O resultado da crise de Berlim mostrou que as duas grandes potências
tinham mais em comum do que era por vezes reconhecido. Se Moscovo
decidiu não levantar mais a questão do estatuto dos Aliados em Berlim,
Washington aceitaria a realidade do governo da Alemanha de Leste e iria
resistir à pressão da Alemanha Ocidental para possuir armamento nuclear.
Ambos os lados estavam interessados na estabilidade da Europa Central, mas,
mais importante, tanto os Estados Unidos como a URSS estavam cansados de
responder às exigências e às queixas dos seus clientes alemães respectivos. A
primeira década da Guerra Fria deu aos líderes alemães dos dois lados do
muro uma influência sem precedentes sobre os seus patronos de Washington e
Moscovo. Receosos de perderem a credibilidade junto dos «seus» Alemães,
as grandes potências permitiram que Adenauer e Ulbricht os chantageassem
de forma a «manterem-se firmes».
Moscovo, que, como já vimos, nunca pretendera criar um Estado cliente
na zona oriental da Alemanha que ocupava, mas que se decidira por essa
alternativa, dedicou esforços desmesurados para apoiar um regime comunista,
fraco e detestado em Berlim. Os comunistas leste-alemães, por seu lado,
estavam sempre meio receosos de que os seus patronos soviéticos os
traíssem(10). Por isso, o muro deu-lhes alguma segurança, embora se
sentissem desapontados com a recusa de Kruschev, depois da barreira ter sido
erguida, em manter a pressão para que fosse assinado um tratado de paz.
Quanto a Bona, o receio permanente era que os «Amis» (Americanos)
simplesmente se levantassem e fossem embora. Washington nunca se poupou
a esforços para garantir a Bona que tinha o apoio firme da América, mas
depois da construção do muro, a que os Americanos claramente aquiesceram,
a ansiedade dos Alemães Ocidentais apenas podia aumentar. Daí as promessas
reiteradas por parte de Washington, depois de erguido o muro, de que os
Estados Unidos nunca deixariam a sua zona, as quais constituíram a base da
famosa declaração de Kennedy «Ich bin ein Berliner» (sic) [Eu sou um
Berlinense»], em Junho de 1963. Com 250 000 efectivos militares na Europa
em 1963, era claro que os Americanos, tal como os Russos, estavam ali para
ficar.
O muro pôs fim à carreira de Berlim como zona de crise das questões
europeias e mundiais. Embora se tivesse demorado dez anos a chegar a um
acordo em matéria de acesso, depois de Novembro de 1961 Berlim deixou de
ser importante e Berlim Ocidental começou o seu caminho para a irrelevância
política. Até os Russos perderam o seu interesse pela cidade. Curiosamente,
este aspecto não foi imediatamente evidente no Ocidente. Quando estalou a
crise de Cuba, no ano seguinte, Kennedy e os seus conselheiros estavam
convencidos de que Kruschev estava empenhado numa manobra complexa e
maquiavélica para conseguir atingir os seus objectivos a longo prazo na
Alemanha. As lições de 1948-1950 foram demasiado bem aprendidas.
Tal como Truman e Acheson interpretaram a incursão coreana como um
possível prelúdio a uma penetração soviética através da fronteira que dividia a
Alemanha, também Kennedy e os seus colegas interpretaram a instalação dos
mísseis em Cuba como uma chantagem dos Soviéticos sobre uma América
vulnerável para lhes ceder em Berlim. Nos primeiros dez dias da crise cubana,
dificilmente passava uma hora sem que os líderes americanos voltassem à
questão de Berlim Ocidental e a necessidade de «neutralizar» a prevista
contra-acção de Kruschev na cidade dividida. Como explicou Kennedy ao
primeiro-ministro britânico Harold Macmillan, em 22 de Outubro de 1962:
«Não preciso de lhe chamar a atenção para a possível relação desta acção
secreta e perigosa de Kruschev com a cidade de Berlim.»
O problema era que Kennedy tomara demasiado a sério quer a
fanfarronada quer a propaganda soviéticas recentes, e centrara em Berlim o
seu entendimento das relações EUA-URSS, o que encadeava de forma
dramática com o aparente significado da crise cubana, levando Kennedy, em
19 de Outubro, a dizer o seguinte aos seus conselheiros mais próximos: «Não
penso que tenhamos qualquer alternativa satisfatória […]. O nosso problema
não é apenas Cuba, mas também Berlim. Ora, quando reconhecemos a
importância de Berlim para a Europa e a dos nossos aliados para nós, isso faz
desta coisa o dilema actual. De outro modo, a nossa resposta seria muito
fácil.» Três dias antes, quando do início da crise cubana, o secretário de
Estado Dean Rusk resumiu assim a sua própria interpretação das acções dos
Soviéticos: «Penso também que Berlim está aqui muito implicada. Pela
primeira vez, começo verdadeiramente a perguntar-me se o Sr. Kruschev está
a ser totalmente racional em relação a Berlim.»
Mas Kruschev, segundo se sabia, era totalmente racional em relação a
Berlim. A União Soviética mantivera, de facto, uma grande superioridade de
forças convencionais na Europa e poderia ter ocupado Berlim (e a maior parte
da Europa Ocidental) quando quisesse. Todavia, agora que os Estados Unidos
haviam jurado defender a liberdade de Berlim Ocidental por todos os meios
(o que, na prática, significava armas nucleares), Kruschev não tinha intenções
de se arriscar a uma guerra nuclear por causa da Alemanha. Como disse mais
tarde nas suas memórias o embaixador soviético em Washington: «Kennedy
sobrestimou a capacidade de Kruschev e dos seus aliados de empreender
acções decisivas em Berlim, a mais agressiva das quais foi de facto a
construção do muro.»(11)
Com Berlim e Cuba como pano de fundo, as superpotências passaram a
pôr para trás das costas, com grande satisfação, as incertezas da primeira
Guerra Fria. A 20 de Junho de 1963, foi criada uma «linha directa» entre
Washington e Moscovo. Um mês depois, conversações em Moscovo entre os
Estados Unidos, a União Soviética e o Reino Unido culminaram num
«Tratado de Proibição Parcial de Testes Nucleares». Este tratado, que entrou
em vigor em 10 de Outubro, teve um significado considerável para a Europa,
não tanto por causa dos seus objectivos declarados mas pelo «subtexto» que o
acompanhava.
As duas grandes potências queriam manter as armas nucleares fora do
alcance da China e da Alemanha Ocidental, e este foi o objectivo real do
tratado. Apromessa de uma Alemanha desnuclearizada era o quid pro quo que
Moscovo buscava para o compromisso em relação a Berlim. Por isso, para o
conseguirem, os Americanos estavam dispostos a correr o risco de ser
impopulares em Bona. Os Alemães Ocidentais aceitaram com algum
ressentimento o veto sobre as suas armas nucleares, tal como aceitaram a
divisão de Berlim como o preço a pagar por uma presença americana
continuada. Entretanto, o tratado confirmou uma mudança nítida nas
preocupações estratégicas dos Soviéticos, que já não se situavam na Europa,
mas noutros continentes.
A estabilização da Guerra Fria na Europa, a pouca probabilidade de
alguma vez se tornar «quente» e o facto de estas matérias estarem em grande
parte fora do seu poder levaram a formar uma convicção muito cómoda entre
os europeus ocidentais de que um conflito armado convencional estava
obsoleto. A guerra, segundo parecia a muitos observadores nos anos de 1953
a 1963, era impensável, pelo menos no continente europeu (nunca deixou de
ser a hipótese preferida de resolução de conflitos nas outras partes do mundo).
Se a guerra ocorresse, os enormes arsenais nucleares das grandes potências
significavam que haveria consequências terríveis inimagináveis e podia, por
isso, ser apenas o resultado de erros de cálculo da parte de alguém. Nesse
caso, havia muito pouco que os europeus pudessem fazer para mitigar as suas
consequências.
Nem todos viam as coisas assim. Havia uma minoria a quem os mesmos
factos inspiravam movimentos que reclamavam com urgência o
desarmamento nuclear. A Campanha pelo Desarmamento Nuclear britânica
(CND – Campaign for Nuclear Disarmament) foi lançada em Londres em 17
Fevereiro de 1958. Desde o seu início, integrava-se perfeitamente na grande
tradição de divergência da política radical britânica: a maior parte dos seus
apoiantes tinha instrução, tendência de esquerda e para a não-violência, e as
suas exigências eram dirigidas, em primeira instância, ao seu próprio governo,
não aos Russos ou aos Americanos. (Os dois maiores partidos estavam
convencidos da necessidade de uma capacidade dissuasora nuclear britânica,
mesmo se se tornou claro, no final dos anos 50, que sem mísseis e submarinos
fornecidos pelos Americanos as bombas britânicas nunca atingiriam os seus
alvos.)
No seu auge, em 1962, a CND foi capaz de reunir 150 000 apoiantes na
marcha anual de protesto em direcção ao depósito de armas atómicas de
Aldermaston. Porém, tal como outros movimentos para o desarmamento na
Alemanha Ocidental e nos países do Benelux, a campanha britânica definhou
ao longo dos anos 60. Os que faziam campanha contra o nuclear perderam
importância depois do Tratado sobre a Proibição de Testes. Era cada vez mais
difícil afirmar com alguma credibilidade que a Europa enfrentava uma
aniquilação iminente, e novos tópicos afastaram o desarmamento da agenda
radical. Até na União Soviética o físico atómico dissidente Andrei Sakharov
ficou menos preocupado com o risco de um holocausto nuclear iminente,
virando-se, como disse, «dos problemas mundiais para a defesa das pessoas
individuais».
Não há dúvida de que muitos europeus ocidentais, quando pensavam no
assunto, eram a favor do desarmamento nuclear: sondagens realizadas em
1963 mostraram que sobretudo os Italianos acolheriam bem a abolição de
todas as armas nucleares. Os Franceses eram menos esmagadoramente
abolicionistas, ao passo que os Alemães e os Britânicos estavam divididos,
embora com uma clara maioria antinuclear nos dois casos. Mas em contraste
com os debates alargados sobre o desarmamento nos anos 20 e no início dos
anos 30, a questão nuclear na Europa não motivava muitas pessoas. Era
demasiado abstracta. Só os Britânicos e (nominalmente) os Franceses tinham
armas nucleares e apenas uma minoria dos políticos da Alemanha Ocidental
pretendia obtê-las.
Os Italianos, os Dinamarqueses e os Holandeses preocupavam-se
ocasionalmente por terem bases americanas no seu território, o que os
expunha ao perigo, se eclodisse uma guerra. Todavia, as armas que causavam
preocupação pertenciam às superpotências, e a maioria dos europeus, com
razão, concluía que nada podia fazer para influenciar as decisões de Moscovo
e de Washington. Na verdade, a retórica ideológica dura dos Americanos
durante a Guerra Fria permitiu a muitos europeus ocidentais dizer a si
mesmos, uma vez ultrapassada a ameaça imediata da guerra nuclear, que
estavam de facto a fazer um favor aos Estados Unidos ao permitirem que os
defendesse. Por isso, em vez de se empenharem de um lado ou do outro nos
debates sobre o desarmamento, preferiam cuidar dos seus jardins.
O aspecto mais notável da cena política europeia nos anos 50 não foram as
mudanças a que se assistiu, mas as mudanças que não se viram. Foi uma
surpresa o ressurgimento de Estados democráticos autónomos na Europa do
pós-guerra, que não tinham meios nem vontade de fazer a guerra e eram
liderados por homens mais velhos cujo credo político comum, mesmo se não
confessado, era «nada de experiências». Não obstante as expectativas
generalizadas em contrário, a temperatura política febril dos últimos 40 anos
baixou na Europa Ocidental. Com as calamidades do passado recente ainda
frescas na memória pública, a maioria dos europeus afastou-se aliviada da
política e de mobilização de massas. Administrar e proporcionar serviços
substituíram as esperanças revolucionárias e o desespero económico como
preocupações principais dos eleitores (os quais, em muitos países, incluíam
agora, pela primeira vez, as mulheres): os governos e os partidos políticos
responderam em sintonia.
Na Itália a mudança foi particularmente marcante. Ao contrário dos outros
países europeus mediterrânicos – Portugal, Espanha e Grécia –, a Itália
tornou-se uma democracia, por imperfeita que fosse, e continuou a sê-lo nas
décadas do pós-guerra. Não era um feito menor. A Itália era um país
profundamente dividido. Na verdade, a sua própria existência como país era
há muito um assunto controverso e voltaria a sê-lo nos últimos anos. Há
estudos do início dos anos 50 que sugerem que menos de um adulto italiano
em cada cinco se expressava exclusivamente em italiano: muitos italianos
continuavam a identificar-se sobretudo com a sua localidade ou a sua região e
utilizavam o seu dialecto ou linguagem na maior parte das suas relações
quotidianas. Isto passava-se sobretudo com os que não tinham instrução
secundária e que constituíam a esmagadora maioria da população nesta época.
O atraso do Sul da Itália, o Mezzogiorno, era manifesto. Norman Lewis,
um oficial do Exército britânico estacionado temporariamente em Nápoles
durante a guerra, ficou bastante surpreendido pelos ubíquos aguadeiros que
«não eram diferentes das suas representações nos frescos de Pompeia». Carlo
Levi, um médico do Piemonte, exilado por Mussolini como castigo pelas suas
actividades na Resistência, registou observações semelhantes em Cristo
Esteve em Éboli (publicado pela primeira vez em 1945), o seu clássico relato
da vida numa remota aldeia das áridas terras altas do Sul da Itália. Mas o Sul
não era só imutável – também era pobre. Um inquérito parlamentar de 1954
revelou que 85% das famílias italianas mais pobres viviam a sul de Roma.
Um trabalhador rural da Apúlia, no Sudeste da Itália, só podia esperar ganhar,
quando muito, metade do salário de um trabalhador rural da província da
Lombardia. Considerando que o rendimento italiano médio per capita, desse
ano, representa 100, o número correspondente para o Piemonte, no rico
Noroeste de Itália, era 174 e, na Calábria, no extremo sul, apenas 52.
A guerra exacerbara ainda mais a divisão histórica da Itália: ao passo que o
Norte tivera a experiência do poder germânico e da resistência política
durante dois anos, aproximadamente, com início em Setembro de 1943, a que
se seguiu a ocupação militar aliada das suas cidades radicalizadas, o Sul da
Itália fora afastado da guerra pela chegada das tropas aliadas ocidentais. No
Mezzogiorno,as estruturas sociais e administrativas herdadas dos fascistas
sobreviveram incólumes ao golpe não sangrento que substituiu Mussolini por
um dos seus generais. Aos contrastes políticos e económicos permanentes
entre o Norte e o Sul da Itália acrescentavam-se agora memórias de guerra
muito diferentes.
O fracasso das reformas agrárias do pós-guerra conduziu a Itália a adoptar
uma nova abordagem da sua dificilmente resolúvel «questão do Sul». Em
Agosto de 1950, o parlamento italiano criou a Cassa per il Mezzogiorno, um
fundo para o Sul, para canalizar a riqueza nacional para essa região
empobrecida. Não era em si mesma uma ideia nova. Os esforços de Roma
para resolver o problema da pobreza e da falta de esperança do Sul datam
pelo menos dos governos reformadores de Giovanni Giolitti, do início do
século XX, que pretendiam realizar reformas. Todavia, os esforços anteriores
pouco conseguiram realizar e a única solução efectiva para as angústias dos
habitantes do Sul era ainda a emigração, tal como sucedera desde o
nascimento da Itália moderna. No entanto, a Cassa representava uma
distribuição muito maior de recursos e tinha mais perspectivas de sucesso,
porque se enquadrava muito bem no núcleo dos mecanismos políticos da nova
República Italiana.
A função do Estado republicano não era muito diferente da do seu
antecessor fascista, do qual herdara a maior parte dos burocratas(12): o papel
de Roma era proporcionar emprego, serviços e bem-estar aos muitos cidadãos
italianos, para quem era o único refúgio. Com uma diversidade de organismos
intermédios e proprietários, alguns dos quais, como o IRI (Instituto para a
Reconstrução Industrial) e o INPS (Instituto Nacional para a Segurança
Social), fundados por Mussolini, e outros, como a ENI (Agência Nacional de
Hidrocarbonetos), criados nos anos 50, o Estado italiano possuía ou
controlava vastos sectores da economia italiana, sobretudo os da energia,
transportes, engenharia, química e produção alimentar.
Independentemente dos argumentos económicos que houvesse contra esta
estratégia (as suas raízes estão, em parte, na vontade fascista de autarcia
económica no período entre as duas guerras), as suas vantagens sociais e
políticas eram claras. No início dos anos 50, o IRI empregava 216 000
pessoas. Outras instituições, incluindo muitos sectores da burocracia nacional,
empregavam mais algumas centenas de milhares. O trabalho contratado
financiado pela Cassa para construção de estradas, habitações urbanas e
projectos de irrigação rural e os subsídios estatais para novas fábricas e
serviços comerciais constituíam outra fonte substancial de financiamento
centralizado, o mesmo acontecendo com os próprios empregos estatais: em
meados dos anos 50, aproximadamente três funcionários públicos em cada
cinco provinham do Sul, embora essa região representasse pouco mais de um
terço da população do país.
As oportunidades que estas disposições proporcionavam para corrupção e
crimes eram consideráveis. Também neste aspecto a República se integrava
bem numa tradição que remontava aos primeiros anos do Estado unificado.
Quem quer que controlasse o Estado italiano estava particularmente bem
colocado para dispensar favores, directa ou indirectamente. Por isso, a política
na Itália do pós-guerra, independentemente do seu cunho de fervor religioso
ou político, era em primeiro lugar uma luta para ocupar o Estado, aceder aos
seus instrumentos de privilégio e de patrocínio. Quando chegou a altura de
assegurar e pôr a funcionar estes instrumentos, os democratas-cristãos
dirigidos por Alcide De Gasperi e os seus sucessores demonstraram uma
habilidade e uma capacidade de realização ímpares.
Em 1953, e novamente em 1958, os democratas-cristãos obtiveram mais
de 40% dos votos (a sua percentagem só desceu abaixo dos 38% nos anos 70).
Coligados com pequenos partidos do centro, governaram o país sem
interrupção até 1963, quando mudaram para uma coligação com os partidos
minoritários da esquerda não comunista. O seu apoio mais forte, para além
dos votantes católicos tradicionais de Veneza e Veneto, vinha do Sul: de
Basilicata, Molise, Calábria e das ilhas da Sardenha e da Sicília. Aqui não era
a fé, mas os serviços que atraíam os votantes das pequenas vilas para os
democratas-cristãos, e os mantinham leais durante gerações. Um presidente
de câmara democrata-cristão de uma vila do Sul ou um representante no
parlamento nacional era eleito e reeleito à custa de promessas de
electricidade, água canalizada nas habitações, hipotecas rurais, estradas,
escolas, fábricas e empregos. Graças ao monopólio do poder que o partido
tinha, podia cumprir.
A democracia-cristã em Itália parecia-se, em muitos aspectos, com os
partidos similares da Alemanha Ocidental, da Holanda e da Bélgica. Carecia
de bagagem ideológica. É claro que De Gasperi e os seus sucessores tiveram
o cuidado de se encontrar regularmente com as autoridades do Vaticano e
nunca propor ou apoiar legislação que este desaprovasse. A Itália do pós-
guerra representava, em alguns aspectos, o momento da vingança contra o
agressivo secularismo anticlerical do Estado italiano após 1861. Todavia, o
papel activo da Igreja Católica na política italiana era menor do que os seus
defensores e os seus críticos gostavam de afirmar. O principal instrumento de
controlo social eram os poderosos ministérios centrais. É significativo que De
Gasperi – tal como os partidos comunistas da Europa de Leste nos primeiros
anos do pós-guerra – tenha tido o cuidado de manter o Ministério do Interior
sob a direcção firme dos democratas-cristãos.
Com o tempo, o sistema clientelista de patrocínios e favores instituído
pelos democratas-cristãos passou a ser uma característica de toda a política
italiana. Os outros partidos eram obrigados a proceder da mesma maneira: em
cidades e distritos controlados pelo PCI, nomeadamente na Bolonha
«vermelha» e na região envolvente de Emília, os comunistas apoiavam os
seus amigos e favoreciam os seus clientes, os trabalhadores urbanos e os
pequenos proprietários rurais do vale do Pó. Se havia uma diferença, ela
residia na ênfase posta pelos comunistas na decência e na honestidade da sua
administração municipal, em contraste com a corrupção amplamente
reconhecida e dos rumores de ligações à Máfia dos municípios democratas-
cristãos do Sul. Nos anos 50, a corrupção em larga escala era quase um
monopólio dos democratas-cristãos. Décadas mais tarde, os socialistas que
governavam as grandes cidades do Norte imitaram-nos com notável sucesso.
Em política, a corrupção acontece, em grande parte, em função das
oportunidades que surgem.
A governação ao estilo italiano não era particularmente edificante, mas
funcionava. Com o tempo, áreas inteiras de actividades públicas e cívicas
foram distribuídas de facto por famílias políticas. Indústrias inteiras foram
«colonizadas» pelos democratas-cristãos. O controlo e os empregos nos
jornais, na rádio – mais tarde na televisão – foram divididos entre democratas-
cristãos, socialistas e comunistas; por vezes eram feitas algumas concessões
ao eleitorado algo diminuto dos liberais anticlericais da velha guarda.
Empregos e favores eram criados e facultados em proporção da influência
política local, regional e nacional. Todos os organismos sociais, desde os
sindicatos até aos clubes desportivos, estavam divididos em variantes
democratas-cristãs, socialistas, comunistas, republicanas e liberais. Do ponto
de vista da economia, o sistema provocava grandes desperdícios e era inimigo
da iniciativa privada e da eficiência fiscal. O «milagre económico» italiano
(como veremos) aconteceu não por causa dele, mas apesar dele.
No entanto, a estabilidade da Itália no pós-guerra foi a condição
fundamental que permitiu os resultados económicos do país e a sua
subsequente transformação social. Por outro lado, essa estabilidade baseava-
se, por paradoxal que tal possa parecer, nos arranjos bastante peculiares que
acabámos de descrever. O país não dispunha de uma maioria estável a favor
de um partido ou de um programa, e o complicado sistema eleitoral de
representação proporcional deu origem a parlamentos demasiado divididos
para que se obtivessem acordos em matérias legislativas substantivas ou
controversas. A constituição republicana do pós-guerra não teve Tribunal
Constitucional que julgasse as suas leis antes de 1956, e a necessidade muito
discutida de autonomia regional só foi votada no Parlamento 14 anos depois.
Em conformidade, e tal como acontecia na França da IV República e pelas
mesmas razões, na prática a Itália era dirigida por administradores que não
eram eleitos e que trabalhavam no governo central e nas muitas agências
para-estatais. Este resultado manifestamente não democrático levou os
historiadores a tratar com algum desdém o sistema político italiano. As
oportunidades para procedimentos ilícitos, subornos, corrupção,
favorecimentos políticos – e roubo puro e simples – eram muitas e
beneficiaram o monopólio virtual do partido dos democratas-cristãos(13). No
entanto, ao abrigo destes arranjos, o Estado e a sociedade italianos revelaram
ser notavelmente resistentes perante os desafios que herdaram e os que se
seguiram. Quando avaliada pelos padrões do Canadá ou da Dinamarca, pode
parecer que a Itália dos anos 50 carecia de honestidade pública e de
transparência institucional, mas pelos padrões do passado da Itália, dominado
pelos conflitos, ou pelos que prevaleciam em outros Estados da Europa
mediterrânica e com os quais o país era tradicionalmente comparado, dera um
notável salto em frente.
Em aspectos importantes, a condição da Itália depois da guerra era
comparável à da Áustria. Ambos os países combateram ao lado da Alemanha
e sofreram por isso depois da guerra (a Itália pagou um total de 360 milhões
de dólares de indemnizações à União Soviética, à Grécia, à Jugoslávia, à
Albânia e à Etiópia). Tal como a Itália, a Áustria era um país pobre e instável,
cujo renascimento no pós-guerra dificilmente se poderia prever, tendo em
conta o seu passado recente. Os dois agrupamentos políticos dominantes do
país passaram o período entre as duas guerras em duros conflitos. Muitos
sociais-democratas austríacos pensavam que a emergência de um Estado
truncado das ruínas do império Habsburgo era um absurdo económico e
político. Na sua perspectiva, a componente de língua alemã que restava da
antiga monarquia dual deveria logicamente unir-se aos seus amigos alemães
num Anschluss (união) e deveria tê-lo feito se as cláusulas de
autodeterminação dos acordos de Versalhes tivessem sido coerentemente
aplicadas.
A esquerda austríaca recebeu sempre o seu maior apoio da classe operária
de Viena e dos centros urbanos do Leste da Áustria. Na primeira república
austríaca, nos anos que mediaram as duas guerras, grande parte do resto do
país – rural, alpino e profundamente católico – votou nos sociais-cristãos, um
partido provinciano e conservador, algo desconfiado da mudança e dos
estrangeiros. Em contraste com os sociais-democratas, os sociais-cristãos não
alimentavam qualquer anseio pangermânico de ser absorvidos numa
Alemanha urbana e maioritariamente protestante. Mas também não tinham
nenhuma simpatia pelas políticas sociais-democratas do movimento vienense
dos trabalhadores e, em 1934, um golpe orquestrado pela direita destruiu o
bastião dos sociais-democratas na «Viena vermelha» e com ele a democracia
austríaca. Desde 1934 até à invasão nazi, a Áustria foi dirigida por um regime
clericalista e autoritário, em que o partido católico exercia o monopólio do
poder.
O legado da primeira e infeliz experiência da Áustria com a democracia
pesou fortemente na República do pós-guerra. Os sociais-cristãos, que
renasceram como Partido Popular Austríaco, alardearam com orgulho a sua
oposição de 1938 à conquista alemã, mas ficaram evidentemente silenciosos
sobre a sua singular contribuição para a destruição da democracia austríaca
apenas quatro anos antes. Os socialistas, como eram conhecidos agora os
sociais-democratas, podiam afirmar razoavelmente ter sido duplamente
vítimas: primeiro, na guerra civil de 1934 e, depois, às mãos dos nazis. O que
isto esquecia, contudo, era o seu antigo entusiasmo pelo Anschluss. O dr. Karl
Renner, o líder socialista e primeiro presidente da república independente
criada pelo Tratado do Estado Austríaco de 1955, mantivera a sua atitude de
princípio a favor de uma união da Áustria com a Alemanha até 1938.
Os dois partidos tinham, assim, interesse em deixar o passado para trás. Já
vimos o resultado das primeiras tentativas de desnazificação na Áustria do
pós-guerra. Os socialistas eram o partido maioritário em Viena (que tinha um
quarto da população do país), ao passo que o Partido Popular tinha garantida a
fidelidade dos votantes rurais e das pequenas vilas dos vales alpinos. Em
termos políticos, o país estava dividido quase exactamente ao meio: nas
eleições de 1949, o Partido Popular suplantara os socialistas por apenas 123
000 votos; em 1953, os socialistas ganharam por 37 000; em 1956, o Partido
Popular voltou a ganhar por 126 000; em 1959, o resultado favoreceu os
socialistas por 25 000; e em 1962, houve nova reviravolta, com o Partido
Popular a ganhar por uns meros 64 000 votos num total de 4,25 milhões.
Estas margens tão singularmente pequenas fazem recordar as eleições
igualmente renhidas da República que existiu entre as duas guerras. A Áustria
católica e a socialista deparavam com a perspectiva renovada de a política
partidária degenerar numa guerra civil cultural. Mesmo com a ajuda de um
terceiro partido, os liberais, que dependiam embaraçosamente do voto dos ex-
nazis, e cuja votação, aliás, caía em cada nova eleição, nenhum dos partidos
austríacos podia esperar formar um governo estável e toda a legislação
controversa corria o risco de reavivar recordações amargas. O prognóstico da
democracia austríaca não era animador.
No entanto, a Áustria não só conseguiu evitar um regresso ao seu passado,
mas também reapresentar-se em pouco tempo como um modelo de
democracia alpina: neutral, próspera e estável. Isto ficou a dever-se, em parte,
à proximidade desconfortável do Exército Vermelho, que ocupou a Baixa
Áustria até 1955 e depois se retirou apenas alguns quilómetros para leste, um
sinal de que entre os vizinhos da Áustria se incluíam agora três Estados
comunistas (a Jugoslávia, a Hungria e a Checoslováquia) e que a localização
vulnerável do país tornava prudente procurar políticas conciliatórias, e não
contenciosas, interna e externamente. Para além disso, a Guerra Fria atribuiu
à Áustria uma identidade por associação – ocidental, livre e democrática –
que poderia ter sido difícil gerar a partir de dentro.
Todavia, a fonte principal da institucionalização política bem sucedida da
Áustria no pós-guerra foi a necessidade amplamente reconhecida de evitar
confrontações ideológicas do género das que dividiram o país antes da guerra.
Uma vez que a Áustria tinha de existir – após 1945, nem se punha a questão
de a anexar ao seu vizinho alemão –, as suas comunidades políticas tinham de
encontrar uma forma de coexistir. A solução que os líderes do país
encontraram foi a eliminação da própria possibilidade de confrontação,
dirigindo o país num permanente tandem. Em política, os dois maiores
partidos concordaram em colaborar no governo: de 1947 a 1966, a Áustria foi
governada por uma «Grande Coligação» dos socialistas com o Partido
Popular. Os ministérios eram cuidadosamente divididos entre si, com o
Partido Popular a ficar geralmente com o cargo de primeiro-ministro, os
socialistas com o de ministro dos Negócios Estrangeiros, etc.
Na administração pública – que no pós-guerra incluía todos os serviços
públicos, a maioria dos meios de comunicação social e grande parte da
economia, dos bancos à habitação – foi decidida semelhante divisão de
responsabilidades, conhecida como Proporz. A quase todos os níveis, os
empregos eram preenchidos por acordo com candidatos propostos por um dos
dois partidos dominantes. Com o tempo, este sistema de jobs for the boys
integrou-se profundamente na vida da Áustria, formando uma cadeia de
patronos e clientes que resolvia cada problema por negociação ou então por
troca de favores ou de nomeações. As disputas laborais eram resolvidas por
arbitragem e não por confrontações, na medida em que o Estado bicéfalo
procurava eliminar as dissidências, incorporando as partes em litígio num
sistema partilhado de benefícios e recompensas. A prosperidade sem
precedentes destes anos permitiu à Grande Coligação aplanar os desacordos
ou conflitos de interesses e, de facto, comprar o consenso em que se baseava
o equilíbrio do país.
Alguns grupos da sociedade austríaca eram inevitavelmente deixados de
fora: pequenos lojistas, artesãos independentes, agricultores isolados, todos
aqueles cujo trabalho ou opiniões incómodas os colocavam fora da grelha de
benefícios e posições. Nos distritos onde um dos lados tivesse uma vantagem
esmagadora, a proporcionalidade era, por vezes, ignorada em favor do
monopólio dos lugares e dos favores dos membros desse partido. Todavia, a
pressão para evitar as confrontações triunfava habitualmente sobre os
interesses egoístas locais. Tal como a neutralidade recente da Áustria foi
adoptada com entusiasmo como rótulo identificador do país, afastando
recordações incómodas de identidades mais litigiosas do passado –
«habsburgo», «alemão», «socialista», «cristão» –, também as implicações
pós-ideológicas (na verdade, pós-políticas) da governação-por-coligação e da
administração-por Proporz acabaram por definir a vida pública austríaca.
À primeira vista, tudo isto pareceria distinguir a solução austríaca para a
instabilidade política da sua variante italiana. No fundo, a maior divisão
política em Itália separava os comunistas dos católicos, uma contraposição
que dificilmente seria sugerida pelo rótulo «pós-ideológico»(14). Mas de facto
os dois casos são bastante semelhantes. A qualidade singular de Togliatti e do
seu partido foi a importância que atribuíram, durante as décadas do pós-
guerra, à estabilidade política, isto é, à preservação e ao fortalecimento das
instituições da vida pública democrática, mesmo se à custa da própria
credibilidade dos comunistas como vanguarda revolucionária. Também a
Itália era governada por um sistema de favores e de empregos que tinha
alguma semelhança com a Proporz, embora enviesada fortemente em
benefício de um dos lados.
Se a Itália pagava o preço da estabilidade política com um nível de
corrupção pública que era afinal intolerável, o custo para os Austríacos era
menos tangível, mas igualmente pernicioso. Um diplomata ocidental
descreveu uma vez a Áustria do pós-guerra como «uma ópera cantada pelos
cantores substitutos» e a observação era pertinente. Em resultado da Primeira
Guerra Mundial, Viena perdeu a sua raison d’être como capital imperial.
Durante a ocupação nazi e a Segunda Guerra Mundial, a cidade perdeu os
seus judeus, uma proporção significativa dos seus cidadãos mais educados e
cosmopolitas(15). Depois dos Russos terem saído, em 1955, Viena carecia até
do atractivo louche da cidade dividida de Berlim. Na verdade, a medida do
notável sucesso da Áustria em superar o seu passado problemático era dada
pelo facto de que para muitos dos seus visitantes a sua característica mais
marcante era a tranquilidade enfadonha.
Contudo, por trás do apelo tranquilo de uma «república alpina» cada vez
mais próspera, a Áustria, a seu modo, também era corrupta. Tal como a Itália,
o preço da sua nova segurança foi um certo esquecimento nacional. Mas
enquanto muitos outros países europeus – com destaque para a Itália –
podiam pelo menos apelar a um mito de resistência nacional aos ocupantes
alemães, os Austríacos não podiam usar de maneira plausível a sua
experiência da guerra com uma finalidade equivalente. Por outro lado, ao
contrário dos Alemães Ocidentais, não foram obrigados a reconhecer, pelo
menos em público, os crimes que cometeram ou permitiram. Curiosamente, a
Áustria era parecida com a Alemanha de Leste, e não apenas nas qualidades
monotonamente burocráticas dos seus serviços cívicos. Ambos os países eram
expressões geográficas arbitrárias, cuja vida pública no pós-guerra tinha por
base um acordo tácito de construir uma identidade lisonjeira para consumo
geral, com a diferença de que esse exercício teve muito maior sucesso no caso
austríaco.
Um partido democrata-cristão de pensamento reformador, uma esquerda
parlamentar, um consenso alargado para não acentuar as divisões ideológicas
e culturais herdadas até ao ponto de provocar polarização e desestabilização
políticas e uma cidadania despolitizada, tais eram os traços característicos da
institucionalização posterior à Segunda Guerra Mundial na Europa Ocidental.
Com variantes, o padrão italiano ou austríaco pode ser detectado em quase
toda a parte. Até na Escandinávia houve um decréscimo contínuo da
mobilização política desde o seu ponto mais alto, alcançado nos anos 30: na
Suécia as vendas anuais de emblemas do 1.o de Maio baixaram
continuamente entre 1939 e 1962 (com uma ligeira interrupção no fim da
guerra), antes de crescerem novamente com os entusiasmos de uma nova
geração.
Nos países do Benelux, as várias comunidades que os constituem
(católicos e protestantes na Holanda, Valões e Flamengos na Bélgica) há
muito que se tinham organizado em estruturas separadas de base comunitária
– zuilen ou pilares – que integravam a maior parte das actividades humanas.
Numa Holanda maioritariamente protestante, os católicos não apenas rezavam
de forma diferente, mas frequentavam igrejas distintas das dos seus
concidadãos protestantes. Também votavam de forma diferente, liam jornais
diferentes e ouviam programas de rádio próprios (e anos mais tarde viam
canais de televisão diferentes). Em 1959, das crianças católicas holandesas,
90% frequentavam escolas primárias católicas e 95% dos agricultores
católicos holandeses pertenciam a associações de agricultores católicas. Os
católicos viajavam, nadavam, andavam de bicicleta e jogavam futebol em
organizações católicas. Faziam os seus seguros em sociedades católicas e,
claro, quando chegava a sua hora, eram também enterrados separadamente.
Distinções semelhantes, que vinham de há muito, moldavam a rotina dos
falantes de língua holandesa do Norte da Bélgica e distinguiam-nos
completamente dos que falavam francês, na Valónia, embora neste caso
ambas as comunidades fossem esmagadoramente católicas. No entanto, na
Bélgica, os pilares definiam não apenas comunidades linguísticas, mas
também políticas: havia uniões católicas e uniões socialistas, jornais católicos
e jornais socialistas, estações de rádio católicos e estações de rádio socialistas,
cada um dos quais dividido, por sua vez, entre os que serviam a comunidade
de língua holandesa e os que serviam os falantes de língua francesa. Muito
adequadamente, nos dois países, a tendência liberal colocava menos ênfase no
aspecto comunitário.
A experiência da guerra e da ocupação e a memória das divisões entre
populações das décadas anteriores encorajaram uma maior tendência para a
cooperação que ultrapassasse as divisões entre as comunidades. Os
movimentos mais extremistas, nomeadamente os nacionalistas flamengos,
foram desacreditados pela sua colaboração oportunista com os nazis, e, em
geral, a guerra serviu para diminuir a identificação das pessoas com os
partidos políticos estabelecidos, mas não com a comunidade de serviços
associada a eles. Tanto na Bélgica como na Holanda, um partido católico – o
Partido Social-Cristão, na Bélgica, e o Partido Popular Católico, na Holanda –
conseguiu afirmar-se como componente permanente do governo, desde o final
dos anos 40 até ao final dos anos 60 e mesmo depois(16).
Os partidos católicos dos países do Benelux eram moderadamente
reformistas na retórica e funcionavam de maneira muito parecida com a dos
partidos democratas-cristãos dos outros países, protegendo os interesses da
comunidade católica, colonizando os lugares executivos a todos os níveis,
desde o Estado aos municípios, e satisfazendo as necessidades da sua base de
apoio social através do Estado. Se exceptuarmos as referências à religião, o
mesmo se aplica aos partidos da oposição, o Partido Liberal, na Holanda, e o
Partido dos Trabalhadores Belga (mais tarde Partido Socialista). Estes dois
aproximavam-se mais do modelo do Norte da Europa, constituído por um
movimento laboral com base em sindicatos, do que dos partidos socialistas do
Mediterrâneo com a sua herança mais radicalizada e a sua retórica
frequentemente anticlerical. Por outro lado, manifestavam apenas um
incómodo menor por concorrerem pelo poder (e partilharem os seus despojos)
com os católicos.
No pós-guerra, foi esta mistura característica de comunidades culturais
autónomas e de partidos reformistas da esquerda e da direita que estabeleceu
o equilíbrio nos Países Baixos. Nem sempre foi assim. A Bélgica, sobretudo,
assistira a violência política grave nos anos 30, quando os separatistas
flamengos e os Rexistes fascistas de Léon Degrelle ameaçaram o regime
parlamentar, e, mais tarde, a partir dos anos 60, teve de suportar um novo e
ainda mais dilacerante recrudescer do conflito entre as comunidades. Porém,
as antigas elites políticas e administrativas (e a hierarquia católica local), cujo
poder fora ameaçado por pouco tempo em 1945, retomaram o seu poder,
concedendo considerável espaço de manobra ao bem-estar e a outras
reformas. Deste modo, os pilares sobreviveram até aos anos 60 como ecos
anacrónicos de uma época pré-política, e duraram exactamente o tempo
necessário para servir de estabilizadores culturais e institucionais durante um
período agitado de transformações económicas.
O exemplo mais claro de estabilização política na Europa do pós-guerra e
certamente o mais importante foi também, quando considerado
retrospectivamente, o menos surpreendente. Quando integrou a NATO, em
1955, a República Federal da Alemanha já estava a caminho do
Wirtschaftswunder (milagre económico) por que gosta de ser conhecida. Mas
a república de Bona foi ainda mais notável devido ao seu êxito em desmentir
os muitos observadores dos dois campos que previram o pior. Sob a direcção
de Konrad Adenauer, a Alemanha Ocidental navegou em segurança entre a
Cila do neonazismo e a Caríbdis do neutralismo filo-soviético, e ancorou com
segurança na aliança ocidental, apesar das falsidades dos críticos internos e
externos.
As instituições da Alemanha do pós-guerra foram deliberadamente
concebidas para minimizar os riscos de um regresso a Weimar. O governo foi
descentralizado: a responsabilidade primária pela administração e a gestão
dos serviços foi atribuída aos Länder, as unidades regionais em que o país foi
dividido. Alguns deles, como a Baviera e o Schleswig-Holstein,
correspondiam a antigos Estados germânicos independentes que foram
absorvidos no império germânico, no século XIX. Outros, como a Renânia-
Vestefália, no Noroeste, eram conveniências administrativas, que associavam
ou dividiam unidades territoriais mais antigas.
Berlim Ocidental tornou-se um Land em 1955, tendo ficado devidamente
representado no Bundesrat, a Câmara Alta, onde os delegados das regiões
tinham assento (embora os seus deputados na Câmara Baixa, o Bundestag,
eleito directamente, não pudessem votar nas sessões plenárias). Por um lado,
os poderes do governo central eram consideravelmente restritos quando
comparados com os dos seus antecessores. Os Aliados ocidentais acusaram a
tradição prussiana de governos autoritários pela ascensão de Hitler ao poder e
agiram de forma a evitar que se pudesse repetir. Por outro lado, o Bundestag
não podia destituir facilmente um chanceler e o seu governo após terem sido
eleitos. Para o fazer, era obrigado a ter preparado previamente um candidato à
sucessão com votos parlamentares suficientes para assegurar a sua aprovação.
A finalidade desta restrição era evitar a instabilidade permanente e a série de
governos fracos que caracterizaram os últimos anos da república de Weimar,
mas também contribuiu para a longevidade e a autoridade de chanceleres
fortes como Konrad Adenauer e, depois dele, Helmut Schmidt e Helmut
Kohl.
A preocupação em evitar ou conter os conflitos inspirou toda a cultura
política da república da Bona. A legislação sobre o «mercado social»
procurava reduzir o risco de conflitos laborais ou a politização das
divergências económicas. Ao abrigo de uma lei de co-determinação, de 1951,
as grandes firmas das indústrias pesadas do carvão, do aço e do ferro eram
obrigadas a incluir representantes dos trabalhadores nos seus conselhos de
supervisão, prática que foi mais tarde alargada a outros sectores e a empresas
mais pequenas. Nos anos 50, o governo federal e os Länder participavam em
muitos sectores económicos, e o Estado, dirigido pelos democratas-cristãos,
apesar de objectar, em princípio, aos monopólios estatais, possuía ou
controlava 40% da produção de carvão e de ferro, dois terços das centrais
eléctricas, três quartos das fábricas de alumínio e, o que era fundamental, a
maioria dos bancos alemães.
Por outras palavras, a descentralização do poder não significou que o
governo deixasse de intervir. Ao manter uma presença económica activa, quer
directa quer indirectamente (através de holdings), os governos regionais e
nacionais da Alemanha Ocidental podiam encorajar políticas e práticas
conducentes à paz social, bem como ao lucro privado. Os bancos, actuando
como intermediários entre o governo e as empresas em cujos conselhos
directivos os banqueiros também em geral tinham assento, desempenhavam
um papel fundamental. Regressaram práticas económicas germânicas mais
antigas, nomeadamente a fixação de preços e partilha consensual dos
mercados. Ao nível local, sobretudo, houve muito poucas exclusões de
burocratas, empresários ou banqueiros da era nazi e, no final dos anos 50,
grande parte da economia da Alemanha Ocidental era dirigida de uma forma
que seria familiar aos gigantescos trusts e cartéis das décadas anteriores.
Este corporativismo de facto não era, talvez, o que os seus supervisores
americanos haviam pensado para a nova república alemã. Acreditava-se, em
geral, que os trusts e o seu poder haviam contribuído para a ascensão de
Hitler e que, em todo o caso, eram adversários do mercado livre. Se o
economista Ludwig Erhard – o ministro das Finanças de sempre de Adenauer
– levasse a sua avante, a economia da Alemanha Ocidental, e com ela as
relações sociais do país, poderia ter sido muito diferente. Porém, os mercados
regulados e as relações próximas entre o governo e o mundo empresarial
integravam-se bem no esquema democrata-cristão, quer em função de
princípios sociais de carácter geral, quer em termos de análise pragmática. Os
sindicatos e os grupos empresariais cooperavam na maior parte dos casos e o
bolo económico cresceu nestes anos a um ritmo suficientemente rápido para
permitir satisfazer, sem conflitos, grande parte das exigências que foram
apresentadas.
A União Democrata-Cristã (CDU) governou sem interrupção desde as
primeiras eleições da RFA, em 1949, até 1966. Konrad Adenauer teve a seu
cargo os assuntos da república até 1963, quando se demitiu com a idade de 87
anos. Houve várias razões para que a CDU, com Adenauer como chanceler,
tivesse gozado um período tão longo e continuado no poder. Uma delas foi a
forte posição da Igreja Católica na Alemanha Ocidental: com as regiões de
Brandeburgo, da Prússia e da Saxónia, de predominância protestante, agora
nas mãos dos comunistas, os católicos representavam um pouco mais de
metade da população da Alemanha Ocidental. Na Baviera, onde os católicos
conservadores constituíam a maioria esmagadora dos votantes, a União
Social-Cristã (CSU) local tinha uma base de poder inabalável e utilizou-a para
garantir um lugar permanente como parceiro subalterno dos governos de
Adenauer.
O próprio Adenauer tinha idade suficiente para se recordar dos primeiros
anos do império de Guilherme I, quando a Igreja Católica foi o alvo da
Kuturkampf de Bismarck. Teve cuidado para não tirar demasiado partido do
novo equilíbrio de forças e arriscar assim despertar novos conflitos nas
relações entre a Igreja e o Estado, sobretudo depois do comportamento
nitidamente não heróico das igrejas alemãs durante o período nazi. Por isso,
procurou desde o princípio fazer do seu partido um veículo eleitoral cristão –
ou seja, não exclusivamente católico – a nível nacional, dando ênfase ao apelo
social ecuménico da democracia-cristã. Neste aspecto, teve um grande
sucesso: a coligação CDU/CSU venceu por escassa margem os sociais-
democratas nas primeiras eleições de 1949, mas em 1957 a sua votação
praticamente duplicou e a percentagem obtida pelos vencedores no escrutínio
excedeu os 50%.
Uma razão relacionada com o êxito da coligação CDU/CSU (daqui em
diante, os dois partidos assegurariam sempre 44% ou mais da votação
nacional) foi que, tal como os democratas-cristãos em Itália, atraíam um
amplo eleitorado. Os sociais-cristãos da Baviera, tal como os seus homólogos
dos Países Baixos, tinham um votação limitada, atraindo votos de uma
comunidade conservadora, frequentadora da igreja e apenas de uma região.
Mas a CDU de Adenauer, embora tradicionalmente conservadora em matéria
cultural – em muitas vilas mais pequenas e nas comunidades rurais os
activistas locais da CDU aliavam-se com a Igreja Católica e outros grupos
cristãos para controlar e censurar as programações de cinema, por exemplo –,
era bastante ecuménica em outras matérias, sobretudo na política social.
Desta forma, os democratas-cristãos da Alemanha criaram uma base
abrangente e transregional na política alemã. Podiam contar com os votos do
campo e das cidades, dos empregadores e dos trabalhadores. Enquanto os
democratas-cristãos italianos colonizaram o Estado, na Alemanha a CDU
colonizou os assuntos. Em matéria de política económica, de serviços sociais,
de bem-estar e, sobretudo, nas questões ainda sensíveis da separação Leste-
Oeste e do destino do grande número de Alemães expulsos, a CDU, sob a
liderança de Adenauer, estava firmemente implantada como partido
englobante que pertencia ao centro do espectro político – o que representava
um novo começo na cultura política da Alemanha.
A principal vítima do êxito da CDU foi o Partido Social-Democrata, o
SPD. Aparentemente, o SPD deveria ter tido melhores resultados, mesmo
contando com a perda dos votantes socialistas tradicionais do Norte e do
Leste da Alemanha. O historial antinazi de Adenauer tinha algumas manchas:
até 1932, acreditava que Hitler poderia ser levado a agir responsavelmente, e
teve talvez a sorte de ser objecto de suspeita dos nazis, tanto em 1933 (quando
foi expulso do seu lugar como presidente da câmara de Colónia), como
novamente nos últimos meses da guerra quando foi preso por um breve
período como opositor ao regime. Sem estes episódios a seu crédito, não se
sabe se os Aliados ocidentais o apoiariam na sua ascensão a uma posição de
proeminência.
O líder socialista Kurt Schumacher, por outro lado, fora desde o princípio
resolutamente antinazi. No Reichstag, em 23 de Fevereiro de 1932,
denunciou, de uma forma que ficaria célebre, o nacional-socialismo por ser
«um apelo continuado ao que há de mais grosseiro e bestial nos seres
humanos», algo que era único na história alemã em conseguir «mobilizar
continuamente a estupidez humana». Preso em Julho de 1933, passou a maior
parte dos doze anos seguintes em campos de concentração, os quais afectaram
permanentemente a sua saúde e lhe encurtaram a vida. Magro e encurvado,
Kurt Schumacher, com o seu heroísmo pessoal e a sua firme insistência,
depois da guerra, na obrigação de a Alemanha reconhecer os seus crimes, foi
não só o líder natural dos socialistas, mas também o único político nacional,
no pós-guerra, que poderia ter dado aos seus concidadãos uma clara
orientação moral.
No entanto, curiosamente, Schumacher, apesar de todas as suas muitas
qualidades, não entendeu logo o regime internacional da Europa. Tendo
nascido em Kreisstadt, na Prússia, tinha relutância em abandonar a ideia de
uma Alemanha unida e neutral. Não gostava nem confiava nos comunistas e
não alimentava ilusões acerca deles; mas parece ter acreditado genuinamente
que uma Alemanha desmilitarizada seria deixada em paz para determinar o
seu destino e que tais circunstâncias seriam propícias aos socialistas. Foi por
isso um opositor feroz da orientação ocidental de Adenauer e da sua aparente
vontade de tolerar indefinidamente a divisão da Alemanha. Para os
socialistas, a restauração de uma Alemanha soberana, una e politicamente
neutra, deveria ter prioridade sobre todos os enleios internacionais.
Schumacher ficou particularmente irritado com o entusiasmo de Adenauer
pelo projecto de integração da Europa Ocidental. Na perspectiva de
Schumacher, o plano Schuman de 1950 tinha por objectivo criar uma Europa
que seria «conservadora, capitalista, clerical e dominada pelos cartéis». Se
estava ou não completamente enganado não é o que aqui nos interessa. O
problema era que os sociais-democratas de Schumacher não tinham nada de
prático a oferecer em alternativa. Ao combinarem o seu programa socialista
tradicional de nacionalizações e de garantias sociais com a exigência de
unificação e neutralidade, obtiveram um resultado digno nas primeiras
eleições da RFA, em 1949, recebendo 29,2% dos votos e o apoio de 6 935
000 votantes (menos 424 000 do que a CDU/CSU). Todavia, em meados dos
anos 50, com a Alemanha Ocidental firmemente integrada na aliança
ocidental, com o incipiente projecto de união europeia e com as catastróficas
profecias económicas dos socialistas a revelarem-se falsas, o SPD ficou
bloqueado. Nas eleições de 1953 e de 1957, a votação socialista cresceu
apenas ligeiramente e a sua percentagem estagnou.
Só em 1959, sete anos após a morte prematura de Schumacher, uma nova
geração de socialistas alemães abandonou formalmente o compromisso do
partido com o marxismo, que durava há 70 anos, e fez da necessidade uma
virtude, aceitando a realidade da Alemanha Ocidental. A função do marxismo
no socialismo alemão posterior à Segunda Guerra Mundial sempre foi apenas
retórica – o SPD deixou de ter ambições genuinamente revolucionárias o mais
tardar em 1914, se é que de facto alguma vez as teve. Todavia, a decisão de
renunciar às fórmulas envelhecidas do maximalismo socialista, também
permitiu aos socialistas da Alemanha adaptarem a substância do seu
pensamento. Embora muitos não tivessem gostado do papel da Alemanha na
nova Comunidade Económica Europeia, acomodaram-se à participação da
Alemanha na aliança ocidental e à necessidade de se transformarem num
Volkspartei interclassista, – em vez de contarem apenas com o seu núcleo
constituído pela classe operária – para poderem alguma vez disputar
realmente o monopólio do poder de Adenauer.
A seu tempo, os reformadores do SPD tiveram êxito: a melhoria dos
resultados do partido nas eleições de 1961 e de 1965 conduziu a uma
«grande» coligação governamental em 1966, com os sociais-democratas,
agora liderados por Willy Brandt, a participarem no governo pela primeira
vez desde a época de Weimar. Todavia, acabariam, ironicamente, por pagar o
preço desta melhoria das suas perspectivas. Ao manterem a sua oposição de
princípio à maioria das políticas de Adenauer, os sociais-democratas alemães
deram inadvertidamente a sua contribuição para a estabilidade política da
república da Alemanha Ocidental. O Partido Comunista nunca obtivera bons
resultados na RFA (em 1947, teve apenas 5,7% dos votos, em 1953, 2,2% e
em 1956 foi banido pelo Tribunal Constitucional). O SPD ficou assim com o
monopólio da esquerda política e absorveu todos os recentes e jovens radicais
dissidentes existentes na altura. Porém, depois de se terem associado aos
democratas-cristãos no governo e adoptado um programa moderado e
reformista, o SPD perdeu o apoio da extrema-esquerda. Abria-se agora um
espaço fora do parlamento para uma geração nova e destabilizadora de
políticos radicais.
Os líderes políticos da Alemanha Ocidental não precisavam de se
preocupar com a ascensão de um partido sucessor directo dos nazis, uma vez
que tal partido estava explicitamente banido pela lei fundamental da
República. Havia, porém, muitos milhões de antigos votantes nazis, a maioria
dos quais estava dividida pelos diversos partidos dominantes. Por outro lado,
havia agora um novo eleitorado: os Vertriebene, ou seja, os Alemães que
foram expulsos da Prússia Oriental, da Polónia, da Checoslováquia e de
outros países. De aproximadamente 13 milhões de Alemães expulsos, quase
nove milhões instalaram-se inicialmente nas zonas ocidentais. Em meados
dos anos 60, com o fluxo contínuo de refugiados que atravessou Berlim em
direcção ao Ocidente, chegaram à Alemanha Ocidental mais 1,5 milhões de
Alemães expulsos das terras do Leste.
Constituídos sobretudo por pequenos agricultores, comerciantes e
empresários, os Vertriebene eram demasiado numerosos para serem
ignorados. Sendo «de etnia alemã» (Volksdeutsche), os seus direitos como
cidadãos e refugiados foram contemplados pela lei fundamental de 1949. Nos
primeiros anos da República, era mais provável que não tivessem alojamento
ou emprego adequados do que os outros Alemães e tinham uma grande
motivação para votar, sendo a sua política moldada sobretudo por uma
questão: o direito de regressar às suas terras e de recuperar os seus bens, ou
então de reclamar compensações pelas suas perdas.
Para além dos Vertriebene, havia muitos milhões de veteranos de guerra –
e ainda mais depois de Kruschev ter concordado em deixar regressar os
prisioneiros de guerra, em 1955. Tal como os que foram expulsos, os
veteranos de guerra e os seus porta-vozes consideravam-se sobretudo vítimas
da guerra e do acordo do pós-guerra, e de injustiça. Qualquer sugestão de que
a Alemanha, e sobretudo as forças armadas alemãs, se havia comportado de
uma tal forma que precipitou ou justificou os seus padecimentos, era
irritadamente afastada. A auto-imagem preferida da Alemanha de Adenauer
era a de ser uma tripla vítima: primeiro, às mãos de Hitler – o enorme sucesso
de filmes como Die Letzte Brücke (A Última Ponte), de 1954, sobre uma
médica que resistiu aos nazis, e Canaris, de 1955, ajudou a popularizar a ideia
de que a maioria dos Alemães passara a guerra a resistir a Hitler –; depois às
mãos dos seus inimigos – as paisagens urbanas bombardeadas da Alemanha
do pós-guerra encorajaram a ideia de que na frente interna, para além de no
campo de batalha, os Alemães sofreram terrivelmente às mãos dos seus
inimigos –; e finalmente por causa das «distorções» maliciosas da propaganda
do pós-guerra, que – como amplamente se acreditava – exageraram de
maneira deliberada os «crimes» da Alemanha, ao mesmo tempo que
desvalorizavam as suas perdas.
Nos primeiros anos da República Federal da Alemanha, houve algumas
indicações de que estes sentimentos se poderiam traduzir numa reacção
política significativa. Já nas eleições de 1949, 48 lugares parlamentares – três
vezes os dos comunistas e quase tantos quanto os dos democratas liberais –
foram para partidos populistas da direita nacionalista. Depois de os refugiados
terem autorização para se organizarem politicamente, surgiu o «Bloco dos
Expulsos e dos Não Cidadãos»: nas eleições locais de 1950 no Schleswig-
Holstein (anteriormente um baluarte do Partido Nazi), o «Bloco» obteve 23%
dos votos. No ano seguinte, na vizinha Baixa Saxónia, um Sozialistische
Reichspartei, que apelava a um eleitorado semelhante, obteve 11%. Este
eleitorado de modo nenhum se podia considerar insignificante e foi por tê-lo
em mente que Konrad Adenauer evitou cuidadosamente as críticas ao passado
recente da Alemanha e acusou explicitamente a União Soviética e os Aliados
Ocidentais pelos problemas constantes do país, sobretudo pelos que
resultavam dos acordos de Potsdam.
Para acalmar as exigências dos refugiados e dos seus apoiantes, Adenauer
e a CDU mantiveram uma atitude dura para com o Leste. Nas relações
internacionais, Bona insistiu em que as fronteiras alemãs de 1937
continuassem legalmente em vigor até a realização de uma Conferência de
Paz final. De acordo com a doutrina Hallstein, proposta em 1955, a República
Federal da Alemanha recusou ter relações diplomáticas com qualquer país
que tivesse reconhecido a RDA (e, dessa forma, negou implicitamente a
pretensão de Bona de, ao abrigo da sua lei fundamental de 1949, representar
todos os Alemães). A única excepção foi a União Soviética. A rigidez de
Bona foi demonstrada em 1957, quando Adenauer cortou relações
diplomáticas com a Jugoslávia depois de Tito ter reconhecido a Alemanha de
Leste. Durante dez anos as relações da Alemanha com a Europa de Leste
estiveram de facto congeladas.
Nas questões internas, para além de terem dedicado recursos consideráveis
para ajudar os refugiados, fazer regressar os prisioneiros e integrar as suas
famílias na sociedade alemã ocidental, os governos dos anos 50 encorajaram
uma abordagem manifestamente acrítica do passado recente da Alemanha.
Em 1955, o ministro dos Negócios Estrangeiros protestou formalmente contra
a projecção do documentário de Alain Resnais Noite e Nevoeiro no festival de
Cannes desse ano. Com a República Federal da Alemanha prestes a entrar na
NATO como membro de pleno direito, o filme poderia prejudicar as relações
do país com os outros Estados: segundo as palavras do protesto oficial,
«perturbaria a harmonia internacional do festival por empolar a recordação do
passado penoso». Em conformidade, o governo francês protestou e o filme foi
retirado(17).
Não se tratou de uma aberração momentânea. Até 1957, o Ministério do
Interior alemão ocidental proibiu todas as projecções do filme Der Untertan
(O Homem de Palha), de 1951, realizado por Wolfgang Staudte (alemão de
Leste) e baseado no romance homónimo de Heinrich Mann, opondo-se à
sugestão de que o autoritarismo na Alemanha tinha raízes históricas
profundas. Tal parecia confirmar a ideia de que a Alemanha do pós-guerra
sofria de uma enorme amnésia colectiva, porém, a realidade era mais
complexa. Não era tanto o facto de os Alemães se esquecerem, mas de se
lembrarem selectivamente. Durante os anos 50, os membros do governo da
Alemanha Ocidental encorajaram o ponto de vista cómodo sobre o passado
alemão segundo o qual a Wehrmacht foi heróica, ao passo que os nazis eram
uma minoria e foram devidamente punidos.
Depois de uma série de amnistias, criminosos de guerra que até então
estiveram presos foram gradualmente reintegrados na vida civil. Entretanto, a
generalidade dos piores crimes de guerra alemães – cometidos quer no Leste
quer nos campos de concentração – nunca foi investigada. Embora fosse
criado um Gabinete Central nos Departamentos de Justiça dos Länder, em
Estugarda, em 1956, os procuradores de justiça locais judiciosamente
deixaram de dar andamento às investigações até 1963, quando Bona começou
a pressioná-los para o fazerem. Fizeram-no com maior eficácia a partir de
1965, depois do Governo Federal ter aumentado o prazo de 20 de anos do
anterior estatuto de prescrições para assassínio.
A própria atitude de Adenauer em relação a estas questões era complexa.
Por um lado, pensava, sem dúvida, que era preferível um silêncio prudente a
um recital da verdade, público e provocador. Os Alemães dessa geração
estavam demasiado comprometidos moralmente para que a democracia
pudesse funcionar, excepto a esse preço. Se assim não procedesse, arriscava-
se a um renascimento da extrema-direita. Ao contrário de Schumacher, que
falou publicamente e de maneira comovedora dos sofrimentos dos judeus às
mãos dos Alemães, ou do presidente Theodor Heuss, que declarou em
Bergen-Belsen, em Novembro de 1952, que «Diese Scham nimmt uns
niemand ab»(18), Adenauer pouco disse sobre o assunto. Na verdade, falou
sempre apenas das vítimas judaicas, nunca dos algozes alemães.
Por outro lado, teve de satisfazer as pressões irresistíveis para que
houvesse indemnizações. Em Setembro de 1952, Adenauer chegou a um
acordo com o primeiro-ministro israelita Moshe Sharett para pagar aos
sobreviventes um montante que seria actualmente de mais de 100 mil milhões
de marcos. Ao estabelecer este acordo, Adenauer corria alguns riscos
políticos internos: em Dezembro de 1951, apenas 5% dos Alemães Ocidentais
que sobreviveram se sentiam «culpados» em relação aos judeus. Outros 29%
admitiam que a Alemanha devia alguma compensação ao povo judeu. Os
restantes estavam divididos entre os que pensavam que apenas as pessoas
«que realmente fizeram algo» eram responsáveis e deviam pagar por isso
(cerca de 40%) e os que pensavam «que os próprios judeus eram parcialmente
responsáveis pelo que aconteceu durante o III Reich» (21%). Quando o
acordo de indemnizações foi debatido no Bundestag, em 18 de Março de
1953, os comunistas votaram contra, os democratas liberais abstiveram-se e
tanto a União Social-Cristã como a própria CDU de Adenauer ficaram
divididas, com muitos a votarem contra quaisquer Wiedergutmachung
(indemnizações). Para conseguir a aprovação do acordo, Adenauer ficou na
dependência dos votos dos seus opositores sociais-democratas.
Em mais de uma ocasião, Adenauer explorou o nervosismo internacional
generalizado sobre um possível reaparecimento do nazismo na Alemanha para
dirigir a atenção dos aliados da Alemanha Ocidental na direcção em que
pretendia que seguissem. Se os aliados ocidentais queriam a cooperação
alemã na defesa europeia, sugeriu ele, então seria preferível absterem-se de
críticas ao comportamento alemão ou de evocar passados perturbadores; se
queriam anular as repercussões internas, então deveriam alinhar firmemente
com Adenauer na rejeição dos planos da União Soviética para a Alemanha de
Leste, e assim sucessivamente. Os aliados ocidentais percebiam perfeitamente
onde Adenauer pretendia chegar, mas também eles liam as sondagens de
opinião alemãs e, por isso, concederam-lhe uma margem de manobra
considerável, aceitando a sua insistência de que apenas ele próprio os
defendia de uma alternativa bastante menos fácil de lidar, bem como a sua
afirmação de que necessitava de concessões a nível internacional para evitar
os problemas internos. Em Janeiro de 1951, até Eisenhower foi forçado a
declarar que se tinha equivocado ao identificar a Wehrmacht com os nazis:
«os soldados alemães combateram corajosa e honradamente pela sua pátria».
No mesmo sentido, o general Ridgeway, o sucessor de Eisenhower como
Comandante Supremo Aliado na Europa, pediu em 1953 aos Altos-
Comissários Aliados que perdoassem a todos os oficiais alemães condenados
por crimes de guerra na frente leste.
O comportamento de Adenauer não o tornou apreciado entre os seus
interlocutores. Dean Acheson, em particular, levou a mal a insistência de
Bona em estabelecer condições antes de se juntar à comunidade das nações
civilizadas, como se a Alemanha Ocidental estivesse a fazer um favor aos
aliados ocidentais vencedores. Mas nas raras ocasiões em que Washington ou
Londres expressavam a sua frustração em público ou quando havia algum
sinal de que pudessem estar em conversações com Moscovo por trás das
costas dos Alemães, Adenauer era rápido a virar a situação a seu favor,
lembrando ao eleitorado germânico a volubilidade dos aliados da Alemanha e
como só nele se podia confiar para proteger os interesses nacionais.
O apoio interno ao rearmamento germânico não era particularmente forte
nos anos 50, e a criação de um exército da RFA, o Bundeswehr, em 1956 –
apenas 11 anos depois da derrota – não despertou grande entusiasmo. O
próprio Adenauer foi ambíguo, insistindo que estava a dar resposta às
pressões internacionais – com o que, aos seus próprios olhos, estava a ser de
certa forma sincero. Um dos sucessos do «Movimento pela Paz» dos anos 50,
apoiado pelos Soviéticos, foi ter convencido muitos Alemães Ocidentais de
que o seu país podia ser unificado e ter segurança se se declarasse «neutral».
Mais de um terço dos adultos inquiridos no início dos anos 50 eram a favor de
uma Alemanha unificada e neutral em quaisquer circunstâncias e quase 50%
queriam que a República Federal da Alemanha declarasse a sua neutralidade
na eventualidade de uma guerra.
Partindo do princípio de que o que mais provavelmente podia espoletar
uma Terceira Guerra Mundial seria a própria situação da Alemanha, estas
aspirações podem parecer curiosas. Mas uma das singularidades da Alemanha
Ocidental depois da Segunda Guerra Mundial resultava de a posição
privilegiada do país como protectorado americano de facto ser para alguns
dos seus cidadãos tanto um motivo de ressentimento como de segurança. Tais
sentimentos foram evidentemente mais fortalecidos quando, a partir de finais
dos anos 50, se tornou claro que, em caso de guerra na Alemanha, poderiam
ser utilizadas armas nucleares no campo de batalha, mas sob o controlo total
de outros.
Já em 1956 Adenauer avisara que a República Federal da Alemanha não
podia continuar a ser para sempre um «protectorado nuclear». Quando no
início dos anos 60 se tornou evidente que os aliados ocidentais tinham
chegado a acordo com Moscovo acerca desta questão sensível e que nunca
permitiriam que a Alemanha tivesse armas nucleares, ficou furioso(19). Por
um breve período, parecia que a fidelidade da república de Bona para com
Washington poderia ser transferida para a Paris de De Gaulle, à qual o ligava
o ressentimento comum pelo tratamento prepotente dos anglo-americanos e
uma suspeita igualmente comum de que os Estados Unidos estavam a
esquivar-se às suas obrigações para com os europeus.
É claro que o desejo francês de um dissuasor nuclear independente
oferecia um precedente tentador à Alemanha Ocidental, o que foi habilmente
explorado por De Gaulle nos seus esforços para afastar Bona dos seus amigos
americanos. Como disse De Gaulle, na mesma conferência de imprensa de 14
de Janeiro de 1963 em que respondeu «Non!» à participação dos Britânicos
na CEE, ele «simpatizava» com as aspirações da Alemanha Ocidental ao
estatuto nuclear. Na semana seguinte, traduziu esta «simpatia» num tratado de
amizade franco-germânica. Mas o tratado, apesar de toda a fanfarra que o
acompanhou, era destituído de substância. A aparente mudança de lealdades
por parte de Adenauer foi desaprovada por muitos dos seus próprios
correligionários de partido. Mais tarde, nesse mesmo ano, os seus colegas
conspiraram para o afastar do poder e reafirmar a sua lealdade à NATO.
Quanto a De Gaulle, era quem menos ilusões alimentava em relação aos
Alemães. Seis meses antes, em Hamburgo, disse a uma multidão
extremamente entusiasmada «Es lebe die Deutsch-französiche Freundschaft!
Sie Sind ein grosses Volk!» (Viva a amizade franco-germânica! Sois um
grande povo!), mas, virando-se para um assistente, comentou: «se ainda
fossem realmente um grande povo, não me estariam a aplaudir tanto».
Em todo o caso, independentemente de quão frias eram as suas relações,
nenhum líder alemão ocidental se arriscaria a romper os laços com
Washington em troca de uma ilusória alternativa francesa. No entanto, as
intrigas da política externa de Adenauer resultavam de uma atitude de
ressentimento subjacente à subserviência inevitável da Alemanha para com os
Estados Unidos. Olhando retrospectivamente, estamos demasiado
predispostos a pensar que a República Federal, no pós-guerra, deu as suas
boas-vindas entusiásticas a tudo o que era americano, que os soldados
americanos que se espalharam nestes anos pelo centro e o Sul da Alemanha,
com as suas instalações, bases e comboios militares, a sua música, a sua
comida, vestuário, pastilhas elásticas e dinheiro, eram queridos e acolhidos
por todos os Alemães, cuja liberdade defendiam.
A realidade era mais complexa. Na sua maioria, os soldados americanos (e
britânicos) eram certamente apreciados individualmente, mas depois do alívio
inicial de terem sido «libertados» (sic) pelo Ocidente (e não pelo Exército
Vermelho) se ter dissipado, assomaram outros sentimentos. Os anos difíceis
da ocupação aliada, no pós-guerra, contrastavam desfavoravelmente com a
vida sob o poder nazi. Durante a Guerra Fria, alguns acusaram a América de
colocar a Alemanha no centro do «seu» conflito com a União Soviética e
expor o país ao perigo. Muitos conservadores, particularmente no Sul
católico, atribuíam a ascensão de Hitler à influência «secularizante» do
Ocidente e argumentaram que a Alemanha devia seguir um «caminho
intermédio» entre os três males da modernidade: o nazismo, o comunismo e o
«americanismo». Por outro lado, a proeminência crescente da Alemanha
Ocidental na fronteira leste da aliança ocidental fazia subliminarmente
recordar o papel que a Alemanha nazi se atribuíra como baluarte cultural,
olhando sobranceiramente na direcção das hordas soviéticas asiáticas.
Para além disso, a americanização da Alemanha Ocidental – e a
omnipresença dos ocupantes estrangeiros – contrastava de forma reveladora
com a purificada Alemanha dos desejos populares, alimentados no início dos
anos 50 sobretudo com um regime de filmes nacionais nostálgicos. Estes
filmes – o chamado cinema Heimat (pátria) – passavam-se habitualmente nas
paisagens montanhosas do Sul da Alemanha e apresentavam histórias de
amor, lealdade e espírito comunitário, em trajes de época ou regionais.
Despudoradamente kitsch, estes entretenimentos muitíssimo populares eram
muitas vezes cópias aproximadas dos filmes da era nazi e ocasionalmente
com os mesmos títulos (por exemplo, a Donzela da Floresta Negra, de 1950,
uma nova versão de um filme de 1933 com o mesmo título). Eram obras de
realizadores como Hans Deppe, que floresceu sob o poder nazi, ou de homens
mais novos, como Rudolf Schündler, que foram formados por aqueles.
Os títulos dos filmes – Verde é o Campo (1951), Terra de Sorrisos (1952),
Quando os Lilases Brancos Voltam a Florir (1953), Vitória e o seu Hussardo
(1954), O Hussardo Fiel (1954), A Aldeia Alegre (1955), Quando as Rosas
Alpinas Florescem (1955), Rosinha da Floresta Negra (1956) e muitos outros
semelhantes – evocam uma terra e um povo não perturbados por bombas ou
refugiados, a «Alemanha profunda»: inteira, rural, incontaminada, feliz e
loura. Para além disso, a sua intemporalidade trazia consigo sugestões
reconfortantes de um país e de um povo livres de ocupantes do Leste e do
Ocidente, mas livres também da culpa e limpos do passado recente da
Alemanha.
Os filmes Heimat reflectiam o carácter provinciano e o conservadorismo
do início da República Federal da Alemanha, um desejo sincero de não ser
incomodada. Esta desmobilização dos Alemães foi talvez facilitada pelo
número desproporcionado de mulheres no conjunto da população adulta. No
primeiro censo do pós-guerra, realizado em 1950, um terço das famílias era
chefiado por uma mulher divorciada ou viúva. Mesmo depois de os
prisioneiros de guerra sobreviventes terem regressado da URSS, em 1955 e
1956, a desproporção mantinha-se: em 1960, o número de mulheres era
superior ao dos homens numa relação de 126 para 100. Tal como na Grã-
Bretanha e em França, e até mais do que nestas, a família e os assuntos
domésticos eram a questões mais importantes no espírito do público. Neste
mundo de mulheres, muitas delas trabalhando a tempo inteiro e criando
sozinhas os seus filhos(20) – com terríveis recordações pessoais dos últimos
meses da guerra e do imediato pós-guerra –, a retórica da nação, do
nacionalismo, do rearmamento, da glória militar ou da confrontação
ideológica exerciam pouca atracção.
A adopção de objectivos públicos que substituíssem as ambições
desacreditadas do passado era manifestamente deliberada. Como Konrad
Adenauer explicou ao seu governo, em 4 de Fevereiro de 1952, quando
resumia a importância do plano Schuman para os seus concidadãos: «Deve
ser dada uma nova ideologia ao povo. Só pode ser europeia.» A Alemanha
Ocidental destaca-se por ter sido o único país que procurou recuperar a sua
soberania juntando-se a organizações internacionais. A ideia de Europa podia
substituir o vazio aberto na vida pública alemã com a excisão do
nacionalismo germânico, como Schuman explicitamente esperava que
acontecesse.
Para as elites intelectuais e políticas, este desvio de energias revelou-se
eficaz. Todavia, para a mulher comum, o substituto real da velha política não
foi a nova «Europa», mas a tarefa de sobreviver – e prosperar. Segundo o
político trabalhista britânico Hugh Dalton, Winston Churchill expressara no
fim da guerra o desejo de que a Alemanha pudesse tornar-se «gorda, mas
impotente». E assim sucedeu, mais depressa e em grau mais elevado do que
Churchill poderia ter ousado esperar. A atenção dos Alemães Ocidentais nas
duas décadas que se seguiram à derrota de Hitler, não necessitou de ser
desviada da política e para a produção e o consumo: ela dirigiu-se de alma e
coração nessa direcção.
Fazer, poupar, ganhar e gastar tornaram-se, não apenas as principais
actividades dos Alemães Ocidentais, mas também a finalidade publicamente
afirmada e aprovada da vida nacional. Reflectindo muitos anos mais tarde
sobre esta transformação colectiva curiosa e sobre o zelo concentrado com
que os cidadãos da República Federal da Alemanha iam para o emprego, o
escritor Hans Magnus Enzensberger observou que «não se pode entender a
energia enigmática dos Alemães se rejeitarmos a ideia de que transformaram
os seus defeitos em virtudes. Num sentido bem literal, perderam a cabeça e
essa foi a condição do seu sucesso posterior».
Condenados internacionalmente depois da queda de Hitler por terem
obedecido cegamente a ordens imorais, os Alemães transformaram assim o
seu defeito de uma obediência industriosa numa virtude nacional. O impacto
esmagador da derrota total do seu país e da subsequente ocupação tornaram
os Alemães Ocidentais permeáveis à imposição da democracia de uma forma
que poucos teriam imaginado uma década antes. Em lugar da «devoção pelos
seus governantes», que Heine foi o primeiro a observar no povo alemão um
século atrás, os Alemães dos anos 50 ganharam o respeito internacional pela
sua devoção sincera à eficiência, ao pormenor e à qualidade de manufactura
dos seus produtos finais.
Para os Alemães mais velhos, sobretudo, esta nova devoção à construção
da prosperidade era verdadeiramente bem-vinda. Em meados dos anos 60,
muitos Alemães com mais de 60 anos – o que incluía praticamente todos os
que detinham posições de autoridade – ainda pensavam que a vida fora
melhor no tempo do Kaiser. Porém, em face do que se seguiu, a segurança e a
tranquilidade proporcionadas pelas rotinas passivas da vida quotidiana na
República Federal da Alemanha foram um substituto mais do que aceitável.
Os cidadãos mais novos, contudo, eram mais desconfiados. A «geração
céptica» – os homens e as mulheres nascidos nos últimos dias da república de
Weimar e, por isso, com idade suficiente para ter experiência do nazismo, mas
suficientemente novos para não terem responsabilidades pelos seus crimes –
eram particularmente desconfiados em relação à ordem germânica
recentemente instituída.
Para homens como o escritor Günter Grass ou o teórico social Jürgen
Habermas, ambos nascidos em 1927, a Alemanha Ocidental era uma
democracia sem democratas. Os seus cidadãos tinham saltado, com uma
facilidade chocante, de Hitler para o consumismo, tinham aliviado as suas
memórias de culpa tornando-se cada vez mais prósperos. No afastamento dos
Alemães em relação à política e em direcção à acumulação privada, Grass e
outros viram a negação das responsabilidades cívicas do passado e do
presente. Apoiaram fervorosamente o afastamento em relação ao aforismo de
Berthold Brecht «Erst kommt das Fressen, dann kommt die Moral»
(«primeiro vem a comida, depois vem a moral») que o presidente da Câmara
de Berlim Ocidental evidenciou, em Março de 1947: «Não há frase mais
perigosa do que ‘primeiro vem a comida, depois vem a moral’. Temos fome e
estamos gelados porque permitimos a doutrina errada que esta frase
expressa».
Habermas seria mais tarde fortemente identificado com a busca de um
Verfassungspatriotism («patriotismo constitucional»), o único género de
nacionalismo que pensava ser apropriado – e prudente – encorajar nos seus
concidadãos. Mas já em 1953 despertara a atenção pública com o seu artigo
no Frankfurter Allgemeine Zeitung que atacava Martin Heidegger por
permitir que as suas conferências de Heidelberg fossem novamente
publicadas com as alusões originais à «grandeza interior» do nazismo. Na
altura, o incidente foi um facto isolado, sem a atenção internacional. No
entanto, foi de qualquer forma um marco, anunciando as interrogações mais
agrestes da década posterior.
No seu filme de 1978, O Casamento de Maria Braun, Rainer Werner
Fassbinder (nascido em 1945) disseca acidamente os defeitos da República
Federal da Alemanha tal como surgiam aos olhos dos seus jovens críticos.
Perante os destroços da derrota, a heroína epónima refaz a sua vida numa
Alemanha onde «todos os homens parecem encolhidos» e friamente afasta o
passado para trás de si, anunciando que «é uma época má para as emoções».
Maria dedica-se então, de forma exclusiva e inabalável, à preocupação
nacional de ganhar dinheiro, na qual se revela exímia. Nesse percurso, a
heroína, cuja vulnerabilidade inicial está agora impregnada de cinismo,
explora os recursos, os afectos e a credulidade dos homens – incluindo de um
soldado americano (negro) –, ao mesmo tempo que permanece «fiel» a
Hermann, o seu marido, um soldado alemão preso na União Soviética e cujos
feitos de guerra são deixados propositadamente vagos.
Todas as relações, realizações e consolos de Maria são medidos em
dinheiro, culminando numa casa nova cheia de equipamentos na qual planeia
receber o regressado marido. Estão prestes a voltar a reunir-se em felicidade
conjugal quando eles e os seus bens mundanos explodem devido a um
descuido: uma torneira de gás aberta (sic) na sua cozinha ultramoderna.
Entretanto a rádio aclama histericamente a vitória da Alemanha Ocidental no
Campeonato Mundial de Futebol de 1954. Para Fassbinder e uma nova
geração de dissidentes alemães ocidentais encolerizados, as novas qualidades
da nova Alemanha na sua nova Europa – a prosperidade, os compromissos, a
desmobilização política e o acordo tácito de não despertar os cães
adormecidos da memória nacional – não desviavam a atenção dos velhos
defeitos. Eles eram os velhos defeitos sob uma nova aparência.
-
(1) J. H. Plumb, ) J. H. Plumb, 1725 (Londres, 1967), p. xvii.

(2) Em Março de 1951, sob pressão dos Estados Unidos, os Holandeses, superando um considerável
sentimento neutral interno, concordaram relutantemente em duplicar o seu orçamento de defesa e em
preparar cinco divisões para as instalar em 1954.

(3) Baseado, segundo Eden, numa ideia que teve quando tomava o seu banho matinal.

(4) A única restrição explícita levantada ao rearmamento alemão era a proibição absoluta de
qualquer programa de armas nucleares, então e para sempre.

(5) A neutralidade austríaca não figurava no texto original. Foi inserida pelo parlamento austríaco
durante o debate do tratado do Estado.

(6) Os Americanos não foram os únicos que entraram em pânico com as exibições do hardware
soviético. Em 1960, o primeiro-ministro conservador da Grã-Bretanha, Harold Macmillan, afirmou em
privado que «Eles [a URSS] já não receiam uma agressão. Eles possuem forças nucleares pelo menos
tão poderosas quanto o Ocidente. Têm linhas [de comunicação] internas. Têm uma economia em
ascensão e em breve irão ultrapassar a sociedade capitalista na corrida à riqueza material».

(7) Não era claro o que tinham a dizer os Britânicos – se é que tinham – sobre o seu uso. Nessa
mesma altura (1952), um comunicado conjunto Churchill-Truman declarava de forma muito nebulosa
que «o uso destas bases numa emergência dependeria de decisão conjunta […] segundo as
circunstâncias prevalecentes na ocasião».

(8) A pressão americana sobre os Britânicos e os Franceses para que retirassem do Suez em
Novembro de 1956 (ver capítulo 9) provocou receios nos países da NATO de que, quando se desse uma
guerra, os Americanos pudessem retirar-se para o seu hemisfério, abandonando os europeus expostos.
Daí que se tenha percebido em Washington a necessidade de «permanecer firme», primeiro em Berlim e
depois em Cuba, para tranquilizar os vulneráveis aliados da América.

(9) A observação de Kennedy não só era confidencial naquela altura, como nem sequer foi incluída
nos documentos da cimeira quando foram publicados 30 anos mais tarde.

(10) Como haveriam de descobrir em 1990, os seus receios não eram infundados.

(11) Anatoly Dobrynin, In Confidence (Times Books, 1995), p. 46. A aversão à guerra por parte de
Kruschev era genuína. Como escreveu a Kennedy em 26 de Agosto, no auge da crise cubana: «Se de
facto a guerra eclodir, então não estará nas nossas mãos impedi-la, porque essa é a lógica da guerra.
Participei em duas guerras e sei que a guerra acaba depois de ter passado por cidades e aldeias,
semeando por toda a parte morte e destruição.»

(12) Em 1971, 95% dos funcionários públicos superiores ainda tinham começado a carreira antes do
derrube do fascismo.

(13) Embora à luz da história anterior da Itália não seja inteiramente justo lançar a culpa da
corrupção institucional do país à política externa americana. Vide Eric J. Hobsbawm, The Age of
Extremes. A History of the World, 1914-1991 (Nova Iorque, 1994), pp. 238-239.

(14) Nas eleições de 1945, os comunistas austríacos tiveram 174 000 votos – 5% – e elegeram quatro
deputados para o parlamento. Depois disso deixaram de ter qualquer papel na política austríaca.
(15) Na véspera do Anschluss de 1938, havia 189 000 judeus em Viena. Quando a cidade foi
libertada, em 1945, restavam menos de 1000.

(16) Na Bélgica, o Partido Católico, há muito estabelecido, mudou o seu nome para Cristão para
acentuar o seu apelo a ambas as comunidades religiosas e as suas aspirações reformadoras mais
modernas. Na Holanda, é claro, onde as distinções entre os cristãos eram importantes, o Partido
Católico manteve a sua antiga designação.

(17) A que Resnais respondeu: «Naturalmente, não me tinha dado conta de que o regime nacional-
socialista estaria representado em Cannes, mas agora, é claro, já dei.»

(18) «Ninguém pode livrar-nos desta vergonha.»

(19) Com uma reveladora hipérbole involuntária, descreveu o Tratado de Não Proliferação Nuclear
como um «perfeito plano Morgenthau».

(20) Muitas das figuras mais importantes da Alemanha contemporânea (incluindo o chanceler
federal e o ministro dos Negócios Estrangeiros à época da escrita deste livro, 2005) eram crianças deste
tempo, educados em famílias monoparentais por uma mulher que trabalhava.
IX

Ilusões Perdidas
«Indië verloren, rampspoed geboren.»
[Se as Índias se perderem, estamos perdidos.]
Ditado holandês, amplamente citado nos anos 40
«O vento da mudança sopra neste continente e, gostemos ou não, este
aumento da consciência [africana] é um facto político.»
Harold Macmillan, discurso na Cidade do Cabo em 3 de Fevereiro de 1960
«A Grã-Bretanha perdeu um império e ainda não encontrou um papel a
desempenhar.»
Dean Acheson, discurso em West Point, 5 de Dezembro de 1962
«Fala-vos Imre Nagy, presidente do conselho de ministros da República
Popular da Hungria. Às primeiras horas desta manhã, as tropas soviéticas
lançaram um ataque contra a nossa capital com a intenção óbvia de derrubar o
governo húngaro legítimo e democrático. As nossas tropas estão a combater.
O governo está no seu posto. Informo disto o povo do país e a opinião pública
mundial.»
Imre Nagy na rádio húngara, às 5:20 de 4 de Novembro de 1956
«É um grave erro recorrer a tropas estrangeiras para dar uma lição ao seu
povo.»
Josip Broz Tito, 11 de Novembro de 1956
Ao findar a Segunda Guerra Mundial, os povos da Europa Ocidental – que
tinham dificuldade em governar-se ou até em alimentar-se – continuavam a
governar em grande parte do mundo não europeu. Este paradoxo indecente,
cujas implicações não escapavam às elites indígenas das colónias europeias,
tinha consequências perversas. Para muitos Britânicos, Franceses ou
Holandeses, as colónias e as possessões imperiais dos seus respectivos países
em África, na Ásia, no Médio Oriente e nas Américas eram um bálsamo para
os sofrimentos e as humilhações da guerra na Europa; demonstraram o seu
valor material nessa guerra, como recursos nacionais vitais. Sem o acesso a
esses territórios extensos, sem os recursos e os homens que vieram das
colónias, os Britânicos e os Franceses, sobretudo, teriam estado numa
desvantagem ainda maior do que já estavam durante a sua luta contra a
Alemanha e o Japão.
Este facto era bastante óbvio para os Britânicos. Para quem (como o
presente autor) tivesse crescido na Grã-Bretanha durante o pós-guerra,
«Inglaterra», «Grã-Bretanha» e «Império Britânico» eram termos quase
sinónimos. Os mapas da escola primária mostravam um mundo fortemente
pintado de vermelho imperial, os manuais de História dedicavam uma
particular atenção à história das conquistas britânicas, sobretudo na Índia e
em África; os documentários cinematográficos, os boletins de notícias da
rádio, os jornais, as revistas ilustradas, as histórias para crianças, a banda
desenhada, as competições desportivas, as latas de biscoitos, os rótulos das
latas de fruta, as montras dos talhos: tudo recordava a presença axial da
Inglaterra no centro histórico e geográfico de um império de origem marítima.
Os nomes das colónias e das cidades, dos rios e das figuras políticas dos seus
domínios eram tão familiares como os da própria Grã-Bretanha.
Os Britânicos perderam o seu «primeiro» império no Norte de África. O
seu sucessor, se não foi exactamente adquirido numa «distracção», era tudo
menos o resultado de um ‘desígnio’. Custou muito policiá-lo, desenvolvê-lo e
administrá-lo, e – tal como o império francês do Norte de África – era
fervorosamente apreciado e defendido por uma pequena classe de colonos
agricultores e rancheiros em lugares como o Quénia ou a Rodésia. Os
domínios «brancos» – o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia – e a África do
Sul eram independentes, mas a sua aliança formal com a Coroa, os seus laços
afectivos com a Grã-Bretanha, os produtos alimentares e as matérias-primas
que podiam fornecer e as suas forças armadas eram consideradas, de facto,
como bens nacionais, embora não oficialmente. O valor material do resto do
Império Britânico era menos imediatamente óbvio do que as suas utilizações
estratégicas: as possessões britânicas na África Oriental, tal como os diversos
territórios e portos controlados pelos Britânicos no Médio Oriente e em volta
da península da Arábia e do oceano Índico, eram tidas, sobretudo, como
complementos do principal bem imperial, a Índia, que na altura incluía o que
se tornou mais tarde o Paquistão, o Bangladesh, o Sri Lanka e a Birmânia.
Todos os impérios europeus foram adquiridos esporádica e
episodicamente, e (com a excepção das rotas terrestres e marítimas que
serviam a Índia britânica) com pouca atenção dedicada à sua coerência
logística ou ao seu rendimento económico. Os Espanhóis já tinham perdido a
maior parte do seu império, primeiro para os Britânicos, depois por causa das
exigências de independência dos seus próprios colonos, e mais recentemente
para os Estados Unidos, potência emergente, o que era uma fonte de
sentimentos antiamericanos permanentes em Espanha. O que restou foram
meros enclaves em Marrocos e na Guiné Equatorial, que seriam abandonados
por Franco (sempre realista) entre 1956 e 1968.
Todavia, grande parte da África e da Ásia estava ainda em mãos europeias,
quer sob o controlo directo das suas capitais imperiais, quer indirectamente
através de uma casta governante de intelectuais recrutada localmente e
educada ao estilo europeu, quer ainda por intermédio de governantes
indígenas numa aliança subserviente com os seus senhores europeus. Os
políticos da Europa do pós-guerra, que só de nome conheciam tais povos,
ignoravam, por isso, em grande parte, o sentimento nacionalista que crescia
rapidamente no seio de uma geração emergente de activistas em todos os
impérios (excepto talvez na Índia, mas mesmo aí durante muito tempo
subavaliaram a sua extensão e a sua determinação).
Por isso, nem os Britânicos, nem nenhuma das restantes potências
coloniais europeias anteciparam o colapso iminente das suas possessões e da
sua influência no ultramar. Como o historiador britânico Eric Hobsbawm
confirmou, o fim dos impérios coloniais europeus parecia estar muito longe
em 1939, mesmo para estudantes de um seminário para jovens comunistas da
Grã-Bretanha e das suas colónias. Seis anos mais tarde, o mundo estava ainda
tão dividido entre governantes e governados, poderosos e sem poder, ricos e
pobres, que parecia improvável que eles se pudessem aproximar num futuro
próximo. Em 1960, bastante tempo depois do movimento mundial a favor da
independência ter ganho impulso, 70% do produto mundial bruto e 80% do
valor acrescentado da indústria transformadora tinha origem na Europa
Ocidental e na América do Norte.
O pequeno Portugal, a mais pequena e a mais pobre das potências
coloniais europeias, retirava matérias-primas a preços altamente favoráveis
das suas colónias de Angola e Moçambique. Estas proporcionavam também
um mercado privilegiado para as exportações portuguesas, que não eram
internacionalmente competitivas. Por exemplo, Moçambique produzia
algodão para o mercado português, em vez de alimentos para o seu povo, uma
distorção de que resultavam grandes lucros e fomes periódicas no território.
Nestas circunstâncias, e apesar das revoltas fracassadas nas colónias e dos
golpes militares na metrópole, a descolonização portuguesa foi adiada tanto
quanto foi possível(1).
Mas ainda que os Estados europeus conseguissem passar sem os seus
impérios, poucos eram os que podiam conceber as colónias a sobreviver
sozinhas, sem o apoio do poder estrangeiro. Até os liberais e os socialistas,
que concordavam com a autonomia e a independência final dos súbditos
ultramarinos da Europa, esperavam que passassem muitos anos antes de tais
objectivos se realizarem. Convém recordar que ainda em 1951 o ministro dos
Negócios Estrangeiros britânico, o trabalhista Herbert Morrison, considerava
que dar a independência das colónias africanas seria como «dar a uma criança
de dez anos a chave de casa, uma conta bancária e uma espingarda de caça».
A guerra mundial, todavia, trouxera maiores mudanças nas colónias do que
a maioria dos europeus se dera conta. Durante a guerra, a Grã-Bretanha
perdera os seus territórios no Extremo Oriente para os ocupantes japoneses e,
embora fossem recuperados depois da derrota do Japão, a posição da velha
potência colonial fora radicalmente abalada. A rendição britânica em
Singapura, em Fevereiro de 1942, foi uma humilhação de que o Império
Britânico na Ásia nunca recuperou. Embora as forças britânicas tivessem
conseguido evitar que a Birmânia e, portanto, também a Índia caíssem em
poder dos Japoneses, o mito da invencibilidade europeia fora destruído para
sempre. Após 1945, as potências coloniais na Ásia teriam de enfrentar uma
pressão cada vez maior para que abandonassem as suas tradicionais
pretensões na região.
Para a Holanda, a potência colonial mais antiga nesta zona, as
consequências foram particularmente traumáticas. As Índias Orientais
Holandesas e a companhia de comércio que as desenvolvera faziam parte do
mito nacional, eram uma ponte directa para a Idade de Ouro e um símbolo das
glórias comerciais e marítimas holandesas. Era também amplamente aceite,
sobretudo nos tristes e pobres anos do pós-guerra, que as matérias-primas das
Índias, sobretudo a borracha, seriam a salvação económica da Holanda. No
entanto, passados dois anos após a derrota do Japão, os Holandeses estavam
novamente em guerra: os territórios do Sudeste da Ásia na posse da Holanda
(que formam hoje a Indonésia) mantinham ocupados 140 000 soldados
holandeses (profissionais, recrutados e voluntários), e a revolução a favor da
independência da Indonésia estava a gerar admiração e imitações em todo o
restante império holandês no Pacífico, nas Caraíbas e na América do Sul.
A guerra de guerrilha que se seguiu durou quatro anos e custou à Holanda
mais de 3000 mortos civis e militares. A independência indonésia,
proclamada unilateralmente pelo líder nacionalista Sukarno, em 17 de
Novembro de 1945, foi finalmente concedida pelas autoridades holandesas (e
pela rainha Juliana, em lágrimas) numa conferência em Haia, em Dezembro
de 1949. Um fluxo contínuo de europeus empreendeu o seu regresso a «casa»
(tendo na verdade muitos deles nascido nas Índias sem nunca ter estado na
Holanda). No final de 1957, quando o presidente Sukarno encerrou a
Indonésia aos homens de negócios holandeses, os Holandeses «repatriados»
contavam-se em muitas dezenas de milhares.
A experiência da descolonização teve consequências amargas na vida
pública holandesa, já muito fustigada pela guerra e seus sofrimentos. Muitos
ex-colonos e seus amigos insistiram naquilo que ficou conhecido como o
«Mito do Bom Poder», acusando a esquerda pelo fracasso holandês em
reafirmar a autoridade colonial após o interregno da ocupação japonesa. Por
outro lado, os soldados recrutados (a esmagadora maioria) ficaram bastante
contentes por regressar incólumes depois de uma guerra colonial de que
ninguém se orgulhava, em que muitos sentiam que o êxito militar fora
impedido pela insistência das Nações Unidas numa transferência negociada
do poder, e que tudo foi rapidamente lançado para um canto da memória
nacional.
A longo prazo, a retirada forçada dos Holandeses das colónias facilitou o
crescimento do sentimento nacional a favor da «Europa». A Segunda Guerra
Mundial demonstrou que a Holanda não podia ficar afastada das questões
internacionais, sobretudo das dos seus grandes vizinhos, e a perda da
Indonésia foi um sinal que veio na altura própria, para fazer ver qual era a
posição real do país como Estado europeu pequeno e vulnerável. Fazendo da
necessidade uma virtude, os Holandeses voltaram a trabalhar como
proponentes ultra-entusiastas da integração económica europeia e, depois,
também política. Porém, o processo não aconteceu sem sofrimento, nem
ocorreu como uma mudança imediata da sensibilidade colectiva da nação. Até
à Primavera de 1951, os cálculos e as despesas militares dos governos
holandeses do pós-guerra não estavam dirigidos para a defesa europeia
(apesar da participação no pacto de Bruxelas e na NATO), mas para manter as
colónias. Apenas lentamente, e com alguns lamentos contidos, os políticos
holandeses deram a atenção devida aos assuntos europeus e abandonaram as
suas antigas prioridades.
O mesmo se pode dizer, em graus diversos, de todas as potências coloniais
e ex-coloniais da Europa Ocidental. Os investigadores americanos, ao
projectarem a experiência e as preocupações de Washington sobre o resto do
Ocidente, não reconhecem, por vezes, esta característica distintiva da Europa
depois da Segunda Guerra Mundial. Nos Estados Unidos, o que interessava
era a Guerra Fria; as prioridades externas e internas e a retórica utilizada
reflectiam isto mesmo. Mas para Haia, Londres e Paris, estes mesmos anos
foram passados em guerras de guerrilha dispendiosas, em colónias com
extensos territórios e cada vez mais ingovernáveis. Os movimentos de
independência nacional, e não Moscovo e as suas ambições, foram a dor de
cabeça estratégica da maior parte dos anos 50 – embora por vezes os dois
casos se sobrepusessem.
O império francês, tal como o britânico, beneficiara em 1919 da
redistribuição das possessões asiáticas e africanas das potências centrais
derrotadas. Assim, em 1945, a França libertada voltou a exercer o poder na
Síria e no Líbano, bem com em faixas importantes na África subsariana e
algumas ilhas das Caraíbas e do Pacífico. Mas as «jóias» da coroa imperial
francesa eram os seus territórios na Indochina e, sobretudo, as antigas
colónias no Norte de África, na costa do Mediterrâneo: a Tunísia, Marrocos e
sobretudo a Argélia. Nos textos de história franceses, porém, o lugar das
colónias era talvez mais ambíguo do que do outro lado do Canal da Mancha,
em parte porque a França era uma república em que os domínios imperiais
não tinham um lugar natural e em parte também porque muitas das primeiras
conquistas francesas tinham sido há muito tomadas por governantes de língua
inglesa. Em 1950, havia ainda milhões de homens e mulheres franceses que
se recordavam do «incidente Fashoda», em 1898, quando a França se retirou
de uma confrontação com a Grã-Bretanha sobre o controlo do Egipto, do
Sudão e do Alto Nilo. Falar de império em França era recordar derrotas, bem
como vitórias.
Por outro lado, aos alunos franceses era constantemente apresentada a
imagem da própria «França» como um contínuo transoceânico, um lugar em
que os atributos cívicos e culturais do carácter francês estavam abertos a
todos, onde as escolas primárias de Saigão a Dacar falavam de «nos ancêtres
les Gaulois» («os nossos antepassados, os Gauleses») e proclamavam, mesmo
se apenas em princípio, as virtudes de uma assimilação cultural perfeita que
teria sido considerada quase impensável pelos administradores das colónias
britânicas, holandesas, belgas, espanholas e portuguesas(2). Só em França é
que as autoridades da metrópole podiam verdadeiramente tratar as suas tão
apreciadas possessões coloniais não como solo estrangeiro, mas como
extensões administrativas da própria França. Assim, por exemplo, «Argélia»
não era mais do que um termo geográfico – a área a que se aplicava era
administrada como três departamentos da França (nos quais, porém, só os
seus residentes europeus gozavam de plenos direitos civis).
Durante a guerra, os Franceses, tal como os Britânicos e os Holandeses,
perderam as suas apreciadas colónias do Sudeste Asiático para os Japoneses.
Mas no caso francês, a ocupação japonesa chegou tarde – até Março de 1945,
a Indochina Francesa permaneceu sob a tutela das autoridades de Vichy – e
foi, em todo o caso, muito menos traumática do que a própria derrota na
Europa em 1940. A humilhação da França acentuou o significado simbólico
dos seus impérios ultramarinos: se os Franceses, aos seus próprios olhos, não
estavam reduzidos a uma «massa de protoplasma desamparada e
desesperada» (a descrição que deles deu Eisenhower em 1954), isso ficou a
dever-se, em larga medida, à sua credibilidade duradoira como potência
colonial de primeira grandeza, que tinha, assim, alguma importância.
De Gaulle restabeleceu a presença francesa em África na Conferência de
Brazzaville, no início de Fevereiro de 1944. Aí, na capital da África
Equatorial Francesa, do outro lado do rio que vinha do Congo Belga, o líder
dos Franceses Livres deu uma expressão característica à sua visão do futuro
colonial francês:
«Na África Francesa, tal como em qualquer terra onde vivam homens sob
a nossa bandeira, não pode haver progresso verdadeiro a menos que possam
beneficiar dele moral e materialmente no seu solo nativo, a menos que se
possam elevar pouco a pouco até a um nível em que estejam aptos a partilhar
a gestão dos seus próprios assuntos. É dever da França consegui-lo.»
Era pouco claro o que De Gaulle queria exactamente dizer, o que acontecia
muitas vezes, e talvez deliberadamente. Mas foi certamente interpretado
como estando a referir-se à emancipação colonial e a uma futura autonomia.
As circunstâncias eram propícias. A opinião pública francesa não era contrária
às reformas coloniais. (No seu livro Voyage au Congo, de 1927, a censura
severa de André Gide às práticas de trabalho forçado despertara a consciência
pública de antes da guerra para os crimes europeus na África Central.) Por
outro lado, os Americanos iam levantando premonitórios clamores
anticoloniais. O secretário de Estado americano Cordell Hull falara, há pouco
tempo, de maneira aprovadora, de uma possibilidade de controlo internacional
sobre as colónias europeias menos desenvolvidas e do princípio de um
autogoverno inicial nas restantes(3).
As conversas sobre reformas na África francófona empobrecida e isolada
eram inconsequentes, sobretudo antes da própria França ser libertada. O
Sudeste Asiático era outra coisa. Em 2 de Setembro de 1945, Ho Chi Minh, o
líder nacionalista vietnamita (e fundador do Partido Comunista Francês,
graças à sua presença quando jovem no congresso de Tours, em Dezembro de
1920) proclamou a independência do seu país. Passadas duas semanas, forças
britânicas começaram a chegar a Saigão, uma cidade no Sul, seguidas, um
mês depois, pelas francesas. Entretanto, os distritos do Norte do Vietname, até
então sob controlo chinês, foram devolvidos aos Franceses em Fevereiro de
1946.
Nesta altura, havia perspectivas reais de uma autonomia ou de uma
independência negociadas, porque as autoridades de Paris abriram
conversações com os representantes nacionalistas. Todavia, em 1 de Junho de
1946, o almirante francês e plenipotenciário local, Thierry d’Argenlieu,
proclamou unilateralmente a separação da Cochinchina (a parte sul do país)
do Norte dominado pelos nacionalistas, sabotando os esforços do seu próprio
governo para tentar chegar a um compromisso e rompendo as conversações
deste com Ho. No Outono desse mesmo ano os Franceses bombardearam o
porto de Haiphong, os nacionalistas vietminh atacaram os Franceses em
Hanói, e começou a primeira guerra do Vietname.
No pós-guerra, o combate da França para restabelecer a autoridade na
Indochina foi uma catástrofe política e militar. Ho Chi Minh teve um duplo
apoio da esquerda francesa, enquanto combatente da independência nacional
e como comunista revolucionário – duas identidades inextrincavelmente
interligadas no seu próprio pensamento e na sua notável imagem
internacional(4). Enviar jovens para lutar e morrer numa «guerra suja» na
Indochina tinha pouco sentido para a maioria do eleitorado francês e deixar
Hanói assumir o poder não era necessariamente menos aconselhável do que
apoiar Bao Dai, manifestamente inadequado, que os Franceses designaram
como novo «imperador» do país, em Março de 1949.
O corpo de oficiais franceses, por outro lado, desejava certamente
continuar a lutar no Vietname. Aí, como mais tarde na Argélia, parecia estar
em causa a herança marcial da França (ou o que restava dela) e o alto-
comando francês tinha algo a provar. No entanto, a economia francesa nunca
poderia sustentar uma guerra prolongada, numa colónia de grandes
dimensões, sem uma ajuda externa substancial. A guerra da França na
Indochina foi financiada pelos Americanos. De início a contribuição de
Washington foi indirecta: graças a empréstimos e ajudas dos Estados Unidos,
os Franceses foram capazes de desviar recursos consideráveis para uma luta
cada vez mais dispendiosa e infrutífera, mas destinada a derrotar os Vietminh.
De facto, os EUA apoiavam a modernização económica francesa do pós-
guerra, enquanto a França dedicava os seus próprios escassos recursos à
guerra.
A partir de 1950, a ajuda americana assumiu uma forma mais directa. Com
início em Julho desse ano (um mês depois da eclosão da guerra na Coreia, ali
próximo), os Estados Unidos aumentaram exponencialmente o seu apoio
militar às forças francesas no Sudeste Asiático. Os Franceses negociaram
duramente antes de aceitarem apoiar o condenado projecto de defesa europeu
e de concordarem com a entrada da Alemanha Ocidental na NATO. O que
obtiveram em contrapartida (por permitirem que os Estados Unidos os
protegessem, como parecia aos insiders ressentidos em Washington) foi uma
ajuda militar americana substancial. Em 1953, de todos os países europeus, a
França era de longe o que estava mais dependente do apoio dos Estados
Unidos, tanto em dinheiro como em bens.
Apenas em 1954 Washington acabou com o apoio, rejeitando os pedidos
franceses cada vez mais desesperados de ajuda aérea para salvar a condenada
guarnição francesa de Dien Bien Phu. Após oito anos de luta infrutífera e
sangrenta, era evidente em Washington não só que os Franceses não podiam
restabelecer a sua antiga autoridade na Indochina, mas também que não eram
adversário à altura das forças regulares e de guerrilha de Ho Chi Minh. Do
ponto de vista americano, os Franceses desperdiçaram o seu dinheiro e eram
um investimento cada vez mais arriscado. Quando Dien Bien Phu se rendeu,
em 7 de Maio de 1954, e os Franceses pediram um cessar-fogo, ninguém
ficou surpreendido.
A queda da Indochina Francesa precipitou o colapso do último governo de
coligação que tentou sustentá-la e a sucessão de Pierre Mendès-France como
o novo primeiro-ministro. Sob a direcção de «PMF», os Franceses
negociaram um acordo em Genebra, em 21 de Julho de 1954, segundo o qual
a França abandonava a região, deixando atrás de si duas entidades distintas, o
Vietname «do Norte» e o Vietname «do Sul», cujas relações políticas e
instituições seriam determinadas em eleições futuras. Estas eleições nunca se
realizaram e a responsabilidade pela parte sul da antiga colónia francesa
recaiu, então, inteiramente sobre os Americanos.
Foram poucos os que em França lamentaram a perda da Indochina. Ao
contrário dos Holandeses, os Franceses não estavam há muito tempo naquela
região; e embora a América tivesse pago a primeira guerra do Vietname (algo
que poucos Franceses sabiam na altura), foram os soldados franceses que lá
combateram e morreram. Em particular, os políticos franceses da direita
criticaram severamente Mendès-France e os seus antecessores pelo fracasso
em conduzir a guerra com maior eficácia, mas ninguém tinha algo melhor a
propor e, intimamente, quase todos estavam satisfeitos por deixarem o
Vietname para trás. Só o Exército francês – ou mais precisamente o seu corpo
de oficiais profissionais – continuou a apresentar razões de queixa. Alguns
jovens oficiais, nomeadamente os que tinham servido na Resistência ou nos
Franceses Livres, e aí adquiriram o hábito de ter um juízo político
independente, começaram a alimentar ressentimentos que eram perigosos.
Uma vez mais, murmuravam, as tropas francesas no teatro de guerra foram
mal apoiadas pelos seus dirigentes políticos em Paris.
Com a perda da Indochina, a atenção francesa virou-se para o Norte de
África. Num aspecto, tal foi quase literalmente verdadeiro: a insurreição
argelina começou no dia 1 de Novembro de 1954, apenas 14 semanas depois
da assinatura dos acordos de Genebra. Todavia, há muito que o Norte de
África estava no centro das preocupações de Paris. Desde que os Franceses
chegaram pela primeira vez, em 1830, àquilo que é hoje a Argélia, a colónia
fez parte de uma ambição francesa mais ampla, datando de um tempo ainda
anterior, de dominar o Sara africano do Atlântico até ao Suez. Frustrados a
oriente pelos Britânicos, os Franceses transferiram a sua prioridade para o
Mediterrâneo Ocidental e, através do Sara, até à África Centro-Ocidental.
Exceptuando a colonização muito mais antiga do Quebeque e de algumas
ilhas das Caraíbas, o Norte de África (sobretudo a Argélia) era a única colónia
francesa em que os europeus se estabeleceram permanentemente em grande
número. Mas muitos dos europeus não eram Franceses, mas sim Espanhóis,
Italianos, Gregos, etc. Até um argelino francês emblemático como Albert
Camus era em parte espanhol e os seus antepassados franceses tinham
chegado muito recentemente. Há muito que a França não tinha excesso de
população. Ao contrário da Rússia, da Polónia, da Grécia, da Itália, da
Espanha, de Portugal, da Escandinávia, da Alemanha, da Irlanda, da Escócia e
até da Inglaterra, há muitas gerações que a França não era terra de emigrantes.
Os Franceses não eram colonizadores naturais.
No entanto, se havia uma França-no-exterior-da-França era na Argélia, o
que era confirmado, como vimos, pela presença técnica da Argélia no interior
da França enquanto parte da estrutura administrativa metropolitana. A
analogia mais próxima que poderíamos encontrar em outro lado seria o Ulster,
outro enclave, além-mar, numa antiga colónia, institucionalmente incorporada
na «metrópole» e com uma comunidade de colonos há muito estabelecida e
para a qual importava muito mais a sua ligação com o centro do império do
que para a maior parte da metrópole. A ideia de que a Argélia poderia um dia
tornar-se independente (e, portanto, governada por Árabes, dada a
esmagadora predominância numérica destes e dos Berberes na sua população)
era impensável para a sua minoria europeia.
Por isso, os políticos franceses evitaram durante muito tempo pensar no
assunto. Nenhum governo francês, excepto a Frente Popular de Léon Blum,
em 1936, que durou pouco, prestou verdadeiramente atenção ao grave
desgoverno praticado pelos administradores coloniais no Norte de África
francês. Os nacionalistas argelinos moderados como Ferhat Abbas eram bem
conhecidos dos políticos e intelectuais franceses, antes e depois da Segunda
Guerra Mundial, mas ninguém esperava realmente que Paris pusesse em
prática tão cedo as suas modestas metas de autogoverno ou de «poder
interno». Não obstante, a liderança árabe pensava de início com optimismo
que a derrota de Hitler precederia as reformas há muito aguardadas e quando
publicaram um manifesto em 10 de Fevereiro de 1943, a seguir aos
desembarques aliados no Norte de África, foram muito cuidadosos ao
acentuarem a sua lealdade aos ideais de 1789 e o seu afecto pela «cultura da
França e do Ocidente que receberam e estimaram».
Os seus apelos, contudo, não foram ouvidos. O governo da França
libertada mostrou pouca preocupação com os sentimentos árabes e quando
esta indiferença deu origem a um levantamento na região de Cabília, a leste
de Argel, em Maio de 1945, os insurrectos foram esmagados sem
contemplações. Na década seguinte, a atenção parisiense virou-se para outro
lado. Quando os anos de cólera reprimida e expectativas frustradas
culminaram na explosão de insurreição organizada, no dia 1 de Novembro de
1954, o compromisso já não estava no programa. A FLN (Front de Libération
National) argelina era liderada por uma geração mais nova de nacionalistas
árabes que desprezava as estratégias francófilas moderadas dos mais velhos.
O seu objectivo não era o «poder interno» nem as reformas, mas a
independência, uma meta que os sucessivos governos franceses não poderiam
aceitar. O resultado foram oito anos de guerra civil sangrenta.
Tardiamente, as autoridades propuseram reformas. O novo governo
socialista de Guy Mollet concedeu a independência, em Março de 1956, às
colónias francesas vizinhas da Tunísia e de Marrocos, o primeiro abandono de
poder colonial no continente africano. Mas quando Mollet visitou Argel, uma
multidão de colonos europeus atirou-lhe fruta podre. Paris foi apanhada entre
as exigências implacáveis da clandestina FLN e a recusa dos europeus que
residiam na Argélia, liderados agora por um Comité para a Defesa da Argélia
Francesa (l’Algérie française), em aceitar qualquer compromisso com os seus
vizinhos árabes. A estratégia francesa, se é que existia, era agora derrotar a
FLN pela força, antes de exercer pressão sobre os colonos para que
aceitassem reformas políticas e algumas medidas de partilha do poder.
O Exército francês iniciou uma dura guerra de desgaste contra os
guerrilheiros da FLN. Ambos os lados recorreram regularmente à
intimidação, à tortura, ao assassinato e ao puro terrorismo. Após uma série
particularmente terrível de assassinatos árabes e de retaliações europeias, em
Dezembro de 1956, Robert Lacoste, o representante político de Mollet, deu ao
coronel pára-quedista Jacques Massu carta branca para destruir os insurrectos
nacionalistas de Argel, utilizando quaisquer meios que fossem necessários.
Em Setembro de 1957, Massu vencera, tendo acabado com uma greve geral e
esmagado os insurrectos na batalha de Argel. A população árabe pagou um
preço terrível, mas a reputação da França ficou irremediavelmente manchada.
Por outro lado, os colonos europeus continuaram tão inquietos como antes
relativamente às intenções de Paris a longo prazo(5).
Em Fevereiro de 1958, o novo governo de Félix Gaillard ficou
embaraçado com o bombardeamento pela força aérea francesa da vila de
Sakhiet, situada no outro lado da fronteira com a Tunísia e suspeita de servir
de base aos nacionalistas argelinos. O clamor internacional daí resultante e a
oferta dos «bons ofícios» anglo-americanos para ajudar a resolver o problema
argelino conduziram a receios crescentes dos europeus da Argélia de que
Paris estaria a planear abandoná-los. Polícias e soldados em Paris e Argel
começaram a demonstrar a sua simpatia pela causa dos colonos. O governo de
Gaillard, o terceiro em onze meses, demitiu-se a 15 de Abril. Dez dias mais
tarde houve uma enorme manifestação em Argel, exigindo que se mantivesse
para sempre a Argélia Francesa e o regresso de De Gaulle ao poder. Os
organizadores da manifestação formaram um Comité de Segurança Pública,
fazendo eco, provocatoriamente, da instituição da Revolução Francesa que
tinha o mesmo nome.
A 15 de Maio, 48 horas depois de mais outro governo francês, liderado por
Pierre Pfimlin, ter entrado em funções em Paris, o general Raoul Salan – o
comandante militar francês na Argélia – gritou bem alto o nome de De Gaulle
a uma multidão entusiasmada no Fórum de Argel. O próprio De Gaulle, que
tinha ficado notoriamente silencioso desde a sua retirada da vida pública para
a sua aldeia natal de Colombey, no Leste da França, reapareceu em público
para dar uma conferência de imprensa em 19 de Maio. Rebeldes armados
assumiram o controlo da ilha da Córsega e Paris foi envolvida em rumores
sobre o lançamento iminente de tropas pára-quedistas. Em 28 de Maio,
Pfimlin demitiu-se e o presidente René Coty pediu a De Gaulle para formar
um governo. Sem sequer fingir opor-se, De Gaulle assumiu funções no dia 1
de Junho e foi investido de plenos poderes numa votação da Assembleia
Nacional no dia seguinte. O seu primeiro gesto foi voar para Argel, onde em 4
de Junho anunciou delficamente a uma multidão entusiástica de soldados que
o saudavam e de europeus agradecidos que «Je vous ai compris»
(«compreendi-vos»).
O novo primeiro-ministro francês tinha, de facto, compreendido os seus
apoiantes argelinos melhor do que ele próprio pensava. Era imensamente
popular entre os europeus da Argélia, que viam nele o seu salvador. No
referendo de Setembro de 1958, De Gaulle obteve 80% dos votos em França,
mas 96% na Argélia(6). Mas uma das muitas características distintivas de De
Gaulle era a valorização firme da ordem e da legitimidade. O herói dos
Franceses Livres, o crítico implacável de Vichy, o homem que restituíra a
credibilidade ao Estado francês após Agosto de 1944, não era amigo dos
rebeldes argelinos (muitos dos quais eram antigos partidários de Pétain) e
muito menos dos jovens oficiais livres-pensadores e insurrectos que tinham a
sua parte de responsabilidade. A sua primeira tarefa, tal como a entendia, era
restaurar a autoridade do governo em França. O seu segundo objectivo,
relacionado com aquele, era resolver o conflito argelino que a minara tão
radicalmente.
Passado um ano, era evidente que Paris e Argel estavam em rota de
colisão. A opinião pública internacional era cada vez mais favorável à FLN e
à sua exigência de independência. Os Britânicos estavam a conceder a
independência às suas antigas colónias de África. Até os Belgas estavam
finalmente a deixar o Congo, em Junho de 1960 (embora de uma forma
irresponsável e com resultados catastróficos)(7). A Argélia colonial estava
rapidamente a tornar-se um anacronismo, como De Gaulle muito bem
compreendeu. Já havia criado uma Communauté Française como primeiro
passo para uma commonwealth das antigas colónias francesas. A sul do Sara,
a independência formal seria rapidamente concedida às elites, educadas à
francesa, de países que eram demasiado fracos para se manterem sozinhos e
estariam, por isso, extremamente dependentes da França durante décadas. Em
Setembro de 1959, apenas um ano após a chegada ao poder, o presidente
francês propôs a «autodeterminação» da Argélia.
Furiosos com o que consideraram uma prova de uma cedência futura, os
oficiais e os colonos da Argélia começaram a planear uma revolta em grande
escala. Houve conspirações, golpes e rumores sobre uma revolução. Em
Janeiro de 1960, foram erguidas barricadas em Argel e «ultrapatriotas»
dispararam contra guardas franceses. Todavia, a revolta entrou em colapso,
perante a intransigência de De Gaulle; e os oficiais superiores que não eram
de confiança (incluindo Massu e o seu superior, o general Maurice Challe)
foram cautelosamente transferidos para postos longe da Argélia. Os tumultos
continuaram, contudo, culminando num putsch militar, em Abril de 1961,
inspirado pela recém-criada OAS (Organisation de l’Armée Secrète), mas que
não teve êxito. Todavia, os conspiradores não conseguiram demover De
Gaulle, que foi à rádio nacional francesa denunciar o «pronunciamento militar
por um punhado de generais reformados». A vítima principal do golpe foi o
moral e a imagem internacional (o que deles restava) do Exército francês.
Uma esmagadora maioria de Franceses, muitos dos quais com filhos a prestar
serviço militar na Argélia, chegou à conclusão de que a independência desta
não era apenas inevitável, mas desejável e, para bem da França, quanto mais
depressa melhor(8).
De Gaulle, sempre realista, começou a negociar com a FLN na vila e
estância termal de Évian, no lago de Genebra. As conversações iniciais,
realizadas em Junho de 1960 e novamente em Junho e Julho de 1961,
falharam na construção de uma base comum de entendimento. Uma nova
tentativa, realizada em Março de 1962, teve mais sucesso. Após somente dez
dias de negociações, no dia 19, os dois lados chegaram a acordo. Depois de
oito anos, aproximadamente, de luta contínua, a FLN declarou o cessar-fogo.
Com base nos termos do acordo de Evian, De Gaulle convocou um referendo
para o Domingo de 1 de Julho, e o povo francês votou esmagadoramente no
sentido de se ver livre do embaraço argelino. Dois dias mais tarde a Argélia
era um Estado independente.
A tragédia argelina não terminou aqui. A OAS transformou-se numa
organização secreta experiente, dedicada inicialmente a conservar a Argélia
Francesa e, após o seu fracasso, a punir os que «traíram» a sua causa. Só em
Fevereiro de 1962, os operacionais e as bombas da OAS mataram 553
pessoas. As tentativas espectaculares de assassinar André Malraux, o ministro
da Cultura francês, e o próprio De Gaulle, não tiveram êxito, embora pelo
menos um plano para emboscar o carro do presidente quando seguia pelo
subúrbio parisiense de Petit Clamart tivesse estado próximo de resultar.
Durante alguns anos, no início da década de 60, a França ficou dominada por
uma ameaça terrorista determinada e cada vez mais desesperada. Os serviços
secretos franceses conseguiram finalmente destruir a OAS, mas a sua
memória manteve-se.
Entretanto, milhões de Argelinos foram obrigados a exilar-se em França.
Amaior parte dos pieds-noirs europeus fixou-se no Sul de França. A primeira
geração manteve por muito tempo razões de queixa contra as autoridades
francesas, por terem atraiçoado a sua causa e os terem forçado a abandonar os
seus bens e os seus empregos. Os judeus da Argélia também abandonaram o
país, alguns para Israel, mas muitos, como antes sucedera com os judeus de
Marrocos, para França, onde, com o tempo, haveriam de constituir a maior
comunidade judaica (sobretudo sefardita) da Europa Ocidental. Muitos árabes
abandonaram também a Argélia independente. Alguns saíram, prevendo o
poder dogmático e repressivo da FLN. Outros, nomeadamente os que
trabalharam com os Franceses ou serviram como auxiliares da polícia e das
autoridades francesas – os chamados harkis – fugiram da ira previsível dos
nacionalistas vitoriosos. Alguns foram apanhados e sofreram vinganças
horríveis, mas mesmo os que conseguiram alcançar a França em segurança
não tiveram o agradecimento dos Franceses e pouco reconhecimento ou
recompensa obtiveram pelos seus sacrifícios.
A França tinha pressa em esquecer o seu trauma argelino. Os acordos de
Evian de 1962 puseram fim a quase cinco décadas de guerra ou receio de
guerra na vida francesa. A população estava cansada: cansada de crises,
cansada de luta, cansada de ameaças, e de rumores, e de conspirações. A IV
República tinha durado apenas 12 anos. Sem ser querida nem lamentada,
estava cruelmente enfraquecida desde o seu início, pela inexistência de um
governo eficaz, o que era uma herança da experiência de Vichy, que tornou
relutantes os legisladores do pós-guerra em estabelecer uma presidência forte.
Foi prejudicada pelos seus sistemas parlamentar e eleitoral, que favoreciam a
multiplicidade dos partidos e davam origem a governos de coligação
instáveis. Nela deram-se mudanças sociais sem precedentes e que tiveram
repercussões políticas decisivas. Pierre Poujade, um livreiro de St. Céré, bem
no interior do Sudoeste da França, formou o primeiro partido de protesto que
tinha um só objectivo: defender os homens e mulheres «pequenos, agredidos,
espoliados, esmagados, humilhados» («des petits, des matraqués, des spoliés,
des laminés, des humiliés») que foram deixados para trás pela História. Nas
eleições nacionais de 1956, houve 52 «poujadistas» anti-sistema que
obtiveram lugares de deputado no parlamento.
A primeira república francesa do pós-guerra foi, porém, vencida sobretudo
pelas suas guerras coloniais. Tal como o ancien régime, a IV República foi
afectada pelos custos da guerra. Entre Dezembro de 1955 e Dezembro de
1957, a França perdeu dois terços das suas reservas monetárias, apesar do
crescimento constante da sua economia. O controlo de câmbios, as taxas de
câmbio múltiplas (semelhantes às que estiveram em vigor no bloco soviético
em décadas posteriores), a dívida externa, os défices orçamentais e a inflação
crónica, eram todos atribuíveis às despesas não controladas das guerras
coloniais, que não se conseguiam vencer e que decorreram entre 1947 e 1954
e novamente de 1955 em diante. Governos de todas as cores políticas
registavam divisões e caíam quando eram confrontados com estes obstáculos.
Mesmo sem um exército hostil, o regime republicano teria sido fortemente
pressionado para enfrentar tais desafios apenas uma década depois da pior
derrota militar da história do país e de uma ocupação humilhante de quatro
anos. O que surpreende é ter durado tanto tempo.
As instituições da V República francesa, a de De Gaulle, foram concebidas
precisamente para evitar os defeitos da anterior. A Assembleia e os partidos
políticos viram reduzida a sua importância e o governo foi muito fortalecido.
A Constituição deu ao presidente um controlo e uma iniciativa consideráveis
na concepção das políticas e preponderância absoluta sobre os primeiros-
ministros, que podia nomear e demitir praticamente sem restrições. Logo
depois de ter conseguido terminar o conflito argelino, De Gaulle propôs que o
Presidente da República fosse eleito, daí em diante, por sufrágio directo e
universal (em vez de o ser indirectamente pela Assembleia, como fora até
então). Esta emenda à Constituição foi devidamente aprovada num referendo
realizado em 28 de Outubro de 1962. Apoiado pelas instituições, o seu
passado e a sua personalidade – e a recordação dos Franceses de qual seria a
alternativa –, o Presidente francês tinha agora mais poder do que qualquer
outro chefe de Estado ou de Governo livremente eleito, em todo o mundo.
Nos assuntos internos, De Gaulle estava em geral satisfeito por deixar o
dia-a-dia aos seus primeiros-ministros. O programa de reformas económicas
radicais que teve início com a entrada em circulação do novo franco, em 27
de Dezembro de 1958, estava de acordo com as recomendações anteriores do
Fundo Monetário Internacional e contribuiu directamente para a estabilização
das perturbadas finanças da França. Apesar de todo o encanto que possuía
como mandarim, De Gaulle era naturalmente um radical, sem receio da
mudança – escrevera em Vers l’armée de métier (Para um Exército
Profissional), um espirituoso tratado sobre a reforma do Exército, que «nada
dura se não for incessantemente renovado». Não surpreende, por isso, que
muitas das transformações mais significativas nas infra-estruturas de
transportes, no planeamento das cidades e no investimento industrial directo
por parte do Estado tivessem sido pensadas e começado a ser executadas sob
a sua autoridade.
Todavia, como muitas outras mudanças inseridas na via de modernização
interna, nomeadamente os planos ambiciosos de Malraux para restaurar e
limpar todos os edifícios públicos históricos da França, também estas faziam
parte de um objectivo político mais amplo: a restauração da grandeur de
França. Tal como a Espanha do general Franco (com quem, para além disso,
não tinha nada em comum), De Gaulle entendia a estabilização e a
modernização económicas sobretudo como armas a utilizar na luta para
recuperar a glória nacional. A França iniciara o seu declínio constante pelo
menos desde 1871, numa trajectória sombria marcada por derrotas militares,
humilhações diplomáticas, retiradas coloniais, deterioração económica e
instabilidade interna. O objectivo de De Gaulle era acabar com o período da
decadência francesa. «Durante toda a minha vida», escreveu ele nas suas
memórias, «tive uma certa ideia da França». Agora ia torná-la real.
A arena escolhida pelo presidente francês foi a política externa, uma
ênfase ditada tanto pelo seu gosto pessoal como pela raison d’état. Há muito
tempo que De Gaulle era sensível às humilhações sucessivas da França, e
menos pelo seu inimigo germânico em 1940 do que às mãos dos seus aliados
anglo-americanos a partir de então. De Gaulle nunca se esqueceu do seu
isolamento embaraçoso como porta-voz pobre e bastante ignorado, durante o
tempo da guerra que passou em Londres. A sua percepção da realidade militar
impediu-o de manifestar a dor que partilhou com outros Franceses quando os
Britânicos afundaram a orgulhosa frota mediterrânica francesa em Mers el
Kebir, em Julho de 1940. No entanto, o simbolismo do acto motivou
ressentimentos.
De Gaulle tinha motivos particulares para ter sentimentos ambíguas em
relação a Washington, onde Franklin Roosevelt nunca o levou a sério.
Durante a guerra, os Estados Unidos mantiveram boas relações com o regime
de Vichy por mais tempo do que seria decente ou prudente. A França esteve
ausente das negociações aliadas na Segunda Guerra Mundial e embora tal
facto permitisse a De Gaulle, anos mais tarde, declinar cinicamente qualquer
responsabilidade pelo acordo de Ialta, que aprovara em privado, a memória do
facto não cicatrizou. Porém, as piores humilhações ocorreram depois da
guerra ter terminado. De facto, a França viu-se afastada de todas as decisões
importantes que foram tomadas em relação à Alemanha. A partilha de
informações entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos nunca foi alargada à
França, reduzida, por isso, a uma irrelevância que nunca antes tivera nos
cálculos militares internacionais.
Pior ainda, a França ficara totalmente dependente dos Estados Unidos
durante a sua guerra colonial na Ásia. Em Outubro de 1956, quando a Grã-
Bretanha, a França e Israel conspiraram para atacar o Egipto de Nasser, foi o
presidente Eisenhower que pressionou os Britânicos para se retirarem, perante
a fúria impotente da França. Um ano mais tarde, em Novembro de 1957, os
diplomatas franceses exasperaram-se quando armas britânicas e americanas
foram enviadas para a Tunísia, devido aos receios de que fossem parar às
mãos dos rebeldes argelinos. Pouco depois de assumir funções, em 1958, o
próprio De Gaulle foi informado sem cerimónias, pelo general Norstad, o
comandante americano da NATO, de que não estava autorizado a conhecer os
pormenores da colocação pelos Americanos de armas nucleares em solo
francês.
Este é o pano de fundo da política externa de De Gaulle depois de ter
assumido os seus plenos poderes presidenciais. Dos Americanos pouco
esperava. Das armas nucleares ao estatuto internacional privilegiado do dólar
como moeda de reserva, os Estados Unidos estavam em condições de impor
os seus interesses a todos os demais países da aliança ocidental – e poder-se-
ia esperar que o fizessem. Não era possível confiar nos Estados Unidos, mas,
pelo menos, eram previsíveis. O importante era não estar dependente de
Washington, como a política francesa estivera na Indochina e também no
Suez. A França tinha de manter a sua posição o melhor que pudesse – por
exemplo, obtendo a sua própria arma nuclear. A atitude de De Gaulle em
relação à Grã-Bretanha foi, contudo, mais complicada.
À semelhança de muitos observadores, o presidente francês pressupôs,
razoável e correctamente, que a Grã-Bretanha esforçar-se-ia por manter a sua
posição a meio caminho entre a Europa e a América, e que se fosse forçada a
escolher Londres optaria pelo seu aliado atlântico em detrimento dos seus
vizinhos europeus. Isto tornou-se muito claro em Dezembro de 1962, quando
o primeiro-ministro britânico Harold Macmillan se encontrou com o
presidente Kennedy em Nassau, nas Baamas, e aceitou um acordo mediante o
qual os Estados Unidos forneceriam aos Britânicos mísseis nucleares Polaris
instalados em submarinos (como parte de uma força militar multilateral que
colocava, de facto, as armas nucleares britânicas sob controlo americano).
De Gaulle ficou furioso. Antes de se deslocar a Nassau, Macmillan
estivera em conversações em Rambouillet; mas não dissera a De Gaulle o que
iria fazer a seguir. Nassau era, portanto, mais um acordo «anglo-americano»
cozinhado nas costas da França. A esta injúria acrescentou-se o insulto de
serem oferecidos a Paris, em condições idênticas, os mesmos mísseis Polaris,
sem que tivesse participado sequer nas negociações. Foi neste quadro que o
presidente De Gaulle anunciou, na sua conferência de imprensa de 14 de
Janeiro de 1963, o veto francês à candidatura da Grã-Bretanha para integrar a
Comunidade Económica Europeia. Se a Grã-Bretanha pretendia ser um
satélite dos Estados Unidos que fosse, mas não podia ao mesmo tempo ser
também «europeia». Entretanto, como vimos, De Gaulle virou-se para Bona e
assinou o tratado altamente simbólico, embora completamente insubstancial,
com a República Federal da Alemanha.
A ideia de que a França podia compensar a sua vulnerabilidade em relação
à pressão anglo-americana alinhando com o seu velho inimigo do outro lado
do Reno não era certamente nova. Já em Junho de 1926, o diplomata francês
Jacques Seydoux minutara uma nota confidencial para os seus superiores
políticos em que afirmava que «é preferível trabalhar com os Alemães para
dominar a Europa do que encontrarmo-nos no lado oposto ao seu […] uma
reaproximação franco-germânica permitir-nos-á sair rapidamente do domínio
anglo-americano»(9). Um pensamento semelhante esteve por detrás dos
cálculos dos diplomatas conservadores que apoiaram Pétain em 1940.
Todavia, nas circunstâncias de 1963, o tratado com a Alemanha teve poucas
consequências práticas. Os Franceses não pretendiam abandonar a aliança
ocidental e De Gaulle não tinha a menor das intenções em ser arrastado para
algum esquema alemão para alterar o acordo do pós-guerra em relação ao
Leste.
O que o tratado de 1963 e a nova associação franco-germânica de facto
confirmaram foi a viragem decisiva da França em direcção à Europa. Para De
Gaulle a lição do século XX foi que a França só pode recuperar as suas
glórias perdidas investindo no projecto europeu e adequando-o aos objectivos
franceses. A Argélia estava perdida. As colónias estavam perdidas. Os anglo-
americanos manifestavam tanta falta de compreensão como sempre. As
sucessivas derrotas e as perdas das décadas passadas deixaram a França sem
outra opção, se queria manter a esperança de recuperar alguma da sua
influência passada. Como Adenauer assegurou ao primeiro-ministro francês
Guy Mollet – no dia em que os Franceses foram forçados pela pressão
americana e a condescendência britânica a pôr termo às suas operações no
Suez – «a Europa vai ser a vossa vingança».
Com uma excepção importante, o abandono britânico do seu projecto
imperial foi muito diferente do francês. A herança colonial britânica era mais
extensa e complexa. O império britânico, tal como o soviético, manteve-se
incólume depois da guerra, se bem que desgastado. A Grã-Bretanha dependia
em muito dos produtores imperiais para obter alimentos essenciais (ao
contrário da França, que era auto-suficiente em alimentos e cujos territórios
ultramarinos, na sua esmagadora maioria tropicais, produziam mercadorias
muito diferentes); e em certos teatros de guerra – sobretudo no Norte de
África – as tropas da Commonwealth eram superiores em número aos
soldados britânicos. Os habitantes da própria Grã-Bretanha tinham, como já
vimos, uma consciência imperial muito maior do que os seus homólogos
franceses. Uma das razões por que Londres era muito maior do que Paris foi o
facto de ter florescido a partir da sua função imperial como porto, entreposto
comercial, centro manufactureiro e capital financeira. As linhas de orientação
da BBC, em 1948, aconselhavam os que tomavam a palavra nas suas
emissões a que tivessem em consideração os seus públicos ultramarinos, que
eram predominantemente não cristãos: «Referências desrespeitosas, ou
mesmo apenas depreciativas, aos budistas, hindus, muçulmanos, etc. […]
podem provocar ofensas graves e devem ser totalmente evitadas».era auto-
suficiente em alimentos e cujos territórios ultramarinos, na sua esmagadora
maioria tropicais, produziam mercadorias muito diferentes); e em certos
teatros de guerra – sobretudo no Norte de África – as tropas da
Commonwealth eram superiores em número aos soldados britânicos. Os
habitantes da própria Grã-Bretanha tinham, como já vimos, uma consciência
imperial muito maior do que os seus homólogos franceses. Uma das razões
por que Londres era muito maior do que Paris foi o facto de ter florescido a
partir da sua função imperial como porto, entreposto comercial, centro
manufactureiro e capital financeira. As linhas de orientação da BBC, em
1948, aconselhavam os que tomavam a palavra nas suas emissões a que
tivessem em consideração os seus públicos ultramarinos, que eram
predominantemente não cristãos: «Referências desrespeitosas, ou mesmo
apenas depreciativas, aos budistas, hindus, muçulmanos, etc. […] podem
provocar ofensas graves e devem ser totalmente evitadas».
Porém, depois de 1945, os Britânicos, realisticamente, não alimentavam
esperanças de manter a sua herança colonial. Os recursos do país estavam a
ser demasiado solicitados e sem possibilidades de assim continuarem, e os
custos de manter nem que fosse apenas o império indiano deixaram de ser
compensados por vantagens económicas ou estratégicas: enquanto as
exportações britânicas para o subcontinente indiano eram em 1913
aproximadamente um oitavo do total, depois da Segunda Guerra Mundial
eram apenas de 8,3%, e continuavam a baixar. Em todo o caso, era óbvio para
quase todos que a pressão no sentido da independência era agora irresistível.
A Commonwealth, criada pelo Decreto de Westminster de 1931, fora
concebida pelos seus autores para neutralizar acções extemporâneas
direccionadas para a obtenção de independência das colónias, facultando, em
seu lugar, uma estrutura institucional para a existência de territórios
autónomos e semiautónomos, que se manteriam ligados pela fidelidade e
obediência à Coroa britânica, ao mesmo tempo que os desviava do aparato
criticável da dominação imperial. Agora, pelo contrário, iria ser um clube de
antigas colónias, Estados independentes cujo estatuto de membro da
Comunidade Britânica apenas os obrigava na medida dos seus interesses e
sentimentos.
Foi concedida a independência à Índia, ao Paquistão e à Birmânia em
1947, ao Ceilão no ano seguinte. O processo não se deu sem derramamento de
sangue. Milhões de hindus e de muçulmanos foram massacrados nas limpezas
étnicas e trocas de populações que se seguiram, mas a potência colonial
retirou-se relativamente incólume. Porém, uma revolta comunista na vizinha
Malásia levou o governo britânico a declarar em Junho de 1948 o estado de
emergência, que só seria levantado 12 anos mais tarde com a derrota decisiva
dos rebeldes. Mas em geral, e apesar da concomitante retirada de milhares de
residentes e administradores coloniais da Índia e dos territórios vizinhos, a
partida da Grã-Bretanha do Sul da Ásia foi mais ordeira e menos traumática
do que se podia esperar.
No Médio Oriente, as coisas foram mais complicadas. No território da
Palestina, sob mandato da Grã-Bretanha, esta abandonou as suas
responsabilidades em 1948 em circunstâncias humilhantes, mas (uma vez
mais do ponto de vista britânico) relativamente pouco sangrentas. Foi apenas
depois de os Britânicos terem deixado o terreno, que os árabes e os judeus se
enfrentaram pela força. No Iraque, onde a Grã-Bretanha e a América tinham
interesses petrolíferos em comum, os Estados Unidos afastaram
progressivamente o Reino Unido como influência imperial dominante.
Todavia, foi no Egipto, paradoxalmente um país que nunca fora uma colónia
britânica no sentido convencional, que a Grã-Bretanha teve a experiência das
ironias e dos dramas das descolonização e sofreu uma derrota de proporções
históricas. Na crise de Suez de 1956, a Grã-Bretanha passou pela primeira vez
pelo género de humilhação internacional que se tornara tão familiar aos
Franceses, o que exemplificou e acelerou o declínio do país.
O interesse britânico pelo Egipto decorria directamente da importância da
Índia, a que se adicionara nos últimos anos a necessidade de petróleo. As
tropas britânicas ocuparam pela primeira vez o Cairo em 1882, 13 anos depois
da abertura do Canal do Suez, administrado de Paris pela Companhia do
Canal do Suez. Até à Primeira Guerra Mundial, o Egipto foi governado de
facto, se não oficialmente, por um residente britânico (que durante grande
parte deste período foi o temível Lord Cromer). De 1914 a 1922, o Egipto foi
um protectorado britânico, tornando-se mais tarde independente. As relações
entre os dois países permaneceram estáveis durante algum tempo,
formalizadas por um tratado em 1936. Porém, em Outubro de 1952, o novo
governo do Cairo, liderado por oficiais do exército que tinham derrubado o rei
Farouk, anulou o tratado. Em resposta, os Britânicos, receosos de perder o seu
acesso privilegiado a uma rota marítima essencial, reocuparam a zona do
Canal.
Passado dois anos, um dos oficiais revolucionários, Gamal Abdul Nasser,
tornou-se chefe do governo e exerceu pressão para que os soldados britânicos
abandonassem o solo egípcio. Os Britânicos estavam dispostos a um
compromisso, porque necessitavam da cooperação egípcia. O Reino Unido
dependia do petróleo barato, importado através do Canal do Suez e pago em
libras esterlinas. Se estes fornecimentos fossem interrompidos ou os Árabes
rejeitassem o pagamento em libras esterlinas, a Grã-Bretanha teria de utilizar
as suas preciosas reservas de divisas para comprar dólares e obter petróleo em
outro local. Por outro lado, como Anthony Eden, que era então ministro dos
Negócios Estrangeiros, avisara o governo britânico, em Fevereiro de 1953:
«A ocupação militar poderia ser mantida pela força, mas no caso do Egipto a
base de que tal ocupação depende tem pouca utilidade se não houver força de
trabalho que nela possa ser utilizada.»
Em face desta situação, Londres assinou um acordo em Outubro de 1954
para evacuar a base em 1956 – mas no entendimento de que a presença militar
britânica no Egipto poderia ser «reactivada» se os interesses britânicos fossem
ameaçados por ataques aos países da região ou perpetrados por estes. O
tratado estipulava que os últimos soldados britânicos deveriam ser evacuados
do Suez em 13 de Junho de 1956. Mas entretanto o coronel Nasser – que se
declarara presidente do Egipto em Novembro de 1954 – tornara-se ele mesmo
um problema. Era uma figura proeminente no novo movimento de Estados
independentes da Ásia e da África que se reuniu numa conferência em
Bandung, na Indonésia, em Abril de 1955, e condenou «o colonialismo em
todas as suas manifestações». Era uma referência carismática para os radicais
árabes de toda a região e começava a atrair o interesse soviético. Em
Setembro de 1955, o Egipto anunciou um negócio importante de armas com a
Checoslováquia.
Assim, em 1956, os Britânicos encaravam Nasser cada vez mais como
uma ameaça, quer como déspota radical que se interpusera numa via marítima
vital, quer pelo exemplo que dava. Eden e os seus conselheiros comparavam-
no habitualmente com Hitler – uma ameaça a ser enfrentada e não
apaziguada. Paris partilhava esta perspectiva, embora Nasser desagradasse
aos Franceses menos por causa da sua ameaça ao Suez ou até devido à sua
amizade crescente com o bloco soviético, do que pela sua influência nociva
sobre os súbditos da França no Norte de África. Também os Estados Unidos
não estavam muito satisfeitos com o presidente do Egipto. Num encontro com
Tito, na Jugoslávia, em 18 de Julho de 1956, Nasser, juntamente com o
primeiro-ministro da Índia Jawaharlal Nehru, lançou um comunicado
conjunto de «não-alinhamento», explicitamente dissociando o Egipto de
qualquer dependência em relação ao Ocidente. Os Americanos sentiram-se
ofendidos: apesar de terem iniciado conversações, em Novembro de 1955,
sobre o financiamento americano da grande barragem de Assuão, no Nilo, o
secretário de Estado Dulles interrompeu-as em 19 de Julho. Uma semana
mais tarde, em 26 de Julho, Nasser nacionalizou a Companhia do Canal do
Suez(10).
A reacção inicial das potências ocidentais foi uma frente unida: a Grã-
Bretanha, os Estados Unidos e a França reuniram-se numa conferência em
Londres para decidir a sua resposta. A conferência aconteceu, como estava
previsto, e em 23 de Agosto produziu um «plano» que o primeiro-ministro
australiano deveria apresentar a Nasser. Mas Nasser rejeitou-o. Os
participantes na conferência reuniram-se de novo entre 19 e 21 de Setembro,
concordando desta vez em formar uma Associação dos Utilizadores do Canal
de Suez. Entretanto, os Britânicos e os Franceses anunciaram que
apresentariam a questão do Suez à Nações Unidas.
Até esta altura os Britânicos tiveram o cuidado de alinhar a sua resposta
aos actos de Nasser pela de Washington. A Grã-Bretanha estava ainda
fortemente endividada aos Estados Unidos, pagando juros sobre empréstimos
pendentes. A pressão sobre a libra esterlina em 1955 levou mesmo Londres a
considerar um adiamento desses pagamentos. Por outro lado, Londres esteve
sempre algo suspeitosa sobre os motivos dos Americanos na região:
Washington, segundo se cria, tinha planos para suplantar a Grã-Bretanha no
Médio Oriente, o que motivava que o porta-voz americano se entregasse, por
vezes, a uma retórica anticolonialista para melhor atrair as elites locais.
Porém, as relações entre os dois países eram geralmente boas. A Coreia – e a
dinâmica da Guerra Fria – fizera com que fossem ultrapassados os
ressentimentos dos anos 40 e os Britânicos sentiram que podiam confiar na
compreensão americana pelos interesses e os compromissos internacionais da
Grã-Bretanha. Assim, ainda que Eisenhower lhes tivesse dito que se estavam
a preocupar demasiado com Nasser e a ameaça que representava, os
Britânicos tinham a certeza de que os Estados Unidos os apoiariam sempre se
as coisas chegassem ao conflito aberto.
Foi neste contexto que o primeiro-ministro britânico Anthony Eden (que
sucedera ao idoso Churchill no ano anterior) planeou negociar
definitivamente com o incómodo egípcio. Independentemente da sua posição
pública, os Britânicos e os Franceses estavam impacientes com as Nações
Unidas e os seus pesados procedimentos. Não queriam uma solução
diplomática. Ao mesmo tempo que as conferências e os planos internacionais
motivados pela conduta de Nasser estavam a ser, respectivamente,
convocadas e discutidos, o Governo britânico começou negociações secretas
com a França, planeando uma invasão militar conjunta do Egipto. Em 21 de
Outubro, estes planos foram alargados para incluir os Israelitas, que se
reuniram aos Franceses e Britânicos em negociações secretas em Sèvres. O
interesse israelita era bastante evidente: a fronteira que separava o Egipto e
Israel fora garantida pelo armistício em Fevereiro de 1949, mas ambos os
lados consideraram-na como não permanente e havia raides frequentes,
nomeadamente através da fronteira de Gaza. Os Egípcios bloquearam o Golfo
de Aqaba logo em Julho de 1951, uma restrição ao comércio de Israel e à
liberdade de movimentos que Jerusalém estava determinada a afastar. Israel
queria diminuir a influência de Nasser e garantir os seus interesses territoriais
e de segurança no Sinai e na área envolvente.
Em Sèvres, os conspiradores chegaram a acordo. Israel atacaria o Exército
egípcio no Sinai, exercendo pressão para ocupar toda a península, incluindo a
margem ocidental do Canal do Suez. Os Franceses e os Britânicos lançariam
um ultimato a exigir que ambos os lados se retirassem e depois,
aparentemente, como parte terceira que agia em nome da comunidade
internacional, a França e a Grã-Bretanha atacariam o Egipto, primeiro pelo ar
e depois por mar. Alcançariam o controlo do Canal, afirmariam que o Egipto
era incompetente para dirigir com justiça e eficiência um recurso tão
importante, reporiam o status quo ante e minariam fatalmente a posição de
Nasser. O plano foi de facto mantido secreto. Na Grã-Bretanha apenas Eden e
quatro ministros importantes estavam ao corrente do protocolo assinado em
Sèvres depois de três dias de discussões (de 21 a 24 de Outubro).
De início tudo se processou como estava previsto. Em 29 de Outubro, duas
semanas depois de o Conselho de Segurança das Nações Unidas não ter
conseguido chegar a uma solução para o Suez (graças ao veto soviético) e
apenas uma semana depois do encontro de Sèvres, as forças israelitas
atravessaram o Sinai. Simultaneamente, navios britânicos partiam para leste,
saindo da sua base em Malta. No dia seguinte, 30 de Outubro, a Grã-Bretanha
e a França vetaram uma moção das Nações Unidas que apelava a Israel que se
retirasse e divulgavam um ultimato a Israel e ao Egipto, dissimuladamente
apelando a ambos os lados para que cessassem fogo e aceitassem uma
ocupação anglo-francesa da zona do Canal. No dia seguinte, Britânicos e
Franceses atacaram os aeroportos egípcios. Passadas 48 horas, os Israelitas
completaram a sua ocupação do Sinai e de Gaza, ignorando o apelo da
Assembleia Geral das Nações Unidas para um cessar-fogo. Os Egípcios, por
seu lado, afundaram navios no Canal de Suez, na prática encerrando-o à
navegação. Dois dias mais tarde, em 5 de Novembro, chegaram ao Egipto as
primeiras tropas terrestres anglo-francesas.
Então a trama começou a deslindar-se. Em 6 de Novembro, Dwight
Eisenhower foi reeleito Presidente dos Estados Unidos. A administração em
Washington estava furiosa com o embuste anglo-francês e ressentida com as
mentiras que lhe foram contadas sobre as intenções reais dos seus aliados.
Londres e Paris tinham manifestamente ignorado tanto a letra como o espírito
da declaração tripartida de 1950 em que a Grã-Bretanha, a França e os
Estados Unidos se comprometiam a agir contra o agressor no caso de haver
qualquer conflito israelo-árabe. Os Estados Unidos começaram a exercer
pressão sobretudo sobre a Grã-Bretanha, tanto em público como em privado,
para que parasse a invasão do Egipto, chegando a ameaçar retirar o apoio à
libra inglesa. Chocado com uma oposição tão directa dos Americanos, mas
incapaz de sustentar a queda acelerada da libra esterlina, Eden hesitou durante
pouco tempo, mas depois capitulou. Em 7 de Novembro, apenas dois dias
depois dos primeiros pára-quedistas britânicos terem chegado a Port Said, as
forças britânicas e francesas cessaram fogo. No mesmo dia, as Nações Unidas
autorizaram o envio de uma força expedicionária para o Egipto, que Nasser
aceitou em 12 de Novembro, desde que a soberania egípcia não fosse
infringida. Três dias depois, a força expedicionária das Nações Unidas chegou
ao Egipto e em 4 de Dezembro deslocou-se para o Sinai.
Entretanto, os Britânicos e os Franceses anunciaram a sua própria retirada
do Suez, a qual ficou concluída a 22 de Dezembro. A Grã-Bretanha, cujas
reservas de libras esterlinas e de dólares caíram 279 milhões de dólares no
decurso da crise, recebeu a promessa de ajuda financeira americana (sob a
forma de uma linha de crédito de 500 milhões de dólares do Export-Import
Bank dos Estados Unidos). A 10 de Dezembro, o FMI anunciou ter aprovado
um empréstimo de 561,47 milhões de dólares à Grã-Bretanha e um acordo
preparado para mais 738 milhões de dólares. Israel, tendo obtido o
comprometimento público dos Estados Unidos quanto ao seu direito de
passagem no Golfo de Aqaba e nos Estreitos de Tiran, retirou as suas próprias
forças de Gaza na primeira semana de Março de 1957. A limpeza do Canal de
Suez começou uma semana após ter terminado a retirada anglo-francesa e o
Canal foi reaberto em 10 de Abril de 1957, e permaneceu nas mãos dos
Egípcios.
Todos os países retiraram a sua própria lição da débâcle do Suez. Os
Israelitas, apesar da sua dependência de material militar francês, viram muito
claramente que o seu futuro dependia de alinhar os seus interesses, tão
próximo quanto fosse possível, pelos de Washington, e ainda mais após o
anúncio da «doutrina Eisenhower» pelo presidente dos Estados Unidos, em
Janeiro de 1957, segundo a qual estes usariam as forças armadas em caso de
agressão «comunista internacional» no Médio Oriente. A posição de Nasser
no mundo dos não alinhados ficou muito fortalecida devido ao seu aparente
sucesso em enfrentar as antigas potências coloniais – tal como os Franceses
recearam, a sua influência e o seu exemplo moralizador sobre os nacionalistas
árabes e os seus apoiantes atingiram então novos patamares. O fracasso dos
Franceses no Egipto pressagiava mais problemas na Argélia.
Para os Estados Unidos, a aventura do Suez recordava-lhes as suas
próprias responsabilidades. Por outro lado, ofereceu-lhes uma oportunidade
para exercitar os músculos. Eisenhower e Dulles ficaram ressentidos com a
forma como Eden e Mollet partiram do princípio de que tinham garantido o
apoio americano. Estavam irritados com os Franceses e os Britânicos, não
apenas por terem empreendido secretamente uma expedição tão mal pensada
e executada, mas também pela altura em que o fizeram. A crise do Suez
coincidiu, quase até na hora, com a ocupação soviética da Hungria. Ao
entregarem-se a uma conspiração tão obviamente imperialista contra um
único Estado árabe, em manifesta retaliação contra o seu exercício da
soberania territorial, Londres e Paris tinham desviado a atenção mundial da
invasão de um país independente e da destruição do seu governo por parte da
União Soviética. Tinham colocado os seus interesses – anacrónicos, segundo
parecia a Washington – acima dos da aliança ocidental como um todo.
Pior ainda, deram a Moscovo um presente propagandístico sem
precedentes. A URSS não teve qualquer papel na crise do Suez. Uma nota
soviética de 5 de Novembro, ameaçando com uma acção militar contra a
França, a Grã-Bretanha e Israel, a menos que aceitassem um cessar-fogo, teve
uma importância menor no desenrolar dos acontecimentos, e Kruschev e os
seus colegas não tinham planos para porem em execução a sua ameaça.
Todavia, ao darem uma oportunidade a Moscovo para se exibir, ainda que
apenas simbolicamente, como protector da parte ofendida, a França e a Grã-
Bretanha atraíram a União Soviética para um papel em que esta haveria de
improvisar com gosto nas décadas que se seguiriam. Graças à crise do Suez,
as divisões e a retórica da Guerra Fria seriam introduzidas em profundidade
no Médio Oriente e em África.
Foi na Grã-Bretanha que se fez sentir com mais força o impacto do erro de
cálculo em relação ao Suez. Decorreriam muitos anos até que toda a extensão
da conspiração contra Nasser se tornasse do conhecimento público, embora
muitos suspeitassem dela. Mas Anthony Eden foi obrigado a demitir-se
passadas algumas semanas, humilhado pela incompetência da estratégia
militar que aprovou e pela recusa manifestamente pública dos Americanos em
apoiá-la. Embora o Partido Conservador, que estava no poder, não tenha
sofrido muito nas urnas – pois sob a liderança de Harold Macmillan, que
participou com alguma relutância no planeamento da expedição ao Suez, os
conservadores ganharam as eleições gerais de 1959 de forma confortável – o
governo britânico foi obrigado a rever radicalmente a sua política externa.
A primeira lição do Suez foi que a Grã-Bretanha não podia continuar a
manter uma presença colonial global. O país carecia de recursos militares e
económicos, como a crise do Suez mostrara de forma evidente, e, em
consequência de uma demonstração tão clara das limitações britânicas, era
provável que o país fosse agora confrontado com exigências cada vez mais
fortes para conceder a independência. Após uma pausa aproximadamente de
uma década, durante a qual o Sudão (em 1956) e a Malásia (em 1957)
cortaram os seus laços com a Grã-Bretanha, o país entrou numa fase acelerada
de descolonização, sobretudo em África. Em 1957 foi concedida a liberdade à
Costa do Ouro, constituindo o Estado independente do Gana, o primeiro de
muitos que se seguiram. Entre 1960 e 1964, outras 17 colónias tiveram
cerimónias de independência, com os dignitários britânicos a viajar pelo
mundo arreando a Union Jack e fazendo entrar em funções novos governos. A
Commonwealth, que tinha apenas oito membros em 1950, teria 21 em 1965 e
haveriam de entrar mais ainda.
Comparado com o trauma da Argélia ou as consequências catastróficas do
abandono do Congo pela Bélgica, em 1960, o desmantelamento do império
britânico foi relativamente pacífico, mas houve excepções. Na África Oriental
e sobretudo na África do Sul, a dissolução do império revelou-se mais
controversa do que fora na África Ocidental. Quando Harold Macmillan
informou os Sul-Africanos, num famoso discurso realizado na Cidade do
Cabo, em 1960, que «o vento da mudança está a soprar no continente e,
gostemos ou não, este aumento da consciência [africana] é um facto político»,
não esperava uma recepção calorosa e não a teve. Para manter o regime de
apartheid, em vigor desde 1948, os colonos brancos da África do Sul
constituíram-se em república e abandonaram a Commonwealth. Quatro anos
depois, na vizinha Rodésia do Sul, os colonos brancos proclamaram
unilateralmente a independência e a autonomia. Em ambos os países a
minoria que governava conseguiu durante mais alguns anos suprimir
impiedosamente a oposição ao seu regime.
Todavia, a África Austral era diferente. Em outros lugares – na África
Oriental, por exemplo – comunidades de colonos brancos, comparativamente
privilegiadas, aceitaram o seu destino. Tendo ficado claro que Londres não
possuía os recursos nem a vontade de impor o regime colonial contra uma
oposição maioritária – algo que não era evidente antes do início dos anos 50,
quando as forças britânicas fizeram uma guerra secreta, suja e brutal, por sua
própria iniciativa, contra a revolta dos Mau-Mau, no Quénia –, os colonos
europeus aceitaram o inevitável e retiraram-se tranquilamente.
Em 1968, o governo trabalhista de Harold Wilson retirou a conclusão
inelutável e final dos acontecimentos de Novembro de 1956 e anunciou que, a
partir de então, as forças britânicas seriam retiradas permanentemente das
suas diversas bases, portos, entrepostos, portos de abastecimento e outros
estabelecimentos da era imperial que o país mantivera a «Leste do Suez» –
nomeadamente no fabuloso porto natural de Adem, na península Arábica. O
país já não podia aspirar a ter poder e influência nos oceanos. De uma
maneira geral, este resultado foi recebido com alívio na própria Grã-Bretanha:
como Adam Smith previra, no crepúsculo do primeiro império britânico, em
1776, renunciar ao «equipamento esplêndido e pretensioso do império» era a
melhor maneira de limitar a dívida e de permitir ao país «ajustar as suas
perspectivas e os seus planos futuros à verdadeira mediocridade das suas
circunstâncias».
A segunda lição do Suez, como pareceu à esmagadora maioria do
establishment britânico, foi que o Reino Unido nunca mais deveria encontrar-
se do lado errado de uma disputa que envolvesse os Americanos. Isto não
significava que os dois países teriam de concordar sempre – no que dizia
respeito a Berlim e à Alemanha, por exemplo, Londres estava muito mais
disposta a fazer concessões a Moscovo e isso causou algum esfriamento nas
relações anglo-americnas entre 1957 e 1961. Todavia, a demonstração de que
não se podia pensar que Washington apoiaria os seus amigos em todas as
circunstâncias levou Harold Macmillan a retirar uma conclusão que era
exactamente oposta àquela que o seu contemporâneo De Gaulle retirou.
Quaisquer que tenham sido as hesitações dos Estados Unidos, por mais
ambivalentes que os governos britânicos se pudessem ter sentido em relação a
algumas acções dos Americanos, permaneceriam leais às posições deles daí
em diante. Apenas dessa maneira podiam ter esperança de influenciar as
escolhas americanas e garantir o apoio americano às preocupações britânicas
quando tal fosse importante. Este realinhamento estratégico teria implicações
importantes para a Grã-Bretanha e para a Europa.
As consequências permanentes da crise do Suez fizeram-se sentir na
sociedade britânica. A Grã-Bretanha, e sobretudo a Inglaterra, estava
nitidamente optimista no começo dos anos 50. A eleição de um governo
conservador em 1951 e as primeiras indicações de um crescimento económico
súbito dissiparam o pessimismo igualitário dos primeiros anos do pós-guerra.
Nos anos iniciais do reinado da nova rainha, os Ingleses gozavam de um
ambiente de satisfeito bem-estar. Os Ingleses foram os primeiros a conquistar
o Evereste (1953) – com a ajuda de um guia apropriadamente colonial – e a
correr uma milha em menos de quatro minutos (em 1954). Para além disso,
foram os Ingleses, como se recordava frequentemente ao país, que, entre
outras coisas, dividiram o átomo, inventaram o radar, descobriram a
penicilina e conceberam a turbina a jacto.
O tom destes anos, considerado entusiasticamente, com algum exagero,
como uma «nova época isabelina», é bem captado pelo seu cinema. Os filmes
britânicos mais populares da primeira metade dos anos 50 – comédias como
Genevieve (1953) ou Doctor in the House (1954) – representavam um Sul de
Inglaterra bastante assertivo, jovem, rico e autoconfiante. Os cenários e as
personagens já não eram cinzentos nem oprimidos, mas em outros aspectos
continuavam a ser firmemente tradicionais: todos são brilhantes, jovens,
instruídos, de classe média, bem falantes, respeitosos e deferentes. Esta era
uma Inglaterra em que as debutantes ainda eram recebidas na corte (um ritual
anacrónico e absurdo, que a rainha finalmente abandonou em 1958), um em
cada cinco parlamentares conservadores estudara em Eton, e a percentagem
de estudantes universitários oriundos da classe trabalhadora não era superior à
que fora em 1925.
Para além de comédias sociais favoráveis, o cinema inglês destes anos
floresceu também com uma série constante de filmes de guerra: The Wooden
Horse (1952), The Cruel Sea (1953), The Dam Busters (1954), The
Cockleshell Heroes (1955), The Battle of the River Plate (1956). Sendo todos
mais ou menos fielmente baseados em episódios de heroísmo britânico da
Segunda Guerra Mundial (com particular ênfase na guerra naval), estes filmes
eram uma recordação reconfortante das razões que os Britânicos tinham para
se sentirem orgulhosos de si mesmos – e auto-suficientes. Sem glorificar os
combates, cultivavam o mito da guerra da Grã-Bretanha, prestando uma
atenção especial à importância da camaradagem que ultrapassava as divisões
de classe ou de profissão. Quando as tensões sociais ou as distinções de classe
afloravam, o tom era habitualmente de sabedoria popular e de cepticismo, e
não de conflito ou ódio. Apenas em Lavender Hill Mob (1951), de Charles
Crichton, a mais incisiva das comédias dos Estúdios Ealing, surge algo mais
do que um mero comentário social, mas aqui estamos perante uma variante
inglesa do poujadismo: o ressentimento e os sonhos dos homens comuns
resignados.
Após 1956, contudo, o tom começa a tornar-se nitidamente mais sombrio.
Filmes de guerra como The Bridge on the River Kwai (1957) e Dunkirk
(1958) sugerem muitas questões e dúvidas, como se a herança confiante de
1940 estivesse a começar a desaparecer. Em 1960, Sink the Bismarck, um
filme de guerra solidamente construído segundo o molde antigo, parece
curiosamente anacrónico e contrário ao espírito então prevalecente. A nova
atitude foi explicitada pela peça inovadora de John Osborne, Look Back in
Anger, levada à cena pela primeira vez em 1956, em Londres, e transformada
num filme muito fiel dois anos depois. Neste drama de frustração e desilusão,
o protagonista, Jimmy Porter, sente-se sufocar numa sociedade e num
casamento que não pode abandonar nem modificar. Maltrata a mulher, Alison,
por causa da origem burguesa desta. A mulher, por seu lado, está encurralada
entre o seu irado marido, que pertence à classe trabalhadora, e o seu velho pai
ex-colonialista, confundido e ferido por um mundo que já não compreende.
Como Alison o adverte: «Está magoado porque tudo mudou. Jimmy está
magoado porque tudo se mantém igual. Nenhum de vós é capaz de enfrentar
as coisas».
Este diagnóstico do estado de espírito instável da Grã-Bretanha por altura
da crise do Suez não era talvez muito subtil, mas era verdadeiro. Quando
Look Back In Anger chegou aos cinemas, estreou uma grande quantidade de
filmes que transpareciam um estado de espírito similar, sendo muitos deles
extraídos de romances ou de peças de teatro escritos na segunda metade dos
anos 50: Room at the Top (1959), Saturday Night and Sunday Morning
(1960), The Loneliness of the Long-Distance Runner (1962), A Kind of Loving
(1962), This Sporting Life (1963). Os filmes do início dos anos 50 tiveram
todos por protagonistas, ou actores bem apresentados de classe média com
pronúncia da BBC – Kenneth More, Dirk Bogarde, John Gregson, Rex
Harrison, Geoffrey Keene –, ou «tipos» londrinos amáveis, habitualmente
retratados por actores de carácter judeu (Sidney James, Alfie Bass, Sidney
Tafler e Peter Sellers). Os filmes posteriores, chamados «dramas de lava-
loiça» pela forma realisticamente desagradável como apresentavam a vida
quotidiana, eram protagonizados por um conjunto de novos actores em que se
incluíam Tom Courtenay, Albert Finney, Richard Harris e Alan Bates.
Habitualmente localizavam-se em comunidades da classe trabalhadora do
Norte do país, com sotaques e linguagem a condizer. Representavam a
Inglaterra como um mundo dividido, cheio de azedume, cínico, desconfiado e
endurecido, por causa das suas ilusões destruídas. A única coisa, ou quase,
que o cinema do início dos anos 50 e o do início dos anos 60 tinham em
comum era o papel secundário das mulheres e todos os personagens serem
brancos.
Se as ilusões do império morreram no Suez, a confiança insular da
Inglaterra fora abalada já há algum tempo. O desastre de 1956 apenas
acelerou o colapso. O simbolismo de a selecção inglesa de críquete ter sido
derrotada pela primeira vez em 1950 por uma equipa das Índias Ocidentais (e
no «solo sagrado» da sede do jogo, em Lord’s Cricket Ground, em Londres)
foi reforçado três anos depois, em 1953, quando a selecção inglesa de futebol
foi humilhada no seu estádio nacional por uma modesta equipa da Hungria, e
pelo resultado inédito de 6 a 3. Nos dois jogos internacionais que os Ingleses
espalharam por todo o mundo, a Inglaterra já não era a melhor equipa.
Estes dois sinais não políticos de declínio nacional tiveram um impacto
ainda maior porque a Grã-Bretanha era nesta época uma sociedade largamente
a política. O Partido Trabalhista britânico, ao contrário do que se passara na
altura da crise do Suez, foi incapaz de tirar vantagem do fracasso de Eden,
porque o eleitorado já não interpretava as suas experiências com uma grelha
essencialmente político-partidária. Tal como no resto da Europa, os Britânicos
estavam cada vez mais interessados em consumir e ser entretidos. O seu
interesse pela religião estava a desaparecer e com ele também o seu gosto
pelas mobilizações colectivas de todos os géneros. Harold Macmillan, um
político conservador com tendências liberais – um oportunista político de
classe média disfarçado de cavalheiro rural eduardiano –, era verdadeiramente
o líder adequado para este momento de transição, vendendo a retirada
colonial no estrangeiro e a tranquilidade próspera no país. Os eleitores mais
velhos estavam bastante satisfeitos com este resultado, só os mais novos
estavam cada vez mais desencantados.
O abandono do império contribuiu directamente para uma ansiedade
crescente dos Britânicos em relação à perda de orientação nacional. Acabada
a glória imperial, a Commonwealth servia em grande parte como fonte de
alimentos da Grã-Bretanha. Graças às preferências da Commonwealth (isto é,
às tarifas que favoreciam as importações provenientes dos Estados-membros),
os produtos alimentares com origem nesses países eram baratos, constituindo
em valor quase um terço de todas as importações do Reino Unido no início
dos anos 60. Todavia, as exportações para os países da Commonwealth
representavam uma percentagem continuamente decrescente das exportações
nacionais, que se dirigiam cada vez mais para a Europa (em 1965, o comércio
da Grã-Bretanha com a Europa superou pela primeira vez o que realizava com
a Commonwealth). Depois do colapso do Suez, o Canadá, a Austrália, a
África do Sul e a Índia tinham percebido qual a exacta medida do declínio
britânico e estavam a reorientar o seu comércio e as suas políticas de acordo
com isso, dirigindo-se para os Estados Unidos, a Ásia e para o que podia ser
considerado o «terceiro» mundo.
Quanto à própria Grã-Bretanha, a América podia ser o aliado
indispensável, mas dificilmente poderia dar aos Britânicos um renovado
objectivo e muito menos uma identidade nacional moderna. Pelo contrário, a
própria dependência da Grã-Bretanha em relação à América exemplificava a
fraqueza e o isolamento essencial da nação. Por isso, a sua cultura e a sua
educação apontavam-lhes a direcção da Europa continental, apesar desta não
estar nas suas tendências. Estava a tornar-se óbvio para muitos políticos
britânicos como Macmillan, mas também para não políticos, que, de uma
forma ou de outra, o futuro do seu país estava do outro lado do Canal. Onde,
senão na Europa, poderia agora a Grã-Bretanha procurar recuperar a sua
posição internacional?
O «projecto europeu», na medida em que alguma vez existiu fora das
cabeças de alguns idealistas, tinha bloqueado em meados dos anos 50. A
Assembleia Nacional francesa vetara a proposta de um Exército europeu e
com ela todas as conversações para uma maior coordenação europeia. Foram
alcançados diversos acordos regionais que seguiram o modelo do Benelux,
designadamente o «Mercado Comum do Trabalho Nórdico», na Escandinávia,
em 1954, mas na agenda não havia nada mais que fosse ambicioso. Os
defensores da cooperação europeia podiam apenas referir a Comunidade
Europeia da Energia Atómica, anunciada na Primavera de 1955, mas esta, tal
como a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, era uma iniciativa
francesa e o seu sucesso residia, sintomaticamente, no seu mandato restrito e
sobretudo técnico. Se os Britânicos estavam ainda tão cépticos como sempre
sobre as perspectivas da unidade europeia, a sua posição não era totalmente
irrazoável.
O impulso para um novo início veio, como era apropriado, dos países do
Benelux, que tinham mais experiência de uniões transfronteiriças e menos a
perder com identidades nacionais atenuadas. Era agora claro para os estadistas
europeus mais importantes – nomeadamente Paul-Henri Spaak, ministro dos
Negócios Estrangeiros da Bélgica – que a integração política ou militar não
eram exequíveis, pelo menos por enquanto. Em todo o caso, em meados dos
anos 50, as preocupações dos europeus tinham-se afastado nitidamente das
questões militares da última década. A ênfase, como parecia claro, devia ser
posta na integração económica europeia, um domínio em que a satisfação dos
interesses egoístas nacionais e a cooperação poderiam ser realizadas de forma
concertada sem ofender as sensibilidades tradicionais. Spaak e o seu
homólogo holandês convocaram uma reunião para Messina, em Junho de
1955, para considerar esta estratégia.
Os participantes na conferência de Messina foram os seis países da CECA
e um «observador» britânico (um subalterno). Spaak e os seus colaboradores
apresentaram várias sugestões para uma união aduaneira, acordos de
comércio e outros projectos bastante convencionais de coordenação
transnacional. Todas as sugestões foram cuidadosamente apresentadas para
evitar ofender as sensibilidades da Grã-Bretanha ou da França. Os Franceses
foram prudentemente entusiastas, os Britânicos manifestamente cépticos.
Depois de Messina, as negociações continuaram num comité internacional de
planeamento, presidido pelo próprio Spaak, com a tarefa de apresentar
recomendações sólidas para que se alcançasse uma economia europeia mais
integrada, um «mercado comum». Mas em Novembro de 1955 os Britânicos
abandonaram a ideia, alarmados com a perspectiva de uma Europa pré-federal
do tipo de que sempre desconfiaram.
Os Franceses, porém, decidiram aceitar o salto em frente. Quando a
Comissão Spaak apresentou o seu relatório, em Março de 1956, com uma
recomendação formal a favor de um mercado comum, Paris concordou. Os
observadores britânicos permaneceram cépticos. Estavam certamente cientes
dos riscos de ficarem de fora – como uma comissão governamental inglesa
relatou confidencialmente apenas algumas semanas antes de as
recomendações de Spaak serem tornadas públicas, «se as potências de
Messina conseguissem a integração económica sem o Reino Unido isso
significaria a hegemonia alemã na Europa»(11). Apesar disso, das insistências
do anglófilo Spaak e da fragilidade da zona internacional da libra esterlina,
como ficou evidenciado alguns meses mais tarde com a questão do Suez,
Londres não conseguiu decidir-se se se associava aos «europeus». Quando o
tratado que criava uma Comunidade Económica Europeia (e a Euratom, a
comunidade europeia da energia atómica) foi assinado em Roma em 25 de
Março de 1957 e se tornou efectivo no dia 1 de Janeiro de 1958, a nova CEE
– com sede em Bruxelas – compreendia os mesmos seis países que formaram
a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço sete anos antes.
É importante não sobrestimar a importância do Tratado de Roma. Em
grande parte, representava uma declaração de boas intenções para o futuro. Os
seus signatários fixaram um calendário de reduções e de harmonizações
tarifárias, apresentaram a perspectiva de eventuais alinhamentos das suas
moedas e concordaram em trabalhar para a livre movimentação de bens,
moeda e trabalhadores. Grande parte do texto constituía um quadro para
procedimentos institucionais concebidos para estabelecer e impor
regulamentos futuros. A única inovação verdadeiramente significativa – a
criação, ao abrigo do artigo 177.o, do Tribunal de Justiça Europeu, ao qual os
tribunais nacionais submeteriam os seus casos para adjudicação final –
revelar-se-ia muitíssimo importante em décadas futuras, mas passou muito
desapercebida na altura.
A CEE estava assente na fraqueza, não na força. Como o relatório de
Spaak de 1956 acentuava, «a Europa, que já teve no passado o monopólio das
indústrias transformadoras e obteve recursos importantes das suas possessões
ultramarinas, vê hoje a sua posição externa enfraquecida, a sua influência a
declinar e a sua capacidade de progredir perdida por causa das suas divisões».
Foi precisamente por os Britânicos não terem entendido – ainda – a sua
situação a esta luz que declinaram a integração na CEE. A ideia de que o
mercado comum europeu fazia parte de uma estratégia calculada para desafiar
o poder crescente dos Estados Unidos – uma ideia que teria alguma aceitação
nos círculos políticos de Washington em décadas posteriores – é, portanto,
bastante absurda: a recém-formada CEE dependia totalmente da garantia da
segurança americana, sem a qual os seus membros nunca poderiam alimentar
a ideia da integração económica excluindo dela qualquer preocupação com a
defesa comum.
Mesmo nos Estados-membros, nem todos estavam satisfeitos com as
novas propostas. Em França, muitos deputados conservadores (incluindo os
gaullistas) votaram contra a ratificação do Tratado de Roma com fundamentos
«nacionais», ao passo que alguns socialistas e radicais de esquerda (incluindo
Pierre Mendès-France) se opuseram à formação de uma «pequena Europa»
sem a presença tranquilizadora da Grã-Bretanha. Na Alemanha, o próprio
ministro da Economia de Adenauer, o entusiasta do comércio livre, Ludwig
Erhard, continuou crítico de uma «união aduaneira» neomercantilista que
poderia prejudicar os laços da Alemanha com a Grã-Bretanha, restringir os
fluxos comerciais e distorcer os preços. Na perspectiva de Erhard, a CEE era
um «absurdo macroeconómico». Como um académico observou com
perspicácia, as coisas poderiam bem ter-se passado de modo diferente: «Se
Erhard tivesse governado a Alemanha, o resultado provável teria sido uma
Associação de Comércio Livre Anglo-Germânica, sem componente agrícola,
e as consequências da exclusão económica teriam forçado, por fim, a França a
juntar-se-lhes»(12).
Mas assim não aconteceu, e a forma final da CEE tinha uma certa lógica.
No decurso dos anos 50, os países da Europa Ocidental continental
aumentaram cada vez mais as suas trocas comerciais e cada um fê-lo
sobretudo com a Alemanha Ocidental, de cujos mercados e produtos a
recuperação económica europeia passou assim a depender cada vez mais. Para
além disso, todos os Estados europeus do pós-guerra estavam agora
profundamente envolvidos em questões económicas: planeamento,
regulamentação, metas de crescimento e subsídios de todos os géneros. Mas a
promoção das exportações, o redireccionamento dos recursos das velhas
indústrias para as novas, o encorajamento de sectores favorecidos como a
agricultura ou os transportes: tudo isto requeria cooperação transfronteiriça.
Nenhuma das economias da Europa Ocidental era auto-suficiente.
Esta tendência para a coordenação mutuamente vantajosa era pois
motivada pelo interesse nacional egoísta, não pelos objectivos da Autoridade
para o Carvão e o Aço, concebida por Schuman, que eram irrelevantes para a
definição da política económica destes anos. A preocupação com a protecção
e a satisfação dos interesses nacionais, que levara os Estados da Europa a
virar-se para si mesmos antes de 1939, estava agora a aproximá-los a todos. A
remoção dos obstáculos e as lições do passado recente eram talvez os factores
mais importantes na promoção desta mudança. Os Holandeses, por exemplo,
não estavam satisfeitos, em geral, com a perspectiva de tarifas exteriores altas
da CEE irem inflacionar os preços internos e, tal como os seus vizinhos
belgas, preocupavam-se com a ausência dos Britânicos. Porém, não podiam
arriscar-se a ficar separados dos seus principais parceiros comerciais.
Os interesses da Alemanha eram diversos. Como principal nação
exportadora da Europa, a Alemanha tinha um interesse crescente pelo
comércio livre no seio da Europa Ocidental, tanto mais que os industriais
alemães tinham perdido os seus importantes mercados do Leste da Europa e
não tinham territórios coloniais do passado que pudessem explorar. Todavia,
uma união aduaneira europeia, protegida por um sistema de tarifas externas e
confinada a seis países não era necessariamente um objectivo político racional
da Alemanha, como Erhard compreendeu. Tal como os Britânicos, ele e
muitos outros Alemães preferiam uma área de comércio livre na Europa mais
ampla e menos rigidamente definida. No entanto, como princípio de política
externa, Adenauer nunca romperia com a França, por divergentes que
pudessem ser os seus interesses. Para além disso, havia a questão da
agricultura.
Na primeira metade do século XX, um número excessivo de camponeses
ineficientes europeus produzia apenas os alimentos suficientes para um
mercado que não lhes podia pagar o necessário para continuarem a viver da
terra. O resultado desta situação foi a pobreza, a emigração e o fascismo rural.
Nos anos de fome que se seguiram imediatamente à Segunda Guerra Mundial,
foram implementados todos os géneros de programas para encorajar e apoiar
os empresários agrícolas com terras aráveis a produzir mais. Para reduzir a
dependência das importações alimentares do Canadá e dos Estados Unidos,
pagas em dólares, foi colocada maior ênfase no aumento da produção do que
na eficiência. Os agricultores não precisavam de recear o regresso da
deterioração dos preços que se verificara antes da guerra. Até 1951, a
produção agrícola da Europa não atingira os níveis anteriores à guerra, e
devido à protecção e à sustentação dos preços por parte do governo, o
rendimento dos agricultores estava, em qualquer caso, efectivamente
garantido. Podíamos dizer que os anos 40 foram, portanto, uma idade de ouro
para os empresários agrícolas da Europa. No decurso dos anos 50, a produção
continuou a aumentar, apesar do excesso de mão-de-obra rural ter sido
deslocado para novos empregos nas cidades: os camponeses da Europa
estavam a transformar-se, cada vez mais, em empresários agrícolas eficientes.
Todavia, continuavam a beneficiar do que se podia considerar um sistema
permanente de protecção pública.
O paradoxo era particularmente flagrante em França. Em 1950, o país era
ainda um importador líquido de produtos alimentares, mas nos anos seguintes
a produção agrícola cresceu muito. A produção francesa de manteiga
aumentou 76% no período de 1949 a 1956, e a de queijo 116% entre 1949 e
1957. A produção de açúcar de beterraba subiu 201% entre 1950 e 1957. As
colheitas de cevada e de milho cresceram numa percentagem espantosa:
348% e 815%, respectivamente, no mesmo período. A França era agora não
apenas auto-suficiente, mas tinha excedentes alimentares. O terceiro plano de
modernização, que cobria os anos de 1957 a 1961, ainda favorecia mais o
investimento em carne, leite, queijo, açúcar e trigo (os produtos de primeira
necessidade do Norte da França e da bacia parisiense, onde era maior a
influência das poderosas associações de agricultores). Entretanto, o governo
francês, sempre consciente da importância simbólica da terra para a vida
pública francesa – e da importância efectiva do voto rural –, procurou manter
os apoios aos preços e encontrar mercados de exportação para todos estes
alimentos.
Este assunto teve um papel essencial na decisão francesa de integrar a
CEE. O principal interesse económico da França num mercado comum
europeu era o acesso preferencial aos mercados externos – sobretudo alemães
(ou britânicos) – para carne, lacticínios e produtos de cereais. Este acesso, a
promessa de apoios continuados aos preços e o compromisso dos seus
parceiros europeus de comprar a produção agrícola francesa excedentária foi
o que convenceu a Assembleia Nacional a votar favoravelmente o Tratado de
Roma. Em contrapartida da aceitação de abrir o seu mercado interno às
exportações não agrícolas alemãs, os Franceses na prática transferiram o seu
sistema interno de garantias à agricultura para as costas dos seus colegas
membros da CEE, aliviando assim Paris de um fardo intoleravelmente caro (e
politicamente explosivo) a longo prazo.
Este é o pano de fundo da famosa Política Agrícola Comum (PAC) da
CEE, inaugurada em 1962 e formalizada em 1970, após uma década de
negociações. À medida que os preços europeus fixados subiram, toda a
produção alimentar da Europa se tornou demasiado cara para competir no
mercado mundial. Os eficientes consórcios de lacticínios holandeses não
estavam em melhores circunstâncias do que as ineficientes explorações
agrícolas alemãs, porque todos estavam agora sujeitos a uma estrutura de
preços comum. Nos anos 60, a CEE dedicou as suas energias a planear um
conjunto de práticas e de regulamentos para lidar com este problema. Seriam
estabelecidos preços indicativos para todos os artigos alimentares. As tarifas
exteriores da CEE fariam depois subir o custo dos produtos agrícolas
importados até esses níveis, que eram habitualmente fixados aos preços mais
elevados dos produtores menos eficientes da comunidade.
A partir de então, em cada ano, a CEE compraria os excedentes das
produções agrícolas de todos os seus membros a preços 5 a 7% mais baixos
do que os «indicativos». Depois, eliminaria os excedentes, subsidiando a sua
revenda fora do Mercado Comum abaixo dos preços da comunidade. Este
processo manifestamente ineficiente foi o resultado de negociações «de feira»
já muito fora de moda. As pequenas explorações agrícolas alemãs precisavam
de elevados subsídios para continuar a sua actividade. Os agricultores
franceses e italianos não tinham preços muito elevados, mas ninguém se deu
ao trabalho de os avisar para limitarem a produção e, muito menos, lhes
exigiu que seguissem os preços do mercado mundial para os seus produtos.
Em vez disso, cada país deu aos seus agricultores o que eles pretendiam,
repercutindo os custos, em parte, nos consumidores urbanos, mas sobretudo
nos contribuintes.
A PAC não deixava de ter antecedentes. Na Europa, as tarifas para os
cereais, no final do século XIX, dirigidas contra as importações baratas
oriundas da América do Norte, tinham algumas semelhanças. Houve diversas
tentativas durante a Grande Depressão dos anos 30 para apoiar os preços
agrícolas, adquirindo excedentes ou pagando aos agricultores para produzirem
menos. Num acordo de 1938 entre a Alemanha e a França, que nunca foi
posto em prática, a primeira terá prometido ficar com as exportações agrícolas
da segunda, em contrapartida da abertura do mercado interno francês aos
produtos químicos e de engenharia alemães (uma exposição realizada em
Paris durante a ocupação alemã e dedicada a «la France européenne»
realçava a riqueza agrária do país e os benefícios que retiraria da participação
na Nova Europa de Hitler).
A agricultura moderna nunca esteve livre de protecções, de um tipo ou de
outro, politicamente motivadas. Mesmo os Estados Unidos, cujas tarifas
externas baixaram 90% entre 1947 e 1967, tiveram o cuidado de excluir a
agricultura da sua liberalização do comércio, e os produtos agrícolas foram
desde muito cedo excluídos das deliberações do GATT. A CEE, portanto, não
era de forma alguma um caso único. Apesar de tudo, as consequências
perversas da Política Agrícola Comum foram talvez diferentes. Como os
produtores europeus se tornaram cada vez mais eficientes (os seus
rendimentos elevados garantidos permitiam-lhes investir nos melhores
equipamentos e adubos), a produção excedeu largamente a procura, sobretudo
nos produtos que a PAC favorecia. Esta última estava nitidamente inclinada
para os cereais e a criação de gado, em que grandes agro-empresas francesas
tendiam a especializar-se, enquanto pouco fazia pelos agricultores italianos do
Sul da Itália que se dedicavam à fruta, à olivicultura e aos legumes.
Como os preços mundiais dos produtos alimentares caíram no final dos
anos 60, os preços da CEE estavam rigidamente fixos em níveis
absurdamente elevados. Passados alguns anos da entrada em vigor da Política
Agrícola Comum, o milho e a carne de vaca europeias eram vendidos a
preços que eram o dobro dos mundiais, e a manteiga, quatro vezes superiores.
Em 1970, a PAC empregava quatro dos cinco administradores do Mercado
Comum e a agricultura custava 70% do orçamento, o que era uma situação
estranha de verificar em alguns dos Estados mais industrializados do mundo.
Isoladamente, nenhum país poderia manter um tal conjunto de políticas
absurdas, mas ao transferir os encargos para a Comunidade no seu todo e ao
relacioná-los com os objectivos mais latos do Mercado Comum, cada governo
nacional pretendia obter ganhos, pelo menos a curto prazo. Só os pobres
urbanos (e os agricultores que não pertenciam à CEE) perdiam com a PAC,
mas os primeiros eram habitualmente compensados de outras formas.
Obviamente, nesta fase, a maioria dos países não pertencia à CEE. Um
ano depois de o Mercado Comum ter sido criado, os Britânicos – que
continuavam a tentar impedir o aparecimento de um bloco europeu
supranacional – sugeriram que a CEE fosse alargada para uma zona de
comércio livre industrial que incluísse os Estados-membros da CEE, outros
países europeus e a Comunidade Britânica. De Gaulle, como seria de prever,
rejeitou a ideia. Em resposta, e por iniciativa do Reino Unido, alguns países
reuniram-se então em Estocolmo, em Novembro de 1959, e formaram a
Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA). Os Estados-membros –
Áustria, Suíça, Dinamarca, Noruega, Suécia, Portugal e Reino Unido, a que se
juntaram mais tarde Irlanda, Islândia e Finlândia – eram, em grande parte,
defensores prósperos, periféricos e entusiastas do comércio livre. A sua
agricultura, com a excepção de Portugal, era de pequena dimensão, mas
altamente eficiente e orientada para o mercado mundial.
Por estas razões e devido às suas relações estreitas com Londres
(sobretudo no caso dos países escandinavos), tinham pouco interesse para a
CEE. Mas a EFTA era (e continua a ser) uma organização minimalista, uma
reacção aos defeitos de Bruxelas e não uma verdadeira alternativa. Foi sempre
uma zona de comércio livre de produtos manufacturados. Para os produtos
agrícolas, tiveram liberdade de fixar os seus próprios preços. Alguns dos
Estados-membros mais pequenos, como a Áustria, a Suíça ou a Suécia,
puderam prosperar com nichos de mercado para os seus bens industriais de
elevado valor acrescentado e as suas riquezas turísticas. Outros, como a
Dinamarca, dependiam fortemente da Grã-Bretanha como mercado para a sua
carne e lacticínios.
Mas a própria Grã-Bretanha necessitava de um mercado de exportação de
produtos industriais muito mais amplo do que os seus aliados escandinavos ou
alpinos podiam proporcionar. Reconhecendo o inevitável – embora esperando
ainda influenciar a formulação da política da CEE –, o governo de Harold
Macmillan pediu formalmente a integração na Comunidade Económica
Europeia, em Julho de 1961, seis anos após Londres se ter afastado com
desdém das conversações de Messina. A Irlanda e a Dinamarca, com as suas
economias ligadas umbilicalmente à do Reino Unido, também pediram a sua
entrada. Não se sabe se a candidatura britânica teria êxito ou não – muitos dos
Estados-membros da CEE ainda queriam que a Grã-Bretanha entrasse, mas
também tinham razões para estar cépticos quanto ao empenhamento de
Londres com os objectivos essenciais do Tratado de Roma. No entanto, a
questão permanecerá em aberto – De Gaulle, como vimos, vetou
publicamente a entrada da Grã-Bretanha em Janeiro de 1963. Uma indicação
da velocidade a que os acontecimentos se desenrolaram desde a crise do Suez
é que a rejeição da entrada da Grã-Bretanha na Comunidade Europeia, que
fora até então desvalorizada, tenha motivado o seguinte registo desesperado
no diário privado de Macmillan: «É o fim […] de tudo aquilo para que
trabalhei durante muitos anos. Todas as nossas políticas internas e externas se
desfizeram».
Os Britânicos não tinham outro recurso senão tentar de novo, o que
fizeram em Maio de 1967, mas foram vetados uma vez mais, seis meses mais
tarde, por um calmo e vingativo presidente francês. Finalmente, em 1970,
após a demissão e a posterior morte de De Gaulle, as negociações entre a Grã-
Bretanha e a Europa foram encetadas pela terceira vez, culminando agora
numa candidatura bem sucedida. (O que se ficou parcialmente a dever ao
facto de o comércio britânico com a Commonwealth ter baixado tanto até
àquele momento, que Londres já não exerceu pressão para que fosse
ultrapassada a relutância de Bruxelas em garantir preferências comerciais a
nações que não pertencessem à comunidade europeia.) Todavia, quando em
1973 a Grã-Bretanha, a Dinamarca e a Irlanda entraram finalmente na
Comunidade Europeia, esta já tomara forma e os três países já não estavam
em condições de a influenciar como os líderes britânicos ingenuamente
haviam esperado.
A CEE era um condomínio franco-germânico em que Bona pagava as
finanças da comunidade e Paris ditava as suas políticas. O desejo da
Alemanha Ocidental em fazer parte da comunidade europeia foi assim
satisfeito por um preço elevado, mas durante muitas décadas Adenauer e os
seus sucessores pagá-lo-iam sem se queixar, estabelecendo uma forte aliança
com os Franceses, o que surpreendeu os Britânicos. Os Franceses, entretanto,
«europeizaram» os seus subsídios e transferências agrícolas sem pagar o
preço de uma perda de soberania. Esta última preocupação sempre fora a
primeira prioridade da estratégia diplomática francesa. Já em Messina, em
1955, o ministro dos Negócios Estrangeiros francês Antoine Pinay tornara
absolutamente claros os objectivos da França: as instituições administrativas
supranacionais eram bem-vindas, mas apenas se ficassem subordinadas a
decisões tomadas por unanimidade ao nível intergovernamental.
Foi com este objectivo em mente que De Gaulle franziu o sobrolho aos
outros Estados-membros da Comunidade Económica Europeia durante a
primeira década. Ao abrigo do Tratado de Roma original todas as decisões
importantes (excepto a admissão de novos membros) teriam de ser tomadas
por voto maioritário no conselho de ministros intergovernamental. Todavia,
ao retirar-se das conversações intergovernamentais em Junho de 1965 até que
os outros líderes adaptassem os seus financiamentos agrícolas às exigências
francesas, o presidente francês perturbou os trabalhos da Comunidade. Após
terem mantido a sua posição durante seis meses, os outros países cederam.
Em Janeiro de 1966, concederam relutantemente que no futuro o conselho de
ministros já não poderia aprovar medidas por maioria. Foi o primeiro
incumprimento do tratado original e uma notável demonstração de áspero
exercício de poder por parte dos Franceses.
Não obstante, os primeiros resultados da CEE foram notáveis. As tarifas
aduaneiras intracomunitárias foram abolidas em 1968, muito antes do que
estava planeado. O comércio entre os seis Estados-membros quadruplicou no
mesmo período. A força de trabalho agrícola baixou continuamente cerca de
4% ao ano, ao passo que a produção agrícola por trabalhador cresceu nos seis
países a uma taxa anual de 8,1%. No final da sua primeira década, e apesar da
sombra de De Gaulle, a Comunidade Económica Europeia adquirira uma aura
de inevitabilidade, razão por que outros países europeus começaram a formar
fila para se juntarem a ela.
Mas também havia problemas. Uma união aduaneira egoísta, mas muito
dispendiosa, dirigida a partir de Bruxelas por uma administração centralizada
e um executivo não eleito não era um mero ganho para a Europa ou para o
resto do mundo. Na verdade, a rede de acordos de protecção e de subsídios
indirectos introduzida por pressão da França era totalmente alheia ao espírito
e às instituições do sistema de comércio internacional que surgiu nas décadas
seguintes a Breton Woods. Na medida (considerável) em que o sistema de
governo da CEE tinha como modelo a França, a sua herança napoleónica não
era de bom augúrio.
Por último, a influência da França nos primeiros anos da Comunidade
Europeia ajudou a criar uma nova «Europa» que podia ser acusada de ter
reproduzido os piores atributos do Estado-nação a uma escala subcontinental:
corria-se sempre o risco de que o preço a pagar pela recuperação da Europa
Ocidental fosse um certo provincianismo eurocêntrico. Apesar de toda a sua
riqueza, o mundo da CEE era bastante pequeno. Em alguns aspectos, era de
facto muito mais pequeno do que o mundo que os Franceses ou os Holandeses
conheceram quando os seus países se expandiram a pessoas e lugares em
largos espaços bem longe no ultramar. Nas circunstâncias da altura, isso
pouco importava para grande parte dos europeus ocidentais, os quais, em todo
o caso, tinham poucas possibilidades de escolha. Mas, com o tempo, conduziu
a uma visão nitidamente paroquial da «Europa», com implicações
perturbadoras para o futuro.
A morte de Estaline, em Março de 1953, precipitou uma luta de poder
entre os seus nervosos herdeiros. De início, o chefe da polícia secreta,
Lavrenti Béria, pareceu o único provável herdeiro do ditador. Mas,
precisamente por essa razão, os seus colegas conspiraram para o assassinar
em Julho desse mesmo ano e, depois de um breve desvio por Georgy
Malenkov, foi Nikita Kruschev – que não era, de todo, o mais conhecido do
círculo íntimo de Estaline – quem foi confirmado, dois meses depois, como
Primeiro Secretário do Partido Comunista da União Soviética. Este facto era,
de certa forma, irónico, porque, apesar da sua tendência psicótica, Béria era
um defensor de reformas e até do que ainda não se chamava «destalinização».
No breve período que mediou entre a morte de Estaline e a sua própria
detenção, repudiou a «conspiração dos médicos», libertou alguns prisioneiros
do Gulag e propôs mesmo reformas nos Estados-satélites, causando confusão
nos respectivos líderes.
A nova liderança, que nominalmente era colectiva, mas em que cada vez
mais Kruschev era o primus inter pares, só podia seguir o caminho que Béria
tinha defendido. A morte de Estaline, depois de muitos anos de repressão e
empobrecimento, deu lugar a protestos generalizados e a exigências de
mudança. Em 1953 e 1954, houve revoltas nos campos de trabalho siberianos
de Norilsk, Vorkuta e Kengir. Foram necessários tanques, aviões e o envio de
uma força militar considerável para que o Kremlin assumisse o controlo. Mas
depois da «ordem» ter sido restabelecida, Kruschev regressou à estratégia de
Béria. Durante os anos de 1953 a 1956, foram libertados cerca de cinco
milhões de prisioneiros do Gulag.
Nas democracias populares, a era pós-Estaline foi marcada não só pela
revolta de Berlim, em 1953 (ver capítulo 6), mas por expressões de oposição,
mesmo em postos avançados imperiais tão obscuros e habitualmente
intimidados como a provinciana Bulgária, onde trabalhadores de fábricas de
tabaco provocaram tumultos em Maio e Junho desse mesmo ano. Em parte
alguma o regime soviético chegou a ser ameaçado com gravidade, mas as
autoridades de Moscovo levaram muito a sério a dimensão do
descontentamento público. A tarefa que Kruschev e os seus colegas tinham
agora pela frente era enterrar Estaline e os seus excessos, sem colocar em
risco o sistema que o terror estalinista edificara e as vantagens que revertiam
para o Partido do seu monopólio do poder.
A estratégia de Kruschev, tal como se tornou patente nos anos seguintes,
tinha quatro aspectos. Primeiro, como já vimos, necessitou de estabilizar as
relações com o Ocidente, depois do rearmamento da Alemanha Ocidental, da
sua entrada na NATO e da criação do Pacto de Varsóvia. Segundo, e ao
mesmo tempo, Moscovo começou a estabelecer pontes com o mundo «não
alinhado», começando com a Jugoslávia, que Kruschev e Bulganine visitaram
em Maio de 1955 (apenas uma semana depois da assinatura do Tratado do
Estado Austríaco) para reactivar as relações soviético-jugoslavas, depois de
estarem sete anos congeladas. Terceiro, Moscovo começou a encorajar os
reformadores do partido nos Estados-satélites, permitindo críticas contidas
aos «erros» da velha guarda estalinista e a reabilitação de algumas das suas
vítimas, terminando com o ciclo de julgamentos encenados, detenções em
massa e purgas no partido.
Foi neste contexto que Kruschev avançou cautelosamente para a quarta (e,
segundo pensava, última) fase da reforma controlada: a ruptura com o próprio
Estaline. O cenário, para tal, foi o 20.o Congresso do Partido Comunista da
União Soviética, em Fevereiro de 1956, em que Kruschev apresentou o agora
famoso «discurso secreto», denunciando os crimes, os erros e o «culto» do
secretário-geral. Retrospectivamente, o seu discurso assumiu uma aura mítica,
mas não se deve exagerar o significado que teve na altura. Nikita Kruschev
era um comunista e um leninista, e acreditava tanto quanto os seus
contemporâneos, se não mais, na liderança do Partido. Tinha estabelecido
para si mesmo o objectivo astucioso de reconhecer e de apresentar em detalhe
os actos de Estaline, ao mesmo tempo que limitava a responsabilidade por
eles ao próprio homem. A sua tarefa, vimo-lo já, era confirmar a legitimidade
do projecto comunista, acumulando maledicências e responsabilidades sobre
o cadáver do Tio José.
O discurso, apresentado em 25 de Fevereiro, foi totalmente convencional
na extensão e na linguagem. Foi dirigido à elite do Partido e limitou-se a
descrever as «perversões» da doutrina comunista de que Estaline era culpado.
O ditador foi acusado de «ignorar as normas da vida do Partido e de
espezinhar os princípios leninistas da liderança colectiva do Partido», o que
quer dizer que tomou as suas próprias decisões. Os seus colegas de estatuto
inferior (grupo a que Kruschev pertenceu desde o início dos anos 30) foram
assim absolvidos da responsabilidade, tanto pelos seus excessos criminosos,
como também, o que era mais importante, pelo falhanço das suas políticas.
Kruschev assumiu conscientemente os riscos de pormenorizar a dimensão dos
fracassos pessoais de Estaline (e de chocar e ofender assim as sensibilidades
dos quadros obedientes que estavam presentes entre o seu auditório), para
manter e mesmo promover a posição impoluta de Lenine, do sistema leninista
de governo e dos próprios sucessores de Estaline.
O discurso secreto alcançou o seu objectivo, pelo menos no interior do
PCUS. Delimitou a era estalinista, reconhecendo as suas monstruosidades e
os seus desastres, ao mesmo tempo que mantinha a ficção de que a liderança
comunista da altura não tinha responsabilidades. Kruschev ficou, por isso,
seguro no poder e obteve uma relativa liberdade para reformar a economia
soviética e liberalizar o aparelho de terror. Os velhos estalinistas foram então
marginalizados. Molotov foi demitido do cargo de ministro dos Negócios
Estrangeiros na véspera de uma nova visita de Tito a Moscovo, que se
efectuou em Junho. Quanto aos contemporâneos de Kruschev e aos homens
mais novos do aparelho, como Leonid Brejnev, eram tão culpados como
Kruschev de terem colaborado nos crimes de Estaline e, portanto, não
estavam em condições de negar as suas afirmações nem de atacar a sua
credibilidade. Uma destalinização controlada convinha a quase todos.
No entanto, o ataque de Kruschev a Estaline não podia ser mantido
secreto, e aí se situam as raízes do seu fracasso. O discurso só seria publicado
oficialmente na União Soviética em 1988, mas aos serviços secretos
ocidentais chegaram rumores da sua existência passados alguns dias. O
mesmo aconteceu com os partidos comunistas ocidentais, ainda que não
estivesse nos planos de Kruschev. Em consequência, passadas algumas
semanas, os rumores das denúncias de Estaline feitas por Kruschev corriam
em toda a parte. O efeito foi inebriante. Para os comunistas, a denúncia de
Estaline e do que fizera deu origem a confusões e perturbações, mas foi
também um alívio. Daí em diante, como pareceu a muitos, os comunistas já
não tinham de desculpar ou negar as acusações ultrajantes dos seus críticos.
Alguns membros e simpatizantes dos partidos ocidentais afastaram-se, mas
outros permaneceram, com a sua fé renovada.
Na Europa de Leste, o impacto da abjuração de Estaline por parte de
Kruschev foi ainda mais dramático. Interpretado no contexto da recente
reconciliação do líder soviético com Tito e da dissolução do moribundo
Cominform, a 18 de Abril, o repúdio de Estaline por Kruschev parecia sugerir
que Moscovo olharia agora favoravelmente para diferentes «vias para o
socialismo» e rejeitara o terror e a repressão como instrumentos de controlo
comunista. Seria agora possível, ou assim se pensava, falar abertamente pela
primeira vez. Como o autor checo Jaroslav Seifert explicou num congresso de
escritores realizado em Praga, em Abril de 1956: «Ouvimos repetidamente
dizer neste congresso que é necessário que os escritores contem a verdade.
Isso significa que nos anos mais recentes eles não disseram a verdade […].
Tudo isso acabou. O pesadelo foi exorcizado».
Na Checoslováquia, cujos líderes comunistas mantinham um silêncio
absoluto sobre o seu próprio passado estalinista, a memória do terror ainda
estava demasiado fresca para que os rumores que chegavam de Moscovo se
traduzissem em acção política(13). O impacto da onda de choque da
destalinização na vizinha Polónia foi muito diferente. Em Junho, o Exército
polaco foi chamado para suprimir manifestações na cidade ocidental de
Poznan, que fervilhava de disputas sobre salários e ritmos de trabalho, como
sucedera, três anos antes, em Berlim Leste. Mas isso apenas adiou o
descontentamento geral para o Outono, num país em que a sovietização nunca
fora levada tão a fundo como nos outros países de Leste e cujos líderes do
Partido ultrapassaram largamente incólumes as purgas do pós-guerra.
Em Outubro de 1956, preocupado com a perspectiva de perder o controlo
sobre o estado de espírito do povo, o Partido Operário Unificado Polaco
decidiu demitir o marechal soviético Konstanty Rokossowski do seu lugar de
ministro da Defesa da Polónia e expulsá-lo do Politburo. Ao mesmo tempo, o
Partido elegeu Wladislaw Gomulka para primeiro secretário, substituindo o
estalinista Boleslaw Bierut. Esta foi uma atitude profundamente simbólica:
Gomulka estivera preso apenas alguns anos antes e escapara por pouco a um
julgamento. Representava para o público polaco a face «nacional» do
comunismo do país e a sua promoção foi geralmente entendida como um acto
de desafio implícito de um partido obrigado a escolher entre o seu eleitorado
nacional e a autoridade superior de Moscovo.
Foi desta maneira, certamente, que os líderes soviéticos viram o assunto.
Kruschev, Mikoyan, Molotov e outras três figuras importantes voaram para
Varsóvia, a 19 de Outubro, com a intenção de impedir a nomeação de
Gomulka, proibir a expulsão de Rokossowski e restabelecer a ordem na
Polónia. Para assegurar que as suas intenções tinham sido entendidas,
Kruschev ordenou ao mesmo tempo que uma brigada de tanques soviéticos se
aproximasse de Varsóvia. Todavia, em discussões acaloradas com o próprio
Gomulka, tidas em parte na pista do aeroporto, Kruschev concluiu que os
interesses soviéticos na Polónia podiam ser mais bem satisfeitos aceitando a
nova situação no partido polaco do que levando as coisas ao extremo e
provocando, quase de certeza, confrontos violentos. Gomulka, por seu lado,
assegurou aos Russos que podia restabelecer o controlo e que não tinha
intenção de abandonar o poder, retirar a Polónia do Pacto de Varsóvia ou
exigir que as tropas soviéticas deixassem o seu país.
Considerando a desproporção de poder entre Kruschev e Gomulka, o êxito
do novo líder polaco em evitar uma catástrofe no seu país foi notável. Mas
Kruschev tinha compreendido bem o seu interlocutor. Como explicou ao
Politburo soviético depois do seu regresso a Moscovo, no dia seguinte,
Ponomarenko, o embaixador soviético em Varsóvia, tinha-se «enganado
grosseiramente no seu juízo sobre Gomulka». O preço do controlo comunista
na Polónia poderia ser a realização de algumas mudanças de pessoal e a
liberalização da vida pública, mas Gomulka era um homem do Partido em
quem se podia confiar e não tencionava abandonar o poder nas ruas ou aos
opositores ao Partido. Era também um realista: se ele não pudesse acalmar a
turbulência na Polónia, a alternativa seria o Exército Vermelho. A
destalinização, como Gomulka pôde apreciar, não significava que Kruschev
pretendesse desistir de qualquer parcela da influência territorial ou do
monopólio político da União Soviética.
O «Outubro Polaco», portanto, teve um resultado benéfico fortuito. Poucos
souberam na altura como Varsóvia esteve perto de uma segunda ocupação
soviética. Na Hungria, contudo, as coisas passaram-se de maneira diferente.
Tal não foi imediatamente óbvio. Logo em Julho de 1953, a liderança
estalinista húngara fora substituída (por iniciativa de Moscovo) por um
comunista de tendência reformadora, Imre Nagy. Nagy, como Gomulka, fora
saneado e preso em tempos mais recuados e, portanto, tinha pouca
responsabilidade pela época de terror e de desgoverno por que o seu país
acabara de passar. Na verdade, o seu primeiro gesto como líder do partido foi
apresentar, com o apoio de Béria, um programa de liberalizações. Os campos
de internamento e de trabalho seriam encerrados e seria permitido aos
camponeses abandonar os kolkhozes se assim o desejassem. Em geral, a
agricultura seria mais encorajada e as metas industriais irrealistas deveriam
ser abandonadas. Em 28 de Junho de 1953, na linguagem caracteristicamente
velada de uma resolução confidencial do Partido húngaro, reconhecia-se que
«A política económica falseada revelou um certo carácter jactante de aumento
dos riscos, na medida em que o desenvolvimento forçado da indústria pesada
pressupunha a existência de recursos e de matérias-primas que em parte não
estavam disponíveis».
Nagy não era certamente uma escolha convencional, do ponto de vista de
Moscovo. Em Setembro de 1949, criticara a linha ultra-estalinista de Matyas
Rakosi e foi um dos dois únicos membros do Politburo húngaro que se
opuseram à execução de Laszlo Rajk. Tal facto, bem como as suas críticas à
colectivização rural, conduziu à sua expulsão da liderança do Partido e à
«autocrítica» pública em que Nagy reconheceu a sua «atitude oportunista» e a
sua incapacidade de se manter de acordo com a linha do Partido. Porém, era
uma escolha lógica quando chegou a hora de fazer mudanças num país cuja
elite política, tal como a economia, fora devastada pelos excessos estalinistas.
Com Rakosi no poder, cerca de 480 figuras públicas foram executadas entre
1948 e 1953, não incluindo Rajk e outras vítimas comunistas; e mais de 150
000 pessoas (numa população de menos de 9 milhões) foram presas nesses
mesmos anos.
Nagy permaneceu em funções até à Primavera de 1955. Nessa altura,
Rakosi e outros membros indefectíveis do Partido húngaro, que vinham
trabalhando para destruir insidiosamente o seu camarada desde que regressara
ao governo, conseguiram convencer Moscovo de que não se podia confiar
nele para manter um controlo firme num momento em que a União Soviética
enfrentava a ameaça de uma NATO em expansão e a vizinha Áustria estava
prestes a tornar-se um Estado independente e neutro. Em conformidade, o
Comité Central soviético condenou os «desvios direitistas» de Nagy, este foi
destituído do governo (e mais tarde expulso do Partido) e Rakosi e os seus
amigos regressaram ao poder em Budapeste. Este abandono das reformas,
apenas oito meses antes do discurso de Kruschev, exemplifica
antecipadamente como o líder soviético, ao destruir a reputação de Estaline,
não planeara afectar o exercício habitual do poder comunista.
Durante cerca de um ano, o «grupo Nagy», não oficial, funcionou no
Partido húngaro como uma espécie de oposição informal «reformadora», a
primeira a existir no comunismo do pós-guerra. Entretanto, foi a vez de
Rakosi atrair as atenções desfavoráveis de Moscovo. Kruschev, como já
dissemos, desejava reatar os laços soviéticos com a Jugoslávia. Todavia,
durante a histeria contra Tito de tempos mais recuados, Rakosi teve um papel
particularmente destacado. Não foi por acaso que a acusação de «titismo»
figurou de maneira tão proeminente nos julgamentos encenados da Hungria,
sobretudo no do próprio Rajk. Ao Partido da Hungria foi atribuído o papel da
acusação nestes processos, e a liderança do partido cumpriu com entusiasmo a
sua tarefa.
Rakosi tornou-se, por isso, um embaraço, um obstáculo anacrónico aos
projectos soviéticos. Com negociações soviético-jugoslavas de alto nível a
decorrer em Moscovo, em Junho de 1956, parecia desnecessário manter no
poder em Budapeste um estalinista indefectível, tão intimamente associado
com os maus velhos tempos – tanto mais que o seu historial e a sua
intransigência no presente estavam a começar a provocar protestos públicos
na Hungria. Em Março de 1956, Rakosi mandou publicar no jornal húngaro
Szabad Nép uma denúncia entusiástica de Béria e do seu lugar-tenente na
polícia húngara, Gabor Peter, acompanhando de perto a denúncia realizada
por Kruschev do «culto da personalidade» e congratulando-se com o
«desmascaramento» de tais homens por causa da sua perseguição criminosa a
inocentes. Todavia, apesar dos melhores esforços de Rakosi, o seu tempo
tinha passado. Em 17 de Julho de 1956, Anastas Mikoyan voou para
Budapeste e, sem cerimónia, demitiu Rakosi das suas funções governamentais
pela última vez.
Para o lugar de Rakosi os Soviéticos promoveram Ernö Gerö, outro
húngaro de registo estalinista impecável. Revelou-se um erro. Gerö não podia
dirigir as mudanças nem suprimi-las. Em 6 de Outubro, como um gesto
dirigido sobretudo para Belgrado, as autoridades de Budapeste permitiram
que fosse novamente feito o funeral, público desta vez, de Laszlo Rajk e das
outras vítimas que o acompanharam nos julgamentos encenados. Bela Szasz,
um dos que sobreviveram ao julgamento Rajk, tomou a palavra junto à
sepultura:
Executado em consequência de acusações inventadas, os restos mortais
de Laszlo Rajk permaneceram durante sete anos numa campa anónima.
No entanto, a sua morte tornou-se um sinal de alarme para o povo
húngaro e para todo o mundo. É que as centenas de milhares que passam
ao lado do seu caixão não desejam apenas homenagear o homem. A sua
esperança apaixonada e a sua firme decisão é enterrar toda uma época. A
ausência de lei, a arbitrariedade e a decadência moral destes anos
vergonhosos devem ser enterrados para sempre, e o perigo dos húngaros
que exercem o poder sem regras e do culto da personalidade deve ser
afastado para sempre.
Não deixa de ser de alguma forma irónica a simpatia que o destino de Rajk
despertava então, tendo ele mesmo enviado tantas vítimas (não comunistas)
inocentes para a forca. Mas irónico ou não, o re-enterro de Rajk fez despertar
a faísca que incendiou a revolução húngara.
Em 16 de Outubro de 1956, os estudantes universitários da cidade de
Szeged, na província, organizaram-se numa «Liga dos Estudantes Húngaros»,
que era independente das organizações de estudantes comunistas oficiais.
Passada uma semana, tinham surgido organizações de estudantes por todo o
país, culminando em 22 de Outubro com um manifesto de «dezasseis pontos»
formulado pelos estudantes da própria Universidade Técnica de Budapeste.
As exigências estudantis incluíam reformas industriais e agrárias, mais
democracia, o direito de falar livremente e o fim das múltiplas restrições e
regulamentações mesquinhas da vida no regime comunista. Mas também
nelas se incluía o desejo, premonitório, de ver Imre Nagy como primeiro-
ministro, Rakosi e os seus camaradas julgados pelos seus crimes e a retirada
das tropas soviéticas do país.
No dia seguinte, 23 de Outubro, os estudantes começaram a reunir-se em
assembleia na Praça do Parlamento, em Budapeste, para se manifestarem em
apoio das suas exigências. O regime tinha dificuldade em encontrar uma
resposta: Gerö começou por proibir a manifestação para depois a permitir.
Quando ela se realizou nessa mesma tarde, Gerö denunciou o encontro e os
seus organizadores num discurso difundido pela estação de rádio nacional,
nessa noite. Uma hora depois, manifestantes enraivecidos derrubaram a
estátua de Estaline no centro da cidade, as tropas soviéticas entraram em
Budapeste para atacar as multidões e o Comité Central reuniu-se durante a
noite. Na manhã seguinte, às 8:13, foi anunciado que Imre Nagy tinha sido
empossado como primeiro-ministro da Hungria.
Se os líderes do partido esperavam que o regresso de Nagy pusesse fim à
revolução, estavam muito enganados. O próprio Nagy estava certamente
desejoso de restaurar a ordem. Declarou a lei marcial uma hora após ter
assumido funções. Em conversas com Suslov e Mikoyan (que chegaram de
Moscovo de avião nesse mesmo dia), ele e os outros membros da nova
liderança húngara insistiram na necessidade de negociar com os
manifestantes. Segundo o relato enviado pelos russos a uma reunião do
Presidium do Partido Soviético, em 26 de Outubro, Janos Kadar(14) explicou-
lhes que era possível e importante distinguir entre as massas leais, que se
tinham afastado do Partido devido aos erros passados cometidos por este, e os
contra-revolucionários armados que o governo de Nagy esperava isolar.
A distinção feita por Kadar pode ter convencido alguns líderes soviéticos,
mas não correspondia à realidade húngara. As organizações de estudantes, os
conselhos de trabalhadores e os «comités nacionais» revolucionários estavam
a formar-se espontaneamente por todo o país. Os confrontos entre a polícia e
os manifestantes provocaram contra-ataques e linchamentos. Contra o
conselho de alguns dos seus membros, a liderança do Partido húngaro
começou por recusar reconhecer o levantamento como uma revolução
democrática, insistindo, em vez disso, em vê-la como uma «contra-
revolução» e deixando assim escapar a ocasião de assumir a sua direcção. Só
em 28 de Outubro, aproximadamente uma semana depois das primeiras
manifestações, Nagy foi à rádio propor tréguas nos confrontos armados,
reconhecendo a legitimidade e o carácter revolucionário dos protestos
recentes, prometer a abolição da odiada polícia secreta e anunciar a partida
iminente das tropas soviéticas de Budapeste.
A liderança soviética, independentemente das suas dúvidas, decidiu apoiar
a nova abordagem do líder húngaro. Suslov, no relatório que enviou sobre o
discurso de Nagy na rádio, apresentou as novas concessões como o preço a
pagar pela submissão das massas ao controlo do Partido. Todavia, os
acontecimentos na Hungria estavam a ultrapassar as previsões de Moscovo.
Dois dias mais tarde, em 30 de Outubro, após ataques à sede do Partido
Comunista em Budapeste e a morte de 24 defensores do edifício, Imre Nagy
foi novamente à rádio. Desta vez anunciou que o seu governo se basearia a
partir de então «na cooperação democrática entre os partidos da coligação,
renascidos em 1945». Por outras palavras, Nagy estava a formar um governo
multipartidário. Em vez de se confrontar com a oposição, Nagy baseava agora
cada vez mais, a sua autoridade no próprio movimento popular. Na sua frase
final, celebrando uma Hungria «livre, democrática e independente», até
omitiu, pela primeira vez, o desacreditado adjectivo «socialista». Por outro
lado, apelou publicamente a Moscovo «para começar a retirar as tropas
soviéticas» de Budapeste e também do resto da Hungria.
O empreendimento arriscado de Nagy – a sua crença sincera de que
poderia restaurar a ordem na Hungria e assim afastar a ameaça implícita da
intervenção soviética – foi apoiado por outros comunistas do seu governo.
Mas tinha cedido a iniciativa. Os comités insurreccionais populares, os
partidos políticos e os jornais tinham aparecido por todo o país. O sentimento
anti-russo era generalizado, nais tinham aparecido por todo o país. O
sentimento anti-russo era generalizado, 1849 pela Rússia imperial. Para além
disso, os líderes soviéticos estavam a perder a confiança nele, o que era
sobremaneira importante. Quando na tarde de 31 de Outubro Nagy anunciou
que iria começar a negociar para garantir a retirada da Hungria do Pacto de
Varsóvia, o seu destino provavelmente estava já traçado.
Kruschev e os seus colegas assumiram sempre o ponto de vista de que
teriam de intervir na Hungria – como sucedera antes na Polónia – se a
«contra-revolução» escapasse ao controlo. Porém, parece que, de início,
estavam relutantes em tomar esta opção. Só em 31 de Outubro o Presidium do
Comité Central divulgou uma declaração em que afirmava a sua vontade «de
encetar as negociações apropriadas» com a liderança húngara para a retirada
das tropas soviéticas de território húngaro. Mas ao mesmo tempo que faziam
estas concessões estavam a receber relatórios de manifestações de estudantes
em Timisoara (na Roménia) e de «sentimentos hostis» entre os intelectuais
búlgaros que simpatizavam com os revolucionários húngaros. Isto começava
a parecer o início de uma contaminação que os líderes soviéticos há muito
tempo receavam, e que os impeliu a adoptar uma nova abordagem.
Assim, no dia seguinte a ter prometido negociar a retirada das tropas, o
Presidium soviético foi informado por Kruschev que isso estava agora fora de
questão. «Os imperialistas» interpretariam essa retirada como prova de
fraqueza soviética. Pelo contrário, a URSS teria agora de «tomar a iniciativa
de restaurar a ordem na Hungria». Divisões armadas soviéticas na Roménia e
na Ucrânia receberam instruções para atravessar a fronteira húngara. Ao saber
disto, o primeiro-ministro húngaro chamou o embaixador soviético (Yuri
Andropov) e informou-o de que em protesto contra os recentes movimentos
das tropas soviéticas, a Hungria deixava unilateralmente de ser membro do
Pacto de Varsóvia. Nessa noite, às 19:50 de 1 de Novembro, Nagy anunciou
na rádio que a Hungria era a partir de então um país neutral e pediu que as
Nações Unidas reconhecessem o seu novo estatuto. Esta declaração foi
amplamente apoiada no país. O Conselho dos Trabalhadores de Budapeste,
que estivera em greve desde que começara a revolta, respondeu com um apelo
de regresso ao trabalho. Nagy tinha finalmente triunfado sobre muitos dos que
na Hungria suspeitavam das suas intenções.
Na mesma noite em que Nagy fez o seu anúncio histórico, Janos Kadar foi
misteriosamente levado para Moscovo, onde Kruschev o convenceu da
necessidade de formar um novo governo em Budapeste, com o apoio
soviético. O Exército Vermelho entraria em qualquer caso na cidade para
restaurar a ordem. A única questão era saber se os Húngaros teriam a honra de
colaborar com ele. Qualquer relutância que Kadar pudesse ter tido em trair
Nagy e os seus camaradas húngaros foi vencida pela insistência de Kruschev
de que os Soviéticos sabiam agora que tinham errado quando empossaram
Gerö em Julho. Esse erro não se iria repetir depois de restaurada a ordem em
Budapeste. Kruschev partiu para Bucareste para se encontrar com os líderes
romenos, búlgaros e checos e coordenar a intervenção na Hungria (uma
delegação de quadros subalternos tinha-se encontrado no dia anterior com os
líderes polacos). Entretanto, Nagy continuou a protestar contra a actividade
crescente dos militares soviéticos, e a 2 de Novembro pediu ao secretário-
geral da ONU, Dag Hammerskjöld, para servir de mediador entre a Hungria e
a URSS, e procurar o reconhecimento ocidental da neutralidade húngara.
No dia seguinte, 3 de Novembro, o governo de Nagy encetou (ou pensou
ter encetado) negociações com as autoridades militares soviéticas sobre a
retirada das tropas. Mas quando o grupo negociador húngaro regressou nessa
noite ao quartel-general do exército soviético em Tököl, na Hungria, foi
imediatamente preso. Pouco depois, à 4 da manhã de 4 de Novembro, os
tanques soviéticos atacaram Budapeste, seguindo-se uma hora depois, a partir
do Leste da Hungria, ocupado pelos Soviéticos, o anúncio de que Imre Nagy
fora substituído por um novo governo. Em resposta, Nagy fez um discurso
final pela rádio ao povo húngaro, apelando à resistência contra o invasor.
Depois, ele e os seus colegas refugiaram-se na embaixada jugoslava em
Budapeste, onde lhes foi concedido asilo.
O desfecho militar nunca esteve em discussão: apesar de intensa
resistência, as forças soviéticas tomaram Budapeste em 72 horas e o governo
de Janos Kadar foi ajuramentado a 7 de Novembro. Alguns Conselhos de
Trabalhadores mantiveram-se durante um mês – Kadar preferiu não os atacar
directamente – e houve greves esporádicas até 1957. Segundo um relatório
confidencial apresentado ao Comité Central soviético, em 22 de Novembro de
1956, as minas de carvão húngaras ficaram a trabalhar apenas a 10% da sua
capacidade. Mas, passado um mês, as novas autoridades sentiram-se
suficientemente confiantes para tomar a iniciativa. Em 5 de Janeiro, foi
estabelecida a pena de morte para «provocações à greve» e começou a
repressão a sério. Para além de cerca de 2700 Húngaros que morreram no
decurso da luta, mais 341 foram julgados e executados nos anos seguintes (a
última sentença de morte foi executada em 1961). No total, cerca de 22 000
Húngaros foram condenados à prisão (muitos deles a cinco anos ou mais)
pelo seu papel na «contra-revolução». Outros 13 000 foram enviados para
campos de internamento e muitos outros ainda foram demitidos dos seus
empregos ou colocados sob estrita vigilância, até que foi declarada em Março
de 1963 uma amnistia geral.
Calcula-se que 200 000 pessoas – mais de 2% da população – fugiram da
Hungria após a ocupação soviética, a maioria delas constituída por adultos
jovens e muitas provenientes da elite profissional instruída de Budapeste e do
Ocidente urbanizado do país. Fixaram-se nos Estados Unidos (que recebeu
cerca de 80 000 refugiados húngaros), Áustria, Grã-Bretanha, Suíça, França e
muitos outros países. Durante algum tempo, o destino de Nagy e dos seus
colegas permaneceu incerto. Depois de terem ficado cerca de três semanas na
embaixada da Jugoslávia em Budapeste, foram vítimas de um ardil para a
deixar a 22 de Novembro, sendo imediatamente presos pelas autoridades
soviéticas e raptados para uma prisão na Roménia.
Kadar demorou vários meses a decidir o que fazer com os seus antigos
amigos e camaradas. Muitas das represálias contra trabalhadores e soldados
jovens que tomaram parte nas lutas de rua foram silenciadas, tanto quanto
possível, para evitar que se erguessem protestos internacionais. Mesmo assim,
houve pedidos internacionais de clemência no caso de algumas figuras
proeminentes, como os escritores Jozsef Gali e Gyula Obersovszky. O destino
do próprio Nagy era um assunto particularmente sensível. Em Abril de 1957,
Kadar e os seus colegas decidiram fazer regressar Nagy e os seus
«cúmplices» à Hungria para enfrentar um julgamento, mas os processos
foram adiados até Junho de 1958 e mesmo então foram conduzidos em
segredo absoluto. Em 15 de Junho de 1958, foram todos considerados
culpados de fomentar a contra-revolução e vários deles foram condenados à
morte ou a prolongadas penas de prisão. Os escritores Istvan Bibo e Árpad
Göncz (futuro presidente da Hungria pós-comunista) foram condenados a
prisão perpétua. Dois outros, Jozsef Szilagyi e Geza Lozonczy, foram mortos
na prisão antes de ter começado o seu julgamento. Imre Nagy, Pal Maléter e
Miklos Gimes foram executados na madrugada de 16 de Junho de 1958.
A insurreição húngara, uma revolta breve e sem esperança num pequeno
posto avançado do império soviético, teve um impacto esmagador no desenho
das questões mundiais. Em primeiro lugar, foi uma lição clara para os
diplomatas ocidentais. Até esta altura, os Estados Unidos, embora
reconhecessem oficialmente a impossibilidade de retirar os países satélites da
Europa de Leste ao controlo soviético, tinham continuado a encorajar neles o
«espírito de resistência». Segundo as palavras do documento de orientação
política n.o 174 (de Dezembro de 1953) do Conselho Nacional de Segurança,
havia acções encobertas e apoio diplomático destinados a «promover
condições que tornassem possível a libertação dos satélites num momento
favorável no futuro». Porém, como um documento de orientação política
redigido em Julho de 1956 para explicar as sublevações desse ano haveria de
acentuar: «Os Estados Unidos não estão dispostos a entrar em guerra para
acabar com o domínio soviético sobre os satélites» (NSC5608/1 «U.S. Policy
toward the Soviet satellites in Eastern Europe»).
Na verdade, desde a repressão da revolta de Berlim, em 1953, o
Departamento de Estado concluíra que a União Soviética teria, no futuro
próximo, um controlo inabalável da sua «zona». A «não intervenção» era a
única estratégia para a Europa de Leste. Mas os rebeldes húngaros não tinham
possibilidade de saber isso. Muitos deles aguardavam sinceramente o apoio
do Ocidente, encorajados pelo tom firme da retórica pública americana e
pelas emissões da Rádio Europa Livre, cujos locutores emigrados
encorajaram os Húngaros a pegar em armas e prometeram apoio externo
imediato. Quando esse apoio não chegou, os rebeldes derrotados ficaram
compreensivelmente irritados e desiludidos.
Mesmo que os governantes ocidentais tivessem querido fazer mais, as
circunstâncias do momento eram altamente desfavoráveis. No próprio dia em
que a revolta húngara irrompeu, representantes da França e da Grã-Bretanha
estavam em Sèvres em conversações secretas com os Israelitas. Sobretudo os
Franceses estavam preocupados com os seus problemas no Norte de África.
Como explicou em 27 de Outubro Christian Pineau, o ministro dos Negócios
Estrangeiros, num memorando altamente confidencial dirigido ao
representante da França no Conselho de Segurança da ONU: «É essencial que
a proposta de resolução que será apresentada ao Conselho de Segurança sobre
a questão da Hungria não contenha nenhuma disposição que possa perturbar a
nossa acção na Argélia […]. Estamos particularmente contra a formação de
uma comissão de inquérito». O ministro dos Negócios Estrangeiros da Grã-
Bretanha, Selwyn Lloyd, em resposta a uma sugestão do embaixador
britânico em Moscovo para que Londres apelasse directamente para a
liderança soviética desistir da intervenção na Hungria, apresentou ao
primeiro-ministro Anthony Eden, quatro dias mais tarde, uma posição que ia
no mesmo sentido da francesa: «Penso que este não é o momento para tal
mensagem».
Como Kruschev explicou aos seus colegas do Presidium do Comité
Central, em 28 de Outubro, «os Ingleses e os Franceses estão metidos numa
grande confusão no Egipto»(15). Quanto a Eisenhower, estava na semana final
de uma campanha eleitoral. No dia da sua reeleição assistiu-se a alguns dos
piores combates em Budapeste. O seu Conselho Nacional de Segurança nem
sequer discutiu a Hungria senão três dias depois de ter começado a invasão
soviética. Foi lento a perceber o alcance completo das acções de Nagy,
nomeadamente o seu abandono do regime de partido único, num país com
pouco significado para a estratégia global dos Estados Unidos (a crise recente
na Polónia recebera pouca atenção de Washington) e quando a Hungria
apareceu na agenda deste Conselho, numa reunião realizada em 8 de
Novembro, o consenso geral – de Eisenhower para baixo – era que a culpa era
dos Franceses e dos Britânicos. Se não tivessem invadido o Egipto, a União
Soviética não teria tido cobertura para agir contra a Hungria. A administração
Eisenhower tinha a consciência tranquila.
Os líderes soviéticos reconheceram a sua vantagem e, portanto,
aproveitaram-na. Segundo a perspectiva comunista, a ameaça real que Nagy
representava não era a liberalização da economia nem a atenuação da censura.
Mesmo a declaração de neutralidade húngara, embora fosse considerada por
Moscovo como «provocadora», não motivou a queda de Nagy. O que o
Kremlin não podia perdoar era o abandono do monopólio do poder, do «papel
dirigente do Partido» Comunista (algo que Gomulka teve o cuidado de nunca
permitir na Polónia). Tal afastamento em relação à prática soviética era o
primeiro passo na direcção da democracia e representaria a ruína dos partidos
comunistas em toda a região. Foi essa a razão por que os líderes de todos os
Estados-satélites alinharam tão prontamente com a decisão de Kruschev de
depor Nagy. Quando o Politburo checoslovaco se reuniu, a 2 de Novembro, e
expressou a sua vontade de dar um contributo activo para «manter, por todos
os meios que fossem necessários, a democracia popular na Hungria», o
sentimento era de facto sincero e genuíno(16).
Por fim, até Tito concordou que a perda do controlo da Hungria por parte
do Partido e o colapso do aparelho de segurança do Estado constituíam um
exemplo perigoso. De início, o líder jugoslavo acolheu favoravelmente as
mudanças na Hungria como mais uma prova da destalinização. Todavia, em
finais de Outubro, o rumo dos acontecimentos em Budapeste fê-lo mudar de
atitude. A proximidade da Hungria em relação à Jugoslávia, a presença de
uma minoria húngara significativa na região jugoslava de Voivodina e os
consequentes riscos de contágio estavam muito presentes no seu espírito.
Quando em 2 de Novembro Kruschev e Malenkov se deram ao incómodo de
voar para a ilha do Adriático para onde Tito se recolhera e lhe deram conta da
invasão que iria iniciar-se, este mostrou-se ansioso, mas compreensivo. A sua
principal preocupação era que o governo fantoche que se iria instalar na
Hungria não integrasse Rakosi e outros estalinistas indefectíveis. Neste
aspecto, Kruschev teve o prazer de o tranquilizar.
Kruschev ficou menos agradado quando, apenas dois dias depois, Tito
concedeu asilo a Nagy, a quinze membros do seu governo e às respectivas
famílias. A decisão jugoslava parecia ter sido tomada no calor da crise
húngara e no pressuposto de que os Russos não estavam interessados em fazer
mártires. Mas quando os líderes soviéticos expressaram o seu desagrado e
sobretudo depois do rapto de Nagy e dos outros, na sequência da sua saída da
embaixada jugoslava com a promessa de um salvo-conduto do próprio Kadar,
Tito ficou numa posição incómoda. Em público, o líder jugoslavo continuou a
expressar a sua aprovação ao novo governo de Kadar, mas, informalmente,
não se esforçou para ocultar o seu desagrado com o desenrolar dos
acontecimentos.
O precedente da interferência sem restrições dos Soviéticos nos assuntos
de um Estado comunista irmão não foi pensado para promover a liderança
soviética junto dos Jugoslavos. As relações entre Moscovo e Belgrado
deterioraram-se uma vez mais e o regime jugoslavo iniciou uma abertura ao
Ocidente e aos países não-alinhados da Ásia. A resposta de Tito à invasão da
Hungria pelos Soviéticos foi, por isso, mista. Tal como os líderes soviéticos,
ficou aliviado com a restauração da ordem comunista, mas a forma como foi
conseguida abriu um precedente perigoso e deixou um sabor amargo.
Nos outros países, a resposta não foi menos ambivalente. Uma vez
conhecido no Ocidente, o discurso secreto de Kruschev marcou o fim de uma
certa fé comunista, mas também permitiu conceber a possibilidade de uma
reforma e de uma renovação pós-estalinista e, ao sacrificar o próprio Estaline
para preservar a ilusão da pureza revolucionária leninista, Kruschev oferecera
aos membros do Partido e aos compagnons de route progressistas um mito a
que se poderiam manter ligados. No entanto, os combates de rua desesperados
em Budapeste desfizeram todas as ilusões quanto a este novo modelo
soviético «reformado». Uma vez mais a autoridade comunista mostrou, sem
ambiguidades, que se apoiava apenas nos canhões dos tanques. O resto era
dialéctica. Os partidos ocidentais começaram a perder muitos aderentes. Só
no Partido Comunista Italiano saíram cerca de 400 000 membros entre 1955 e
1957. Como explicou Togliatti aos líderes soviéticos no auge da crise
húngara, «os acontecimentos na Hungria desenrolaram-se de uma maneira
que torna muito difícil a nossa tarefa de esclarecimento no partido e torna
igualmente difícil obter consenso a favor da liderança».
Em Itália, à semelhança da França, da Grã-Bretanha e dos outros países,
foram os membros do partido mais novos e com melhor instrução que dele
saíram em elevado número(17). À semelhança dos intelectuais da esquerda
não-comunista, foram atraídos quer pela promessa de reformas pós-
estalinistas na URSS, quer pela própria revolução húngara, com os seus
conselhos de trabalhadores, as suas iniciativas estudantis e a sugestão de que
até um partido do bloco soviético no poder podia adoptar e acolher
favoravelmente novas direcções. Hannah Arendt, por exemplo, considerou
que foi o aparecimento dos conselhos (e não a restauração dos partidos
políticos por Nagy) que significou o ressurgimento genuíno da democracia
contra a ditadura, da liberdade contra a tirania. Finalmente, segundo parecia,
era possível falar de comunismo e de liberdade de um mesmo fôlego. Como
haveria mais tarde de dizer Jorge Semprun, então um jovem comunista
espanhol a trabalhar clandestinamente em Paris: «O discurso secreto aliviou-
nos, deu-nos pelo menos a oportunidade de nos libertarmos do […] sono da
razão». Depois da invasão da Hungria, esse momento de esperança
desvaneceu-se.
Alguns observadores ocidentais tentaram justificar a intervenção soviética,
ou, pelo menos, explicá-la, aceitando a afirmação oficial de que Imre Nagy
liderara – ou se juntara a – uma contra-revolução. De forma característica,
Sartre insistiu em que a insurreição húngara fora marcada por um «espírito
direitista». Mas independentemente dos motivos dos insurrectos de Budapeste
e de outros locais – e estes foram mais variados do que se sabia na altura –,
não foi a revolta dos Húngaros mas a repressão soviética que mais
impressionou os observadores estrangeiros. O comunismo passava a estar
para sempre associado à opressão, não à revolução. Durante 40 anos, a
esquerda ocidental olhara para a Rússia perdoando e até admirando a
violência bolchevique como o preço da autoconfiança revolucionária e da
marcha da História. Moscovo era o espelho lisonjeador das suas ilusões
políticas. Em Novembro de 1956, o espelho quebrou-se.
Num memorando datado de 8 de Setembro de 1957, o escritor húngaro
Istvan Bibo afirmou: «Ao esmagar a revolução húngara, a URSS aplicou um
golpe grave, talvez até fatal, nos movimentos dos compagnons de route (da
paz, das mulheres, da juventude, dos estudantes, dos intelectuais, etc.) que
contribuíram para a força do comunismo». A sua intuição revelou-se certeira.
Despojado do curioso magnetismo do terror estalinista e mostrando em
Budapeste toda a sua mediocridade blindada, o comunismo soviético perdeu,
para a maioria dos simpatizantes e admiradores ocidentais, o seu encanto.
Procurando escapar ao «fedor do estalinismo», ex-comunistas, como o poeta
francês Claude Roy, viraram «as (nossas) narinas para outros horizontes».
Depois de 1956, os segredos da História já não poderiam ser encontrados nas
fábricas sinistras e nos kolkhozes disfuncionais das democracias populares,
mas em outros domínios diferentes e mais exóticos. Uma minoria cada vez
mais pequena de apologistas indefectíveis do leninismo aferrava-se ao
passado, mas de Berlim a Paris uma nova geração de progressistas ocidentais
procurou consolo e exemplo totalmente fora da Europa, nas aspirações e nas
sublevações do «Terceiro Mundo».
As ilusões também estavam destruídas na Europa de Leste. Como relatou
de Budapeste um diplomata britânico, em 31 de Outubro, no auge da primeira
fase da luta: «Só pode ser um milagre que o povo húngaro tenha resistido e
ultrapassado este diabólico massacre. Nunca se esquecerão e nunca
perdoarão.» Mas não foram apenas os Húngaros que levaram a peito a
mensagem dos tanques soviéticos. Os estudantes romenos manifestaram-se
em apoio dos seus vizinhos húngaros, intelectuais da Alemanha de Leste
foram presos e levados a julgamento por terem criticado as acções dos
Soviéticos, na URSS foram os acontecimentos de 1956 que tiraram a venda
dos olhos dos que tinham sido até então comunistas comprometidos, como
sucedeu com o jovem Leonid Pliushch. Uma nova geração de dissidentes
intelectuais – homens como Paul Goma, na Roménia, ou Wolfgang Harich, na
RDA – nasceu dos destroços de Budapeste.
A diferença na Europa de Leste, evidentemente, era que os súbditos
desiludidos de um regime desacreditado dificilmente poderiam olhar para
terras distantes ou reacender a sua fé revolucionária na chama de revoltas de
camponeses distantes. Estavam obrigados a viver em e com regimes
comunistas em cujas promessas já não acreditavam. Os europeus de Leste
viveram os acontecimentos de 1956 como uma refinação de desapontamentos
acumulados. As suas expectativas em relação ao comunismo, renovadas por
pouco tempo com a promessa da destalinização, extinguiram-se; mas o
mesmo aconteceu com as suas esperanças de socorro por parte do Ocidente.
Ao passo que as revelações de Kruschev sobre Estaline ou as tentativas de
reabilitar as vítimas dos julgamentos encenados sugeriram até esse momento
que o comunismo poderia ainda conter em si sementes de renovação e de
libertação, depois da Hungria o sentimento dominante era de resignação
cínica.
Tal situação não deixava de ter as suas vantagens. Precisamente porque as
populações da Europa de Leste comunista estavam agora sossegadas e a
ordem das coisas fora restaurada, a liderança soviética da era Kruschev
atingiu um ponto em que permitiu um certo grau de liberalização a nível
nacional e, com bastante ironia, sobretudo na Hungria. Aqui, e na esteira da
sua retaliação punitiva contra os insurrectos de 1956 e os seus simpatizantes,
Kadar criou o modelo do Estado comunista «pós-político». Em contrapartida
da sua aceitação inquestionável do monopólio do poder e da autoridade do
Partido, foi permitida aos Húngaros uma liberdade estritamente limitada, mas
genuína, de produzir e de consumir. Não se pedia a ninguém que acreditasse
no Partido Comunista e muito menos nos seus líderes, mas apenas que se
abstivessem da menor manifestação de oposição. O seu silêncio seria
interpretado como consentimento tácito.
O «comunismo goulash» que daí resultou assegurou a estabilidade à
Hungria, e a memória da Hungria assegurou a estabilidade do resto do bloco,
pelo menos na década seguinte. Mas teve o seu custo. Para muita gente que
vivia sob regime comunista, o sistema «socialista» deixou de representar
qualquer promessa radical de futuro, utópica, que no passado lhe estivera
associada, e que constituiu em parte o seu poder de sedução – sobretudo para
os jovens – até ao início dos anos 50. Agora, era apenas um modo de vida que
se tinha de suportar. Isso não significava que não poderia durar muito tempo.
Depois de 1956, poucos antecipariam um fim breve para o sistema de poder
soviético. Na verdade, antes dos acontecimentos desse ano havia muito mais
optimismo acerca de tal fim. Porém, depois de Novembro de 1956, os Estados
comunistas da Europa de Leste, tal como a própria União Soviética,
começaram o seu ocaso de décadas de estagnação, corrupção e cinismo.
Os Soviéticos também pagariam o seu preço por isto. O ano de 1956
representou, de muitas formas, a derrota e o colapso do mito revolucionário
que com tanto sucesso fora cultivado por Lenine e os seus herdeiros. Como
Boris Yeltsin haveria de reconhecer muitos anos mais tarde, em 11 de
Novembro de 1992, num discurso no parlamento húngaro: «A tragédia de
1956 […] permanecerá para sempre como uma mancha indelével do regime
soviético». Mas isso não era nada comparado com o custo que os Soviéticos
impuseram às suas vítimas. Em 16 Junho de 1989, 33 anos mais tarde, numa
Budapeste que celebrava a sua transição para a liberdade, centenas de
milhares de Húngaros tomaram parte em outro re-enterro cerimonial: desta
vez de Imre Nagy e dos seus colegas. Um dos oradores junto da sepultura de
Nagy foi o jovem Viktor Orban, futuro primeiro-ministro do seu país. «É uma
consequência directa da repressão sangrenta da Revolução», disse ele à
multidão ali reunida, «que tenhamos de assumir o fardo da insolvência e de
encontrar um modo de escapar ao beco sem saída para que fomos
empurrados. Na verdade, o Partido Socialista dos Trabalhadores Húngaros
roubou em 1956 o futuro da juventude de hoje».
-
(1) Perguntaram em 1968 ao ditador português, o Dr. António de Oliveira Salazar (sete anos após a
revolta angolana, que teve início em 1961), para quando perspectivava a independência de Angola e de
Moçambique, as colónias portuguesas em África. «É um problema para séculos», respondeu. «Dentro
de cinco séculos. Entretanto têm de continuar a participar no processo de desenvolvimento.» (Vd. Tom
Gallagher, Portugal. A Twentieth-Century Interpretation, 1983, p. 200). Mas, aliás, era famosa a
negação de princípio do mundo moderno por Salazar. Durante a maior parte dos anos 50, conseguiu
evitar a entrada da Coca-Cola no seu país, algo que nem os Franceses conseguiram fazer.

(2) Por vezes, as declarações francesas tinham correspondência na realidade: em 1945, Felix Eboué,
o governador-geral da África Equatorial Francesa, era um alto funcionário colonial francês… e era
negro.

(3) Segundo algumas fontes, De Gaulle desencorajou que se falasse abertamente do autogoverno das
colónias para evitar que os colonos europeus, sobretudo na Argélia, aproveitassem a ocasião para se
separar da França e criar um Estado segregacionista que imitasse o modelo da África do Sul. Esta
apreensão não carecia de motivos, como os acontecimentos posteriores mostrariam.

(4) Para amigos e inimigos, a encarnação de Ho Chi Minh como símbolo comunista internacional foi
confirmada em 14 de Janeiro de 1950 quando Mao e Estaline foram os primeiros a reconhecer a sua
recém-declarada República Democrática do Vietname.

(5) Estes acontecimentos são descritos de forma memorável no filme de Gilles Pontecorvo La
Battaglia di Algeri (A Batalha de Argel), de 1965.

(6) O referendo aprovou uma nova república, a quinta. De Gaulle foi eleito como seu primeiro
presidente três meses depois.

(7) Quando os Belgas abandonaram o Congo, em 1960, deixaram atrás de si apenas 30 Congoleses
diplomados por universidades para preencher 4000 postos administrativos superiores.

(8) Entre 1954 e 1962, houve dois milhões de soldados franceses a prestar serviço na Argélia; 1,2
milhões foram recrutados.

(9) Citado por Fernand L’Huillier, Dialogues Franco-allemands 1925-1933 (Estrasburgo, 1971), pp.
35-36.

(10) O próprio Canal estivera sempre situado em território egípcio e pertencia sem dúvida a este
país, mas a maior parte dos seus rendimentos ia para uma companhia estrangeira.

(11) Citado em Alan Milward, The European Rescue of the Nation-State (Berkeley & Los Angeles,
University of California Press, 1992), p. 429.

(12) Andrew Moravscik, The Choice for Europe. Social Purpose and State Power from Messina to
Maastricht (Ithaca, Cornell University Press, 1998), p. 137.

(13) A liderança estalinista continuava firmemente instalada, os julgamentos continuaram in camera


por mais dois anos e no 1.o de Maio de 1955 uma estátua grotesca e enorme de Estaline foi erguida num
monte sobranceiro a Praga. A destalinização só chegaria à Checoslováquia uma década depois e com
consequências dramáticas.

(14) Kadar, que Nagy tinha libertado da prisão há três anos, foi nomeado primeiro secretário do
Partido húngaro em 25 de Outubro. Substituiu Gerö, cujas forças de segurança tinham disparado sobre
manifestantes desarmados na Praça do Parlamento nessa mesma manhã.

(15) Que o líder soviético pudesse saber isto logo em 28 de Outubro, três dias antes de ter começado
a invasão anglo-francesa, sugere que a espionagem soviética era ainda melhor do que os aliados
ocidentais receavam nessa altura.

(16) Até Gomulka, na Polónia, concordou rapidamente com os argumentos soviéticos. Contudo, na
Polónia, o afastamento de Nagy em relação ao Pacto de Varsóvia foi uma fonte de ansiedade. Os receios
dos Polacos em relação ao revisionismo territorial alemão motivou o seu interesse especial pelos
acordos de segurança que as armas soviéticas garantiam. No entanto, devemos ter em atenção que num
encontro com Kruschev realizado em Maio de 1957, Gomulka tentou arduamente, embora sem sucesso,
dissuadir o líder soviético de levar Nagy a julgamento.

(17) Em organizações muito atrasadas, como o Partido Comunista Francês (que negou durante muito
tempo ter qualquer conhecimento das denúncias de Kruschev em relação a Estaline), muitos membros
abandonaram-nas, não tanto pelo que estava a acontecer no bloco soviético, mas porque a sua liderança
proibiu qualquer discussão acerca do assunto.
X

A Era da Abundância
«Sejamos francos a esse respeito: a maior parte da nossa gente nunca esteve
tão bem.»
Harold Macmillan, 20 de Julho, 1957
« Admass é o nome que dou a todo o sistema de produtividade crescente, mais
inflação, mais um elevado nível de vida, mais publicidade pressionante e
marketing, mais comunicação de massas, mais democracia cultural e a criação
do espírito de massas, o homem massificado.»
J. B. Priestley
«Olhem para essa gente! Primitivos! De onde vêem?
Lucania.
Onde fica isso?
Mesmo lá no fundo!»
Rocco e os seus irmãos, filme de Luchino Visconti (1960)
«Vamos para onde o sol brilha mais, vamos para onde o mar é
azul.
Vimo-lo no cinema –
Agora vamos ver se é verdade.»
Cliff Richard, em Summer Holiday (1959)
«É bastante desolador viver na era americana – a não ser, claro, que se seja
americano».
Jimmy Porter, em Look Back in Anger (1956)
Em 1979, o escritor francês Jean Fourastié publicou um estudo sobre a
transformação social e económica da França nos trinta anos após a Segunda
Guerra Mundial. O título – Les trente glorieuses: ou, La Révolution invisible
de 1946 à 1975 (Os Gloriosos Trinta: ou a Revolução Invisível de 1946 a
1975) – foi bem escolhido. Na Europa Ocidental as três décadas que se
seguiram à derrota de Hitler foram de facto «gloriosas». A notável aceleração
do crescimento económico foi acompanhada pelo início de uma era de
prosperidade sem precedentes. No espaço de uma só geração, as economias
da Europa Ocidental recuperaram o terreno perdido em quarenta anos de
guerra e depressão e o desempenho económico e padrões de consumo
começaram a assemelhar-se aos dos Estados Unidos. Menos de uma época
depois de saírem dos escombros, hesitantes e inseguros, os europeus
entraram, para seu grande espanto e com alguma consternação, na era da
abundância.
A história económica da Europa Ocidental do pós-guerra entende-se
melhor como uma inversão da história das décadas imediatamente
antecedentes. A ênfase malthusiana dos anos 30 colocada na protecção e
contenção económica foi abandonada em favor da liberalização do comércio.
Em vez de cortarem nas despesas e no orçamento, os governos aumentaram-
nos. Quase em todo o lado havia um compromisso permanente de
investimento público e privado a longo prazo em infra-estruturas e
maquinaria; fábricas e equipamento mais antigos foram actualizados ou
substituídos, com consequentes ganhos em produtividade e eficácia; houve
um aumento assinalável no comércio internacional e uma população activa e
jovem exigia e tinha meios para obter uma maior variedade de bens.
O boom económico do pós-guerra diferiu ligeiramente de lugar para lugar,
chegando primeiro à Alemanha e Inglaterra e só pouco depois a França e à
Itália, e foi vivido de forma diferente consoante as variações nacionais da
ênfase colocada nos impostos, na despesa pública ou no investimento. As
despesas iniciais da maior parte dos governos do pós-guerra destinaram-se
sobretudo à modernização das infra-estruturas – à construção ou remodelação
de estradas, caminhos-de-ferro, casas e fábricas. As despesas com o consumo
foram em alguns países deliberadamente contidas, com o resultado –
conforme vimos – de muitas pessoas viverem os seus primeiros anos do pós-
guerra como uma época de contínua, ainda que diferente, penúria. O grau de
relativa mudança também dependeu, evidentemente, do ponto de partida:
quanto mais rico o país, menos imediato e dramático parecia.
Todavia, cada país europeu assistiu ao crescimento continuado das suas
taxas de crescimento per capita do PIB e do PNB – Produto Interno Bruto e
Produto Nacional Bruto – os novos indicadores sacralizados da força nacional
e do bem-estar. No decorrer dos anos 50, a taxa média anual a que o volume
de produção cresceu, per capita, na Alemanha Ocidental foi de 6,5%; na Itália
5,3%; em França 3,5%. O significado de tão elevadas e sustentadas taxas de
crescimento avalia-se melhor quando se compara com o desempenho desses
mesmos países em décadas anteriores: nos anos de 1913 a 1950, o
crescimento alemão per annum era só de 0,4%, o italiano 0,6%, o francês
0,7%. Nem nas prósperas décadas do Império de Guilherme, após 1870, a
economia alemã conseguira mais do que uma média anual de 1,8%.
No decorrer dos anos 60 a taxa de crescimento começou a abrandar, mas
as economias da Europa Ocidental cresciam ainda a níveis históricos
invulgares. Globalmente, entre os anos de 1950 a 1973, o PIB por pessoa
mais do que triplicou em termos reais. O PIB per capita em França cresceu
cerca de 150%. A economia italiana, com um ponto de partida mais baixo,
ainda fez melhor. Em termos históricos, os países pobres viram a sua actuação
económica melhorar de forma espectacular: entre 1950 e 1973 o PIB per
capita (em dólares) na Áustria cresceu de 3731 para 11 308 (em dólares de
1990); em Espanha, de 2397 para 8739, de 1950 a 1970. A economia
holandesa cresceu cerca de 3,5% em cada ano, – sete vezes o crescimento
anual médio dos quarenta anos anteriores.
Um importante factor contributivo nesta história foi o aumento sustentado
do comércio externo, que cresceu muito mais depressa do que o volume
global nacional na maioria dos países europeus. Simplesmente afastando
impedimentos ao comércio internacional, os governos ocidentais do pós-
guerra percorreram um longo caminho no sentido de vencerem a estagnação
das décadas anteriores(1). O principal beneficiário foi a Alemanha Ocidental,
cuja quota na exportação mundial de bens manufacturados cresceu de 7,3%
em 1950 para 19,3% só dez anos depois, levando a economia alemã para o
lugar que ocupara no comércio externo antes do colapso de 1929.
Durante os quarenta e cinco anos após 1950, as exportações mundiais
aumentaram em volume dezasseis vezes. Até um país como a França, cuja
quota no comércio mundial se manteve estável, em cerca de 10%, durante
todos estes anos, beneficiou em muito com este enorme aumento global do
comércio internacional. De facto, todos os países industrializados lucraram
durante estes anos – as condições do comércio alteraram-se acentuadamente a
seu favor depois da Segunda Guerra Mundial, dado que os custos das
matérias-primas e dos alimentos importados do mundo não ocidental
baixaram regularmente, enquanto o preço dos bens manufacturados continuou
a aumentar. Em três décadas de trocas privilegiadas e desiguais com o
«Terceiro Mundo», o Ocidente tinha algo que se assemelhava a uma licença
para cunhar moeda(2).
No entanto, o que distinguiu o desenvolvimento económico da Europa
Ocidental, foi o grau de integração europeia de facto que daí resultou. Ainda
antes do Tratado de Roma, os futuros Estados-membros da Comunidade
Económica Europeia já comerciavam preferencialmente uns com os outros:
em 1958, 29% das exportações alemãs (em valor) iam para a França, Itália e
países do Benelux e outros 30% para outros Estados europeus. Na véspera da
assinatura do Tratado de Roma, 44% das exportações belgas iam já para os
seus futuros parceiros da CEE. Até mesmo países como a Áustria ou a
Dinamarca ou a Espanha, que só aderiram à Comunidade Europeia muitos
anos depois, estavam já integrados nas suas redes comerciais: em 1971, vinte
anos antes de aderir à futura União Europeia, a Áustria já fazia mais de 50%
das suas importações aos seis Estados-membros originais da CEE. A
Comunidade Europeia (posteriormente União Europeia) não estabeleceu as
bases para uma Europa economicamente integrada; pelo contrário,
representava a expressão institucional de um processo já em curso(3).
Outro elemento crucial da revolução económica do pós-guerra foi a
crescente produtividade do trabalhador da Europa Ocidental. Entre 1950 e
1980, a produtividade laboral na Europa Ocidental cresceu três vezes a média
dos oitenta anos anteriores: o PIB por hora de trabalho cresceu ainda mais
rapidamente do que o PIB per capita. Considerando o cada vez maior número
de pessoas em actividade, isto indica um acentuado aumento de eficiência e,
quase em todo o lado, grandes melhorias nas relações de trabalho. Também
isto foi em certa medida consequência da recuperação: as convulsões
políticas, o desemprego em massa, o subinvestimento e a destruição física dos
trinta anos anteriores, deixaram a maior parte da Europa após 1945 num ponto
de partida historicamente baixo. Mesmo sem o interesse contemporâneo pela
modernização e pelas técnicas aperfeiçoadas, a actividade económica teria
provavelmente passado por uma certa evolução.
No entanto, por detrás da constante melhoria na produção, havia uma
mudança mais profunda, permanente, na natureza do trabalho. Em 1945, a
maior parte da Europa era ainda pré-industrializada. Os países mediterrânicos,
a Escandinávia, a Irlanda e a Europa de Leste eram ainda principalmente
rurais e, sob todos os pontos de vista, atrasados. Em 1950, três em cada quatro
adultos trabalhadores na Jugoslávia e na Roménia eram camponeses. Uma
pessoa activa em cada duas trabalhava na agricultura em Espanha, Portugal,
Grécia, Hungria e Polónia; na Itália, três pessoas em cada cinco. Um em cada
três trabalhadores austríacos trabalhava em explorações agrícolas; em França,
quase três em cada dez empregados eram agricultores de um ou outro tipo.
Até mesmo na Alemanha Ocidental, 23% da população trabalhadora estava na
agricultura. Só no Reino Unido, onde o número era só de 5% e a um nível
inferior na Bélgica (13%), a revolução industrial do século XIX introduzira
uma sociedade pós-agrária(4).
No decorrer dos trinta anos seguintes, muitos europeus abandonaram a
terra e procuraram trabalho nas cidades, com as maiores alterações a darem-se
nos anos 60. Em 1977, só 16% dos Italianos activos trabalhavam na terra; na
região de Emilia-Romagna do nordeste, a percentagem da população activa na
agricultura caiu precipitadamente, de 52% em 1951 para apenas 20% em
1971. Na Áustria, o número nacional caíra para 12%, em França para 9,7%,
na Alemanha Ocidental para 6,8%. Até em Espanha, em 1971, só 20%
trabalhavam na agricultura. Na Bélgica (3,3%) e no Reino Unido (2,7%) os
agricultores estavam a tornar-se estatisticamente (quando não politicamente)
insignificantes. A lavoura e a produção de lacticínios tornaram-se mais
eficientes e cada vez menos de trabalho intensivo – especialmente em países
como a Dinamarca ou a Holanda, onde a manteiga, o queijo e os produtos
derivados do porco eram agora exportações lucrativas e pilares da economia
interna.
Como percentagem do PIB a agricultura caiu regularmente: em Itália a sua
percentagem na produção nacional passou rapidamente de 27,5% para 13%
entre 1949 e 1960. O principal beneficiário foi o sector terciário (incluindo
emprego no governo), onde muitos dos ex-camponeses – ou os seus filhos –
foram acabar. Algumas regiões – Itália, Irlanda, partes da Escandinávia e
França – passaram directamente da economia baseada na agricultura para uma
economia de serviços, numa única geração, contornando praticamente a fase
industrial em que a Inglaterra ou a Bélgica tinham estado envolvidas durante
quase um século(5). Em finais dos anos 70, uma clara maioria da população
activa na Inglaterra, Alemanha, França, países do Benelux, Escandinávia e
países alpinos trabalhava no sector dos serviços – comunicações, transportes,
bancos, administração pública e similares. A Itália, Espanha e a Irlanda
seguiam-nos muito de perto.
Na Europa de Leste comunista, pelo contrário, a esmagadora maioria de
ex-camponeses foi dirigida para o trabalho intensivo e tecnologicamente
atrasado das minas e manufactura industrial; na Checoslováquia o emprego
no sector terciário de serviços de facto diminuiu no decorrer dos anos 50. Tal
como o volume de produção de carvão e de minério de ferro diminuíra em
meados dos anos 50 na Bélgica, em França, na Alemanha Federal e no Reino
Unido, assim também continuou a aumentar na Polónia, na Checoslováquia e
na RDA. A ênfase dogmática comunista na extracção de matéria-prima e na
produção de bens primários gerou de facto um rápido crescimento inicial nas
vendas totais da produção e no PIB per capita. A curto prazo a ênfase
industrial das economias comunistas centralizadas surgiu assim
impressionante (especialmente para muitos observadores ocidentais). Mas foi
de mau agouro para o futuro das regiões.
O declínio da agricultura só por si teria sido responsável por muito do
crescimento da Europa, tal como a mudança do campo para a cidade e da
lavoura para a indústria acompanhara a ascensão da Inglaterra à proeminência
um século antes. Na verdade, o facto de não haver excedente de população
rural na Inglaterra para ser transferida para trabalhos mal remunerados na
manufactura ou nos serviços, e por isso nenhum ganho em eficiência a ser
obtido através da rápida recuperação do atraso, ajuda a explicar o
relativamente fraco desempenho da Inglaterra durante esses anos, com as
taxas de crescimento a ficarem sistematicamente atrás das da França ou da
Itália (ou da Roménia, se quisermos). Pela mesma razão, a Holanda
ultrapassou em eficácia a sua industrializada vizinha Bélgica durante essas
décadas, beneficiando da excepcional transferência de uma força de trabalho
rural excedentária para os até então subdesenvolvidos sectores industrial e de
serviços.
O papel do governo e do planeamento no milagre económico europeu é
mais difícil de avaliar. Em alguns sítios parecia tudo menos supérfluo. A
«nova» economia no Norte da Itália, por exemplo, foi buscar muita da sua
energia a milhares de pequenas firmas – compostas por empregados da
família que frequentemente se desdobravam em trabalhadores rurais sazonais
– com baixos custos de produção e de investimento e pagando poucos ou
nenhuns impostos. Em 1971, 80% da força de trabalho do país estava
empregada em estabelecimentos com menos – muitas vezes muito menos – de
100 empregados. Para além de fazerem vista grossa a infracções fiscais, de
ordenamento, de construção e outras, o papel representado pelas autoridades
centrais italianas na sustentação dos esforços económicos dessas firmas não é
claro.
Ao mesmo tempo o papel do Estado foi crucial no financiamento de
transformações em larga escala que teriam estado fora do alcance da iniciativa
individual ou do investimento privado: o financiamento não governamental
europeu manteve-se escasso por muito tempo e o investimento privado da
América só começou a substituir o Plano Marshall ou a ajuda militar em
finais dos anos 50. Na Itália, a Cassa per il Mezzogiorno, apoiada por um
grande empréstimo do Banco Mundial, inicialmente investiu em infra-
estruturas e melhoramentos agrários: aproveitamento de terras, construção de
estradas, drenagem, viadutos, etc. Mais tarde voltou-se para o apoio a novas
instalações industriais. Ofereceu incentivos – empréstimos, subsídios, redução
de impostos – a firmas particulares interessadas em investir no Sul; serviu de
veículo através do qual as holdings do Estado eram orientadas no sentido de
fazerem até 60% do seu investimento no Sul, e, nas décadas após 1957,
estabeleceu 12 «áreas de crescimento» e 30 «núcleos de crescimento»
espalhados pelo terço meridional da península.
Tal como grandes projectos estatais noutros lugares, a Cassa era ineficaz e
pouco mais do que corrupta. A maior parte dos seus benefícios ia para as
regiões costeiras favorecidas; muita da nova indústria que trouxe era de
capital intensivo criando assim poucos postos de trabalho. Muitas das
herdades «independentes» mais pequenas formadas após a reforma agrária na
região mantiveram-se dependentes do Estado, fazendo do Mezzogiorno
italiano uma espécie de região subsidiada semipermanente. Contudo, em
meados dos anos 70 o consumo per capita duplicara no Sul, os salários locais
tinham subido em média 4% ao ano, a mortalidade infantil passara para
metade e a electrificação estava a caminho de se completar – no que tinha
sido, na memória de uma geração, uma das mais desamparadas e atrasadas
regiões da Europa. Dada a velocidade a que o Norte industrializado arrancava
– em certa medida, como veremos, graças aos trabalhadores do Sul – o que
espanta não é o fracasso da Cassa em produzir um milagre económico a sul
de Roma, mas o facto de a região ter conseguido acompanhar. Por isto, as
autoridades de Roma merecem algum crédito.
Noutros países o papel do governo variou; mas nunca foi negligenciável.
Em França, o Estado confinou-se ao que ficou conhecido como «planeamento
indicativo» – usando os instrumentos do poder para dirigir recursos para
regiões seleccionadas, indústrias e até mesmo produtos, e compensando
conscienciosamente o enfraquecido subinvestimento malthusiano das décadas
anteriores à guerra. Os funcionários do governo podiam exercer um controlo
razoavelmente eficaz sobre o investimento privado especialmente porque
durante esta fase inicial do pós-guerra as leis monetárias e a limitada
mobilidade do capital internacional impediam a competição estrangeira. Os
banqueiros e os investidores privados em França e noutros sítios, limitados na
sua liberdade para procurarem no estrangeiro lucros mais proveitosos a curto
prazo, investiram em casa(6).
Na Alemanha Federal, onde a permanente recordação da guerra era de
conflito e instabilidade (tanto política como monetariamente), as autoridades
de Bona eram muito menos activas do que as suas homólogas francesas ou
italianas no planeamento ou na orientação da actuação económica, mas deram
muito mais atenção aos planos destinados a evitar ou mitigar os conflitos
sociais, nomeadamente entre empregadores e trabalhadores. Encorajaram e
subscreveram especialmente negociações e «contratos sociais» destinados a
reduzir os riscos de greve ou inflação salarial. Como resultado, as indústrias
privadas (e os bancos com que trabalhavam ou que eram seus proprietários)
estavam mais dispostas a investir no seu futuro porque podiam contar com
uma contenção salarial a longo prazo para os seus trabalhadores. Os
trabalhadores mal remunerados na Alemanha Federal, tal como na
Escandinávia, foram compensados por esta relativa docilidade com a garantia
de emprego, baixa inflação e sobretudo com serviços sociais e benefícios
amplos financiados com o agravamento progressivo dos impostos.
Na Inglaterra, o governo interveio mais directamente na economia. A
maior parte das nacionalizações levadas a cabo pelo governo trabalhista de
1945-51 foi mantida pelos governos conservadores que lhe sucederam.
Ambos os partidos recusaram o planeamento económico a longo prazo ou a
intervenção agressiva nas relações de gestão do trabalho. Este envolvimento
activo tomou a forma de orientação da procura – manipulando taxas de juro e
impostos marginais para encorajar a poupança ou a despesa. Estas foram
tácticas de curto prazo. O principal objectivo estratégico dos governos
ingleses de todas as cores durante estes anos foi o de evitar o regresso aos
níveis traumáticos de desemprego dos anos 30.
-
(1) No entanto, não devemos exagerar a velocidade com que foram eliminados antigos regulamentos.
Ainda nos anos 60 o governo italiano, por exemplo, achou politicamente prudente manter as tarifas e
quotas da era fascista para os carros estrangeiros, para melhor proteger os produtos nacionais
(especialmente a FIAT). O governo britânico seguiu estratégias semelhantes.

(2) Muito do qual seria reciclado como empréstimos a esse mesmo Terceiro Mundo agora oprimido
por dívidas esmagadoras.

(3) A Grã Bretanha, como outras vezes, foi diferente. Em 1956, 74% das exportações do Reino
Unido foram para fora da Europa, sobretudo para as suas colónias e para a Commonwealth. Até mesmo
em 1973, quando o Reino Unido por fim entrou na CEE, só um terço das suas exportações se dirigia aos
doze países que formariam a União Europeia em 1992.

(4) Em termos de comparação pode-se referir que o número para os EUA em 1950 era de 12% de
pessoas empregadas na agricultura.

(5) A Suécia representa uma excepção parcial – a chave da prosperidade sueca do pós-guerra foi a
especialização na manufactura de produtos de elevado valor. Mas os Suecos tinham acesso a um grupo
de trabalhadores emigrantes baratos e disponíveis (finlandeses), bem como à indústria de energia
hidroeléctrica que protegia o país dos choques do preço do petróleo. Tal como a Suíça e por razões
semelhantes, representam um caso especial.

(6) O contraste com práticas anteriores é revelador. Em fases iniciais da industrialização francesa, até
aos grandes bancos de investimento parisienses tinham faltado os recursos para apoiarem a
modernização das infra-estruturas industriais e não tinham recebido ajuda ou incentivos por parte do
governo. A situação delapidada das fábricas francesas, estradas, redes ferroviárias e serviços públicos
em 1945 era um testemunho eloquente destas falhas.
Por toda a Europa Ocidental, então, os governos, empregadores e
trabalhadores conspiraram para forjar um círculo virtuoso: elevados gastos
governamentais, tributação progressiva e aumentos salariais limitados. Como
vimos, estes objectivos já faziam parte do consenso generalizado forjado
durante e depois da guerra, necessários às economias planeadas e a uma certa
forma de «Estado social». Foram assim o produto das políticas dos governos e
das intenções colectivas. Mas a situação que proporcionou o seu êxito sem
precedentes estava para além do alcance directo da acção governamental. O
que desencadeou o milagre económico europeu e convulsão social e cultural
que se seguiu ao seu despertar foi o rápido e sustentado aumento da
população europeia.
A Europa já tinha passado por surtos demográficos no passado – mais
recentemente em meados do século XIX. Mas estes não tinham conduzido
sempre a aumentos sustentados de população: fosse por a agricultura
tradicional não poder sustentar demasiadas bocas, ou devido a guerras e
doenças, ou ainda devido ao recente excesso populacional levar a que os
jovens adultos emigrassem para o estrangeiro na busca de uma vida melhor. E
no século XX, a guerra e a emigração tinham mantido o crescimento
populacional na Europa muito abaixo do que se poderia ter esperado da
crescente taxa de nascimentos de décadas anteriores.
Nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, os efeitos resultantes da perda
de uma geração de jovens na Primeira Guerra Mundial, juntamente com a
depressão económica e as guerras civis e incerteza política dos anos 30,
tinham reduzido a taxa de natalidade em zonas da Europa Ocidental a níveis
historicamente baixos. No Reino Unido houve apenas 15,3 nados-vivos em
mil pessoas; na Bélgica 15,4; na Áustria 12,8. Em França, onde a taxa de
natalidade em 1939 se situava em 14,6 por mil, as mortes excederam os
nascimentos não só durante a Primeira Guerra Mundial e em 1919 e
novamente em 1929, mas também em todos os anos de 1935 a 1944. Ali, tal
como na era da guerra civil em Espanha, a população nacional ia baixando
regularmente. No resto da Europa mediterrânica e a leste de Viena a taxa de
natalidade era mais elevada, por vezes o dobro do Ocidente. Mas elevados
níveis de mortalidade infantil e taxas de mortalidade mais elevadas em todos
os grupos etários significavam que até mesmo aí o crescimento populacional
não era digno de nota.
É neste cenário e no da adicional calamidade demográfica da própria
Segunda Guerra Mundial que o baby boom do pós-guerra tem de ser
entendido. Entre 1950 e 1970, a população do Reino Unido cresceu 13%; a da
Itália, 17%. Na Alemanha Ocidental a população cresceu durante estes anos
28%; na Suécia, 29%; na Holanda, 35%; em alguns destes casos o
crescimento indígena foi impulsionado pela imigração (de colonos
regressados à Holanda, de refugiados da Alemanha de Leste e outros
refugiados para a República Federal). Mas os factores exógenos tiveram
apenas um pequeno papel em França: entre o primeiro recenseamento pós-
guerra de 1946 e o fim dos anos 60, a população francesa cresceu quase 30%
– a mais rápida taxa de crescimento alguma vez aí registada.
A impressionante característica da Europa nos anos 50 e 60 – pode
imediatamente ser percebida através de qualquer cena de rua contemporânea
– era então o número de crianças e de jovens. Após um hiato de quarenta
anos, a Europa estava novamente a tornar-se jovem. Os anos de auge dos
nascimentos pós-guerra na maior parte dos países foram de 1947-1949 – em
1949 nasceram em França 869 000 bebés, comparados com apenas 612 000
em 1939. Em 1960, na Holanda, na Irlanda e na Finlândia, 30% da população
tinha menos de 15 anos. Em 1967, em França, uma pessoa em três tinha
menos de 20. Não era só por terem nascido milhões de crianças depois da
guerra: um número sem precedentes sobrevivera.
Graças à alimentação melhorada, habitação e cuidados médicos, a taxa de
mortalidade infantil – o número de crianças por mil nados-vivos que morrem
antes de atingirem o primeiro ano de vida – caiu marcadamente na Europa
Ocidental nestas décadas. Na Bélgica baixou de 53,4 em 1950 para 21,1 em
1970, a maior parte da alteração a dar-se na primeira década. Na Itália caiu de
63,8 para 29,6 e em França de 52 para 18,2. As pessoas idosas também
viviam mais tempo – pelo menos na Europa Ocidental, onde a taxa de
mortalidade baixou de forma constante durante o mesmo período. A taxa de
sobrevivência na primeira infância na Europa de Leste também melhorou,
partindo de um número inicial muito pior: na Jugoslávia as taxas de
mortalidade infantil baixaram de 118,6 por mil em 1950 para 55,2 vinte anos
depois(7). Na União Soviética, as taxas baixaram de 81 por mil em 1950 para
25 em 1970, embora com amplas variações entre as diferentes repúblicas.
Mas as taxas de fertilidade nos Estados comunistas baixaram bastante mais
cedo do que no Ocidente e a partir de meados dos anos 60 eram mais do que
igualadas pelas taxas de falecimento cada vez piores (especialmente entre os
homens).
Há muitas explicações para a recuperação da fertilidade europeia depois da
Segunda Guerra Mundial, mas a maior parte delas reduz-se a uma
combinação de Segunda Guerra Mundial, mas a maior parte delas reduz-se a
uma combinação de optimismo com leite gratuito. Durante a longa depressão
demográfica de 1913-1945, os governos tinham procurado em vão incentivar
a procriação: compensando através do incentivo patriótico, «códigos» de
família e outra legislação para a crónica falta de homens, habitação, empregos
e segurança. Agora – mesmo antes do crescimento do pós-guerra se ter
traduzido em emprego seguro e numa economia de consumo – a coincidência
de paz, segurança e algum encorajamento estatal bastou para conseguir o que
nenhuma propaganda pró-natalidade antes de 1940 conseguira.
Soldados desmobilizados, prisioneiros regressados da guerra e deportados
políticos, encorajados pelos esquemas de racionamento e distribuição que
favoreciam os casais com filhos, assim como subsídios monetários por cada
filho, agarraram a primeira oportunidade para se casarem e constituírem
família. E havia outra coisa. No início dos anos 50, os países da Europa
Ocidental podiam oferecer aos seus cidadãos mais do que apenas esperança e
uma rede de segurança social: também forneceram uma abundância de
empregos. No decorrer dos anos 30, a taxa média de desemprego na Europa
Ocidental tinha sido de 7,5% (11,5% no Reino Unido). Nos anos 50 caíra
abaixo dos 3% em todo o lado com excepção da Itália. A meio dos anos 60 a
média europeia era unicamente de 1,5%. Pela primeira vez desde que se
faziam registos, a Europa Ocidental estava a viver um pleno emprego. Em
muitos sectores havia agora uma falta endémica de trabalhadores.
Apesar da força estratégica que isto concedia ao trabalho organizado, os
sindicatos (com a distintiva excepção da Inglaterra) eram ou fracos ou então
relutantes em exercer o seu poder. Isto era um legado das décadas entre
guerras: os sindicatos militantes ou políticos nunca recuperaram
completamente do impacto da Depressão e da repressão fascista. Em troca da
sua recente respeitabilidade como parceiros negociais nacionais, os
representantes dos sindicatos durante os anos 50 e início dos 60 preferiam
muitas vezes colaborar com os empregadores em vez de explorarem falhas
laborais em seu imediato benefício. Em 1955, quando o primeiro acordo de
produtividade em França se celebrou entre os representantes dos
trabalhadores da indústria automóvel e o fabricante nacionalizado de
automóveis da Renault, foi um sintoma da viragem para a perspectiva de que
o principal ganho dos trabalhadores não era em salários, mas na inovadora
concessão de uma terceira semana de férias pagas(8).
Outra razão para os sindicatos de operários já não serem tão significativos
na Europa Ocidental é a sua composição – trabalhadores manuais masculinos
especializados – estar em declínio. O trabalho nas indústrias do carvão, aço,
têxteis e outras do século XIX estava a diminuir, embora isto só se tenha
tornado óbvio nos anos 60. Abriam cada vez mais empregos no sector
terciário e muitos dos que os ocupavam eram mulheres. Alguns empregos –
manufactura têxtil, trabalho doméstico – tinham sido fortemente feminizados
durante muitas décadas. Mas depois da guerra as oportunidades de emprego
diminuíram acentuadamente nesses empregos. A força de trabalho feminina já
não consistia em mulheres solteiras a trabalharem como criadas ou operárias.
Em vez disso, compunha-se cada vez mais de mulheres mais velhas (muitas
vezes casadas) a trabalharem em lojas, escritórios e em algumas profissões de
baixo salário: especialmente enfermagem e ensino. Em 1961, um terço da
força de trabalho activa no Reino Unido era feminina e duas em cada três
mulheres empregadas trabalhavam em escritórios ou em secretariado. Até na
Itália, onde as mulheres mais velhas não se tinham juntado às fileiras das
(oficialmente) empregadas, 27% da força de trabalho era feminina em finais
dos anos 60.
A insaciável procura de mão-de-obra no próspero quadrante nordeste
europeu explica as extraordinárias migrações em massa nos anos 50 e início
dos 60. Estas assumiram três formas. Primeiro, os homens (e em menor escala
as mulheres e as crianças) trocavam o campo pela cidade e mudavam-se para
regiões mais desenvolvidas do seu próprio país. Em Espanha, mais de um
milhão de habitantes da Andaluzia mudou-se para o Norte, para a Catalunha,
durante as duas décadas após 1950: em 1970, 1,6 milhões de Espanhóis
nascidos na Andaluzia viviam fora da sua região natal, 712 000 em
Barcelona. Em Portugal, uma percentagem substancial da empobrecida região
do Alentejo partiu para Lisboa. Em Itália, entre 1955 e 1971, um número
calculado em nove milhões de pessoas mudou-se de uma região do seu país
para outra.
Este padrão de movimentação de população não se confinou ao
Mediterrâneo. Os milhões de jovens que saíram da República Democrática
Alemã para a Alemanha Federal entre 1950 e 1961 podem ter estado a optar
pela liberdade política, mas ao irem para Ocidente estavam também à procura
de empregos bem pagos e de uma vida melhor. Neste aspecto diferiam pouco
dos seus contemporâneos espanhóis ou italianos – ou do quarto de milhão de
Suecos do centro rural e do Norte do seu país que se mudaram para as cidades
na década seguinte a 1945. Grande parte desta movimentação foi
impulsionada por disparidades de salários; mas o desejo de fuga às
dificuldades, ao isolamento e desolação da vida nas aldeias e ao domínio das
hierarquias rurais também tiveram o seu papel, especialmente para os jovens.
Um benefício fortuito foram os ordenados dos que ficaram e a quantidade de
terra para eles disponível ter aumentado correspondentemente.
Um segundo caminho tomado pelos migrantes envolveu a mudança de um
país europeu para outro. A emigração europeia, evidentemente, não era
novidade. Mas os quinze milhões de Italianos que abandonaram o seu país
entre 1870 e 1926 tinham geralmente atravessado o Atlântico: para os Estados
Unidos ou para a Argentina. O mesmo foi verdade para os milhões de Gregos,
Polacos, judeus e outros que emigraram durante os mesmos anos, ou para os
escandinavos, Alemães e Irlandeses de uma geração anterior. Depois da
Primeira Guerra Mundial, com certeza tinha havido um fluxo constante de
mineiros e trabalhadores rurais da Itália e da Polónia para a França, por
exemplo; e os anos 30 viram refugiados políticos a fugirem do nazismo e do
fascismo para o Ocidente. Mas a migração intra-europeia, especialmente em
busca de trabalho, continuou a ser excepção.
Em finais dos anos 50, tudo isto mudou. O movimento de mão-de-obra
para além-fronteiras tivera início pouco depois do fim da guerra – no
seguimento de um acordo de Junho de 1946, dezenas de milhares de jovens
trabalhadores italianos viajaram em comboios organizados para irem trabalhar
nas minas da Valónia, em troca do compromisso belga de fornecer carvão à
Itália. Mas no decurso dos anos 50, a expansão económica do Nordeste
europeu estava a ultrapassar o crescimento populacional: a geração do baby-
boom tinha ainda de entrar no mercado de trabalho mas a necessidade de
mão-de-obra estava no auge. Quando em particular a economia alemã
começou a acelerar, o governo de Bona foi obrigado a procurar mão-de-obra
barata no estrangeiro.
Em 1956, o chanceler Adenauer esteve em Roma a oferecer transporte
gratuito a todos os trabalhadores italianos que quisessem viajar para a
Alemanha e a solicitar cooperação oficial italiana para encaminhar os
habitantes do Sul desempregados através dos Alpes. No decurso da década
seguinte as autoridades de Bona iriam assinar uma série de acordos não só
com a Itália mas abrangendo também a Grécia e a Espanha (1960), a Turquia
(1961), Marrocos (1963), Portugal (1964), Tunísia (1964) e Jugoslávia
(1968). Os trabalhadores estrangeiros («convidados») foram encorajados a
arranjar emprego na Alemanha – na convicção de que o seu trabalho era
estritamente temporário: um dia, acabariam por regressar aos seus países de
origem. Tal como os trabalhadores migrantes finlandeses na Suécia, ou os
trabalhadores irlandeses na Inglaterra, estes homens – a maior parte com
menos de 25 anos – vinham em quase todos os casos de regiões pobres, rurais
ou montanhosas. A maioria não era especializada (embora alguns aceitassem
a «despecialização» para conseguirem trabalho). Os seus vencimentos na
Alemanha e em outros países do Norte representaram um papel importante na
manutenção das economias das regiões que tinham abandonado, mesmo
quando a sua partida aliviou a competição local por empregos e habitação.
Em 1973, as remessas dos trabalhadores no estrangeiro representavam 90%
dos lucros de exportação turcos, 50% dos lucros de exportação na Grécia,
Portugal e Jugoslávia.
O impacto demográfico desta transferência de trabalhadores foi
significativo. Embora os migrantes fossem oficialmente «temporários»
tinham na prática abandonado as suas casas para sempre. Se regressaram, foi
só muitos anos depois, para se reformarem. Sete milhões de Italianos
abandonaram o seu país entre 1945 e 1970. Nos anos de 1950 a 1970 um
terço de toda a mão-de-obra grega partiu para encontrar trabalho no
estrangeiro: no auge da emigração, em meados dos anos 60, 117 000 Gregos
saíam do país todos os anos(9). Calcula-se que entre 1961 e 1974, um milhão
e meio de Portugueses encontrou trabalho no estrangeiro – o maior
movimento populacional da história de Portugal, deixando no país
propriamente dito uma força de trabalho de apenas 3,1 milhões. Estes eram
números dramáticos para um país cuja população total em 1950 era de apenas
8,3 milhões. A emigração de jovens mulheres em busca de trabalho doméstico
em Paris e em outros sítios teve um efeito particularmente acentuado no
campo, onde o défice de jovens adultos só foi parcialmente mitigado pela
chegada dos imigrantes das colónias portuguesas de Cabo Verde e África.
Num município português, Sabugal, no Norte rural, a emigração reduziu a
população local de 43 513 em 1950 para unicamente 19 174 trinta anos
depois.
O benefício económico para o país «importador» foi considerável. Em
1964, os trabalhadores estrangeiros (principalmente italianos) representavam
um quarto da força de trabalho na Suíça, onde o ramo do turismo dependia
fortemente da mão-de-obra sazonal barata: facilmente obtida, prontamente
despedida. Na Alemanha Ocidental, no ano de apogeu de 1973, havia 2,8
milhões de trabalhadores estrangeiros, a maior parte na construção e
metalurgia e na manufactura automóvel. Representavam um trabalhador em
oito da força de trabalho nacional. Em França os 2,3 milhões de trabalhadores
estrangeiros registados nesse ano constituíam 11% da população trabalhadora
total. Muitos deles eram mulheres no trabalho doméstico, empregadas como
cozinheiras, mulheres de limpeza, porteiras e amas – esmagadoramente de
origem portuguesa.
A maioria destes homens e mulheres não possuía direitos de residência
permanentes e não estavam incluídos nos acordos assinados pelos sindicatos e
empregadores que proporcionavam a segurança, assistência social e reforma
dos empregados locais. Representavam assim um muito pequeno
compromisso ou custo a longo prazo para o empregador e para o país para
onde tinham ido. Em plenos anos 80, os «trabalhadores temporários» na
Alemanha foram mantidos em posições e salários ao nível de início. Viviam o
melhor que podiam enviando para casa a maior parte do salário: por muito
pouco que recebessem em marcos ou francos, era muito mais do que o seu
potencial vencimento nas suas aldeias de origem. A sua situação assemelhava-
se à do triste criado italiano em Luzerna, caricaturado com leveza no filme de
Franco Brusati, de 1973, Pane e Cioccolata (Pão e Chocolate).
Em 1973, só na Alemanha Ocidental havia quase meio milhão de
Italianos, 535 000 Jugoslavos e 605 000 Turcos(10). Os Alemães, tal como os
Suíços, Franceses, Belgas ou Ingleses – não acolhiam especialmente bem a
súbita erupção de tantos estrangeiros no seu território. A sensação de viver no
meio de tanta gente de países desconhecidos não era familiar à maior parte
dos europeus. Se era razoavelmente bem tolerada, unicamente com ocasionais
manifestações de preconceito e violência contra as comunidades de
trabalhadores estrangeiros, isto deveu-se em certa medida ao facto destes
últimos viverem afastados da população local, nos mais desolados subúrbios
das maiores cidades; por não constituírem ameaça económica numa época de
pleno emprego; porque pelo menos no caso dos cristãos de Portugal, Itália e
Jugoslávia eram física e culturalmente «assimiláveis» – isto é, não eram
negros ou muçulmanos e porque era geralmente aceite que um dia se iriam
embora.
Estas considerações, no entanto, não se aplicam a uma terceira fonte de
mão-de-obra importada: imigrantes de antigas e actuais colónias europeias. O
número de pessoas nesta categoria não era inicialmente significativo. Muitos
dos que tinham regressado à Holanda, Bélgica e França de antigas possessões
imperiais na Ásia, África, América do Sul e Pacífico eram profissionais
brancos ou então agricultores reformados. Até o número de naturais da
Argélia a viverem em França em 1969 era unicamente de 600 000, menos do
que a população local de Italianos ou Espanhóis.
Mesmo na Inglaterra, onde os governos dos anos 50 tinham activamente
encorajado a imigração dos naturais das Caraíbas para prover de pessoal os
comboios do país, os autocarros e os serviços municipalizados, os números
não eram especialmente relevantes. No recenseamento de 1951 havia 15 000
pessoas das Índias Ocidentais (sobretudo dos Barbados) residentes no Reino
Unido: 4000 dos quais em Londres. Em 1959 a imigração das Índias
Ocidentais para o Reino Unido era de cerca de 16 000 pessoas por ano. A
imigração de outras partes da Commonwealth era ainda menor – em 1959
havia só 3000 chegadas de imigrantes vindos da Índia e do Paquistão. Os
números iriam aumentar em anos posteriores – nomeadamente quando o
governo britânico concordou relutantemente em admitir os asiáticos da África
Oriental expulsos pelo ditador ugandês Idi Amin – mas mesmo em 1976
ainda só havia 1,85 milhões de «não brancos» entre a população do Reino
Unido, 3% do total. E 40% deles tinham lá nascido.
O que fazia a diferença, evidentemente, era estas pessoas serem de cor – e
sendo cidadãos da Commonwealth, tinham o suposto direito de residência
permanente e, posteriormente, de cidadania na metrópole imperial. Já em
1958 distúrbios racistas no ocidente de Londres tinham alertado o governo
para o claro risco de permitir que «demasiados» imigrantes entrassem numa
sociedade historicamente branca. E assim, embora a necessidade económica
de imigrantes não especializados se mantivesse e os totais gerais fossem
insignificantes, o Reino Unido introduziu o primeiro de muitos controlos à
imigração não europeia. A Lei de Imigração da Commonwealth de 1962
introduziu pela primeira vez «senhas de emprego» e instituiu um rigoroso
controlo à imigração não branca para o Reino Unido. Uma lei seguinte de
1968 ainda o restringiu mais, limitando a cidadania do Reino Unido a pessoas
com pelo menos um progenitor britânico e em 1971 uma outra lei
manifestamente dirigida a não brancos restringiu severamente a admissão dos
descendentes de imigrantes já na Inglaterra(11).
O resultado final destas leis foi acabar com a imigração não europeia para
a Inglaterra menos de vinte anos depois de ter começado. A partir daí, a
crescente quota de não brancos na população do Reino Unido seria
consequência das elevadas taxas de natalidade dos africanos, caribenhos e sul-
asiáticos no interior do Reino Unido. Por outro lado, estas restrições drásticas
nos direitos de negros e asiáticos entrarem no Reino Unido foram
acompanhadas, na devida altura, por uma considerável melhoria nas suas
hipóteses de vida uma vez ali chegados. Uma Lei de Relações de Raças de
1965 baniu a discriminação em lugares públicos, introduziu soluções para a
discriminação no trabalho e instituiu penalizações para o incitamento ao ódio
racial. Uma Lei seguinte, onze anos depois, finalmente ilegalizou toda a
discriminação baseada na raça e criou uma Comissão para a Igualdade Racial.
Em certos aspectos, as novas populações não europeias do Reino Unido (e
mais tarde da França) tiveram mais sorte do que os europeus de segunda
classe que encontraram trabalho a norte dos Alpes. As senhorias inglesas já
não podiam exibir cartazes anunciando «Não se admitem pretos, Irlandeses ou
cães»; mas avisos a proibir a entrada «a cães e a Italianos» não eram
desconhecidos nos parques suíços durante ainda mais alguns anos.
No Norte da Europa a situação dos operários estrangeiros e outros
residentes foi deliberadamente mantida precária. O governo holandês
encorajou os trabalhadores de Espanha, Jugoslávia, Itália (e mais tarde
Turquia, Marrocos e Suriname) a entrarem e aceitarem trabalho nos têxteis,
nas minas e na construção naval. Mas quando as velhas indústrias encerraram,
foram estes trabalhadores que perderam o emprego, muitas vezes sem
qualquer segurança ou rede de assistência social para amortecer o impacto
neles e nas suas famílias. Na Alemanha Ocidental, uma Lei de Estrangeiros
de 1965 incluía no seu texto «Regulamentos Administrativos para
Estrangeiros» promulgados inicialmente pelos nazis em 1938. Os
trabalhadores estrangeiros eram descritos e tratados como presença
temporária à mercê das autoridades. Em 1974, no entanto, quando a economia
europeia abrandou, arrastando-se lentamente, e muitos dos trabalhadores
imigrantes já não eram necessários, tinham-se tornado residentes
permanentes. Nesse ano, 17,3% de todas as crianças nascidas na Alemanha
Ocidental eram filhas de «estrangeiros».
O impacto destas movimentações de pessoas é difícil de sobrestimar. Ao
todo, ascendiam a uns quarenta milhões de pessoas em trânsito,
movimentando-se no interior dos países, entre países e para a Europa vindos
do ultramar. Sem mão-de-obra barata e abundante desta forma vulnerável e
muitíssimo desorganizada, o rápido desenvolvimento europeu não teria sido
possível. Os Estados europeus do pós-guerra – e os empregadores privados –
beneficiaram bastante com um fluxo regular de trabalhadores dóceis e mal
pagos para os quais frequentemente evitavam pagar os custos sociais totais.
Quando o desenvolvimento europeu terminou e chegou a hora de despedir a
mão-de-obra excessiva, a força de trabalho imigrante e migrante foi a
primeira a sofrer.
Como toda a gente, os novos trabalhadores não fizeram só coisas,
compraram-nas. Isto era algo completamente novo. Ao longo da história, a
maior parte das pessoas na Europa – assim como em qualquer parte do mundo
– só tinha possuído quatro tipos de coisas: as que herdaram dos pais; as que
eles próprios fizeram; as que permutaram ou trocaram com outros e os poucos
artigos que tinham sido obrigados a comprar a dinheiro, quase sempre feitos
por alguém que conheciam. A industrialização no decorrer do século XIX
tinha transformado o mundo dos habitantes das cidades, mas em muitas partes
da Europa rural a economia tradicional funcionou em grande parte inalterada
até e mesmo para além da Segunda Guerra Mundial.
A maior despesa de um orçamento doméstico tradicional era de longe na
alimentação e vestuário que juntamente com a habitação absorvia grande
parte dos rendimentos de uma família. A maior parte das pessoas não fazia
compras ou «consumia» no sentido moderno; subsistia. Para a esmagadora
maioria da população europeia até meados do século XX, o «rendimento
disponível» era uma contradição. Ainda em 1950, o agregado familiar médio
da Europa Ocidental gastava mais de metade do seu dinheiro em
necessidades: comida, bebida e tabaco (sic). Na Europa mediterrânica o
número era distintamente maior. Quando se acrescentava o vestuário e a
renda, não restava muito para os artigos não essenciais.
Na geração seguinte tudo isto iria mudar. Nas duas décadas após 1953, os
salários reais quase triplicaram na Alemanha Ocidental e nos países do
Benelux. Na Itália, a taxa de crescimento dos rendimentos era ainda mais alta.
Até mesmo na Inglaterra o poder de compra do cidadão médio quase duplicou
durante esses anos. Em 1965, a alimentação e o vestuário absorviam só 31%
dos gastos do consumidor na Inglaterra; em 1980 a média para a Europa
Ocidental e do Norte como um todo era inferior a um quarto.
As pessoas tinham dinheiro para poupar e gastavam-no. Em 1950, os
retalhistas da Alemanha Ocidental venderam apenas 900 000 pares de meias
de nylon para senhora (o artigo de luxo emblemático dos anos logo a seguir
ao pós-guerra). Quatro anos depois, em 1953, movimentaram 58 milhões de
pares. Nas mercadorias mais tradicionais, o principal impacto desta revolução
nos gastos surgiu na forma como os bens eram embalados e a escala a que
eram vendidos. Começaram a surgir os supermercados, nomeadamente nos
anos 60, década em que o impacto do crescente poder de compra se fez sentir
mais espectacularmente. Na Holanda, que só tinha sete supermercados em
1961, dez anos mais tarde havia 520. Na mesma década, o número de
supermercados na vizinha Bélgica cresceu de 19 para 456; em França, de 49
para 1833(12).
A fundamentação para os supermercados era que os compradores (donas
de casa na sua maior parte) iriam gastar mais numa ida às compras se aquilo
que pretendiam – ou fossem tentadas a pretender – estivesse
convenientemente disponível num só sítio. Mas isto por sua vez pressupunha
que as mulheres dispusessem de um sítio para colocar os alimentos quando os
tivessem em casa e isso implicava, cada vez mais, a presença de um
frigorífico (variando o número de 12%, na Alemanha Ocidental, a menos de
2% na Itália). O motivo não era tanto técnico (em meados dos anos 50, quase
toda a Europa Ocidental tinha um serviço completo de electricidade, com a
excepção de zonas da Noruega rural e regiões meridionais e montanhosas da
Itália) como logístico: até as donas de casa poderem comprar uma quantidade
de alimentos perecíveis numa só saída e os poderem transportar para casa, não
fazia muito sentido gastar grandes quantias de dinheiro num frigorífico(13).
É assim sintomático de muitas outras alterações relacionadas que, em
1974, a ausência de um frigorífico na maior parte dos sítios teria sido notada:
na Bélgica e no Reino Unido, 82% dos agregados familiares possuíam um;
em França, 88%; na Holanda e na Alemanha Ocidental, 93%. Mais notável
ainda, 94% dos lares italianos possuía agora um frigorífico, a taxa mais
elevada da Europa. De facto, a Itália tornara-se o maior fabricante europeu de
frigoríficos e de outros «electrodomésticos». Em 1951 as fábricas italianas
fizeram unicamente 18 500 frigoríficos; duas décadas depois a Itália estava a
produzir 5 247 000 por ano – quase tantos como os EUA e mais do que o
resto da Europa toda junta.
Tal como o frigorífico doméstico, a máquina de lavar roupa fez o seu
aparecimento durante estes anos. Também ela se destinava a facilitar o
trabalho da agora rica dona de casa e incentivá-la a ampliar a extensão das
suas compras. No entanto, a máquina de lavar roupa levou mais tempo a
popularizar-se que o frigorífico – em parte porque em meados dos anos 50 a
água canalizada ainda não tinha chegado a mais do que metade dos agregados
familiares na Bélgica, Itália, Áustria, Espanha e muitas partes da França e da
Escandinávia, parcialmente por a rede eléctrica em muitos sítios não
conseguir suportar dois grandes electrodomésticos na mesma residência(14).
Mesmo em 1972, altura em que a maior parte dos europeus ocidentais vivia
em casas equipadas com casas de banho interiores e canalizações completas,
só duas famílias em três possuíam uma máquina de lavar roupa, uma
proporção que aumentou regular mas lentamente em cada década. As
máquinas de lavar roupa permaneceram durante muitos anos fora do alcance
dos pobres, especialmente das famílias grandes que mais precisavam delas.
Em parte por este motivo, a máquina de lavar roupa – tal como a máquina de
lavar louça depois de meados dos anos 70 – manteve-se associada no
imaginário comercial ao equipamento doméstico da classe média rica.
As máquinas de lavar roupa e os frigoríficos estavam a ficar mais baratos.
Tal como os brinquedos e as roupas, eram fabricados numa escala maior que
nunca, dado que o investimento, por um lado, e a elevada procura constante,
por outro, faziam os preços baixar: até em França, onde a produção em massa
esteve sempre um pouco atrasada, a reviravolta na indústria dos brinquedos
aumentou 350% nos anos iniciais do baby-boom, em 1948-1955. Mas o
círculo virtuoso de milhões de consumidores recentemente empregados teve o
seu impacto mais significativo não em casa mas fora dela. A maior medida da
prosperidade europeia foi a revolução causada pelo carro familiar.
Até aos anos 50, o automóvel era um luxo para a maior parte dos europeus
e em muitos sítios mal se encontrava. Mesmo nas cidades importantes a sua
chegada fora muito recente. A maioria das pessoas não percorria grandes
distâncias por prazer e quando viajava para o trabalho ou para a escola usava
os transportes públicos: comboios, carros eléctricos e autocarros. No início
dos anos 50 havia unicamente 89 000 carros particulares (não contando os
táxis) em Espanha: um por cada 314 000 pessoas. Em 1951, só um agregado
familiar em cada doze possuía um carro. Só na Inglaterra a posse de um carro
era um fenómeno de massas: em 1950 havia ali 2 258 000 carros particulares.
Mas a distribuição geográfica era irregular: quase um quarto de todos os
carros estava registado em Londres – grande parte da Inglaterra rural estava
vazia de carros, tal como a França ou a Itália. E mesmo assim, muitos
londrinos não possuíam carro e havia milhares de comerciantes, vendedores
ambulantes e outros que ainda dependiam de um cavalo e de uma carroça para
o seu trabalho.
A posse de um automóvel iria aumentar espectacularmente nas duas
décadas seguintes. Na Inglaterra, onde um arranque inicial nos anos 30 fora
travado pela escassez da guerra e do pós-guerra, duplicou em cada década de
1950 a 1980. De 2,25 milhões de veículos em 1950, a posse de carro ma Grã-
Bretanha subira para 8 milhões em 1964 e atingiu 11,5 milhões nos finais dos
anos 60. Os Italianos, que possuíam apenas 270 000 carros particulares no
início da guerra e 342 000 em 1950 (menos que o número de carros só na
grande Londres), possuíam dois milhões de veículos em 1960, cinco milhões
e meio em 1965, mais de dez milhões em 1970 e uns estimados quinze
milhões cinco anos depois – dois carros por cada sete residentes do país(15).
Em França, a propriedade de carros subiu de menos de dois milhões para
quase seis milhões de veículos no decorrer dos anos 50, depois voltou a
duplicar nos dez anos seguintes. Sintomaticamente, os parquímetros foram
introduzidos em finais dos anos 50 – começando na Inglaterra, espalhando-se
depois pela França e outros sítios no decorrer dos anos 60(16).
Se os europeus podiam comprar carros para uso pessoal em quantidade tão
sem precedentes não era apenas por terem mais dinheiro para gastar. Havia
muito mais carros disponíveis para satisfazer a procura reprimida das décadas
de Depressão e de guerra. Muito antes de 1939, alguns fabricantes de
automóveis europeus (a Porsche na Alemanha, a Renault e a Citroën em
França, a Morris na Inglaterra), antecipando uma subida pós-depressão na
procura de carros particulares, tinham começado a pensar num novo tipo de
carro familiar – semelhante nas funções ao Modelo T de Henry Ford de vinte
anos antes: fiável, produzido em massa e de preço acessível. A guerra adiou o
aparecimento destes modelos, mas no início dos anos 50 estavam a sair de
linhas de produção recentemente instaladas em quantidades cada vez maiores.
Em cada país ocidental havia um fabrico de carros e um modelo
dominantes, mas na sua essência eram todos notavelmente semelhantes. O
Carocha da Volkswagen, o Renault 4CV, o Fiat 500 e 600, o Austin A30 e o
Morris Minor eram unidades pequenas de duas portas para transporte
familiar: baratos no preço, baratos na manutenção e fáceis de reparar.
Possuíam estruturas pequenas e finas, pequenos motores de baixa potência
(preparados para consumirem tão pouco combustível quanto possível) e
estavam equipados com um mínimo de acessórios e equipamentos. Os
Volkswagen, Renaults e Fiats tinham motores atrás e tracção às rodas
traseiras, deixando o compartimento à frente do condutor para acomodar uma
limitada quantidade de bagagens, assim como a bateria, pneu sobresselente,
macaco e ferramentas.
O Morris de motor à frente, tal como o seu contemporâneo e concorrente
Ford Popular (americano mas fabricado na fábrica de Dagenham no Reino
Unido, perto de Londres, para o mercado interno), aspirava a um nível de
conforto ligeiramente mais elevado – e iria mais tarde produzir um modelo de
quatro portas, como convinha à prosperidade bastante maior da Inglaterra nos
anos do seu aparecimento. A Citroën apresentou o seu 2CV completamente
diferente (inicialmente comercializado entre os agricultores na tentativa de
melhorar ou substituir o seu carro de bois), equipado com quatro portas, tecto
e assentos removíveis e o motor de uma mota de média dimensão. Apesar
destas variações culturais, os pequenos carros dos anos 50 tinham uma
finalidade comum: tornar a propriedade de um automóvel acessível e que
pudesse ser pago por quase todas as famílias da Europa Ocidental.
Durante alguns anos após o início da revolução dos transportes do pós-
guerra, o fornecimento de carros não conseguia acompanhar a procura (uma
situação que se manteve na Europa de Leste até 1989). Por isso as bicicletas,
as motorizadas e as combinações de motorizada com sidecar floresceram
durante algum tempo – esta última como veículo familiar provisório para os
que não podiam comprar um carro ou que não conseguiam ainda arranjar um.
As motoretas apareceram em cena – em França e especialmente na Itália,
onde a primeira concentração nacional de motoretas, realizada em Roma a 13
de Novembro de 1949, foi seguida por um crescimento explosivo do mercado
destes símbolos práticos, e de preço razoável, da liberdade e mobilidade
urbanas, popular entre os jovens e devidamente celebrado – em especial o
modelo Vespa – em todos os filmes contemporâneos de ou sobre a Itália.
Mas no início dos anos 60 o automóvel estava firmemente no comando na
Europa Ocidental, deslocando o tráfego dos caminhos-de-ferro para as
estradas e dos meios públicos de transporte para os privados. As redes
ferroviárias tinham atingido o auge em extensão e utilização durante os anos
que se seguiram à Primeira Guerra Mundial; agora, os serviços não lucrativos
foram reduzidos e milhares de milhas de carris arrancados. No Reino Unido,
os caminhos-de-ferro transportavam 901 milhões de passageiros em 1946,
próximo do seu auge histórico. Mas a partir de então os números diminuíam
todos os anos. Em outros países da Europa Ocidental, o tráfego ferroviário
manteve-se bastante melhor; nos pequenos países muito populosos com redes
eficientes – como a Bélgica, a Holanda e a Dinamarca – até cresceu; mas
muito mais lentamente do que a circulação por estrada.
O número de pessoas a utilizarem autocarros também começou a baixar
pela primeira vez, dado que cada vez mais pessoas iam para o trabalho de
carro. Entre 1948 e 1962, na congestionada capital da Inglaterra, o tráfego
geral de passageiros nos autocarros de transporte de Londres, eléctricos,
tróleis e rede de metropolitano baixou de 3955 milhões de pessoas por ano
para 2485, quando os viajantes habituais passaram para os carros próprios.
Apesar das condições manifestamente inadequadas das estradas da Europa –
fora da Alemanha não tinha havido qualquer melhoria significativa em
nenhuma rede de estradas nacional desde os finais de 1920 – os indivíduos, e
em especial as famílias, usavam cada vez mais os carros para deslocações
arbitrárias: para idas às compras aos hipermercados agora situados nos limites
das cidades e sobretudo para excursões de fim-de-semana e férias anuais(17).
As viagens de recreio na Europa não eram novidade, embora se tivessem
até então confinado primeiro à aristocracia e mais tarde à mais bem
posicionada e culturalmente mais ambiciosa classe média. Mas tal como
qualquer outro sector económico, o «turismo» sofrera com a guerra e com a
recessão económica. A indústria turística suíça em 1913 contava com 21,9
milhões de alojamentos; não recuperaria esses números antes de meados dos
anos 50. E quando surgiu, o rápido crescimento turístico dos anos 50 era
diferente. Foi facilitado e incentivado pela disponibilidade de transporte
privado e sobretudo pelo crescente número de pessoas a usufruírem de férias
pagas: em 1960 a maior parte dos empregados na Europa continental por lei
tinha direito a duas semanas de férias pagas (três na Noruega, Suécia,
Dinamarca e França) e cada vez mais passavam essas férias fora de casa.
As viagens de lazer tornavam-se cada vez mais turismo de massas. As
empresas de autocarros floresciam, transformando a tradição das viagens
anuais de carruagem à praia dos trabalhadores fabris e rurais em serviços
comerciais dentro e entre países. Empresários da aeronáutica
empreendedores, como o inglês Freddie Laker, que comprara aviões de
turbina Bristol Brittania excedentes da guerra, criaram serviços charter para
estâncias de férias de Verão recentemente abertas em Itália, França e Espanha.
O campismo – já popular antes da guerra entre os menos abastados e os
entusiastas do ar livre – passou a ser uma indústria importante em finais dos
anos 50, criando espaços na costa e pastoris, empórios de material para
campismo, guias impressos e postos de venda de roupa especializada. As
estâncias de férias mais antigas – ao longo da costa e nas regiões rurais da
Europa Ocidental – prosperavam. Os locais recentemente descobertos (ou
redescobertos) emergiam, ganhando proeminência em brochuras lustrosas e
na mitologia popular. A Riviera francesa, outrora um retiro tranquilo de
Inverno para a aristocracia eduardiana, recebeu uma sedutora e juvenil
transformação com um novo género de filme de «divertimento ao sol»: em
1956 Roger Vadim «inventou» St. Tropez como montra para a sua nova
estrela Brigitte Bardot em Et Dieu… créa la femme.
Nem toda a gente podia pagar St. Tropez ou a Suíça – embora as costas e
montanhas francesas e italianas ainda fossem baratas para os viajantes da Grã-
Bretanha ou da Alemanha, trocando libras e marcos alemães pelos
desvalorizados francos e liras da altura. Mas as férias domésticas à beira mar,
ainda muito procuradas pelos Ingleses, Holandeses e Alemães em especial,
eram agora verdadeiramente baratas. Billy Butlin, um trabalhador de feira
canadiano que abriu o seu primeiro negócio em Skegness em 1936, fez
fortuna nos anos 50 vendendo férias de família «baratas e alegres», em
campos de férias estrategicamente situados ao longo da costa da Inglaterra
industrial: «Feira com acomodações para a noite» como um crítico as rejeitou
numa cínica evocação posterior. Mas Butlin era muitíssimo popular na sua
época – e foi o desconhecido antepassado institucional do Clube Med francês,
a preferência recreativa colectiva de uma geração posterior mais cosmopolita:
até aos gentils moniteurs (ou «casacas vermelhas», como Butlin lhes
chamava).
Para os ligeiramente mais aventureiros havia também as novas estâncias
da costa mediterrânica espanhola, onde os visitantes podiam escolher entre
estabelecimentos de cama e pequeno-almoço, pensións ou modestos hotéis
costeiros reservados em bloco por um novo tipo de operadores de pacotes
turísticos. E tudo isto podia agora ser alcançado de carro. Vestidas com roupa
leve de férias (em si mesmas um produto novo – e prova da nova
abundância), milhões de famílias espremiam-se nos seus Fiats, Renaults,
Volkswagens e Morris – muitas vezes no mesmo dia, uma vez que as datas
das férias oficiais tendiam a agrupar-se à volta de umas semanas em Agosto –
e encaminhavam-se para costas distantes, através de estradas estreitas mal
servidas, planeadas para uma anterior época de viagens.
O resultado foram congestionamentos de tráfego inauditos e horríveis que
todos os anos pioravam a partir de finais dos anos 50. Seguiam vias
previsíveis: a estrada A303 a sudoeste de Londres para a Cornualha; as
Routes Nationales 6 e 7 de Paris para a costa mediterrânica; a Route
Nationale 9 de Paris para a fronteira espanhola (de alguns milhares de turistas
em 1955, os visitantes franceses a Espanha contavam-se em três milhões em
1962, sete milhões dois anos depois – na Espanha de Franco até o franco
francês foi longe, especialmente depois da reavaliação gaullista)(18). Os
turistas alemães seguiam a estrada comercial medieval para sul, desaguando
no Tirol austríaco e pelo desfiladeiro de Brenner para a Itália, em números
cada vez maiores. Muitos continuavam até à Jugoslávia que, tal como a
Espanha, se abriu ao turismo estrangeiro durante esses anos: já 1,7 milhões
em 1963, os viajantes estrangeiros para o único país comunista da Europa
acessível (abençoado com uma longa e muito barata linha costeira do
Adriático) atingiam quase os 6,3 milhões por ano uma década depois.
Como já se referiu, o turismo de massas pode ser insensível ao ambiente
mas possui benefícios redistributivos notórios. Quando os prósperos
habitantes do Norte afluíam às até então empobrecidas terras do
Mediterrâneo, criavam-se empregos para os trabalhadores da construção,
cozinheiros, criados, camareiras, taxistas, prostitutas, porteiros, equipas de
manutenção dos aeroportos e outros. Pela primeira vez, homens e mulheres
jovens na Grécia, Jugoslávia, Itália e Espanha conseguiam encontrar trabalho
sazonal de baixos salários no seu país, em vez de o procurarem no
estrangeiro. Em vez de emigrarem para as economias em expansão do Norte,
serviam agora essas mesmas economias nos seus próprios países.
As viagens ao estrangeiro podem não ter alargado as perspectivas: quanto
mais popular um destino estrangeiro, mais rapidamente se assemelhava – em
todas as características essenciais com excepção do clima – com o ponto de
origem do turista. De facto, o êxito do turismo em larga escala nos anos 60 e
seguintes dependeu de fazer com que os Britânicos, Alemães, Holandeses,
Franceses e outros viajantes neófitos se sentissem tão confortáveis quanto
possível, rodeados por compatriotas e isolados do exótico, do não familiar e
do inesperado. Mas o mero facto de ir regularmente para qualquer sítio
distante (anualmente) e os novos meios de transporte usados para ali chegar –
carros particulares, voos charter – ofereciam a até então milhões de homens e
mulheres insulares (e especialmente aos seus filhos) uma janela para um
mundo muito mais vasto.
Até aos anos 60, a principal fonte de informação, opinião e entretenimento
disponível para a esmagadora maioria dos europeus, era a rádio. Era pela
rádio que as pessoas recebiam as notícias e se havia uma cultura nacional
comum, era formada muito mais pelo que as pessoas ouviam do que pelo que
viam ou liam. Nesta altura, em todos os países europeus a rádio era controlada
pelo Estado (em França, a rede emissora nacional fechava à meia-noite). As
estações emissoras, os transmissores e o comprimento de onda eram
licenciados e geralmente propriedade dos governos nacionais:
sintomaticamente, as poucas estações de rádio que transmitiam fora das
fronteiras nacionais, situavam-se normalmente em barcos ou ilhas e eram
coloquialmente referidas como «piratas».
A posse de um rádio, já difundida antes da guerra, era quase universal em
1960: nesse ano havia um rádio para cada cinco pessoas na URSS, um por
cada quatro pessoas em França, Áustria e Suíça e por cada três pessoas na
Escandinávia e Alemanha de Leste. De facto, quase todas as famílias
possuíam um rádio(19). A maior parte dos aparelhos de rádio domésticos
pouco tinha evoluído dos grandes aparelhos, difíceis de transportar,
accionados por válvulas, das décadas entre guerras. Havia normalmente um
por família. Ocupava um lugar principal na sala ou na cozinha e a família
tinha forçosamente de o ouvir reunida num sítio. Mesmos os rádios dos carros
pouco mudaram neste aspecto – a família viajava junta, ouvia junta e os pais
escolhiam os programas. A rádio sem fios era assim naturalmente um meio
conservador, tanto no seu conteúdo como nos padrões sociais que encorajava
e mantinha.
Os transístores iriam mudar tudo isto. O rádio transístor era ainda raro em
1958 – em toda a França, por exemplo, só havia 260 000. Mas três anos
depois, em 1961, os franceses possuíam 2,25 milhões de rádios transístores.
Em 1968, quando nove em cada dez pessoas em França possuíam um rádio,
dois terços desses rádios eram modelos portáteis. Os adolescentes já não
precisavam de ficar junto das famílias, a ouvir as notícias e o teatro
direccionados para o gosto dos adultos e programados para as «horas de
família», normalmente a seguir ao jantar. Agora tinham os seus próprios
programas – «Salut les Copains» na Rádio Nacional francesa, «Pick of the
Pops» na BBC, etc. As estações de rádio individualizadas criaram
programações-alvo e quando os sistemas de rádio do Estado se revelaram
lentos na adaptação, as estações de rádio «periféricas» – Rádio Luxemburgo,
Rádio Monte Carlo, Rádio Andorra, a transmitirem legalmente mas do outro
lado das fronteiras estatais e financiadas pela publicidade comercial –
agarraram a oportunidade.
Os rádios transístores a pilhas eram leves e portáteis e por isso bem
adaptados a uma idade de crescente mobilidade; o seu habitat natural era a
praia turística ou o parque público. Mas a rádio era ainda um meio auditivo e,
assim, restringido na sua capacidade de adaptação ao que era uma época cada
vez mais visual. Para as pessoas mais velhas a rádio permaneceu uma
importante fonte de informação, esclarecimento e entretenimento. Nos
Estados comunistas o aparelho de rádio era também o único meio de acesso,
por muito inadequado que fosse, às notícias e opiniões não censuradas, da
Rádio Europa Livre, a Voz da América e, principalmente, o Serviço
Internacional da BBC. Mas os jovens de todo o lado agora ouviam sobretudo
rádio por causa da música popular. Para tudo o resto voltavam-se cada vez
mais para a televisão.
O serviço de televisão chegou lentamente à Europa e em alguns países
bastante tarde. Na Inglaterra as transmissões regulares tiveram início nos anos
40 e muitas pessoas viram a coroação da rainha Isabel, em Junho de 1953, em
directo pela televisão. Em 1958 foram emitidas mais licenças de televisão do
que de rádio: o país possuía dez milhões de aparelhos em uso doméstico antes
do início dos anos 60. A França, pelo contrário, só apresentava 60 000
aparelhos de televisão em Junho de 1953 (numa altura em que já havia 200
000 na Alemanha Ocidental e quinze milhões nos EUA); ainda em 1960 só
uma família francesa em cada oito possuía uma televisão, um quinto do
número no Reino Unido para uma população comparável. Na Itália os
números eram ainda mais pequenos.
No decorrer dos anos 60, porém, a televisão tornou-se moda quase em
todo o lado – pequenos aparelhos de televisão a preto e branco tinham-se
tornado um artigo acessível e cada vez mais essencial do mobiliário
doméstico, até mesmo nos lares mais modestos. Em 1970 havia em média um
aparelho de televisão por cada quatro pessoas na Europa Ocidental – mais no
Reino Unido, bastante menos na Irlanda. Em alguns países, nesta altura –
França, Holanda, Irlanda, Itália (o maior fabricante de aparelhos de televisão
da Europa assim como de frigoríficos) – era mais provável uma família
possuir uma televisão do que um telefone, embora por padrões posteriores
não assistissem muito: três quartos dos adultos italianos viam menos de treze
horas por semana. Duas famílias em três na Alemanha de Leste possuíam uma
televisão (enquanto menos de metade possuía um frigorífico); Checos,
Húngaros e Estónios (que conseguiam ver as emissões de televisão
finlandesas já desde 1954) andavam por perto desse número.
O impacto da televisão foi complexo. O seu tema principal não era, ao
princípio, especialmente inovador – os canais de televisão propriedade do
Estado garantiam que o conteúdo político e moral dos programas para
crianças e adultos seria do mesmo modo rigorosamente controlado. A
televisão comercial começou em Inglaterra em 1955 mas não chegou a mais
lado nenhum a não ser muito mais tarde e na maior parte dos países europeus
nem se pensava em autorizar canais de televisão privados até final dos anos
70. Grande parte da programação televisiva nas décadas iniciais era
convencional, enfatuada e paternalista – confirmando, mais que debilitando,
as normas e valores tradicionais. Em Itália Filiberto Guala, dirigente da RAI
(Radio Audizioni Italiane – a rede nacional transmissora) de 1954-56, deu
conhecimento aos seus empregados de que os programas «não iriam arruinar
a instituição da família» ou retratar «atitudes, poses ou pormenores que
pudessem despertar instintos básicos»(20).
Havia muito pouca escolha – um ou quanto muito dois canais na maior
parte dos países – e o serviço só funcionava durante poucas horas à tarde e à
noite. Seja como for, a televisão era um meio de subversão social. Contribuiu
em muito para acabar com o isolamento e a ignorância de comunidades
longínquas, proporcionando a toda a gente a mesma experiência e uma cultura
visual comum. Ser «francês», ou «alemão» ou «holandês» era agora qualquer
coisa moldada não tanto pela educação original ou festividades públicas como
pelo entendimento do país, tal como respigado das imagens atiradas para as
nossas casas. Os «Italianos», para o bem ou para o mal, foram moldados mais
pela experiência partilhada de verem espectáculos de variedades ou
desportivos na RAI do que por um século de governo nacional unificado.
Acima de tudo, a televisão colocou a política nacional no lar. Até à
televisão, a política em Paris ou Bona, Roma ou Londres era um assunto de
elites, conduzido por líderes distantes conhecidos só pelas suas vozes sem
corpo na rádio, fotografias sem vida dos jornais ou breves aparecimentos
estilizados em actualidades formais nos cinemas. Agora, no lapso de menos
de duas décadas, os dirigentes políticos tiveram de saber usar a televisão,
capazes de transmitir autoridade e confiança ao mesmo tempo que
aparentavam um à-vontade igualitário e uma calorosa familiaridade para uma
audiência de massas – uma actuação para a qual a maior parte dos políticos
europeus estava muito mais mal preparada do que os seus homólogos dos
Estados Unidos. Muitos políticos mais idosos falharam redondamente quando
confrontados com as câmaras de televisão. Os aspirantes mais jovens a
políticos, mais adaptáveis, beneficiaram imensamente. Como o político
conservador inglês Edward Heath iria anotar nas suas memórias, a propósito
do êxito nos media do seu rival, o líder do Partido Trabalhista Harold Wilson:
a televisão «estava aberta ao uso abusivo de qualquer charlatão capaz de a
manipular correctamente. Assim se provou na década seguinte».
Como meio visual, a televisão constituiu um desafio directo ao cinema.
Não só proporciona um entretenimento alternativo como podia levar filmes de
destaque para casa das famílias, obviando a necessidade de sair para ver
qualquer coisa para além dos filmes mais recentes. No Reino Unido os
cinemas perderam 56% dos seus clientes entre 1946 e 1958. Os números
baixaram mais lentamente em outros países da Europa, mas mais cedo ou
mais tarde caíram em todo o lado. A assistência aos cinemas manteve-se mais
tempo na Europa mediterrânica – especialmente na Itália onde os níveis de
audiência se mantiveram relativamente constantes até meados dos anos 70.
Mas então os Italianos não só iam ver filmes regularmente (em geral
semanalmente) como também os faziam: em meados dos anos 50, em Roma,
a indústria cinematográfica era a segunda maior empregadora a seguir aos
negócios com a construção, fazendo não só filmes clássicos por auteurs
famosos como também (e mais lucrativamente) um fluxo constante de filmes
sem interesse protagonizados por rainhas de beleza e estrelas evanescentes –
as «maggiorate fisiche» (as «fisicamente avantajadas»).
Por fim até a indústria cinematográfica italiana e a assistência nos cinemas
esmoreceu. Os produtores de filmes europeus, não tendo os recursos de
Hollywood, não podiam querer competir em escala com os filmes americanos
ou com os «meios de produção» e confinaram-se cada vez mais ao cinema da
«vida vulgar», quer se tratasse de filmes new wave, comédias «sociais» ou
domésticas. O cinema na Europa caiu de actividade social para uma forma de
arte. Enquanto os espectadores nos anos 40 e 50 teriam ido automaticamente
ver o que quer que fosse apresentado no cinema local, agora só iam caso se
sentissem atraídos por um filme em especial. Para entretenimento ao acaso,
para ver o que quer que estivesse «a dar», voltavam-se de preferência para a
televisão.
Apesar de ser um meio «jovem», a televisão exercia uma atracção especial
no público mais idoso, especialmente durante os seus anos iniciais de
orientação estatal e de cautela cultural. Quando outrora teriam ouvido rádio
ou então saído para ir ao cinema, os homens e mulheres maduros ficavam em
casa e em vez disso viam televisão. O desporto comercial, especialmente
desportos tradicionais de espectáculo como o futebol ou as corridas de cães,
foi penalizado: primeiro porque o seu público tinha agora uma fonte
alternativa de entretenimento, mais cómoda e confortável e em segundo lugar
porque em breve o desporto começou a ser televisionado, normalmente aos
fins-de-semana. Só a gente nova saía em grande número. E os seus gostos
quanto a diversão começavam a alterar-se.
Em finais dos anos 50, a economia europeia começou a sentir o total
impacto comercial do baby boom. Primeiro dera-se a explosão dos produtos
para bebés, para os que começavam a andar e para as crianças: carrinhos de
bebé, berços, fraldas, comida para bebés, vestuário para crianças,
equipamento desportivo, livros, jogos e brinquedos. Depois deu-se uma vasta
expansão de escolas e serviços educativos, a que se seguiu um novo mercado
para uniformes escolares, secretárias, livros escolares, equipamento escolar e
uma gama cada vez maior de produtos educativos (incluindo professores).
Mas os compradores de todos estes bens e serviços tinham sido os adultos:
pais, parentes, administradores escolares e governos centrais. Por volta de
1957, pela primeira vez na história da Europa, os jovens começaram eles
mesmos a comprar coisas.
Até esta época, os jovens nem sequer tinham existido como grupo distinto
de consumidores. De facto, a «gente nova» nem sequer tinha de facto
existido. Nas famílias tradicionais e comunidades, as crianças permaneciam
crianças até saírem da escola e começarem a trabalhar, altura em que eram
jovens adultos. A nova categoria intermédia de «adolescente», na qual se
definia uma geração, não pelo seu estatuto mas pela sua idade – nem criança,
nem adulto –, não tinha precedentes. E a noção de que essas pessoas –
adolescentes – podiam representar um grupo distinto de consumidores teria
sido impensável uns anos antes. Para a maior parte das pessoas a família
sempre fora uma unidade de produção, não de consumo. Ao ponto de um
jovem na família que possuísse rendimentos independentes, estes fazerem
parte do rendimento familiar e serem utilizados para ajudar a custear as
despesas colectivas.
Mas com os salários reais a subirem rapidamente, a maioria das famílias
podia subsistir – e melhor – com o rendimento do principal ordenado; ainda
mais se ambos os pais estivessem empregados. A um filho ou filha que tivesse
deixado a escola aos catorze anos (a idade típica para a maior parte dos jovens
da Europa Ocidental deixar a escola durante esses anos), que vivesse em casa
e que tivesse um trabalho estável ou em part-time, já não se exigia
automaticamente que entregasse todo o seu ordenado às sextas-feiras. Em
França, em 1965, 62% de todos aqueles com idades entre os 16 e os 24 anos
ainda a viverem com os pais guardavam todos os seus ganhos para gastarem
como quisessem.
O sintoma óbvio mais imediato deste novo poder de compra adolescente
era no vestuário. Muito antes da geração do baby-boom ter descoberto as
mini-saias e o cabelo comprido, a sua imediata antecessora – a geração
nascida durante a guerra, mais do que aquela imediatamente após – afirmava
a sua presença e aparência nos cultos de gang dos anos 50. Vestidos de preto,
roupas coladas à pele – por vezes cabedal, por vezes camurça, sempre de
contornos nítidos e vagamente ameaçadora – os blouson noires (França),
Halbstarker (Alemanha e Áustria) ou skinknuttar (Suécia), tal como os teddy
boys de Londres, afectavam uma postura cínica e indiferente, qualquer coisa
entre Marlon Brando (em The Wild One) e James Dean (Rebel Without a
Cause). Mas apesar dos ocasionais surtos de violência – de forma mais grave
em Inglaterra onde os gangs de jovens vestidos de cabedal atacaram
emigrantes das Caraíbas – a principal ameaça que estes jovens e as suas
roupas representavam era para com o sentido de decoro dos seus pais.
Pareciam diferentes.
O vestuário específico da idade era importante, como afirmação de
independência ou até de revolta. Era também novidade – antigamente os
jovens adultos tinham tido pouca alternativa a não ser vestir as mesmas
roupas que os pais e mães. Mas não foi, economicamente falando, a mudança
mais importante forçada pelos hábitos de consumo dos adolescentes: os
jovens gastavam muito dinheiro em roupas, mas ainda mais – muito mais –
em música. A associação «adolescente» e «música pop», que se tornara tão
automática no início dos anos 60, tinha uma base comercial assim como uma
base cultural. Na Europa, tal como na América, quando o orçamento familiar
podia dispensar a contribuição de um adolescente, a primeira coisa que o
adolescente libertado fazia era sair para comprar um disco.
O LP [ long-playing] foi inventado em 1948. O primeiro single de 45
rotações com uma música de cada lado foi comercializado pela RCA no ano
seguinte. As vendas na Europa não dispararam tanto como na América – onde
o volume de negócios da venda de discos subiu de 277 milhões de dólares em
1955 para 600 milhões quatro anos depois. Mas de qualquer maneira
cresceram. Na Inglaterra, onde a gente nova estava de início mais exposta à
música popular americana do que os seus contemporâneos continentais, os
críticos datam a explosão da música pop a partir da exibição do filme de 1956
Rock Around the Clock, protagonizado por Bill Haley and the Comets e pelos
Platters. O filme em si era medíocre mesmo pelos parâmetros pouco exigentes
dos filmes que serviam de veículo à música rock, mas a canção que deu nome
ao título (cantada por Haley) galvanizou uma geração de adolescentes
ingleses.
Os adolescentes da classe trabalhadora, para quem o jazz nunca fora muito
apelativo, foram de imediato atraídos pela revolução americana (e na
sequência, inglesa) na música popular: enérgica, melodiosa, acessível, sexy e
acima de tudo, deles(21). Mas não havia nada de muito revoltado a esse
respeito, ainda menos violento e até mesmo o sexo era firmemente ocultado
pelos produtores das companhias discográficas, directores de marketing e
executivos das rádios emissoras. Isto porque a revolução inicial da música
pop foi um fenómeno dos anos 50: não acompanhou a transformação cultural
dos anos 60 mas antecedeu-a. Como consequência foi frequentemente objecto
da crítica oficial. Comissões locais de censura ao visionamento baniram Rock
Around the Clock – como tinham feito com o superior musical rock de Elvis
Presley, Jailhouse Rock.
Os pais das cidades de Swansea em Gales achavam o cantor inglês de
skiffle Lonnie Donegan «impróprio». Tommy Steele, um cantor rock inglês
moderadamente enérgico de finais dos anos 50, não tinha autorização para
actuar em Portsmouth ao sábado. Johnny Hallyday, uma tentativa francesa
mal sucedida para clonar os rockers do tipo Gene Vincent ou Eddie Cochran,
provocou escândalo numa geração de intelectuais conservadores franceses
quando o seu primeiro disco apareceu em 1960. Em retrospectiva, a resposta
horrorizada dos pais, professores, clérigos, especialistas e políticos por toda a
Europa Ocidental surge singularmente desproporcionada. No espaço de
menos de uma década Haley, Donegan, Steele, Hallyday e outros como eles
iriam parecer irremediavelmente antiquados, relíquias de uma pré-história
inocente.
Os adolescentes europeus de finais dos anos 50 e princípio dos 60 não
aspiravam a mudar o mundo. Tinham crescido em segurança e com meios
modestos. A maioria só queria parecer diferente, viajar mais, tocar música
pop e comprar coisas. Nisto reflectiam o comportamento e os gostos dos seus
cantores favoritos e dos disc-jockeys de quem ouviam os programas de rádio
nos seus transístores. Mas mesmo assim eram o primeiro passo para grandes
acontecimentos revolucionários. Mais ainda do que os seus pais,
representavam o alvo da indústria da publicidade que se seguiu, acompanhou
e profetizou o boom do consumismo. Fabricavam-se e compravam-se cada
vez mais bens e surgiam numa variedade sem precedentes. Carros, roupas,
carrinhos de bebé, alimentos embalados e detergentes para lavar roupa,
chegavam agora todos ao mercado numa desconcertante variedade de formas,
tamanhos e cores.
A publicidade tinha uma longa história na Europa. Os jornais,
especialmente os jornais populares que floresciam desde os anos 80 do século
XIX sempre haviam tido anúncios. Os murais e cartazes eram uma praga de
há muito na Itália, muito antes dos anos 50, e qualquer viajante em França de
meados do século estaria familiarizado com os apelos pintados bem no alto
das fachadas laterais das casas de lavoura e terraços urbanos para beberem St
Raphael ou Dubonnet. Canções comerciais e fotografias havia muito que
acompanhavam as actualidades e as curtas-metragens nos cinemas por toda a
Europa. Mas esta publicidade tradicional não tinha muito em conta a
população a que o produto se destinava ou os mercados segmentados por
idade ou gosto. A partir de meados dos anos 50, pelo contrário, a escolha do
consumidor passou a ser uma importante consideração de marketing e a
publicidade, ainda uma despesa relativamente pequena na Europa de antes da
guerra, assumiu um papel proeminente.
Além disso, enquanto os produtos de limpeza e os cereais para o pequeno-
almoço publicitados no início da televisão comercial na Inglaterra se dirigiam
às donas de casa e às crianças, os intervalos publicitários na Rádio Monte
Carlo e em outras eram dirigidos sobretudo ao mercado dos «jovens adultos».
Os gastos arbitrários dos adolescentes – em tabaco, álcool, motorizadas e
motocicletas, roupas modernas de preço médio, calçado, cosméticos,
tratamentos do cabelo, jóias, revistas, discos, gira-discos, rádios – era uma
enorme e até aí inexplorada fonte de dinheiro: as agências de publicidade
acorreram para tirar proveito dele. A despesa com a publicidade a retalho na
Grã-Bretanha cresceu de 102 milhões de libras por ano em 1951, para 2,5 mil
milhões de libras em 1978.
Em França, a despesa com a publicidade nas revistas destinadas aos
adolescentes cresceu 400% durante os anos cruciais de 1959-1962. Para
muitas pessoas, o mundo conforme representado nos anúncios estava ainda
fora do seu alcance: em 1957 numa sondagem em França a maioria de jovens
queixou-se de que não tinha acesso aos divertimentos pretendidos, às férias
dos seus sonhos, a meios de transporte próprios. Mas é sintomático que os
entrevistados já encarassem esses bens e serviços como direitos de que
estavam privados em vez de fantasias a que nunca poderiam aspirar. Do outro
lado do Canal da Mancha, nesse mesmo ano, um grupo de activistas da classe
média, perturbado com o impacto da publicidade comercial não mediado e
com aflorescente quantidade de artigos que vendia, publicou o primeiro dos
guias do consumidor da Europa. Significativamente, não lhe chamaram «O
Quê», mas Qual? [Which?].
Este era o admirável mundo novo que o romancista inglês J.B. Priestley
descreveu em 1955 como «admass». Para muitos outros observadores
contemporâneos era, muito simplesmente, «americanização»: a adopção na
Europa de todas as práticas e aspirações da América moderna. Embora
parecesse a muitos um ponto de partida radical, esta não era de facto uma
experiência nova. Os europeus tinham estado a «americanizar-se» – e a
apavorar-se com a ideia – havia pelo menos trinta anos(22). A moda das linhas
de produção estilo Estados Unidos e ritmos de trabalho «taylorizados», assim
como o fascínio pelos filmes e modas americanos, era uma história antiga
mesmo antes da Segunda Guerra Mundial. Os intelectuais europeus de entre
as guerras tinham lamentado o mundo «sem alma» da modernidade americana
que se estava a preparar para toda a gente e tanto os nazis como os comunistas
faziam grande alarde do seu papel de preservadores da cultura e valores
perante o capitalismo americano sem peias e o cosmopolitismo mestiço sem
raízes simbolizado por Nova Iorque e pelo seu modelo em expansão.
E no entanto, apesar da sua presença na imaginação europeia – e da muito
física realidade da presença dos soldados americanos em bases por toda a
Europa Ocidental – os Estados Unidos eram ainda um grande desconhecido
para a maior parte dos europeus. Os americanos falavam inglês – não uma
língua com que grande parte dos continentais europeus estivesse familiarizada
nessa época. A história e a geografia dos EUA não eram estudadas nas escolas
europeias; os seus escritores eram desconhecidos mesmo para uma minoria
culta; o seu sistema político era um mistério para todos com excepção de uns
poucos privilegiados. Quase ninguém fizera a longa e dispendiosa viagem até
aos Estados Unidos: só os ricos (e não muitos); sindicalistas escolhidos e
outros pagos pelos fundos Marshall; alguns milhares de estudantes em
programas de intercâmbio – e uma quantidade de homens gregos e italianos
que tinham emigrado para a América depois de 1900 e que tinham regressado
à Sicília ou às ilhas gregas já velhos. Os europeus de Leste tinham muitas
vezes mais ligações com os Estados Unidos do que os ocidentais, dado que
muitos Polacos ou Húngaros tinham um amigo ou um parente que fora para a
América e muitos mais teriam ido se tivessem podido.
É certo que o governo dos EUA e várias agências privadas –
nomeadamente a Fundação Ford – faziam o melhor que podiam para vencer o
fosso que separava a Europa da América: os anos 50 e início dos anos 60
foram as grandes épocas do investimento cultural ultramarino, das Casas da
América aos Investigadores Fulbright. Em alguns sítios – nomeadamente na
República Federal Alemã – as consequências foram profundas: entre 1948 e
1955, 12 000 Alemães foram para a América para estadias prolongadas de um
mês ou mais. Toda uma geração de Alemães ocidentais cresceu na sombra
militar, económica e cultural dos Estados Unidos: Ludwig Erhard descreveu-
se uma vez como sendo «uma invenção americana».
Mas é importante acentuar que este tipo de influência e exemplo
americanos dependeu curiosamente pouco do envolvimento económico
americano directo. A América em 1950 possuía três quintos das reservas de
capitais do Ocidente e cerca da mesma quota de volume de produção, mas
muito pouco dos lucros circulava para lá do Atlântico. O investimento pós-
1945 veio sobretudo do governo dos Estados Unidos. Em 1956, o
investimento privado dos Estados Unidos na Europa amontava unicamente a
4,15 mil milhões de dólares. Começou depois a crescer fortemente,
disparando nos anos 60 (nomeadamente na Inglaterra) e atingindo 24,52 mil
milhões de dólares em 1970 – altura em que provocara um alvoroço de
publicações ansiosas advertindo contra a subida do poder económico da
América, nomeadamente o ensaio de J-J Servan-Schreiber, de 1967, Le Défi
Américain (O Desafio Americano).
A presença económica americana na Europa foi menos sentida no
investimento económico directo ou na influência do que na revolução do
consumo que estava a afectar igualmente a América e a Europa. Os europeus
estavam agora a ter acesso à inaudita gama de produtos com que os
consumidores americanos estavam familiarizados: telefones,
electrodomésticos, televisões, máquinas fotográficas, produtos de limpeza,
alimentos embalados, vestuário colorido barato, carros e seus acessórios, etc.
Isto era a prosperidade e o consumismo era um modo de vida – o «modo de
vida americano». Para os jovens, a atracção da «América» era a sua agressiva
contemporaneidade. Como abstracção, apresentava-se como o oposto do
passado; era grande, aberta, próspera – e juvenil.
Um aspecto da «americanização» já referido era a música popular –
embora até esta não fosse em si um padrão novo: o ragtime foi executado pela
primeira vez em Viena em 1903 e as orquestras de dança americanas e os
grupos de jazz circulavam amplamente antes e depois da Segunda Guerra
Mundial. Nem era unicamente um processo unilateral: muita da música
popular era uma hibridização de géneros importados e locais. A música
«americana» na Inglaterra era subtilmente diferente da música «americana»
em França ou na Alemanha. O gosto francês, em especial, era influenciado
pelos artistas negros que iam até Paris para fugirem ao preconceito em casa –
uma razão pela qual a ideia de «América» na cultura francesa estava marcada
com a imagem do racismo.
Nos anos 50, o impacto do exemplo americano no público europeu surgiu
esmagadoramente através dos filmes. Os públicos europeus tinham um acesso
quase sem restrições a tudo o que Hollywood conseguia exportar: em finais
dos anos 50, os Estados Unidos estavam a comercializar cerca de 500 filmes
por ano, para uma produção europeia colectiva de cerca de 450. Os filmes
americanos tinham a desvantagem da língua, evidentemente (embora em
muitos sítios, nomeadamente em Itália, fossem simplesmente quase todos
dobrados para a língua local). E parcialmente por esta razão os públicos acima
de uma certa idade continuavam a preferir o produto nacional. Mas os filhos
pensavam de maneira diferente. Os públicos mais jovens apreciavam cada vez
mais filmes de características americanas – muitas vezes feitos por
realizadores europeus que tinham fugido a Hitler ou a Estaline.
Os críticos contemporâneos preocupavam-se com o presumido
conformismo da cultura popular americana, combinado com as mensagens
políticas manifestas ou subliminares transmitidas nos filmes destinados às
audiências de massas, que poderiam corromper ou tranquilizar as
sensibilidades da juventude europeia. Quando muito, o resultado parece ter
sido o oposto. O público jovem europeu filtrava o conteúdo propagandista dos
principais filmes americanos – invejando a «boa vida» tal como representada
no ecrã, muito como os seus pais tinham feito vinte anos antes, mas rindo-se
da vulgaridade e ingenuidade do romance americano e da rotina doméstica.
Entretanto, porém, prestavam muita atenção ao estilo frequentemente
subversivo dos actores.
A música tocada nos filmes americanos reaparecia na rádio, nos cafés,
bares e salões de dança. A linguagem corporal da juventude rebelde
americana – como se via nos filmes – tornou-se uma declaração da moda para
os seus contemporâneos europeus. Os jovens europeus começaram a vestir-se
«à americana». Quando as calças Levi’s genuínas pareceram pela primeira
vez à venda em Paris, no Marché aux Puces em Maio de 1963, a procura
ultrapassou de longe a oferta. O uniforme da juventude americana, calças de
ganga e T-shirt, continha muito pouca conotação de classe (pelo menos até
aos grandes desenhadores de moda se terem apropriado das duas coisas e
mesmo então a distinção que surgiu não era de classe social, mas sim de
recursos materiais); de facto, usados tanto pela classe média como pela
trabalhadora, as calças de ganga eram uma reveladora inversão do tradicional
desenvolvimento para «baixo» do estilo de vestir, tendo agora vindo para
cima a partir de uma peça de vestuário operário genuína. Eram também
distintamente jovens: como muitas outras modas de formas coladas ao corpo
imitadas dos filmes dos finais dos anos 50, não favoreciam as figuras mais
idosas.
Dentro de muito pouco tempo, as calças de ganga – tal como as
motorizadas, a Coca-Cola, cabelo comprido (masculino e feminino) e as
estrelas pop – tinham produzido variações localmente adaptáveis através da
Europa Ocidental (tanto os filmes como os produtos que exibiam estavam
disponíveis a Leste). Isto fazia parte de um padrão mais vasto. Os temas dos
filmes americanos – ficção científica, policiais, western – eram domesticados
em versões europeias estilizadas. Milhões de alemães de Leste aprenderam
sobre os cowboys nos romances escritos por autores locais que nunca tinham
estado na América; em 1960, os romances western escritos em língua alemã
vendiam-se à razão de 91 milhões por ano só na República Federal. A
segunda personagem europeia de banda desenhada mais popular a seguir ao
rapaz detective Tintin era outro produto belga: Lucky Luke, um pobre e
simpático cowboy apresentado semanalmente em francês e holandês nas
bandas desenhadas. A América, real ou imaginada, estava a tornar-se o
cenário natural do entretenimento ligeiro de todos os géneros.
O impacto americano nos jovens europeus contribuiu directamente para o
que já estava a ser largamente lamentado como sendo o «fosso de gerações».
Os pais observavam e lamentavam a propensão dos jovens europeus em todo
o lado para apimentar as suas conversas com americanismos verdadeiros ou
imaginados. Um estudo estimou que tais «americanismos» tinham aumentado
catorze vezes na imprensa austríaca e alemã no decorrer dos anos 60; em
1964 o crítico francês René Etiemble publicou Parlez-vous Franglais?, um
divertido (e, como alguns poderiam agora dizer, profético) relato dos danos
causados à língua francesa pela poluição anglófona.
O antiamericanismo – a antipatia, por princípio, pela civilização americana
e por todas as suas manifestações – estava tipicamente confinado às elites
culturais cuja influência fazia com que parecesse mais generalizado do que
era. Os conservadores culturais como André Siegfried em França – cujos
Tableau des États-Unis, de 1954, retomavam todos os ressentimentos e algum
do anti-semitismo das polémicas entre guerras – concordava com os radicais
cultos como Jean-Paul Sartre (ou o inglês Harold Pinter em décadas
posteriores): a América era uma terra de puritanos histéricos, entregues à
tecnologia, uniformização e conformismo, desprovidos de originalidade de
ideias. Tais inseguranças culturais tinham mais a ver com o ritmo de mudança
na própria Europa que com o desafio ou ameaça colocados pela América.
Assim como os adolescentes europeus identificavam o futuro com uma
América que mal conheciam, assim os seus pais acusavam a América pela
perda de uma Europa do que nunca existira realmente, um continente seguro
da sua identidade, da sua autoridade e dos seus valores e impenetrável às
sereias da modernidade e da sociedade de massas.
Estes sentimentos não eram ainda combatidos na Alemanha ou na Áustria,
ou até na Itália, onde muita gente mais velha ainda encarava os Americanos
como libertadores. Ao contrário, o antiamericanismo era mais frequentemente
abraçado na Inglaterra e em França, as duas ex-potências coloniais
directamente substituídas pela ascensão dos Estados Unidos. Como Maurice
Duverger informou aos leitores do semanário francês L’Express, em Março de
1964, o comunismo já não era uma ameaça: «Há só um perigo imediato para a
Europa e é a civilização americana» – «uma civilização de banheiras e
frigoríficos», como o poeta Louis Aragon a classificara, reprovador, treze
anos antes. Mas apesar do altivo desdém dos intelectuais parisienses, uma
civilização de banheiras e frigoríficos – e canalização interior e aquecimento
central e televisão e carros – era o que a maior parte dos europeus agora
queria. E queriam estas comodidades não por serem americanas mas porque
representavam conforto e bem-estar. Pela primeira vez na história, o desafogo
e o conforto estavam agora ao alcance da maior parte das pessoas na Europa.
-
(7) Em 1950, a Jugoslávia, Polónia, Roménia e Albânia eram os únicos países europeus onde mais
do que uma criança em cada dez morria antes de terem um ano. Na Europa Ocidental o país em pior
posição era Portugal, onde a taxa de mortalidade infantil em 1950 era de 94,1 por mil.

(8) No ano seguinte, em Março de 1956, este direito estendeu-se a todos os trabalhadores franceses.
Os operários da Renault obtiveram uma quarta semana de férias pagas em 1962, mas neste caso levou
sete anos até o resto do país os acompanhar.

(9) Com o resultado de quando o turismo se começou a desenvolver em finais dos anos 60, havia de
facto um défice de mão-de-obra na Grécia, mesmo para os trabalhos menores.

(10) Apenas quinze anos antes, em 1958, havia ali 25 000 Italianos, 4000 Jugoslavos e o número de
Turcos não era suficiente para ser registado em censos oficiais.

(11) Estas restrições draconianas à imigração colonial reflectiam a opinião corrente dos dois maiores
partidos. No entanto, menos de uma geração antes e em circunstâncias bastante diferentes, o primeiro-
ministro trabalhista Clement Attlee escrevera o seguinte, em Julho de 1948: «É tradicional os súbditos
britânicos, quer de origem colonial ou dos domínios (e sejam de que raça ou cor forem), serem
livremente admitidos no Reino Unido. A tradição, na minha opinião, não deve ser excluída com
ligeireza, especialmente numa altura em que estamos a importar mão-de-obra estrangeira em grande
quantidade».

(12) A excepção era a Itália, onde em 1971 menos de 5% de todas as compras eram feitas nos 538
supermercados do país e quase toda a gente continuava a usar as lojas locais especializadas. Isto era
ainda verdade vinte anos depois: em 1991, altura em que o número de postos de venda de alimentos na
Alemanha Ocidental baixara para 37 000 e em França para uns meros 21 500, havia 182 432 lojas de
alimentos em Itália. Per capita, só a Polónia possuía mais.

(13) Havia também objecções «culturais». Em 1952, o autor comunista francês Roger Vailland
afirmou que «num país como a França – excepto durante dois meses por ano e não todo o ano – está
sempre tanto frio que uma caixa para alimentos no parapeito da janela manterá o assado durante um
fim-de-semana e, aliás, um frigorífico é um “símbolo”, uma “mistificação” americana».
(14) Só em 1963 a Electricité de France começou a melhorar as linhas urbanas de energia para
permitir o funcionamento de múltiplos electrodomésticos – a zona rural seguiu-se alguns anos depois.

(15) Um aumento exponencial lindamente captado na cena de abertura do 8 1/2 de Fellini (1963).
Mesmo pelos padrões de Fellini, este congestionamento de tráfego urbano teria sido bizarramente
improvável alguns anos antes.

(16) A resposta local a esta inovação seguiu um precedente histórico: os motoristas ingleses,
considerando os custos dos parquímetros um imposto não autorizado, recusaram-se a pagar. Os
franceses manifestaram o seu desacordo decapitando os parquímetros parisienses.

(17) Os primeiros hipermercados europeus, definidos como lojas com, pelo menos, 7600 m2 num
único piso e localizados a pelo menos três quilómetros do centro da cidade, começaram a surgir no fim
dos anos 60. Em 1973 havia cerca de 750 lojas enormes destas na Europa Ocidental, 620 só em França e
na Alemanha Ocidental. Em Itália, nesse mesmo ano, havia unicamente três. Vinte anos depois havia
uns 8000 hipermercados e grandes lojas em França… mas ainda só 118 em Itália.

(18) Entre 1959 e 1973, o número de visitantes a Espanha cresceu de 3 milhões para 34 milhões. Já
em 1966 o número de turistas por ano em Espanha – 17,3 milhões – ultrapassava em muito os totais da
França ou da Itália. Em zonas do Nordeste e do litoral mediterrânico espanhol, a transição de uma
economia pré-industrial para a era do cartão de crédito realizou-se no espaço de meia geração. O
impacto estético e psicológico nem sempre foi positivo.

(19) Com excepção da Península Ibérica e do Sul dos Balcãs, onde a posse de rádios em 1960 era
mais ou menos comparável à da Europa Ocidental 35 anos antes e onde as pessoas ainda se agrupavam
nos cafés para ouvirem as notícias e música.

(20) Paul Ginsborg, A History of Contemporary Italy. Society and Politics 1943-1988 (1990), p. 240.

(21) Vale a pena acentuar a marginalidade do jazz. Tal como a música folk americana nos anos 60, o
jazz sempre foi apreciado e comprado unicamente por um pequeno número de pessoas na Europa
Ocidental: normalmente instruídos, burgueses ou boémios (ou as duas coisas) e bastante mais velhos do
que o entusiasta médio do rock and roll. A situação na Europa de Leste era um pouco diferente. Ali o
jazz era americano (e negro), portanto simultaneamente exótico e subversivo, ocidental embora radical –
e continha uma carga que não havia mais a ocidente.

(22) O escritor americano William Stead publicou The Americanization of the World em 1902:
antecipando este tema, mas não em muito.
Postscriptum:

Uma História de Duas Economias


«A Alemanha é uma terra repleta de crianças. É uma ideia aterradora pensar
que, em termos de longo prazo, os Alemães podem afinal ter ganho a guerra.»
Saul Padover, 1945
«Evidentemente, se conseguíssemos perder duas guerras mundiais, anular
todas as nossas dívidas – em vez de devermos quase 30 milhões de libras –
nos libertássemos de todas as nossas obrigações no estrangeiro e não
mantivéssemos qualquer força no exterior, então poderíamos ser tão ricos
como os Alemães.»
Harold Macmillan
«A prosperidade e a força da economia inglesa que Butler (Chanceler do
Tesouro do Reino Unido) glorificou em vários discursos em 1953 e 1954 era
tudo menos a última vaga de prosperidade a rebentar nas praias inglesas, a
partir do despertar da economia alemã tal como se avistava, arrastando com
ela a sua flotilha europeia associada. Em retrospectiva, 1954 parece-se com o
último grande Verão de ilusões do Reino Unido.»
Alan Milward
Uma característica marcante da história da Europa Ocidental do pós-
guerra era o contraste entre a actuação económica da Alemanha Ocidental e
da Grã-Bretanha. Pela segunda vez numa geração, a Alemanha era a potência
derrotada – as suas cidades arrasadas, a moeda destruída, a força de trabalho
masculina morta ou em campos de concentração, os serviços de transportes e
as infra-estruturas pulverizadas. A Inglaterra foi o único Estado europeu a
emergir inequivocamente vitorioso, da Segunda Guerra Mundial. Tirando a
destruição pelos bombardeamentos e as perdas humanas, a estrutura do país –
estradas, caminhos-de-ferro, portos, fábricas e minas – sobrevivera intacta à
guerra. No entanto, no início dos anos 60, a República Federal era a
florescente e próspera sede do poder da Europa, enquanto que a Grã-Bretanha
se atrasava, com o crescimento bastante abaixo do da restante Europa
Ocidental(1). Já em 1958 a economia da Alemanha Ocidental era maior do
que a da Inglaterra. Aos olhos de muitos observadores, o Reino Unido estava
mesmo a caminho de se tornar o doente da Europa.
As origens desta irónica inversão do destino são instrutivas. A base deste
«milagre» económico alemão dos anos 50 foi a recuperação dos anos 30. Os
investimentos dos nazis – em vias de comunicação, armamento e fabrico de
veículos, indústrias de óptica, química e de engenharia ligeira e de metais não
ferrosos – foram feitos para uma economia direccionada para a guerra; mas a
compensação surgiu vinte anos depois. A economia de mercado social de
Ludwig Erhard teve as suas raízes nas políticas de Albert Speer – na verdade,
muitos dos jovens directores e planeadores que ascenderam a altos cargos nos
negócios e no governo da Alemanha Ocidental do pós-guerra tiveram o seu
início no governo de Hitler; trouxeram para as comissões, autoridades de
planeamento e firmas da República Federal, políticas e práticas favorecidas
pelos burocratas nazis.
As infra-estruturas essenciais da política comercial alemã sobreviveram
sem danos à guerra. Empresas de manufactura, bancos, companhias de
seguros, distribuidores, estavam todos novamente activos no início dos anos
50, fornecendo um mercado externo voraz com os seus produtos e serviços.
Nem o cada vez mais valorizado marco alemão impediu o progresso da
Alemanha. Tornou baratas as matérias-primas importadas, sem restringir a
procura externa dos produtos alemães – estes eram tipicamente de elevado
valor e tecnicamente avançados e eram vendáveis pela qualidade, não pelo
preço. De qualquer maneira, durante as primeiras décadas do pós-guerra havia
pouca competição: se as firmas suecas, ou francesas ou holandesas queriam
determinado tipo de produto de engenharia ou ferramenta, tinham poucas
opções para além de comprarem na Alemanha e ao preço pretendido.
Os custos de produção alemães mantinham-se baixos devido ao
investimento sustentado em métodos de produção novos e eficientes – e por
uma mão-de-obra complacente. A República Federal beneficiou de uma quase
inesgotável fonte de trabalho barato – jovens engenheiros habilitados fugidos
da Alemanha de Leste, gestores de maquinaria semiespecializados e
montadores dos Balcãs, trabalhadores não especializados da Turquia, Itália e
de outros sítios. Todos eles estavam gratos pelos salários estáveis em moeda
forte em troca de empregos estáveis e – tal como uma geração pacífica de
Alemães mais velhos herdada dos anos 30 – não estavam dispostos a levantar
problemas.
Os resultados podem ser demonstrados com referência a uma só indústria.
Nos anos 60, os fabricantes alemães de automóveis tinham conquistado com
êxito uma reputação de qualidade em engenharia e fiabilidade na
manufactura, de tal maneira que companhias como a Mercedes-Benz, em
Estugarda, e a BMW, em Munique, conseguiam vender carros cada vez mais
caros a um mercado quase cativo, primeiro internamente e depois cada vez
mais no exterior. O governo de Bona apoiava despudoradamente estes
«campeões nacionais» tal como os nazis já tinham feito antes, alimentando-os
nos anos iniciais com empréstimos favoráveis e encorajando a relação banca-
negócios, que fornecia às companhias alemãs dinheiro para novos
investimentos.
No caso da Volkswagen, o trabalho de base já tinha sido lançado em 1945.
Tal como tantas outras indústrias alemãs do pós-guerra, a Volkswagen
beneficiava de todas as vantagens de uma economia de mercado –
nomeadamente a crescente procura dos seus produtos – sem sofrer qualquer
dos inconvenientes da concorrência ou dos custos dos estudos de mercado,
desenvolvimento e equipamento. À companhia tinham sido fornecidos
recursos inesgotáveis antes de 1939. O nazismo, a guerra e a ocupação
militar, todos tinham contribuído para isso – o Governo Militar Aliado olhava
com simpatia para a Volkswagen precisamente pela sua capacidade produtiva
ter sido construída antes da guerra e por poder ser posta a funcionar sem
grandes dificuldades. Não existia concorrência interna séria para o VW
Carocha quando a procura de pequenos carros familiares arrancou e mesmo
ao preço baixo estabelecido os carros davam lucro – graças aos nazis, a
companhia não tinha dívidas antigas para liquidar.
Na Inglaterra também havia um «campeão nacional» – British Motor
Corporation (BMC), um consórcio de vários fabricantes de automóveis ex-
independentes como a Morris ou a Austin e que mais tarde se fundiu com a
Leyland Motors para produzir a British Leyland (BL). Ainda em 1980, a BL
estava a vender os seus produtos como emblematicamente britânicos: «Iça a
bandeira – compra um Austin Morris». E tal como os fabricantes alemães, os
construtores de carros colocavam cada vez mais ênfase no mercado externo.
Mas as semelhanças acabavam aí.
Depois da guerra, sucessivos governos ingleses incentivaram
especialmente a BMC (tinham menos influência na Ford, de propriedade
americana, ou nas filiais inglesas da General Motors) a vender todos os carros
que pudessem no exterior – como parte da desesperada procura de lucros em
moeda estrangeira para compensar as enormes dívidas de guerra do país (o
objectivo oficial governamental em finais dos anos 40 era de 75% de toda a
produção automóvel do Reino Unido). Intencionalmente, a companhia
negligenciou o controlo de qualidade a favor de uma produção rápida. A
resultante má qualidade dos carros ingleses começou por ter pouca
importância. As firmas inglesas possuíam um mercado cativo: a procura tanto
interna como na Europa excedeu o abastecimento disponível. E os fabricantes
europeus continentais não puderam competir em volume: em 1949, o Reino
Unido produzia mais carros de passageiros que o resto da Europa toda junta.
Mas assim que se estabeleceu a fama de baixa qualidade e mau serviço,
revelou-se impossível de a alterar. Os compradores europeus abandonaram
em massa os carros ingleses logo que passou a haver melhores alternativas
fabricadas internamente.
Quando decidiram de facto actualizar as suas frotas e modernizar as suas
linhas de produção, as firmas de carros inglesas não possuíam bancos
associados para que se voltassem para investimentos e empréstimos, à
maneira alemã. Nem (como a Fiat, em Itália, ou a Renault, em França)
podiam contar com o Estado para remediar o défice. No entanto, sob forte
pressão política de Londres, construíram fábricas e centros de distribuição em
zonas do país pouco atractivas em termos económicos – para corresponderem
às políticas regionais oficiais e para apaziguarem os políticos e sindicatos
locais. Mesmo depois desta estratégia economicamente irracional ter sido
abandonada e se ter procedido a uma certa racionalização, as empresas de
automóveis inglesas mantiveram-se irremediavelmente pulverizadas: em 1968
a British Leyland era formada por sessenta fábricas diferentes.
Os governos encorajaram activamente a ineficácia dos produtores ingleses.
Depois da guerra, as autoridades distribuíram escassos fornecimentos de aço
aos fabricantes, com base na sua quota de mercado antes da guerra,
congelando assim um importante sector da economia à maneira do passado e
penalizando decisivamente os novos produtores potencialmente mais
eficientes. A garantia de fornecimento, a procura artificialmente elevada de
tudo o que podiam fabricar e a pressão política para procederam de formas
economicamente ineficazes, conjugaram-se para conduzir as firmas inglesas à
bancarrota. Em 1970, os produtores europeus e japoneses estavam a controlar
os seus mercados e a batê-los em qualidade e preço. A crise petrolífera do
início dos anos 70, a entrada na CEE e o fim dos últimos mercados protegidos
no Reino Unido nos domínios e colónias acabaram por destruir a indústria
automóvel inglesa independente. Em 1975 a British Leyland, o único
fabricante independente de automóveis do país, faliu e teve de ser recuperada
através da nacionalização. Alguns anos depois as suas componentes lucrativas
foram compradas por quase nada… pela BMW.
O declínio e desaparecimento final de um sector automóvel inglês
autónomo pode de um modo geral representar a experiência económica
inglesa. Inicialmente a economia britânica não se portou muito mal: em 1951
a Inglaterra era ainda o maior centro fabril da Europa, produzindo o dobro da
França e da Alemanha juntas. Proporcionava pleno emprego e cresceu,
embora mais lentamente do que em qualquer outro sítio. Sofreu, porém, de
duas incapacitantes desvantagens, uma produto de infortúnio histórico, a outra
auto-imposta.
A crise endémica inglesa da balança de pagamentos foi em larga medida
resultado das dívidas a pagar pelos seis anos de guerra contra a Alemanha e o
Japão, a que se deveriam juntar os enormes custos de manutenção de uma
eficiente força militar de defesa pós-guerra (8,2% do rendimento nacional em
1955, contra uma despesa alemã de menos de metade deste número). A libra –
ainda uma unidade importante das transacções internacionais nos anos 50 –
estava sobrevalorizada, o que fazia com que fosse difícil à Grã-Bretanha
vender no estrangeiro o suficiente para compensar o défice crónico de vendas
face ao dólar. País insular, completamente dependente das importações de
alimentos e matérias-primas vitais, em termos históricos a Inglaterra tinha
compensado esta vulnerabilidade estrutural com o seu acesso privilegiado aos
mercados protegidos no Império e na Commonwealth.
Mas esta dependência de mercados e recursos longínquos, uma vantagem
nos anos iniciais do pós-guerra quando o resto da Europa lutava para
recuperar, tornou-se um sério risco assim que a Europa – e especialmente a
zona da CEE – arrancou. Os Ingleses não podiam competir com os Estados
Unidos, e depois com a Alemanha, num qualquer mercado externo
desprotegido, enquanto as próprias exportações inglesas para a Europa
ficavam cada vez mais atrás das de outros produtores europeus. As
exportações manufacturadas inglesas representavam 25% do valor total
mundial em 1950; vinte anos depois representavam só 10,8%. Os Ingleses
tinham perdido a sua quota no mercado mundial e os seus fornecedores
tradicionais – na Austrália, Nova Zelândia, Canadá e colónias africanas –
estavam agora também a voltar-se para outros mercados.
Em certa medida o relativo declínio económico da Inglaterra era, pois,
inevitável. Mas a própria contribuição da Inglaterra não deve ser subestimada.
Mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, a indústria de manufactura inglesa
tinha ganho uma merecida reputação de ineficácia, de viver à sombra de
êxitos passados. Não é que os Ingleses fossem valorizados em excesso. Bem
pelo contrário. Como referiu Maynard Keynes num sardónico comentário a
respeito das perspectivas económicas da Grã-Bretanha do pós-guerra: «O
salário por hora neste país é (aproximadamente) 2 shillings por hora; nos
Estados Unidos é de 5 shillings por hora… Até mesmo a celebrada ineficácia
dos industriais ingleses dificilmente pode (esperamos) ser capaz de
compensar em vastos sectores da indústria esta diferença de custos inicial a
seu favor, embora o tenham supostamente conseguido em alguns casos
importantes… As estatísticas disponíveis sugerem que, desde que nunca
tenhamos feito o produto, já ganhámos ao mundo nos custos»(2).
Um dos problemas era a mão-de-obra. As fábricas ingleses tinham como
pessoal homens (e algumas mulheres) que estavam tradicionalmente
organizados em – literalmente – centenas de sindicatos há muito formados:
em 1968 as fábricas de automóveis da Leyland Britânica contavam com 246
sindicatos diferentes com quem a administração tinha de negociar
separadamente todos os pormenores dos valores do trabalho e salários. Esta
foi uma época de pleno emprego. Na verdade, a manutenção do pleno
emprego era o objectivo social principal de todos os governos ingleses
durante esses anos. A determinação em evitar o regresso aos horrores dos
anos 30 – quando homens e máquinas se deterioravam em inactividade –
sobrepôs-se assim a qualquer noção de crescimento, produtividade ou
eficiência. Os sindicatos – e especialmente os seus representantes locais, os
delegados sindicais – eram mais poderosos do que nunca antes ou depois. As
greves – igualmente sintoma de militância laboral e incompetência
administrativa – eram endémicas na vida industrial do pós-guerra.
Mesmo que a liderança dos sindicatos ingleses tivesse seguido o exemplo
alemão e oferecido relações amigáveis entre delegados sindicais e restrição de
salários em troca do investimento, segurança e crescimento, é improvável que
a maior parte dos seus patrões tivesse mordido o isco. Nos anos 30, o futuro
primeiro-ministro trabalhista Clement Attlee tinha identificado com agudeza
o mal da economia britânica como sendo um problema de subinvestimento,
falta de inovação, imobilidade laboral e mediocridade administrativa. Mas
uma vez empossado no cargo, parecia haver pouco que ele ou os seus
sucessores pudessem fazer para travar a deterioração. Enquanto que a
indústria alemã herdara todas as vantagens das mudanças lavradas pelo
nazismo e pela guerra, as indústrias inglesas, envelhecidas e pouco
competitivas, herdaram a estagnação e um profundo medo da mudança.
Os têxteis, as minas, a construção naval, as fábricas de aço e de
maquinaria ligeira, todas elas necessitariam de reestruturação e de novo
equipamento nas décadas do pós-guerra; mas assim como decidiram
acomodar os sindicatos em vez de atacarem as práticas de trabalho
ineficiente, assim também os administradores fabris ingleses preferiram
funcionar num ciclo de subinvestimento, investigação e desenvolvimento
limitados, salários baixos e uma carteira de clientes a encolher em vez de
arriscarem um recomeço com produtos novos e novos mercados. A solução
não era óbvia. Keynes, uma vez mais: «Se por um qualquer infeliz erro
geográfico a Força Aérea Americana (agora é demasiado tarde para esperar
muito do inimigo) tivesse destruído todas as fábricas da costa nordeste e no
Lancashire (numa altura em que os directores ali estivessem e mais ninguém)
não teríamos nada a temer. Não consigo imaginar de que outro modo
poderíamos recuperar a exuberante inexperiência necessária, parece, para o
êxito».
Em França, uma herança semelhante de incompetência empresarial e
inércia foi ultrapassada pelo investimento público e planeamento agressivo.
Os governos ingleses, porém, confinaram-se ao regateio colectivo,
administração exigente e exortação. Para um Estado que tinha nacionalizado
sectores tão generalizados da economia depois de 1945 e que em 1970 fora
responsável por gastar 47% do PIB do país, esta cautela parece um curioso
paradoxo. Mas o Estado inglês, apesar de ser proprietário ou de gerir a maior
parte dos sectores dos transportes, médicos, educativos e das comunicações,
nunca defendeu quaisquer ambições estratégicas generalizadas; e a economia
foi deixada por razões práticas aos seus dispositivos próprios. Coube a uma
geração posterior de reformadores do mercado livre – e a um primeiro-
ministro conservador radicalmente adverso ao Estado – aplicar toda a força do
governo central ao problema da estagnação económica inglesa. Mas por essa
altura algumas das críticas feitas à mal adaptada «velha» economia inglesa
estavam a ser também dirigidas, por diferentes razões, à vacilante economia
alemã.
-
(1) Em 1960, a economia alemã cresceu a uma taxa de 9% por ano, e a britânica, 2,6%, a mais baixa
no mundo desenvolvido, excepto a Irlanda, que na altura estava longe de estar desenvolvida.

(2) Citado de Peter Hennessy, Never Again. Britain 1945-1951 (1993), p. 117.
XI

A Hora da Social-Democracia
«O importante para um governo não é fazer coisas que os indivíduos já estão
a fazer e fazê-las um pouco melhor ou um pouco pior; mas fazer aquelas
coisas que presentemente não estão a ser feitas de todo.»
John Maynard Keynes (1926)
«O desafio não virá dos Estados Unidos… da Alemanha Ocidental ou de
França; o desafio virá das nações que, por muito erradas que estejam – e eu
acho que estão erradas em muitos aspectos fundamentais – mesmo assim
estão finalmente a ser capazes de colher os frutos materiais do planeamento
económico e da propriedade pública.»
Aneurin Bevan (1959)
«A nossa nação representa a democracia e canalizações apropriadas».
John Betjeman
«Quero abrir de par em par as janelas da Igreja para podermos ver para fora e
as pessoas poderem ver para dentro.»
Papa João XXIII
«A fotografia é verdade. O cinema é verdade vinte e quatro vezes por
segundo.»
Jean-Luc Godard
Os anos 60 viram o apogeu do Estado europeu. A relação do cidadão com
o Estado na Europa Ocidental no decorrer do século anterior tinha sido um
astucioso compromisso entre as necessidades militares e as exigências
políticas: os modernos direitos dos cidadãos recentemente emancipados
compensados por antigas obrigações de defesa do reino. Mas desde 1945 que
a relação se caracterizava cada vez mais por um vasto conjunto de benefícios
sociais e estratégias económicas nas quais era o Estado que servia os seus
súbditos em vez do contrário.
Em anos posteriores, as muito abrangentes ambições dos Estados-
providência da Europa Ocidental iriam perder algum do seu atractivo –
especialmente porque já não podiam cumprir as suas promessas: o
desemprego, a inflação, populações envelhecidas e o abrandamento
económico colocavam pressões insuperáveis sobre os esforços dos Estados
para cumprirem o seu compromisso. As transformações nos mercados de
capitais internacionais e as modernas comunicações electrónicas cortavam as
pernas à capacidade de planeamento dos governos de fazerem cumprir as
políticas económicas internas. E, mais importante, a própria legitimidade do
Estado intervencionista estava debilitada: internamente, devido à rigidez e
ineficácia dos agentes do sector público e dos produtores, no estrangeiro pela
incontroversa evidência da crónica disfunção económica e repressão política
nos Estados socialistas do bloco soviético.
Mas tudo isto pertencia ainda ao futuro. Nos anos de apogeu do moderno
Estado-providência europeu, quando o aparelho administrativo ainda exercia
uma extensa autoridade e a sua credibilidade se mantinha inatacável,
conseguiu-se um notável consenso. O Estado, era a convicção geral, faria
sempre um trabalho melhor do que o mercado sem restrições: não só na
aplicação da justiça e na segurança do reino, ou na distribuição de bens e
serviços, mas no planeamento e aplicação de estratégias para a coesão social,
amparo moral e vitalidade cultural. A noção de que era preferível deixar esses
assuntos ao interesse próprio esclarecido e aos mecanismos de um mercado
livre nas mercadorias e ideias era encarada, nos círculos políticos e
académicos europeus mais importantes, como uma relíquia pitoresca dos
tempos pré-Keynes: na melhor das hipóteses, um insucesso na aprendizagem
das lições da Depressão, na pior, um convite ao conflito e um disfarçado
apelo aos mais básicos instintos humanos.
O Estado, então, era uma coisa boa: e havia-o em grande quantidade. Entre
1950 e 1973, a despesa dos governos cresceu de 27,6% para 38,8% do
produto interno bruto em França, de 30,4% para 42% na Alemanha Ocidental,
de 34,2% para 41,5% no Reino Unido e de 26,8% para 45,5% na Holanda –
numa época em que o produto interno estava a crescer mais depressa do que
nunca, antes ou depois. O impressionante volume no aumento da despesa
ocorreu na segurança, pensões, saúde, educação e habitação. Na
Escandinávia, a parte do rendimento nacional dedicada só à segurança social
cresceu 250% na Dinamarca e na Suécia entre 1950 e 1973. Na Noruega
triplicou. Só na Suíça o PIB do pós-guerra gasto pelo Estado se manteve
comparativamente baixo (não atingiu 30% até 1980), mas mesmo aí em
marcado contraste com o número de 1938 de unicamente 6,8%.
A história de sucesso do capitalismo europeu do pós-guerra foi por todo o
lado acompanhada por um papel crescente do sector público. Mas a natureza
do compromisso do Estado variou consideravelmente. Na maior parte da
Europa continental o Estado absteve-se da posse directa da indústria (embora
não dos transportes públicos ou comunicações), preferindo exercer controlo
directo; muitas vezes através de agências supostamente autónomas, de que a
tentacular IRI da Itália era a maior e a mais conhecida (ver capítulo 8).
Grandes empresas como a IRI davam assistência não só aos seus
empregados e consumidores, mas também a uma variedade de partidos
políticos, sindicatos, instituições de serviços sociais e até mesmo a igrejas,
que patrocinavam e cuja influência ampliavam. O Partido Democrata-Cristão
da Itália «colonizou», a todos os níveis, das aldeias à capital nacional, uma
ampla gama de serviços públicos e produtos controlados ou subsidiados pelo
Estado: transportes, meios de comunicação social electrónicos, bancos,
energia, indústrias de engenharia e químicas, o negócio da construção,
produção de alimentos. Os principais beneficiários, depois do próprio partido,
eram os milhões de filhos e netos de camponeses sem terras que encontravam
emprego seguro nas burocracias resultantes. O Instituto Nacional Italiano para
os Órfãos de Guerra empregava 12 pessoas por cada 70 órfãos e gastava 80%
dos seus recursos orçamentais em salários e administração.
De forma semelhante, o controlo das companhias do sector público na
Bélgica permitia que o governo nacional em Bruxelas atenuasse
ressentimentos locais e subornasse os interesses regionais e linguísticos em
disputa com serviços, empregos e investimentos dispendiosos em infra-
estruturas. Em França as nacionalizações do pós-guerra instituíram redes
duradouras de influência e patrocínio. A Electricité de France (EDF) era o
principal fornecedor de energia do país. Mas era também um dos maiores
empregadores. Por um acordo que datava da legislação inicial do pós-guerra,
1% do volume de negócios francês da EDF era entregue anualmente a um
fundo social administrado pelo então movimento sindical dominante, a
Confédération Générale du Travail (CGT). As férias e outros benefícios pagos
por este fundo (para não falar nas oportunidades de emprego para o seu
pessoal) representaram nas décadas seguintes uma alavanca de patrocínio para
o próprio patrão da CGT, o Partido Comunista Francês.
O Estado lubrificava assim as engrenagens do comércio, política e
sociedade de inúmeras maneiras. E era responsável, directa ou
indirectamente, pelo emprego e remuneração de milhares de homens e
mulheres, que desta maneira tinham nele direitos adquiridos, quer como
profissionais, quer como burocratas. Os licenciados nas principais
universidades inglesas, tal como os seus contemporâneos franceses das
grandes écoles, como seria de esperar procuravam emprego não em
profissões do sector privado, muito menos na indústria e comércio, mas na
educação, medicina, serviços sociais, justiça, monopólios do Estado ou no
funcionalismo governamental. Em finais dos anos 70, 60% de todos os
licenciados em universidades na Bélgica arranjaram emprego no
funcionalismo público ou no sector social subsidiado publicamente. O Estado
europeu criou um mercado único para os bens e serviços que podia fornecer.
Formou um círculo virtuoso de emprego e influência que obteve uma
apreciação quase universal.
As diferenças doutrinais entre os objectivos aparentes do Estado poderiam
ter posto em ruidosa oposição a Esquerda e a Direita, os democratas-cristãos e
os comunistas, socialistas e conservadores, mas quase todos tinham qualquer
coisa a ganhar com as oportunidades que o Estado lhes proporcionava em
salários e influência. A fé no Estado – planeador, coordenador, facilitador,
árbitro, provedor, responsável e guardião – era generalizada e atravessava
quase todas as divisões políticas(1). O Estado-providência era manifestamente
social, mas estava longe de ser socialista. Nesse sentido, o capitalismo social,
como se desenvolveu na Europa Ocidental, era verdadeiramente pós-
ideológico.
No entanto, no consenso europeu do pós-guerra generalizado havia uma
visão distinta, a dos sociais-democratas. A social-democracia foi sempre um
produto híbrido; de facto, era exactamente isto de que a acusavam os inimigos
tanto de Direita como de Esquerda. Sendo um processo de busca perpétua da
sua teoria, a social-democracia era o resultado de uma percepção concedida a
uma geração de socialistas europeus no início do século XX: essa radical
revolução social nos países do centro da Europa – consoante profetizada e
planeada pelos socialistas visionários do século XIX – assentava no passado,
não no futuro. Como solução para a injustiça e a ineficácia do capitalismo
industrial, o paradigma de sublevação urbana violenta do século XIX não só
era indesejável e improvável que atingisse os seus objectivos, era também
redundante. As melhorias genuínas na condição de todas as classes poderiam
ser obtidas por vias de crescimento pacíficas.
Daqui não resultou que os princípios fundamentais socialistas do século
XIX fossem descartados. A esmagadora maioria dos sociais-democratas
europeus de meados do século XX, mesmo que tenham mantido a sua
distância de Marx e dos seus declarados herdeiros, mantinha como artigo de
fé que o capitalismo era intrinsecamente disfuncional e que o socialismo era
simultaneamente moral e economicamente superior. Onde diferiam dos
comunistas era na sua relutância em se comprometerem com a inevitabilidade
da morte iminente do capitalismo ou com a sensatez de apressar esse fim com
as suas próprias acções políticas. A sua tarefa, conforme a tinham vindo a
entender após décadas de Depressão, divisão e ditadura, era usar os recursos
do Estado para eliminar as patologias sociais resultantes das formas
capitalistas de produção e as actividades ilimitadas de uma economia de
mercado: construir não utopias económicas, mas boas sociedades.
A política da social-democracia nem sempre seduzia a juventude
impaciente, conforme acontecimentos posteriores iriam provar. Mas era
intuitivamente apelativa para os homens e mulheres que tinham vivido as
terríveis décadas desde 1914 e, em certas zonas da Europa Ocidental, a social-
democracia em meados dos anos 60 já não era tanto uma política como uma
forma de vida. Em lado nenhum era isto tão evidente como na Escandinávia.
Entre 1945 e 1964, a percentagem de votos do Partido Social-Democrata
Dinamarquês nas eleições nacionais subiu de 33% para 42%; nos mesmos
anos o Partido Trabalhista Norueguês ganhou entre 43 e 48%; quanto aos
sociais-democratas suecos, a sua percentagem de votos no pós-guerra nunca
caiu abaixo dos 45%. Nas eleições de 1968 até excedeu os 50%.
O que era notável nestas votações não eram os números em si – o Partido
Socialista Austríaco chegou a conseguir resultados quase tão bons e nas
eleições gerais inglesas de 1951 o Partido Trabalhista de Clement Attlee
obteve 48,8% dos votos (embora os Conservadores, com uma votação geral
mais baixa, tenham ganho mais assentos parlamentares). Era a sua coerência.
Ano sim, ano não, os partidos sociais-democratas obtiveram mais de dois
quintos dos votos do seu país e o resultado foram décadas de controlo
governamental ininterrupto, por vezes à cabeça de uma coligação de partidos
mais pequenos e complacentes, mas normalmente sozinhos. Entre 1945 e
1968, oito em cada dez governos dinamarqueses foram dirigidos por sociais-
democratas; nos mesmos anos houve cinco governos noruegueses, três dos
quais sociais-democratas e quatro governos suecos, todos sociais-democratas.
Também havia coerência nas pessoas: Einar Gerhardsen na Noruega dirigiu
dois governos sociais-democratas durante catorze anos; na Suécia, Tage
Erlander governou simultaneamente o seu partido e o seu país durante vinte e
três anos, de 1946 a 1969(2).
As sociedades escandinavas herdaram algumas vantagens. Pequenas e
socialmente homogéneas, sem colónias ultramarinas ou ambições imperiais,
eram Estados constitucionais havia muitos anos. A Constituição dinamarquesa
de 1849 tinha introduzido poderes parlamentares limitados mas também a
liberdade de imprensa e religiosa. A Constituição sueca, (e nessa época,
norueguesa) de 1809 estabelecia modernas instituições políticas, incluindo a
representação proporcional e o exemplar sistema do ombudsman – este último
adoptado em toda a Escandinávia em anos posteriores – e proporcionava a
estrutura estável em que o sistema político partidário se podia desenvolver.
Manteve-se até 1975.
Mas a Escandinávia era historicamente pobre – uma região de florestas,
herdades, indústria da pesca e uma mão-cheia de indústrias primárias, quase
todas na Suécia. As relações de trabalho, especialmente na Suécia e na
Noruega, eram cronicamente perturbadas por conflitos – a percentagem de
greves em ambos os países era das mais elevadas no mundo durante as
primeiras décadas do século XX. Durante a Depressão dos anos 30 o
desemprego na região era constante. Em 1932-33, um terço da mão-de-obra
sueca estava sem trabalho; na Noruega e na Dinamarca, 40% da força de
trabalho adulta não tinha emprego – números comparáveis com os piores anos
de desemprego na Inglaterra, na Alemanha de Weimar ou nos estados
industrializados dos Estados Unidos. Na Suécia a crise conduziu a violentos
confrontos, nomeadamente em Adalen, em 1931, onde uma greve numa
fábrica de papel foi reprimida pelo exército (recordada de forma notável pelo
realizador sueco Bo Widerberg num filme de 1969, Adalen 31).
Se a Escandinávia – e a Suécia em particular – não seguiu o caminho de
outras sociedades em depressão económica no espaço europeu de entre
guerras, muito do mérito pertenceu aos sociais-democratas. Depois da
Primeira Guerra Mundial os partidos socialistas suecos abandonaram em
grande parte o dogma radical e as ambições revolucionárias que tinham
partilhado com os movimentos socialistas alemães e outros da II
Internacional; e no decorrer dos anos 30 avançaram para um compromisso
histórico entre o capital e o trabalho. Em Saltsjöbaden, em 1938,
representantes dos patrões suecos e dos trabalhadores assinaram um pacto que
iria constituir a base das futuras relações sociais do país – uma amostra das
parcerias sociais neo-corporativistas formadas na Alemanha e na Áustria
depois de 1945, mas que eram praticamente desconhecidas antes da guerra,
excepto sob os auspícios fascistas(3).
Os sociais-democratas suecos estavam abertos a tais compromissos porque
não tinham ilusões quanto aos putativos eleitores «proletários» em que outros
partidos socialistas confiavam para o cerne do seu apoio. Se tivessem
dependido só dos votos da classe operária urbana, ou mesmo unicamente dos
votos da classe operária juntamente com os dos reformados da classe média,
os partidos socialistas da Escandinávia teriam permanecido para sempre uma
minoria. As suas perspectivas políticas assentavam na extensão do seu apelo
às populações da região e esmagadoramente rurais. E assim, ao contrário de
quase todos os outros partidos socialistas ou sociais-democratas da Europa, os
sociais-democratas da Escandinávia não estavam marcados pela instintiva
antipatia pelo rural que caracterizava grande parte da Esquerda europeia,
desde as observações de Marx sobre a «idiotice da vida rural» à aversão de
Lenine pelos kulaks.
Os amargurados e desamparados camponeses da Europa Central e do Sul
de entre as guerras formaram um eleitorado fácil para os nazis, fascistas ou
populistas agrários empenhados. Mas os igualmente perturbados agrários,
madeireiros, caseiros e pescadores do extremo norte europeu voltaram-se em
grande número para os sociais-democratas, que apoiavam activamente as
cooperativas agrárias – especialmente importantes na Dinamarca, onde a
agricultura comercial era generalizada e eficiente, mas em muito pequena
escala – e com isso obscureceram as antigas distinções socialistas entre
produção privada e objectivos colectivistas, zona rural «atrasada» e cidade
«moderna» que eram tão eleitoralmente desastrosas em outros países.
A aliança entre trabalho e agricultura – facilitada pela invulgar
independência dos camponeses escandinavos, congregados em fervorosas
comunidades protestantes não constrangidas pela tradicional subserviência
rural aos padres ou proprietários – iria formar a duradoura plataforma sobre a
qual os mais bem sucedidos partidos sociais-democratas da Europa se
constituíram. Coligações «vermelho-verde» (primeiro entre os partidos
agrários e os sociais-democratas, mais tarde só dentro deste último grupo)
eram impensáveis em qualquer outro sítio; na Escandinávia tornaram-se
norma. Os partidos sociais-democratas foram o veículo através do qual a
sociedade rural tradicional e a mão-de-obra industrial entraram juntos na era
urbana: neste sentido, a social-democracia na Escandinávia não era apenas
uma política entre muitas, era a própria forma da modernidade.
Os Estados-providência escandinavos que se desenvolveram depois de
1945 tinham as suas origens, então, nos dois pactos sociais dos anos 30: entre
patrões e empregados e entre o proletariado e a agricultura. Os serviços
sociais e outras provisões públicas que viriam a caracterizar o «modelo»
escandinavo reflectiam essas origens, enfatizando a universalidade e a
igualdade – direitos sociais universais, salários iguais, benefícios fixos pagos
pelos impostos gradualmente progressivos. Deste modo mantiveram-se em
marcado contraste com a versão continental europeia típica em que o Estado
transferia ou devolvia receitas às famílias e indivíduos, permitindo-lhes que
pagassem em dinheiro aquilo que eram, no fundo, serviços privados
subsidiados (em especial, segurança e medicina). Mas com excepção da
educação, que era já universal e abrangente antes de 1914, o sistema de
assistência social escandinavo não foi concebido e implementado de imediato.
Surgiu gradualmente. Os cuidados de saúde, em especial, ficaram para trás: na
Dinamarca, a cobertura da saúde universal só foi conseguida em 1971, vinte e
três anos depois de ter sido inaugurado o Serviço Nacional de Saúde de
Aneurin Bevan, do outro lado do Mar do Norte, no Reino Unido.
Além disso, o que visto de fora parecia ser um único sistema nórdico era
na realidade muito variável com o país. A Dinamarca era a menos
«escandinava». Não era só criticamente dependente de um mercado exterior
para produtos agrícolas (em especial lacticínios e derivados do porco) e
portanto mais sensível às políticas e desenvolvimentos políticos dos outros
países da Europa, mas a sua mão-de-obra especializada estava muito mais
dividida por lealdades e organizações profissionais. A este respeito
assemelhava-se mais à Inglaterra do que, por exemplo, à Noruega; de facto,
os sociais-democratas da Dinamarca tinham sido constrangidos em mais do
que uma ocasião, nos anos 60, a emular os governos ingleses e a procurar
impor o controlo de preços e de salários num instável mercado de trabalho.
Pelos padrões ingleses, a política foi um êxito; mas pelos mais exigentes
critérios escandinavos, as relações sociais dinamarquesas e a actuação
económica da Dinamarca foram sempre um tanto perturbadas.
A Noruega era a mais pequena e homogénea de todas as sociedades
nórdicas (com excepção da Islândia). Também sofrera muito com a guerra.
Além disso, mesmo antes de se ter descoberto petróleo na costa, a situação da
Noruega era diferente. Tinha estado na linha da frente durante a Guerra Fria e
portanto empenhada em gastos muito maiores com a defesa do que a
minúscula Dinamarca ou que a Suécia neutral; era também o mais estreito dos
países do Norte, com a sua população de menos de quatro milhões de pessoas
aglomerada ao longo de uma linha de costa de 1752 quilómetros, a mais longa
da Europa. Muitas das distantes cidades e aldeias eram e são totalmente
dependentes da pesca para sua subsistência. Social-democrata ou não, o
governo de Oslo era obrigado a aplicar os recursos do Estado aos objectivos
sociais ou comunais: os subsídios que fluiam do centro para a periferia (para
transporte, comunicações, educação e fornecimento de profissionais e
serviços, nomeadamente para o terço do país situado a norte do Círculo Polar
Árctico) eram a seiva da nação norueguesa.
A Suécia também era diferente – embora as suas particularidades, com o
correr do tempo, acabassem por ser consideradas a norma escandinava. Com
uma população quase do tamanho da Noruega e Dinamarca juntas (só na
grandiosa Estocolmo habitava o equivalente a 45% dos habitantes da
Noruega), a Suécia era de longe a sociedade mais rica e mais industrializada
da Escandinávia. Em 1973, o seu volume de produção de minério de ferro era
comparável ao de França, Inglaterra e Alemanha Ocidental juntas e era quase
metade do dos Estados Unidos. Na produção de papel, madeira para pasta de
papel e navegação era líder mundial. Enquanto a social-democracia da
Noruega consistiu durante muitos anos em organizar, racionar e distribuir
recursos escassos numa sociedade pobre, a Suécia já era nos anos 60 um dos
países mais ricos. Ali, a social-democracia, estava a proceder à partilha e ao
equilíbrio da riqueza e dos serviços para o bem comum.
Por toda a Escandinávia, mas especialmente na Suécia, a propriedade
privada e a exploração dos meios de produção nunca foram postos em
questão. Ao contrário do movimento trabalhista inglês, cujo programa e
doutrina central assentavam desde 1918 numa fé, impossível de erradicar, nas
virtudes das nacionalizações, os sociais-democratas suecos contentavam-se
em deixar o capital e a iniciativa em mãos privadas. O exemplo da British
Motor Corporation inglesa, uma cobaia indefesa para as experiências
governamentais na distribuição de recursos centralizada, nunca foi seguido na
Suécia. A Volvo, a Saab e outros negócios privados foram deixados em paz
para florescerem ou fracassarem.
De facto, o capital industrial na Suécia «socialista» estava concentrado em
menos mãos privadas do que em qualquer outro lado da Europa Ocidental. O
governo nunca interferia, quer com a acumulação de riqueza particular, quer
com o comércio de bens e capitais. Até na Noruega, após quinze anos de
governo social-democrata, o sector da economia directamente possuído ou
dirigido pelo Estado era de facto menor que o da Alemanha Ocidental
democrata-cristã. Mas em ambos os países, tal como na Dinamarca e na
Finlândia, o que o Estado realmente fez foi taxar de forma implacável e
progressiva os lucros privados e redistribuí-los para fins públicos.
Para muitos observadores estrangeiros e para a maior parte dos
escandinavos, os resultados pareciam falar por si. Em 1970, a Suécia
(juntamente com a Finlândia) era uma das quatro economias líderes mundiais,
calculando o poder de compra per capita (os outros dois eram os Estados
Unidos e a Suíça). Os escandinavos tinham vidas mais longas e mais
saudáveis do que a maior parte das outras pessoas do mundo (uma coisa que
teria espantado a isolada e empobrecida classe camponesa nórdica de três
gerações atrás). A prestação de serviços educativos, de assistência social,
médicos, seguros, reforma e lazer e instalações era inigualável (especialmente
nos Estados Unidos e também na Suíça), assim como o era a segurança
económica e física em que os cidadãos do norte da Europa levavam as suas
vidas satisfeitas. Em meados dos anos 60, o «norte gelado» da Europa tinha
adquirido um estatuto quase mítico: o modelo social-democrata escandinavo
poderia não ser prontamente copiado em outros sítios, mas era universalmente
admirado e amplamente invejado.
Quem estiver familiarizado com a cultura nórdica, de Ibsen a Munch
passando por Ingmar Bergman, reconhecerá outro lado da vida escandinava: a
sua melancolia introspectiva, incipiente – popularmente entendida nesses anos
como propensão para a depressão, alcoolismo e elevadas taxas de suicídio.
Nos anos 60 e depois, agradava aos críticos conservadores da política
escandinava atribuir as culpas destas imperfeições à paralisia moral
provocada pela excessiva segurança económica e pela direcção centralizada.
E depois havia a propensão dos escandinavos para tirarem as roupas em
público (ou nos filmes) e – conforme amplamente comentado – fazerem amor
com desconhecidos: outra prova, para alguns observadores, dos danos físicos
infligidos por um Estado excessivamente poderoso que tudo providencia e
nada proíbe(4).
Se isto era o pior que se podia dizer do «modelo» escandinavo, então os
sociais-democratas da Suécia e de outros sítios podiam ser desculpados por se
rirem (ou, então, se queixarem) quando iam ao banco. Mas os críticos tinham
alguma razão: havia de facto um lado mais negro no Estado abrangente. A
confiança do início do século XX na capacidade de o Estado fazer uma
sociedade melhor tinha assumido muitas formas: a social-democracia
escandinava – tal como os reformistas fabianos do Estado-providência inglês
– nascera de um fascínio generalizado pela engenharia social de todos os
géneros. E não muito para lá da prática do Estado para ajustar salários,
despesas, emprego e informação, ocultava-se a tentação de mexer com os
próprios indivíduos.
A eugenia – a «ciência» da melhoria racial – não era apenas uma mania da
era eduardiana, tal como o vegetarianismo ou o nomadismo (apesar de muitas
vezes apelar ao mesmo eleitorado). Aceite por pensadores de todos as cores
políticas, encaixou-se especialmente bem nas ambições de reformadores
sociais bem intencionados. Se o objectivo social era melhorar a condição
humana no seu conjunto, porquê deixar passar as oportunidades postas à
disposição pela ciência moderna para acrescentar melhorias avulsas no
decorrer do processo? Porque não deveria a prevenção ou abolição das
imperfeições da condição humana estender-se à prevenção (ou abolição) de
seres humanos imperfeitos? Nas décadas iniciais do século XX a atracção por
um planeamento genético ou social cientificamente manipulado era geral e
absolutamente respeitável; foi só graças aos nazis, cujas ambições
«higiénicas» começaram com antropometria e acabaram na câmara de gás,
que, compreensivamente, foi desacreditada na Europa do pós-guerra. Ou
assim se julgava.
Mas, como se revelou muitos anos depois, pelo menos as autoridades
escandinavas não tinham abandonado o interesse pela teoria – e prática – da
«higiene racial». Entre 1934 e 1976, programas de esterilização foram
levados a cabo na Noruega, Suécia e Dinamarca, em todos os casos sob os
auspícios e com o conhecimento dos governos sociais-democratas. Nesses
anos uns 6000 Dinamarqueses, 40 000 Noruegueses e 60 000 Suecos (90%
dos quais mulheres) foram esterilizados por motivos «higiénicos»: «para
melhorar a população». A força motriz intelectual por detrás destes programas
– o Instituto de Biologia Racial na Universidade de Upsala na Suécia – fora
estabelecida em 1921, no auge da voga sobre o assunto. Só foi desmantelado
55 anos depois.
O que esta triste história nos diz, se é que diz alguma coisa, sobre a social-
democracia não é claro – sociedades e governos claramente não-socialistas e
não-democratas fizeram mais e pior. A legitimidade do Estado na
Escandinávia do pós-guerra, a autoridade e iniciativa concedidas por uma
cidadania muitíssimo pouco questionadora, deixaram o governo livre para
actuar no que julgavam ser o interesse comum com uma supervisão
surpreendentemente pequena. Parece nunca ter ocorrido a um ombudsman
investigar o abuso sobre os que se encontravam do lado de fora da
comunidade beneficiária de direitos pagadora de impostos. A linha que
separava a tributação progressiva e a licença de parto concedida aos pais da
poderosa interferência nas capacidades reprodutoras de cidadãos
«defeituosos» parece não ter sido totalmente clara para alguns governos do
pós-guerra na Escandinávia social-democrata. No mínimo, isto sugere que as
lições morais da Segunda Guerra Mundial não foram tão claras como se
supunha – precisamente (e talvez não por coincidência) em países como a
Suécia cuja consciência colectiva era generalizadamente tida como limpa.
Fora da Escandinávia, a maior aproximação ao ideal social-democrata foi
conseguida num outro pequeno país neutral nos limites da Europa Ocidental:
a Áustria. Na verdade, as semelhanças superficiais eram tais que os
observadores começaram a referir-se ao «modelo austro-escandinavo». Na
Áustria tal como na Suécia ou na Noruega, um pequeno país essencialmente
rural e tradicionalmente pobre tinha-se transformado, como vimos, num
próspero, estável e politicamente tranquilo oásis de bem-estar proporcionado
pelo Estado. Também na Áustria se tinha feito um pacto de facto, neste caso
entre os socialistas e o conservador Partido Popular para evitar qualquer
regresso aos conflitos abertos das décadas entre as guerras. Mas as
semelhanças acabavam aí.
A Áustria era de facto «social» (e tinha, depois da Finlândia, o mais vasto
sector nacionalizado da democracia europeia ocidental) mas não era
particularmente social-democrata. Só em 1970 o país obteve o seu chefe de
governo socialista do pós-guerra, quando Bruno Kreisky se tornou chanceler.
Embora a Áustria, com o correr do tempo, tenha instituído muitos dos
serviços sociais e políticas públicas associadas à sociedade social-democrata
da Escandinávia – assistência infantil, segurança de emprego generosa e
pensões públicas, apoio familiar, serviços de saúde universais, transportes
exemplarmente subsidiados pelo Estado – o que distinguia a Áustria da
Suécia, por exemplo, era a quase universal distribuição de emprego,
influência, favores e fundos segundo a filiação política. Esta apropriação do
Estado austríaco e dos seus recursos para estabilizar o mercado nas
preferências políticas tinha menos a ver com ideais sociais do que com a
memória de traumas passados. Logo a seguir à sua experiência de entre
guerras, os socialistas da Áustria estavam mais interessados em estabilizar a
frágil democracia do seu próprio país que revolucionar as suas políticas
sociais(5).
Tal como o resto da sociedade austríaca, os sociais-democratas do país
revelaram-se notavelmente habilidosos em deitar o passado para trás das
costas. Os partidos sociais-democratas nos outros países levaram um pouco
mais de tempo a abandonar uma certa nostalgia pelas transformações radicais.
Na Alemanha Ocidental, o SPD esperou até 1959 e pelo seu Congresso em
Bad Godesberg para remodelar os seus objectivos e intenções. O novo
programa do Partido ali adoptado afirmava simplesmente que o «socialismo
democrático, que na Europa tem as suas raízes na ética cristã, no humanismo
e na filosofia clássica, não tem a intenção de proclamar verdades absolutas».
O Estado, afirmava-se, devia «restringir-se sobretudo aos métodos indirectos
de influenciar a economia». O mercado livre de bens e emprego era vital: «A
economia orientada ditatorialmente destrói a liberdade»(6).
Este reconhecimento tardio tem contrastes óbvios com a decisão do
Partido Trabalhista Belga (o Parti Ouvrier Belge) no ano seguinte de
reconfirmar a carta de fundação do partido de 1894, com a sua exigência de
colectivização dos meios de produção e a recusa do Partido Trabalhista
Inglês, também em 1960, em seguir as recomendações do seu líder reformista
Hugh Gaitskell e eliminar idêntico compromisso consagrado na Cláusula IV
do Programa do Partido de 1918. Parte da explicação para este contraste no
comportamento assentava na experiência recente: a memória de lutas
destrutivas e a proximidade da ameaça do totalitarismo, quer no passado
recente, quer unicamente do outro lado da fronteira, ajudou a concentrar a
atenção dos sociais-democratas alemães e austríacos – tal como os comunistas
italianos – nas virtudes do compromisso.
O Partido Trabalhista Inglês não tinha pesadelos desses para exorcizar.
Também era, desde a sua origem, tal como os seus homólogos belga (e
holandês), um movimento trabalhista em vez de um partido socialista,
motivado acima de tudo pelos interesses (e o dinheiro) dos seus associados
sindicalizados. Era por isso menos ideológico – mas de vistas mais curtas. Se
lhes perguntassem, os porta-vozes do Partido Trabalhista concordariam
prontamente com os objectivos gerais dos sociais-democratas da Europa
continental; mas os seus próprios interesses eram muito mais práticos e
paroquiais. Precisamente por causa da estabilidade da cultura política
britânica (ou pelo menos inglesa) e graças à sua base da classe trabalhadora
há muito estabelecida – embora em retracção – o Partido Trabalhista mostrava
pouco interesse nos convénios inovadores que tinham moldado os Estados-
providência de língua escandinava ou alemã.
Em vez disso, o compromisso britânico caracterizava-se pela política fiscal
exigente e manipuladora e pelas dispendiosas prestações sociais universais,
suportadas por uma tributação severamente progressiva e um vasto sector
nacionalizado, num contexto de relações industriais instáveis e historicamente
adversas. Com excepção da ênfase trabalhista nas virtudes intrínsecas das
nacionalizações, estas disposições ad hoc eram amplamente suportados pela
corrente principal dos partidos conservador e liberal. Se havia algum sentido
em que a política britânica, fosse também moldada por choques passados, era
no reconhecimento generalizado de que um regresso ao desemprego em
massa tinha de ser evitado quase a qualquer custo.
Mesmo depois de o novo dirigente trabalhista Harold Wilson ter levado o
seu partido de novo ao poder em 1964, após treze anos de oposição, e falar
entusiasticamente da «revolução tecnológica» da era, muito pouco mudou. A
estreita margem de vitória de Wilson nas eleições de 1964 (uma maioria
parlamentar de quatro) não lhe permitia correr riscos políticos e, apesar de os
Trabalhistas terem estado melhor em eleições convocadas dois anos depois,
não haveria um afastamento radical da política económica ou social. O
próprio Wilson era herdeiro da tradição de Attlee-Beveridge, de teoria fabiana
e de prática keynesiana e revelava pouco interesse pelas inovações
económicas (ou políticas). Tal como a maior parte dos políticos britânicos de
todo o tipo, era profundamente convencional e pragmático, com uma visão
orgulhosamente míope dos assuntos públicos: como disse uma vez, «uma
semana em política é muito tempo».
Seja como for, havia uma singularidade no Estado social-democrata
inglês, para além da recusa tacanha de todos os partidos em questão de o
descreverem desta maneira. Ao que a Esquerda britânica (e na altura, grande
parte do Centro e do Centro-Direita do espectro político) se dedicava acima
de tudo era o objectivo da imparcialidade. Foi a injustiça manifesta, a
injustiça da vida antes da guerra que impulsionou tanto as reformas Beveridge
como a impressionante votação nos Trabalhistas em 1945. Prometeram que
conseguiam liberalizar a economia ao mesmo tempo que mantinham uma
distribuição justa das recompensas e serviços que tinham levado os
Conservadores ao poder em 1951 e ali os tinham mantido durante tanto
tempo. Os Ingleses aceitaram a tributação progressiva e receberam com
agrado os serviços de saúde universais, não por serem apresentados como
«socialistas», mas porque eram intuitivamente mais justos.
Do mesmo modo, os curiosos efeitos regressivos dos sistemas de
benefícios e serviços – que favoreciam desproporcionadamente a classe média
mais bem posicionada – eram geralmente aceites porque eram igualitários,
mesmo que só na aparência. E a inovação mais importante dos governos
trabalhistas dos anos 60 – a introdução do ensino secundário abrangente e a
abolição de exames de acesso às escolas secundárias selectivas, uma
promessa antiga dos Trabalhistas judiciosamente ignorada por Attlee depois
de 1945 – foi bem recebida, menos pelos seus méritos intrínsecos do que por
ser considerada «antielitista» e portanto «justa». É por isso que a reforma
educativa foi prosseguida até pelos governos conservadores depois da saída
de Wilson em 1970, apesar dos avisos vindos de todos os lados quanto às
consequências perversas que tais alterações poderiam trazer(7).
A dependência do Partido Trabalhista do apoio dos sindicatos levou-o a
adiar uma série de reformas industriais que muitos (incluindo alguns dos seus
próprios dirigentes) sabiam que já deviam ter sido feitas há muito. As relações
industriais britânicas mantiveram-se atoladas em confrontações fabris com os
operários e disputas salariais de um tipo praticamente desconhecido na
Escandinávia, Alemanha, Áustria ou Holanda. Os ministros trabalhistas
fizeram tentativas pouco veementes para sair desta herança perturbadora; mas
sem grande êxito, e em parte por esta razão, as realizações da social-
democracia continental nunca foram verdadeiramente conseguidas na Grã-
Bretanha.
Além disso, as características universais da segurança social britânica,
introduzidas duas ou três décadas antes das da França, ou da Itália, por
exemplo, ocultavam as muito limitadas realizações práticas do Estado
britânico, mesmo no campo da igualdade material: ainda em 1967, 10% da
população do Reino Unido ainda possuía 80% de toda a riqueza pessoal. O
resultado das políticas de redistribuição das três primeiras décadas depois da
guerra foi transferir rendimentos e património dos 10% do topo para os 40%
seguintes; os outros 50% ganharam muito pouco, apesar da melhoria geral em
segurança e assistência social.
Qualquer análise global da era do Estado-providência na Europa Ocidental
será inevitavelmente ensombrada pelo nosso conhecimento dos problemas
que iria enfrentar em décadas posteriores. Assim, hoje é fácil ver que
iniciativas como a Lei da Reforma da Segurança Social da Alemanha
Ocidental de 1957, que garantia aos trabalhadores uma pensão em função do
seu salário na altura da reforma e associada a um índice de custo de vida, se
iria revelar um peso orçamental intolerável em circunstâncias demográficas e
económicas alteradas. E em retrospectiva, é claro que o nivelamento radical
de salários na Suécia social-democrata reduziu as poupanças privadas
inibindo assim futuros investimentos. Mesmo nessa altura era óbvio que as
transferências governamentais e a taxa social única beneficiavam os que
sabiam como tirar deles total vantagem: nomeadamente a classe média
instruída que iria lutar para manter aquilo que equivalia a um novo conjunto
de privilégios.
Mas as realizações dos «Estados-ama» da Europa eram realmente as
mesmas, quer fossem introduzidas pelos sociais-democratas, católicos
paternalistas ou conservadores prudentes e liberais. Começando com
programas essenciais de protecção económica e social, os Estados-
providência avançaram para sistemas de direitos, benefícios, justiça social e
redistribuição de rendimentos – e conseguiram esta substancial transformação
quase sem custos políticos. Mesmo a criação de uma classe de burocratas da
assistência social com interesses próprios, e que beneficiavam do sector dos
serviços, não deixava de ter virtudes: tal como os agricultores, a muito
caluniada «classe média baixa» tinha agora um direito adquirido nas
instituições e valores do Estado democrático. Isto era bom tanto para os
sociais-democratas como para democratas-cristãos, conforme estes partidos
perceberam. Mas também era mau para os fascistas e comunistas, o que era
ainda mais importante.
Estas mudanças reflectiram as transformações demográficas já referidas,
mas também níveis sem precedentes de segurança pessoal e uma nova
intensidade na mobilidade educacional e social. Como era agora menos
provável que os europeus ocidentais se mantivessem no mesmo sítio, na
ocupação, na categoria salarial e na classe social em que tinham nascido,
também estavam menos dispostos a identificar-se automaticamente com os
movimentos políticos e afiliações sociais do «mundo» dos seus pais. A
geração dos anos 30 estava satisfeita por ter segurança económica e voltar as
costas à mobilização política e aos seus riscos consequentes; os seus filhos, a
muito maior geração dos anos 60, só tinham conhecido a paz, a estabilidade
política e o Estado-providência. Tomavam estas coisas como garantidas.
A influência crescente do Estado no emprego e assistência social dos seus
cidadãos foi acompanhada por uma redução gradual da sua autoridade sobre a
moral e opiniões. Na época isto não era visto como um paradoxo. Os
apoiantes liberais e sociais-democratas do Estado-providência europeu em
princípio não encontravam motivo para que o governo não desse particular
atenção ao conforto económico ou médico da população, garantindo o bem-
estar dos cidadãos desde o berço à cova, ao mesmo tempo que mantinha o
nariz fora das suas opiniões e práticas em assuntos estritamente pessoais
como a religião e o sexo ou as opiniões e o gosto artístico. Os democratas-
cristãos da Alemanha ou da Itália, para quem o Estado ainda tinha um
interesse legítimo nas maneiras e na moral dos seus súbditos, não
conseguiram fazer esta distinção tão prontamente. Mas também eles
enfrentaram uma crescente pressão para se adaptarem.
Até ao início dos anos 60, as autoridades públicas por toda a Europa
Ocidental (com a excepção parcial da Escandinávia) tinham exercido um
controlo firme e muitíssimo repressivo sobre os assuntos privados e as
opiniões dos cidadãos. As relações homossexuais eram ilegais em quase todo
o lado e puníveis com prisão prolongada. Em muitos países nem sequer
podiam ser representadas na arte. O aborto era ilegal na maior parte dos
países. Mesmo a contracepção era tecnicamente contra a lei em alguns
Estados católicos, embora fosse muitas vezes tolerada na prática. O divórcio
era difícil em todo o lado, em alguns sítios impossível. Em muitos países da
Europa Ocidental (sendo a Escandinávia uma vez mais em parte uma
excepção), as instituições governamentais ainda obrigavam à censura aos
teatros, cinema e literatura e a rádio e a televisão eram monopólios públicos
em quase todo o lado, operando, conforme vimos, sob regras estritas quanto
ao conteúdo e com muito pouca tolerância para com a discordância ou o
«desrespeito». Até mesmo no Reino Unido, onde a televisão comercial foi
introduzida em 1955, esta era também rigorosamente controlada e continha
uma obrigação publicamente mandatada para fornecer «esclarecimento e
informação», assim como entretenimento e publicidade.
A censura, tal como a tributação, foi impulsionada pela guerra. Na
Inglaterra e em França algumas das mais severas restrições ao comportamento
e expressão de opinião tinham sido introduzidas durante a Primeira ou
Segunda Guerra Mundial e nunca revogadas. Noutros sítios – em Itália, na
Alemanha Ocidental e em alguns dos países que tinham ocupado – os
regulamentos do pós-guerra eram um legado das leis fascistas que os
legisladores democratas tinham preferido manter. Relativamente poucos dos
mais repressivos poderes «morais» ainda em vigor em 1960 datavam de antes
do século XIX (sendo talvez o mais obviamente anacrónico o cargo do
Camareiro-Mor em Inglaterra, responsável pela pré-censura ao teatro, onde os
cargos de Examinador e Examinador Delegado das Peças foram criados logo
em 1738). A extraordinária excepção a esta regra, claro, era a Igreja Católica.
Desde o Primeiro Concílio do Vaticano em 1870, realizado sob a
influência e auspícios do reconhecidamente reaccionário Papa Pio IX, a Igreja
Católica tinha adoptado uma opinião abrangente e dogmática sobre as suas
responsabilidades como guardião moral do seu rebanho. Precisamente por
estar a ser firmemente pressionado pelo Estado moderno para sair do reino do
poder político, o Vaticano fez exigências intransigentes aos seus seguidores,
de outras maneiras. De facto, o longo – e, em retrospectiva –, controverso
papado de Eugenio Pacelli, Papa Pio XII (1939-1958) não só manteve as suas
reivindicações espirituais, como trouxe de novo a Igreja oficial à política.
Declaradamente do lado da reacção política, dos estreitos laços do
Vaticano com Mussolini e resposta ambivalente ao nazismo, ao seu
entusiasmo pelos ditadores católicos em Espanha e Portugal, o papado de
Pacelli também assumiu uma linha intransigente nas políticas internas das
democracias. Especialmente os católicos na Itália não tiveram dúvidas quanto
à falta de decoro espiritual e, pior ainda, quanto a votarem contra os
Democratas-Cristãos; mas até na Bélgica relativamente liberal ou na Holanda
a hierarquia católica local tinha instruções estritas para dedicar o voto católico
aos partidos católicos e só a eles. Só em 1967, nove anos após a morte de Pio
XII, um bispo holandês se atreveu a sugerir em público que os católicos
holandeses poderiam votar num partido não católico sem arriscarem a
excomunhão.
Em tais circunstâncias, não é muito surpreendente que a hierarquia
católica do pós-guerra tenha também seguido uma linha intransigente em
questões relacionadas com a família ou com o comportamento moral, ou com
filmes e livros impróprios. Mas os jovens católicos laicos e uma nova geração
de sacerdotes estavam desconfortavelmente conscientes de que nos finais dos
anos 50 a rigidez autoritária do Vaticano, tanto sobre os assuntos públicos
como privados, era simultaneamente anacrónica e imprudente. Em 1900, a
maior parte dos casamentos na Itália durara cerca de vinte anos antes de ser
dissolvida por morte do cônjuge. Em finais do terceiro quarto do século os
casamentos duravam mais de trinta e cinco anos e a exigência pelo direito ao
divórcio estava constantemente a aumentar.
Entretanto, o baby-boom do pós-guerra tinha prejudicado o argumento
demográfico contra a contracepção, isolando as autoridades eclesiásticas na
sua oposição intransigente. Por toda a Europa Ocidental as pessoas iam
menos à missa. Fossem quais fossem os motivos – a mobilidade geográfica e
social de aldeias até então aquiescentes, a emancipação política das mulheres,
a cada vez menos importância das obras assistenciais católicas e das escolas
paroquiais na era do Estado-providência – o problema era real e, conforme
parecia aos chefes católicos mais perceptivos, não podia ser abordado com
apelos à tradição e à autoridade ou suprimido com a invocação do
anticomunismo como nos finais dos anos 40.
Depois da morte de Pacelli, o seu sucessor, o Papa João XXIII, convocou
um novo Concílio do Vaticano para tratar destas dificuldades e actualizar as
atitudes e práticas da Igreja. O Vaticano II, conforme ficou conhecido, reuniu-
se em 11 de Outubro de 1962. No decorrer do seu trabalho durante os anos
seguintes transformou não só a liturgia e a linguagem da Cristandade católica
(bastante literalmente – o latim já não seria usado na prática diária da Igreja,
para fúria inflexível de uma minoria tradicional) mas também, e mais
significativamente, a resposta da Igreja aos dilemas da vida moderna. As
declarações formais do Concílio Vaticano II tornaram claro que a Igreja já não
tinha medo da mudança nem dos desafios, não se opunha à democracia
liberal, às economias mistas, à ciência moderna, ao pensamento racional e até
à política secular. Os primeiros passos – muito hesitantes – foram dados no
sentido da reconciliação com outras confissões cristãs e houve algum (não
muito) reconhecimento da responsabilidade da Igreja em desencorajar o anti-
semitismo, reformulando a sua muito antiga explicação quanto à
responsabilidade dos judeus na morte de Jesus. Acima de tudo, já não se
podia contar com a Igreja Católica para apoiar os regimes autoritários – bem
pelo contrário: na Ásia, África e especialmente na América Latina, era muito
provável que estivesse do lado dos seus opositores.
Estas alterações não foram universalmente bem recebidas, mesmo entre os
próprios reformadores da Igreja Católica – um delegado ao Vaticano II, um
jovem padre de Cracóvia, iria mais tarde ascender ao papado e considerar
tarefa sua restabelecer todo o peso da autoridade moral e influência de uma
intransigente hierarquia católica. Nem o Vaticano II conseguiu uma inversão
da regular queda da prática católica entre os católicos europeus: até mesmo
em Itália, a assistência à missa caiu de 69% em 1956 para 48% doze anos
depois. Mas dado que o declínio da religião da Europa não se confinou de
maneira nenhuma à fé católica, isto estava provavelmente para lá do que
podia fazer. O que o Vaticano II de facto conseguiu – ou pelo menos facilitou
e autorizou – foi o divórcio final entre a política e a religião na Europa
continental.
Depois da morte de Pio XII, nunca mais nenhum papa e quase nenhum
bispo ousou ameaçar os católicos com sérias consequências se não votassem
de maneira correcta, e a outrora estreita ligação entre a hierarquia da Igreja e
os partidos democratas-cristãos ou católicos na Holanda, Bélgica, Alemanha
Ocidental, Áustria e Itália foi abandonada.(8) Mesmo na Espanha de Franco,
onde a hierarquia católica local tinha usufruído de privilégios e poderes
invulgares, o Vaticano II forçou alterações dramáticas. Até meados dos anos
60, o governante espanhol proibira todas as manifestações ou práticas
externas de crenças religiosas não católicas. Mas em 1966 sentiu-se obrigado
a promulgar uma lei permitindo que outras igrejas cristãs subsistissem,
embora privilegiando ainda o catolicismo, e no espaço de quatro anos a total
liberdade de culto (cristão) foi autorizada. Exercendo com êxito pressão para
esta tardia «desinstitucionalização» da Igreja Católica em Espanha e
colocando assim clareza entre a Igreja e o regime durante a vida de Franco, o
Vaticano iria poupar à Igreja espanhola pelo menos algumas das
consequências da sua longa e perturbadora associação com o ancien régime.
Esta rupture culturelle, conforme se tornou conhecida na Bélgica e em
outros países, entre a religião e a política e entre a Igreja Católica e o seu
passado recente, representou um papel crucial na construção dos «anos 60».
Havia, evidentemente, limites ao espírito reformador do Vaticano – para
muitos dos seus participantes o impulso estratégico por detrás do Vaticano II
não era adoptar uma mudança radical, mas travá-la. Quando o direito ao
aborto e a liberalização do divórcio foram votados alguns anos depois, em
países predominantemente católicos como a Itália, França ou Alemanha
Ocidental, as autoridades eclesiásticas opuseram-se vigorosamente, mesmo
que sem êxito. Mas mesmo nesses temas sensíveis a Igreja não se
desmoronou e a sua oposição já não envolvia o risco de fragmentar a
comunidade. Numa sociedade a caminho de se tornar «pós-religiosa», a Igreja
aceitou o seu lugar reduzido e fez dele o melhor que pôde(9).
Em sociedades não católicas – o que significava a Escandinávia, o Reino
Unido, partes da Holanda e uma minoria da Europa Ocidental de língua alemã
– a libertação do cidadão da autoridade moral tradicional foi necessariamente
mais difusa, mas ainda mais dramática quando chegou. A transição foi
muitíssimo notória na Inglaterra. Até finais dos anos 50, ainda era proibido os
cidadãos britânicos jogarem, lerem ou verem qualquer coisa que os seus
superiores considerassem «obsceno» ou politicamente sensível, defender
(muito menos praticar) actos homossexuais, praticar aborto em si ou em
outros ou divorciar-se sem grande dificuldade e humilhação pública. E se
assassinassem ou praticassem outros crimes importantes, podiam ser
enforcados.
Depois, no princípio de 1959, a meada das convenções começou a
desenredar-se. Na sequência da Lei sobre Publicações Obscenas, desse ano,
uma obra não censurada de literatura adulta poderia ser protegida das
acusações de «obscenidade» se fosse considerada «no interesse da ciência,
literatura, arte ou cultura». Daí em diante, editores e autores podiam defender-
se em tribunal alegando o valor da obra como um todo e podiam invocar em
sua defesa a opinião de «peritos». Em Outubro de 1960 surgiu o famoso caso-
teste de O Amante de Lady Chatterley, em que a Penguin Books foi
processada por publicar em Inglaterra a primeira edição integral do romance,
aliás pouco notável, de D. H. Lawrence. O caso Chatterley foi de especial
interesse para os Britânicos não só devido aos seus excertos, até então ilícitos,
a que estavam agora expostos, mas também graças ao erotismo interclasse em
que a sua notoriedade se baseava. Ao ser questionada pela acusação se aquele
era um romance que deixaria «a esposa ou criada» (sic) lerem, uma
testemunha respondeu que isso em nada o preocuparia: mas que nunca o
deixaria nas mãos do seu couteiro.
A Penguin Books foi absolvida da acusação de obscenidade, tendo
convocado em sua defesa 33 testemunhas especialistas e o declínio da
autoridade moral da classe dirigente britânica pode ser datado a partir dessa
absolvição. No mesmo ano o jogo foi legalizado no Reino Unido. Quatro anos
depois a pena de morte foi abolida pelo recém-eleito governo trabalhista e sob
a direcção de Roy Jenkins, um notável e reformador ministro do Interior, os
Trabalhistas supervisionaram a introdução de clínicas de planeamento
familiar financiadas pelo Estado, a reforma da lei da homossexualidade e a
legalização do aborto em 1967. Em 1969 seguiu-se a Lei do Divórcio, que
provocou não tanto uma enorme transformação na instituição do casamento
como divulgou a sua dimensão: enquanto no último ano antes da Segunda
Guerra Mundial tinha havido um único divórcio em cada 58 casamentos na
Inglaterra e em Gales, 48 anos depois a proporção aproximava-se de um em
três.
As reformas liberais e liberalizantes na Inglaterra dos anos 60 foram
copiadas pelo Nordeste da Europa, embora com variados atrasos. Os governos
de coligação dirigidos pelo sociais-democratas da Alemanha Ocidental, sob
Willy Brandt, introduziram alterações semelhantes no decorrer dos anos 60 e
70, compelidas neste caso menos por lei ou precedentes do que pela relutância
dos seus parceiros de coligação – nomeadamente os economicamente liberais
mas socialmente conservadores democratas livres. Em França, a abolição da
pena de morte teve de esperar pela chegada ao poder dos socialistas de
François Mitterrand, em 1981, mas ali – como na Itália – as leis do aborto e
divórcio foram reescritas no início dos anos 70. Em geral, com excepção da
Inglaterra e da Escandinávia, os anos 60 «livres» não chegaram realmente à
Europa antes dos anos 70. Uma vez consagradas as alterações legais, porém,
as consequências sociais fluíram com suficiente rapidez: a taxa de divórcios
na Bélgica, França e Holanda triplicou entre 1970 e 1985.
A redução da importância da posição das autoridades públicas em questões
de moralidade e relações pessoais não implicou de forma alguma um declínio
no papel do Estado nos assuntos culturais da nação. Antes pelo contrário. O
vasto consenso europeu ocidental da época afirmava que só o Estado possuía
os recursos para servir as necessidades culturais dos seus cidadãos: deixados
entregues a si próprios, aos indivíduos e às comunidades faltariam tanto os
meios como a iniciativa. Era responsabilidade de uma autoridade pública bem
dirigida fornecer bens culturais, não menos do que alimentação, habitação e
emprego. Nestes assuntos, os sociais-democratas e os democratas-cristãos
pensavam da mesma maneira e ambos eram herdeiros dos grandes inovadores
da era vitoriana, embora com recursos muito maiores à disposição. A revolta
estética dos anos 60 mudou pouco a este respeito: a nova («contra») cultura
exigia e obteve os mesmos fundos que a antiga.
Os anos 50 e 60 foram a grande época do subsídio cultural. Em 1947 o
governo trabalhista inglês acrescentou seis pence aos impostos municipais
para pagar as iniciativas artísticas locais – teatros, sociedades filarmónicas,
ópera regional e semelhantes: um prelúdio dos Conselhos Artísticos dos anos
60 que espalharam dádivas públicas por uma gama de festivais e instituições
locais e nacionais sem precedentes, assim como pela educação artística. A IV
República francesa, limitada financeiramente, foi menos disponível, com
excepção dos foros tradicionais de prestígio da alta cultura – museus, a Ópera
de Paris, a Comédie Française – e para as estações de rádio e televisão
monopolizadas pelo Estado. Mas depois do regresso de De Gaulle ao poder e
de ter colocado André Malraux como seu ministro da Cultura, a situação
transformou-se.
O Estado francês tinha durante muito tempo representado o papel de
mécène. Mas Malraux entendeu o seu papel de uma maneira totalmente nova.
Tradicionalmente, o poder e as finanças da Corte e dos seus sucessores
republicanos tinham sido usados para trazer artistas e arte a Paris (ou
Versalhes), esgotando o resto do país. Agora o governo iria gastar dinheiro
para colocar actores e actuações nas províncias. Museus, galerias, festivais e
teatros começaram a brotar por toda a França. O mais conhecido de entre eles,
o festival de Verão de Avinhão sob a direcção de Jean Vilar, começou em
1947; mas desenvolveu-se no decorrer dos anos 50 e 60 quando as produções
de Vilar representaram um importante papel na transformação e renovação do
Teatro Francês. Muitos dos actores franceses mais conhecidos – Jeanne
Moreau, Maria Casarès, Gérard Philipe – trabalharam em Avinhão. Foi ali,
assim como em lugares tão improváveis como Saint-Étienne, Toulouse,
Rennes ou Colmar que teve início o renascimento artístico francês.
O estímulo de Malraux à vida cultural na província dependia,
evidentemente, da iniciativa centralizada. Até mesmo o próprio projecto de
Vilar era tipicamente parisiense nos seus objectivos iconoclastas: a questão
não era levar a cultura às regiões, mas quebrar as convenções do teatro
principal – «devolver vida ao teatro, à arte colectiva… ajudá-lo a voltar a
respirar livremente, liberto de caves e de salões: reconciliar a arquitectura
com a poesia teatral» – qualquer coisa que podia ser mais facilmente
conseguida longe de Paris, mas com fundos do governo central e apoio
ministerial. Num país genuinamente descentralizado como a República
Federal Alemã, por outro lado, a cultura e as artes eram um produto directo da
política local e interesse próprio regional.
Na Alemanha, como nos outros países na Europa Ocidental, a despesa
pública com as artes aumentou de forma impressionante durante as décadas
do pós-guerra. Mas porque os assuntos culturais e educativos na Alemanha
Ocidental caíram sob a alçada dos Länder, havia uma considerável duplicação
de esforços. Cada Land e as cidades mais significativas possuíam uma
companhia de ópera, uma orquestra e salas de concerto, uma companhia de
dança, teatro subsidiado e grupos artísticos. Segundo uma estimativa, havia
225 teatros locais na Alemanha Ocidental na altura da reunificação, o seu
orçamento subsidiado numa quantia que variava entre os 50-70%, quer pelo
Land, quer pela cidade. Tal como em França, este sistema tinha as suas raízes
no passado – no caso da Alemanha, os pré-modernos micro-principados,
ducados e feudos eclesiásticos, muitos dos quais tinham mantido músicos e
artistas de corte a tempo inteiro e encomendavam regularmente novas obras.
Os benefícios eram consideráveis. Apesar das dúvidas culturais próprias
da Alemanha Ocidental pós-nazi, as instituições culturais do país
generosamente subsidiadas tornaram-se uma Meca para os artistas de todos os
géneros. O Ballet de Estugarda, a Orquestra Sinfónica de Berlim, a Ópera de
Colónia e dezenas de instituições mais pequenas – o Teatro Nacional de
Mannheim, o Teatro Estatal de Wiesbaden, etc. – proporcionavam um
trabalho estável (assim como benefícios no desemprego, assistência médica e
pensões) a milhares de bailarinos, músicos, actores, coreógrafos, técnicos de
teatro e pessoal administrativo. Muitos dos bailarinos e músicos vinham do
estrangeiro, incluindo dos Estados Unidos. Estes, não menos do que os
públicos locais que pagavam preços subsidiados para os verem actuar,
beneficiavam em muito da florescente cena cultural europeia.
Assim como os anos 60 nunca aconteceram realmente em muitos sítios até
ao início dos anos 70, também os estereotipados anos 50 – sérios, rabugentos,
estéreis, estagnados – eram em grande parte míticos. Em Look Back in Anger,
John Osborne faz Jimmy Porter insultar a falsidade e a fatuidade da
prosperidade pós-guerra; e não há dúvidas de que a aparência de conformismo
polido que não tinha desaparecido até ao fim da década era intensamente
frustrante para muitos observadores e especialmente para os jovens(10). Mas
na realidade, os anos 50 assistiram a muito trabalho original – grande parte
dele no teatro, literatura e cinema especialmente, de interesse mais duradouro
do que aquilo que se iria seguir. O que a Europa Ocidental perdera em poder e
prestígio político, estava agora a compensar nas artes. Na verdade, os finais
dos anos 50 foram uma época dourada para as artes «nobres» na Europa. As
circunstâncias eram invulgarmente propícias: a «qualidade europeia» (as
citações alarmantes ainda não tinham adquirido a irónica desaprovação de
décadas posteriores) estava a ser financiada pela primeira vez em larga escala
por capitais públicos, mas não estava ainda exposta às exigências populistas
de «acessibilidade», «responsabilidade» ou «relevância».
Com a estreia no Théâtre de Babylone em Paris, de En Attendant Godot,
de Samuel Beckett, em Março de 1953, o teatro europeu entrou numa era de
ouro do modernismo. Do outro lado do Canal, a Companhia Teatral Inglesa
no Royal Court Theatre adoptou Beckett e Berthold Brecht, da Alemanha de
Leste, assim como obras teatrais de John Osborne, Harold Pinter e Arnold
Wesker, cujas peças casavam o minimalismo estilístico com o desdém
estético, numa técnica que era muitas vezes difícil de situar no espectro
político convencional. Até mesmo o teatro britânico mainstream se tornou
mais aventureiro. Em finais dos anos 50, a uma geração sem paralelo de
actores ingleses nomeados cavaleiros pela Rainha – Olivier, Gielgud,
Richardson, Redgrave, Guinness – vieram juntar-se actores mais jovens
acabados de sair das universidades (na maior parte de Cambridge) e um
notável conjunto de encenadores e produtores, incluindo Peter Brook, Peter
Hall e Jonathan Miller.
Proposto pela primeira vez em 1946, o Teatro Nacional Britânico foi
formalmente fundado em 1962 com Lawrence Olivier como seu director
fundador e o crítico de teatro Kenneth Tynan como conselheiro e assistente,
embora a sua sede permanente na Margem Sul de Londres só tenha aberto em
1976. Juntamente com a Royal Shakespeare Company, o National Theatre –
que se iria tornar o principal patrocinador e mais importante fórum da nova
dramaturgia britânica – era o principal beneficiário da generosidade do
Conselho das Artes. Isso não significava, note-se, que o teatro se tenha
tornado uma forma mais popular de entretenimento. Pelo contrário: desde o
declínio dos musicais que o teatro tinha sido âmbito do mediano – mesmo
quando o assunto era aparentemente proletário. Os dramaturgos poderiam
escrever sobre a vida da classe trabalhadora, mas era a classe média que ia
ver.
Assim como Beckett e a sua obra migraram prontamente para a Inglaterra,
também o teatro britânico e as suas figuras principais trabalhavam muito
confortavelmente no estrangeiro; depois de ter feito a sua reputação em
Londres, com Shakespeare (a mais famosa, O Sonho de uma Noite de Verão),
Peter Brook instalou-se permanentemente em Paris, transpondo fronteiras
artísticas e linguísticas com facilidade. No início dos anos 60 estava a tornar-
se possível falar num «teatro europeu» ou pelo menos um teatro que tomava
como material seu temas europeus controversos e contemporâneos. The
Deputy de Rolf Hochhuth, representado pela primeira vez na Alemanha em
1963 e pouco tempo depois em Inglaterra, atacava o papa Pio XII por não ter
ajudado os judeus no tempo da guerra; mas no seu trabalho seguinte, Soldiers
(1967), Hochhuth atacou Winston Churchill pelo bombardeamento das
cidades alemãs e a peça começou por ser proibida no Reino Unido.
Foi também nos anos 50 que as artes europeias foram varridas por uma
«nova vaga» de escritores e realizadores cujo corte com as convenções
narrativas e a atenção dada ao sexo, juventude, política e alienação
anteciparam muito do que a geração dos anos 60 viria a pensar ter sido
realização sua. Os mais influentes romances da Europa Ocidental dos anos 50
– O Conformista, de Alberto Moravia (1951), La Chute (A Queda) de Albert
Camus publicado em 1956 ou o Die Blechtrommel (O Tambor, 1959) de
Günter Grass – eram todos, sob vários aspectos, mais originais e certamente
mais corajosos do que qualquer coisa que tenha vindo depois. Até o Bonjour
Tristesse (1953) de Françoise Sagan ou o The Outsider (1956) de Colin
Wilson, relatos narcisistas de egotismo adolescente (colorido no caso de
Wilson com mais do que uma sugestão de misantropia autoritária), eram na
sua época originais. Escritos quando os seus autores tinham respectivamente
18 e 24 anos, o seu tema – e o seu êxito – anteciparam a «revolução juvenil»
dos anos 60 em uma década.
Apesar do declínio da assistência ao cinema já citado, foi no decorrer da
segunda metade dos anos 50 e início dos anos 60 que os filmes europeus
adquiriram uma reputação duradoura de trabalho artístico e de originalidade.
De facto, havia provavelmente uma relação, dado que o cinema na Europa
Ocidental subiu (ou declinou) de entretenimento popular para alta cultura.
Certamente que o renascimento do cinema europeu não foi impulsionado pela
exigência das audiências – se tivesse sido entregue aos espectadores, o
cinema francês ter-se-ia mantido confinado à dramaturgia de dramas
históricos de «qualidade» do início dos anos 50, os cinemas alemães teriam
continuado a mostrar filmes românticos de Heimat passados na Floresta
Negra e as audiências britânicas teriam vicejado num regime de filmes de
guerra e comédia ligeira cada vez mais sugestiva. De qualquer maneira, as
audiências de massa europeias continuavam a revelar uma acentuada
preferência pelos filmes populares americanos.
Ironicamente, foi a sua própria admiração pelos filmes americanos,
especialmente o estilo film noir, sombrio, sem adornos, de finais dos anos 40,
que estimulou uma revolução entre uma nova classe de cinéastes franceses.
Menosprezando os lugares-comuns temáticos e cenários rococó dos seus
antepassados, um grupo de jovens franceses – intitulados «A Nova Vaga» em
1958 pelo crítico francês Pierre Billard – dispuseram-se em França a
reinventar a maneira de fazer filmes: primeiro em teoria, depois na prática. O
aspecto teórico, esboçado na nova publicação Cahiers du Cinéma, centrado à
volta da noção de realizador como auteur: o que estes críticos admiravam em
Alfred Hitchcock ou em Howard Hawks, por exemplo, ou na obra dos neo-
realistas italianos, era a sua «autonomia» – a maneira como tinham
conseguido «assinar» os seus próprios filmes mesmo quando trabalhavam nos
estúdios. Pela mesma razão defendiam – depois ignoraram – os filmes de uma
geração anterior de realizadores franceses, nomeadamente Jean Vigo e Jean
Renoir.
Enquanto tudo isto sugeria um bom gosto intuitivo, a penumbra teórica em
que era envolto tinha pouco interesse – e de facto era muitas vezes
incompreensível – para além de um círculo restrito. Mas a prática, nas mãos
de Louis Malle, Jean-Luc Godard. Claude Chabrol, Jacques Rivette, Eric
Rohmer, Agnès Varda e acima de tudo François Truffaut, mudou o rosto do
cinema. Entre 1958 e 1965, os estúdios franceses revelaram um espantoso
corpo de obras. Realizados por Malle foram Ascenseur pour l’échafaud e Les
Amants, ambos de 1958; Zazie dans le métro (1960); La Vie privée (1961) e
Le Feu follet (1963). Godard realizou À bout de souffle (1960), Une femme est
une femme (1961), Vivre sa vie (1962), Bande à part (1964) e Alphaville
(1965). As obras de Chabrol dos mesmos anos incluem Le Beau Serge (1958),
À double tour (1959), Les bonnes femmes (1960) e L’Oeil du malin (1962).
A obra mais interessante de Rivette chegou um pouco mais tarde. Tal
como Varda, mais conhecido nesses anos pelo Cléo de 5 à 7 (1961) e Le
Bonheur (1965), caía muitas vezes na gratificação de si mesmo; mas isto
nunca foi verdade para Eric Rohmer, o mais velho do grupo, vindo mais tarde
a ser internacionalmente famoso pelos melancólicos «contos morais», de que
os dois primeiros La Boulangère de Monceau e La Carrière de Suzanne,
foram feitos em 1963. Mas foi o incomparável François Truffaut que viria a
encarnar o estilo e o impacto da Nova Vaga. Famoso acima de tudo por uma
série de filmes protagonizados por Jean-Pierre Léaud como Antoine Doinel (o
herói autobiográfico de Truffaut) – nomeadamente Les Quatre cents coups
(1959) L’Amour à vingt ans (1962) e Baisers volés (1968) – Truffaut não era
só o principal teórico por detrás da revolução no cinema francês, era também
de longe o seu mais consistentemente bem sucedido praticante. Muitos dos
seus filmes – Jules et Jim (1962), La Peau douce (1964), Fahrenheit 451
(1966) ou Le dernier Métro (1980) – são clássicos da arte.
Era um dos trunfos dos melhores realizadores Nova Vaga que, embora
encarassem as suas obras como declarações intelectuais mais do que como
entretenimento (colaboradores dos Cahiérs du Cinema invocavam
frequentemente as suas dívidas para com aquilo que era ainda referido como
«existencialismo»), os seus filmes mesmo assim agradavam (nunca ninguém
disse de Truffaut ou Malle – como era murmurado sobre os últimos trabalhos
de Godard e Rivette – que ver os seus filmes era como ver tinta a secar). E era
esta combinação de seriedade intelectual e acessibilidade visual que era tão
importante para os imitadores estrangeiros. Conforme sugere a recepção a
Hiroshima mon amour (1959) de Alain Resnais, o filme francês tinha-se
tornado o veículo preferido para o debate moral internacional.
Assim, quando um grupo de 26 jovens realizadores alemães se reuniu em
Oberhausen em 1962 para proclamar o «colapso do filme convencional
alemão» e declarar a sua intenção de «criar o novo filme alemão […] livre das
convenções da indústria estabelecida, do controlo de grupos de interesse
especiais», reconheceu abertamente a influência dos franceses. Assim como
Jean-Luc Godard tinha elogiado Ingmar Bergman num famoso ensaio de
1957 nos Cahiers du Cinema intitulado «Bergmanorama», no qual afirmava
que o auteur sueco era «o mais original realizador do cinema europeu», por
isso Edgar Reitz e os seus colegas na Alemanha, tal como os jovens
realizadores da Europa Ocidental e da América Latina foram buscar as suas
deixas a Godard e aos seus amigos»(11).
O que Truffaut, Godard e os colegas tinham admirado nos filmes
americanos a preto e branco da sua juventude era a falta de «artifício». O que
os americanos e outros observadores invejavam no próprio ritmo discursivo
dos realizadores franceses sobre o realismo americano era a sua subtileza e
sofisticação intelectual: a inigualável capacidade francesa para investir
pequenas transformações humanas de espantoso significado cultural. Em Ma
Nuit Chez Maud (1966) Jean-Louis – um matemático de província
protagonizado por Jean-Louis Trintignant – passa uma noite de nevão no sofá
em casa de Maud (Françoise Fabian), a sedutora e inteligente namorada de
um conhecido. Católico, Jean-Louis agoniza com as implicações éticas da
situação e se deveria ou não deveria ter dormido com a anfitriã, fazendo
pausas ocasionais para trocar reflexões morais com um colega comunista.
Não acontece nada e ele volta para casa.
É difícil imaginar um realizador de filmes americano ou mesmo inglês a
fazer um filme assim, muito menos conseguir distribuí-lo. Mas para uma nova
geração de intelectuais euro-americanos, o filme de Rohmer captava tudo o
que era sofisticado, desencantado, humorístico, alusivo, maduro e europeu no
cinema francês. Os filmes italianos contemporâneos, embora amplamente
distribuídos no estrangeiro, não tiveram o mesmo impacto. Os produtos de
maior sucesso representavam com excessivo constrangimento a nova imagem
da Itália e dos Italianos como sendo ricos e sexy – muitas vezes construídos à
volta dos atributos físicos de Sophia Loren ou dos papéis cómicos entregues a
Marcello Mastroianni como um cínico libertino, por exemplo, em Divorzio
all’italiana (1961) ou Matrimonio all’italiana (1964).
Mastroianni já tinha representado este papel, mas num registo mais
sombrio, em Dolce Vita (1960) de Federico Fellini. O próprio Fellini tinha
leais seguidores em muitos dos mesmos círculos que Truffaut e Godard,
nomeadamente depois do aparecimento de 8 1/2 (1963) e de Giulietta degli
spiriti (1965). Uma geração mais velha de talentosos realizadores italianos
não tinha saído de cena – Vittorio De Sica realizou I Sequestrati di Altona
(1962), a partir da peça de Sartre, foi corealizador de Boccaccio ’70 (1962)
com Fellini e iria realizar Il Giardino dei Finzi-Contini em finais da década –
mas a sua obra nunca recuperou o impacto político e estético dos grandes
filmes neo-realistas dos anos 40 aos quais De Sica ficou sobretudo para
sempre ligado. Mais influentes foram homens como Michelangelo Antonioni.
Em L’Avventura (1960), L’Éclisse (1962) e Il Deserto rosso (1964), todos
protagonizados por Monica Vitti: a cinematografia livre e os personagens
desagradáveis, cínicos, desencantados, anteciparam o mundo descontente da
arte de finais dos anos 60, conscientemente captados pelo próprio Antonioni
em Blow Up (1966).
Ao cinema italiano faltava a sedutora intelectualidade dos filmes franceses
(ou suecos), mas o que partilhavam abundantemente era o estilo. Era este
estilo europeu – um equilíbrio variável de autoconfiança artística, pretensão
intelectual e cultura sofisticada – que para os observadores estrangeiros
(especialmente americanos) distinguia a cena europeia continental. Em finais
dos anos 50, a Europa Ocidental não tinha apenas recuperado da depressão e
da guerra; era uma vez mais um íman para os que aspiravam à sofisticação.
Nova Iorque tinha o dinheiro e talvez também a arte moderna. Mas a América
estava ainda, conforme parecia até a muitos Americanos, um pouco verde.
Parte da atracção de John F. Kennedy, como candidato e como Presidente, era
o culto cosmopolitismo do seu ambiente em Washington: «Camelot». E
Camelot por sua vez devia muito ao passado europeu e continental da
apresentação da mulher do Presidente.
O facto de Jacqueline Kennedy ter levado o estilo europeu para a Casa
Branca, dificilmente surpreende. O design europeu em finais dos anos 50 e
nos anos 60 ostentava como nunca a imprimatur de estatuto e qualidade. Uma
etiqueta europeia – presa a um artigo, uma ideia ou uma pessoa – garantia
distinção e portanto um preço elevado. Esta evolução era na realidade
bastante recente. Certamente os articles de Paris há muito que possuíam um
lugar no comércio dos artigos de luxo, datando pelo menos de finais do século
XVIII; e os relógios suíços havia muitas décadas que eram bem vistos. Mas a
ideia de que os carros fabricados na Alemanha seriam ipso facto mais bem
fabricados do que outros, ou que o vestuário de design italiano, os chocolates
belgas, os trens de cozinha franceses ou o mobiliário dinamarquês eram
inquestionavelmente os melhores que se podiam obter: isto teria de facto
parecido curioso apenas uma geração antes.
Quando muito, tinha sido a manufactura inglesa a conquistar esta
reputação até há muito pouco tempo, um legado da supremacia industrial
britânica do século XIX. Os artigos domésticos feitos na Inglaterra, veículos,
ferramentas ou armas tinham sido durante muito tempo altamente valorizados
no mercado externo. Mas no decorrer dos anos 30 e 40 os produtores ingleses
tinham arruinado com êxito a sua própria posição em quase todos os artigos,
com excepção do vestuário masculino, que o único nicho deixado aos
retalhistas britânicos nos anos 60 eram as modas extravagantes de baixa
qualidade – um mercado que iriam explorar implacavelmente na década
seguinte.
O que era notável no estilo comercial europeu era a sua segmentação por
produtos assim como por países. Os carros italianos – FIAT, Alfa Romeo,
Lancia – eram manifestamente de segunda qualidade e de pouca confiança; no
entanto, a sua reputação constrangedora não causou prejuízos perceptíveis à
elevada posição da Itália em outros mercados, tais como os artigos de pele,
haute couture e até mesmo, num sector menos glorificado, os
electrodomésticos(12). A procura internacional do vestuário alemão ou
produtos alimentares era quase inexistente e com razão. Mas em 1965, tudo o
que fosse torneado num torno alemão ou concebido por engenheiros que
falassem alemão poderia sair de um salão de exposições britânico ou
americano ao preço que pedissem. Só a Escandinávia obtivera uma reputação
generalizada de qualidade numa gama eclética de produtos, mas mesmo ali o
mercado possuía variações distintivas. Estrangeiros endinheirados enchiam as
suas casas com mobília sueca ou dinamarquesa de bom estilo, mesmo sendo
algo frágil, porque era tão «moderna». Mas o mesmo consumidor seria atraído
pelos Volvo suecos, apesar da sua vincada falta de estilo, precisamente por
parecerem indestrutíveis. No entanto, ambas as características – «estilo» e
«valor» – estavam agora de forma inextricável identificadas com a «Europa».
Muitas vezes por contraste com a América.
Paris manteve-se a capital da alta-costura nas roupas femininas. Mas a
Itália, com custos de mão-de-obra mais baixos e sem o constrangimento do
racionamento têxtil (ao contrário da França ou da Inglaterra), era uma séria
concorrente já em 1952, quando o primeiro Festival Internacional de Moda
Masculina foi apresentado em San Remo. Por muito inovador que fosse o seu
estilo, a haute couture francesa – de Christian Dior a Yves Saint Laurent – era
socialmente bastante convencional: em 1960, os editores de revistas e os
colunistas em França e em outros sítios não só ainda usavam chapéu e luvas
quando assistiam aos desfiles de moda anuais, como também os usavam nos
seus escritórios. Enquanto as mulheres da classe média foram buscar a sua
inspiração para o vestuário a uma mão-cheia de designers e casas de moda
franceses, o estatuto (e os lucros) destes últimos mantiveram-se seguros. Mas
no início dos anos 60 as mulheres europeias – assim como os homens –
deixaram de usar habitualmente chapéus formais ou vestuário para a noite. O
mercado de massas para o vestuário estava a ir buscar a sua inspiração tanto
acima como abaixo. A fama da Europa como capital do estilo e do chique
estava garantida, mas o futuro assentava em modas mais ecléticas, muitas
delas adaptações de protótipos americanos e até asiáticos, coisa em que os
Italianos se revelaram especialmente bons. No vestuário como nas ideias,
Paris dominava a cena europeia e fá-lo-ia ainda durante um certo tempo. Mas
o futuro estava noutro lado.
Na reunião em Março de 1955, em Milão, do Congresso para a Liberdade
Cultural, Raymond Aron propôs como tópico de discussão «o fim da era
ideológica». Na altura alguns dos seus ouvintes acharam a sugestão um
nadinha prematura – afinal, do outro lado da Cortina de Ferro, e não só ali, a
ideologia parecia estar bem viva. Mas Aron tinha razão. O Estado europeu
ocidental, conforme surgia nesses anos, estava cada vez mais afastado de
qualquer projecto doutrinário e, como vimos, a ascensão do Estado-
providência tinha neutralizado as velhas hostilidades. Mais gente do que
alguma vez antes tinha um interesse directo nas políticas e despesas do
Estado, mas já não se confrontavam sobre quem as devia controlar. Os
europeus ocidentais pareciam ter chegado bastante mais cedo que o previsto
às «amplas montanhas ensolaradas» (Churchill) de prosperidade e paz: onde a
política abrira caminho ao governo e o governo se confinava cada vez mais à
administração.
No entanto, as previsíveis consequências do «Estado-ama», mesmo do
«Estado-ama» pós-ideológico, era que para todos os que tinham crescido e
não conheciam outra realidade, era obrigação do Estado cumprir as suas
promessas de uma sociedade cada vez melhor – e, assim, a culpa era do
Estado quando as coisas não resultaram. A aparente rotina dos assuntos
públicos nas mãos de uma classe benevolente de superintendentes não era
garantia de apatia pública. A este respeito, pelo menos, o prognóstico de Aron
errava o alvo. Assim, a própria geração que entrou na idade adulta no paraíso
social-democrata dos anseios dos seus pais, sentiu-se muitíssimo irritada e
ressentida com as suas imperfeições. Pode notar-se um sintoma convincente
deste paradoxo – muito literalmente – numa área de planeamento e em obras
públicas em que o estado progressivo de ambos os lados da divisão da Guerra
Fria era invulgarmente activo.
A combinação de crescimento demográfico e rápida urbanização do pós-
guerra colocou exigências sem precedentes aos urbanistas. Na Europa
Ocidental, onde muitos centros urbanos tinham sido destruídos ou meio
abandonados no fim da guerra, vinte milhões de pessoas mudaram-se da
província para as cidades durante as duas primeiras décadas do pós-guerra.
Na Lituânia, em 1970, metade da população vivia em cidades; vinte anos
antes o número era de apenas 28%. Na Jugoslávia, onde a população rural
baixou 50% entre a libertação e 1970, houve um grande surto de migração da
província para as cidades: entre 1948 e 1970 a capital croata, Zagreb,
duplicou em dimensão, de 280 000 habitantes para 560 000; do mesmo modo
a capital nacional, Belgrado, cresceu de 368 000 para 746 000.
Bucareste cresceu de 886 000 para 1 475 000 entre 1950 e 1970. Em Sófia,
o número de habitantes subiu de 435 000 para 877 000. Na União Soviética,
onde a população urbana ultrapassou a rural em 1961, Minsk – a capital da
República Bielorussa – passou de 509 000 em 1959 para 907 000 apenas doze
anos depois. O resultado em todas estas cidades, de Berlim a Estalinegrado,
foi a clássica solução da habitação da era soviética: imensos blocos de
cimento cinzentos ou castanhos idênticos; baratos, de má construção, sem
qualquer característica arquitectónica distinta e sem qualquer gratificação
estética (ou equipamentos públicos).
Onde a cidade interior tinha sobrevivido sem estragos (como em Praga) ou
fora cuidadosamente reconstruída a partir de antigos projectos (Varsóvia,
Leninegrado), a maior parte dos edifícios novos situava-se nos limites da
cidade, formando uma longa fila de dormitórios suburbanos que chegava ao
campo. Em outros sítios – na capital da Eslováquia, Bratislava, por exemplo –
os novos bairros de lata eram erigidos mesmo no coração da cidade. Quanto
às cidades mais pequenas e vilas rurais, obrigadas a absorver as dezenas de
milhares de ex-camponeses agora reciclados em mineiros ou operários
siderúrgicos, nada tinham a preservar e foram transformadas, quase de um dia
para o outro, em dormitórios industriais, a que faltava até a graça dos
vestígios de uma cidade antiga. Os trabalhadores agrícolas das cooperativas
foram obrigados a ir para cidades agrícolas, concebidas nos anos 50 por
Nikita Kruchev e mais tarde aperfeiçoadas por Nicolae Ceausescu. Esta nova
arquitectura – Escola Técnica, Casa da Cultura, gabinetes do Partido – fora
cuidadosamente modelada segundo os antecedentes soviéticos: por vezes
conscientemente socialista realista, sempre de grandes dimensões, raramente
atraente.
A industrialização forçada, a colectivização rural e o agressivo desdém
pelas necessidades privadas ajudam a explicar a calamidade do planeamento
citadino comunista. Mas os pais das cidades europeias ocidentais não fizeram
muito melhor. Sobretudo na Europa mediterrânica, a emigração em massa do
campo para as cidades colocou tensões comparáveis nos recursos urbanos. A
grande Atenas cresceu de 1 389 000 pessoas em 1951 para 2 540 000 em
1971. A população de Milão cresceu de 1 260 000 para 1 724 000 no mesmo
período; Barcelona de 1280 000 para 1 785 000. Em todos estes sítios, assim
como em cidades mais pequenas no Norte da Itália e nos subúrbios em rápida
ascensão de Londres, Paris, Madrid e em outros lugares, os urbanistas não
conseguiam acompanhar a procura. Tal como os seus contemporâneos dos
gabinetes comunistas, o seu instinto era construir grandes blocos de habitação
homogéneos – quer em espaços abertos pela guerra e pela renovação urbana,
ou então em cidades campestres nas orlas das cidades. Especialmente em
Milão e em Barcelona, onde a primeira geração de emigrantes do Sul
começara a passar de bairros de lata para prédios de apartamentos no decorrer
dos anos 60, o resultado tinha reminiscências deprimentes do bloco soviético
– mas com a desvantagem adicional de muitos futuros inquilinos não poderem
arrendar casa próximo do local de trabalho. Foram assim obrigados a longas
viagens diárias em transportes públicos desadequados – ou então nos seus
carros recentemente adquiridos, forçando ainda mais as infra-estruturas
urbanas.
Mas a característica fealdade da arquitectura urbana na Europa Ocidental
durante esses anos não se pode atribuir só à pressão demográfica. O «Novo
Brutalismo» (como foi alcunhado pelo crítico de arquitectura Rayner
Banham) não foi um acidente ou um descuido. Na Alemanha Ocidental, onde
as principais cidades do país foram reconstruídas com uma falta de
imaginação e de visão impressionantes, ou em Londres – onde o
Departamento de Arquitectura do Conselho do Condado de Londres autorizou
projectos de alojamento em massa, como o empreendimento de Alton em
Roehampton, ventoso e linearmente agressivo, inspirado em Le Corbusier – a
fealdade parecia quase deliberada, produto de cuidadosa intenção. A horrível
Torre Velasco de Milão, um arranha-céus de betão armado construído entre
1957 e 1960 por um consórcio privado anglo-italiano, era típica do agressivo
hiper-modernismo da época, em que a ideia era quebrar com todas as ligações
ao passado. Quando, em Março de 1959, a Junta de Construção em França
aprovou o projecto da futura Tour Montparnasse, o seu relatório concluía:
«Paris não se pode permitir perder-se no passado. Nos anos vindouros, Paris
tem de sofrer grandiosas metamorfoses».
O resultado não foi só a Tour Montparnasse (ou o seu filho natural, o
hediondo complexo de edifícios em La Défense), mas uma erupção de novas
cidades: densidade ultra-elevada, múltiplos blocos habitacionais («grands
ensembles», como eram sintomaticamente designados), desprovidos de
oportunidades de emprego ou serviços locais, situados na orla da grande
Paris. O primeiro e, por isso, o mais conhecido de entre eles, em Sarcelles, a
norte de Paris, cresceu de uma população de apenas 8000 em 1954 para 35
000 sete anos depois. Sociológica e esteticamente era desenraizado,
assemelhando-se muito mais aos modernos dormitórios de operários dos
subúrbios em outros países (como o povoado de Lazdynai, muito semelhante,
nos limites de Vilnius, na Lituânia) do que a qualquer projecto habitacional
francês ou tradição urbana.
Este corte com o passado foi deliberado. O «estilo» europeu, tão admirado
em outras esferas da vida, não se encontrava aqui em evidência em sítio
algum. De facto, era conscienciosa e cuidadosamente evitado. A arquitectura
dos anos 50 e sobretudo dos anos 60 era conscientemente a-histórica; cortou
com o passado no design, na escala e nos materiais (sendo o aço, o vidro e o
betão armado os mais favorecidos)(13). O resultado não foi necessariamente
mais imaginativo do que aquilo que viera antes: pelo contrário, os esquemas
de «re-desenvolvimento urbano» que transformaram a face de tantas cidades
europeias durante estas décadas foram uma colossal oportunidade perdida.
Na Inglaterra como nos outros lados, o planeamento «urbano» era quando
muito táctico, um remendo: não foram preparadas estratégias de longo prazo
para se integrar a habitação, serviços, empregos ou lazer (quase nenhuma das
novas cidades e alojamentos possuía cinemas, muito menos instalações
desportivas ou transportes públicos adequados)(14). O objectivo era limpar
bairros de lata urbanos e acomodar populações crescentes, rapidamente e de
forma barata: entre 1964 e 1974, só em Londres foram construídos 384 blocos
de torres. Muitos deles foram abandonados no espaço de vinte anos. Um dos
mais escandalosos, «Ronan Point» no East End de Londres, teve até o bom-
gosto de cair por si em 1968.
A arquitectura pública saía-se pouco melhor. O Centro Pompidou (um
projecto de 1960 embora só tenha aberto em 1977) – tal como o complexo
Les Halles do seu lado oeste – pode ter trazido uma variedade de recursos
culturais populares ao centro de Paris mas falhou miseravelmente na sua
integração na zona circundante ou na complementação da arquitectura antiga
à sua volta. O mesmo era válido para o novo Instituto da Educação da
Universidade de Londres, ostensivamente instalado em Woburn Square, no
coração de Bloomsbury – «incomparavelmente hediondo» no dizer de Roy
Porter, o historiador de Londres. De índole semelhante, o complexo da
Margem Sul de Londres juntou uma inestimável variedade de artes cénicas e
serviços artísticos, mas as suas proporções soturnas, as suas alamedas
ventosas e as fachadas de betão estalado, continuam a ser um testemunho
deprimente daquilo a que a crítica urbanista Jane Jacobs chamou «a mancha
da estagnação».
Permanece pouco claro o motivo que levou os políticos europeus do pós-
guerra a cometerem tantos erros, mesmo admitindo que logo a seguir a duas
guerras mundiais e uma prolongada depressão económica tivesse havido uma
ânsia de coisas novas e sem ligações ao passado. Não é que os
contemporâneos não tivessem consciência da fealdade do seu novo ambiente:
os ocupantes dos gigantescos complexos habitacionais, blocos de torres e
novas cidades nunca gostaram deles e disseram-no com suficiente clareza a
quem quis perguntar. Os arquitectos e os sociólogos podem não ter entendido
que os seus projectos iriam, no espaço de uma geração, criar excluídos sociais
e gangs violentos, mas essa perspectiva era bastante clara para os residentes.
Até o cinema europeu – que apenas umas décadas antes tinha dado uma
atenção carinhosa e nostálgica às cidades antigas e à vida nas cidades –
centrava-se agora, em vez disso, na fria e rude impessoalidade da moderna
metrópole. Realizadores como Godard ou Antonioni tiveram um prazer quase
sensual em filmar os subúrbios urbanos e industriais de mau gosto em filmes
como Alphaville (1965) ou The Red Desert (1964).
Uma vítima particular da iconoclastia arquitectónica do pós-guerra foi a
estação de caminho-de-ferro, a lapidar encarnação da realização vitoriana e
muitas vezes por si só um monumento arquitectónico significativo. As
estações de caminho-de-ferro também sofreram nos Estados Unidos (a
destruição da estação de Pensilvânia em Nova Iorque em 1966 ainda é
lembrada por muitos como o momento definidor do hooliganismo oficial);
mas os projectistas americanos das cidades tinham pelo menos a desculpa de
que, apertado entre o automóvel e o avião, as perspectivas para as viagens de
comboio pareciam sombrias. Mas nas circunstâncias de um pequeno
continente superpovoado, o futuro das viagens de comboio nunca esteve
verdadeiramente em questão. As estações que foram demolidas na Europa
foram substituídas por edifícios insípidos e desinteressantes cumprindo
funções idênticas. A destruição da estação de Euston em Londres, ou a Gare
Montparnasse em Paris, a elegante Anhalter Bahnhof em Berlim, não teve
finalidade prática e foram esteticamente indefensáveis.
A própria escala da destruição urbana, a pressa pan-europeia de acabar
com o passado e saltar numa geração das ruínas para a ultra-modernidade, iria
demonstrar a sua própria vingança (reconhecidamente ajudada pela recessão
dos anos 70, que desbastou de igual modo os orçamentos público e privado e
colocou um travão à orgia de renovação). Já em 1958, ainda antes do
paroxismo da renovação das cidades ter atingido o auge, um grupo de
preservadores na Inglaterra fundou a Sociedade Vitoriana. Era uma
organização voluntária tipicamente britânica, devotada à identificação e
salvamento da herança arquitectónica ameaçada do país; mas organizações de
inspiração semelhante foram surgindo por toda a Europa na década seguinte,
pressionando os residentes, académicos e políticos a procederem de igual
modo para evitarem mais perdas. Quando já era demasiado tarde para
salvarem um bairro ou edifício particular, pelo menos conseguiram preservar
o que restava – como no caso da fachada e pátio interior do Palazzo delle
Stelline no Corso Magenta de Milão: tudo o que resta de orfanato do século
XVII, tendo o restante sido demolido no início dos anos 70.
Na história física da cidade europeia, os anos 50 e de 60 foram
verdadeiramente décadas terríveis. Os danos feitos ao tecido material da vida
urbana durante esses anos são o lado escuro, ainda não totalmente
reconhecido dos «trinta anos gloriosos» de desenvolvimento económico –
semelhante na sua forma ao preço pago pela urbanização industrial do século
anterior. Apesar de se terem feito algumas correcções em décadas posteriores
– nomeadamente em França, onde a modernização planeada e o forte
investimento em estradas e redes de transportes trouxe uma distinta melhoria
à qualidade de vida de alguns dos subúrbios exteriores mais sombrios – os
prejuízos nunca puderam ser totalmente reparados. Cidades importantes –
Frankfurt, Bruxelas, sobretudo Londres – descobriram demasiado tarde que
tinham trocado o seu património urbano por uma confusão brutal.
É uma das ironias dos anos 60 que as paisagens citadinas da época
implacavelmente «renovadas» e reconstruídas sofressem o profundo rancor
sobretudo da gente jovem que ali vivia. As suas casas, ruas, cafés, fábricas,
escritórios, escolas e universidades podiam ser modernas e impecavelmente
«novos». Mas com excepção dos mais privilegiados de entre eles, o resultado
era um ambiente sentido como feio, sem alma, sufocante, desumano e – num
termo que estava a ganhar aceitação – «alienante». É inteiramente apropriado
que quando as crianças bem alimentadas, bem alojadas, bem educadas dos
benevolentes Estados-providência europeus cresceram e se revoltaram contra
«o sistema», as primeiras intimações das futuras explosões se tivessem
sentido nos dormitórios de cimento pré-fabricado de um campus anexo de
uma universidade sem alma, negligentemente plantado entre blocos de torres
e congestionamento de tráfego de um subúrbio parisiense a abarrotar.
-
(1) Partidos e pensadores liberais, na Alemanha e em Itália, como o pequeno núcleo inglês adepto do
mercado-livre, não se juntaram a este consenso. Mas nessa altura, e em parte por essa razão, tiveram
pouca influência.

(2) Compare-se com a Itália, que teve 13 governos e 11 primeiros-ministros no mesmo período, ou a
França, que teve 23 governos e 17 primeiros-ministros entre 1945 e 1968. Líderes partidários que se
mantinham muito tempo eram uma especialidade da Suécia: o antecessor de Erlander no partido social-
democrata sueco, Per Albin Hansson, ocupou o lugar de 1926 a 1946.

(3) O Pacto de Saltsjöbaden assemelhava-se ao Arbeitsfrieden (Paz Laboral), conseguido na Suíça no


ano anterior, em que empregados e empregadores acordaram no estabelecimento de um sistema de não-
confrontação colectiva, que se revelaria a pedra angular da futura estabilidade e prosperidade. No
entanto, o Arbeitsfrieden foi feito para ter o governo fora das negociações económicas, e o Pacto de
Saltsjöbaden comprometeu o governo a trabalhar em harmonia com empregados e patronato, a favor do
interesse comum.

(4) A taxa de suicídio na Europa Ocidental em 1973 era de facto mais alta em países prósperos e
desenvolvidos: Dinamarca, Áustria, Finlândia e RFA. Era mais baixa nas franjas mais pobres. A taxa da
Dinamarca era seis vezes a de Itália e catorze a da Irlanda. O que isto pode sugerir sobre o efeito
depressivo da prosperidade, clima, latitude, alimentação, religião, estruturas familiares ou Estado-
providência, era obscuro nessa altura e permanece pouco claro ainda hoje.

(5) Ironicamente foram os sociais-democratas suecos que durante muito tempo mostraram mais
interesse nos teóricos «austro-marxistas» do início do século XX: Otto Bauer e Rudolf Hilferding. Os
seus sucessores austríacos, pelo contrário, sentiam-se habitualmente felizes por colocarem tudo aquilo
para trás das costas – com excepção do eco ocasional, como no programa de 1958 do Partido Socialista
Austríaco, onde se afirmava disfarçadamente que «o socialismo democrático ocupa uma posição entre o
capitalismo e a ditadura…»

(6) Para esta tradução, ver Bark & Gress, From Shadow to Substance. A History of West Germany,
volume I (1992), capítulo 16.

(7) A destruição das selectivas escolas secundárias estatais da Inglaterra limitou-se a conduzir a
classe média para as escolas do sector privado, melhorando assim as perspectivas e os lucros das
«escolas públicas» pagas, que os radicais trabalhistas tanto desprezavam. Entretanto a selecção
continuou, mas mais pelos rendimentos do que pelo mérito: os pais que tinham meios para isso
compraram uma casa num bairro com uma «boa escola», deixando os filhos dos pobres à mercê das
escolas mais fracas e dos piores professores e com perspectivas muito reduzidas de mobilidade
educacional ascendente. A reforma do ensino secundário britânico, no sentido de o tornar mais acessível
a todos, foi a parte mais socialmente retrógrada da legislação na Inglaterra do pós-guerra.

(8) Com o fim da política clerical, o anticlericalismo político perdeu a sua raison d’être –
terminando um ciclo de querelas e obsessões que durara perto de dois séculos.

(9) Na Irlanda, porém, a autoridade da Igreja e o seu envolvimento na política quotidiana manteve-se
durante bastante mais tempo – até meados dos anos 90.

(10) Numa explosão de sentimentos, Osborne escreve sobre a realeza britânica como sendo a
«obturação de ouro numa boca cheia de podridão».

(11) Godard em particular tem gostos certamente ecléticos. Terá ficado hipnotizado por Johnny
Guitar (1954) de Nicholas Ray, com Joan Crawford.

(12) Os Italianos com certeza que sabiam desenhar carros, conforme qualquer entusiasta pelas
corridas confirmaria. Foram os fabricantes de automóveis italianos os primeiros a retirar os guarda-
lamas, estribos e outras excrescências redundantes dos pequenos carros familiares – mais ou menos
como os alfaiates milaneses que nos mesmos anos estavam a eliminar as dobras das calças e a inventar
as linhas elegantes, sóbrias e o corte do fato italiano moderno. O que os fabricantes de carros pareciam
incapazes de fazer com alguma consistência era construir os carros que os seus desenhadores tinham
imaginado.

(13) No admirador comentário de um crítico parisiense, os milhares de apartamentos idênticos


apertados entre os novos grands ensembles eram «verdadeiras casas minúsculas incorporadas numa
estrutura vertical, como outras tantas garrafas diferentes numa mesma grade para vinhos». Ver Pierre
Agard, «L’Unité de résidence» in Esprit, Outubro-Novembro 1953. Agradeço a referência ao Dr. Nicole
Rudolph.

(14) Mas em contraste com Roterdão: destruída pelas bombas alemãs e reconstruída por fases
durante as décadas seguintes, o porto holandês era uma cidade conscienciosa e genuinamente
«projectada».
XII

O Espectro da Revolução
«As relações sexuais tiveram início em 1963,
Entre o fim da interdição de Chatterley
E o primeiro LP dos Beatles.»
Philip Larkin
«A Revolução – amávamo-la tanto.»
Daniel Cohn-Bendit
«A revolta da burguesia arrependida contra o proletariado complacente e
opressivo é um dos fenómenos mais estranhos do nosso tempo.»
Sir Isaiah Berlin
«Agora todos os jornalistas do mundo andam a lamber-vos o rabo … mas não
eu, meus caros. Vocês têm cara de fedelhos mimados e eu odeio-vos, tal como
odeio os vossos pais… Quando ontem em Valle Giulia espancaram a polícia,
estive do lado da polícia porque são os filhos dos pobres»
Pier Paolo Pasolini (Junho 1968)
«Nós não estamos com Dubcek. Estamos com Mao.»
(Slogan estudantil italiano, 1968)
Os momentos de grande significado cultural muitas vezes só são
apreciados em retrospectiva. Os anos 60 são diferentes: a importância
transcendente que os contemporâneos deram à sua própria época – e a si
mesmos – foi uma das características especiais dessa altura. Uma parte
significativa dos anos 60 foi passada, nas palavras do grupo The Who, «a
falar sobre a Minha Geração». Como iremos ver, esta preocupação não era
totalmente insensata mas conduziu, como era previsível, a algumas distorções
de perspectiva. Os anos 60 foram de facto uma época de extraordinárias
consequências para a moderna Europa, mas nem tudo o que na altura parecia
importante deixou a sua marca na História. O impulso iconoclasta
autocelebrativo – no vestuário ou nas ideias – ficou muito rapidamente
datado; inversamente, levaria ainda alguns anos até a mudança
verdadeiramente revolucionária na política e negócios públicos que teve
início em finais dos anos 60 produzir total efeito. E a geografia política dos
anos 60 pode ser enganadora – os mais importantes desenvolvimentos nem
sempre se deram nos países mais conhecidos.
Em meados dos anos 60, o impacto social da explosão demográfica do
pós-guerra sentia-se em todo o lado. A Europa, segundo parecia, estava cheia
de gente nova – em França, em 1968, o grupo estudantil de pessoas com
idades entre os 16 e 24 anos contava com oito milhões, constituindo 16,1% do
total nacional. Em tempos anteriores, uma tal explosão populacional teria
provocado enormes tensões nas reservas alimentares do país e mesmo que as
pessoas pudessem ser alimentadas, as suas perspectivas de trabalho teriam
sido complicadas. Mas numa altura de crescimento económico e
prosperidade, o principal problema que os Estados europeus enfrentavam não
era como alimentar, vestir, alojar e por fim empregar o número crescente de
jovens, mas como os educar.
Até aos anos 50, a maioria das crianças na Europa abandonava a escola
depois de ter completado a instrução primária, normalmente entre os 12 e os
14 anos de idade. Em muitos sítios a própria educação primária obrigatória,
introduzida no fim do século XIX, só debilmente era cumprida – os filhos dos
camponeses em Espanha, Itália, Irlanda e na Europa de Leste pré-comunista,
abandonavam geralmentemente a escola durante a Primavera, Verão e início
do Outono. A educação secundária era ainda um privilégio confinados às
classes média e alta. Na Itália do pós-guerra, menos de 5% da população tinha
completado a escola secundária.
Numa antecipação a números futuros e como parte do ciclo mais vasto de
reformas sociais, os governos na Europa do pós-guerra introduziram uma
série de importantes alterações educativas. No Reino Unido a escolaridade
obrigatória foi aumentada para os 15 anos em 1947 (e mais tarde para os 16,
em 1972). Em Itália, onde na prática a maior parte das crianças nos primeiros
anos do pós-guerra ainda saía da escola aos 11 anos, subiu para os 14 em
1962. O número de crianças em escolaridade a tempo inteiro na Itália
duplicou no decorrer da década entre 1959-1969. Em França, que se
orgulhava de uns meros 32 000 bacheliers (com o curso da escola secundária)
em 1950, os números iriam aumentar mais de cinco vezes no decorrer dos
vinte anos seguintes: em 1970, os bacheliers representavam 20% do seu
grupo etário.
Estas alterações educativas trouxeram implicações de perturbação. Até
então, a linha de divisão cultural na maioria das sociedades europeias traçara-
se entre aqueles – a esmagadora maioria – que tinham abandonado a escola
depois de aprenderem a ler, escrever, a fazer contas e a contar o esboço da
história nacional, e uma minoria privilegiada que tinha permanecido na escola
até aos 17 ou 18 anos, e que tinha recebido o muito apreciado diploma da
escola secundária e partido para o estágio profissional ou para o emprego. Os
liceus, lycées e Gymnasiums da Europa tinham sido a área protegida de uma
elite governante. Herdeiros de um curriculum clássico vedado aos filhos dos
pobres rurais e urbanos, estavam agora abertos a um conjunto sempre em
expansão de gente nova de todos os meios sociais. Quando cada vez mais
crianças entravam e passavam pelos sistemas da escola secundária, abria-se
uma brecha entre o mundo deles e aquele que os pais tinham conhecido.
Este novo e sem precedentes fosso de gerações constituiu por si só uma
revolução social de facto – ainda que uma revolução cujas implicações
estavam ainda confinadas ao reino da família. Mas quando dezenas de
milhares de crianças foram despejadas em escolas secundárias construídas à
pressa, exercendo grande pressão sobre a estrutura física e financeira de um
sistema educativo concebido para uma época muito diferente, os
programadores começaram a estar preocupados com as implicações destas
alterações para o que tinha sido até então a área protegida de uma elite ainda
mais pequena: as universidades.
Se a maior parte dos europeus antes de 1960 nunca tinha visto o interior de
uma escola secundária, menos teria ainda sonhado em frequentar a
universidade. Tinha havido alguma expansão das universidades tradicionais
durante o século XIX e um aumento no número de outras instituições de
ensino superior, sobretudo para formação técnica. Mas na Europa nos anos 50
o ensino superior estava ainda fechado a todos excepto uns poucos
privilegiados cujas famílias podiam abdicar dos salários dos filhos para os
manterem na escola até aos 18 anos e que podiam pagar as propinas exigidas,
tanto pelas escolas secundárias como pelas universidades. Havia,
evidentemente, bolsas de estudo, para os filhos dos pobres e da classe
intermédia. Mas com excepção das admiravelmente meritocráticas e
igualitárias instituições da III e IV República francesas, estas bolsas
raramente cobriam os custos da escolaridade adicional; em nenhum lado
compensavam o rendimento perdido.
Apesar das melhores intenções de uma anterior geração de reformadores,
Oxford, Cambridge, a École Normale Supérieure, as universidades de
Bolonha ou Heidelberg e as antigas instituições de ensino do resto da Europa
mantiveram-se fora do alcance de quase toda a gente. Em 1949 havia 15 000
estudantes universitários na Suécia, na Bélgica 20 000. Havia só 50 000
estudantes universitários em toda a Espanha, menos do dobro no Reino Unido
(numa população de 49 milhões). A população estudantil francesa nesse ano
mal excedia os 130 000. Mas com a Europa agora no vértice ensino
secundário em massa, em breve iria haver uma pressão irresistível para
expandir também o ensino universitário. Muito teria de mudar.
Em primeiro lugar, a Europa iria necessitar de muito mais universidades.
Em muitos países não havia nenhum «sistema» de ensino superior
propriamente dito. A maioria dos países tinha herdado uma rede de
instituições individuais configuradas ao acaso: uma infra-estrutura de
instituições pequenas, antigas, nominalmente independentes, concebidas para
receber no máximo umas poucas centenas de candidatos por ano e muitas
vezes situadas em cidades de província com poucas ou nenhumas infra-
estruturas públicas. Não tinham espaço para se expandirem e as suas salas de
aulas, laboratórios, bibliotecas e edifícios residenciais (se os houvesse) eram
completamente incapazes de acomodar mais milhares de jovens.
A típica cidade universitária – Pádua, Montpellier, Bona, Lovaina,
Friburgo, Cambridge, Upsala – era pequena e muitas vezes afastada dos
importantes centros urbanos (e deliberadamente escolhidas, muitos séculos
antes, exactamente por esta razão); a universidade de Paris era uma excepção,
embora uma excepção importante. À maior parte das universidades europeias
faltavam campus no sentido americano (aqui eram as universidades
britânicas, Oxford e Cambridge sobretudo, as excepções óbvias) e estavam
fisicamente integradas nos seus arredores urbanos: os estudantes viviam na
cidade e dependiam dos seus habitantes para o alojamento e serviços.
Sobretudo, e apesar de em muitos casos terem centenas de anos, as
universidades da Europa quase não tinham recursos materiais próprios. Eram
totalmente dependentes do município ou do Estado para financiamento.
Se o ensino superior na Europa teria de responder ao premonitório
aumento demográfico forçando o aumento das escolas primária e secundária,
a iniciativa teria portanto de vir do centro. Na Inglaterra, e em menor medida
na Escandinávia, o problema foi resolvido construindo mais universidades em
sítios «campestres» fora das cidades de província e de condado: Colchester ou
Lancaster na Inglaterra, Aarhus na Dinamarca. Na altura em que o primeiro
grupo pós-secundária começou a chegar, estas novas universidades, por muito
desprovidas de alma que fossem do ponto de vista arquitectónico, estavam
pelo menos preparadas para corresponder à crescente procura de lugares – e
criar oportunidades de emprego para um conjunto em expansão de estudantes
licenciados à procura de lugares no ensino.
Em vez de abrirem estas novas universidades a um público em massa, os
programadores educacionais ingleses preferiram integrá-los no velho sistema
de elites. Assim, as universidades inglesas preservaram o seu direito de
seleccionar ou recusar estudantes na altura da admissão: só os candidatos que
tivessem tido um desempenho acima de determinado nível nos exames finais
do liceu nacional podiam esperar conseguir entrar na universidade, e cada
universidade tinha a liberdade de oferecer lugares a quem quer que desejasse
– e de só admitir o número de estudantes que podia controlar. Os estudantes
no Reino Unido continuaram a ser uma espécie de minoria privilegiada (não
mais de 6% do seu grupo etário em 1968) e as implicações a longo prazo
eram sem dúvida socialmente regressivas. Mas para os poucos afortunados o
sistema funcionava muito suavemente – e isolava-os de quase todos os
problemas enfrentados pelos seus pares em outros sítios da Europa.
Porque no continente o curso superior avançava numa direcção muito
diferente. Na maior parte dos Estados da Europa Ocidental, nunca tinha
havido qualquer impedimento à passagem da secundária para o curso
superior: se fizesse e passasse nos exames finais nacionais, estava-se
automaticamente habilitado a frequentar a universidade. Até ao final dos anos
50, isto não colocara quaisquer dificuldades: os números envolvidos eram
pequenos e as universidades não tinham motivo para recear ficar inundadas de
estudantes. De qualquer maneira, os estudos académicos em quase todas as
universidades continentais eram, por convenção antiga, pouco mais do que
algo desinteressados e mal estruturados. Professores altivos e inacessíveis
davam prelecções a turmas repletas de estudantes anónimos que se sentiam
pouco pressionados para acabarem os cursos no prazo previsto e para quem
ser estudante era tanto um rito social de passagem como um meio para obter
instrução(1).
Em vez de construírem novas universidades, a maioria dos que faziam o
planeamento central na Europa simplesmente decretou a expansão das
existentes. Ao mesmo tempo, não impuseram impedimentos adicionais ou
sistemas de préselecção. Pelo contrário, e pela melhor das razões,
frequentemente começaram a eliminar as que permaneciam – em 1965 o
ministro da Educação italiano aboliu todos os exames de admissão à
universidade e fixou quotas por cursos. O curso superior, outrora um
privilégio, seria agora um direito. O resultado foi catastrófico. Em 1968 a
Universidade de Bari, por exemplo, que tradicionalmente matriculava cerca
de 5000 pessoas, estava a tentar lidar com um corpo estudantil de 30 000. A
Universidade de Nápoles no mesmo ano tinha 50 000 estudantes, a
Universidade de Roma 60 000. Só estas três universidades estavam a
matricular entre elas mais do que toda a população estudantil da Itália 18 anos
antes; muitos dos seus estudantes nunca chegariam a formar-se(2).
Em finais dos anos 60, um jovem em sete na Itália frequentava a
universidade (em comparação com um em vinte dez anos antes). Na Bélgica o
número era de um em seis. Na Alemanha Ocidental, onde em 1950 houvera
108 000 estudantes e onde as universidades tradicionais já estavam a começar
a sofrer de sobrelotação, havia quase 400 000 em finais dos anos 60. Em
França, em 1967, havia tantos estudantes universitários como houvera de
lycéens em 1956. Por toda a Europa havia muito mais estudantes do que
nunca – e a qualidade da sua experiência académica estava a deteriorar-se
rapidamente. Tudo estava a abarrotar – as bibliotecas, os dormitórios, as
salas de aula, os refeitórios – e nitidamente em más condições (até mesmo,
aliás, em especial, se fosse novo). A despesa governamental com a educação
no pós-guerra, que subira acentuadamente em todo o lado, concentrara-se na
construção de escolas primárias e secundárias, e em equipamento e
professores. Esta era certamente a escolha certa e em qualquer dos casos uma
decisão ditada pela política eleitoral. Mas tinha o seu preço.
Neste momento vale a pena relembrar que até em 1968 a maior parte dos
jovens em todos os países europeus não eram estudantes (um pormenor que
tende a ser ignorado em relatos deste período), especialmente se os pais
fossem camponeses, operários não especializados ou imigrantes, tanto das
províncias periféricas como do estrangeiro. Por necessidade, esta maioria não
estudantil viveu os anos 60 de maneira bastante diferente: especialmente o
fim dos anos 60, quando tantas coisas pareciam girar em torno ou dentro das
universidades. As suas opiniões e especialmente as suas políticas não devem
ser deduzidas dos estudantes seus contemporâneos. Em outros aspectos, no
entanto, os jovens partilhavam o que era já uma cultura distintiva – e comum.
Cada geração vê o mundo como novo. A geração de sessenta viu o mundo
como novo e jovem. A maior parte dos jovens, na história, entra num mundo
cheio de gente mais velha, onde os mais velhos ocupam posições de
influência e exemplo. No entanto, para a geração de meados dos anos 60, as
coisas eram diferentes. O ecossistema cultural estava a evoluir muito mais
depressa que no passado. O fosso que separava uma vasta geração próspera,
mimada, autoconfiante e culturalmente anónima de uma geração
invulgarmente pequena, insegura, marcada pela Depressão e devastada pela
guerra dos seus pais, era maior que a distância convencional entre grupos
etários. Pelo menos, parecia-o a muitos jovens que tinham nascido numa
sociedade a transformar-se relutantemente – os seus valores, o seu estilo, as
suas regras – mesmo perante os seus olhos e a seu mando. A música popular,
o cinema e a televisão estavam cheios de gente nova e cada vez mais lhes
eram dirigidos, como público e mercado. Em 1965 havia programas de rádio
e de televisão, revistas, lojas, produtos e indústrias inteiras que existiam
exclusivamente para os jovens e dependiam do seu patrocínio.
Apesar de cada cultura juvenil nacional ter os seus ícones distintivos e
instituições, os seus pontos de referência exclusivamente locais (a Fête des
Copains na Place de la Nation em Paris, a 22 de Junho de 1963, foi o
acontecimento fundador da cultura dos anos 60 em França, embora tenha
passado praticamente desapercebida nos outros sítios), muitas das formas
populares de cultura da época fluíam com uma facilidade sem precedentes
através das fronteiras nacionais. A cultura de massas estava a tornar-se
internacional, até por uma questão de definição. Uma moda (na música ou no
vestuário) começava no mundo de língua inglesa, muitas vezes na própria
Inglaterra e depois deslocava-se para sul e leste: facilitada por uma cada vez
maior cultura visual (e portanto atravessando fronteiras) e só ocasionalmente
impedido por alternativas criadas localmente ou, mais frequentemente, por
intervenção política(3).
As novas modas eram forçosamente dirigidas aos jovens mais prósperos:
os filhos da classe média branca europeia, que podiam comprar discos,
concertos, sapatos, roupas, maquilhagem e penteados à moda. Mas a
apresentação destes artigos cortava com as linhas convencionais. Os músicos
de maior êxito da época – os Beatles e os seus imitadores – usavam os ritmos
dos guitarristas de blues americanos (a maior parte negros) e juntavam-nos a
material retirado directamente da língua e experiência da classe operária
britânica(4). Esta combinação muitíssimo original passou então a ser a cultura
indígena, transnacional, da juventude europeia.
O conteúdo da música popular era muito importante, mas a sua forma
contava mais. Nos anos 60 as pessoas davam particular atenção ao estilo. Isto,
poder-se-ia pensar, não era grande novidade. Mas era talvez uma
peculiaridade da época o estilo conseguir substituir tão directamente a
substância. A música popular dos anos 60 era insubordinada no timbre, no
modo da sua execução – embora os seus versos fossem frequentemente
anódinos e, de qualquer maneira, quando muito, só parcialmente entendidos
pelos públicos estrangeiros. Na Áustria, executar ou ouvir música pop inglesa
ou americana era fazer troça dos pais escandalizados, a geração de Hitler; o
mesmo se aplicava, mutatis mutandis, mesmo do outro lado da fronteira na
Hungria ou Checoslováquia. A música, por assim dizer, protestava em seu
nome.
Se grande parte da cultura musical mainstream dos anos 60 parecia ser
sobre o sexo – pelo menos até mudar, em breve, para as drogas e a política –
também isto era em grande parte uma questão de estilo. Mais jovens viviam
longe dos pais e em menor idade do que até então. E os contraceptivos
estavam a tornar-se mais seguros, mais fáceis e legais(5). Exibições públicas
do corpo e representações de entrega sexual sem restrições em filmes e na
literatura tornaram-se mais comuns, pelo menos no Noroeste da Europa. Por
todas as razões, a geração mais velha estava convencida de que a moderação
sexual se tinha desmoronado por completo – e agradava aos filhos alimentar-
lhes o pesadelo.
Na realidade, a «revolução sexual» dos anos 60 era quase de certeza uma
miragem para a esmagadora maioria das pessoas, tanto para as jovens como
para as idosas. Tanto quanto sabemos, os interesses sexuais e as práticas da
maioria dos jovens europeus não mudaram tão rápida e radicalmente como os
contemporâneos gostam de afirmar. Segundo indicações de inquéritos da
época, as vidas sexuais dos estudantes até nem eram muito diferentes das de
gerações anteriores. O estilo sexual livre dos anos 60 estava em típico
contraste com o dos anos 50, retratado (um tanto injustamente) como uma
época de rectidão moral e contenção emocional. Mas quando comparados
com os anos 20, ou o fin de siécle europeu, ou o demi-monde de Paris de
1860, os «anos 60» foram bastante calmos.
Ao manter a ênfase no estilo, a geração de sessenta colocou uma invulgar
insistência em parecer diferente. O vestuário, o cabelo, a maquilhagem e
aquilo a que ainda se chamava «acessórios de moda», passaram a ser rótulos
geracionais e políticos vitais. Londres era a origem destas modas: o gosto
europeu no vestuário, música, fotografia, manequins, publicidade e até nas
revistas de grande tiragem, todos iam ali buscar a sua inspiração.
Considerando a já firmada reputação britânica de design sem brilho e
construção de segunda, este foi um desenvolvimento inesperado, uma
inversão juvenil da ordem tradicional neste tipo de coisas e revelou-se de
pouca duração. Mas a falsa alvorada da «Swinging London» – como lhe
chamou a revista Time em Abril de 1966 – colocou uma luz distintiva sobre a
época.
Por volta de 1967 havia mais de 2000 lojas na capital britânica
descrevendo-se a si mesmas como boutiques. A maior parte eram imitações,
das lojas de roupa que tinham brotado em Carnaby Street, um antigo reduto
de homossexuais masculinos agora reciclado como epicentro da moda, tanto
para homossexuais como para heterossexuais. Em Paris, a boutique de
vestuário «New Man», o primeiro indício francês da revolução na
indumentária, abriu na rue de l’Ancienne Comédie a 13 de Abril de 1965. No
espaço de um ano seguiu-se-lhe uma série de imitadores, todos eles com
nomes modernos soantes em inglês – «Dean», «Twenty», «Cardiff», etc.
O estilo Carnaby Street – clonado por toda a Europa Ocidental (embora
menos marcadamente na Itália que em outros lados) – realçava os trajes
coloridos, com contornos tendendo para o andrógino e deliberadamente mal
adaptados para quem tivesse mais de trinta anos. Calças vermelhas apertadas
e camisas pretas justas da «New Man» passaram a ser o uniforme dos
manifestantes de rua durante os três anos seguintes e foram amplamente
copiadas em todo o lado. Como tudo o resto nos anos 60, eram feitos por
homens, para homens; mas as jovens também as podiam usar e faziam-no
cada vez mais. Até as principais casas de moda em Paris foram afectadas: a
partir de 1965, os costureiros da cidade produziram mais calças que saias.
Também cortaram na sua produção de chapéus. Era sintomático da
primazia do mercado juvenil que o cabelo substituísse os chapéus como a
expressão própria, por excelência, ficando os chapéus tradicionais confinados
às ocasiões formais para os «mais velhos»(6). No entanto, os chapéus não
desapareceram. Numa segunda fase de transição de vestuário, as alegres cores
primárias das «coisas mod» (herança de finais dos anos 50) foram substituídas
por peças exteriores «mais sérias», reflectindo-se na música uma mudança
semelhante. O vestuário dos jovens era agora cortado e comercializado com
um olho posto nas fontes «proletárias» e «radicais» da sua inspiração: não só
calças de ganga e «camisas de trabalho», mas também botas, casacos escuros
e bonés de cabedal «à Lenine» (ou variantes revestidas a feltro, repercutindo
os «bonés Kossuth» dos rebeldes húngaros do século XIX). Esta moda mais
conscientemente política nunca pegou verdadeiramente na Inglaterra, mas no
fim da década era o uniforme quase oficial dos radicais alemães e italianos e
dos estudantes seus seguidores(7).
Sobrepondo-se aos dois grupos de modas estavam as roupagens tipo
cigano dos hippies. Contrastando com o visual «Carnaby Street» e «Street-
fighting man», que eram intrinsecamente europeus na sua origem, o ar hippy
– obscuramente «utópico» na sua ética assexual de subconsumo evidente, não
ocidental, «contra-cultural» – era importado da América. A sua utilidade
comercial era óbvia, e muitos dos postos de vendas que tinham surgido para
servir a procura de modas bem definidas e justas, em meados dos anos 60 em
breve se esforçavam por adaptar o seu stock convenientemente. Até tentaram,
brevemente, comercializar o «look Mao». Um casaco sem forma com uma
gola cortada a direito, juntamente com o omnipresente boné «proletário», o
look Mao combinava claramente aspectos dos três estilos, especialmente
quando tinham como acessório o Pequeno Livro Vermelho dos pensamentos
do ditador chinês. Mas apesar do filme de 1967 de Godard, La Chinoise, no
qual um grupo de estudantes franceses estuda obedientemente Mao e tenta
seguir o seu exemplo, o «look Mao» manteve-se um gosto de minorias – até
mesmo entre os «maoístas».
As políticas contra-culturais e os seus símbolos adquiriram um lado mais
duro depois de 1967, por associação com relatos romanceados dos
guerrilheiros rebeldes do «Terceiro Mundo». Mas mesmo assim, nunca se
tornaram verdadeiramente populares na Europa. Não nos devemos deixar
enganar pela vida depois da morte de Che Guevara, no rapaz poster a imitar
Cristo martirizado, para os descontentes rapazes ocidentais: os anos 60
europeus foram sempre eurocêntricos. Mesmo a «revolução hippy» nunca
atravessou realmente o Atlântico. Quando muito marulhou nas costas da Grã-
Bretanha e da Holanda, deixando atrás de si alguns sedimentos na forma de
uma cultura de drogas mais desenvolvida que em qualquer outro lugar – e um
disco LP espectacularmente original.
O lado frívolo dos anos 60 – moda, cultura pop, sexo – não deve ser
ignorado como mera futilidade e exibição. Era a maneira de uma nova
geração cortar com a era dos avós – a gerontocracia (Adenauer, De Gaulle,
Macmillan – e Khrushchev) ainda a dirigir os assuntos do continente. É certo
que os aspectos atractivos, poseurs, dos anos 60 – a extravagância narcísica
que ficará para sempre associada à época – soam a falso quando vistos em
conjunto. Mas no seu tempo e para os que os viveram, pareciam novos e
originais. Até o brilho frio e duro da arte contemporânea, ou os filmes cínicos
de finais dos anos 60, pareciam refrescantes e autênticos depois do
aconchegante artifício burguês do passado recente. O solipsístico conceito da
época – que os jovens iriam mudar o mundo «fazendo à sua maneira»,
«deixando tudo correr» e «fazendo amor, não a guerra» – foi sempre uma
ilusão e não resultou. Mas não foi a única ilusão da época e de maneira
nenhuma a mais tonta.
Os anos 60 foram a grande era da Teoria. É importante deixar claro o que
isto significa: de certeza que não se refere ao trabalho verdadeiramente
inovador então a ser levado a cabo pela bioquímica, astrofísica ou genética,
uma vez que isto era largamente ignorado pelos não especialistas. Nem
descreve um renascimento do espírito social europeu: os meados do século
XX não produziram teóricos sociais comparáveis a Hegel, Comte, Marx, Mill,
Weber ou Durkheim. «Teoria» também não significava filosofia: os mais
conhecidos filósofos europeus da época – Bertrand Russell, Karl Jaspers,
Martin Heidegger, Benedetto Croce, Maurice Merleau-Ponty, Jean-Paul Sartre
– tinham morrido, ou estavam velhos ou ocupados com outra coisa e os
pensadores mais importantes da Europa de Leste – Jan Patocka ou Leszek
Kolakowski – ainda eram sobretudo desconhecidos fora dos seus próprios
países. Quanto ao brilhante grupo de economistas, filósofos e teóricos sociais
que tinham florescido na Europa Central antes de 1934, a maior parte dos
sobreviventes tinha ido para um exílio permanente nos Estados Unidos, Grã-
Bretanha ou para os Antípodas, onde formaram, nas suas especialidades, o
núcleo intelectual da moderna cultura «anglo-saxónica».
No seu uso recente, «Teoria» significava uma coisa bastante diferente. Era
em grande parte adoptado como «interrogando» (um termo contemporâneo de
arte) o método e os objectivos de disciplinas académicas: sobretudo todas as
ciências sociais – história, sociologia, antropologia – mas também as
humanidades e até, em anos posteriores, as próprias ciências de laboratório.
Numa época de vasta expansão de universidades, com periódicos, jornais e
conferencistas a procurarem urgentemente «modelos», emergiu um mercado
para «teorias» de toda a espécie – alimentadas não por uma oferta intelectual
aperfeiçoada, antes pela procura insaciável do consumidor.
Na vanguarda da revolução da teoria encontravam-se as disciplinas
académicas de História e ciências sociais mais brandas. A renovação do
estudo histórico na Europa começara uma geração antes: a Economic History
Review e a Annales: Économies, Societés, Civilizations foram ambas fundadas
em 1929, com os seus projectos revisionistas implícitos nos títulos. Nos anos
50 surgira o Grupo de Historiadores do Partido Comunista da Grã-Bretanha e
a influente revista de história social Past & Present; o grupo de Estudos
Culturais na Universidade de Birmingham da Inglaterra, inspirado pela obra
de Richard Hoggart e Raymond Williams e, um pouco mais tarde, a escola de
História Social centrada em torno de Hans-Ulrich Wehler na Universidade de
Bielefeld, na Alemanha Ocidental.
O trabalho académico produzido pelos homens e mulheres associados a
estes grupos e instituições não era necessariamente iconoclasta; de facto,
embora normalmente de muito elevada qualidade, era muitas vezes bastante
convencional em termos metodológicos. Mas era conscientemente
interpretativo, típico de uma posição não dogmática mas inequivocamente
esquerdista. Aqui estava a história informada pela teoria social e por uma
insistência na importância da classe, especialmente das classes mais baixas. A
ideia não era só narrar ou até explicar um dado momento histórico; a ideia era
revelar o seu significado mais profundo. A escrita histórica desta índole
parecia estabelecer uma ponte entre o passado e o presente, entre a
especulação erudita e o compromisso contemporâneo, e uma nova geração de
estudantes leu-a (e, não raramente, tresleu-a) a esta luz.
Mas, apesar de todas as suas aplicações políticas, a História é uma
disciplina particularmente impermeável a grandes especulações teóricas:
quanto mais teoria se intromete, mais a história retrocede. Embora um ou dois
dos mais importantes historiadores dos anos 60 tivessem atingido o estatuto
de ícone em idade avançada, nenhum deles – por muito subversiva que fosse
a sua erudição – chegou a emergir como guru cultural. Outras disciplinas
saíram-se melhor – ou pior, dependendo do ponto de vista. Recorrendo a uma
anterior disposição especulativa no campo da linguística, antropólogos
culturais – influenciados por Claude Lévi-Strauss – apresentaram uma nova
explicação abrangente para as variações e diferenças nas sociedades. O que
contava não era fazer sobressair as práticas sociais ou os sintomas culturais,
mas as suas essências interiores, as profundas estruturas dos assuntos
humanos.
O «estruturalismo», como veio a ser chamado, era profundamente sedutor.
Como forma de classificar a experiência humana, continha semelhanças com
a escola de História dos Annales – de que o mais conhecido expoente
contemporâneo, Fernand Braudel, criara fama com o estudo da longue durée,
uma visão da História descrevendo as estruturas geográficas e sociais em
lenta mudança durante longos períodos – e assim se encaixando
confortavelmente no estilo académico da época. Mas de maior relevância era
a acessibilidade imediata do estruturalismo aos intelectuais e não
especialistas. Conforme explicado por admiradores de Lévi-Strauss em
disciplinas relacionadas, o estruturalismo nem sequer era uma teoria
figurativa: os códigos sociais, ou «sinais», que descrevia não se relacionavam
com quaisquer pessoas em particular ou lugares ou eventos, mas meramente
com outros sinais, num sistema fechado. Não estava assim sujeito à prova
empírica ou refutação – não fazia sentido que alguma vez se pudesse
demonstrar que o estruturalismo estava errado – e a ambição iconoclasta das
suas asserções, aliada a esta impermeabilidade à contradição, garantiu um
vasto público. Tudo podia ser explicado como sendo uma combinação de
«estruturas»: como anotou Pierre Boulez ao catalogar uma das suas
composições Structures, «é a palavra-chave do nosso tempo».
No decorrer dos anos 60 surgiu uma pletora de estruturalismos aplicados:
na antropologia, na história, na sociologia, na psicologia, nas ciências
políticas e, evidentemente, na literatura. Os praticantes mais conhecidos –
normalmente os que combinavam nas doses certas a audácia erudita com um
talento natural para a autopromoção – tornaram-se celebridades
internacionais, tendo tido a sorte de entrar no centro da atenção intelectual
quando a televisão começava a ser um meio de massas. Numa época anterior
Michel Foucault poderia ter sido um preferido dos salões, uma estrela do
círculo académico parisiense, tal como Henri Bergson cinquenta anos antes.
Mas quando Les Mots et les Choses [As Palavras e as Coisas] vendeu 20 000
exemplares em quatro meses em 1966, adquiriu o estatuto de celebridade
quase de um dia para o outro.
O próprio Foucault renegou o rótulo de «estruturalista», muito como
Albert Camus sempre insistira em que nunca fora um «existencialista» e que
não sabia realmente o que isso era(8).
Mas como o próprio Foucault seria levado a admitir, não interessava de
facto o que ele pensava. «Estruturalismo» era agora a forma abreviada para
qualquer avaliação subversiva do passado ou do presente, onde as explicações
lineares convencionais e as categorias eram abaladas e os seus pressupostos
questionados. Mais importante ainda, os «estruturalistas» eram pessoas que
minimizavam ou negavam mesmo o papel do indivíduo e da iniciativa
individual nos assuntos humanos.(9)
Mas apesar de todas as suas versáteis aplicações, a ideia de que tudo é
«estruturado» deixou sem explicação uma coisa vital. Para Fernand Braudel,
ou Claude Lévi-Strauss, ou mesmo Michel Foucault, o objectivo era revelar
as profundas actividades de um sistema cultural. Isto poderia, ou não, ser um
impulso erudito subversivo – certamente que não o era no caso de Braudel –
mas trata da forma superficial ou minimiza a mudança e a transição.
Acontecimentos políticos decisivos, em particular, revelaram-se resistentes a
esta abordagem: podia-se explicar porque têm as coisas de mudar numa
determinada fase, mas não era evidente como o faziam, ou por que razão os
actores sociais individuais optaram por facilitar o processo. Como
interpretação da experiência humana, qualquer teoria dependente de um ajuste
de estruturas de que foi eliminada a decisão humana estava assim presa pelos
seus próprios pressupostos. Intelectualmente subversivo, o estruturalismo era
politicamente passivo.
O impulso juvenil dos anos 60 não era compreender o mundo; nas palavras
de Onze Teses sobre Feuerbach de Karl Marx, escrito quando o próprio Marx
só tinha 26 anos e muito citado nestes anos: «Os filósofos só interpretaram o
mundo, de várias maneiras; a questão, no entanto, é mudá-lo». Quando se
tratava de mudar o mundo, só havia ainda uma grande teoria que afirmava
relacionar uma interpretação do mundo com um projecto abrangente de
mudança; só uma Grande Narrativa conferia sentido a tudo, ao mesmo tempo
que deixava aberto um lugar para a iniciativa humana: o projecto político do
próprio marxismo.
As afinidades intelectuais e obsessões políticas dos anos 60 na Europa só
fazem sentido à luz deste continuado fascínio por Marx e pelo marxismo.
Como disse Jean-Paul Sartre em 1960 na sua Crítica da Razão Dialéctica:
«Considero o marxismo a inultrapassável filosofia do nosso tempo». A
inabalável fé de Sartre não era universalmente partilhada, mas havia uma
concordância generalizada no espectro político de que, quem quisesse
entender o mundo, devia levar muito a sério o marxismo e o seu legado
político. Raymond Aron – contemporâneo de Sartre, antigo amigo e
adversário intelectual – foi anticomunista toda a sua vida. Mas também ele
reconhecia (com uma mistura de desgosto e fascínio) que o marxismo era a
ideia dominante da época: a religião secular da sua época.
Entre 1956 e 1968 o marxismo na Europa viveu – e, por assim dizer,
prosperou – num estado de hibernação. O comunismo estalinista caíra em
desgraça devido às revelações e acontecimentos de 1956. Os partidos
comunistas do Ocidente ou eram politicamente irrelevantes (na Escandinávia,
Inglaterra, Alemanha Ocidental e Países Baixos), ou estavam em lento mas
inequívoco declínio (França), ou então, como no caso italiano, a lutar para se
distanciarem da sua herança moscovita. O marxismo oficial, conforme
encarnado na história e nos ensinamentos dos partidos leninistas, estava
bastante desacreditado – especialmente nos territórios onde continuava a
reinar. Até os que no Ocidente decidiram votar em partidos comunistas
revelavam pouco interesse pelo assunto.
Ao mesmo tempo havia um interesse intelectual e académico generalizado
pelas partes da herança marxista que se podiam distinguir da versão soviética
e resgatar do seu naufrágio moral. Desde a morte do seu fundador sempre
houvera seitas e grupos dissidentes marxistas e marxizantes – muito antes de
1914 já havia minúsculos partidos políticos reclamando a Verdadeira
Herança. Uma mão-cheia deles, como o Partido Socialista da Grã-Bretanha,
ainda estava viva: vangloriando-se da sua virgindade política e afirmando a
sua e única interpretação correcta dos textos originais de Marx(10). Mas maior
parte dos movimentos socialistas de finais do século XIX, círculos, clubes e
sociedades tinha sido absorvida pelos partidos socialistas e trabalhistas
generalistas que se uniram nos anos de 1900 a 1910. As modernas disputas
marxistas têm as suas raízes no cisma leninista que se iria seguir.
Foram as lutas faccionárias dos anos iniciais soviéticos que deram origem
à mais duradoura «heresia» marxista, a de Trotsky e seus seguidores. Um
quarto de século depois da morte de Trotsky no México às mãos de um
assassino estalinista (e, muito também, por causa disso) havia partidos
trotskistas em todos os Estados europeus que não os tinham explicitamente
banido. Eram geralmente pequenos e dirigidos, à imagem do seu fundador
epónimo, por um chefe autoritário carismático que ditava a doutrina e as
tácticas. A sua estratégia característica era a «infiltração»: trabalhar no
interior das principais organizações da ala esquerda (partidos, sindicatos,
sociedades académicas) para os colonizar ou empurrar as suas políticas e
alianças políticas para direcções indicadas pela teoria trotskista.
Para quem estivesse de fora, os partidos trotskistas – e a evanescente IV
Internacional (dos Trabalhadores) de que eram afiliados – pareciam
curiosamente indistinguíveis dos comunistas, partilhando uma submissão
semelhante a Lenine e separados unicamente pela história sangrenta da luta
pelo poder entre Trotsky e Estaline. Havia uma questão de dogma crucial que
os distinguia – os trotskistas continuavam a falar em «revolução permanente»
e a acusar os comunistas oficiais de terem feito abortar a revolução dos
trabalhadores confinando-a a um único país – mas em outros aspectos a única
diferença óbvia era que o estalinismo fora um êxito político enquanto que a
história dos trotskistas fora um puro insucesso.
Foi esse mesmo insucesso, claro, que os posteriores seguidores de Trotsky
acharam tão apelativo. O passado poderia parecer desagradável, mas a sua
análise do que tinha corrido mal – a revolução soviética fora desviada por
uma reacção burocrática análoga ao golpe Termidor que desiludira os
jacobinos em 1794 – iria, achavam eles, garantir-lhes sucesso nos anos
vindouros. No entanto, mesmo Trotsky trazia consigo o bafo do poder –
afinal, tinha representado um papel crucial durante os primeiros anos do
regime soviético e pertenciam-lhe algumas das responsabilidades pelos seus
desvios. Para uma geração nova e politicamente inocente, os insucessos
verdadeiramente apelativos eram os chefes perdidos do comunismo europeu,
os homens e mulheres que nunca tinham tido a oportunidade de exercer
quaisquer responsabilidades políticas.
Assim, os anos 60 assistiram à redescoberta de Rosa Luxemburgo, a
socialista polaca judia assassinada pelos soldados alemães do Frei Korps na
condenada revolução de Berlim em Janeiro de 1919; György Lukacs, o
pensador comunista húngaro, cujos escritos políticos dos anos 20 sugeriam
uma alternativa às interpretações comunistas oficiais da história e da
literatura, antes de ser obrigado a abjurá-las publicamente; e sobretudo
Antonio Gramsci, co-fundador do Partido Comunista Italiano e autor de um
ciclo de artigos brilhantes e inéditos sobre política revolucionária e a história
da Itália, a maior parte escrita nas prisões fascistas, onde penou de 1926 até à
morte, com a idade de 46 anos, em Abril de 1937.
No decorrer dos anos 60, estes três foram copiosamente republicados ou
publicados pela primeira vez, em muitas línguas. Pouco tinham em comum e
a maior parte do que de facto partilhavam era pela negativa: nenhum deles
exercera o poder (excepto no caso de Lukacs, ministro da Cultura durante a
breve ditadura comunista de Béla Kun em Budapeste, de Março a Agosto de
1919); todos eles tinham em determinada altura discordado das práticas
leninistas (no caso de Luxemburgo, mesmo antes de os bolcheviques tomarem
o poder) e todos, como tantos outros, tinham caído numa longa obscuridade à
sombra da teoria e prática comunista oficial.
A exumação dos escritos de Luxemburgo, Lukacs, Gramsci e outros
marxistas esquecidos do início do século XX(11) foi acompanhada pela
redescoberta do próprio Marx. De facto, o desenterrar de um Marx novo e
aparentemente diferente foi crucial para a atracção pelo marxismo durante
estes anos. O «velho» Marx era o Marx de Lenine e de Estaline: o cientista
social vitoriano cujos escritos neo-positivistas anteciparam e autorizaram o
centralismo democrático e a ditadura do proletariado. Mesmo que este Marx
não pudesse ser considerado directamente responsável pelo uso dado aos seus
artigos mais maduros, estava-lhes irrevogavelmente associado. Quer ao
serviço do comunismo, quer da social-democracia, era da velha esquerda.
A nova esquerda, como começara a chamar-se a si mesma em 1965,
procurou novos textos – e encontrou-os nos escritos do jovem Karl Marx, nos
ensaios metafísicos e notas escritos por volta de 1840 quando Marx mal saíra
da adolescência, um jovem filósofo alemão que bebera no historicismo
hegeliano e no sonho romântico da Liberdade suprema. O próprio Marx
tomara a decisão de não publicar alguns destes artigos; de facto, em
consequência das mal sucedidas revoluções de 1848, tinha-se decididamente
afastado deles e voltado para o estudo da economia política e da política
contemporânea a que a partir de então ficaria associado.
Por isso, muitos dos escritos de Marx da sua fase inicial não eram
amplamente conhecidos, nem mesmo pelos eruditos. Quando foram pela
primeira vez publicados na totalidade, sob os auspícios do Instituto Marx-
Engels de Moscovo, em 1932, atraíram poucas atenções. O renascer do
interesse por eles – nomeadamente os Manuscritos Económicos e Filosóficos
e A Ideologia Alemã – surgiu trinta anos depois. De repente, era possível ser-
se marxista ao mesmo tempo que se deitava fora a pesada e poluída bagagem
da Esquerda ocidental tradicional. O jovem Marx estava aparentemente
preocupado com problemas surpreendentemente modernos: como transformar
a consciência «alienada» e libertar os seres humanos da ignorância da sua
verdadeira condição e capacidades; como inverter a ordem de prioridades na
sociedade capitalista e colocar os seres humanos no centro da sua própria
existência; resumindo, como mudar o mundo.
Para uma geração mais velha de estudiosos de Marx e para os partidos
marxistas estabelecidos, esta perversa insistência nos escritos que o próprio
Marx decidira não publicar parecia profundamente misteriosa. Mas era
também implicitamente subversiva: se qualquer pessoa podia ir aos textos e
interpretar Marx a seu gosto, então a autoridade da direcção comunista (e
neste caso também da trotskista) tinha de se desmoronar e com ela grande
parte das justificações para a manutenção das políticas revolucionárias
dominantes como então eram entendidas. Não surpreendentemente, a classe
dirigente marxista reagiu. Louis Althusser – o principal teórico do Partido
Comunista Francês, um especialista em marxismo internacionalmente
reconhecido e professor na École Normale Supérieure em França – construiu
a sua reputação profissional e fugaz fama sobre a pretensão de ter construído
uma divisão entre um «jovem» Marx hegeliano e o Marx materialista
«maduro». Só os escritos deste último, insistia, eram científicos e, portanto,
marxistas(12).
O que os comunistas e outros marxistas conservadores com razão previram
foi a facilidade com que este novo Marx humanista se podia adaptar aos
gostos e modas contemporâneos. As queixas de um romântico como Marx do
início do século XIX contra a modernidade capitalista e o impacto desumano
da sociedade industrial adaptavam-se bem aos protestos contemporâneos
contra a «tolerância repressiva» da Europa Ocidental do pós-guerra. A
aparentemente infinita flexibilidade do Ocidente próspero, liberal, a sua
esponjosa capacidade para absorver paixões e diferenças, enfureciam os seus
críticos. A repressão, insistiam, era endémica na sociedade burguesa. Não se
podia simplesmente evaporar. A repressão que faltava nas ruas tinha
forçosamente de ter ido para qualquer lado: tinha-se deslocado para a própria
alma das pessoas – e, sobretudo, para os seus corpos.
Herbert Marcuse, um intelectual da era Weimar que acabara no Sul da
Califórnia – onde convenientemente adaptou a sua antiga epistemologia ao
seu novo ambiente – apresentou uma fusão útil de todas estas linhas de
pensamento. A sociedade de consumo ocidental, explicou, já não assentava na
exploração económica de uma classe proletária sem posses. Em vez disso,
desviou a energia humana para longe da busca de realização (nomeadamente
a realização sexual) e para o consumo de bens e ilusões. Necessidades reais –
sexuais, sociais, cívicas – são substituídas por falsas, cuja realização é a
finalidade de uma cultura centrada no consumo. Isto estava a empurrar até o
jovem Marx para mais longe do que teria querido ir, mas atraía um vasto
público: não só os jovens que liam os ensaios de Marcuse, mas muitos mais
que aprendiam a linguagem e a tendência geral do argumento à medida que
este adquiria ampla aceitação cultural.
A ênfase na realização sexual enquanto objectivo radical era bastante
ofensiva para uma geração mais velha da ala esquerda. O amor livre numa
sociedade livre não era uma ideia nova – algumas seitas socialistas do início
do século XIX tinham-na abraçado e os primeiros anos da União Soviética
tinham sido de notória lassidão moral – mas a tradição principal do
radicalismo europeu era de rectidão moral e doméstica. A velha Esquerda
nunca fora culturalmente dissidente ou sexualmente aventureira, mesmo
quando era jovem: isso fora assunto de boémios, estetas e artistas, muitas
vezes de pendor individualista ou mesmo politicamente reaccionário.
Mas por muito desanimadora que fosse, a fusão do sexo com a política não
representava qualquer ameaça real – de facto, conforme mais do que um
intelectual comunista se esforçou por salientar, a nova ênfase posta nos
desejos privados acima das lutas colectivas era objectivamente
reaccionária(13). As implicações verdadeiramente subversivas da adaptação
de Marx pela Nova Esquerda estavam noutro lado. Os comunistas e outros
podiam rejeitar conversas sobre libertação sexual. Nem sequer estavam
perturbados com a estética antiautoridade de uma geração mais nova, com as
suas exigências de independência no quarto, na sala de aulas e no local de
trabalho; tudo isso talvez tenha sido imprudentemente descartado como
perturbação passageira à ordem natural das coisas. O que provocou uma
ofensa muito maior foi a emergente tendência dos jovens radicais para
identificar a teoria marxista com as práticas revolucionárias em terras
exóticas, onde nenhuma das categorias e autoridades estabelecidas se parecia
aplicar.
A principal reivindicação da Esquerda histórica na Europa é que
representava – no caso comunista, de facto, encarnava –, o proletariado: a
classe operária industrial. Esta estreita identificação do socialismo com o
trabalho urbano era mais do que uma mera afinidade electiva. Era a marca
distintiva da Esquerda ideológica, que a separava dos bem intencionados
reformadores liberais ou católicos. O voto da classe operária, especialmente o
voto da classe operária masculina, era o alicerce do poder e influência do
Partido Trabalhista Inglês, dos partidos operários holandeses e belgas, dos
Partidos Comunistas da França e Itália e os Partidos Sociais-Democratas da
Europa Central de língua alemã.
Com excepção da Escandinávia, a maioria da população trabalhadora
nunca tinha sido socialista ou comunista – as suas lealdades espalhavam-se
por todo o espectro político. Os partidos tradicionais da ala esquerda estavam
no entanto bastante dependentes dos votos da classe operária e, assim,
identificavam-se estreitamente com ela. Mas em meados dos anos 60, esta
classe estava a desaparecer. Nos países desenvolvidos da Europa Ocidental os
mineiros, operários siderúrgicos, da construção naval, metalúrgicos, têxteis,
ferroviários e operários de todo o tipo estavam a reformar-se em grande
número. Na era que se seguiria, da indústria dos serviços, o seu lugar estava a
ser ocupado por um tipo muito diferente de população trabalhadora.
Isto devia ter sido fonte de alguma ansiedade para a Esquerda
convencional: os sindicatos e a filiação nos partidos e os fundos dependiam
bastante desta base. Mas apesar do desaparecimento incipiente do
proletariado europeu clássico ter sido amplamente anunciado em estudos
sociais da época, a velha Esquerda continuou a insistir na sua «base» da
classe operária. Especialmente os comunistas permaneceram intransigentes.
Havia uma só classe revolucionária: o proletariado; um só partido que podia
representar e desenvolver os interesses dessa classe: os comunistas; e um só
resultado correcto para a luta dos trabalhadores sob orientação comunista: a
Revolução, conforme evidenciado na Rússia cinquenta anos antes.
Mas para quem não estivesse ligado a esta versão da história europeia, o
proletariado já não era o único veículo disponível para a transformação social
radical. No que era agora cada vez mais referido como «Terceiro» mundo,
havia candidatos alternativos: nacionalistas anticolonialistas no Norte de
África e no Médio Oriente; radicais negros nos Estados Unidos (dificilmente
Terceiro Mundo, mas facilmente identificado com ele) e guerrilhas de
camponeses por todo o lado, da América Central ao Mar do Sul da China.
Juntamente com «estudantes» e mesmo apenas os jovens, constituíam um
eleitorado muito maior e mais facilmente mobilizado para as esperanças
revolucionárias que as pacatas e satisfeitas massas operárias do Ocidente
próspero. Após 1956, jovens radicais da Europa Ocidental afastaram-se do
desanimador registo comunista no Leste da Europa e procuraram inspiração
mais longe.
Este novo gosto pelo exótico era em parte alimentado pela descolonização
contemporânea e pelas aspirações dos movimentos de libertação nacionais,
em parte pela projecção nos outros das ilusões perdidas da própria Europa.
Assentava num conhecimento surpreendentemente reduzido sobre estes locais
apesar de uma emergente indústria académica caseira de «estudos
campesinos». As revoluções em Cuba e na China foram especialmente
investidas de todas as qualidades e realizações tão decepcionantemente
ausentes na Europa. A escritora italiana marxista Maria-Antonietta Maccioehi
referiu-se, de forma lírica, a respeito do contraste entre a situação miserável
da Europa contemporânea e a utopia pós-revolucionária da China de Mao,
então no auge da Revolução Cultural: «Na China não há sinais de alienação,
doenças nervosas ou de fragmentação dos indivíduos que encontramos numa
sociedade de consumo. O mundo dos Chineses é compacto, integrado e
absolutamente intacto».
As revoluções camponesas no mundo não europeu possuíam um outro
atributo que atraía os intelectuais e os estudantes europeus ocidentais da
época: eram violentas. Não havia, evidentemente, falta de violência a apenas
a algumas horas para leste, na União Soviética e seus satélites. Mas era a
violência do comunismo oficial do Estado. A violência das revoltas do
terceiro mundo era uma violência libertadora. Como explicou Jean-Paul
Sartre, no seu célebre prefácio de 1961 da edição francesa de The Wretched of
the Earth [Os Desditosos da Terra], de Frantz Fanon, a violência das
revoluções anticolonialistas era «o homem a recriar-se a si mesmo… abater
um europeu é matar dois coelhos de uma cajadada, destruir ao mesmo tempo
um opressor e o homem que ele oprime: fica um homem morto e um homem
livre; o sobrevivente, pela primeira vez, sente sob os pés um solo nacional».
Esta abnegada admiração por modelos estranhos não era nova na Europa –
havia muito que Tocqueville comentara essas atracções da intelligentsia pré-
revolucionária da França do século XVIII; e desempenhava um papel na
atracção pela própria Revolução Soviética. Mas nos anos 60, o exemplo do
Extremo Oriente ou do longínquo Sul estava agora a ser referido para
emulação europeia. Estudantes radicais em Milão e Berlim eram incentivados
a imitar os estratagemas orientais bem sucedidos: numa combinação
reveladora de retórica maoísta com as tácticas trotskistas, o dirigente
estudantil Rudi Dutschke incentivou os seus seguidores em 1968 a
empreenderem «uma longa marcha através das instituições».
Para os mais velhos conservadores, esta fortuita invocação de modelos
alheios ilustrava a indisciplinada facilidade com que a venerável sintaxe
revolucionária da velha Europa estava a resvalar para uma Babel ideológica.
Quando estudantes italianos propuseram que, na nova economia de serviços,
as universidades representassem os epicentros da produção de conhecimento e
que os estudantes eram portanto a nova classe operária, estavam a estender os
termos da troca marxista até ao limite. Mas tinham pelo menos o precedente
dialéctico do seu lado e estavam a jogar dentro das regras aceites. Uns anos
depois, quando Re Nudo, um jornal estudantil milanês, proclamou «Juventude
Proletária da Europa, Jimi Hendrix une-nos!» a dialéctica tinha resvalado para
a paródia. Conforme tinham insistido os seus críticos desde o início, os
rapazes e raparigas dos anos 60 simplesmente não eram sérios.
* * *
E no entanto os anos 60 foram também uma década intensamente
significativa. O terceiro mundo estava em convulsão, da Bolívia ao Sudeste
Asiático. O «segundo» mundo do comunismo soviético só era estável na
aparência e mesmo assim não por muito tempo, como veremos. E a principal
potência do Ocidente, abalada por assassínios e motins raciais, estava a
começar uma guerra em grande escala no Vietname. A despesa americana
com a defesa cresceu regularmente durante os anos 60, atingindo o auge em
1968. A Guerra do Vietname não foi um tema que dividisse a Europa –
deparou com desaprovação em todo o espectro político – mas serviu de
catalizador para a mobilização em todo o continente: até na Inglaterra, onde
se organizaram as maiores manifestações da década explicitamente para
objectar à política dos Estados Unidos. Em 1968, a Campanha de
Solidariedade com o Vietname pôs a marchar dezenas de milhares de
estudantes pelas ruas de Londres até à Embaixada dos Estados Unidos em
Grovesnor Square, exigindo iradamente o fim da guerra no Vietname (e o fim
do apoio pouco convicto do governo trabalhista inglês).
É revelador das peculiares circunstâncias dos anos 60 e das bases sociais
dos mais proeminentes activistas públicos que tantas das disputas e exigências
da época fossem construídas à volta de uma agenda política e não de uma
agenda económica. Tal como 1848, os anos 60 foram uma revolução dos
intelectuais. Mas havia uma dimensão económica nos descontentamentos da
hora, mesmo que muitos dos participantes ainda o ignorassem. Embora a
prosperidade das décadas do pós-guerra não tivesse ainda percorrido o seu
caminho e o desemprego na Europa Ocidental estivesse a níveis
historicamente baixos, um ciclo de disputas laborais por toda a Europa
Ocidental no início dos anos 60 sugeria futuras perturbações.
Por detrás destas greves, e das que iriam surgir em 1968-69, estava um
certo descontentamento com a baixa dos salários reais quando a vaga de
crescimento do pós-guerra começou a decrescer; mas a verdadeira fonte de
queixas eram as condições de trabalho e em particular as relações entre
empregados e patrões. Com excepção dos casos característicos da Áustria,
Alemanha e Escandinávia, as relações administração-trabalhador nas fábricas
e escritórios europeus não eram boas: na típica fábrica em Milão – ou
Birmingham ou da cintura industrial de Paris – trabalhadores militantes
ressentidos estavam às ordens de patrões autocráticos intransigentes, com
muito pouca comunicação entre si. Em partes da Europa Ocidental, as
«relações industriais» eram um oxímoro.
O mesmo se aplicava no mundo dos serviços e profissional: a organização
da Rádio e Televisão Nacional em França, a ORTF, e o Commissariat à
l’Energie Atomique, para só citar dois casos proeminentes, fervilhavam de
pessoal técnico ressentido, dos jornalistas aos engenheiros. Os estilos
tradicionais de autoridade, disciplina e modo de falar (ou, na verdade, de
vestir) não tinham conseguido acompanhar as rápidas transformações sociais
e culturais da última década. Fábricas e escritórios eram dirigidos de cima
para baixo sem qualquer contributo de baixo. Os gerentes podiam disciplinar,
humilhar ou despedir o seu pessoal como quisessem. Aos empregados era
muitas vezes concedido pouco respeito, e as suas opiniões desprezadas. Havia
apelos generalizados para uma maior iniciativa dos trabalhadores, mais
autonomia profissional, mesmo para a «autogestão» (autogestion, em
francês).
Estes eram temas que não se tinham destacado nos conflitos industriais
europeus desde as ocupações da Frente Popular em 1936. Tinham geralmente
escapado à atenção dos sindicatos e dos partidos políticos, concentrados como
estavam em exigências mais tradicionais e facilmente manipuláveis: salários
mais altos, menos horas. Mas coincidiram muito prontamente com a retórica
dos estudantes radicais (com os quais os operários militantes pouco mais
tinham em comum) que exprimiam queixas semelhantes quanto às suas
sobrelotadas e mal administradas universidades.
A sensação de exclusão da tomada de decisões, e portanto do poder,
reflectiu outra dimensão dos anos 60, cujas implicações não foram
completamente apreciadas na época. Graças ao sistema de duas voltas das
eleições legislativas e a eleição presidencial por sufrágio universal, a vida
política em França tinha-se consolidado em meados dos anos 60 num sistema
estável de coligações eleitorais e parlamentares construídas à volta de duas
famílias políticas: comunistas e socialistas à esquerda, centristas e gaullistas
na direita. Por acordo tácito de todo o espectro político, os partidos mais
pequenos e grupos periféricos eram obrigados a unir-se a uma das quatro
grandes unidades, ou então eram excluídos da política principal.
Por razões diferentes, em Itália e na Alemanha estava a acontecer o
mesmo. A partir de 1963, uma vasta coligação de centro-esquerda em Itália
ocupou quase todo o espaço político nacional, sendo apenas excluídos
comunistas e ex-fascistas. A República Federal da Alemanha foi governada a
partir de 1966 por uma «Grande Coligação» de democratas-cristãos e sociais-
democratas que, juntamente com os democratas independentes,
monopolizaram o Bundestag. Estes acordos garantiram estabilidade política e
continuidade; mas como resultado, nas três maiores democracias da Europa
Ocidental a oposição radical foi empurrada não só para as franjas como
também para fora do parlamento. «O sistema» parecia de facto ser dirigido
exclusivamente por «eles», conforme havia algum tempo a Nova Esquerda
vinha insistindo. Fazendo da necessidade virtude, os estudantes radicais
declararam-se oposição «extra-parlamentar», e a política passou para as ruas.
O exemplo mais conhecido, em França durante a Primavera de 1968, foi
também o de mais curta duração. Deve a sua proeminência mais ao valor de
choque e ao simbolismo especial da insurreição nas ruas de Paris do que a
quaisquer efeitos duradouros. Os «acontecimentos» de Maio começaram no
Outono de 1967 em Nanterre, um desolador subúrbio a ocidente de Paris e
onde se localizava uma das extensões construídas à pressa da antiga
Universidade de Paris. Os dormitórios de estudantes em Nanterre havia algum
tempo que albergavam uma população variada de estudantes legítimos,
radicais «clandestinos» e um pequeno número de vendedores e consumidores
de drogas. As rendas não eram pagas. Havia também um considerável
movimento nocturno de um lado para o outro entre os dormitórios masculinos
e femininos, apesar das rigorosas proibições oficiais(14).
A administração académica em Nanterre estivera relutante em provocar
desordens ao fazer cumprir as regras, mas em Janeiro de 1968 expulsaram um
«ocupante ilegal» e ameaçaram com medidas disciplinares um estudante
legítimo, Daniel Cohn-Bendit, por ter insultado um ministro do governo em
visita(15). Seguiram-se outras manifestações e, a 22 de Março, a seguir à
prisão de estudantes radicais que tinham atacado o edifício da American
Express no centro de Paris, formou-se um movimento, com Cohn-Bendit
entre os seus dirigentes. Duas semanas depois o campus de Nanterre foi
fechado após mais recontros de estudantes com a polícia, e o Movimento – e a
acção – mudaram para os veneráveis edifícios da universidade dentro e à
volta da Sorbonne, no centro de Paris.
Vale a pena insistir nos temas paroquiais e caracteristicamente próprios
que desencadearam os acontecimentos de Maio, para que a linguagem
ideologicamente carregada e os ambiciosos programas das semanas seguintes
não nos induzam em erro. A ocupação da Sorbonne pelos estudantes e as
subsequentes barricadas nas ruas e recontros com a polícia, nomeadamente
nas noites de 10-11 de Maio e de 24-25 de Maio foram conduzidos por
representantes da Jeunesse Communiste Révolutionnaire (trotskista), assim
como por funcionários dos sindicatos estabelecidos de estudantes e de
professores assistentes. Mas a retórica marxista que a acompanhou, ao mesmo
tempo que bastante familiar, disfarçava um espírito essencialmente anarquista
cujo objectivo imediato era a remoção e a humilhação da autoridade.
Neste sentido, conforme insistiu com razão a desdenhosa direcção do
Partido Comunista Francês, aquilo era uma festa, não uma revolução. Tinha
todo o simbolismo de uma revolta francesa tradicional – manifestantes
armados, barricadas nas ruas, ocupação de edifícios e cruzamentos
estratégicos, exigências políticas e contra-exigências – mas nenhuma da
substância. Os jovens homens e mulheres das multidões de estudantes eram
esmagadoramente de classe média – na verdade, muitos eram da própria
burguesia parisiense: «fils à papa» (meninos do papá), como o dirigente do
PCF Georges Marchais ironicamente lhes chamava. Eram os seus pais, tias e
avós que olhavam para eles das janelas de confortáveis edifícios de
apartamentos burgueses quando se enfileiravam nas ruas para desafiar o poder
armado do Estado francês.
Georges Pompidou, o primeiro-ministro gaullista, tomou rapidamente
providências quanto aos distúrbios. Após os primeiros confrontos, mandou
retirar a polícia, apesar das críticas no seio do seu próprio partido e do
governo, deixando os estudantes de Paris com o controlo de facto da sua
universidade e do bairro circundante. Pompidou – e o seu presidente, De
Gaulle – estavam embaraçados com as bem publicitadas actividades dos
estudantes. Mas, excepto muito brevemente no início, quando foram
apanhados de surpresa, não se sentiram ameaçados por eles. Quando chegou a
altura, podia-se contar com a polícia, especialmente a polícia de choque –
recrutada entre os filhos de camponeses provincianos pobres e nunca
relutantes em rachar as cabeças da privilegiada juventude parisiense – para
restaurar a ordem. O que perturbava Pompidou era uma coisa muito mais
séria.
Os distúrbios estudantis e as ocupações tinham lançado a chispa para uma
série de greves e ocupações dos locais de trabalho a nível nacional que
levaram a França a quase parar em fins de Maio. Alguns dos primeiros
protestos – de repórteres na Televisão Francesa e na Rádio, por exemplo –
foram dirigidos aos seus chefes políticos devido à cobertura censurada do
movimento dos estudantes e em especial pela excessiva brutalidade de alguns
polícias de choque. Mas à medida que a greve geral alastrava, às fábricas de
material aeronáutico de Toulouse e às indústrias de electricidade e
petroquímica e, mais ameaçadoramente, às grandes fábricas Renault na orla
de Paris, tornou-se claro que estava em jogo qualquer coisa mais do que
alguns milhares de estudantes agitados.
As greves, ocupações, ocupações de escritórios e manifestações associadas
e as marchas foram o maior movimento de protesto social na França moderna,
de longe muito mais vasto do que os de Junho de 1936. Mesmo em
retrospectiva é difícil dizer com certeza qual a sua razão. A organização
sindical dirigida pelos comunistas, a Confédération Générale du Travail
(CGT), começou por ficar desorientada: quando os organizadores dos
sindicatos tentaram assumir o controlo da greve da Renault foram silenciados
e um acordo estabelecido entre o governo, sindicatos e patrões foi
inequivocamente rejeitado pelos trabalhadores da Renault, apesar da sua
promessa de melhoria dos salários, menos horas e mais diálogo.
Os milhões de homens e mulheres que haviam parado de trabalhar tinham
pelo menos uma coisa em comum com os estudantes. Fossem quais fossem as
suas queixas locais particulares, estavam acima de tudo frustrados com as
suas condições de vida. Não queriam tanto um melhor acordo no trabalho
como alterar qualquer coisa na sua forma de vida; panfletos e manifestos e
discursos diziam-no explicitamente. Estas eram boas notícias para as
autoridades públicas na medida em que diluíam a disposição dos grevistas e
lhes dirigia a atenção para longe dos objectivos políticos, mas sugeria um
mal-estar geral que seria difícil de abordar.
A França era próspera e segura e alguns comentadores conservadores
concluíram que a onda de protestos era portanto conduzida não pelo
descontentamento, mas pelo simples tédio. Mas havia uma frustração
genuína, não só nas fábricas como as da Renault, onde as condições de
trabalho havia muito que não eram satisfatórias, mas em todo o lado. A V
República tinha acentuado o antigo hábito francês de concentrar o poder num
sítio e numa mão-cheia de instituições. A França era dirigida, e vista como
sendo dirigida, por uma minúscula elite parisiense: socialmente exclusiva,
culturalmente privilegiada, altivamente hierárquica e inabordável. Até alguns
dos seus próprios membros (e especialmente os seus filhos) achavam isto
sufocante.
O próprio De Gaulle, mais idoso, não conseguiu, pela primeira vez desde
1958, perceber o curso dos acontecimentos. A sua reacção inicial tinha sido
fazer um discurso televisivo ineficaz e depois desaparecer de vista(16).
Quando tentou de facto mudar em seu favor aquilo que julgava ser a
disposição antiautoridade nacional num referendo no ano seguinte e propôs
uma série de medidas destinadas a descentralizar o governo e a tomada de
decisões em França, foi clara e humilhantemente derrotado; após o que se
demitiu, reformou e retirou para a sua terra, para aí morrer uns meses depois.
Entretanto Pompidou provara ter tido razão em deixar que passassem as
manifestações de estudantes. No auge das ocupações estudantis e movimento
grevista em aceleração, alguns chefes estudantis e uma mão cheia de políticos
mais velhos a quem a experiência deveria ter prestado melhor conselho
(incluindo o anterior primeiro-ministro Pierre Mendès-France e o futuro
presidente François Mitterrand) declararam que as autoridades eram
impotentes: o poder estava agora à disposição de quem o quisesse tomar. Era
uma conversa perigosa e insensata: conforme Raymond Aron comentou na
altura, «banir um Presidente eleito por sufrágio universal não é a mesma coisa
que depor um rei». De Gaulle e Pompidou foram rápidos a tirar vantagens dos
erros da Esquerda. O país, avisaram, estava ameaçado por um golpe
comunista(17). Em finais de Maio, De Gaulle anunciou eleições repentinas,
convocando os Franceses para escolherem entre um governo legítimo e a
anarquia revolucionária.
Para dar o pontapé de saída à sua campanha eleitoral, a Direita encenou
uma enorme contramanifestação. Muito maior ainda que as manifestations
dos estudantes de duas semanas antes, a multidão em massa nos Campos
Elísios a 30 de Maio provou ser mentira a asserção da Esquerda de que as
autoridades tinham perdido o controlo. A polícia recebeu instruções para
reocupar os edifícios da universidade, fábricas e escritórios. Nas eleições
parlamentares que se seguiram, os partidos gaullistas governantes obtiveram
uma esmagadora vitória, aumentando a sua votação em mais de um quinto e
garantindo uma impressionante maioria na Assembleia Nacional. Os
trabalhadores voltaram ao trabalho. Os estudantes foram para férias.
Os acontecimentos de Maio em França tiveram um impacto psicológico
fora de todas as proporções do seu real significado. Aqui estava uma
revolução aparentemente a desenrolar-se em tempo real e perante um público
televisivo internacional. Os seus dirigentes eram maravilhosamente
telegénicos; jovens atraentes e eloquentes dirigindo a juventude francesa
através dos boulevards históricos da margem esquerda de Paris(18). As suas
exigências – quer de um ambiente académico mais democrático, o fim da
censura moral ou simplesmente um mundo melhor – eram acessíveis e, apesar
dos punhos cerrados e retórica revolucionária, nada ameaçadoras. O
movimento grevista nacional, embora misterioso e inquietante, não fez mais
do que aumentar a aura das acções dos estudantes: tendo muito por acaso
detonado a explosão do ressentimento social, foi-lhes retrospectivamente
atribuído terem sido eles a precipitá-la e até a verbalizá-la.
Acima de tudo, os acontecimentos de Maio em França foram curiosamente
pacíficos segundo os padrões da turbulência revolucionária nos outros sítios
ou no passado da própria França. Houve bastante violência contra a
propriedade e alguns estudantes e polícias tiveram de ser hospitalizados a
seguir à «noite das barricadas» a 24 de Maio. Mas ambos os lados se
contiveram. Nenhum estudante foi morto em Maio de 1968; os representantes
políticos da República não foram atacados e as suas instituições nunca foram
seriamente questionadas (com excepção do sistema da universidade francesa,
onde tudo começou, que sofreu fractura interna e descrédito, sem sofrer
quaisquer reformas significativas).
Os radicais de 1968 imitaram até à caricatura o estilo e os choques de
revoluções passadas – estavam, afinal, a representar no mesmo palco. Mas
repudiaram repetir a sua violência. Como consequência, o «psicodrama»
francês (Aron) de 1968 entrou na mitologia popular quase de imediato como
objecto de nostalgia, uma luta estilizada em que as forças da Vida e Energia e
Liberdade se alinhavam contra o marasmo entorpecedor e cinzento dos
homens do passado. Alguns dos proeminentes animadores de massas de Maio
seguiram para uma carreira política convencional: Alain Krivine, o
carismático licenciado chefe dos estudantes trotskistas é hoje, passados
quarenta anos, o chefe sexagenário do mais velho partido trotskista de França.
Dany Cohn-Bendit, expulso de França em Maio, foi um respeitado vereador
municipal em Frankfurt e daí um representante do Partido Os Verdes no
Parlamento Europeu.
Mas é sintomático do espírito fundamentalmente apolítico de Maio de
1968 que os livros franceses mais vendidos sobre o tema, uma geração
depois, não sejam obras de análise histórica, muito menos os panfletos
doutrinais sérios da época, mas colecções de graffiti e slogans
contemporâneos. Escolhidos das paredes, cartazes e ruas da cidade, estas
frases humorísticas incentivam os jovens a fazer amor, divertirem-se, a
troçarem das autoridades, a fazerem de um modo geral o que lhes sabia bem –
e mudar o mundo quase como que um subproduto. Sous le pavé, como dizia o
lema, la plage. («Sob as pedras da calçada, a praia»). O que os escritores de
slogans de Maio de 68 nunca fazem é apelar aos seus leitores que
prejudiquem gravemente alguém. Até mesmo os ataques a De Gaulle o tratam
mais como um pensionista muito bem pago do que como um antagonista
político. Sugerem irritação e frustração, mas muito pouca raiva. Esta iria ser
uma revolução sem vítimas, o que afinal significa que não era revolução
nenhuma.
Em Itália a situação era muito diferente, apesar das semelhanças
superficiais na retórica dos movimentos estudantis. Em primeiro lugar, o
ambiente social dos conflitos em Itália era bastante diferente. A extensa
migração do Sul para Norte no decorrer da primeira metade da década tinha
gerado em Milão, Turim e outras cidades industriais do Norte uma procura de
transporte, serviços, educação e sobretudo alojamento que os governos do
país nunca conseguiram abordar. O «milagre económico» italiano chegou
mais tarde do que aos outros lados e a transição de uma sociedade agrária fora
mais abrupta.
Como consequência, as fracturas da industrialização de primeira geração
sobrepuseram-se e colidiram com os descontentamentos da modernidade. Os
operários especializados e semiespecializados – geralmente do Sul, muitos
deles mulheres – nunca foram absorvidos no Norte industrializado pelos
sindicatos estabelecidos de operários masculinos especializados. As
tradicionais tensões entre trabalhador/patrão eram agora multiplicadas por
disputas entre especializados e não especializados, sindicalizados e
trabalhadores não organizados. Os mais bem pagos, mais bem protegidos, os
empregados especializados das fábricas FIAT, da Companhia Pirelli, exigiam
uma maior participação nas decisões administrativas – sobre horas
extraordinárias, diferenças salariais e medidas disciplinares. Os trabalhadores
não especializados aspiravam a alguns destes objectivos e opuseram-se a
outros. A sua principal objecção eram as quotas de produção extenuantes, o
ritmo impiedoso das linhas de produção mecanizada e as condições de
trabalho sem segurança.
A economia italiana do pós-guerra foi transformada por milhares de
pequenas empresas de engenharia, têxteis e química, cujos empregados não
possuíam, na sua maioria, recursos legais ou institucionais contra as
exigências dos seus patrões. O Estado-providência italiano nos anos 60 era
ainda um edifício improvisado que só atingiria a maioridade na década
seguinte (em grande parte graças às convulsões sociais dos anos 60) e muitos
trabalhadores não especializados e as suas famílias ainda não tinham direitos
no local de trabalho nem acesso aos benefícios de família (em Março de 1968
houve uma greve a nível nacional para exigir um esquema nacional de
pensões abrangente). Estes não eram temas que os partidos tradicionais e os
sindicatos da Esquerda estivessem aptos a encarar. Pelo contrário, a sua
principal preocupação na altura era a diluição das velhas instituições operárias
por esta nova e indisciplinada força de trabalho. Quando as operárias
semiespecializadas procuraram apoio no sindicato comunista para as suas
queixas sobre os ritmos de trabalho acelerados, foram em vez disso
aconselhadas a exigir compensações mais elevadas.
Nestas circunstâncias, os principais beneficiários das tensões sociais na
Itália não foram as organizações estabelecidas da Esquerda, mas uma mão-
cheia de redes de trabalho informais da esquerda «extraparlamentar». Os seus
dirigentes – comunistas dissidentes, teóricos académicos da autonomia do
trabalhador e porta-vozes de organizações de estudantes – foram mais rápidos
a identificar as novas fontes de descontentamento no local de trabalho
industrial e a absorvê-las nos seus projectos. Além disso, as próprias
universidades proporcionavam uma irresistível analogia. Também ali uma
força de trabalho nova e não organizada (o influxo maciço de estudantes de
primeira geração) enfrentou condições de trabalho e de vida profundamente
insatisfatórias. Também ali uma velha elite exercia um poder de decisão sem
entraves sobre as massas de estudantes, impondo trabalho a fazer, testes,
níveis e penalizações a gosto.
Desta perspectiva, administradores e sindicatos estabelecidos e outras
organizações profissionais em escolas e universidades – não menos que nas
fábricas e oficinas – partilhavam um interesse adquirido, «objectivo», no
status quo. O facto de a população estudantil italiana provir esmagadoramente
da classe média urbana não era impedimento para esta argumentação – como
produtores e consumidores de conhecimento, representavam (a seus próprios
olhos) uma ameaça ao poder e à autoridade ainda maior que as forças
tradicionais do proletariado. Na ideia da Nova Esquerda não era a origem
social de um grupo que contava, antes a sua capacidade para perturbar as
instituições e estruturas da autoridade. Uma sala de aulas era um bom sítio
para começar, tanto como a oficina de máquinas.
A adaptabilidade proletária dos políticos radicais italianos nestes anos está
bem captada neste conjunto de exigências posto a circular num liceo (escola
secundária) em Milão: os objectivos do movimento estudantil, declarava,
eram «o controlo e eliminação final de notas e chumbos e portanto a abolição
da selecção nas escolas; o direito de todos à educação e a bolsas de estudo
para licenciatura; liberdade de reunião; reunião geral de manhã;
responsabilidade dos professores perante os alunos; afastamento de qualquer
professor reaccionário e autoritário; composição do currículo a partir de
baixo»(19).
O ciclo de protestos e fracturas de finais dos anos 60 em Itália teve início
em Turim em 1968 com as objecções dos estudantes aos planos de mudança
de parte da Universidade (Faculdade de Ciências) para os subúrbios – um eco
dos protestos a sucederem em Nanterre exactamente na mesma altura. Havia
também um paralelo no subsequente encerramento, em Março de 1968, após
distúrbios de estudantes da Universidade de Roma, ali em protesto contra um
projecto-lei do Parlamento para a reforma das universidades. Mas ao contrário
do movimento estudantil francês, o interesse dos organizadores dos
estudantes italianos na reforma das instituições académicas foi sempre
secundário à sua identificação com o movimento operário, conforme sugerem
os nomes das suas organizações – Avanguardia Operaia ou Potere Operaio
(«Vanguarda Operária», «Poder Operário»).
As disputas laborais que tiveram início nas fábricas de Milão da
Companhia Pirelli, em Setembro de 1968, duraram até ao mês de Novembro
de 1969 (quando o governo pressionou a Pirelli a conceder aos grevistas as
suas principais exigências) e forneceram um contraponto industrial e um
incentivo aos manifestantes-estudantes. O movimento grevista de 1969 foi o
maior da história italiana e teve um impacto mobilizador e politizante nos
jovens radicais italianos muito maior do que os breves protestos de um mês
em França, no ano anterior. O «Outono quente» desse ano, com as suas greves
selvagens e as ocupações espontâneas por pequenos grupos de trabalhadores
exigindo voz activa na forma como as fábricas eram dirigidas, levou uma
geração de teóricos estudantis italianos e os seus seguidores a concluir que a
sua completa rejeição do «Estado burguês» era a táctica certa. A autonomia
dos trabalhadores – tanto táctica como objectiva – era o futuro. As reformas –
nas escolas e nas fábricas – não só eram inatingíveis como indesejáveis. O
compromisso era a derrota.
Só que o motivo que levou os marxistas «não oficiais» italianos a tomarem
este caminho mantém-se tema de debate. A estratégia tradicionalmente subtil
e acomodatícia do Partido Comunista Italiano deixou-o exposto à acusação de
trabalhar no interior do «sistema», de ter interesse em manter a estabilidade,
sendo assim, como acusavam os críticos da ala esquerda, «objectivamente
reaccionário». E o sistema político italiano propriamente dito era
simultaneamente corrupto e aparentemente impermeável à mudança: nas
eleições parlamentares de 1968 os democratas-cristãos e os comunistas
aumentaram ambos os seus votos e os outros partidos nada conseguiram. Mas
embora isto possa explicar o descontentamento da Esquerda extraparlamentar,
não pode explicar totalmente a sua deriva para a violência.
O «maoísmo» – ou pelo menos um fascínio acrítico pela Revolução
Cultural chinesa então em plena actividade – era mais extenso na Itália do que
em qualquer outro sítio da Europa. Partidos, grupos e jornais de convicção
maoísta, reconhecível pela sua insistência no adjectivo «marxista-leninista»
(para os distinguirem dos menosprezados comunistas oficiais), surgiram em
rápida sucessão nesses anos, inspirados pelos Guardas Vermelhos da China e
enfatizando a identidade de interesses que ligavam os trabalhadores aos
intelectuais. Teóricos estudantes em Roma e Bolonha até imitavam a retórica
dos teóricos doutrinários de Pequim, dividindo as disciplinas académicas em
«vestígios pré-burgueses» (Grego e Latim), «puramente ideológicos» (por
exemplo, História) e os «indirectamente ideológicos» (Física, Química,
Matemática).
A putativa combinação maoísta de romantismo revolucionário e dogma
operário era encarnada no jornal (e movimento) Lotta Continua («Luta
Contínua») – cujo nome, como era frequentemente o caso, continha o seu
projecto. O Lotta Continua apareceu pela primeira vez no Outono de 1969,
altura em que a deriva para a violência já estava em marcha. Entre os slogans
das manifestações estudantis de Turim em Junho de 1968, encontravam-se:
«Não à paz social nas fábricas» e «Só a violência vale onde reina a
violência». Nos meses que se seguiram, as manifestações nas universidades e
nas fábricas viram acentuar-se o gosto pela violência, tanto retórica
(«Esmaguem o Estado, não o reformem!») como real. A canção mais popular
do movimento estudantil italiano durante esses meses era, apropriadamente,
La Violenza.
As ironias de tudo isto não passavam despercebidas aos contemporâneos.
Como observou o realizador de cinema Pier Paolo Pasolini, no início dos
confrontos de estudantes com a polícia em Roma nos jardins da Villa
Borghese, os papéis de classe estavam agora invertidos: os filhos
privilegiados da burguesia andavam a gritar slogans revolucionários e a
espancar os filhos mal pagos dos meeiros do Sul, encarregados de preservar a
ordem cívica. Para quem tenha uma recordação adulta do passado recente
italiano, esta deriva para a violência só podia acabar mal. Enquanto os
estudantes franceses haviam acalentado a ideia de que a autoridade pública se
poderia revelar vulnerável à ruptura a partir de baixo, um capricho que as
instituições gaullistas bem enraizadas condescenderam em permitir-lhes
impunemente, os radicais da Itália tinham boas razões para acreditar que
podiam de facto ser bem sucedidos em destruir a essência da República pós-
fascista – e estavam ansiosos por experimentar. A 24 de Abril de 1969 foram
colocadas bombas na Feira Industrial de Milão e na estação central dos
caminhos-de-ferro. Oito meses depois, após terem sido resolvidos os conflitos
da Pirelli e de ter terminado o movimento grevista, fizeram explodir o Banco
Agrícola na Piazza Fontana em Milão. A «estratégia da tensão» subjacente
aos anos 70 tinha começado.
Os radicais italianos nos anos 60 podiam ser acusados de ter esquecido o
passado recente do seu país. Na Alemanha Ocidental, o oposto era verdade.
Até 1961, uma geração do pós-guerra fora educada para encarar o nazismo
como responsável pela guerra e pela derrota; mas os seus aspectos
verdadeiramente horríveis eram sistematicamente subestimados. O
julgamento nesse ano em Jerusalém de Adolf Eichmann, a que se seguiram,
de 1963 a 1965, os chamados «Julgamentos de Auschwitz» em Frankfurt,
despertou tardiamente a atenção pública alemã para os males do regime nazi.
Em Frankfurt, 273 testemunhas atestaram a dimensão e gravidade dos crimes
alemães contra a humanidade, indo muito para além dos 23 homens (22 SS e
1 kapo de campo) sob acusação. Em 1967, Alexander e Margarete
Mitscherlich publicaram o seu muito influente estudo sobre Die Unfähigkeit
zu trauen («A Incapacidade de Lamentar»), argumentando que o
reconhecimento oficial da Alemanha Ocidental do mal nazi nunca fora
acompanhado por um reconhecimento individual genuíno das
responsabilidades.
Os intelectuais da Alemanha Ocidental adoptaram vigorosamente esta
ideia. Escritores, dramaturgos e realizadores consagrados – Günter Grass,
Martin Walser, Hans-Magnus Enzensberger, Jürgen Habermas, Rolf
Hochhuth, Edgar Reitz, todos nascidos entre 1927 e 1932 – agora centravam
cada vez mais o seu trabalho no nazismo e na incapacidade em aceitá-lo. Mas
um grupo mais jovem de intelectuais, nascidos durante ou logo a seguir à
Segunda Guerra Mundial, assumiu uma posição mais dura. Sem
conhecimento directo do que sucedera antes, viam todos os erros alemães
através do prisma dos insucessos, não tanto do nazismo, como da República
de Bona. Assim, para Rudi Dutschke (nascido em 1940), Peter Schneider
(1940), Gudrun Ensslin (1940) ou para Andreas Baader, ligeiramente mais
novo (nascido em 1943) e Reiner Werner Fassbinder (1945), a democracia da
Alemanha Ocidental do pós-guerra não era a solução, era o problema. O
casulo apolítico consumista, protegido pela América, da Bundesrepublik não
era só imperfeito e amnésico; tinha conspirado activamente com os seus
senhores ocidentais para negar o passado alemão, enterrá-lo em bens
materiais e em propaganda anticomunista. Até os seus atributos
constitucionais não eram autênticos: como disse Fassbinder, «A nossa
democracia foi decretada para a zona de ocupação ocidental, não fomos nós
mesmos a lutar por ela.»
A juvenil intelligentsia radical dos anos 60 alemães acusava a República
de Bona de encobrir os crimes da sua geração fundadora. Muitos dos homens
e mulheres nascidos na Alemanha durante a guerra e nos anos do imediato
pós-guerra nunca conheceram os seus pais: quem tinham sido, o que haviam
feito. Na escola não lhes ensinavam nada sobre a história alemã pós-1933 (e
também pouco mais sobre a era Weimar). Conforme Peter Schneider e outros
iriam mais tarde explicar, viviam num vácuo construído sobre um vazio:
mesmo em casa – na verdade, sobretudo em casa – ninguém falava «nisso».
Os seus pais, o grupo de alemães nascidos entre 1910 e 1930, não se
recusavam só a discutir o passado. Descrentes das promessas políticas e das
ideias grandiosas, a sua atenção estava permanentemente e algo
desconfortavelmente centrada no bem-estar material, na estabilidade e na
respeitabilidade. Como Adenauer compreendera, a sua identificação com a
América e com «o Ocidente» resultava em grande parte de um desejo de
evitar associações com toda a bagagem do «germanismo». Como resultado,
aos olhos dos seus filhos e filhas, não representavam nada. As suas
realizações materiais estavam manchadas pela sua herança moral. Se alguma
vez houve uma geração cuja rebelião se fundou verdadeiramente na rejeição
de tudo o que os pais representavam – tudo: orgulho nacional, nazismo,
dinheiro, o Ocidente, a paz, estabilidade, lei e democracia – foram os «filhos
de Hitler», os radicais alemães ocidentais dos anos 60.
Aos seus olhos, a República Federal transpirava fatuidade e hipocrisia.
Primeiro foi o caso Spiegel. Em 1962, a revista semanal de maior tiragem
publicara uma série de artigos investigando a política de defesa da Alemanha
Ocidental que sugeriam negociações suspeitas do ministro da Defesa bávaro
de Adenauer, Franz-Josef Strauss. Com autorização de Adenauer e a mando
de Strauss, o governo perseguiu o jornal, prendeu o seu editor e vasculhou os
seus escritórios. Este despudorado abuso dos poderes da polícia para suprimir
reportagens indesejáveis atraiu a condenação universal – até o
impecavelmente conservador Frankfurter Allgemeine Zeitung observou que
«isto é um embaraço para a nossa democracia, que não pode viver sem uma
imprensa livre, sem a liberdade invisível da imprensa».
Depois, quatro anos mais tarde, em Dezembro de 1966, os governantes
democratas-cristãos escolheram como chanceler para suceder a Ludwig
Erhard o ex-nazi Kurt-Georg Kiesinger. O novo Chanceler tinha sido
funcionário pago do Partido durante doze anos e a sua nomeação foi tomada
por muitos como uma evidência conclusiva do impenitente cinismo da
República de Bona. Se o chefe do governo não se sentia envergonhado por ter
apoiado Hitler durante doze anos, quem podia levar a sério as profissões de
arrependimento da Alemanha Ocidental ou o empenhamento nos valores
liberais numa altura em que as organizações neo-nazis estavam uma vez mais
a aparecer nas franjas políticas? Como Grass exprimiu numa carta aberta a
Kiesinger, num momento de ressurgimento neo-nazi:
«Como irão os jovens no nosso país encontrar argumentos contra o Partido
que morreu há duas décadas mas que está a ser ressuscitado como NPD se o
senhor sobrecarregar a Chancelaria com o peso ainda muito considerável do
vosso passado?»
Kiesinger chefiou o governo durante três anos, de 1966 a 1969. Durante
esses anos, a Esquerda extraparlamentar alemã (como decidira descrever-se)
passou para as universidades com enorme êxito. Algumas das causas
assumidas pelo SDS, a União dos Estudantes Socialistas, eram agora lugar-
comum por toda a Europa Ocidental continental: dormitórios e aulas
sobrelotados; professores distantes e inacessíveis; ensino monótono e sem
imaginação. Mas os temas escaldantes desses anos eram característicos da
Alemanha Ocidental. O campus mais animado era o da Universidade Livre de
Berlim (fundado em 1948 para compensar o encarceramento do campus da
Universidade Humboldt na Zona Comunista) para onde tinham ido muitos
estudantes para evitar o serviço militar obrigatório(20).
O antimilitarismo tinha um lugar especial no protesto estudantil alemão
como forma significativa de condenar a República Federal e o seu antecessor
nazi. Com o crescimento da oposição à Guerra do Vietname esta fusão entre
passado e presente estendeu-se até ao mentor militar da Alemanha Ocidental.
A América, sempre «fascista» na retórica de uma minoria de radicais, tornou-
se agora o inimigo de um eleitorado muito mais vasto. De facto, atacar a
«Amerika» (sic) pela sua guerra criminosa no Vietname servia quase como
substituto de discussão sobre os crimes de guerra da própria Alemanha. Na
peça de 1968 de Peter Weiss Vietnam-Discourse é explicitamente estabelecido
um paralelo entre os Estados Unidos e os Nazis.
Se a América não era melhor do que o regime de Hitler – se, como num
slogan da época, US=SS – então faltava um pequeno passo para tratar a
própria Alemanha como o Vietname: ambos os países estavam divididos por
ocupantes estrangeiros, ambos tinham sido desamparadamente apanhados
pelos conflitos de outros. Esta maneira de pensar permitiu que os radicais da
Alemanha Ocidental desprezassem a República de Bona simultaneamente
pelas suas associações capitalistas e pelo passado fascista. Mais
ameaçadoramente, autorizava a Esquerda radical a reciclar a afirmação de que
eram os próprios Alemães as verdadeiras vítimas – uma afirmação até então
identificada com a Direita longínqua(21).
Não nos deveríamos então surpreender ao sabermos que apesar de toda a
sua raiva contra a «Geração de Auschwitz», os jovens alemães dos anos 60
não estavam de facto muito preocupados com o holocausto judeu. De facto,
tal como os seus pais, sentiam-se pouco à-vontade com a «questão judaica».
Preferiam agrupá-la em exigências académicas para as aulas de
«Faschismustheorie», obscurecendo a dimensão racista do nazismo e
enfatizando em vez disso as suas ligações à produção capitalista e ao poder
imperial – e a partir daí para Washington e Bona. O «aparelho estatal
verdadeiramente repressivo» eram os lacaios imperiais de Bona; as suas
vítimas eram os que se opunham à guerra da América no Vietname. Nesta
lógica populista peculiar, o tablóide de pouca tiragem Bild Zeitung, com as
suas críticas devastadoras às políticas dos estudantes, era um Der Stürmer
renascido; os estudantes eram os novos «judeus» e os campos de
concentração nazis não eram mais do que uma metáfora utilizável para os
crimes do imperialismo. Nas palavras de um slogan escrito nos muros de
Dachau em 1966 por um grupo de radicais, «o Vietname é a Auschwitz da
América».
A Esquerda extraparlamentar alemã perdeu assim o contacto com as suas
raízes no mainstream antinazi. Furiosas com o Partido Social-Democrata de
Willy Brandt por manter uma coligação governamental com Kiesinger, as
antigas organizações sociais-democratas dos estudantes mudaram-se
rapidamente para as franjas. Mais ostensivamente anti-Ocidente do que os
movimentos dos anos 60 em qualquer parte da Europa, as suas seitas
constituintes adoptaram deliberadamente nomes do terceiro mundo: maoístas,
claro, mas também «indianos», «mescaleros» e afins. Esta ênfase anti-
Ocidente por sua vez alimentou uma contracultura que era conscientemente
exótica e mais do que um pouco bizarra, mesmo para padrões da época.
Uma variante caracteristicamente alemã da confusão cultural dos anos 60
encarava o sexo e a política como mais estreitamente enredados do que em
qualquer outro lado. Seguindo Marcuse, Erich Fromm, Wilhelm Reich e
outros alemães do século XX teóricos da repressão sexual e política, círculos
radicais na Alemanha (e na Áustria, ou pelo menos em Viena) teciam loas à
nudez, ao amor livre e educação infantil antiautoritária. As muito faladas
neuroses sexuais de Hitler eram livremente citadas para explicar o nazismo.
E, uma vez mais, fazia-se uma bizarra e arrepiante analogia em certos grupos
entre as vítimas judias de Hitler e a juventude dos anos 60, mártires do regime
sexualmente repressivo dos seus pais.
A «Kommune 1», uma microseita maoísta que proclamava agressivamente
a promiscuidade como libertação, fazia circular um auto-retrato em 1966: sete
jovens nus, homens e mulheres, encostados a uma parede – «Maoístas nus
frente a uma parede nua», conforme dizia a legenda quando a fotografia foi
publicada no Der Spiegel em Junho de 1967. A ênfase posta na nudez
destinava-se especialmente a relembrar imagens de corpos nus desamparados
dos campos de concentração. Olhem, dizia: primeiro vieram as vítimas de
Hitler, agora os corpos desnudos dos revolucionários maoístas. Se os Alemães
puderem olhar para a verdade dos nossos corpos, serão capazes de enfrentar
igualmente outras verdades.
A «mensagem» – que a promiscuidade adolescente obrigaria as gerações
mais velhas a serem abertas a respeito do sexo e consequentemente a respeito
de Hitler e tudo o resto – fez com que o dirigente do SDS Rudi Dutschke
(nestes assuntos um moralista convencional de Esquerda à antiga) condenasse
os da Kommune como «neuróticos». Como sem dúvida eram. Mas o seu
narcisismo agressivamente anacrónico, casualmente misturando assassinatos
em massa com exibicionismo sexual para excitar e chocar a burguesia, não
deixou de ter consequências: um membro da «Kommune 1» que
orgulhosamente declarou ter o seu orgasmo maiores consequências políticas
do que o Vietname, iria reaparecer nos anos 70 num campo de treino da
guerrilha no Médio Oriente. O caminho da autocomplacência até à violência
era ainda mais curto na Alemanha do que em qualquer outro sítio.
Em Junho de 1967, numa manifestação em Berlim contra o Xá do Irão, a
polícia alvejou e matou Benno Ohnesorg, um estudante. Dutschke declarou
que a morte de Ohnesorg era um «crime político» e apelou a uma resposta em
massa; em poucos dias, 100 000 estudantes manifestaram-se na Alemanha
Ocidental. Jürgen Habermas, até então um proeminente crítico das
autoridades de Bona, uns dias depois avisou Dutschke e os amigos do risco de
brincar com o fogo. «O fascismo de esquerda – relembrou ao dirigente do
SDS – é tão letal como o da ala direita». Os que falavam vagamente de
«violência escondida» e de «tolerância repressiva» do pacífico regime de
Bona – e que se prepararam deliberadamente para provocar as autoridades à
repressão através de actos voluntaristas de verdadeira violência – não sabiam
o que estavam a fazer.
Em Março do ano seguinte, quando os dirigentes estudantis radicais
apelaram repetidamente ao confronto com o «regime» de Bona e o governo
ameaçou retaliar contra a violenta provocação em Berlim Ocidental e em
outros sítios, Habermas – acompanhado por Grass, Walser, Enzensberger e
Hochhuth – novamente apelou à prevalência da razão democrática, instando
tanto os estudantes como o governo a respeitarem a legalidade republicana.
No mês seguinte, o próprio Dutschke iria pagar o preço da violenta
polarização que encorajara, ao ser alvejado a tiro em Berlim por um
simpatizante neo-nazi, a 11 de Abril de 1968. Nas enraivecidas semanas que
se seguiram, duas pessoas foram mortas e 400 feridas só em Berlim. O
governo de Kiesinger fez aprovar Leis de Emergência (por 384 votos contra
100, com o apoio dos sociais-democratas) autorizando Bona a governar por
decreto se necessário – e suscitando o medo generalizado de que a República
de Bona estivesse à beira do colapso, como Weimar apenas 35 anos antes.
As seitas cada vez mais violentas da franja política estudantil – K
Gruppen, os Autonome, a ponta-de-lança do SDS – eram todos aparentemente
«marxistas», normalmente marxistas-leninistas (i. e. «maoístas»). Muitos
deles eram secretamente financiados pela Alemanha de Leste ou por
Moscovo, embora isto não fosse do conhecimento geral na época. De facto,
na Alemanha como em todo o lado, a Nova Esquerda mantinha a distância do
comunismo oficial – o que na Alemanha Ocidental era de qualquer maneira
uma irrelevância política. Mas, como grande parte da Esquerda da Alemanha
Ocidental (e não só a Esquerda), os radicais tinham um relacionamento
ambíguo com a República Democrática Alemã a Leste.
Muitos deles tinham nascido no que era agora a Alemanha de Leste ou
então em outras terras a leste de onde as suas famílias etnicamente alemãs
tinham sido expulsas: Leste da Prússia, Polónia, Checoslováquia. Talvez não
surpreendentemente, a nostalgia dos pais por um passado perdido alemão
estava inconscientemente repercutida nos seus próprios sonhos de uma
alternativa e melhor Alemanha a leste. A Alemanha de Leste, apesar do
(devido ao?) seu autoritarismo repressivo, autoritarismo censor, exercia uma
especial atracção sobre os jovens radicais agressivos: era tudo o que Bona não
era e não pretendia ser diferente.
Assim, o ódio dos radicais pelas «hipocrisias» da República Federal
tornava-os incomparavelmente susceptíveis às afirmações dos comunistas da
Alemanha de Leste de terem enfrentado a história da Alemanha e limpo
politicamente a sua Alemanha do seu passado fascista. Além disso, o
anticomunismo que uniu a Alemanha Ocidental à Aliança Atlântica e que
constituía a sua doutrina política central, era em si o alvo da Nova Esquerda,
especialmente durante os anos da Guerra do Vietname e ajuda a explicar o seu
anticomunismo. A ênfase colocada nos crimes do comunismo era
simplesmente uma diversão dos crimes do capitalismo. Os comunistas, como
afirmara Cohn-Bendit em Paris, poderiam ser «patifes estalinistas» mas os
liberais democratas não eram melhores.
Assim, a Esquerda alemã fez ouvidos moucos aos rumores de
descontentamento em Varsóvia ou Praga. O rosto dos anos 60 na Alemanha
Ocidental, tal como na Europa Ocidental em geral, voltou-se resolutamente
para dentro. A revolução cultural da era foi extraordinariamente paroquial: se
a juventude ocidental alguma vez olhou para além das suas fronteiras, foi para
as terras exóticas cuja imagem pairava livre dos irritantes constrangimentos
familiares ou da informação. Das culturas estranhas mais próximas de casa, os
anos 60 ocidentais pouco sabiam. Quando Rudi Dutschke fez uma visita
fraternal a Praga, no auge do movimento reformista checo na Primavera de
1968, os estudantes locais ficaram espantados com a sua insistência em que a
democracia pluralista era o verdadeiro inimigo. Para eles, era o objectivo.
-
(1) Obviamente, isto não se aplicava a pequenas academias de elite como a École Polytechnique ou a
École Normale Supérieure em França, que admitiam os seus poucos estudantes através de um exame
rigorosamente selectivo e depois os ensinava realmente muito bem. Mas estas eram invulgares e em
larga medida atípicas.

(2) Em meados de 1960 só 44% dos estudantes universitários italianos se formaram; estes números
ir-se-iam deteriorar ainda mais no decorrer dos anos 70.

(3) No Bloco Comunista, os «anos 60» como cultura popular foram necessariamente vividos em
segunda-mão. Mas esta diferença não deve ser exagerada. Por exemplo: toda a gente na Europa de Leste
sabia quem eram os Beatles e muita gente já tinha ouvido a sua música. E não só os Beatles: quando a
estrela francesa de rock Johnny Hallyday actuou na pequena cidade de Kosice na Eslováquia, em 1966,
fê-lo perante 24 000 pessoas.

(4) Os Beatles vieram da classe operária de Liverpool – ou, no caso de Paul McCartney, de um grau
ou dois acima. Outra banda rock ícone dos anos 60, os Rolling Stones, era mais convencionalmente
boémia no seu conteúdo, como convinha à classe média de Londres dos seus membros. Esta
desvantagem foi superada com uma rudeza de estilo calculada e pela vida privada ostensivamente
debochada e bem publicitada dos Stones.

(5) Note-se porém que durante a maior parte dos anos 60 era ainda proibido em muitas partes da
Europa Ocidental e de Leste, fornecer informações sobre a contracepção. A Inglaterra foi uma excepção
ao aprovar o uso da pílula contraceptiva em 1961 – do outro lado do Canal o cantor Antoine vendeu um
milhão de discos em 1966, imaginando melancolicamente uma França onde a pílula fosse um dia
vendida «em lojas de preço único».

(6) No entanto, havia um atraso nas províncias distantes, onde as boinas pretas, bonés de pano e até
toucas de mulheres ainda eram usadas no quotidiano. Durante um pouco mais de tempo, o que cobria a
cabeça manteve-se um indicador tradicional fiável da região de origem e classe social.

(7) Iria também evoluir com pouca dificuldade nos atavios dos skinheads da década seguinte.

(8) Em 1960, o «existencialismo» (tal como o «estruturalismo» alguns anos depois), passara a ser
uma deixa para todos os fins, algo parecido com o «boémio» de décadas anteriores: os estudantes de
arte desempregados que iam ouvir os Beatles ao Reeperbahn, em Hamburgo, todos se intitulavam
«Exis».

(9) Caso em que poderia parecer estranho o teórico psicanalista da moda, Jacques Lacan, ter sido
popularmente associado à categoria. Mas Lacan era um caso especial. Mesmos pelos critérios largos da
era de sessenta em Paris, manteve-se notavelmente ignorante dos desenvolvimentos contemporâneos em
medicina, biologia e neurologia, sem prejuízo visível para o seu consultório ou reputação.

(10) Continua na altura em que escrevemos. Impenetrável à mudança e demasiado pequeno para ser
adversamente afectado pela sua própria irrelevância, presumivelmente sobreviverá eternamente.

(11) Tal como o quase contemporâneo de Gramsci, o marxista alemão Karl Korsch ou os escritores
marxistas austríacos Otto Bauer e Rudolf Hilferding.

(12) A afirmação de Althusser baseava-se numa explicação bizarramente estruturalista de Marx, cuja
atracção contemporânea para os jovens investigadores da Teoria era directamente proporcional à sua
jesuítica opacidade (os estudiosos mais velhos não se impressionaram). Mas a asserção de autoridade
era bastante clara: há só uma maneira correcta de pensar em Marx, insistia, e é a minha. Em França, a
estrela de Althusser esmoreceu com a queda do partido cuja causa abraçara; hoje o seu apelo
obscurantista está confinado às franjas exteriores do mundo académico anglo-saxónico.
(13) Tinham alguma razão. Assim, Raoul Vaneigem, um situacionista belga, em 1967 escrevia:
«Com um mundo de prazeres estáticos para ganhar, nada temos a perder a não ser o nosso tédio». É
difícil ter a certeza, em retrospectiva, se tais slogans eram anedóticos, inocentes ou cínicos. De qualquer
maneira, pouco fizeram para pôr em perigo o status quo.

(14) Esta foi uma duradoura fonte de atritos. Em Janeiro de 1966, após meses de disputa num
complexo de dormitórios estudantis em Antony, a sul de Paris, um director recentemente nomeado tinha
introduzido o que era então um regime radical. As raparigas e os rapazes com mais de vinte e um anos
podiam a partir dali receber membros do sexo oposto nos seus quartos no dormitório. Os que tinham
menos de vinte e um anos podiam fazê-lo com a autorização escrita dos pais. Em mais lado nenhum
foram introduzidas tais liberalizações.

(15) O ministro da Juventude, um François Missoffe, tinha ido a Nanterre para inaugurar um novo
equipamento desportivo. Cohn-Bendit, um estudante local enragé, perguntou por que razão o ministro
da Educação nada fazia para abordar as disputas de dormitório (ou «problemas sexuais», como disse). O
ministro, respondendo à provocação, sugeriu que se Cohn-Bendit tinha problemas sexuais, devia saltar
para a esplêndida piscina nova. «Isso – respondeu o meio alemão Cohn-Bendit – é o que a Juventude
Hitleriana costumava dizer.»

(16) Para visitar o Exército francês na Alemanha, conforme se dizia, e certificar-se da sua lealdade e
disponibilidade caso fosse chamado. Mas na altura isto não se sabia.

(17) Isto não era evidentemente verdade. O Partido Comunista Francês não tinha em 1968 qualquer
estratégia coerente, para além de desprezar os estudantes radicais e tentar manter a sua influência no
movimento operário. Tomar o poder político estava bastante para além da sua capacidade ou
imaginação.

(18) Não havia mulheres entre os dirigentes estudantis. Nas fotografias contemporâneas e nas
reportagens filmadas podem ver-se raparigas aos ombros dos namorados mas eram quando muito os
soldados rasos do exército de estudantes. A revolta juvenil de 1968 falava muito de sexo, mas não
estava muito preocupada com as desigualdades de género.

(19) Citado por Robert Lumley, States of Emergency. Cultures of Revolt in Italy from 1968 to 1978
(Londres, 1990), p. 96.

(20) A própria Berlim Ocidental assumira uma espécie de tom contra-cultural durante estes anos.
Fossilizada pelo seu peculiar isolamento no coração das tensões políticas internacionais, dependente de
doações de Bona e de Washington, o seu futuro permanentemente incerto, a cidade estava suspensa no
tempo e no espaço. Isto tornava-a bastante atractiva para os dissidentes, radicais e outros, que
procuravam as franjas políticas e culturais. A ironia da situação de Berlim Ocidental – que a sua
sobrevivência como posto avançado boémio do Ocidente dependia inteiramente da presença de soldados
americanos – perdera-se em muitos dos seus juvenis residentes.

(21) Ecos desta inversão seriam novamente ouvidos por altura da primeira Guerra do Golfo em
1991, quando opositores alemães não hesitaram em apelidar a América como o principal criminoso de
guerra do século XX… e a Alemanha como a sua primeira vítima.
XIII

O Fim da Aventura
«A Revolução é o acto de uma enorme maioria da sociedade, dirigido contra o
governo de uma minoria. É acompanhada por uma crise de poder político e
por um enfraquecimento do aparelho de repressão. É por isso que não tem de
ser levada a cabo pela força das armas.»
Jacek Kuron e Karel Modzelewski, Carta Aberta ao Partido (Março de 1965)
«Cada Partido Comunista é livre de aplicar os princípios do marxismo-
leninismo e do socialismo no seu próprio país, mas não é livre para se desviar
destes princípios se quiser continuar a ser um partido comunista.»
Leonid Brejnev (3 de Agosto de 1968)
«Só depois da Primavera de Praga de 1968 se começou a ver quem era
quem».
Zdenek Mlynar
«Ontem chegou de repente».
Paul McCartney
Os anos 60 no bloco soviético foram de necessidade, mas sentida de modo
muito diferente do Ocidente. O abandono do estalinismo depois de 1956
estimulou os pedidos de mudança, como a descolonização e o resultado
desastroso do Suez no Ocidente, mas o esmagamento da revolta húngara
tornou claro desde o início que as reformas só chegariam sob os auspícios do
Partido. O que por sua vez serviu de advertência de que a mola real do
comunismo era a autoridade de Moscovo; eram a disposição e as políticas da
chefia soviética que contavam. Até à sua queda em 1964, foi Nikita
Khrushchev quem determinou a história da metade oriental da Europa.
A geração de Khrushchev de dirigentes soviéticos ainda acreditava na luta
internacional de classes. De facto, foi a projecção romantizada das
recordações revolucionárias soviéticas de Khrushchev para as rebeliões na
América Latina que o levaram aos passos em falso que provocaram a crise de
Cuba em 1962 e a sua própria queda. A disputa com a China, que veio a lume
em 1960 e deu aos críticos esquerdistas de Moscovo uma alternativa
«maoísta» para o modelo soviético, não foi só uma luta pela primazia
geopolítica; foi também em parte um conflito genuíno pela alma da
«revolução mundial». Sob este aspecto, a competição com Pequim colocou os
dirigentes pós-estalinistas de Moscovo numa posição contraditória. Como
pátria da revolução anticapitalista continuaram a publicitar as suas ambições
rebeldes e a insistir na autoridade intacta do Partido, na URSS e nos seus
satélites. Por outro lado, o Kremlin continuava a favorecer a coexistência com
os poderes ocidentais – e com os seus próprios cidadãos.
Os anos de Krushchev trouxeram reais melhorias. A partir de 1959 a «via
curta» de Estaline já não era a fonte autorizada da história soviética e da
teoria marxista(1). O reino do terror enfraqueceu, embora não as instituições e
práticas a que dera início: o Gulag estava ainda organizado e dezenas de
milhares de prisioneiros políticos ainda penavam em campos e no exílio –
metade deles ucranianos. Sob Krushchev, as leis da era estalinista que
restringiam a mobilidade de emprego foram abandonadas, o dia de trabalho
oficial foi encurtado, estabeleceram-se salários mínimos e foi introduzido um
sistema de licença de parto juntamente com um esquema nacional de pensões
(extensivo aos agricultores colectivizados a partir de 1965). Resumindo, a
União Soviética – e os seus Estados-satélites mais evoluídos – tornaram-se
Estados-providência em embrião, pelo menos na forma.
No entanto, as reformas mais ambiciosas de Krushchev não conseguiram
produzir os excedentes de alimentação prometidos (outra razão que levou os
seus colegas a deixá-lo cair em Outubro de 1964). O cultivo de terras até aí
«virgens» no Cazaquistão e no Sul da Sibéria foi especialmente desastroso:
meio milhão de toneladas de terra arável arrastadas todos os anos de solo
completamente impróprio para o cultivo de cereais e a pouca colheita que
dava surgia frequentemente infestada de ervas daninhas. Numa tragicómica
mistura de planeamento centralizado e corrupção local, os chefes comunistas
no Quirguízistão instigaram os agricultores colectivizados a atingirem as
quotas oficiais de fornecimento comprando provisões nas lojas locais. Houve
motins pelos alimentos em cidades da província (especialmente em
Novocherkassk, em Junho de 1962). Em Janeiro de 1964, a seguir à
desastrosa colheita de 1963, a URSS estava reduzida à importação de cereais
do Ocidente.
Ao mesmo tempo, as micro-quintas privadas que Krushchev tinha
esporadicamente incentivado eram quase embaraçosamente bem sucedidas:
no início dos anos 60, os 3% de solo cultivado em mãos privadas estavam a
render mais de um terço do volume da produção agrícola da União Soviética.
Em 1965, dois terços das batatas consumidas na URSS e três quartos dos ovos
provinham de agricultores privados. Na União Soviética, tal como na Polónia
ou na Hungria, o «socialismo» dependia para a sua sobrevivência da «ilícita»
economia capitalista interna, a cuja existência fechava os olhos(2).
As reformas económicas dos anos 50 e 60 foram desde o princípio uma
tentativa intermitente para resolver um sistema estruturalmente disfuncional.
Na medida em que implicavam uma disposição ténue para descentralizar as
decisões económicas ou autorizar de facto a produção privada, eram ofensivas
para os da linha dura entre a velha guarda. Mas, por outro lado, as
liberalizações levadas a cabo por Kruschev, e depois dele por Brejnev, não
representaram qualquer ameaça imediata à rede de poder e patronato de que o
sistema soviético dependia. Na verdade, era exactamente por as melhorias
económicas no bloco soviético terem estado sempre subordinadas às
prioridades políticas que conseguiam tão pouco.
A reforma cultural era outra questão. Lenine tinha-se sempre preocupado
mais com os seus críticos do que com os seus princípios; os seus herdeiros
não eram diferentes. A oposição intelectual, tivesse ou não repercussão mais
alargada dentro do partido ou fora dele, era uma coisa a que os dirigentes
comunistas, Khrushchev incluído, eram extremamente sensíveis. A seguir às
suas primeiras denúncias sobre Estaline em 1956, houve um optimismo
generalizado, na União Soviética e nos outros sítios, por a censura ir abrandar
e por se ir abrir um espaço para divergências cautelosas e para a crítica (nesse
mesmo ano Boris Pasternak apresentou sem sucesso o manuscrito do seu
romance Doutor Jivago ao periódico literário Novy Mir). Mas em breve o
Kremlin ficou preocupado com o que considerava ser o intensificar da
permissividade cultural; no prazo de três anos após o 20.o Congresso do
Partido, Kruschev fazia agressivos discursos públicos defendendo o Realismo
Socialista oficial nas artes e ameaçava os seus críticos com sérias
consequências se continuassem a denegri-lo, mesmo em retrospectiva. Ao
mesmo tempo, em 1959, as autoridades controlavam os padres ortodoxos e
baptistas, uma forma de dissidência cultural a que tinha sido permitida uma
certa liberdade desde a queda de Estaline.
No entanto, mesmo Krushchev, quando não os seus colegas, era
confiadamente imprevisível. O 22.o Congresso do PCUS, em Outubro de
1961, revelou a extensão do cisma entre a China e a URSS (no mês seguinte
os Soviéticos fecharam a sua embaixada na Albânia, o locum europeu de
Pequim) e na competição pela influência global Moscovo preparou-se para
apresentar um novo rosto aos seus confusos e vacilantes apoiantes
estrangeiros. Em 1962, um obscuro professor da província, Alexandre
Soljenitsin, foi autorizado a publicar o seu romance pessimista e
implicitamente subversivo Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch no Novy Mir
– o mesmo jornal que rejeitara Pasternak menos de seis anos antes.
A relativa tolerância dos últimos anos de Khrushchev não se estendeu à
crítica directa à direcção soviética: a obra posterior de Solzhenitsyn nunca
teria tido autorização para publicação mesmo no auge do «descongelamento».
Mas em comparação com o que se passara antes, o início dos anos 60 foi uma
época de liberdade literária e cautelosa experimentação cultural. Com o golpe
do Kremlin em Outubro de 1964, no entanto, tudo mudou. Os conspiradores
contra Khrushchev estavam irritados com os seus insucessos políticos e com o
seu estilo autocrático; mas acima de tudo eram as suas inconsistências que os
deixavam intranquilos. O próprio Primeiro Secretário poderia saber
exactamente o que era permitido e o que não era, mas outros podiam ser
tentados a interpretar mal a sua aparente tolerância. Poder-se-iam cometer
erros.
Meses depois da tomada de controlo, a nova direcção do Kremlin começou
a pressionar a intelligentsia. Em Setembro de 1965, dois jovens escritores,
Andrei Sinyavsky e Yuli Daniel foram presos. Sob os pseudónimos de Abram
Tertz e Nikolay Arzhak tinham feito sair clandestinamente para o Ocidente
várias obras de ficção. Tertz-Sinyavsky também tinha publicado – no
estrangeiro – um curto ensaio crítico sobre a moderna literatura soviética,
Sobre o Realismo Socialista. Em Fevereiro de 1966 os dois homens foram
julgados. Dado que nenhuma lei na União Soviética proibia a publicação de
obras no estrangeiro, as autoridades alegaram que o conteúdo das suas obras
era em si prova do crime de actividade anti-soviética. Os dois homens foram
considerados culpados e condenados aos campos de trabalho: Sinyavsky por
sete anos (embora tenha sido libertado passados seis) e Daniel por cinco.
O julgamento de Sinyavsky-Daniel decorreu in camera, embora uma
campanha na imprensa caluniando os dois escritores tenha chamado a atenção
do público para o seu destino. Mas as actas do julgamento foram secretamente
registadas e transcritas por várias pessoas admitidas na sala de audiências e
foram publicadas tanto em russo como em inglês um ano depois, gerando
petições internacionais e exigências para a libertação dos homens(3). O
aspecto invulgar do caso era que apesar de toda a brutalidade das décadas de
Estaline, ninguém tinha até então sido preso e encarcerado unicamente com
base no conteúdo da sua escrita (de ficção). Mesmo se as provas materiais
tivessem sido inventadas com essa finalidade, os intelectuais do passado
tinham sempre sido acusados por actos, não apenas por palavras.
Contrastando com a comparativa frouxidão dos anos de Khrushchev, o
tratamento dado a Sinyavsky e Daniel levantou protestos sem precedente
dentro da própria União Soviética. O movimento dissidente das últimas
décadas da União Soviética data deste momento: a samizdat
(«autopublicação») clandestina começou no ano das prisões e por causa delas
e muitas das figuras mais importantes dos círculos dissidentes soviéticos dos
anos 70 e 80 fizeram a sua primeira aparição protestando contra o tratamento
dado a Sinyavsky e Daniel. Vladimir Bukovsky, então um estudante de 25
anos de idade, foi preso em 1967 por organizar uma manifestação na Praça
Pushkin em defesa dos direitos civis e da liberdade de expressão. Já em 1963
tinha sido preso pelo KGB acusado da posse de literatura anti-soviética e
internado num hospital psiquiátrico para tratamento compulsivo. Agora era
condenado a três anos de trabalhos forçados por «actividades anti-soviéticas».
O caso Sinyavsky-Daniel, e a reacção que provocou, parecia demarcar
muito claramente a situação na União Soviética: o que tinha mudado e o que
não tinha. Segundo todos os padrões excepto os da sua própria história, o
regime era inabalável, repressivo e inflexível. A miragem de 1956
desvanecera-se. As perspectivas de dizer a verdade sobre o passado e as
reformas do futuro pareciam ter regredido. A ilusão da era Khrushchev estava
destruída. Fosse qual fosse o rosto que apresentava aos poderes ocidentais, o
regime soviético estava internamente a instalar-se para um crepúsculo
indefinido de estagnação económica e decadência moral.
Nos Estados-satélites do bloco soviético na Europa de Leste, porém, as
perspectivas de mudança pareciam distintamente mais propícias. O que, a
julgar pelas aparências, é um paradoxo. Afinal, se os cidadãos da União
Soviética eram impotentes face à ditadura pós-estalinista, então os habitantes
da Hungria e da Checoslováquia e seus vizinhos eram duplamente
impotentes: não só viviam sob um regime repressivo, como os seus próprios
governantes eram em si escravos da verdadeira autoridade na capital imperial.
Os princípios do império soviético tinham sido apropriadamente ilustrados em
Budapeste, em Novembro de 1956. Além disso, na Checoslováquia e na
Roménia algumas das vítimas sobreviventes dos julgamentos encenados de
anos anteriores estavam ainda a penar na cadeia uma década depois.
E no entanto, a Europa de Leste era diferente – em parte, claro, por ser
uma extensão colonial recente do domínio comunista. Nos anos 60, o
comunismo era a única forma de governação que a maior parte dos habitantes
da União Soviética jamais conhecera; à sombra da Guerra Mundial Patriótica
tinha até adquirido uma certa legitimidade. Mas mais para Ocidente a
lembrança da ocupação soviética e da sujeição forçada estava ainda fresca. O
mero facto de serem marionetas de Moscovo e por isso lhes faltar
credibilidade local fez com que os dirigentes do Partido dos Estados-satélites
se tornassem mais sensíveis ao benefício de se ajustarem aos sentimentos
locais.
Isto parecia ainda mais possível porque as críticas internas aos regimes de
Partido na Europa de Leste entre 1956 e 1968 não eram de maneira nenhuma
anticomunistas. Respondendo à afirmação de Sartre em 1956 de que a
revolução húngara fora marcada por um «espírito direitista», o académico
refugiado François Fejtö contrapusera que eram os estalinistas que se
mantinham na Direita. Eles eram os «de Versalhes». «Nós continuamos a ser
homens de Esquerda, fiéis às nossas ideias, aos nossos ideais e às nossas
tradições». A insistência de Fejtö na credibilidade de uma Esquerda
antiestalinista capta o tom da oposição intelectual da Europa de Leste durante
os doze anos seguintes. A questão não era condenar o comunismo, muito
menos derrubá-lo; o objectivo, pelo contrário, era ponderar sobre o que tinha
corrido tão horrivelmente mal e propor uma alternativa dentro dos termos do
próprio comunismo.
Isto era «revisionismo»: um termo usado pela primeira vez neste contexto
pelo dirigente da Polónia Wladislaw Gomulka em Maio de 1957, na Reunião
do Comité Central do Partido Unido dos Trabalhadores Polaco, para
descrever as suas críticas intelectuais. Estes «revisionistas» – na Polónia o
mais conhecido era o jovem filósofo marxista Leszek Kolakowski – tinham
em muitos casos sido marxistas ortodoxos até 1956. Não repudiaram esta
vassalagem de um dia para o outro. Pelo contrário, passaram os doze anos
seguintes, nas palavras do escritor eslovaco Milan Simecka, a «tentar
encontrar o erro na fotocópia». Assim como a maior parte dos marxistas
ocidentais contemporâneos estava ligada à noção de que era possível fazer
claramente a distinção entre a credibilidade do marxismo e os crimes de
Estaline.
Para muitos marxistas da Europa de Leste, o estalinismo era uma paródia
trágica da doutrina marxista e a União Soviética um permanente desafio à
credibilidade do projecto de transformação socialista. Mas ao contrário da
Nova Esquerda no Ocidente, os revisionistas intelectuais do Leste
continuaram a trabalhar com, e frequentemente dentro, do Partido Comunista.
Isto em parte por necessidade, claro; mas em parte também por sincera
convicção. Mais cedo ou mais tarde esta afiliação iria isolar e até desacreditar
as reformas comunistas desta época, nomeadamente aos olhos de uma geração
cada vez menos sintonizada com a disposição dos seus pares ocidentais e cujo
ponto de referência não estava no passado estalinista mas no presente
capitalista. Mas de 1956 a 1968, o movimento revisionista na Europa de Leste
permitiu aos escritores, realizadores, economistas, jornalistas e outros uma
breve janela de optimismo quanto a uma alternativa socialista futura.
Na Polónia, o espaço crítico mais importante era o da Igreja Católica e a
protecção que podia oferecer aos que trabalhavam sob os seus auspícios –
nomeadamente na Universidade Católica de Lublin e nos jornais Znak e
Tygodnik Powszechny. Era uma particularidade da Polónia durante os anos de
Gomulka os filósofos marxistas e os teólogos católicos conseguirem encontrar
algo em comum na sua defesa da liberdade de expressão e das liberdades
cívicas – uma antecipação embrionária das alianças que se iriam forjar nos
anos 70. No entanto, noutros lados, o próprio Partido Comunista era o único
fórum em que tais críticas podiam ser expressas em segurança. O terreno mais
propício para a crítica «proveitosa» era a gestão comunista da economia.
Uma das razões era que o marxismo convencional se baseava
implicitamente na economia política, de maneira que a política económica
(uma vez liberta da mão morta de Estaline) constituía uma arena permissiva
para a dissidência intelectual. Outra razão era que muitos intelectuais
europeus de Leste da época ainda levavam o marxismo muito a sério e
tratavam o problema da economia comunista como um ponto de partida vital
para reformas sérias. Mas a principal explicação era simplesmente que, no
princípio dos anos 60, as economias dos Estados comunistas da Europa
estavam a mostrar os primeiros sinais de séria degradação.
As fraquezas das economias comunistas não eram segredo. Eram apenas
capazes de fornecer aos seus cidadãos alimentos suficientes (na União
Soviética muitas nem isto conseguiam). Estavam dedicados à produção em
massa de bens industriais primários desnecessários. As mercadorias – bens de
consumo acima de tudo – para as quais havia uma crescente procura não eram
produzidas, ou pelo menos não em quantidade suficiente, ou na qualidade
necessária. E o sistema de distribuição e venda de tais bens, quando
disponíveis, era tão mal gerido que a escassez genuína era exacerbada pela
escassez artificialmente induzida: acumulação, escoamento, corrupção e – no
caso dos alimentos e outros produtos perecíveis – elevados níveis de
desperdício.
As peculiares ineficácias do comunismo tinham sido parcialmente
camufladas na primeira década do pós-guerra através das exigências da
reconstrução a seguir à guerra. Mas no início dos anos 60, a seguir à vanglória
de Khrushchev de que o comunismo iria «ultrapassar» o Ocidente e às
proclamações oficiais sobre a agora completa transição para o socialismo, o
fosso entre a retórica do Partido e a penúria diária não podia já ser transposto
por exortações para que se reparassem os danos da guerra ou se produzisse
mais. E a acusação de que eram os sabotadores – kulaks, capitalistas, judeus,
espiões ou os «interesses» do Ocidente – os responsáveis por impedirem a
marcha em frente do comunismo, embora ainda ouvida em certos círculos,
estava agora associada à época do terror: uma época que a maior parte dos
dirigentes comunistas, a seguir a Khrushchev, estava ansiosa por esquecer. Os
problemas, cada vez mais se admitia, deviam assentar no próprio sistema
económico comunista.
Os autodenominados «economistas reformistas» («revisionistas» tinha
conotações pejorativas) contavam-se pelos dedos na Hungria. Em 1961 Janos
Kadar fizera saber que o Estado-Partido iria presumir a partir dali que quem
não estivesse activamente contra ele, estava a seu favor; e foi assim, sob os
auspícios do regime de Kadar, que os críticos da prática económica comunista
começaram por se sentir seguros para falar(4). Os economistas reformistas
reconheceram que a colectivização da terra nos anos 40 e 50 tinha sido um
erro. Também reconheceram, embora mais cautelosamente, que a obsessão
soviética com a extracção em larga escala e a produção de bens industriais
fundamentais era um impedimento ao crescimento. Resumindo, admitiram –
embora não tão explicitamente – que a aplicação generalizada à Europa de
Leste da industrialização forçada e a destruição da propriedade privada da
União Soviética tinham sido um desastre. E, ainda mais radicalmente,
começaram a procurar formas em que as economias comunistas pudessem
incorporar estímulos de preços e outros incentivos de mercado no sistema
colectivista de propriedade e produção.
Os debates dos anos 60 sobre a reforma económica na Europa de Leste
tiveram de percorrer um caminho subtil. Alguns dirigentes do Partido eram
suficientemente pragmáticos (ou preocupados) para reconhecerem os erros
técnicos do passado – até a direcção checa neo-estalinista desistiu da ênfase
colocada na indústria pesada em 1961, a meio caminho do seu desastroso
terceiro Plano Quinquenal. Mas admitir o insucesso do planeamento central
ou da propriedade colectiva era outra questão. Economistas reformistas como
Ota Sik ou o húngaro Janos Kornai procuraram em vez disso definir uma
«terceira via»: uma economia mista em que o facto não negociável da
propriedade comum e planeamento central seria mitigado por uma maior
autonomia local, alguns incentivos de preços e o abrandamento do controlo.
Os argumentos económicos, afinal, eram incontestáveis: sem tais reformas, o
sistema comunista degeneraria em estagnação e pobreza – «reproduzindo
escassez», como Kornai definiu num famoso artigo.
Só na Hungria Kadar respondeu de facto às suas críticas, permitindo
alguma reforma genuína: o Novo Mecanismo Económico inaugurado em
1968. Às herdades colectivas era concedida uma substancial autonomia e não
só lhes era permitido como também activamente incentivado manter lotes de
terreno privados ao lado. Alguns monopólios foram desfeitos. Os preços de
alguns artigos foram indexados ao mercado mundial, permitindo que
flutuassem através de taxas de câmbio múltiplas. Foram autorizados
retalhistas privados. A ideia do exercício não era tanto construir um meio
caminho funcional entre dois sistemas económicos incompatíveis como, pelo
contrário, introduzir um máximo de actividade de mercado (e assim,
esperava-se, uma prosperidade dos consumidores que lhes desse satisfação)
compatível com um controlo político não diluído dos poderes autoritários da
economia.
Em retrospectiva, é evidente que os reformadores se estavam a iludir se
supunham que uma «terceira via» entre o comunismo e o capitalismo alguma
vez podia ser realista. Mas isto não se devia a qualquer defeito formal da sua
análise económica. O verdadeiro erro consistia numa curiosamente ingénua
má interpretação do sistema sob que viviam. O que interessava à direcção
comunista não era a economia, mas a política. A inelutável implicação das
teorias dos reformadores económicos era que a autoridade central do Estado-
Partido precisava de ser enfraquecida caso se quisesse retomar a vida
económica normal. Mas, confrontados com essa escolha, os Estados-Partido
comunistas iriam sempre optar pela anormalidade económica.
Entretanto, porém, os regimes estavam sobretudo interessados na
estabilidade. Para isto havia três modelos emergentes. O primeiro, o
«Kadarismo», não era facilmente exportável – e fazia parte da própria
estratégia dos dirigentes húngaros garantir às autoridades do Kremlin que não
havia nenhum modelo húngaro, meramente uma solução prática limitada às
dificuldades locais. A situação da Hungria era de facto única, com Kadar a
aliciar cinicamente os seus compatriotas húngaros (que não viajavam) com o
acesso ao próspero Ocidente como uma espécie de prémio de bom
comportamento – uma confissão tácita do fracasso do comunismo. O país era
agora dirigido pela e para a «Nova Classe», como lhe chamou o dissidente
jugoslavo Milovan Djilas num influente livro de 1957: uma tecnocracia culta
de burocratas e profissionais, pragmaticamente preocupados sobretudo em
aconchegar os seus ninhos e garantir a sua própria sobrevivência. A libertação
genuína era impensável, mas um regresso à repressão altamente improvável.
A Hungria de Kadar era muito invejada, apesar de só intermitentemente
imitada. O segundo modelo, a Jugoslávia de Tito, era ainda mais obviamente
sui generis. Não por a Jugoslávia ter conseguido evitar os problemas dos seus
vizinhos. Muitas das disfunções económicas dos satélites soviéticos eram
igualmente familiares aos Jugoslavos, uma advertência de que a animação
suspensa entre o Leste e o Ocidente era mais produto do acaso histórico que
de uma escolha ideológica. Mas, no decorrer dos anos 50 e 60, Tito
introduzira alguma descentralização na tomada de decisões e permitira
experiências com a «autonomia» fabril e operária.
Estas inovações tinham nascido de divisões étnicas e geográficas assim
como de necessidades económicas. Num Estado federal cujas repúblicas
constituintes e os povos pouco partilhavam para além de infelizes e
mutuamente antagónicas recordações, a imposição de instruções uniformes
vindas de Belgrado parecia-se muito com um regresso às práticas de antes da
guerra. A difícil topografia da região favorecia a iniciativa local; e graças ao
corte com Estaline, a versão de Tito da ditadura do proletariado já não estava
sob pressão para reproduzir em pormenor todos os erros do caminho da União
Soviética para a modernização industrial. Foram estas considerações – mais
do que o projecto criativo e alternativo socialista que os seus admiradores
ocidentais ansiosamente creditaram a Tito nesses anos – que moldaram o
modelo jugoslavo.
Mas mesmo assim a Jugoslávia era diferente: não necessariamente mais
generosa para com os seus críticos, conforme Djilas e outros descobriram à
sua custa quando divergiram da ortodoxia de Tito(5), mas mais flexível em
manipular as necessidades e desejos da população em geral (especialmente
graças à ajuda do Ocidente). Quando o ensaísta jugoslavo Dubravka Ugresic
escreve sobre a sua nostalgia pela Jugoslávia perdida da sua juventude, o que
vem à ideia são «verdadeiros sapatos pontiagudos, impermeáveis de plástico,
a primeira roupa interior de nylon … a primeira viagem a Trieste». Uma tal
lista de bens de consumo baratos teria sido muito menor nas principais
memórias búlgaras ou romenas, por exemplo – e a «primeira viagem a
Trieste» teria estado fora de questão. Os Jugoslavos não eram prósperos e não
eram livres; mas também não eram prisioneiros de um sistema hermético. O
«titismo» era mais opressivo do que repressivo. Na época esta distinção era
importante.
Uma terceira via para a estabilidade era o «estalinismo nacional». Esta foi
a opção albanesa – um sociedade fechada, empobrecida sob o domínio
absoluto de um Partido autocrata local, paranóico e todo-poderoso. Mas era
também, cada vez mais, o modelo romeno. Nikita Khrushchev, que detestava
profundamente a Roménia (um sentimento generalizado na sua geração de
Russos), tinha procurado atribuir-lhe um papel agrícola único na distribuição
comunista internacional do trabalho. Mas os dirigentes do Partido em
Bucareste não tencionavam ser reduzidos a distribuidores de matéria-prima e
alimentos às economias comunistas mais prósperas e avançadas.
Tendo representado um papel complacente na prisão e supressão da revolta
húngara, os Romenos garantiram a retirada das forças soviéticas do território
romeno em 1958 e seguiram um caminho cada vez mais independente. Sob
Dej e (a partir de 1965) Ceausescu, a Roménia recusou envolver-se nas
querelas de Moscovo com a China e até se recusou a aceitar as manobras do
Pacto de Varsóvia em seu território. Os dirigentes romenos aproximaram-se
de Tito (cujas próprias relações com o Pacto de Varsóvia eram mais formais
do que amigáveis), tendo-se mesmo Dej dirigido à Assembleia Nacional
Jugoslava em 1963, e financiaram a industrialização neo-estalinista romena
com dinheiro e maquinaria obtidos na Europa Ocidental. As relações
comerciais da Roménia com o Ocidente aumentavam regularmente; enquanto
o comércio com os países do Comecon caía – dos 70% do comercio externo
geral romeno no início dos anos 60, para 45% dez anos depois.
Esta muito badalada estratégia de «a Roménia primeiro» não deixava de
ser popular em casa – de facto, uma das maneiras com que o Partido
Comunista da Roménia compensara na prática as suas origens distintamente
não romenas fora envolver-se no manto do nacionalismo. Dej começou-o e
Ceausescu limitou-se a ir ainda mais longe. Mas a estratégia foi ainda mais
bem sucedida no estrangeiro. Enquanto a Albânia – o substituto da China na
Europa – não possuía qualquer atracção para ninguém excepto para
estalinistas nostálgicos e ultra-inebriados maoístas, a imagem internacional da
Roménia comunista era curiosamente positiva. Simplesmente distanciando-se
de Moscovo, os homens de Bucareste obtiveram um exército de improváveis
admiradores ocidentais. Em Agosto de 1966, The Economist, chamou a
Ceausescu «o De Gaulle da Europa de Leste».
Quanto ao próprio De Gaulle, numa visita a Bucareste em Maio de 1968,
observou que embora o comunismo de Ceausescu talvez não fosse apropriado
para o Ocidente, era provavelmente conveniente para a Roménia: «Chez vous
un tel régime est utile, car il fait marcher les gens et fait avancer les choses.»
(«Para vós um regime assim é útil, põe as pessoas a mexer e faz as coisas
avançar»). De Gaulle tinha indubitavelmente razão quanto ao comunismo
romeno não ser apropriado para o Ocidente. O comunismo na Roménia era
peculiarmente perverso e repressivo: distanciando-se da União Soviética
depois de 1958, Dej e Ceausescu estavam também a libertar-se de qualquer
necessidade de repercutirem a destalinização e as reformas associadas à era de
Khrushchev. Ao contrário de outros Estados-satélites, a Roménia não dava
espaço a qualquer oposição interna – os intelectuais de Bucareste nos anos 60,
separados da sua própria sociedade, não representavam qualquer papel nos
debates nacionais (não os havia) e tinham de se contentar em ler os últimos
nouveaux romans de Paris e participar indirectamente numa cultura francesa
com que os Romenos cultos sempre tinham reivindicado uma afinidade
especial.
Mas longe de condenarem os ditadores romenos, os governos ocidentais
davam-lhes todo o encorajamento. Depois de a Roménia ter rompido o veto
soviético e ter formalmente reconhecido a Alemanha Ocidental em Janeiro de
1967, as relações ainda se tornaram mais calorosas: Richard Nixon tornou-se
o primeiro Presidente dos Estados Unidos a visitar um Estado comunista
quando foi a Bucareste em Agosto de 1969. O Nacional Comunismo – «Ele
pode ser um comuna, mas é o nosso comuna» – para Ceausescu compensou:
na devida altura, a Roménia foi o primeiro Estado do Pacto de Varsóvia a
entrar no GATT (em 1971), no Banco Mundial e no FMI (1972), a receber as
preferências comerciais da Comunidade Europeia (1973) e o estatuto de
Nação Mais Favorecida pelos Estados Unidos (1975)(6).
O que os diplomatas ocidentais pensavam ver nos autocratas anti-Rússia
eram os germes de um novo Tito: estável, dócil e mais interessado no poder
local do que na ruptura internacional. Num sentido, pelo menos, tinham razão.
Tito e Ceausescu, tal como Kadar e a direcção neo-estalinista na RDA,
lidaram com sucesso com os escolhos dos anos 60. Cada um, à sua maneira,
garantiu a sua autoridade e o controlo interno ao mesmo tempo que mantinha
pelo menos um modus vivendi com Moscovo. Os dirigentes comunistas em
Varsóvia e Praga não obtiveram esse êxito.
O resultado pacífico dos levantamentos na Polónia em 1956 fora
conseguido a um certo preço. Embora fossem permitidas as instituições
católicas e os escritores na Polónia de Gomulka, a oposição dentro do Partido
era severamente reprimida. O Partido Operário Unido da Polónia manteve-se
profundamente conservador apesar de ter evitado com êxito purgas violentas
nos anos de Estaline. Enervada com a perspectiva de um retorno aos
distúrbios de 1956, a direcção do Partido tratava qualquer crítica às suas
políticas como ameaça directa ao seu monopólio político. O resultado foi uma
profunda frustração entre os intelectuais revisionistas, não só com o regime
em geral, mas pela oportunidade perdida de uma nova direcção, a inacabada
questão do Outubro Polaco.
No Verão de 1964, dois estudantes da Universidade de Varsóvia, Jacek
Kuron e Karel Modzelewski, esboçaram uma crítica académica ao sistema
político e económico da Polónia do Povo. A sua dissertação era
inquestionavelmente marxista no tom e no conteúdo, mas isso não os impediu
de serem expulsos do Partido e da Associação da Juventude Socialista e de
serem denunciados nos círculos oficiais por espalharem propaganda
antipartido. A sua resposta foi publicar uma Carta Aberta ao Partido,
submetida à delegação da Universidade de Varsóvia em Março de 1965. Na
carta, os autores descreviam um regime burocrático, autocrático, surdo aos
interesses de todos excepto da elite dirigente que servia, governando de forma
incompetente uma empobrecida população trabalhadora e censurando todos
os comentários e críticas. A única esperança da Polónia, concluíram Kuron e
Modzelewski, era uma genuína revolução baseada em assembleias de
trabalhadores, liberdade de imprensa e abolição da polícia política.
No dia seguinte à apresentação da sua Carta, os dois homens foram presos
e acusados de advogarem o derrube do Estado. A 19 de Julho de 1965 foram
condenados à prisão, por três e três anos e meio, respectivamente. As
autoridades foram sensíveis aos termos impecavelmente marxistas das suas
críticas, ao seu uso efectivo dos dados sociais para sublinharem o mau
desempenho económico do regime e ao seu apelo a uma revolução operária
para substituir a ditadura burocrática em vigor (um toque neo-trotskista que
não ajudou os autores)(7). Acima de tudo, talvez, o Partido estava
determinado a travar precisamente a combinação de diagnóstico intelectual e
acção proletária a que a carta de Kuron-Modzelewski fazia apelo.
O caso Kuron-Modzelewski provocou uma sentida resposta na
universidade. O julgamento secreto dos dois estudantes foi um choque e
houve pedidos não só para a sua libertação como para que a Carta e anteriores
artigos de investigação fossem tornados públicos. Professores mais antigos
aderiram ao seu caso. Leszek Kolakowski, professor de Filosofia na
Universidade de Varsóvia, no ano seguinte dirigiu-se aos estudantes do
Instituto de História, no 10.o aniversário da sessão plenária do Partido Polaco
de Outubro de 1956. O Outubro Polaco foi uma oportunidade perdida,
explicou. Dez anos depois a Polónia era uma terra de privilégios, ineficácia e
censura. Os comunistas tinham perdido contacto com a nação e a repressão de
Kuron, Modzelewski e das críticas que tinham formulado, era um sinal do
declínio do Partido – e do país.
Em conformidade, Kolakowski foi expulso do Partido como um «burguês
liberal», embora os seus colegas da Universidade de Varsóvia tenham
corajosamente afirmado as suas credenciais marxistas internacionalmente
reconhecidas. Vinte e dois escritores e intelectuais comunistas proeminentes
escreveram então ao Comité Central defendendo o «camarada Kolakowski»
como sendo o porta-voz de uma «cultura e democracia livre e autenticamente
socialista». Foram por sua vez expulsos do Partido. Na Primavera de 1967 a
desajeitada direcção polaca, furiosa com as críticas da sua Esquerda, tinha
conseguido forjar uma oposição intelectual genuína e a Universidade de
Varsóvia tornara-se um centro de revolta estudantil – em nome da liberdade
de expressão e na defesa, entre outras coisas, dos seus professores
perseguidos.
O tema da liberdade de expressão na Universidade de Varsóvia teve uma
mudança imprevista em Janeiro de 1968. Desde finais de Novembro de 1967
que o teatro da universidade estava a representar uma encenação de Eva dos
Antepassados, uma peça de Adam Mickiewicz, poeta nacional polaco. Escrita
em 1832, mas perigosamente contemporânea na sua descrição dos rebeldes do
século XIX a lutarem contra a opressão, a peça atraíra públicos animados e
distintamente empenhados. Em finais de Janeiro as autoridades comunistas
anunciaram que a peça tinha de ser cancelada. A seguir à última actuação,
centenas de estudantes marcharam até ao monumento a Mickiewicz na capital
polaca, denunciando a censura e exigindo um «teatro livre». Dois dos
estudantes, Henryk Szlajfer e Adam Michnik descreveram a situação ao
correspondente em Varsóvia do Le Monde, cuja reportagem continuou depois
na Rádio Europa Livre: Michnik e o seu colega foram por isso expulsos da
Universidade.
A resposta foi uma onda de petições organizadas pelos estudantes ao
Parlamento polaco, resoluções solidárias na delegação de Varsóvia da
Associação dos Escritores Polacos e discursos de Kolakowski e outros
proeminentes professores e escritores em defesa dos estudantes. Um escritor
denunciou publicamente o tratamento dado pelo comunismo à cultura como
sendo a «ditadura dos parvos». A 8 de Março uma reunião de estudantes na
Universidade de Varsóvia para protestar contra a expulsão de Michnik e
Szlajfer foi violentamente interrompida pela polícia. Três dias depois
seguiram-se manifestações estudantis a nível nacional e uma greve na própria
Universidade de Varsóvia. Os círculos neo-estalinistas dentro do Partido
começaram a falar ameaçadoramente da perda de controlo do Partido, alguns
até alertando Moscovo dos perigos do «revisionismo» estilo Checoslováquia.
O regime de Gomulka retaliou com veemência. A greve e consequentes
protestos foram esmagados com considerável violência – suficiente para fazer
com que um membro do Politburo e dois ministros do governo se demitissem
em sinal de protesto. Mais 34 estudantes e seis professores (incluindo
Kolakowski) foram despedidos da Universidade de Varsóvia. Depois, a seguir
ao esmagamento da Primavera de Praga na vizinha Checoslováquia (ver
abaixo), as autoridades prenderam os organizadores dos protestos e petições
contra a invasão soviética e levaram-nos a tribunal. Numa longa série de
julgamentos efectuados entre Setembro de 1968 e Maio de 1969, os
estudantes e outros intelectuais de Varsóvia, Wroclaw, Cracóvia e Lodz foram
condenados a penas que iam de seis meses a três anos por «participação em
organizações secretas», «distribuição de publicações contra o Estado» e
outros crimes. As sentenças mais severas foram aplicadas aos que, como
Adam Michnik, Jan Litynski e Barbara Torunczyk, também tinham estado
activos nos protestos estudantis iniciais.
Uma quantidade desproporcionada de estudantes e professores detidos,
expulsos e presos na Polónia nos anos 1967-69 era de origem judaica, o que
não era coincidência. Desde o regresso ao poder de Gomulka em 1956 que a
ala conservadora (neo-estalinista) do Partido Polaco andava à procura de uma
ocasião para desfazer até as limitadas liberalizações que ele introduzira. Sob a
orientação de Mieczyslaw Moczar, o ministro do Interior, esta oposição
interna do partido tinha-se agrupado à volta da causa do anti-semitismo.
Da morte de Estaline até 1967, o anti-semitismo – apesar de endémico na
Europa de Leste e na própria União Soviética – ficara de fora da retórica
comunista oficial. Depois da guerra a maior parte dos judeus sobreviventes da
Europa de Leste tinha ido para Ocidente ou para Israel. Dos que ficaram,
muitos fugiram, se puderam, no decorrer das perseguições dos últimos anos
de Estaline. Havia ainda comunidades substanciais de judeus na Polónia e
(especialmente) na Hungria; mas muitos não eram judeus praticantes e não
pensava em si tipicamente como judeus. No caso dos nascidos depois da
guerra, muitas vezes nem sabiam que o eram – os pais tinham achado
prudente manter-se calados(8).
Na Polónia especialmente, o ainda considerável número de judeus
comunistas – alguns com funções políticas, outros nas universidades e
profissões liberais – era indiferente à sua base judaica, alguns suficientemente
ingénuos para acharem que a sua indiferença era partilhada pelos Polacos em
geral. Mas eram um alvo irresistível para quem procurasse uma via para o
poder dentro do Partido e a popularidade demagógica no país em geral(9). Só
faltava a oportunidade e a Guerra dos Seis Dias entre Israel e os seus vizinhos
árabes forneceu-a devidamente em Junho de 1967. O apoio soviético à causa
árabe legitimou a crítica explícita de Israel, do Sionismo – e dos judeus.
Assim, num discurso a 19 de Junho de 1967 condenando os que tinham
defendido Israel no recente conflito, Gomulka descaradamente misturou os
seus críticos judeus com o Estado sionista: «Quero anunciar que não
impediremos os cidadãos polacos de nacionalidade judaica de regressarem
[sic] a Israel se o quiserem fazer. A nossa posição é a de que cada cidadão
polaco deve ter uma pátria: a Polónia do Povo… Que aqueles que acharem
que estas palavras lhes são dirigidas, independentemente da sua
nacionalidade, tirem as devidas conclusões. Não queremos uma Quinta
Coluna no nosso país». A referência aos judeus como Quinta Coluna polaca
foi passada na rádio e televisão e ouvida por milhões de polacos. A sua
mensagem não era ambígua.
Quer Gomulka estivesse a exprimir os seus próprios pontos de vista, a
procurar bodes expiatórios para os insucessos políticos da década anterior ou
simplesmente a antecipar os esforços de Moczar para o destronar e estivesse
decidido a levar vantagem sobre os seus opositores estalinistas, nunca foi
claro. Mas as consequências da sua decisão foram dramáticas. As autoridades
polacas soltaram uma torrente de preconceitos contra os judeus: por toda a
Polónia, mas especialmente no Partido e nas instituições académicas. Os
apparatchiks do partido espalharam sugestões de que a escassez económica e
outros problemas eram obra dos judeus comunistas. Faziam abertamente
distinções entre «bons» comunistas, com os interesses nacionais polacos no
coração e os outros (judeus) cuja verdadeira afiliação estava em outro lado.
Em 1968, os pais e outros parentes dos estudantes judeus presos ou
expulsos foram eles mesmos despedidos de funções oficiais e de postos
académicos. Os procuradores davam especial atenção aos nomes e origens
dos estudantes e professores que apareciam no tribunal – conhecido no de
Slansly e em outros julgamentos dos anos 50, mas a primeira vez na Polónia
comunista. No auge do frenesi anticomunista, os jornais definiam os judeus
por critérios derivados directamente das Leis de Nuremberga – não
surpreendentemente, talvez, dada a presença de fascistas reciclados entre a ala
estalinista do Partido governante.
Os judeus eram agora convidados a abandonar o país. Muitos fizeram-no,
em condições humilhantes e com grande custo pessoal. Dos restantes 30 000
judeus da Polónia, uns 20 000 partiram em 1968-69, deixando para trás
unicamente alguns milhares, a maior parte idosos e jovens – incluindo
Michnik e os seus companheiros estudantes, agora a cumprirem pena na
cadeia. Entre os beneficiários desta sublevação encontravam-se Moczar e os
seus apoiantes, que assumiram o controlo do Partido e dos lugares no governo
desocupados pelos seus ocupantes judeus. Os derrotados, para além dos
judeus polacos, foram as instituições educacionais do país (que perderam
muitos dos seus melhores alunos e professores, incluindo Kolakowski – que
não era judeu mas era casado com uma judia), Gomulka, que percebeu
demasiado tarde o que tinha desencadeado, tendo sido ele mesmo afastado
dois anos depois, e a própria Polónia, com a sua reputação internacional uma
vez mais – e por muitos anos – inextrincavelmente associada à vitimização da
sua minoria judia.
A relativa facilidade com que os dirigentes polacos conseguiram isolar e
destruir os manifestantes estudantis resultou do seu êxito em separar os
intelectuais e os seus descontentes do resto da nação – uma estratégia em que
o anti-semitismo representou naturalmente um papel útil. Os próprios
estudantes talvez tenham tido nisto alguma responsabilidade: especialmente
na Universidade de Varsóvia foram os filhos e filhas privilegiados da
nomenklatura comunista polaca que assumiram os papéis mais proeminentes
nos protestos e manifestações e as suas preocupações centravam-se sobretudo
em temas de liberdade de expressão e direitos políticos. Tal como os seus
inimigos neo-estalinistas foram rápidos a referir, a intelligentsia dissidente de
Varsóvia dava pouca atenção às preocupações de subsistência da população
trabalhadora. Em contrapartida, a massa do povo polaco era deliberadamente
indiferente à perseguição aos judeus e aos estudantes, especialmente aos
estudantes judeus.
Dois anos depois, em 1970, quando o governo aumentou o preço dos
alimentos em 30% e os trabalhadores dos estaleiros de Gdansk fizeram uma
greve de protesto, o cumprimento foi trágica, ainda que não intencionalmente,
devolvido: não havia ninguém para se dedicar à causa. Mas a lição destes
anos – que se os operários e intelectuais polacos queriam desafiar o Partido,
teriam de estabelecer ligação entre a sua indiferença mútua e criar uma
aliança política – iria na devida altura ser bem entendida e aplicada com
efeitos históricos, acima de tudo pelos próprios Adam Michnik e Jacek
Kuron. A este respeito, pelo menos, 1968 na Polónia teve um resultado
positivo, embora adiado. Não se podia dizer o mesmo da vizinha
Checoslováquia.
A Checoslováquia no início dos anos 60 era uma coisa híbrida, apanhada
numa desconfortável transição do estalinismo nacional para o comunismo
reformado. Os julgamentos encenados e as purgas dos anos 50 tinham
chegado tarde a Praga e o seu impacto fora simultaneamente maior e mais
duradouro que em qualquer outro lado. Não houve rotação da velha elite
estalinista, nenhum Gomulka ou Kadar checos. A velha guarda do regime
manteve-se no lugar. Estabeleceram-se duas Comissões de investigação para
averiguarem o julgamento de Slansky e outros: a primeira esteve em funções
de 1955-57, a segunda de 1962-63. A finalidade por detrás de ambas as
comissões era reconhecer de algum modo o passado recente criminoso do
regime sem abrandar qualquer controlo do presente.
A curto prazo atingiu-se este objectivo. As vítimas dos julgamentos
estalinistas foram libertadas e reabilitadas – em muitas circunstâncias por
ordem dos mesmos políticos, juízes, procuradores e inquiridores que os
tinham condenado. Os ex-prisioneiros receberam novamente o seu cartão de
membros do Partido, algum dinheiro, senhas (por exemplo para um carro) e
em certos casos até os seus apartamentos. As suas mulheres e filhos puderam
novamente encontrar trabalho e frequentar a escola. Mas apesar deste
reconhecimento de facto das injustiças passadas, o Partido e a sua direcção da
era estalinista mantiveram-se intactos e em funções.
Tal como o dirigente comunista francês Maurice Thorez, o Primeiro
Secretário Antonin Novotny esperou muitos anos para se certificar de que
lado soprava o vento antes de seguir o exemplo de Khrushchev e denunciar o
ditador soviético. A experiência checa de intenso terror estalinista era tão
recente e tão extrema que os dirigentes do Partido estavam relutantes em
arriscar qualquer admissão de «erro» – com receio de que as consequências
de o fazerem mitigassem as convulsões de 56 na Polónia ou mesmo na
Hungria. O repúdio do estalinismo na Checoslováquia foi, assim,
deliberadamente retardado tanto quanto possível – até mesmo a monumental
estátua de Estaline, nas colinas junto a Praga, assim como a cópia bastante
mais pequena na capital eslovaca, Bratislava, ficou intacta até Outubro de
1962(10).
As consequências da revolução social comunista tinham sido sentidas mais
dramaticamente na Checoslováquia do que em qualquer outro sítio, em
grande parte precisamente por, conforme vimos, ser uma sociedade burguesa
desenvolvida – em contraste com qualquer outro país sujeito ao domínio
soviético. As principais vítimas do terror estalinista na Checoslováquia
tinham sido todas intelectuais, normalmente originárias da classe média,
muitas delas judias. Outras classes da sociedade da Checoslováquia não
tinham sofrido tanto. O aumento da mobilidade social para os trabalhadores –
ou, mais precisamente, o decréscimo de todos os outros – era uma
característica peculiar dos anos 50 nos territórios checos e eslovacos. A
percentagem de filhos da classe operária no ensino superior na
Checoslováquia subiu de menos de 10% em 1938 para 31% em 1956, para
quase 40% em 1963. A distribuição dos rendimentos na Checoslováquia nos
inícios dos anos 60 era a mais igualitária da Europa soviética.
A direcção comunista tinha assim feito avançar de facto a Checoslováquia
para o «socialismo total», conforme proclamava a nova constituição de 1960.
No entanto, esta proeza fora conseguida ao preço de um nível de estagnação
inaceitável, mesmo pelos padrões soviéticos. Daí a decisão das autoridades do
Partido, no 12.o Congresso do Partido em Dezembro de 1962, de «adaptar a
economia nacional» ao avançado estado de desenvolvimento socialista do
país – i.e. aceitar o inevitável e permitir um mínimo de reformas não
socialistas para revigorar a economia estagnada. No entanto, as mudanças
propostas por Ota Sik e outros economistas reformistas do Partido – tais como
ligar incentivos do trabalho a uma partilha dos lucros da fábrica em vez da
realização de Planos oficiais ou normas – não foram populares entre os da
linha dura do Partido e só foram por fim aprovadas no 13.o Congresso, quatro
anos depois.
Por essa altura, conforme a direcção sempre temera, a combinação de
reabilitações públicas, o cauteloso reconhecimento dos erros de Estaline e a
perspectiva de reformas mesmo que ligeiras na economia tinham aberto
caminho a interrogações muito mais sérias sobre o total controlo da vida
pública pelo Partido. As reformas económicas iniciadas em 1963 podem não
ter sido universalmente bem recebidas pelos operários fabris; mas entre os
escritores, professores, realizadores de cinema e filósofos a perspectiva de um
abrandamento dos grilhões estalinistas libertou uma avalanche de críticas,
esperanças e expectativas.
Assim, uma conferência de escritores em Liblice, em 1963, foi dedicada a
Franz Kafka. Até então este era um tema tabu: em parte por Kafka ter sido um
judeu de Praga que escreveu em alemão e por isso uma memória da história
perdida da Boémia, mas sobretudo devido à embaraçosa e aguda expectativa,
em muitos dos escritos de Kafka, da lógica do totalitarismo. E assim a
autorização para debater Kafka parecia pressagiar uma liberalização muito
mais ampla do debate público: da discussão de escritores proibidos à menção
de dirigentes assassinados foi um pequeno passo. Em Abril de 1963, Ladislav
Novomesky, um escritor eslovaco reabilitado, fez publicamente uma menção
elogiosa no Congresso dos Escritores Eslovacos ao seu «camarada e amigo»
Clementis, uma vítima do julgamento de Slansly. O desejo de falar – de falar
do passado – estava agora no centro das atenções, embora ainda disfarçado
numa cuidadosa linguagem «revisionista»: quando o jovem romancista Milan
Kundera escreveu um artigo para o periódico cultural de Praga Literární
Noviny, em Junho de 1963, as suas críticas confinavam-se cuidadosamente ao
«desvio» estalinista na literatura checa e à necessidade de dizer a verdade a
esse respeito.
O espírito relativamente liberal destes anos era uma repercussão checa
tardia do descongelamento de Khrushchev. Apesar da mudança de tom de
Moscovo a seguir ao golpe de Brejnev, o renascimento artístico na
Checoslováquia continuou a processar-se, só esporadicamente impedido pela
censura e pela pressão. Para os estrangeiros, o sintoma mais conhecido era
uma torrente de novos filmes abordando cautelosamente temas que teriam
sido proibidos uns anos antes – Comboios Observados de Perto de Jiri
Menzel (1966), desmascarando delicadamente a essência do mito comunista
da resistência antinazi durante a guerra, foi escrito em parceria com Josef
Skvorecky (autor de Os Covardes, um romance cujo tema semelhante,
prudentemente esboçado, lhe trouxera fama uns anos antes). Mas
dramaturgos, poetas e romancistas – muitos dos quais, incluindo Kundera, se
desdobraram em argumentistas durante estes anos – representaram um papel
ainda mais importante.
Em 1966, Ludvik Vaculík publicou O Machado, um relato ficcionado
baseado nas ideias comunistas do seu próprio pai – e da subsequente
desilusão do filho. Em 1967 outro escritor, Ladislas Mnacko, publicou uma
crítica mordaz a Novotny e à nomenklatura do Partido, vagamente disfarçada
sob a forma de romance, com o título transparente O Gosto pelo Poder. No
mesmo ano o próprio Kundera publicou A Anedota, um romance neo-
existencialista e confessadamente autobiográfico sobre a geração estalinista
na Checoslováquia. Esses anos, «a era do socialismo em construção», como
eram oficialmente conhecidos, eram agora motivo legítimo para a condenação
intelectual e no 4.o Congresso de Escritores Checos no Verão de 1967,
Kundera, Vaculík, o poeta e dramaturgo Pavel Kohout e o jovem dramaturgo
Vaclav Havel atacaram a direcção comunista da época pela devastação
material e moral que tinha causado. Apelaram a um regresso à herança
literária e cultural da Checoslováquia e ao retorno do país uma vez mais ao
seu lugar «normal» no centro de uma Europa livre.
O ataque implícito à liderança em vigor da Checoslováquia era óbvio para
todos – certamente, como agora sabemos, a liderança do Kremlin estava já a
observar a situação em Praga com alguma desconfiança: havia muito que
Brejnev considerava a Checoslováquia o elemento menos ideologicamente
fiável do Pacto de Varsóvia. Foi por saberem isto que os idosos estalinistas do
Castelo de Praga tentaram durante tanto tempo manter a ligação. Se não
controlaram firmemente a emergente oposição intelectual em 1967, não foi
por falta de vontade. Mas foram impedidos por dois constrangimentos: a
necessidade de prosseguirem com as reformas económicas recentemente
implementadas, o que implicava alguma abertura e tolerância para com as
opiniões dissidentes ao longo das fronteiras húngaras e as emergentes
dificuldades na Eslováquia.
A Checo-Eslováquia (como era inicialmente conhecida) tinha sido sempre
um Estado inquieto e desequilibrado. A minoria eslovaca a sul e a leste do
país era mais pobre e mais rural do que os Checos do noroeste. Libertos do
governo húngaro em 1918, os Eslovacos eram os parentes pobres na
multiétnica Checoslováquia de entre guerras e nem sempre eram bem tratados
por Praga. Muitos dirigentes políticos eslovacos tinham assim recebido bem a
divisão do país em 1939 e o aparecimento, patrocinado pelos nazis, de um
Estado-fantoche «independente» com a capital em Bratislava. Inversamente,
foram os Checos fortemente sociais-democratas da Boémia e da Morávia que
apoiaram os candidatos comunistas nas eleições pós-guerra, enquanto os
Eslovacos católicos se mantinham indiferentes ou contrários.
Seja como for, a Eslováquia não se tinha portado mal sob o comunismo.
Os intelectuais eslovacos foram vítimas das purgas comunistas, acusados de
nacionalismo burguês ou conspiração anticomunista (ou as duas coisas). E o
pequeno número de judeus eslovacos sobreviventes sofreu juntamente com os
seus confrades checos. Mas os «nacionalistas burgueses», comunistas, judeus
e intelectuais eram na Eslováquia em menor número e encontravam-se muito
mais isolados do resto da sociedade. A maior parte dos Eslovacos era pobre e
trabalhava no campo. Para eles a rápida urbanização e industrialização da
primeira década do pós-guerra trouxe reais benefícios. Ao contrário dos
Checos, não estavam de maneira nenhuma desagradados com a sua sorte.
No entanto, o estado de espírito na região eslovaca do país mudou
bruscamente depois de 1960. A nova Constituição «socialista» fez ainda
menos concessões à iniciativa local ou à opinião que a antecedente, e uma
autonomia como a que fora concedida à Eslováquia durante a reconstrução do
país após a guerra foi agora retirada. De mais imediatas consequências para a
maior parte dos Eslovacos, porém, foi a estagnação da economia (em 1964 a
taxa de crescimento na Checoslováquia era a mais lenta do bloco), o que
atingiu a indústria pesada da Eslováquia central mais duramente que em
qualquer outro lado.
Em Janeiro de 1967, Novotny já devia ter dado início à implementação das
há muito necessitadas reformas económicas recomendadas pelos peritos do
seu próprio Partido. As propostas de descentralização da tomada de decisões
dos economistas reformistas e a autonomia local tinham sido bem recebidas
em Bratislava – embora algumas das reformas, tais como incentivos salariais
relacionados com os lucros, dificilmente tenham sido calculadas para agradar
aos trabalhadores não especializados das ineficientes fábricas industriais da
Eslováquia. Mas todos os instintos de Novotny lhe diziam para resistir a um
tal abrandamento de controlo do Partido e em vez disso encorajou correcções
às alterações propostas com o objectivo de reforçar as instituições do
planeamento central. Isto não só sabotou as propostas de Sik e de outros
economistas do partido, como alienou ainda mais a opinião pública eslovaca.
Os próprios comunistas eslovacos começavam agora a falar na necessidade de
federação e nas dificuldades em colaborar com os velhos comunistas
apparatchiks de Praga. Fazendo eco de uma queixa há muito existente dos
operários da construção civil, professores e lojistas eslovacos sentiam-se
insignificantes e ignorados pela maioria checa. Falava-se em indignidades de
antes da guerra, há muito esquecidas, assim como nas purgas estalinistas de
comunistas eslovacos.
Entretanto e pela primeira vez em anos, havia uma sugestão de problemas
de outra ordem. A 31 de Outubro de 1967, um grupo de estudantes da
Universidade Técnica de Praga organizou uma manifestação de rua na região
de Strahov para protestarem contra os cortes de energia nos seus dormitórios:
no entanto, os seus gritos de «Mais luz!» foram correctamente interpretados
como indo além das dificuldades internas locais. Os «acontecimentos de
Strahov», como foram mais tarde designados, foram eficaz e violentamente
reprimidos pela polícia; mas aumentaram a atmosfera carregada do momento,
tanto mais que pareciam sugerir que um Estado comunista poderia não estar
imune ao estado de espírito dos estudantes no Ocidente.
Novotny, tal como Gomulka na Polónia, não sabia bem como responder a
tais provocadores. Faltando-lhe a opção anti-semita, voltou-se para Brejnev
para que o ajudasse a negociar com os seus críticos locais. Mas quando o
dirigente soviético chegou a Praga, em Dezembro de 1967, apresentou só a
bastante obscura recomendação para que o Presidente da Checoslováquia
fizesse conforme entendesse: «É assunto seu». Os colegas de Novotny
agarraram a oportunidade: a 5 de Janeiro de 1968 o Comité Central do Partido
Comunista Checo elegeu um novo Primeiro Secretário, Alexandre Dubcek.
O novo homem era jovem (com 47 anos, era 16 anos mais novo que
Novotny), da ala reformista do partido e, acima de tudo, eslovaco. Dirigente
do Partido Comunista Eslovaco durante os últimos três anos, parecia a muitos
ser um credível futuro candidato: um apparatchik comunista de longa data
que de qualquer maneira apoiaria as reformas e pacificaria os ressentimentos
eslovacos. As primeiras movimentações de Dubcek pareciam confirmar esta
leitura: um mês depois da sua nomeação a direcção do Partido deu de bom
grado aprovação ao programa de reformas económicas. Os modos bastante
despretensiosos de Dubcek agradavam em especial aos jovens, enquanto a sua
inquestionável lealdade ao Partido e ao «socialismo» tranquilizava por
enquanto o Kremlin e outros dirigentes comunistas estrangeiros, que assistiam
ansiosamente.
Se as intenções de Dubcek eram obscuras para os observadores, isso
devia-se provavelmente ao facto de ele próprio não ter a certeza de para onde
ir. Ao princípio a sua ambiguidade funcionou a seu favor, dado que as
diferentes facções contavam com o seu apoio e se ofereciam para lhe
fortalecer a mão. Comícios públicos em Praga nas semanas após a sua eleição
exigiram o fim da censura, maior liberdade de imprensa e um inquérito
genuíno às purgas efectuadas nos anos 50 e às responsabilidades da velha
guarda em torno de Novotny (que se manteve Presidente do país mesmo
depois de ter sido expulso da direcção do Partido). Levado por esta onda de
entusiasmo popular, Dubcek defendeu o pedido de abrandamento da censura e
iniciou uma limpeza de pró-Novotnys do Partido e do Exército checos.
A 22 de Março, Novotny demitiu-se relutantemente da presidência e foi
substituído uma semana depois pelo general Ludvik Svoboda. Cinco dias
depois, o Comité Central aprovou um «Programa de Acção» designando um
estatuto igual e autonomia para a Eslováquia, a reabilitação de anteriores
vítimas e a «democratização» do sistema político e económico. O Partido
estava agora a aprovar oficialmente aquilo a que o programa chamava «uma
experiência única em comunismo democrático»: «socialismo com rosto
humano» como veio a ser coloquialmente conhecido. Durante determinado
período de tempo (o documento falava numa transição de dez anos), o Partido
Comunista da Checoslováquia permitiria o aparecimento de outros partidos
com os quais concorreria em eleições genuínas. Dificilmente se tratava de
ideias originais, mas pronunciadas publicamente pelos órgãos oficiais de um
Partido Comunista reinante desencadearam um terramoto político. Começara
a Primavera de Praga.
Os acontecimentos da Primavera e do Verão de 1968 na Checoslováquia
giravam em torno de três ilusões contemporâneas. A primeira, generalizada
no país depois da ascensão de Dubcek e especialmente a seguir à publicação
do Programa de Acção, era que as liberdades e reformas agora a ser discutidas
podiam ser integradas no projecto «socialista» (i.e. comunista); seria
incorrecto imaginar, em retrospectiva, que o que os estudantes e escritores e
os reformadores do Partido de 1968 «realmente» pretendiam era substituir o
comunismo pelo capitalismo liberal ou que o seu entusiasmo pelo «socialismo
de rosto humano» fosse um mero compromisso retórico ou um hábito. Pelo
contrário: a ideia de que existia uma «terceira via», um socialismo
democrático compatível com as instituições livres, respeitando as liberdades
individuais e os objectivos colectivos, tinha captado tanto a imaginação dos
estudantes checos como dos economistas húngaros.
A distinção que era agora feita entre o estalinismo desacreditado da
geração de Novotny e o renovado idealismo da era Dubcek era amplamente
aceite – mesmo, de facto especialmente, pelos membros do Partido(11).
Conforme afirmou Jiri Pelikán no seu prefácio de mais um terceiro relatório
sobre os julgamentos políticos checos (encomendado em 1968 por Dubcek e
suprimido depois da sua queda), «o Partido Comunista ganhara uma tremenda
popularidade e prestígio, as pessoas tinham-se declarado espontaneamente a
favor do socialismo»(12). Talvez seja um pouco hiperbólico, mas não estava
muito fora da linha de opinião contemporânea. E isto, por sua vez, alimentou
uma segunda ilusão.
Se as pessoas acreditavam que o Partido podia salvar o socialismo da sua
história, então a direcção do Partido acabou por imaginar que o podia gerir
sem perder o controlo do país. Um novo governo encabeçado por Oldrich
Cernik, empossado a 18 de Abril e incentivado por enormes manifestações
públicas de simpatia e apoio (nomeadamente as tradicionais celebrações do
1.o de Maio), afrouxou quase todos os controlos formais da liberdade de
expressão pública. A 26 de Junho a censura na imprensa e em todos os media
foi formalmente abolida. No mesmo dia foi anunciado que a Checoslováquia
passaria a ser um genuíno Estado federal, incluindo uma República Socialista
Checa e uma República Socialista Eslovaca (esta foi a única das reformas de
Dubcek a sobreviver à subsequente repressão, tornando-se lei a 28 de Outubro
de 1968).
Mas tendo abrandado todos os controlos da opinião, a direcção comunista
estava agora a ser pressionada de todos os lados para acompanhar a lógica das
suas acções. Para quê esperar dez anos por eleições abertas e livres? Agora
que a censura fora abolida, para quê reter o controlo formal e a propriedade
dos media? A 27 de Junho a Literárny Listy e outras publicações checas
publicaram um manifesto de Ludvík Vaculík, «Duas Mil Palavras», dirigido
aos operários, camponeses, funcionários, artistas, professores, cientistas e
técnicos. Requeria o restabelecimento dos partidos políticos, a formação de
comissões de cidadãos para defender e desenvolver a causa da reforma e
outras propostas para se tomar a iniciativa de mais alterações, mas fora do
controlo do Partido. A batalha ainda não estava ganha, avisou Vaculík: os
reaccionários do Partido iriam lutar para preservar os seus privilégios e até se
falava de «forças estrangeiras a intervirem no nosso desenvolvimento». As
pessoas precisavam de fortalecer o braço dos próprios reformadores
comunistas pressionando-os para avançarem ainda mais depressa.
Dubcek rejeitou o manifesto de Vaculík e as suas implicações de que os
comunistas deviam abandonar o seu monopólio do poder. Como comunista de
longa data não iria encorajar esta mudança qualitativa crucial («pluralismo
burguês») e, de qualquer maneira, não via necessidade de o fazer. Para
Dubcek, o Partido em si era o único veículo apropriado para a mudança
radical se os atributos vitais de um sistema socialista devessem ser
preservados. Quanto mais popular o Partido, mais mudanças podia
seguramente instituir. Mas como o manifesto de Vaculík tornava cruelmente
claro, a popularidade do Partido e a sua credibilidade iriam assentar cada vez
mais na sua vontade de prosseguir alterações que poderiam em última
instância afastá-lo do poder. A descontinuidade entre um Estado comunista e
uma sociedade aberta estava agora totalmente exposta.
E isto por sua vez dirigiu a atenção nacional no Verão de 1968 para a
terceira ilusão, a mais perigosa de todas: a convicção de Dubcek de que podia
manter Moscovo afastada, que conseguiria garantir aos seus camaradas
soviéticos que nada tinham a temer dos acontecimentos na Checoslováquia –
de facto, que tinham tudo a ganhar com a recente popularidade do Partido
Comunista da Checoslováquia e com a renovada fé num rejuvenescido
projecto socialista. Se Dubcek cometeu este mortal erro de cálculo foi
sobretudo porque os reformadores checos, de forma crucial, tinham
interpretado erradamente a lição de 1956. O erro de Imre Nagy, pensaram,
fora a sua saída do Pacto de Varsóvia e a declaração da neutralidade da
Hungria. Desde que a Checoslováquia se mantivesse firmemente no Pacto e
aliada de Moscovo sem ambiguidades, Leonid Brejnev e os seus colegas de
certeza que os deixariam em paz.
Mas em 1968 a União Soviética estava menos preocupada com a
segurança militar do que com a perda do controlo monopolista do Partido.
Logo em 21 de Março, numa reunião do Politburo Soviético, o dirigente do
Partido Ucraniano, Petro Shelest, queixou-se de contaminação do exemplo da
Checoslováquia: rumores de Praga estavam a ter um impacto adverso no
estado de espírito dos jovens ucranianos, relatou. Os dirigentes polacos e da
Alemanha de Leste fizeram objecções semelhantes aos seus colegas
soviéticos num encontro em Dresden no mesmo mês (Gomulka, com os seus
próprios problemas internos, estava especialmente zangado com a crítica
pública em Praga à deriva da Polónia para o anti-semitismo). Com o
desconhecimento de Praga, o chefe do KGB, Yuri Andropov, já estava a falar
numa possível necessidade de «medidas militares concretas» e em Abril o
ministro da Defesa soviético, Andrei Grechko, foi secretamente autorizado a
formular um plano de contingência para operações militares na
Checoslováquia – um primeiro esboço do que iria ser a «Operação Danúbio».
A cada passo liberalizante em Praga, Moscovo ia ficando cada vez mais
inquieta. Dubcek deve-se ter apercebido disto: a 4-5 de Maio, ele e outros
comunistas checos visitaram Moscovo e foram presenteados pelos dirigentes
do bloco de Leste com uma lista de queixas sobre os desenvolvimentos nos
seus países. Mas embora Dubcek continuasse a insistir que o Partido tinha
tudo sob controlo e que por muito livre que o discurso checo se tivesse
tornado, não havia hipótese do país romper com as suas obrigações fraternas,
a lealdade do Exército checo estava agora a ser posta em dúvida e a imprensa
checa não censurada estava a publicar dissidentes soviéticos. Os estudantes
russos que visitavam Praga podiam agora ler e ouvir pessoas e opiniões há
muito banidas no seu país. Praga estava a tornar-se uma janela para o
Ocidente.
Mas em Julho de 1968, Moscovo chegara à conclusão de que os
acontecimentos em Praga estavam a resvalar para fora do controlo do Partido
– e de facto deviam estar. Numa reunião em Moscovo, a 14 de Julho, de
dirigentes do Partido da URSS, a Polónia, a Alemanha de Leste, a Bulgária e
a Hungria – mas não os Checos – concordou-se em enviar uma carta fraterna
ao Partido da Checoslováquia avisando-o do risco de contra-revolução e
fazendo uma lista das medidas que deviam ser tomadas: «A situação na
Checoslováquia põe em perigo os interesses vitais comuns a outros países
socialistas». Duas semanas depois, os dirigentes soviéticos e checos
encontraram-se na fronteira checoslovaca-soviética em Cierna nad Tisou, e
Dubcek tentou uma vez mais convencer Brejnev de que o Partido Comunista
não estava a pôr a sua posição em perigo ao promulgar reformas, antes a
fortalecer o seu apoio público.
O dirigente soviético não só não ficou convencido: foi-se embora cada vez
mais céptico com as expectactivas de Dubcek. O Pacto de Varsóvia anunciou
manobras perto da fronteira checa. Numa reunião do Pacto de Varsóvia em
Bratislava a 3 de Agosto (a que Ceausescu da Roménia declinou assistir),
Brejnev expôs a doutrina que a partir daí ficaria associada ao seu nome:
«Cada partido comunista é livre de aplicar os princípios do marxismo-
leninismo e do socialismo no seu próprio país, mas não é livre para se desviar
destes princípios se quiser continuar a ser um partido comunista… O
enfraquecimento de qualquer dos elos do sistema mundial de socialismo
afecta directamente todos os países socialistas e eles não podem olhar para
isto com indiferença.»
Esta declaração, uma asserção ligeiramente velada ao direito do Kremlin
de actuar preventivamente para travar uma ameaça ao socialismo em qualquer
país socialista, bem podia ter feito com que Dubcek hesitasse. Mas havia
pouco que ele pudesse fazer e, assim, continuou a insistir em que as suas
reformas internas não representavam qualquer ameaça ao sistema socialista. A
13 de Agosto, numa conversa telefónica com um desconfiado Brejnev,
Dubcek explicou meticulosamente que estava a tentar suprimir as críticas
populares à União Soviética mas que «este assunto não pode simplesmente
ser resolvido com uma directiva vinda de cima». Se tivesse sabido que cinco
dos seus colegas do Presidium da Checoslováquia tinham secretamente
entregue aos Russos uma carta em 3 de Agosto descrevendo uma ameaça
iminente à ordem comunista na Checoslováquia e a pedir intervenção militar,
podia ter tido uma opinião diferente(13).
A decisão soviética de invadir a Checoslováquia só foi formalmente
tomada a 18 de Agosto. Parece que Brejnev estava relutante – sentindo
intuitivamente que por muito fácil que a vitória fosse, as repercussões poder-
se-iam revelar preocupantes – mas tinha-se praticamente tornado inevitável
antes disso. Os dirigentes soviéticos previram que o próximo 14.o Congresso
do Partido Comunista Checo poderia estabelecer um controlo decisivo por
parte da ala reformista do Partido e por essa altura estavam verdadeiramente
assustados com o impacto contagioso do exemplo checo sobre os seus
vizinhos. Como Grechko disse quando informou os chefes militares
soviéticos reunidos da decisão de invadir: «A invasão dar-se-á mesmo que
conduza a uma terceira guerra mundial». Mas os dirigentes soviéticos sabiam
muito bem que não existia tal risco e não só por Washington ter as mãos
ocupadas no Vietname. Apenas cinco semanas antes, Washington e Moscovo
tinham assinado um Tratado de Não-Proliferação Nuclear; os Estados Unidos
não estavam interessados em arriscar estas conquistas em benefício de uns
milhões de Checos desorientados. E assim, a 21 de Agosto de 1968, 500 000
soldados do Pacto de Varsóvia da Polónia, Hungria, Bulgária, RDA e União
Soviética marcharam sobre a Checoslováquia(14).
A invasão encontrou alguma resistência passiva e muitos protestos de rua,
especialmente em Praga; mas por ordem urgente do governo checo não teve
outra oposição. A recepção desfavorável foi fonte de alguma surpresa para a
chefia soviética, que tinha sido levada a esperar que os tanques iriam
encontrar apoio generalizado. Tendo começado por prender Dubcek e os seus
colegas dirigentes, de os terem levado de avião para Moscovo e obrigado a
assinar um papel renunciando a partes do seu programa e a concordar com a
ocupação soviética do seu país, o Kremlin era agora obrigado a aceitar que os
reformadores tinham o apoio do povo checo e eslovaco e a permitir-lhes que
mantivessem o controlo formal do seu país, pelo menos momentaneamente.
Era claramente imprudente proceder de outra maneira.
No entanto, a repressão das reformas de Praga – «normalização», como
veio a ser conhecida – começou quase de imediato. O Congresso do Partido
agendado foi cancelado, a censura foi reintroduzida e deixou de se falar na
implementação do Programa de Acção. Entre os dirigentes soviéticos havia
um apoio considerável à imposição de uma ditadura militar em Praga. Esta
era a preferência não só de Andropov e Shelest, como também –
reveladoramente – de Walter Ulbricht, da RDA, Todor Zhivkov, da Bulgária e
de Gomulka, da Polónia. Mas em vez disso Brejnev decidiu deixar Dubcek
em funções durante mais alguns meses, prosseguir com a federalização do
país (com o objectivo de separar os Eslovacos – agora concedida a sua
principal exigência – dos Checos mais radicais) e ver como se desenrolavam
os acontecimentos – ao mesmo tempo que, pelo sim pelo não, mantinha a
presença do Pacto de Varsóvia.
Houve manifestações ocasionais de estudantes em defesa das reformas e
nas cidades industriais da Boémia e Morávia emergiu, brevemente, uma rede
de comités de trabalhadores segundo o modelo de 1956 na Hungria (no seu
auge, em Janeiro de 1969, estas assembleias afirmavam representar um em
seis da força de trabalho nacional, apesar de serem muito fracas na
Eslováquia). E houve o suicídio de Jan Palach, um estudante de 20 anos da
Universidade de Charles que se imolou pelo fogo nos degraus do Museu
Nacional na Praça Venceslau, em Praga, como protesto contra a invasão
soviética e suas consequências. Palach sobreviveu três dias antes de morrer
das queimaduras, a 19 de Janeiro de 1969. O seu funeral, a 25 de Janeiro, foi
dia de luto nacional: por Palach e pela democracia perdida da
Checoslováquia.
Na próxima vez em que os manifestantes pró-democracia foram para as
ruas (a seguir à vitória da Checoslováquia sobre a URSS num jogo de hóquei
no gelo), o Kremlin explorou a ocasião para afastar Dubcek e substituí-lo a 17
de Abril de 1969 por um dos seus anteriores colegas, Gustav Husák. Como
eslovaco e antiga vítima de julgamento (tinha sido preso durante os anos de
Estaline por «nacionalismo»), Husák era o candidato ideal para limpar o
território da heresia reformista sem provocar acusações de regresso ao
estalinismo. A repressão que se seguiu foi menos intrusiva do que no passado,
mas altamente eficaz. Os julgamentos públicos foram evitados, mas nos dois
anos seguintes o Partido Comunista da Checoslováquia foi limpo de todos os
seus elementos «não fiáveis» (nove em cada dez dos expulsos eram checos).
Homens e mulheres que tinham estado activos ou se haviam destacado na
Primavera de Praga foram «entrevistados» e foi-lhes pedido que assinassem
declarações renunciando às suas acções e rejeitando as reformas de Dubcek.
A maioria assinou. Os que recusaram perderam os empregos e, juntamente
com os parentes e filhos, passaram a ser párias sociais. O maior grupo de
vítimas foi de longe o que, quer dentro quer fora do Partido, tinha
desempenhado um papel visível nos anos recentes: jornalistas, anunciantes da
televisão, ensaístas, romancistas, dramaturgos, realizadores ou dirigentes
estudantis(15).
O «rastreio» e limpeza destes intelectuais foram levados a cabo por
burocratas subalternos, polícias e funcionários do partido – muitas vezes,
colegas das próprias vítimas. O seu objectivo era extorquir confissões
mesquinhas – não tanto para incriminarem as suas vítimas, mas mais para as
humilharem e assim garantirem a sua colaboração na auto-subjugação de uma
sociedade agitada. Passou a mensagem de que o país tinha passado por uma
psicose em massa em 1968, que falsos profetas tinham explorado a «histeria»
consequente e que a nação necessitava de ser firmemente reconduzida ao
caminho correcto: induzida pela promessa dos bens de consumo e pela
repressão da vigilância omnipresente.
A ameaça de violência estava evidentemente sempre implícita mas o facto
de raramente ser invocada aumentava a humilhação colectiva. Uma vez mais,
como em 1938 e novamente em 1948, a Checoslováquia estava a ser tornada
cúmplice da sua própria derrota. Em 1972 – com poetas e dramaturgos
obrigados a limpar caldeiras e a lavar janelas; professores da universidade a
assentar tijolo e os seus estudantes mais turbulentos a serem expulsos, os
ficheiros da polícia cheios de úteis «confissões» e os comunistas reformistas
intimidados ou então exilados – a «ordem», nas palavras de um brilhante e
amargo ensaio de uma das vítimas da normalização, fora «restaurada»(16).
Houve ondas de protesto por todo o bloco comunista. A 25 de Agosto de
1968, os manifestantes na Praça Vermelha a protestarem contra a ocupação da
Checoslováquia incluíam Pavel Litvinov (neto do ministro dos Negócios
Estrangeiros de Estaline) e Larissa Daniel (mulher do romancista soviético
preso). Unidades do exército da Europa de Leste envolvidas na invasão da
Checoslováquia tinham sido levadas a acreditar que estavam a defender o país
contra invasores da Alemanha Ocidental ou americanos e alguns tiveram de
ser mais tarde silenciosamente retirados, pois a sua lealdade – nomeadamente
a de unidades húngaras que ocuparam a Eslováquia – fora seriamente posta
em questão. Na Polónia, como vimos, a repressão em Praga tanto estimulou
os protestos dos estudantes como fortaleceu a mão das autoridades para os
calcar. Em Abril de 1969, na capital da Letónia, Riga, uma estudante judia,
Ilia Rips, imolou-se pelo fogo para chamar a atenção para o tratamento
soviético dado a Dubcek. A atitude dos próprios Checos e Eslovacos, até
então entre as nações mais pró-Rússia do bloco soviético, agora virava
irrevogavelmente para uma posição de taciturna aquiescência.
Mas tudo isto foi facilmente reprimido. O Kremlin tinha mostrado a sua
posição – que os Estados socialistas fraternos só possuíam uma soberania
limitada e que qualquer lapso no monopólio do poder do Partido podia
desencadear uma intervenção militar. A impopularidade interna ou no
estrangeiro era um preço pequeno a pagar pela estabilidade que doravante isso
iria garantir. Depois de 1968, a segurança da zona soviética foi firmemente
assegurada por uma renovada apreciação da disposição de Moscovo em
recorrer à força se necessário. Mas nunca mais – e esta foi a verdadeira lição
de 1968, primeiro para os Checos mas na devida altura para toda a gente –,
nunca mais seria possível manter o comunismo assente no consentimento
popular, ou na legitimidade de um Partido reformado, ou mesmo nas lições da
história.
Em Praga, a extirpação do movimento reformista deixou um gosto
especialmente amargo. Muitos dos mais entusiastas expurgadores
encontravam-se entre os mais ruidosos entusiastas de Dubcek uns meses antes
– «foi só depois da Primavera de Praga de 1968», escreveu Zdenek Mlynar,
um dos principais reformadores do Partido Comunista, «que se começou a ver
quem era quem». A aparente facilidade com que primeiro Dubcek, depois o
Partido e finalmente toda a sociedade se pareciam submeter aos soberanos
soviéticos e aos seus mercenários locais não era apenas humilhante (doze
anos antes faziam-se pouco lisonjeiras comparações com a Hungria),
esclarecia, de forma céptica e em retrospectiva, os ideais e a esperança da era
das reformas.
Reflectindo em anos posteriores sobre as suas memórias de 21 de Agosto
de 1968, quando as tropas do Exército Vermelho irromperam numa reunião de
dirigentes checos do partido e um soldado se perfilou atrás de cada membro
do Politburo, Mlynar recordou que «num tal momento o nosso conceito de
socialismo passa para último lugar. Mas ao mesmo tempo sabemos que tem
uma ligação directa de qualquer espécie com a arma automática apontada às
nossas costas». Foi esta ligação que marcou o ponto de viragem definitivo na
história do comunismo, até mesmo mais do que a tragédia húngara de 1956.
A ilusão de que o comunismo era reformável, que o estalinismo fora um
passo em falso, um erro que ainda podia ser corrigido, que os ideais centrais
do pluralismo democrático ainda podiam de certo modo ser compatíveis com
as estruturas do colectivismo marxista, essa ilusão foi esmagada pelos tanques
a 21 de Agosto de 1968 e nunca se recompôs. Alexandre Dubcek e o seu
Programa de Acção não eram um início, mas um fim. Nunca mais os radicais
ou reformadores olhariam para o Partido governante para realizarem as suas
aspirações ou adoptarem os seus projectos. O comunismo na Europa de Leste
cambaleou, sustentado por uma inverosímil aliança de empréstimos
estrangeiros com baionetas russas: a carcaça apodrecida foi finalmente
retirada em 1989. Mas a alma do comunismo tinha morrido vinte anos antes:
em Praga, em Agosto de 1968.
* * *
Os anos 60 acabaram mal em todo o lado. O fechar do longo ciclo de
crescimento e prosperidade do pós-guerra dissipou a retórica e os projectos da
Nova Esquerda; a ênfase optimista posta na alienação pós-industrial e a
desumana qualidade da vida moderna em breve seriam substituídas por uma
renovada atenção aos empregos e salários(17). A Leste, a mensagem dos anos
60 era de que já não se podia trabalhar no interior do «sistema»; a Ocidente
parecia não haver melhor escolha. De ambos os lados da Cortina de Ferro as
ilusões foram varridas. Só os radicais se apegaram com determinação a
permanecer fora do consenso político – um empenhamento que na Alemanha
e na Itália, tal como nos Estados Unidos e na América Latina, os conduziu à
clandestinidade, violência e crime.
A curto prazo, as realizações práticas dos anos 60 pareciam bastante
fracas. Os jovens de dezoito anos conseguiram o voto: primeiro na Inglaterra,
depois noutros países. As universidades tentaram, com êxito misto, melhorar
as suas instalações e cursos e tornar-se mais receptivas aos pedidos dos
estudantes. No decorrer da década seguinte o acesso ao divórcio, ao aborto e à
contracepção foi facilitado em quase todos os sítios e as restrições ao
comportamento sexual – quer descrito quer praticado – em grande parte
desapareceram. No Statuto dei Lavoratori de Maio de 1970, os trabalhadores
italianos ganharam o direito à protecção contra os despedimentos injustos. No
seu conjunto, tais alterações constituíram uma transformação cultural
essencial da sociedade europeia; mas dificilmente representavam a
«revolução» prevista nos slogans e acções da geração de 1968(18).
De facto, a revolução fora desde o princípio autoderrotista. Os mesmos
movimentos que davam a entender desprezar e abominar a «cultura
consumista» foram desde o início um objecto de consumo cultural que
reflectia uma disjunção generalizada entre a retórica e a prática. Os que em
Berlim ou Paris agressivamente declararam a sua intenção de «mudar o
mundo», eram muitas vezes as pessoas mais dedicadas às obsessões paroquias
e até corporais – antecipando o solipsístico «eu» político da década que se
seguiria – e absorvidas na contemplação do seu próprio impacto. Os «anos
60» eram um objecto de culto mesmo antes da década ter terminado.
Mas se os anos 60 pareceram finalmente ter passado sem luto e com
poucos monumentos duradouros, isso deveu-se talvez ao facto de as
mudanças que trouxeram de facto serem tão abrangentes que pareceram
naturais e, no início da década de 70, totalmente normais. No início da década
a Europa era dirigida por e – como parecia – para homens velhos. A
autoridade, quer no quarto, no lar, nas ruas, nos estabelecimentos
educacionais, nos locais de trabalho, nos media ou na política, não era
questionada. No entanto, no espaço de dez anos os idosos (Churchill,
Adenauer, De Gaulle) estavam mortos. A autoridade ou fora retirada da maior
parte das esferas sociais ou então era só reconhecida na transgressão. Em
alguns sítios – França, Itália – a transição fora bastante dramática. Nos outros
lados – Inglaterra, talvez – a transição espalhou-se por vários anos e as suas
dimensões só puderam ser totalmente apreciadas em retrospectiva(19).
Foi uma das desilusões da época os anos 60 terem sido uma era de intensa
consciência política. «Toda a gente» (ou pelo menos toda a gente com menos
de 25 anos que frequentasse um estabelecimento educacional e atraída pelas
ideias radicais) estava nas ruas e mobilizada por uma causa. O esvaziamento
das causas – e a desmobilização das décadas seguintes – confere portanto, em
retrospectiva, um ar de insucesso a uma década de frenética actividade
política. Mas em certos aspectos importantes os anos 60 foram de facto uma
década vital pelas razões opostas: foram o momento em que os europeus em
ambas as metades do continente começaram a voltar as costas
definitivamente às políticas ideológicas.
Assim, os slogans e projectos da geração de sessenta, longe de
reacenderem uma tradição revolucionária cuja linguagem e símbolos
procuraram energicamente reanimar, podem ser vistos em retrospectiva como
tendo sido o seu canto do cisne. Na Europa de Leste o interlúdio
«revisionista» e o seu trágico desenlace fizeram as despedidas às últimas
ilusões do marxismo como prática. No Ocidente, as teorias marxistas e
paramarxistas elevaram-se acima de qualquer relação com a realidade local,
desqualificando-se para qualquer papel futuro num debate público sério. Em
1945 a Direita radical tinha-se desacreditado como veículo legítimo para a
expressão política. Por 1970, a Esquerda radical estava decidida a emulá-la.
Um ciclo de ideologia política com 180 anos na Europa estava a chegar ao
fim.
-
(1) Embora tenha sido substituída por uma nova versão mitológica em que o próprio Estaline – e os
seus crimes – passavam quase desconhecidos.

(2) A credibilidade do sistema soviético assentava a um nível quase extraordinário na sua capacidade
de tirar resultados da terra. Durante a maior parte dos seus oitenta anos de vida, a agricultura era de uma
maneira ou de outra um ponto de apoio de emergência. Isto não teria espantado um observador europeu
do século XVIII ou mesmo um africano do século XX como sendo especialmente invulgar; mas a União
Soviética era vista sob padrões mais elevados de actuação.

(3) Um ano depois da sua libertação, Sinyavsky emigrou para França e aceitou um lugar de professor
de Literatura Russa na Sorbonne. Daniel permaneceu na Rússia, onde morreu em 1988.

(4) Apesar de o economista reformista mais conhecido dos anos 60 ser um checo, Ota Sik, foi a
escola húngara que teve a mais vasta influência e o impacto mais prático.

(5) Djilas foi preso durante quatro anos quando o seu livro ANova Classe surgiu no Ocidente e
novamente encarcerado por mais quatro anos pouco depois da sua libertação.

(6) Richard Nixon não foi de modo algum o último americano a ser seduzido pelo ditador romeno.
Impressionado com Nicolau Ceausescu durante uma visita à Roménia em 1978, o senador George
McGovern elogiou-o como estando «entre os principais proponentes mundiais do controlo do
armamento» e ainda em Setembro de 1983, quando a horrível verdade a respeito do regime de
Ceausescu era já amplamente conhecida, o vice-presidente George Bush descreveu-o memoravelmente
como um dos «bons comunistas da Europa».

(7) A tradução francesa da Carta Aberta que circulou em Paris no ano seguinte foi distribuída pela
Jeunesse Communiste Révolutionnaire, uma organização trotskista.

(8) Dos aproximadamente 30 000 judeus na Polónia em meados dos anos 60, menos de 7500 faziam
parte de organizações oficialmente judaicas.
(9) Em 1966 uma edição em língua polaca do documento anti-semita falsificado Os Protocolos dos
Sábios do Sião foi posta a circular não oficialmente pelos grupos do Partido, universidades e no
exército.

(10) Novotny não era o único a ter medo de um recuo. A 5 de Abril de 1963, o dirigente comunista
italiano Palmiro Togliatti escreveu secretamente para pedir a Novotny e aos seus colegas para atrasar até
depois das próximas eleições italianas as notícias da reabilitação de Slansky e de outras vítimas de
julgamento. Como o chefe do PCI bem entendia, não eram só os Checos que tinham uma boa razão para
ficar aborrecidos com a colaboração dos seus dirigentes no encobrimento do gigantesco crime judicial
apenas dez anos antes.

(11) Em Dezembro de 1967, membros do Partido constituíam 16,9% da população checa – a mais
elevada percentagem em qualquer Estado comunista.

(12) Jiri Pelikán, org., The Czechoslovak Political Trials. The Suppressed Report of the Dubcek
Government’s Commisson of Inquiry, 1968 (Stanford, 1971), p. 17

(13) A exigência dificilmente era espontânea. Duas semanas antes – num encontro secreto perto do
Lago Balaton na Hungria em que foi anfitrião Janos Kadar – Vasil Bil’ak (um dos opositores de Dubcek
no seio da direcção do Partido da Checoslováquia) foi avisado por Shelest de que Moscovo gostaria de
uma «carta de convite». A carta que se seguiu refere explicitamente a «perda de controlo» do Partido, a
probabilidade de «um golpe contra-revolucionário» e os «riscos para o socialismo» antes de pedir «a
intervenção de Moscovo e ajuda generalizada». Termina: «pedimos que tratem a nossa declaração com
o maior segredo e por esse motivo estamos a escrever-vos, pessoalmente, em russo.»

(14) Por Ceausescu se ter recusado a tomar parte na invasão ou permitir que as tropas do Pacto de
Varsóvia atravessassem o território romeno, como alternativa o contingente búlgaro teve de ser
transportado por via aérea para a Ucrânia. Esta presença dificilmente justificou o incómodo mas a
importância de espalhar a responsabilidade do ataque pelo maior número possível de Estados fraternos
sobrepôs-se a outras considerações.

(15) Depois de 1989 veio a saber-se que a polícia secreta checa durante os anos de normalização
tinha criado uma unidade especial para controlar e vigiar os judeus do país: um eco do próprio passado
da Checoslováquia, assim como da Polónia contemporânea. Não tinha escapado à atenção das
autoridades que só um dos colegas dirigentes de Dubcek se recusara a assinar o documento de Moscovo
renunciando às suas acções. Era Frantisek Kriegel – o único judeu do grupo.

(16) Milan Simecka, Obnovení Porádku (Restauração da Ordem), (Bratislava, 1984 – in samizdat).
Cerca de 80 000 Checos e Eslovacos fugiram para o exílio a seguir à invasão soviética.

(17) A própria geração do baby-boom nunca necessitou de emprego. Foi o seu sucessor imediato, o
grupo nascido depois de 1953, que entrou no mercado de trabalho exactamente quando começava a ser
mais difícil arranjar emprego. Não surpreendentemente, as políticas da geração seguinte foram
marcadamente diferentes.

(18) Só em Espanha, onde o ciclo de protestos sociais durou até meados dos anos 70 antes de se
fundir no movimento para o regresso à democracia parlamentar, as convulsões dos anos 60 anunciaram
uma transformação política genuína – uma história para ser retomada no capítulo 16.

(19) O Caso Profumo na Inglaterra, em 1963 – um escândalo deliciosamente multifacetado de sexo,


classe, drogas, raça, política e espiões que absorveu o país durante meses – teria sido impensável uns
anos depois. Os pecadilhos de uma elite destronada poderiam continuar a suscitar um certo interesse
lascivo, mas depois dos anos 60 já não conseguiam chocar.
III Parte

Cântico Final: 1971-1989


XIV

Expectativas Diminuídas
«O dólar é a nossa moeda, mas o vosso problema.»
John Connally, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, 1971
«Pode ou não ser correcto matar, mas às vezes é necessário.»
Gerry Adams
«A morte de um operário tem o peso de uma montanha, enquanto que a de um
burguês tem o peso de uma pena.»
Mao Tsé-Tung
«Esta é a Hora do Infortúnio, Recordada, se lhe sobrevivermos.»
Emily Dickinson
«O punk pode ter sido inventado para os teóricos culturais – e a verdade é que
em parte foi.»
Robert Hewison
Mesmo antes da efervescência dos anos 60 ter acalmado, as circunstâncias
únicas que a tornaram possível já tinham passado para sempre. Três anos
depois do fim da década mais próspera da história, a explosão económica do
pós-guerra tinha acabado. Os «trinta gloriosos anos» da Europa Ocidental
deram lugar a uma época de inflação monetária e a taxas de crescimento em
queda, acompanhadas por desemprego generalizado e descontentamento
social. A maior parte dos radicais dos anos 60, tal como os seus seguidores,
abandonou a «revolução» e em sua substituição preocupou-se com as suas
próprias perspectivas de emprego. Alguns optaram pelo confronto violento;
os danos que causaram – e a resposta que as suas acções provocaram por
parte das autoridades – conduziram a muitas conversas tensas sobre as
condições de «ingovernabilidade» das sociedades ocidentais. Tais ansiedades
revelaram-se demasiado elaboradas: sob pressão, as instituições da Europa
Ocidental revelaram uma resistência maior do que a temida por muitos
observadores. Mas não haveria regresso ao optimismo – ou às ilusões – das
primeiras décadas do pós-guerra.
O impacto do abrandamento económico estava só a começar a ser sentido
quando dois choques externos levaram a economia da Europa Ocidental a
uma paragem sobressaltada. A 15 de Agosto de 1971, o presidente dos
Estados Unidos, Richard Nixon, anunciou unilateralmente que o seu país ia
abandonar o sistema de taxas de câmbio fixas. O dólar dos EUA, a âncora do
sistema monetário internacional desde Bretton Woods, iria a partir dali flutuar
contra outras moedas. A base desta decisão foi o grande fardo militar da
Guerra do Vietname e um crescente défice do orçamento federal dos EUA. O
dólar estava ligado a um padrão-ouro e havia o crescente receio em
Washington de que os detentores estrangeiros de moeda dos EUA (incluindo
os bancos centrais da Europa) procurassem trocar os seus dólares por ouro,
esgotando as reservas americanas(1).
A decisão de fazer o dólar flutuar não era economicamente irracional.
Tendo decidido travar uma dispendiosa guerra de desgaste no outro lado do
mundo – e pagá-la com dinheiro emprestado – os EUA não podiam esperar
manter o dólar indefinidamente na sua taxa fixa e cada vez mais
sobrevalorizada. Mas a decisão americana foi de qualquer maneira um
choque. Se o dólar ia flutuar, também as moedas europeias tinham de o fazer
e nesse caso todas as certezas cuidadosamente construídas dos sistemas
monetário e comercial do pós-guerra eram postas em questão. O sistema de
taxa fixa, estabelecido antes do fim da Segunda Guerra Mundial em
antecipação a uma rede controlada de economias nacionais, tinha acabado.
Mas o que o iria substituir?
Após alguns meses de confusão, duas desvalorizações sucessivas do dólar
e a «flutuação» da libra inglesa em 1972 (pondo tardiamente fim a um
inglório, antigo e opressivo papel da libra esterlina como moeda internacional
de «reserva»), em Março de 1973, uma conferência em Paris enterrou
formalmente os acordos financeiros tão laboriosamente edificados em Bretton
Woods e concordou em estabelecer em seu lugar um novo sistema de taxas
flutuantes. O preço desta liberalização, bastante previsível, foi a inflação. No
seguimento da acção americana de Agosto de 1971 (e a subsequente queda do
valor do dólar), os governos europeus, na esperança de travar o previsto
abaixamento económico, adoptaram deliberadamente por políticas de
reflação: permitindo crédito fácil, a subida dos preços internos e que as suas
próprias moedas caíssem.
Em circunstâncias normais esta inflação «keynesiana» controlada poderia
ter sido bem sucedida: só na Alemanha Ocidental havia uma aversão histórica
profundamente instalada à ideia de inflação dos preços. Mas a incerteza
provocada pela retirada da América de um sistema dominado pelo dólar
incentivou uma crescente especulação cambial, que os acordos internos sobre
regimes de taxas flutuantes eram impotentes para travar. O que por sua vez
enfraqueceu os esforços dos governos individuais para manipular taxas de
juro nacionais e manter o valor da sua moeda. As moedas caíram. E enquanto
caíam, assim subiam os custos de importação: entre 1971 e 1973, o preço
mundial das matérias-primas não combustíveis aumentou 70%, dos alimentos
100%. E foi nesta já instável situação que a economia internacional foi
atingida pelo primeiro dos dois choques petrolíferos dos anos 70.
A 6 de Outubro de 1973, o Yom Kippur (o Dia da Expiação) do calendário
judaico, o Egipto e a Síria atacaram Israel. No espaço de 24 horas os
principais Estados árabes exportadores de petróleo tinham anunciado planos
para reduzir a produção de petróleo; dez dias depois anunciaram um embargo
do petróleo aos EUA em retaliação pelo seu apoio a Israel e aumentaram o
preço do petróleo em 70%. A própria guerra do Yom Kippur terminou com
um cessar-fogo entre o Egipto e Israel a 25 de Outubro, mas a frustração
árabe com o apoio ocidental a Israel não esmoreceu. A 23 de Dezembro as
nações produtoras de petróleo concordaram com novo aumento do preço do
petróleo. O seu custo tinha agora mais do que duplicado desde o princípio de
1973.
Para perceber a importância destes desenvolvimentos, especialmente para
a Europa Ocidental, é importante ter em mente que o preço do petróleo, ao
contrário de qualquer outra matéria-prima importante em que assentam as
economias modernas, tinha-se mantido praticamente inalterado durante as
décadas de crescimento económico. Um barril de crude saudita – uma
medida-padrão – custava 1,95 dólares em 1955; em Janeiro de 1971 subiu
para somente 2,18. Dada a modesta inflação de preços desses anos, isto
significava que em termos reais o petróleo tinha de facto ficado mais barato.
A OPEP, fundada em 1960, estivera inerte e não mostrava inclinação para
obrigar os seus principais produtores a usar as suas reservas de petróleo como
arma política. O Ocidente tinha-se habituado a um combustível facilmente
disponível e extremamente barato – uma componente vital durante os longos
anos de prosperidade.
Até que ponto vital, pode ver-se pelo constante crescimento do papel do
petróleo na economia europeia. Em 1950, o combustível sólido
(esmagadoramente o carvão e o coque) correspondera a 83% do consumo de
energia da Europa Ocidental; o petróleo apenas 8,5%. Em 1970 os números
eram 29 e 60% respectivamente. Cerca de 75% das necessidades de energia
na Itália em 1973 eram supridas pela importação de petróleo; para Portugal o
número era de 80%(2). O Reino Unido, que durante algum tempo iria ser
auto-suficiente graças às recentes reservas de petróleo descobertas no Mar do
Norte, só tinha começado a produzir em 1971. A explosão consumista de
finais dos anos 50 e 60 tinha aumentado bastante a dependência da Europa do
petróleo barato: as dezenas de milhões de carros novos nas estradas da Europa
Ocidental não podiam funcionar a carvão, nem a electricidade, agora a ser
produzida – especialmente em França – pela energia nuclear.
Até agora, o preço do combustível importado fora estabelecido em dólares
fixos. As taxas de câmbio flutuantes e os aumentos do preço do petróleo
introduziram assim um elemento de incerteza sem precedente. Enquanto que
os preços e os salários tinham subido regularmente, mesmo que
moderadamente, no decorrer das duas décadas anteriores – um preço aceitável
para a harmonia social numa época de rápido crescimento – a inflação
monetária agora disparava. Segundo a OCDE, a taxa de inflação na Europa
não comunista para os anos 1961-1969 estabilizara a 3,1%; de 1969-1973 era
de 6,4%; de 1973-1979 era em média de 11,9%. Dentro deste número havia
consideráveis variações nacionais: enquanto a taxa de inflação da Alemanha
Ocidental de 1973-1979 era mantida a uns suportáeis 4,7%, a Suécia suportou
um nível duas vezes superior. Os preços franceses foram inflacionados a uma
média de 10,7% ao ano durante esses anos. Na Itália a taxa de inflação foi em
média 16,1%; em Espanha superior a 18%. A média do Reino Unido era de
15,6% mas no seu pior ano (1975) a taxa de inflação britânica excedeu os
24% ao ano.
A inflação de preços e salários a estes níveis não deixava de ter
precedentes históricos. Mas depois das taxas estáveis dos anos 50 e 60, era
uma nova experiência para a maior parte das pessoas – e para os seus
governos. Pior ainda, a inflação europeia dos anos 70 – agravada por uma
segunda subida do preço do petróleo em 1979, quando a queda do Xá do Irão
provocou o pânico nos mercados petrolíferos e um aumento de 150% no
preço entre Dezembro de 1979 e Maio de 1980 – não estava de acordo com a
experiência anterior. No passado, a inflação estava associada ao crescimento,
muitas vezes crescimento demasiado rápido. As grandes depressões
económicas do passado século XIX e dos anos 30 tinham sido acompanhadas
pela deflação: quedas precipitadas dos preços e dos salários provocadas, como
parecia aos observadores, por câmbios excessivamente rígidos e uma crónica
redução de gastos, tanto pelos governos como pelos cidadãos. Mas na Europa
dos anos 70 o padrão convencional parecia já não se aplicar.
Pelo contrário, a Europa Ocidental começou a sentir aquilo a que se
chamava deselegantemente «estagflação»: inflação de salários/preços e
abrandamento económico ao mesmo tempo. Em retrospectiva, este resultado é
menos surpreendente do que parecia aos contemporâneos. Em 1970, a grande
migração europeia dos trabalhadores agrícolas em excesso para a indústria
urbana produtiva tinha terminado; já não havia «margem» para acomodar e as
taxas de produtividade começaram inexoravelmente a baixar. O pleno
emprego nas mais importantes economias industriais e de serviços da Europa
era ainda norma – ainda em 1971 o desemprego no Reino Unido era de 3,6%,
em França apenas 2,6%: mas isto significava que os trabalhadores
organizados que se tinham habituado a regatear uma posição de força estavam
agora a enfrentar patrões cujas generosas margens de lucro começavam a
encolher.
Alegando como justificação a crescente taxa de inflação a partir de 1971,
os representantes dos trabalhadores estavam a insistir em salários mais
elevados e outras compensações em economias que já revelavam sinais de
exaustão mesmo antes da crise de 1973. Os salários reais estavam a começar a
ultrapassar o crescimento de produção; os lucros estavam a diminuir; os
novos investimentos desapareceram. A capacidade excessiva resultante das
entusiásticas estratégias de investimento do pós-guerra só podia ser absorvida
pela inflação ou pelo desemprego. Graças à crise do Médio Oriente, os
europeus tiveram as duas coisas.
A depressão dos anos 70 parecia pior do que foi devido ao contraste com o
que se passara antes. Por padrões históricos as taxas médias do Produto
Interno Bruto (PIB) na Europa Ocidental durante os anos 70 não foram
especialmente baixas. Foram de 1,5% no Reino Unido a 4,9% na Noruega e
de facto uma real melhoria sobre o 1,3% de crescimento médio conseguido
pela França, Alemanha e Reino Unido durante os anos 1913-1950. Mas
contrastavam nitidamente com os números do passado recente: de 1950-1973
o crescimento francês por ano fora em média 5%, a Alemanha Ocidental
crescera quase 6% e até a Grã-Bretanha mantivera uma taxa média acima dos
3%. Não foram os anos 70 que foram invulgares, mas sim os 50 e os 60(3).
No entanto, o sofrimento era real, piorado pela crescente concorrência nas
exportações dos novos países industrializados na Ásia e cada vez maiores
custos de importação quando as matérias-primas (e não só o petróleo)
aumentaram de preço. As taxas de desemprego começaram a subir, regular
mas inexoravelmente. No final da década os números dos desempregados em
França excediam os 7% da população activa; na Itália 8%; no Reino Unido
9%. Em alguns países – Bélgica, Dinamarca – os níveis de desemprego nos
anos 70 e início dos 80 eram comparáveis aos dos anos 30; em França e na
Itália eram de facto piores.
Um dos resultados imediatos do abrandamento económico foi um
endurecimento de atitudes para com os trabalhadores «estrangeiros» de todo o
tipo. Se as taxas de desemprego oficiais na Alemanha Ocidental (perto de
zero em 1970) não subiram acima dos 8% da população activa apesar de uma
quebra na procura de bens manufacturados, foi porque a maior parte dos
trabalhadores desempregados na Alemanha não era alemã – e, assim, não
oficialmente registada. Quando a Audi e a BMW, por exemplo, despediram
muitos funcionários da sua força de trabalho em 1974 e 1975, foram os
«trabalhadores estrangeiros» os primeiros a ir embora; quatro em cada cinco
empregados da BMW que perderam os empregos não eram cidadãos alemães.
Em 1975, a República Federal fechou permanentemente os seus postos de
recrutamento no Norte de África, Portugal, Espanha e Jugoslávia. Tal como a
questão foi definida no Relatório de uma Comissão Federal em 1977, no seu
«Princípio Básico n.o 1»: «A Alemanha não é um país de emigrantes. A
Alemanha é um local de residência para estrangeiros que acabarão por
regressar voluntariamente para casa.» Seis anos depois o Parlamento Federal
iria emitir um decreto para «Promover a Preparação dos Trabalhadores
Estrangeiros para o Regresso».
Voluntariamente ou não, muitos deles regressaram de facto «a casa». Em
1975, 290 000 trabalhadores emigrantes e as suas famílias saíram da
Alemanha Ocidental para a Turquia, Jugoslávia, Grécia e Itália. No mesmo
ano, 200 000 Espanhóis regressaram a Espanha à procura de trabalho; os
regressados a Itália ultrapassavam agora em número os emigrantes, pela
primeira vez na memória moderna, como em breve iria acontecer na Grécia e
em Portugal. Em meados dos anos 70, quase um terço de milhão de
emigrantes jugoslavos tinham sido obrigados a regressar aos Balcãs, onde as
suas expectativas de emprego não eram melhores que na Alemanha ou em
França. As crises de emprego no Norte da Europa estavam a ser reexportadas
para o Mediterrâneo. Entretanto, a França impôs restrições estritas à
imigração da Argélia e das suas ex-colónias africanas e o Reino Unido
estabeleceu limites muito apertados aos futuros emigrantes do subcontinente
sul-asiático.
A combinação de desemprego estrutural, facturas cada vez maiores de
importação de petróleo, inflação e exportações a decrescerem, conduziu a
défices orçamentais e crises de pagamento por toda a Europa Ocidental. Nem
a Alemanha Ocidental, a capital da manufactura do continente e principal
exportadora, foi poupada. O saldo positivo da balança de pagamentos do país,
no valor de 9481 milhões de dólares em 1973, caiu no espaço de um ano para
um défice de 692 milhões. As contas da Grã-Bretanha estavam nesta altura
em défice crónico – de tal maneira que em Dezembro de 1976 houve um sério
risco de falta de pagamento nacional e o Fundo Monetário Internacional foi
chamado a avalizar a Grã-Bretanha. Mas os outros estavam pouco melhor. A
balança de pagamento francesa caiu para a linha vermelha em 1974 e aí
permaneceu durante a maior parte da década seguinte. A Itália, tal como a
Inglaterra, foi obrigada em Abril de 1977 a recorrer ao FMI. Tal como no
caso britânico os seus dirigentes podiam então culpar as «forças
internacionais» pelas medidas pouco populares de política interna que se
seguiram.
No pensamento keynesiano, falhas orçamentais e défice de pagamentos –
como a própria inflação – não eram em si mesmos desastrosos. Nos anos 30
tinham representado uma receita plausível de «gastar à sua maneira» para sair
da recessão. Mas nos anos 70 todos os governos da Europa Ocidental já
gastavam excessivamente com a assistência social, serviços sociais, serviços
públicos e com o investimento em infra-estruturas. Como o primeiro-ministro
trabalhista inglês James Callaghan explicou desanimado aos seus colegas:
«Era costume pensarmos que podíamos simplesmente gastar para sair da
recessão… Digo-vos, com toda a franqueza, que essa opção deixou de
existir.» Nem podiam esperar que a liberalização do comércio os salvasse,
como tinham feito depois da Segunda Guerra Mundial: a recente ronda de
negociações do GATT em meados dos anos 60, o Kennedy round, já tinha
levado as tarifas industriais a uma baixa histórica. Quando muito, o risco
agora era o da crescente pressão interna para restabelecer a protecção contra a
concorrência.
Havia um outro elemento a complicar as escolhas enfrentadas pelos
governantes nos anos 70. A crise económica, por muito circunstanciais e
conjunturais que fossem as razões que a desencadeavam, coincidiu com uma
transformação abrangente que os governos pouco podiam fazer para travar.
No espaço de uma geração, a Europa Ocidental passara por uma terceira
«revolução industrial»; as indústrias tradicionais que tão grande parte tinham
feito da vida diária alguns anos antes estavam a acabar. Se os operários do
aço, mineiros, operários da indústria automóvel e operários das fábricas
estavam a perder os empregos, não era só devido a uma baixa cíclica da
economia local ou mesmo um efeito secundário da crise do petróleo. A
venerável economia da manufactura da Europa Ocidental estava a
desaparecer.
A evidência era incontestável, embora os governantes tivessem estado
durante alguns anos a tentar esforçadamente ignorar as suas implicações. O
número de mineiros viera a baixar regularmente desde que o volume de
produção de carvão atingira o seu auge nos anos 50: a grande bacia mineira
de Sambre-Meuse, no Sul da Bélgica, que produziu 20,5 milhões de toneladas
de carvão em 1955, produziu unicamente seis milhões de toneladas em 1968 e
quantidades ínfimos dez anos depois. Entre 1955 e 1985, desapareceram 100
000 empregos nas minas da Bélgica; o comércio subsidiário de vários tipos
sofreu em conformidade. Perdas ainda maiores foram vividas nas minas
inglesas, embora distribuídas por um período mais longo. Em 1947, o Reino
Unido contava com 958 minas de carvão; quarenta e cinco anos depois só se
mantinham 50. A mão-de-obra mineira iria cair de 718 000 para 43 000: a
maior parte destes empregos perdeu-se no decorrer da década entre 1975-85.
O aço, a outra indústria básica da Europa industrializada, sofreu um
destino semelhante. Não que a procura do aço tenha caído tão dramaticamente
– ao contrário do carvão, não podia ser tão facilmente substituído. Mas à
medida que mais países não europeus entravam no grupo dos industrializados,
a concorrência aumentou, o preço caiu e o mercado do aço dispendiosamente
produzido ruiu. Entre 1974 e 1986, os operários metalúrgicos perderam 166
000 empregos (embora durante o último ano o principal fabricante do Reino
Unido, a British Steel Corporation, tenha tido lucros pela primeira vez em
mais de uma década). A construção naval decaiu pelas mesmas razões; o
fabrico de motores automóveis e de têxteis também. A Courtauld, a principal
cooperativa têxtil e química do Reino Unido, reduziu a sua mão-de-obra em
50% nos anos 1977-83.
A recessão dos anos 70 permitiu uma aceleração na perda de empregos em
praticamente todas as indústrias tradicionais. Antes de 1973 a transformação
já estava em curso no carvão, ferro, aço, engenharia; depois espalhou-se para
os químicos, têxteis, papel e bens de consumo. Regiões inteiras ficaram
traumatizadas: entre 1973 e 1981 as West Midlands inglesas, local de
pequenas firmas técnicas e fábricas de automóveis, perdeu um em cada quatro
da sua mão-de-obra. A zona industrial da Lorena, no Nordeste de França,
perdeu 28% dos seus empregos na manufactura. A mão-de-obra industrial em
Lüneburg, Alemanha Ocidental, caiu 42% durante os mesmos anos. Quando a
FIAT de Turim começou a sua transicção para a robotização em finais dos
anos 70, houve uma redução de 65 000 empregos (num total de 165 000) em
unicamente três anos. Na cidade de Amsterdão, 40% da mão-de-obra estava
empregada na indústria nos anos 50; um quarto de século depois era apenas
de um empregado em sete.
No passado, o custo social da transformação económica a esta escala e a
este ritmo teria sido traumatizante, com consequências políticas
imprevisíveis. Graças às instituições do Estado-providência – e talvez ao
diminuído entusiasmo político da época – o protesto foi contido. Mas estava
longe de estar ausente. Nos anos 1969-1975 houve marchas inflamadas,
ocupações, greves e petições por toda a Europa Ocidental industrializada, da
Espanha (onde se perderam 1,5 milhões de dias em greves da indústria nos
anos 1973-75) à Grã-Bretanha, onde duas importantes greves dos mineiros do
carvão – em 1972 e 1974 – convenceram um governo conservador nervoso
que seria mais favorável adiar o encerramento de minas importantes por mais
alguns anos, mesmo a custo de mais subsídios pagos pela população em geral.
Os mineiros e os metalúrgicos eram os mais conhecidos e talvez os mais
desesperados dos manifestantes organizados da época, mas não eram os mais
militantes. A redução do número de trabalhadores nas velhas indústrias tinha
alterado o equilíbrio de forças dos movimentos sindicais para os sindicatos do
sector de serviços, cujo eleitorado estava em rápido crescimento. Na Itália,
mesmo quando as velhas organizações industriais dirigidas por comunistas
perderam elementos, os sindicatos de professores e da função pública
cresceram em dimensão e militância. Os velhos sindicatos evidenciavam
escassa simpatia pelos desempregados: a maior parte estava sobretudo ansiosa
por conservar o emprego (e a sua própria influência) e evitava confrontos
abertos. Foram os combativos sindicatos do sector de serviços – Force
Ouvrière em França, NALGO, NUPE e ASTMS na Inglaterra(4) – que
entusiasticamente se dedicaram à causa dos jovens e dos desempregados.
Confrontados com um conjunto sem precedentes de exigências para a
segurança no trabalho e protecção aos salários, os dirigentes europeus
inicialmente valeram-se de práticas já com provas dadas. Foram negociados
acordos salariais inflacionados com sindicatos poderosos na Inglaterra e em
França; na Itália foi inaugurado em 1975 um sistema de indexação fixo
ligando os salários aos preços, a Scala Mobile. As indústrias em dificuldades
– especialmente do aço – foram colocadas sob protecção do Estado, tal como
na primeira vaga de nacionalizações depois da guerra: no Reino Unido, o
«Plano do Aço» de 1977 salvou a indústria do colapso ‘cartelizando’ a sua
estrutura de preços e abolindo efectivamente a concorrência de preços local;
em França, a bancarrota das cooperativas do aço da Lorena e o centro
industrial do país foram reagrupados em empresas orientadas pelo Estado e
financiadas a partir de Paris. Na Alemanha Ocidental, o governo federal,
seguindo o modelo, encorajou as fusões privadas em vez do controlo do
Estado, mas com resultados semelhantes. Por meados dos anos 70 uma
holding, a Ruhrkohle AG, era responsável por 95% do volume de produção
mineira no distrito do Ruhr.
O que restava das indústrias têxteis da França e da Inglaterra foi
preservado, por causa dos empregos que proporcionava em regiões em crise,
através de substanciais subsídios directos ao emprego (pagando aos patrões
para manterem trabalhadores de que não necessitavam) e medidas de
protecção contra as importações do terceiro mundo. Na República Federal o
governo de Bona comprometeu-se a cobrir 80% dos custos salariais dos
patrões industriais posto em trabalho em part-time. O governo sueco gastou
bastante dinheiro nos seus estaleiros não lucrativos, mas politicamente
sensíveis.
Havia variações nacionais nestas respostas à recessão económica. As
autoridades francesas seguiram uma prática de intervenção micro-económica,
identificando «campeões nacionais» por sector e favorecendo-os com
contratos, dinheiro e garantias; enquanto o tesouro público inglês continuava
a sua venerável tradição de manipulação macro-económica através de
impostos, taxas de juro e subsídios. Mas o espantoso é a pouca variação que
havia em termos de linha política. Os sociais-democratas alemães e suecos, os
democratas-cristãos italianos, os gaullistas franceses e os políticos ingleses de
todas as classes começaram por se agarrar instintivamente ao consenso do
pós-guerra: procurando o pleno emprego se possível, compensando, na falta
deste, com aumentos salariais para os que trabalhavam, transferências sociais
para os que não tinham trabalho e subsídios em dinheiro para os patrões com
problemas, tanto no sector privado como no público.
Mas no decorrer dos anos 70, um crescente número de políticos chegou à
conclusão de que a inflação agora apresentava maiores riscos do que as altas
taxas de desemprego – especialmente desde que os custos humanos e políticos
do desemprego tinham sido institucionalmente aliviados. Não se podia
resolver a inflação sem alguma espécie de acordos internacionais para o ajuste
das moedas e taxas de câmbio, para substituir o sistema de Bretton Woods
precipitadamente abolido por Washington. Os seis Estados-membros originais
da Comunidade Económica Europeia tinham reagido, acordando em 1972
estabelecer um acordo para manter proporções semifixas entre as suas
moedas, permitindo uma margem de 2,25% de variação para qualquer dos
lados das taxas aprovadas. Tendo a princípio aderido a Grã-Bretanha, Irlanda
e países escandinavos, este compromisso durou só dois anos: os governos
inglês, irlandês e italiano – incapazes ou não querendo contrariar a pressão
interna para desvalorizar para além dos vínculos estabelecidos – foram todos
obrigados a retirar-se do acordo e deixar a sua moeda desvalorizar. Até os
Franceses foram duas vezes obrigados a sair, em 1974 e novamente em 1976.
Claramente, era necessário mais qualquer coisa.
Em 1978, o chanceler Helmut Schmidt, da Alemanha Ocidental, propôs
um Sistema Monetário Europeu (SME). Estabelecer-se-ia uma grelha de taxas
de câmbio bilaterais fixa, junta por uma unidade de medida puramente
nominal, a Unidade Cambial Europeia (o écu(5)), e garantida pela estabilidade
e pelas prioridades anti-inflacionárias da economia alemã e do Bundesbank.
Os países participantes comprometer-se-iam a um rigor económico interno
para manterem o seu lugar no SME. Esta foi a primeira iniciativa alemã deste
tipo e equivalia de facto, ainda que não em nome, à recomendação de que,
pelo menos para a Europa, o marco alemão substituísse o dólar como moeda
de referência.
Alguns países mantiveram-se de fora – nomeadamente o Reino Unido,
onde o primeiro-ministro James Callaghan entendeu correctamente que o
SME iria evitar que a Inglaterra adoptasse políticas reflacionárias para lidar
com os problemas de desemprego do país. Outros juntaram-se exactamente
pela mesma razão. Como solution de rigueur, o SME funcionaria mais como
o Fundo Monetário Internacional (ou como a Comissão Europeia e o euro em
anos posteriores): obrigaria os governos a tomar decisões impopulares que
esperavam poder atribuir às regras e tratados concebidos no exterior. De facto,
este foi o significado a longo prazo dos novos acordos. Não era tanto por
terem conseguido expulsar o demónio da inflação (apesar de terem), mas por
o terem conseguido privando os governos nacionais de iniciativa na política
interna.
Esta foi uma mudança importantíssima, com maiores consequências do
que as percebidas na época. No passado, se um governo optasse por uma
estratégia de «dinheiro forte» aderindo ao padrão-ouro ou recusando-se a
baixar as taxas de juro, tinha de responder perante o seu eleitorado local. Mas
nas circunstâncias de finais dos anos 70, um governo em Londres – ou
Estocolmo, ou Roma – que enfrentasse um desemprego instável ou indústrias
fracas, ou exigências de salários inflacionárias, podia apontar, impotente, para
as condições de um empréstimo do FMI ou para os rigores das taxas de
câmbio pré-negociadas no seio da Europa e rejeitar responsabilidades. Os
benefícios tácticos de um tal passo eram óbvios: mas teriam o seu preço.
Se o Estado europeu já não podia fazer a quadratura do círculo do pleno
emprego, dos salários reais elevados e do crescimento económico, teria de
enfrentar a cólera dos eleitores que se sentissem traídos. Conforme referimos,
a reacção instintiva dos políticos em todo o lado foi aliviar as ansiedades do
proletariado operário masculino: em parte porque eram os mais afectados,
mas sobretudo porque os precedentes sugeriam que este era o eleitorado
social que mais provavelmente protestaria. Mas como se sabia, a verdadeira
oposição estava noutro lado. Foram as dificuldades das classes médias
sujeitas a grande carga fiscal – funcionários administrativos públicos ou
privados, pequenos comerciantes e empresários em nome individual – que
mais rapidamente protestaram.
Os maiores beneficiários do moderno Estado-providência eram, afinal, as
classes médias. Quando o sistema do pós-guerra se começou a desenredar nos
anos 70, foram essas mesmas classes médias que se sentiram não tanto
ameaçadas, antes traídas: pela inflação, por subsídios financiados pelos
impostos às indústrias em dificuldades e pela redução ou eliminação dos
serviços públicos para fazer face aos constrangimentos orçamentais e
monetários. Tal como no passado, o impacto redistributivo da inflação,
piorado pela endémica elevada tributação do Estado moderno prestador de
serviços, foi mais severamente sentida pelos cidadãos de classe média.
Foram as classes médias também que mais perturbadas ficaram com a
questão da «ingovernabilidade». O medo, amplamente expresso no decorrer
dos anos 70, de que as democracias tivessem perdido o controlo do seu
destino tinha várias origens. Em primeiro lugar, havia uma acumulação de
nervosismo provocada pelas rebeliões iconoclastas dos anos 60; o que
parecera curioso e até empolgante na atmosfera confiante desses dias, parecia
agora cada vez mais um arauto da incerteza e anarquia. Depois havia a
ansiedade mais imediata, resultado da perda de emprego e da inflação, contra
o que os governos pareciam não conseguir actuar.
Na verdade, o simples facto de parecer que os dirigentes europeus tinham
perdido o controlo era em si uma fonte de angústia pública – tanto mais que
os políticos, como dissemos, viram alguma vantagem em insistir na sua
própria incapacidade. Denis Healey, ministro das Finanças no infeliz governo
trabalhista de meados dos anos 70, lamentou os milhões de eurodólares que
circulavam pelo continente, obra dos «homens sem rosto que geriam as
crescentes nuvens atómicas de fundos livres que se tinham acumulado nos
euro-mercados para fugirem ao controlo dos governos nacionais»(6).
Ironicamente, o próprio partido de Healey tinha sido eleito em 1974 devido à
aparente incapacidade dos conservadores de mitigarem o descontentamento
público – apenas para se ver acusado de comparável impotência, e pior, ainda
nos anos seguintes.
Na Grã-Bretanha falava-se mesmo da insuficiência das democracias
perante as crises modernas e havia alguma especulação na imprensa sobre os
benefícios de um governo de estranhos desinteressados, ou coligações
«empresariais» de peritos não políticos. Como De Gaulle (em Maio de 1968),
nesta época algumas figuras da alta política inglesa pensaram ser prudente
encontrar-se com chefes da polícia e militares para se assegurarem do seu
apoio no caso de desordem pública. Até mesmo na Escandinávia e nos Países
Baixos, onde o cerne da legitimidade das instituições representativas nunca
fora seriamente posto em causa, a confusão do sistema financeiro mundial, o
aparente desagregar da economia pós-guerra e o descontentamento dos
eleitorados tradicionais pôs em questão a confiança fácil da geração do pós-
guerra.
Por detrás destas nebulosas agitações de dúvida e desilusão estava uma
muito real e, segundo parecia na altura, presente ameaça. Desde o fim da
Segunda Guerra Mundial, a Europa Ocidental fora amplamente preservada de
conflitos sociais, e ainda mais da violência declarada. A força das armas fora
usada com resultados sangrentos por toda a Europa de Leste, nas colónias
europeias e através da Ásia, da África e da América do Sul. Apesar da Guerra
Fria, as lutas acaloradas e homicidas foram uma característica das décadas a
seguir à guerra, com milhões de soldados e civis mortos, da Coreia ao Congo.
Nos próprios Estados Unidos houve três assassinatos políticos e vários motins
sangrentos. Mas a Europa Ocidental tinha sido uma ilha de paz civil.
Quando os polícias europeus batiam de facto ou disparavam sobre civis,
estes últimos eram normalmente estrangeiros, muitas vezes de pele escura(7).
Para além de violentos recontros com manifestantes comunistas, as forças da
ordem na Europa Ocidental raramente eram chamadas pelos seus governos
para lidarem com oposição violenta e quando eram a violência era muitas
vezes exercida por eles. Pelos padrões das décadas de entre guerras, as ruas
das cidades da Europa eram notavelmente seguras – uma questão que foi
muitas vezes minimizada pelos comentadores que comparavam a sociedade
bem regulada da Europa com o individualismo insensível que grassava na
América urbana. As «revoltas» estudantis dos anos 60 serviram, quando
muito, para confirmar este diagnóstico: a juventude da Europa podia brincar
às revoluções, mas era sobretudo espectáculo. Os «combatentes de rua»
corriam pouco risco de serem de facto feridos.
Nos anos 70, as coisas ficaram mais sombrias. Assim como a Europa de
Leste no início da invasão de Praga ficou sufocada pelo abraço fraterno dos
patriarcas do Partido, a Europa Ocidental parecia estar a perder o seu controlo
da ordem pública. O desafio não veio da Esquerda convencional. Moscovo,
evidentemente, estava muito satisfeita com o equilíbrio de vantagens
internacional durante estes anos: o Watergate e a queda de Saigão tinham
inequivocamente reduzido a posição da América, enquanto a URSS, como
maior produtor de petróleo mundial, se saiu muito bem na crise do Médio
Oriente. Mas a publicação em inglês do Arquipélago de Gulag de Alexandre
Soljenitsin e a sua subsequente expulsão da União Soviética em Fevereiro de
1974, seguida poucos anos depois pelos massacres no Camboja e a difícil
situação dos boat people vietnamitas, garantiram que não haveria um renovar
de ilusões sobre o comunismo.
Nem, excepto em alguns casos muito marginais, houve um avivar da
extrema-direita. O Movimento Sociale Italiano (MSI) neo-fascista nunca
obteve mais de 6,8% dos votos em eleições nacionais e, aliás, teve o cuidado
de se apresentar como partido político legítimo. Os nacionalistas na
Alemanha Ocidental estavam menos preocupados com tais requintes de
aparência, mas tal como partidos semelhantes da franja nacionalista na
Bélgica, França ou Inglaterra, tinham uma importância eleitoral
negligenciável. Resumindo, o comunismo e o fascismo, nas suas encarnações
clássicas, não tinham futuro na Europa Ocidental. A verdadeira ameaça à paz
civil vinha de uma outra direcção completamente diferente.
No decorrer dos anos 70 do século XX, a Europa Ocidental enfrentou dois
violentos desafios. O primeiro era patológico, no sentido em que nasceu de
um mal-estar prolongado, se bem que moldado de forma muito moderna. Na
região basca do Norte de Espanha, na minoria católica da Irlanda do Norte, na
Córsega e em outros pontos, ressentimentos antigos resultaram em violentas
revoltas. Não era uma situação nova para os Europeus: os Flamengos
nacionalistas na Flandres belga e os ‘Austríacos’ de língua alemã no Alto
Ádige (antiga Tirol do Sul), em Itália, há muito que se queixavam da sua
‘sujeição’, recorrendo a graffiti, manifestações, assaltos, bombas e até à urna
de voto.
Mas em 1970 o problema do Sul do Tirol estava resolvido, com a criação
de uma região autónoma bilingue que só não apaziguou os críticos mais
extremistas; e apesar dos nacionalistas flamengos dos partidos Volksunie e
Vlaams Blok nunca terem abandonado o seu objectivo último de separação da
Valónia de língua francesa, a recente prosperidade da Flandres, juntamente
com a ampla legislação para federar a Bélgica, afastou temporariamente a
agudeza das suas exigências: de um ressabiado movimento pária, o
nacionalismo flamengo foi transformado numa revolta de contribuintes de
língua holandesa relutantes em subsidiar operários siderúrgicos valões
desempregados (ver capítulo 22). Os Bascos e os católicos do Ulster, porém,
eram um assunto totalmente diferente.
O País Basco, no Norte da Espanha, fora um alvo especial para a ira de
Franco: em parte por causa da sua identificação com a facção republicana na
Guerra Civil de Espanha, em parte devido à exigência de longa data dos
Bascos em serem reconhecidos como diferentes, ia contra os profundos
instintos centralizadores e contra o papel que o corpo de oficiais espanhóis se
atribuíra como protectores do Estado. Durante os anos de Franco qualquer
coisa basca era agressivamente reprimida: língua, costumes, política.
Contradizendo os seus próprios instintos centrípetos, o ditador espanhol até
favoreceu Navarra (uma região cujo sentido de identidade e separação nem
sequer se aproximava do dos Bascos e dos Catalães) com direitos, privilégios
e legislatura própria, sem outra razão que a de mostrar aos vizinhos bascos
que não podiam esperar tais favores.
O aparecimento do terrorismo basco moderno foi uma resposta directa às
políticas de Franco, embora os seus porta-vozes e defensores sempre tenham
alegado raízes mais profundas para os seus sonhos frustrados de
independência. A ETA – Euskadi Ta Askatasuna (País Basco e Liberdade) –
foi formada em Dezembro de 1958 para dirigir a luta armada pela
independência basca. Logo desde os seus primeiros dias como organização
clandestina, estabeleceu ligações de trabalho – a que mais tarde foi dada uma
justificação ideológica um tanto falaciosa – com grupos semelhantes no
estrangeiro que a ajudaram a obter dinheiro, armas, treino, refúgios seguros e
publicidade: o Grupo Baader-Meinhof na Alemanha, o Exército Republicano
Irlandês [IRA], a Organização de Libertação da Palestina [OLP], assim como
a OAS em França.
A estratégia da ETA – e dos seus apoiantes políticos do Herri Batasuna, o
partido separatista basco formado em 1978 – era o uso muito claro de
violência instrumental: levar a permanência dos Bascos em Espanha até um
nível político intolerável. Mas tal como o IRA e outras organizações
semelhantes, a ETA tinha também ambições de funcionar como uma
sociedade dentro do Estado. Católicos, austeros e moralistas – ironicamente,
fazendo lembrar o próprio Franco – os activistas da ETA não só atingiram a
polícia espanhola (a sua primeira vítima foi morta em Junho de 1968) e
notáveis e políticos moderados bascos, como também os símbolos da
decadência «espanhola» na região: cinemas, bares, discotecas, traficantes de
droga e semelhantes.
Durante os anos de declínio de Franco, as actividades da ETA estavam
restringidas pela própria repressão que leva ao seu aparecimento: no fim da
ditadura, no início dos anos 70, um quarto da polícia armada espanhola estava
aquartelada na região basca. Isto não evitou o assassinato do primeiro-
ministro de Franco (o almirante Luis Carrero Blanco) a 20 de Dezembro de
1973, em Madrid, ou a morte de 12 civis num ataque bombista na capital
nove meses depois. Nem a execução de cinco terroristas da ETA em Setembro
de 1975, pouco antes da morte de Franco, teve qualquer impacto moderador
nas actividades do grupo. Por outro lado, a chegada da democracia ofereceu
novas oportunidades.
A ETA e os seus apoiantes pretendiam a independência total. O que a
região Basca conseguiu, com a Constituição espanhola pós-Franco (ver
capítulo 16) foi um Estatuto de Autonomia aprovado por referendo em 1979.
Furiosa – especialmente com a perspectiva de perder o apoio de simpatizantes
moderados satisfeitos com a autonomia e o direito à expressão linguística e
cultural –, a ETA intensificou as suas campanhas de atentados e assassínios.
Entre 1979 e 1980 a organização matou 181 pessoas; no decurso da década
seguinte os assassínios foram em média 34 por ano. Mas apesar disso e da
fragilidade da jovem democracia espanhola, a ETA e os seus aliados políticos
não conseguiram transformar a sua campanha terrorista em vantagens
políticas: o seu único sucesso, ao levar um pequeno grupo de oficiais do
Exército da ala direita a suspenderem as Cortes em Fevereiro de 1981 em
nome da lei, da ordem e da integridade do Estado, acabou por ser um fiasco.
Uma das razões do impacto limitado da ETA, apesar da dimensão e amplo
impacto dos seus assassinatos, prende-se com o facto de a maioria dos Bascos
não se identificar nem com os seus meios, nem com os seus fins. Na verdade,
muitos Bascos nem sequer eram verdadeiros Bascos. As transformações
económicas da Espanha nos anos 60 e as grandes migrações no país e para o
estrangeiro trouxeram alterações que os velhos nacionalistas e seus jovens
seguidores fanáticos simplesmente não entendiam. Por meados dos anos 80,
menos de metade da população da região basca tinha pais bascos e muito
menos avós bascos. Com razão, estas pessoas viam a ETA e o Herri Batasuna
como uma ameaça ao seu bem-estar (e implicitamente à sua própria presença
na região).
Quando o seu projecto político perdeu o contacto com a realidade social, a
ETA tornou-se cada vez mais extremista – tendo esquecido o seu objectivo,
redobrou os esforços, para citar a definição de fanatismo de George
Santayana. Financiada pelo crime e pela extorsão, com os seus operacionais
cada vez mais constrangidos a funcionar a partir do outro lado da fronteira
nos départements bascos do Sudoeste da França, a ETA sobreviveu, e
sobrevive ainda, assassinando ocasionalmente um político ou polícia de
aldeia. Mas não conseguiu mobilizar o sentimento basco no apoio à
independência política, nem obrigou o Estado espanhol a reconhecer a sua
causa. O maior ‘êxito’ da ETA surgiu em inícios dos anos 80, quando as suas
acções levaram o primeiro-ministro socialista, Felipe González, a autorizar
forças antiterroristas (os GAL – Grupos Antiterroristas de Liberación) com o
centro de operações ilegalmente situado em território francês e a alvejarem os
operacionais da ETA, 26 dos quais foram mortos entre 1983 e 1987. A
decisão de González, só revelada muitos anos depois (ver capítulo 22),
ensombrou os primeiros anos da democracia constitucional espanhola; mas,
nas referidas circunstâncias, era, discutivelmente, uma resposta moderada.
O IRA Provisório [Provisional IRA] era muito semelhante à ETA nos
métodos e em alguns dos objectivos proclamados. Tal como a ETA procurava
tornar as províncias bascas ingovernáveis e com isso garantir a sua saída da
Espanha, também o Exército Republicano Irlandês planeava tornar a Irlanda
do Norte ingovernável, expulsar os Ingleses e unir as seis províncias do Norte
ao resto da Irlanda. No entanto, havia diferenças significativas. Dado que já
existia uma Irlanda independente, havia – pelo menos em princípio – um
objectivo nacional viável para os rebeldes insistirem com os seus apoiantes.
Por outro lado, havia mais do que uma comunidade no Norte da Irlanda, e as
diferenças entre elas recuavam até muito atrás.
Tal como a Argélia francesa, a Irlanda do Norte – Ulster – era
simultaneamente um resquício colonial e parte integrante da própria
metrópole. Quando Londres, por fim, renunciou à Irlanda, em 1922, o Reino
Unido manteve os seis condados do Norte da ilha, argumentando que a
esmagadora maioria de protestantes era ali muito leal à Inglaterra e não tinha
vontade de ser governada a partir de Dublin – e incorporada numa república
semiteocrática dominada pelo episcopado católico. Fosse o que fosse que
diziam em público, os dirigentes políticos da nova República não estavam
completamente infelizes por renunciarem à presença de uma comunidade
compacta e considerável de protestantes recalcitrantes. Mas para uma minoria
de nacionalistas irlandeses este abandono constituiu uma traição e sob a
bandeira do IRA continuaram a exigir a unificação – pela força, se necessário
– de toda a ilha.
Esta situação manteve-se em boa parte inalterada durante quatro décadas.
Nos anos 60 a posição oficial em Dublin parecia-se um tanto com a de Bona:
reconhecendo ser desejável uma reunificação nacional, mas secretamente
satisfeita por ver o assunto adiado sine die. Entretanto, sucessivos governos
ingleses preferiram ignorar, tanto quanto possível, a incómoda situação que
tinham herdado no Ulster, onde a maioria protestante dominava os católicos
locais através de falsificações eleitorais, clientelismo político, pressão sectária
sobre os patrões e através de um monopólio de empregos em actividades
cruciais: funcionalismo público, judiciário e, acima de tudo, na polícia.
Se os políticos no continente britânico preferiram não ter conhecimento
destes assuntos foi porque o Partido Conservador dependia da sua ala
«unionista» (que datava da campanha do século XIX para manter a Irlanda
ligada à Inglaterra) para obter um bloco crucial de assentos parlamentares;
estava assim comprometido com o status quo, um Ulster mantido como parte
integrante do Reino Unido. O Partido Trabalhista não estava menos
identificado com os poderosos sindicatos da construção naval em Belfast e
indústrias associadas, onde os operários protestantes recebiam tratamento
preferencial.
Conforme sugere esta última observação, as divisões na Irlanda do Norte
eram invulgarmente complicadas. A divisão religiosa entre protestantes e
católicos era real e correspondia a uma separação de comunidades
reproduzida em cada aspecto da vida: do nascimento até à morte, através da
educação, habitação, casamento, emprego e entretenimento. E era antiga –
referências a disputas e vitórias no século XVII e XVIII poderiam parecer a
quem estivesse de fora absurdamente ritualísticas, mas a história por detrás
delas era real. Mas a divisão entre católicos e protestantes nunca foi uma
distinção de classes no sentido convencional, apesar dos esforços do IRA para
importar categorias marxistas para a sua retórica. Havia operários e padres –
e, em menor grau, proprietários rurais, homens de negócios e profissionais
liberais – em ambos os lados.
Além disso, muitos católicos do Ulster não sentiam necessidade premente
de serem governados por Dublin. Nos anos 60, a Irlanda era ainda um país
pobre e atrasado e o padrão de vida no Norte, embora abaixo do da maior
parte do resto do Reino Unido, estava consideravelmente acima da média
irlandesa. Mesmo para os católicos, o Ulster era uma melhor aposta
económica. Por outro lado, os protestantes identificavam-se fortemente com o
Reino Unido. Este sentimento não era retribuído pelo resto da Inglaterra, que
tinha em pouca consideração a Irlanda do Norte (se é que tinha de todo). As
velhas indústrias do Ulster, tal como as do resto do Reino Unido, entraram em
declínio em finais dos anos 60 e era já evidente para os estrategos em Londres
que a mão-de-obra operária maioritariamente protestante tinha um futuro
incerto. Mas para além disto, é justo dizer que as autoridades inglesas não
pensavam seriamente no Ulster havia muitas décadas.
O IRA reduzira-se a seita política marginal, acusando a República
Irlandesa de ser ilegítima, por incompleta, ao mesmo tempo que reiterava a
sua aspiração ‘revolucionária’ de criar uma Irlanda diferente, radical e unida.
A retórica turva e anacrónica do IRA era pouco atractiva para uma nova
geração de recrutas (incluindo Gerry Adams, de 17 anos, nascido em Belfast,
que se alistou em 1965) mais interessados na acção do que na doutrina e que
formaram a sua própria organização, o clandestino «IRA Provisório»(8). Os
«Provos», recrutados principalmente em Derry e Belfast, surgiram mesmo a
tempo de beneficiar de uma vaga de manifestações em todo o Norte, exigindo
do governo do Ulster os devidos direitos políticos e cívicos para católicos, em
Stormont Castle, e tendo encontrado pouca mas intransigente resistência
política e bastões da polícia em troca dos seus esforços.
Os ‘problemas’ [ Troubles], que iriam ocupar a vida pública da Irlanda do
Norte – e até certo ponto a britânica – durante as três décadas seguintes,
foram desencadeados por batalhas nas ruas em Derry a seguir à tradicional
Marcha dos Apprentice Boys em Julho de 1969, que celebrava agressivamente
a derrota dos jacobitas e católicos 281 anos antes. Confrontado com a
crescente violência pública e as exigências dos dirigentes católicos para que
Londres interviesse, o governo do Reino Unido enviou o Exército britânico e
assumiu o controlo das funções de policiamento nos seis condados. O
exército, recrutado sobretudo no continente britânico, era evidentemente
menos faccioso e na generalidade menos brutal do que a polícia local. É
portanto irónico que a sua presença tenha fornecido ao recentemente formado
IRA Provisório a sua principal exigência: que as autoridades britânicas e as
suas tropas saíssem do Ulster como primeira fase para a reunificação da ilha
sob governo irlandês.
Os Ingleses não se retiraram. Não é evidente como poderiam ter saído. Os
vários esforços realizados durante os anos 70 para criar confiança entre
comunidades e permitir que a província tratasse dos seus próprios assuntos
falharam por suspeitas e intransigências de ambos os lados. Os católicos,
mesmo não gostando dos seus próprios extremistas armados, tinham
antecedentes suficientes para desconfiar das promessas de partilha do poder e
igualdade cívica por parte do governo protestante do Ulster. Estes últimos,
sempre relutantes em fazer concessões à minoria católica, estavam agora
seriamente receosos dos intransigentes terroristas dos «Provisórios». Sem a
presença militar britânica a província teria resvalado ainda mais para a guerra
civil.
Assim sendo, o governo britânico estava encurralado. Inicialmente,
Londres estava solidária com a pressão católica a favor de reformas; mas
depois do assassinato de um soldado inglês em Fevereiro de 1971, o governo
introduziu a prisão sem julgamento e a situação deteriorou-se rapidamente.
Em Janeiro de 1972, no «Domingo Sangrento», os pára-quedistas ingleses
mataram 13 civis nas ruas de Derry. Nesse mesmo ano, 146 membros das
forças de segurança e 321 civis foram mortos no Ulster e quase 5000 pessoas
foram feridas. Animado por uma nova geração de mártires e pela obstinação
dos seus opositores, o IRA Provisório montou o que viria a ser uma campanha
que durou 30 anos, no decurso da qual lançou bombas, abateu e mutilou
soldados e civis no Ulster e na Grã-Bretanha. Houve pelo menos uma
tentativa para assassinar o primeiro-ministro inglês. Mesmo que as
autoridades britânicas tivessem querido sair do Ulster (como muitos dos
votantes da Grã-Bretanha teriam desejado), não podiam. Como revelou um
referendo de Março de 1973 e eleições posteriores confirmaram, uma
esmagadora maioria de pessoas no Ulster desejava manter os seus laços com a
Grã-Bretanha(9).
A campanha do IRA não uniu a Irlanda. Não tirou os Ingleses do Ulster.
Nem desestabilizou a política britânica, embora o assassínio de políticos e
figuras públicas (nomeadamente Lord Mountbatten, antigo vice-rei da Índia e
padrinho do Príncipe de Gales) tenha chocado genuinamente a opinião
pública de ambos os lados do Mar da Irlanda. Mas os ‘problemas’ irlandeses
enegreceram ainda mais uma década já de si sombria da vida pública inglesa e
contribuíram para a tese da ‘ingovernabilidade’, muito sugerida na altura,
assim como para o fim do optimismo despreocupado dos anos 60. Quando o
IRA Provisório – e os grupos paramilitares protestantes que surgiram na sua
esteira – por fim se sentaram à mesa das negociações para garantir acordos
constitucionais que o governo britânico poderia ter concedido quase logo no
início, 1800 pessoas tinham sido mortas e um em cada cinco residentes no
Ulster tinha um membro da família morto ou ferido na luta.
Em comparação com este cenário, as outras ‘patologias’ da Europa dos
anos 70 eram consideravelmente menores, embora tenham contribuído para a
atmosfera de inquietação generalizada. Uma autodenominada «Brigada
Enraivecida», actuando alegadamente a favor dos desempregados sem
representação, semeou bombas por Londres em 1971. Separatistas
francófonos do Jura suíço, modelando as suas tácticas pelas dos Irlandeses,
revoltaram-se em 1974 devido à sua incorporação forçada no cantão de Berna
(de língua alemã). Multidões de desordeiros em Liverpool, Bristol e no bairro
de Brixton, em Londres, lutaram com a polícia pelo controlo dos bairros
degradados do interior da cidade.
Num timbre ou noutro, todos estes protestos e acções eram, conforme
sugeri, patologias da política: por muito extrema que fosse a sua forma, os
seus objectivos eram semelhantes e as suas tácticas instrumentais. Estavam a
tentar conseguir qualquer coisa e teriam – segundo eles – desistido se as suas
exigências tivessem sido satisfeitas. A ETA, o IRA e os seus imitadores eram
organizações terroristas, mas não eram irracionais. Na devida altura a maior
parte acabou por negociar com os inimigos na esperança de garantir os seus
objectivos, mesmo que só em parte. Mas tais considerações nunca foram do
interesse dos protagonistas do segundo desafio violento da época.
Na maior parte da Europa Ocidental, os levianos teoremas radicais dos
anos 60 dissiparam-se sem grandes danos. Mas em especial em dois países
transformaram-se numa psicose de agressão autojustificativa. Uma pequena
minoria de estudantes radicais nostálgicos, inebriados com a sua própria
adaptação da dialéctica marxista, decidiu ‘revelar’ a ‘verdadeira face’ da
tolerância repressiva nas democracias ocidentais. Se o regime parlamentar dos
interesses capitalistas fosse suficientemente pressionado, pensavam eles,
rasgar-se-ia o manto da legalidade e revelar-se-ia o seu verdadeiro rosto.
Confrontado com a verdade sobre os seus opressores, o proletariado – até
agora ‘alienado’ dos seus próprios interesses e vítima de ‘falsa consciência’
sobre a sua situação – iria assumir o seu lugar certo nas barricadas da luta de
classes.
Esta síntese atribui demasiado crédito ao movimento clandestino dos
terroristas dos anos 70 – e demasiado pouco. A maior parte dos jovens,
homens e mulheres, aliciados por ele, por muito familiarizada que estivesse
com o vocabulário justificativo da violência, representou pouco na sua
formulação. Eram os soldados rasos do terrorismo. Por outro lado,
especialmente na Alemanha Ocidental, a energia emocional investida no seu
ódio à República Federal provinha de fontes mais profundas e mais negras do
que os mal adaptados malabarismos retóricos do radicalismo do século XIX.
O desejo de fazer ruir a arquitectura de segurança e estabilidade sobre a
geração dos seus pais era a expressão extrema de um cepticismo mais
generalizado, à luz do passado recente, sobre a credibilidade local da
democracia pluralista. Não foi por acaso, portanto, que o «terror
revolucionário» assumiu a sua forma mais ameaçadora na Alemanha e na
Itália.
O elo entre as políticas extraparlamentares e a violência absoluta surgira já
na Alemanha em Abril de 1968 quando quatro jovens radicais – entre eles
Andreas Baader e Gudrun Ensslin – foram presos por suspeita de terem
incendiado dois centros comerciais em Frankfurt. Dois anos depois, Baader
fugiu da prisão no decurso de um raide armado planeado e dirigido por Ulrike
Meinhof. Ela e Baader distribuíram o seu «Manifesto do Conceito de
Guerrilha Urbana» anunciando a formação da Rote Armee Fraktion (Fracção
do Exército Vermelho – RAF) cujo objectivo era desmantelar a República
Federal pela força. O acrónimo RAF foi deliberadamente escolhido: assim
como a Força Aérea Britânica [Royal Air Force, RAF] tinha atacado do ar a
Alemanha nazi, também o Grupo Baader-Meinhof, como era coloquialmente
conhecido, iria bombardear o seu sucessor, até à submissão, mas a partir de
baixo.
Entre 1970 e 1978, a RAF e as suas ramificações de apoio prosseguiram
uma estratégia deliberada de terror aleatório, assassinando soldados, polícias e
homens de negócios, assaltando bancos e raptando políticos proeminentes. No
decurso da colocação de bombas e atentados durante estes anos, para além de
matarem 28 pessoas e terem ferido outras 93, fizeram 162 reféns e mais de 30
assaltos a bancos – em parte para financiar a sua organização, em parte para
publicitar a sua presença. Nos anos iniciais também alvejaram bases
americanas na Alemanha Ocidental, matando e ferindo vários soldados,
especialmente no fim da Primavera de 1972.
No auge da sua actividade, em 1977, a RAF raptou e depois executou
Hans Martin Schleyer, o presidente da Daimler-Benz e presidente da
Federação das Indústrias da Alemanha Ocidental, assassinou Siegfried
Buback, o ministro da Justiça da Alemanha Ocidental e Jürgen Ponto, director
do Banco Dresdner. Mas este iria ser o seu canto do cisne. Já em Maio de
1976, Meinhof (capturada em 1972) fora encontrada morta na cela da cadeia
de Estugarda. Ao que parece, tinha-se enforcado, embora persistissem boatos
de que teria sido executada por ordem do governo. Baader, apanhado num
tiroteio em Frankfurt em 1972, estava na cadeia a cumprir uma pena de prisão
perpétua por assassínio quando também foi encontrado morto na sua cela a 18
de Outubro de 1977, no mesmo dia que Gudrun Ensslin e outro terrorista. A
sua organização clandestina persistiu até aos anos 80, apesar de muito
reduzida: em Agosto de 1981 bombardeou o quartel-general da Força Aérea
dos Estados Unidos na Alemanha Ocidental, em Ramstein, e no mês seguinte
o «Gudrun Ensslin Kommando» tentou, sem êxito, assassinar o Comandante
Supremo dos EUA na Europa.
Dado que a organização clandestina terrorista alemã não tinha objectivos
definidos, os seus feitos só podem ser avaliados pela extensão do seu sucesso
em perturbar a vida pública alemã e debilitar as instituições da República.
Nisto falharam claramente. A acção governamental mais distintamente
repressiva nessa época foi a aprovação do Berufsverbot em 1972 pelo governo
social-democrata de Willy Brandt. Este decreto excluía de empregos públicos
qualquer pessoa que se envolvesse em actos políticos considerados
prejudiciais para a Constituição e tinha como objectivo evidente manter os
extremistas de esquerda e de direita fora dos cargos sensíveis. Numa cultura
já singularmente disposta à concordância pública, isto certamente suscitou
receios de censura e pior, mas dificilmente era o prelúdio da ditadura que os
seus críticos receavam e – no outro extremo – desejavam.
Nem a esquerda terrorista nem a direita neonazi, aparentemente em
ressurgimento – em especial, responsável por matar 13 pessoas e ferir outras
220 num ataque bombista durante a Oktoberfest de Munique em 1980 –,
conseguiram desestabilizar a República, apesar de terem de facto provocado
conversas informais nos círculos políticos conservadores sobre a necessidade
de refrear as liberdades civis e impor a ‘Ordem’. Muito mais preocupante era
a medida em que o Grupo Baader-Meinhof, em particular, conseguia obter um
capital de simpatia generalizada pelas suas ideias entre os intelectuais e
académicos, em tudo o mais cumpridores das leis(10).
Uma fonte de simpatia inicial era a crescente nostalgia nos círculos
literários e artísticos pelo passado perdido da Alemanha. A Alemanha, sentia-
se, fora duplamente ‘deserdada’: pelos nazis, que tinham privado os Alemães
de um passado respeitável e ‘utilizável’, e pela República Federal, a quem os
inspectores americanos tinham imposto uma falsa imagem da própria
Alemanha. Nas palavras de Hans-Jürgen Syberberg, realizador de cinema, a
nação fora «espiritualmente deserdada e expropriada […] vivemos num país
sem Pátria, sem Heimat». O tom distintamente nacionalista do terrorismo
alemão de extrema-esquerda – atingindo ocupantes americanos, empresas
multinacionais e a ordem capitalista ‘internacional’ – tocou num ponto
sensível, tal como a afirmação dos terroristas de que agora eram os Alemães
as vítimas das manipulações e dos interesses de outros.
Estes mesmos anos assistiram a uma profusão de filmes, palestras, livros,
programas de televisão e comentários públicos sobre a história problemática
do país e a sua identidade. Exactamente quando a Fracção do Exército
Vermelho afirmava estar a combater o «Fascismo» – por procuração, por
assim dizer – também os intelectuais da Alemanha Ocidental, de esquerda e
de direita, lutavam pelo controlo da verdadeira herança da Alemanha. O
colega de Syberberg, Edgar Reitz, realizou uma muito popular mini-série de
16 horas para a televisão: «Heimat: Uma Crónica Alemã». A história de uma
família da zona rural de Hunsrück do palatinado do Reno, contava a história
alemã contemporânea através de uma narrativa doméstica que ia do fim da
Primeira Guerra Mundial até à actualidade.
No filme de Reitz, os anos entre as guerras estão banhados em tons sépia
de recordações ternas; até a era nazi mal interfere em afectuosas recordações
dos bons tempos. O mundo americanizado da República Federal do pós-
guerra, por outro lado, é apresentado com um raivoso e gélido desdém: o
esquecimento materialista dos valores nacionais e a destruição da memória e
da continuidade são descritos como violentamente corrosivos dos valores
humanos e da comunidade. Tal como no Casamento de Maria Braun, de
Fassbinder, a personagem principal – Maria – substitui uma Alemanha
vitimizada; mas Heimat é explicitamente nostálgico e até xenófobo no seu
desdém pelos valores estrangeiros e saudoso da alma perdida da «Alemanha
profunda».
Reitz, tal como Syberberg e outros, era publicamente desdenhoso da série
de televisão americana Holocausto, apresentada pela primeira vez na
televisão alemã em 1979. Se tinha de haver descrições do passado da
Alemanha, por muito dolorosas que fossem, então competia aos Alemães
produzi-las. «O processo mais radical de expropriação que existe», escreveu
Reitz, «é a expropriação da história de alguém. Os Americanos roubaram-nos
a nossa história através de Holocausto». A aplicação de uma ‘estética
comercial’ ao passado da Alemanha era a maneira que a América tinha de o
controlar. A luta dos realizadores e artistas alemães contra o kitsch americano
fazia parte da luta contra o capitalismo americano.
Reiz e Fassbinder contavam-se entre os realizadores de Deutschland im
Herbst (Alemanha no Outono), em 1979, uma colagem de documentários,
excertos de filmes e entrevistas que cobriam os acontecimentos do Outono de
1977, nomeadamente o rapto e assassinato de Martin Schleyer e o
subsequente suicídio de Ensslin e Baader. O filme é notável não tanto pelas
manifestações de empatia para com os terroristas mas mais pelos termos
específicos em que é transmitida. Através de uma montagem cuidadosa o III
Reich e a República Federal são apresentados partilhando semelhanças. O
«capitalismo», o «sistema de lucros» e o nacional-socialismo são
apresentados como igualmente repreensíveis e indefensáveis, com os
terroristas a surgirem como actuais resistentes: Antígonas modernas a lutarem
com a sua consciência e contra a repressão política.
Em Deutschland im Herbst foi usado um considerável talento cinemático –
tal como em outros filmes alemães contemporâneos – para descrever a
Alemanha Ocidental como um Estado policial, semelhante ao nazismo,
quanto mais não fosse na sua (até então não revelada) capacidade para a
repressão e violência. Horst Mahler, um terrorista semiarrependido, então na
prisão, explica para a câmara que a emergência de uma oposição
extraparlamentar em 1967 representava a «revolução antifascista» que não se
dera em 1945. A verdadeira luta contra os demónios nazis da Alemanha
estava assim a ser travada pelos jovens clandestinos radicais – embora através
do uso de métodos extremamente semelhantes aos nazis, um paradoxo que
Mahler não aborda.
A implícita relativização do nazismo em Deutschland im Herbst estava já
a ser bastante explícita em apologias intelectuais a favor do terror
anticapitalista. Como explicou o filósofo Detlef Hartmann em 1985:
«Podemos aprender com a relação óbvia entre dinheiro, tecnologia e
extermínio no imperialismo nazi da Nova Ordem [… como] levantar o véu
que cobre a tecnologia do extermínio civilizado da Nova Ordem de Bretton
Woods». Foi este fácil resvalar – a ideia de que o que liga o nazismo e a
democracia capitalista é mais importante do que as suas diferenças e que
foram os Alemães as vítimas de ambos – que ajuda a explicar a nítida
insensibilidade da esquerda radical alemã pelos assuntos dos judeus.
A 5 de Setembro de 1972, a organização palestina Setembro Negro atacou
a equipa israelita nos Jogos Olímpicos de Munique, matando 11 atletas, bem
como um polícia alemão. Quase de certeza os perpetradores tiveram ajuda
local da esquerda radical (apesar de ser uma curiosidade alemã da época que a
extrema-direita não teria ficado menos satisfeita por oferecer os seus
serviços). O elo entre as organizações palestinas e os grupos terroristas
europeus estava já bem estabelecido – Ensslin, Baader e Meinhof, todos
‘treinaram’ em determinada altura com as guerrilhas palestinas, juntamente
com Bascos, Italianos, republicanos irlandeses e outros. Mas só os Alemães
foram até ao fim: quando quatro terroristas (dois alemães, dois árabes)
sequestraram um avião da Air France, em Junho de 1976 e voaram para
Entebe, no Uganda, foram os dois alemães que se encarregaram de identificar
e separar os passageiros judeus dos restantes.
Se esta acção, tão inequivocamente evocadora da selecção de judeus de
outros tempos e lugares, não desacreditou definitivamente o grupo Baader-
Meinhof aos olhos dos seus simpatizantes foi porque os seus argumentos, e
não os seus métodos, atraíam um consenso bastante alargado: os Alemães,
não os judeus, eram agora as vítimas, e o capitalismo americano, não o
nacional-socialismo alemão, era o perpetrador. Os «crimes de guerra» eram
agora coisas que os Americanos também faziam – por exemplo, aos
Vietnamitas. Havia um «novo patriotismo» na Alemanha Ocidental e é um
pouco mais do que irónico que Baader, Meinhof e amigos, cuja violenta
revolta fora inicialmente dirigida em primeiro lugar contra a Alemanha e a
presunção da geração dos seus pais, se viessem a encontrar agregados aos
ecos dessa mesma herança nacionalista. Era inteiramente apropriado que
Horst Mahler, um dos poucos fundadores sobreviventes do terrorismo de
esquerda na Alemanha Ocidental, viesse a acabar três décadas depois na
extrema-direita do espectro político alemão.
Nos aspectos externos, o terrorismo italiano contemporâneo não era
marcadamente diferente do tipo alemão. Também ele recorria à retórica para-
marxista dos anos 60 e a maior parte dos seus dirigentes recebeu a sua
educação política nas contestações universitárias da época. A principal
organização clandestina do terror de Esquerda, as autoproclamadas Brigate
Rosse (Brigadas Vermelhas, BR) só atraiu a atenção pública em Outubro de
1970, quando distribuiu panfletos descrevendo objectivos idênticos aos da
Fracção do Exército Vermelho. Tal como Baader, Meinhof e outros, os
dirigentes das BR eram jovens (em 1970, o mais conhecido de entre eles,
Renato Curcio, tinha apenas 29 anos), na maior parte ex-estudantes, e
dedicados à luta armada clandestina como fim em si.
Mas também havia algumas diferenças importantes. Desde o início que os
terroristas de Esquerda italianos punham maior ênfase no seu suposto
relacionamento com os ‘trabalhadores’ e de facto em certas cidades industriais
do Norte, em particular Milão, as franjas mais respeitáveis da ultra-esquerda
tinham mesmo um pequeno séquito popular. Ao contrário dos terroristas
alemães, agrupados à volta de um pequeno núcleo duro de criminosos, a
extrema-esquerda italiana ia dos partidos políticos legítimos, passando por
redes de guerrilha urbana, até às pequenas seitas de bandidos políticos
armados, sobrepondo associados e objectivos.
Estes grupos e seitas eram a réplica em miniatura da fissípara história das
principais correntes da esquerda europeia. No decorrer dos anos 70, cada acto
violento era seguido por reivindicações por parte de organizações até então
desconhecidas, frequentemente por subsecções e células independentes do
grupo original. Por trás dos próprios terroristas orbitava uma constelação livre
de movimentos, semiclandestina, e jornais cujas proclamações ‘teóricas’
sentenciosas davam cobertura ideológica às tácticas terroristas. Os nomes
destes vários grupos, células, redes, jornais e movimentos transcendem a
paródia: além das Brigadas Vermelhas, havia a Lotta Continua (Luta
Contínua), o Potere Operario (Poder Operário), Prima Linea (Linha da
Frente) e Autonomia Operaia (Autonomia Operária); Avanguardia Operaia
(Vanguarda Operária), Nuclei Armati Proletari (Núcleo Proletário Armado) e
Nuclei Armati Rivoluzionari (Núcleo Armado Revolucionário); Formazione
Comunisti Combattenti (Formações Comunistas Combatentes), Unione
Comunisti Combattenti (Associações Comunistas Combatentes), Potere
Proletario Armato (Poder Proletário Armado), entre outros.
Se esta lista sugere em retrospectiva um desejo desesperado de inflacionar
o significado social e revolucionário de alguns milhares de ex-estudantes e
dos seus seguidores descontentes nas franjas do movimento operário, o
impacto dos seus esforços para chamar sobre si a atenção pública não deve ser
subestimado. Curcio, a sua companheira Mara Cagol e os seus amigos podem
ter estado a viver a fantasia de um conto de fadas romântico de bandidos
revolucionários (em grande medida devido à imagem popularizada das
guerrilhas revolucionárias na América Latina), mas os danos que provocaram
eram bastante reais. Entre 1970 e 1981 não se passou um ano em Itália sem
assassinatos, mutilações, raptos, assaltos e diversos actos de violência pública.
No curso da década, três políticos, nove magistrados, 65 polícias e quase 300
outras pessoas foram vítimas de assassinato.
Nos primeiros anos, as Brigadas Vermelhas e outros restringiram as suas
acções aos raptos e a atentados ocasionais contra administradores de fábricas
e homens de negócios pouco importantes: «lacaios capitalistas», «servi del
padrone» (criados dos patrões), reflectindo o seu interesse inicial na
democracia directa nas fábricas. No entanto, em meados dos anos 70 tinham
avançado para o homicídio político – primeiro de políticos da ala direita,
depois polícias, jornalistas e delegados do Ministério Público – numa
estratégia destinada a «arrancar a máscara» à legalidade burguesa, obrigar o
Estado à repressão violenta e assim dividirem a opinião pública.
Até 1978 as Brigadas Vermelhas não tinham conseguido provocar a
desejada reacção adversa apesar de um crescente aumento de ataques no
decorrer do ano anterior. Então, a 16 de Março de 1978, raptaram a sua vítima
mais proeminente: Aldo Moro, um dirigente do Partido Democrata-Cristão e
antigo primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Moro foi
mantido refém durante dois meses; apoiado pelos comunistas e pela maior
parte do seu próprio partido, o primeiro-ministro democrata-cristão Giulio
Andreotti recusou-se até a considerar as exigências dos raptores para a
libertação dos «prisioneiros políticos» em troca da vida de Moro. Apesar da
unânime condenação em todo o espectro político italiano e dos apelos do
Papa e do Secretário-Geral da ONU, os terroristas recusaram-se a ceder. A 10
de Maio o corpo de Aldo Moro foi encontrado num carro descaradamente
estacionado numa rua no centro de Roma.
O caso Moro certamente ilustrou a incompetência do Estado italiano – o
ministro do Interior demitiu-se no dia a seguir ao aparecimento do corpo.
Após oito anos de frenética legislação antiterrorismo e perseguições a nível
nacional, a polícia tinha manifestamente falhado no desmantelamento da rede
terrorista(11). E as repercussões do êxito das Brigadas Vermelhas em
cometerem assassínios políticos mesmo no coração do Estado e da sua capital
foram significativas. Era agora evidente para toda a gente que a Itália
enfrentava um verdadeiro desafio à sua ordem política. Menos de duas
semanas depois do cadáver de Moro ter sido encontrado, as BR mataram o
chefe da brigada antiterrorismo em Génova; em Outubro de 1978
assassinaram o Director-Geral dos Assuntos Criminais no Ministério da
Justiça em Roma. Duas semanas depois as Formazione Comuniste
Combattenti assassinaram um delegado do Ministério Público.
Mas a própria escala do desafio terrorista ao Governo começava agora a
ter um preço. O Partido Comunista Italiano colocou o seu peso, de modo
firme e sem ambiguidades, por detrás das instituições da República, tornando
explícito o que era já claro para quase toda a gente: quaisquer que fossem as
suas origens nos movimentos populares dos anos 60, os terroristas dos anos
70 tinham-se agora colocado para além do campo das políticas radicais. Eram
meros criminosos e deviam ser perseguidos como tal. E o mesmo para os que
lhes davam cobertura ideológica e talvez mais: em Abril de 1979 o professor
da Universidade de Pádua Toni Negri, juntamente com outros dirigentes da
Autonomia Operaia, foi preso e acusado de conspirar uma insurreição armada
contra o Estado.
Negri e os seus apoiantes insistiram (e continuam a insistir) que os
‘autonomistas’ radicais, que não eram clandestinos, nem armados, não deviam
ser confundidos com sociedades secretas ilegais e que a decisão política de os
perseguir representava precisamente a retirada da «ordem burguesa» que as
Brigadas Vermelhas tinham profetizado e procurado obter. Mas o próprio
Negri tinha sancionado na Universidade de Pádua ataques violentos a
professores e administradores, que eram praticamente tácticas terroristas. Os
slogans «ilegalidade maciça», «guerra civil permanente» e a necessidade de
se organizarem «militarmente» contra o Estado burguês eram amplamente
proferidos em círculos académicos respeitáveis – incluindo o jornal Rosso do
próprio Negri. Um ano depois do rapto e assassínio de Moro, Negri escreveu
celebrando a «aniquilação do adversário»: «A dor do meu adversário não me
afecta: a justiça proletária tem a força produtiva de auto-afirmação e a
faculdade da convicção lógica»(12).
A ideia de que a violência política poderia ter a «força produtiva da auto-
afirmação» não deixava de ser familiar na história italiana moderna, claro. O
que Negri afirmava e o que as Brigadas Vermelhas e os seus amigos estavam
a praticar não era diferente do «poder purificador da força» tal como
enaltecido pelos fascistas. Como na Alemanha, assim na Itália: o ódio da
extrema-esquerda ao «Estado burguês» tinha-a remetido para a «violência
proletária» da direita antidemocrática. Por volta de 1980, tanto os alvos como
os métodos da esquerda terrorista e da direita terrorista na Itália tinham-se
tornado indistinguíveis. Na verdade, as Brigadas Vermelhas e os seus
seguidores não eram de maneira alguma responsáveis por toda a violência dos
anni di piombo (anos de chumbo) da Itália. A direita conspirativa, anti-
republicana, reemergiu durante esses anos (e perpetrou o pior crime da época,
a bomba na estação de caminho-de-ferro de Bolonha em Agosto de 1980,
matando 85 pessoas e ferindo outras 200) e no Mezzogiorno a Máfia, também,
adoptou uma estratégia de terror mais agressiva na sua guerra contra os
magistrados, polícia e políticos locais.
Mas na medida em que o reaparecimento do terror neofascista e o
ressurgimento da violência da Máfia ilustravam e exacerbavam a
vulnerabilidade das instituições democráticas, os seus empreendimentos eram
– talvez correctamente – interpretados pelos terroristas de esquerda como
sinal do seu próprio êxito. Ambos os extremos procuraram desestabilizar o
Estado tornando a vida pública intoleravelmente perigosa – com a diferença
de que a extrema-direita podia contar com alguma protecção e colaboração
das mesmas forças da ordem que procurava subverter. Redes conspirativas
sombrias da ala direita, chegando aos altos cargos da polícia, da banca e do
partido democrata-cristão no governo, autorizaram o assassínio de juízes,
delegados do Ministério Público e jornalistas(13).
Que a democracia e o primado da Lei em Itália tenham sobrevivido
durante estes anos não é uma questão de somenos. De 1977 a 1982,
especialmente, o país esteve acossado por actos aleatórios de extrema
violência, ao mesmo tempo da extrema-esquerda, da extrema-direita e de
criminosos profissionais – foi durante estes mesmos anos que a Máfia e outras
redes criminosas assassinaram chefes da polícia, políticos, procuradores
públicos, juízes e jornalistas, por vezes com aparente impunidade. Embora a
ameaça mais séria viesse da extrema-direita – mais bem organizada e muito
mais próxima do coração do Estado – os terroristas «vermelhos» tiveram
maior impacto no imaginário público. Isto em parte porque, tal como a
Fracção do Exército Vermelho na Alemanha, lidavam com a simpatia
generalizada pelas ideias radicais. Os comunistas oficiais encaravam
correctamente esta apropriação da herança revolucionária como o principal
trunfo dos terroristas, bem como o sintoma do risco que representavam para a
credibilidade da esquerda institucional.
Ironicamente, e sem o conhecimento dos próprios comunistas, as Brigadas
Vermelhas e a Fracção do Exército Vermelho – tal como as igualmente
motivadas mas ineficazes Cellules communistes combattantes na Bélgica, a
Action Directe em França e até mesmo operações mais pequenas noutros
países – eram em parte financiadas com dinheiro fornecido pelos serviços
secretos soviéticos. Este dinheiro não fazia parte de nenhuma estratégia
coerente: era em vez disso pago por princípios gerais – os inimigos dos
nossos inimigos, por muito absurdos e insignificantes, ainda são nossos
amigos. Mas neste caso resultou ao contrário: a única realização incontroversa
do terrorismo da ala esquerda na Europa Ocidental durante estes anos foi a
perfeição com que eliminou quaisquer ilusões revolucionárias que restassem
na classe política.
Todas as principais organizações políticas de esquerda, especialmente os
comunistas, estavam obrigadas a distanciar-se da violência de qualquer
espécie. Em parte esta era uma resposta espontânea à ameaça de terror que
lhes era colocada, bem como a outros – sindicalistas e outros representantes
do movimento operário tradicional encontravam-se entre os alvos mais
infamados das redes clandestinas. Mas também porque os «anos de chumbo»
da década de 70 serviram para lembrar a toda a gente até que ponto as
democracias liberais poderiam de facto ser frágeis – uma lição por vezes
negligenciada na atmosfera empolgante dos anos 60. O resultado dos anos de
subversão pretensamente revolucionária no coração da Europa Ocidental não
foi dividir a sociedade, conforme os terroristas tinham planeado e esperado,
antes uniu os políticos dos vários partidos na protecção do terreno intermédio.
Na vida do espírito, os anos 70 foram a década mais desencorajadora do
século XX. Em certa medida isto pode ser atribuído às circunstâncias
descritas neste capítulo: a brusca e sustentada quebra económica, juntamente
com a violência política generalizada, encorajaram o sentimento de que os
«bons tempos» da Europa tinham passado, talvez por muitos anos ainda. A
maior parte dos jovens estava agora menos preocupada em mudar o mundo do
que em encontrar emprego: o fascínio pelas ambições colectivas deu lugar a
uma obsessão com as necessidades pessoais. Num mundo mais ameaçador,
garantir os interesses próprios tomava precedência sobre a promoção de
causas comuns.
Não há dúvida de que esta mudança de estado de espírito era também uma
resposta à impetuosa tolerância da década anterior. Os europeus que só
recentemente tinham usufruído de uma explosão sem precedentes de energia e
de originalidade na música, moda, cinema e nas artes podiam agora
contemplar tranquilamente o preço das suas recentes folias. Não era tanto o
idealismo dos anos 60 que parecia ter ficado datado tão rapidamente mas a
innocence desses dias: a sensação de que tudo o que se pudesse imaginar
podia ser feito; que tudo o que pudesse ser feito podia ser possuído; e que a
transgressão – moral, política, legal, estética – era intrinsecamente atractiva e
produtiva. Enquanto os anos 60 foram marcados pelo impulso ingénuo, auto-
elogioso, de acreditar que tudo o que acontecia era novo – e tudo o que era
novo era significativo – os anos 70 foram uma época de cinismo, de ilusões
perdidas e expectativas reduzidas.
Os tempos medíocres, escreveu Albert Camus em A Queda, geram
profetas vazios. Os anos 70 ofereceram uma rica colheita deles. Foi uma era
depressivamente consciente de ter chegado depois das grandes esperanças e
ideias ambiciosas do passado recente e de não ter nada para oferecer para
além de repetições e extensões de velhas ideias. Era, muito
autoconscientemente, uma era de «pós-tudo», em que as perspectivas futuras
pareciam enevoadas. Como observou na altura o sociólogo americano Daniel
Bell: «O uso do prefixo hifenizado ‘pós’ indica (uma) sensação de se viver
num tempo de intervalo». Como descrição do mundo real – «pós-guerra»,
«pós-império» e muito recentemente «pós-industrial» – o termo tinha os seus
usos mesmo deixando incerto o que se poderia seguir. Mas quando aplicado a
categorias de pensamento – como em «pós-marxista», «pós-estruturalista» e,
o mais enganoso de todos, «pós-moderno» – não fez mais do que aumentar as
obscuridades de um tempo já confuso.
A cultura dos anos 60 fora racionalista. Apesar das drogas leves e folias
utópicas, o pensamento social da época, tal como a sua música, funcionaram
num registo familiar e coerente, meramente «expandido». Era também
notoriamente comunitário: presumia-se que os estudantes, tal como os
«operários», «camponeses», «negros» e outros colectivos partilhassem os
interesses e afinidades que os uniam uns aos outros num relacionamento
especial e – embora de forma antagonista – ao resto da sociedade. Os
projectos dos anos 60, por muito fantásticos que fossem, presumiam uma
relação entre o indivíduo e a classe, a classe e a sociedade, a sociedade e o
Estado, que teria sido familiar na sua forma, se não no seu conteúdo, para os
activistas em qualquer ponto do século anterior.
A cultura dos anos 70 não girou à volta do colectivo mas do indivíduo.
Assim como a antropologia tinha substituído a filosofia como disciplina dos
anos 60, também a psicologia lhe tomava agora o lugar. No decorrer dos anos
60 a noção de «falsa consciência» fora amplamente adoptada pelos jovens
marxistas para explicar o insucesso dos trabalhadores e outros em se
libertarem da identificação com os interesses capitalistas. Numa variante
pervertida esta ideia formou, como vimos, a premissa central do terrorismo de
esquerda. Mas também ganhou uma curiosa vida futura em círculos menos
politizados: adaptando a linguagem de base do marxismo a temas freudianos,
os autodenominados «pós-freudianos» agora enfatizavam a necessidade não
de libertar as classes sociais, mas de agregar motivos individuais.
Apareciam agora os teóricos da libertação, tanto na Europa Ocidental
como na América do Norte, cujo objectivo não era libertar o sujeito humano
da dependência socialmente forçada, mas das ilusões auto-impostas. A
variante sexual deste tema – a ideia de que a repressão sexual e social
estavam integralmente ligadas – era já um truísmo em certos meios dos anos
60. Mas Marcuse, ou Wilhelm Reich, inseriam-se numa clara linha de
descendência tanto de Freud como de Marx – procurando a transformação
colectiva através da libertação individual. Por outro lado, os seguidores de
Jacques Lacan, ou teóricas contemporâneas do feminismo como Kate Millett
e Annie Leclerc, eram simultaneamente menos e mais ambiciosas. Não
estavam muito preocupadas com os projectos tradicionais da revolução social
(que as feministas identificavam, com razão, com os movimentos políticos
dirigidos por, e sobretudo, para homens). Em vez disso procuraram subverter
o próprio conceito de pessoa humana que outrora lhes estivera subjacente.
Por detrás de tal pensamento encontravam-se duas presunções
generalizadas, muito amplamente partilhadas pela comunidade intelectual da
época. A primeira era que o poder não se baseava – como muitos pensadores
sociais desde o Iluminismo pensavam – no controlo dos recursos naturais e
humanos, mas sim sobre o monopólio do conhecimento: conhecimento do
mundo natural; conhecimento da esfera pública; conhecimento de si próprio e,
acima de tudo, conhecimento da maneira como o próprio conhecimento é
produzido e legitimado. Neste aspecto, a manutenção do poder assentava na
capacidade dos que controlavam o conhecimento manterem esse controlo à
custa dos outros, reprimindo «conhecimentos» subversivos.
Na altura, esta explicação da condição humana estava larga e
correctamente associada aos escritos de Michel Foucault. Mas apesar deste
obscurantismo ocasional, Foucault era fundamentalmente um racionalista. Os
seus primeiros escritos seguiam de muito perto a venerável asserção marxista
de que para libertar os trabalhadores dos grilhões do capitalismo, era
necessário primeiro substituir a narrativa, em proveito próprio, da sociedade
burguesa por um relato diferente da história e da economia. Resumindo, era
preciso substituir o conhecimento revolucionário, por assim dizer, ao dos
mestres: ou, na linguagem de Antonio Gramsci, tão em voga alguns anos
antes, era preciso combater a «hegemonia» da classe governante.
Um segundo pressuposto, que iria adquirir uma força ainda maior nas
modas intelectuais, foi consideravelmente mais longe. Era a sedutora
insistência na subversão, não só das velhas certezas como da própria
possibilidade de certeza. Todo o comportamento, toda a opinião, todo o
conhecimento, precisamente por ser socialmente derivado e portanto
politicamente instrumental, devia ser encarado com desconfiança. A própria
ideia de que os juízos ou avaliações podiam ser independentes da pessoa que
os fazia acabou por ser tratada em certos grupos como sendo ela própria a
expressão e representação de uma posição social partidária (e implicitamente
conservadora).
Todas as reiterações de avaliação ou convicção podiam em princípio ser
reduzidas desta forma. Mesmo os críticos intelectuais podiam ser eles
mesmos assim «posicionados». Nas palavras do sociólogo francês Pierre
Bourdieu, o expoente mais influente da nova sociologia do conhecimento, o
«discurso professoral» não é mais do que a «expressão da fracção dominada
da classe dominante». O que esta forma fascinantemente subversiva de
posicionar todo o conhecimento e opinião não revelou é como determinar se
um «discurso» era mais verdadeiro que outro: um dilema solucionado
tratando a «verdade» como sendo ela própria uma categoria socialmente
posicionada – uma posição que se iria tornar popular. O resultado natural de
tais desenvolvimentos foi um crescente cepticismo perante todos os
argumentos sociais racionais. O filósofo francês Jean-François Lyotard, cujo
ensaio de 1979 sobre o assunto, A Condição Pós-Moderna, resumia muito
bem o air du temps, colocou a questão com suficiente clareza: «Eu defino
pós-moderno como incredulidade em relação às meta-narrativas».
A fonte subjacente e normalmente não reconhecida destas influências
intelectuais predominantemente francesas era, como tantas vezes em décadas
anteriores, alemã. O escritor italiano Elio Vittorini observou uma vez que
desde Napoleão que a França se revelava impermeável a qualquer influência
estrangeira com excepção da filosofia romântica alemã, e o que era verdade
quando escreveu isto em 1957, não o era menos duas décadas depois.
Enquanto que as sensibilidades humanistas de uma anterior geração tinham
sido atraídas por Marx e Hegel, os desconfiados anos 70 foram seduzidos por
uma tensão absolutamente mais sombria do pensamento alemão. O
cepticismo radical de Michel Foucault era em larga medida uma adaptação de
Nietzsche. Outros autores franceses influentes, nomeadamente o crítico
literário Jacques Derrida, olhavam, em alternativa, para Martin Heidegger,
para a sua crítica à acção humana e à «desconstrução», como se estava a
tornar conhecida, do sujeito humano cognitivo e da sua substância textual.
Para os académicos especialistas em Heidegger ou no seu contemporâneo
alemão Carl Schmitt (cujo realismo historicista estava a chamar a atenção
entre os estudantes das questões internacionais), este interesse era mais do
que um tanto estranho. Tanto Heidegger como Schmitt, afinal, estavam
identificados com o nazismo – Heidegger bastante explicitamente por ter
aceite um cargo académico sob os auspícios nazis. Mas o renovado interesse
em criticar suposições optimistas sobre o progresso, em questionar os pilares
do racionalismo iluminado e os seus derivados políticos e cognitivos,
estabeleceu uma certa afinidade entre os críticos da modernidade do início do
século XX e o progresso técnico, como Heidegger, e os cépticos
desencantados da era «pós-moderna» – e permitiu a Heidegger e a outros
fazer a lavagem das suas antigas associações.
Na altura em que a filosofia alemã tinha atravessado o pensamento social
parisiense para a crítica cultural inglesa – as formas em que era familiar para
a maior parte dos leitores da altura – o seu vocabulário intrinsecamente difícil
tinha atingido um nível de opacidade expressiva que se revelou
irresistivelmente apelativo para uma geração de estudantes e seus professores.
O jovem corpo docente recrutado para prover as universidades da época, que
haviam sido aumentadas, era constituído em muitos casos por licenciados dos
anos 60, educados nas modas e debates dessa época. Mas enquanto as
universidades europeias da década anterior estavam preocupadas com
grandiosas teorias de vários géneros – sociedade, o Estado, a linguagem,
história, revolução – o que passou para a geração seguinte foi sobretudo uma
preocupação com a Teoria em si. Os seminários sobre «Teoria Cultural» ou
«Teoria Geral» deslocaram as fronteiras disciplinares convencionais que
ainda tinham dominado o debate académico radical uns anos antes. A
«dificuldade» passou a ser a medida da seriedade intelectual. No seu
comentário desencantado sobre a herança do «Pensamento de 68», os
escritores franceses Luc Ferry e Alain Renault concluíram mordazmente que
«a maior realização dos pensadores dos anos 60 foi terem convencido o seu
público de que a ininteligibilidade era sinal de grandeza».
Com um público já disponível nas universidades, teóricos agora
celebrizados, como Lacan e Derrida, elevaram as extravagâncias e os
paradoxos da linguagem a filosofias desenvolvidas, padrões infinitamente
flexíveis para a explanação textual e política. Em instituições como o Centro
Universitário de Birmingham para os Estudos Culturais Contemporâneos, a
nova teoria misturava-se suavemente com a antiga. O marxismo estava liberto
da sua embaraçosa ligação atávica às categorias económicas e instituições
políticas e reciclado como crítica social. A inconveniente relutância do
proletariado revolucionário em derrotar a burguesia capitalista já não
representava um impedimento. Como disse, em 1976, Stuart Hall, o principal
representante dos Estudos Culturais nesses anos, a «ideia do
“desaparecimento da classe como um todo” é substituída por um quadro
muito mais complexo e diferenciado de como os diferentes sectores e estratos
de uma classe são conduzidos para diferentes caminhos e opções pelas suas
circunstâncias socioeconómicas determinantes».
O próprio Hall iria anos mais tarde admitir que este Centro tinha estado
durante «algum tempo demasiado preocupado com estes difíceis assuntos
teóricos». Mas na realidade, este obscurantismo narcisista era muito do seu
tempo, sendo o seu afastamento da realidade testemunha inconsciente do
esgotamento de uma tradição intelectual. Além do mais, não era de maneira
alguma o único sintoma de esgotamento cultural durante esses anos. Até a
brilhante originalidade do cinema francês dos anos 60 decaiu para um
trabalho artístico constrangedor. Em 1974, Jacques Rivette, o bem humorado
e original realizador de Paris nous appartient (1960) e de Le Religieuse
(1966), realizou Céline et Julie vont en bateau. Com uma duração de 193
minutos, paródia estilizada sem enredo (ainda que não intencional) da Nova
Vaga francesa, Céline et Julie marcou o fim de uma era. A teorização artística
estava a desalojar a arte.
Se uma parte integrante da herança dos anos 60 era a pretensão a alta
cultura, a outra, a sua inversão íntima, era uma crosta endurecida de cinismo
consciente. A relativa inocência do rock and roll estava a ser cada vez mais
substituída por bandas pop concebidas para os media cujas letras e modo de
actuar eram uma ridícula apropriação e degradação do estilo criado pelos seus
precursores imediatos. Muito como os romances populares e o jornalismo
tablóide se tinham outrora concentrado na literacia de massas para benefícios
comerciais, também o punk rock surgiu nos anos 70 para explorar o mercado
da música popular. Apresentado como «contracultural», era de facto parasita
da cultura principal, invocando imagens violentas e a linguagem radical para
fins muitas vezes mercenários.
A linguagem confessadamente política das bandas de punk rock,
exemplificada no êxito Anarchy in the UK [Anarquia no Reino Unido] de
1976 dos Sex Pistols, captou o espírito amargo da época. Mas a política das
bandas punk era tão unidimensional como a sua mestria musical, estando esta
última muitas vezes restringidas a três acordes e um único compasso e
dependente do volume do som para a sua eficácia. Tal como a Fracção do
Exército Vermelho, os Sex Pistols e outros grupos de punk rock queriam
acima de tudo chocar. Até o seu aspecto e modos subversivos surgiam
embalados em ironia e em algum exagero: «Lembram-se dos anos 60?»,
pareciam dizer, «Bem, gostem ou não, somos o que resta.» A subversão
musical consistia agora em canções zangadas censurando a «hegemonia»,
com o seu falso conteúdo político a disfarçar a regular evisceração da forma
musical(14).
Por muito falsas que a sua política e a sua música fossem, o cinismo da
geração punk, pelo menos, era verdadeiro e sinceramente obtido. Eram o
extremo sem talento de um espectro crescente de desrespeito: pelo passado,
pela autoridade, pelas figuras públicas e pelos assuntos públicos. Nas suas
encarnações mais espirituosas, este desdém pela pompa e pela tradição foi
buscar o mote aos jovens satíricos ingleses desencantados que tinham surgido
pela primeira vez quase duas décadas antes: a revista teatral Beyond the
Fringe, o programa nocturno da BBC That Was the Week That Was e a revista
semanal Private Eye. Explorando a audiência em rápido crescimento da
televisão e a cada vez menor censura do Estado, os Monty Python e os seus
sucessores e imitadores misturaram comédia absurda, comentários sociais
grosseiros e ridicularização política sardónica – uma mistura vista
recentemente nos cartoons políticos mordazes de Gillray e Cruikshank. A
estreita interacção entre a música rock e o novo burlesco está muito bem
ilustrada no apoio financeiro a dois dos filmes dos Python, Monty Python and
the Holy Grail [Monty Python e o Cálice Sagrado] de 1974 e Life of Brian
[Vida de Brian] (1979): financiados respectivamente pelos Pink Floyd e Led
Zeppelin e por George Harrison dos Beatles.
A fraca reputação das figuras públicas fornecia assuntos predilectos aos
programas semanais da televisão como Spitting Image ou o Bebête Show em
França, em que políticos importantes eram rotineiramente atacados num grau
de ridículo e desdém que teria sido impensável alguns anos antes (e ainda é
nos Estados Unidos). Satiristas e comediantes políticos substituíram os
escritores e os artistas como heróis intelectuais do momento: quando se
perguntava aos estudantes franceses no início dos anos 80 que figuras
públicas admiravam mais, os comentadores mais velhos ficavam chocados
por saber que o falecido Jean-Paul Sartre fora substituído por Coluche, um
comediante da televisão grosseiro e por vezes obsceno, que percebeu
sarcasticamente a sua recente projecção candidatando-se a presidente do seu
país.
No entanto, os mesmos canais públicos de televisão que transmitiam
paródias mordazes e irreverentes de cultura popular, também forneciam aos
humoristas copiosa matéria-prima. Talvez o objecto de ridículo mais
amplamente celebrado fosse o «Festival Eurovisão da Canção», um concurso
televisivo anual transmitido pela primeira vez em 1970. Um exercício
comercial para ilustrar a celebração da nova tecnologia de transmissão
televisiva simultânea para múltiplos países, o espectáculo afirmava ter
centenas de milhares de espectadores em meados dos anos 70. O Festival
Eurovisão da Canção – em que cantores de segunda e desconhecidos de todo
o continente apresentavam músicas que caíam no esquecimento antes de eles
regressarem, em quase todos os casos para a obscuridade de onde tinham
brevemente emergido – era tão espantosamente banal na sua concepção e
execução que desafiava a paródia. Quinze anos antes teria estado fora de
moda. Mas só por esse motivo, proclamava qualquer coisa de novo.
O entusiasmo com que o Festival Eurovisão da Canção promoveu e
celebrou um formato irremediavelmente datado e uma torrente de intérpretes
ineptos reflectia uma crescente cultura de nostalgia, simultaneamente
melancólica e desiludida. Se o punk, o pós-modernismo e a paródia eram uma
resposta às confusões de uma década desiludida, o retro era outra. O grupo
pop francês Il Était Une Fois exibia vestuário dos anos 30, uma de muitas
renovações de indumentária, das «saias da avó» aos penteados neo-
eduardianos dos «Novos Românticos» – estes últimos retomados pela
segunda vez em três décadas. No vestuário e na música (e nos edifícios) a
tentação de reciclar estilos antigos – misturando e combinando com pouca
autoconfiança – substituiu a inovação. Os anos 70, uma época de dificuldades
que se questionou a si mesma: olhavam para trás, não para a frente. A Era do
Aquário deixara na sua esteira uma época pastiche.
-
(1) O défice do orçamento federal dos EUA cresceu de 1,6 mil milhões de dólares em 1965 para 25,2
mil milhões em 1968.

(2) Como termo de comparação, as importações americanas de petróleo, no auge da crise de 1973,
representavam não mais do que 36% do consumo interno dos EUA.

(3) Uma média, claro, é só uma média. No ano particularmente negro de 1976, quando o desemprego
britânico ultrapassou um milhão pela primeira vez desde a guerra e a inflação anual se aproximou dos
25%, as taxas de crescimento em todos os sítios atingiram um ponto baixo – na Itália a economia na
realidade encolheu, pela primeira vez desde a guerra.

(4) Associação Nacional dos Funcionários do Governo Local; Sindicato Nacional dos Funcionários
Públicos; Associação do Pessoal Científico, Técnico e Administrativo.

(5) Este acrónimo tinha uma utilidade política distinta. Ao recuperar o nome de uma moeda de prata
francesa do século XVIII ajudava a suavizar o desconforto parisiense por ter de reconhecer a emergente
supremacia da Alemanha Ocidental nos assuntos da Europa.

(6) Citado em International Monetary Cooperation since Bretton Woods, de Harold James (NY,
Oxford, 1996), p. 180.

(7) Mais notoriamente a 17 de Outubro de 1961, quando a polícia francesa matou cerca de 200
Argelinos, muitos deles afogados no Sena, no seguimento de uma marcha de protesto por Paris. O chefe
da polícia da altura era Maurice Papon, mais tarde acusado e condenado por crimes contra a
humanidade pela sua colaboração no tempo da guerra em detenções e envio de judeus franceses para
Auschwitz. Ver Epílogo.

(8) Os «Provisórios» foram buscar o nome à declaração de 24 de Abril de 1916, em Dublin, quando
os revoltosos proclamaram um governo provisório.

(9) Calculou-se na altura que o custo de manter a presença inglesa na Irlanda do Norte era de três mil
milhões de libras por ano, numa época em que Londres era fortemente pressionada para equilibrar o seu
orçamento.

(10) O Partido Socialista francês, impecavelmente cumpridor das leis, até formou uma «Comissão
para a Defesa dos Direitos Humanos» na República Federal, oferecendo ajuda especializada e prática
aos aí acusados de actos terroristas.

(11) Tal como na Alemanha, a polícia tinha a determinada altura encontrado os cabecilhas, para os
voltar a perder mais tarde. Preso em 1974, Renato Curcio fugiu da prisão em Fevereiro de 1975, tendo
sido recapturado onze meses depois.
(12) Inicialmente libertado, Negri foi novamente preso em 1983. Em Junho de 1984 foi julgado e
condenado a trinta anos de cadeia.

(13) Uma rede destas, a infamante Loja P2, era uma misteriosa rede maçónica de políticos da ala
direita, banqueiros, soldados e polícias, organizada por Licio Gelli, um ex-militante da «República
Social» de Mussolini de 1943 a 1945. Os seus 962 membros incluíam 30 generais, oito almirantes, 43
deputados, três ministros em exercício e uma razoável representação transversal dos mais altas cargos
da indústria e do sector privado da banca.

(14) O punk da Europa Ocidental deixou um sabor particularmente amargo nos últimos anos da
Europa de Leste comunista, onde foi adoptado por bandas niilistas do submundo, cinicamente
concentradas numa herança de dissidência política e musical para seus próprios fins. Numa mistura
repelente de pornografia com incorrecção política, os Spions, um grupo punk húngaro dos anos 80,
gravou «Anna Frank»: «um pouco de relações forçadas antes de eles virem e te levarem, Anna Frank!
Faz amor comigo, Anna Frank! Chora, sua cadela! Anna Frank! Senão denuncio-te! Anna Frank – os
rapazes estão à tua espera.»
XV

Política com um Novo Registo


«Je declare avoir avorté.» («Declaro que fiz um aborto.»)
Simone de Beauvoir (mais 342 mulheres), 5 de Abril de 1971
«No espaço de uma geração, no máximo, os partidos comunistas francês e
italiano ou rompem os seus laços com Moscovo ou murcham até à
insignificância.»
Denis Healey (1957)
«Com este Tratado, não se perde nada que não tenha sido já perdido há
muito.»
Chanceler Willy Brandt, Agosto de 1970
«Quando dois Estados desejam estabelecer melhores relações, frequentemente
desejam a mais vulgar banalidade».
Timothy Garton Ash
Nos anos 70 a paisagem política da Europa Ocidental começou a fracturar-
se e a fragmentar-se. Desde o fim da Primeira Guerra Mundial que os
principais políticos tinham estado divididos em duas «famílias» políticas,
Esquerda e Direita, eles próprios internamente divididos entre «moderados» e
«radicais». A partir de 1945, as facções aproximaram-se cada vez mais, mas o
padrão não se alterou radicalmente. O espectro das opções políticas
disponível para os eleitores europeus em 1970 não teria sido desconhecido
para os seus avós.
A longevidade dos partidos políticos da Europa provinha de uma notável
continuidade na ecologia do eleitorado. A escolha entre trabalhistas e
conservadores na Inglaterra, ou sociais-democratas e democratas-cristãos na
Alemanha Ocidental, já não reflectia as profundas divisões entre políticas
particulares, muito menos preferências por «estilos de vida», como viriam a
ser conhecidos. Na maior parte dos sítios era uma repercussão de hábitos de
voto transgeracionais de há muito tempo, determinados pela classe, religião
ou localidade do votante mais do que pelo programa do partido. Os homens e
as mulheres votavam como os seus pais tinham votado, dependendo de onde
viviam, onde votavam e do que ganhavam.
Mas sob a aparente continuidade estava a dar-se uma mudança tectónica
na sociologia política dos eleitores europeus. O voto em bloco da classe
trabalhadora branca, masculina, empregada – a base universal de apoio aos
partidos comunistas e socialistas – estava a encolher e a fender-se. Da mesma
maneira, já não se podia contar com o votante «típico ideal» – mais velho,
feminino, frequentador da igreja – para constituir o eleitorado central dos
partidos democratas-cristãos ou conservadores. Apesar de persistirem, estes
eleitores já não representavam a maioria. Porquê?
Em primeiro lugar, a mobilidade social e geográfica no decorrer das
décadas do pós-guerra tinha diluído de forma irreconhecível as categorias
sociais fixas. O bloco votante cristão na França Ocidental rural ou nas
pequenas cidades do Veneto, os baluartes proletários industriais do Sul da
Bélgica ou do Norte da Inglaterra estavam agora fissurados e fragmentados.
Os homens e as mulheres já não viviam nos mesmos sítios que os seus pais e
muitas vezes tinham empregos muito diferentes. Não surpreendentemente,
também viam o mundo de maneira bastante diferente; as suas preferências
políticas começaram a reflectir estas mudanças, embora a princípio devagar.
Em segundo lugar, a prosperidade e as reformas sociais dos anos 60 e do
início dos 70 tinham efectivamente esgotado os programas e a visão dos
partidos tradicionais. O seu próprio sucesso tinha também privado os políticos
da Esquerda e da Direita democrática de uma agenda credível, especialmente
depois da enchente de reformas liberais dos anos 60. As instituições do
próprio Estado não estavam em disputa, nem o estavam os objectivos gerais
da política económica. O que restava era a harmonização das relações de
trabalho, a legislação contra a discriminação na habitação e no emprego, a
expansão das instalações educacionais e semelhantes: assuntos públicos sérios
mas dificilmente matéria de grande debate político.
Em terceiro lugar, havia agora denominadores de lealdade política
alternativos. As minorias étnicas, muitas vezes mal recebidas nas
comunidades trabalhadoras brancas da Europa onde chegavam, nem sempre
eram convidadas para as organizações políticas ou laborais locais e as suas
políticas reflectiam esta exclusão. E por último, as políticas geracionais dos
anos 60 tinham introduzido na discussão pública preocupações que não eram
de todo familiares a uma cultura política mais velha. À Nova Esquerda pode
ter faltado um programa, mas não lhe faltavam assuntos. Acima de tudo,
introduziu novos eleitorados. O fascínio pelo sexo e pela sexualidade
conduziu naturalmente à política sexual; as mulheres e os homossexuais,
respectivamente subordinados e invisíveis nos partidos radicais tradicionais,
surgiam agora como sujeitos históricos legítimos com direitos e
reivindicações. A juventude, e o entusiasmo da juventude, passaram para
plano central, especialmente por a idade do voto ter em muitos sítios baixado
para os 18 anos.
A prosperidade da época tinha encorajado a viragem da atenção das
pessoas da produção para o consumo, das necessidades da existência para a
qualidade de vida. No calor dos anos 60 poucos se preocupavam muito com
os dilemas morais da prosperidade – os seus beneficiários estavam demasiado
atarefados a gozar os frutos da sua boa sorte. Mas no espaço de alguns anos –
nomeadamente entre os jovens adultos instruídos do Nordeste da Europa –
muitos acabaram por encarar o comercialismo e o bem-estar material dos anos
50 e 60 como uma herança incómoda, que trazia artigos espalhafatosos e
falsos valores. O preço da modernidade, pelo menos para os seus principais
beneficiários, começava a parecer bastante elevado, e o «mundo perdido» dos
seus pais e avós bastante apelativo.
A politização destes descontentamentos culturais era notoriamente obra de
activistas familiarizados com as tácticas dos partidos mais tradicionais onde
eles ou as suas famílias tinham estado outrora activos. A lógica da política
mudou, por isso, relativamente pouco: a questão era ainda mobilizar as
pessoas com a mesma opinião à volta de um programa de legislação a ser
implementado pelo Estado. O que era novo era a premissa organizativa. Até
então – na Europa – os eleitorados políticos tinham surgido das afinidades
eleitoralistas de grandes grupos de eleitores definidos pela classe ou
ocupação, unidos por um conjunto de princípios e objectivos comuns,
herdados e muitas vezes bastante abstractos. As políticas tinham tido menos
importância do que as alianças.
Mas nos anos 70 as políticas avançaram para a primeira linha. Apareceram
partidos e movimentos de «tema único», com o seu eleitorado moldado por
uma geografia variável de preocupações comuns: muitas vezes num objectivo
estrito, ocasionalmente excêntricos. A notavelmente bem sucedida Campaign
For Real Ale (CAMRA) (Campanha para a cerveja autêntica) é um exemplo
representativo: criada em 1971 para inverter a tendência para a cerveja lager
gasosa e homogeneizada (e para os igualmente «homogeneizados» bares onde
era vendida), este grupo de pressão da classe média baseou a sua
argumentação numa explicação neo-marxista sobre o controlo do fabrico da
cerveja artesanal pelos monopolistas da produção em massa que manipulavam
os bebedores de cerveja para benefício da empresa – alienando os
consumidores do seu gosto pessoal através da substituição da verdadeira pela
falsa cerveja.
Na sua eficaz mistura de análise económica, preocupações ambientais,
discriminação estética e pura nostalgia, a CAMRA prefigurou muitas das
redes de activistas de tema único dos anos futuros, assim como a moda que se
iria seguir entre os abastados boémios burgueses do dispendiosamente
«autêntico»(1). Mas o seu encanto ligeiramente arcaico, para não mencionar a
desproporção entre a intensidade de empenhamento dos seus activistas e o
tépido objecto da sua paixão, tornou este particular movimento de um só tema
necessariamente um tanto peculiar.
Mas não havia nada de excêntrico ou peculiar em outras organizações
políticas de tema único, a maior parte delas – como a CAMRA – organizadas
por e para a classe média. Na Escandinávia emergiu uma variedade de
partidos de protesto no início dos anos 70, nomeadamente o Partido Rural
(mais tarde Partido Verdadeiro Finlandês) na Finlândia; o Partido do
Progresso Dinamarquês, de Morgens Glistrup, e o Partido Norueguês do
Progresso, de Anders Lange. Todos eles se dedicavam energicamente e no
início unicamente à causa da redução dos impostos – o título de fundação do
partido norueguês, em 1973, tinha sido «Partido para uma Drástica Redução
de Impostos, Juros e Intervenção do Estado de Anders Lange», com o seu
programa de uma só folha a reiterar as exigências do seu título.
A experiência escandinava foi talvez diferente – em mais nenhum sítio o
valor dos impostos era tão elevado nem os serviços públicos tão vastos – e
certamente nenhum partido de tema único fora da região alguma vez
conseguiu tanto como o partido de Glistrup, que obteve 15,9% da votação
nacional dinamarquesa em 1973. Mas os partidos anti-impostos não eram
novos. O seu modelo era a Union de Défense des Commerçants et Artisans
(UDCA), de Pierre Poujade, fundada em 1953 para proteger os pequenos
comerciantes contra os impostos e os supermercados e que conseguiu uma
breve fama obtendo 12% dos votos nas eleições francesas de 1956. Mas o
movimento de Poujade era singular. A maior parte dos partidos de protesto
que surgiram depois de 1970 revelaram-se duradouros – o Partido do
Progresso Norueguês obteve a sua maior votação até agora (15,3%) um
quarto de século depois, em 1997.
Os partidos anti-impostos, como os partidos agrários de protesto na
Europa de entre guerras, eram principalmente reactivos e negativos – eram
contra mudanças indesejadas e pediam ao Estado acima de tudo que
eliminasse o que consideravam ser cargas fiscais pouco razoáveis. Outros
movimentos de um só tema tinham exigências mais positivas a fazer ao
Estado, ou à lei, ou às instituições. As suas preocupações iam da reforma
prisional e dos hospitais psiquiátricos, passando pelo acesso à educação e aos
serviços médicos e ao fornecimento de alimentos seguros, serviços
comunitários, melhoria do ambiente urbano e o acesso aos recursos culturais.
Todos eram «anticonsenso» na sua relutância em confinar o seu apoio a
qualquer eleitorado tradicional e na sua disponibilidade e – por necessidade –
em considerar formas alternativas de publicitar as suas preocupações.
Três dos novos agrupamentos políticos – o movimento das mulheres, o
ambientalismo e o activismo pela paz – são de particular significado pela sua
dimensão e pelo seu impacto duradouro. Por razões óbvias, o movimento das
mulheres era o mais variado e abrangente. A juntar aos interesses que
partilhavam com os homens, as mulheres tinham preocupações específicas
que só então estavam a começar a entrar na arena legislativa europeia:
cuidados infantis, igualdade de salários, divórcio, aborto, contracepção,
violência doméstica.
A este dever-se-ia acrescentar a atenção prestada pelos grupos de mulheres
mais radicais aos direitos homossexuais (lésbicos) e a crescente preocupação
feminista com a pornografia. Esta última ilustra bastante bem a nova
geografia moral da política: a literatura e os filmes sexualmente explícitos só
recente e parcialmente tinham sido libertados do controlo dos censores, graças
aos esforços concentrados de velhos liberais e da nova Esquerda. No entanto,
no espaço de uma década estavam novamente debaixo de fogo, desta vez de
organizações de grupos de mulheres, muitas vezes dirigidas por coligações de
feministas radicais e conservadoras tradicionais que se uniam à volta deste
mesmo tema.
O movimento das mulheres na Europa foi desde o princípio uma mistura
variável de objectivos cruzados. Em 1950, um quarto das mulheres casadas da
Alemanha Ocidental estava empregada fora de casa, em 1970 o número
subira para uma mulher casada em cada duas; de um milhão e meio de
entrados no mercado de trabalho na Itália, entre 1972 e 1980, um milhão e um
quarto eram mulheres. Em meados de 1990 as mulheres representavam mais
de 40% da mão-de-obra total (oficial) em todos os países da Europa, excepto
Portugal e Itália. Muitas das novas mulheres trabalhadoras tinham empregos a
tempo parcial ou em trabalhos de secretariado não especializado onde não
tinham direito a todos os benefícios. A flexibilidade de um emprego a tempo
parcial convinha a muitas mães trabalhadoras, mas nas limitadas
circunstâncias económicas dos anos 70 isto não compensava os baixos
salários e a insegurança do emprego. Salário igual e instalações para deixar as
crianças surgiram assim cedo como principal reivindicação da maior parte das
mulheres trabalhadoras no Ocidente e têm-se mantido desde então na linha da
frente.
As mulheres trabalhadoras (e não trabalhadoras) procuravam cada vez
mais ajuda para os cuidados a prestar aos filhos; mas não desejavam
necessariamente ter mais filhos. De facto, com agora maior prosperidade e
mais tempo despendido a trabalhar fora de casa, queriam menos – ou pelo
menos queriam ter uma palavra a dizer sobre o assunto. A exigência de acesso
à informação contraceptiva e aos contraceptivos data dos primeiros anos do
século XX mas intensificou-se no espaço da década do baby-boom. A
associação francesa Association Maternité formou-se em 1956 para fazer
pressão pelos direitos à contracepção; quatro anos depois sucedeu-lhe o
Mouvement Français pour le Planning Familial, sendo a mudança de nome
uma clara indicação da mudança de atitude.
Devido à liberalização das liberdades sexuais dos anos 60 foram crescendo
pressões de todos os géneros, as leis que regulamentavam a contracepção
foram abrandadas em todo o lado (excepto em alguns países da Europa de
Leste, como a Roménia, onde as «estratégias de reprodução» nacionais
continuaram a proibi-la). No início dos anos 70 a contracepção estava
amplamente disponível em toda a Europa Ocidental, embora não em distritos
rurais remotos ou em regiões onde as autoridades católicas tinham controlo
moral sobre as populações locais. Mesmo nas cidades, no entanto, foram as
mulheres da classe média que mais beneficiaram com a nova liberdade; para
muitas mulheres casadas da classe trabalhadora e a esmagadora maioria das
não casadas, a principal forma de controlo da natalidade mantinha-se a que
sempre fora: o aborto.
Não é portanto surpreendente que a exigência de reforma das leis do
aborto se tornasse um leitmotiv da política das novas mulheres – um raro
ponto de intersecção onde as políticas do feminismo radical iam ao encontro
das necessidades de todas as mulheres apolíticas. Na Grã-Bretanha, o aborto
fora descriminalizado em 1967, como vimos. Mas, em muitos outros sítios,
era ainda um crime: na Itália implicava uma sentença de cinco anos de cadeia.
Mas legais ou de outra maneira, os abortos faziam parte da experiência de
vida de milhões de mulheres – na minúscula Letónia, em 1973, houve 60 000
abortos para 34 000 nascimentos. E onde o aborto era ilegal, os riscos que
impunha, tanto legais como médicos, uniam as mulheres para além da classe,
idade e filiação política.
A 5 de Abril de 1971 a revista semanal francesa Le Nouvel Observateur
publicou uma petição assinada por 343 mulheres declarando que todas tinham
feito abortos, e assim violado a lei, e exigindo a revisão do código penal. As
signatárias eram todas bem conhecidas, algumas delas – as escritoras Simone
de Beauvoir e Françoise Sagan, as actrizes Catherine Deneuve, Jeanne
Moreau e Marie-France Pisier, as advogadas e activistas políticas Yvette
Roudy e Gisèle Halimi – na verdade muito conhecidas. E a elas se juntaram
obscuras mas militantes activistas dos movimentos feministas que tinham
surgido no início de 1968. Apesar de mais de trezentas mulheres terem sido
consideradas culpadas do crime de aborto no ano anterior, o governo absteve-
se prudentemente de acusar as signatárias da carta aberta.
A petição tinha sido organizada pelo Mouvement de Libération des
Femmes (MLF), fundado no ano anterior; a agitação política provocada pela
sua acção levou Halimi e Beauvoir a formar a Choisir, uma organização
política dedicada a acabar com a proibição do aborto. Em Janeiro de 1973,
numa conferência de imprensa, o presidente francês Georges Pompidou
admitiu que a lei francesa ficaram aquém da evolução da opinião pública.
Dificilmente poderia ter feito outra coisa: no decurso de 1972-73, mais de 35
000 mulheres francesas viajaram até à Grã-Bretanha para fazer abortos legais.
O sucessor de Pompidou, Valéry Giscard d’Estaing, deu instruções à sua
ministra da Saúde, Simone Weil, para apresentar ao parlamento uma revisão
da lei e a 17 de Janeiro de 1975, a Assemblée Nationale legalizou o aborto em
França (durante as dez primeira semanas de gravidez).
O exemplo francês foi estudado de perto pelas mulheres por toda a Europa
Ocidental. Em Itália, o recentemente formado Movimento della Liberazione
delle Donne Italiane (Movimento de Libertação das Mulheres Italianas) uniu
forças com o pequeno Partido Radical para conseguir 800 000 assinaturas
numa petição para alterar a lei do aborto, apoiada por uma marcha sobre
Roma de 50 000 mulheres, em Abril de 1976. Três anos depois da tardia
introdução, em 1975, de um novo «código de família» para substituir o dos
fascistas, o Parlamento italiano votou – a 29 de Maio de 1978, três semanas
depois da descoberta do cadáver de Aldo Moro – a legalização do aborto.
A decisão foi indirectamente confirmada por um referendo nacional em
Maio de 1981, quando os eleitores italianos rejeitaram tanto uma proposta
para minimizar ainda mais as restrições existentes quanto ao aborto legal
como uma proposta para o voltar a criminalizar apresentada por um
recentemente formado Movimento Pró-Vida. Se o ritmo das reformas na Itália
estava um tanto atrasado em relação à Inglaterra ou à França, era menos
devido à oposição da Igreja Católica do que por tantas feministas italianas
terem tomado parte activa nos movimentos da Esquerda «autónoma»
extraparlamentar (de forma reveladora, o primeiro manifesto da Lotta
Femminista de 1971 tinha-se centrado na exigência de salários para o trabalho
doméstico – uma extensão ritual do reino doméstico de uma visão mais
antiga, «trabalhadorista» da sociedade moderna como uma enorme fábrica).
Foram assim lentas no aproveitamento de instituições políticas consagradas
para a prossecução dos seus objectivos.
Em Espanha, a estratégia francesa foi seguida ainda mais de perto,
acelerada pelas energias libertadas pelo colapso do antigo regime. A primeira
manifestação feminista em Espanha foi organizada em Janeiro de 1976, dois
meses depois da morte de Franco. Dois anos depois, o adultério foi
descriminalizado e a contracepção legalizada. Em 1979, mil mulheres,
incluindo figuras públicas proeminentes, assinaram uma declaração pública
declarando que tinham violado a lei ao terem feito um aborto – uma indicação
de que a Espanha sob o governo de Franco possuía uma das mais elevadas
taxas de aborto ilegal, comparável com a da Europa de Leste e resultado da
mesma desaprovação autoritária pró-natalidade de todas as formas de controlo
da natalidade. Mas mesmo na Espanha pós-Franco as pressões culturais
contra a reforma da lei do aborto permaneceram fortes; quando as Cortes
finalmente aprovaram uma lei permitindo o aborto em Maio de 1985, esta
restringia a autorização aos casos de violação, malformação do feto ou
quando a vida da mãe estava em risco.
Juntamente com o direito ao divórcio, a bem sucedida batalha pelo direito
ao aborto foi a principal realização dos grupos políticos de mulheres durante
estes anos. Como consequência, as circunstâncias pessoais de milhões de
mulheres foram incalculavelmente facilitadas. A possibilidade de se abortar,
juntamente com a contracepção eficaz e disponível, não só melhorou as
hipóteses de vida de muitas mulheres, especialmente das pobres, como
também proporcionou às mulheres trabalhadoras a opção de adiar ter o
primeiro filho até uma fase tardia das suas vidas.
O resultado foi uma queda constante no número de crianças nascidas. A
taxa de nascimentos por mulher caiu quase 60% entre 1960 e 1996; a Itália, a
Alemanha Ocidental e a Holanda seguiam-na muito de perto. No espaço de
alguns anos após as reformas dos anos 70, nenhum país ocidental com
excepção da Irlanda tinha uma taxa de natalidade suficiente para substituir a
geração anterior. Na Grã-Bretanha, nas três décadas depois de 1960 a taxa de
natalidade anual caiu de 2,71 filhos por mulher para 1,84; em França de 2,73,
para 1,73. Cada vez mais as mulheres casadas decidiam ter um filho ou
mesmo nenhum – se não fossem os nascimentos extramatrimoniais as taxas
teriam sido ainda mais baixas: no final dos anos 80, em percentagem anual, os
nascimentos fora do casamento correspondiam a 24% na Áustria, 28% no
Reino Unido, 29% em França e 52% na Suécia.
À medida que a economia abrandava e a emancipação das mulheres se
intensificava, a demografia da Europa ia mudando – com implicações
premonitórias para o Estado-providência nos anos futuros. As mudanças
sociais resultantes do movimento das mulheres não eram porém reflectidas na
própria política. Não surgiu nenhum «partido das mulheres», capaz de
congregar votos e eleger representantes. As mulheres continuaram a ser uma
minoria nas legislaturas nacionais e nos governos.
A Esquerda revelou-se de maneira geral mais aberta a eleger mulheres do
que a Direita (mas não em todos os sítios – tanto na Bélgica como em França,
durante muitos anos, era mais provável os partidos cristãos de centro-direita
nomearem mulheres para lugares elegíveis do que os seus opositores
socialistas) mas o melhor indicador das oportunidades das mulheres na vida
pública não era a ideologia, mas a geografia. Entre 1975 e 1990 o número de
mulheres no parlamento finlandês subiu de 23% para 39%; na Suécia, de 21%
para 38%; na Noruega de 16% para 36% e na Dinamarca de 16% para 33%.
Mais para sul, nos parlamentos da Itália e Portugal, as mulheres constituíam
unicamente um em cada doze deputados em 1990. Na Câmara dos Comuns no
Reino Unido representavam só 17% do total; na Assemblée Nationale
francesa, uns meros 6%.
Os ambientalistas, tanto homens como mulheres, tiveram
consideravelmente maior sucesso na transmissão dos seus sentimentos para a
política eleitoral. A um determinado nível, o «ambientalismo» (neologismo
que remontava aos anos 30) era na verdade uma nova orientação: a expressão
colectiva dos receios da classe média quanto às centrais de energia nuclear e à
urbanização galopante, auto-estradas e poluição. Mas o Movimento Verde na
Europa nunca teria sido tão eficaz se não tivesse passado de uma nota de
rodapé dos anos 60: Luddites(*) abastados de fim-de-semana, vestidos com
roupas em fibras naturais gastas, triangulando entre os seus instintos e os seus
interesses. A ânsia por um mundo mais «natural» e a demanda de uma política
pessoal de «autenticidade» tinha profundas raízes em ambos os lados da
divisão ideológica, que remontava aos Românticos e o seu horror pelas
depredações da industrialização inicial. No início do século XX, tanto a
Esquerda como a Direita possuíam os seus clubes de ciclismo, restaurantes
vegetarianos, movimentos Wandervogel e de caminhantes, associados
diversamente aos sonhos socialistas ou nacionalistas de emancipação e
retorno.
A nostalgia alemã pelas paisagens unicamente alemãs, pelas montanhas e
rios do Harz e do Pfalz, pela Heimat; o sonho dos nacionalistas franceses de
harmonia rural na France profonde, limpa de cidades e de cosmopolitismo; a
quimera inglesa de uma passada e futura harmonia, a Jerusalém perdida de
Blake, tudo isto tinha mais em comum do que qualquer dos seus seguidores
gostaria de admitir. E enquanto que a Esquerda, durante muitas décadas, tinha
olhado com admiração quando o «volume de produção» comunista se
esforçou por ultrapassar o do Ocidente, nos anos 70 as vozes tanto da Direita
como da Esquerda começavam a expressar alguma inquietação com os custos
colaterais do progresso, produtividade e «modernidade»(2).
A moderna revolução ambientalista beneficiou assim duas vezes: era uma
interrupção nas insensíveis panaceias do passado recente – e tinha as suas
raízes numa história mais distante, esquecida mas atavicamente
tranquilizante. Na sua esteira, o ambientalismo (tal como o pacifismo) muitas
vezes originava um renascimento do nacionalismo – ou regionalismo – mas
de rosto humano. Os Alternativen de Berlim Ocidental, ou os manifestantes
antinuclear da Áustria que ganharam um referendo em 1978 proibindo o seu
governo de activar a central de energia nuclear em Zwentendorf, nunca se
teriam identificado como nacionalistas ou até mesmo patriotas. Mas a sua
raiva contra a poluição do ambiente local acima de tudo (e a sua relativa
indiferença pela devastação semelhante a ser infligida em outros sítios) sugere
o contrário. A característica de «no meu quintal não» do incipiente
Movimento Verde fazia lembrar um modelo anterior.
Não havia assim nada de contraditório no entusiasmo com que em
Portugal o idoso ditador Oliveira Salazar obrigou aos mesmos controlos
ambientais que eram reclamados aos seus governos democráticos pelos
radicais do pós-68 em Viena ou Amsterdão. Desconfiado do «materialismo» e
determinado a impedir que o século XX se aproximasse, Salazar era, à sua
maneira, um genuíno entusiasta dos objectivos ecológicos – atingidos neste
caso através do simples expediente de manter os seus compatriotas numa
situação de torpor económico sem paralelo. Teria certamente aprovado a
proeza dos manifestantes franceses que em 1971 impediram uma planeada
base militar em Larzac, nas altas planícies do centro sul da França.
O simbolismo de Larzac – onde as pradarias desabitadas foram defendidas
contra o poder conjunto do Estado francês por um regimento de
ambientalistas rebelde – foi imenso e não só em França: tinha-se obtido uma
vitória emocional, não tanto para as ovelhas do planalto como para os seus
pastores, distintamente vindos de fora, muitos deles jovens radicais que só
recentemente tinham saído de Lyon ou Paris para se reciclarem como
agricultores nas margens mais agrestes da «França profunda». A frente de
batalha tinha sem dúvida mudado – pelo menos na Europa Ocidental.
Na Europa de Leste, evidentemente, a doutrina de produção primária sem
restrições – e a ausência de quaisquer vozes oficiais em contrário – deixou o
ambiente à mercê dos poluidores oficiais de todo o género. Enquanto a
Áustria podia ter sido obrigada pela oposição interna a abandonar a energia
nuclear, os seus vizinhos comunistas não tinham tais remorsos quanto à
construção de reactores nucleares, planeando represas enormes mesmo a
jusante do Danúbio, na Checoslováquia e na Hungria, ou em aumentar
regularmente o volume de produção e a poluição atmosférica algumas
dezenas de quilómetros a norte, em Nowa Huta, a cidade do aço
«propositadamente» construída na Polónia. Mas apesar de tudo isto, os custos
morais e humanos da poluição industrial infrene e a degradação do ambiente
não tinham passado desapercebidas no bloco de Leste.
Assim, a indiferença cínica do regime de Husak em Praga após 68 – a sua
disponibilidade para espalhar destruição ao longo da fronteira comum do
Danúbio, para conseguir quilowatts gerados no próprio país – desencadeou
uma crescente reacção adversa entre os Húngaros, em geral politicamente
inactivos. Implausível como poderia ter parecido em tempos mais antigos, a
barragem prevista para Gabcikovo-Nagymaros viria a ser uma fonte
significativa de oposição interna ao próprio regime de Budapeste – assim
como um importante constrangimento para as relações entre os dois
«fraternais» vizinhos(3).
Na Checoslováquia, uma velha aversão pela modernidade tecnológica
passara para uma nova geração de intelectuais sobretudo através de escritos
dos filósofos Jan Patocka e Vaclav Belohradsky; este último a trabalhar no
exílio em Itália em 1970, sendo as suas meditações neo-heideggerianas lidas
em samizdat no seu país de origem. A ideia de que o esforço para subjugar e
dominar a natureza para fins humanos – o projecto do Iluminismo – poderia
vir a ter um preço demasiado elevado era já familiar aos leitores de ambos os
lados da fronteira da Guerra Fria através dos escritos da Escola de Frankfurt,
nomeadamente Theodor Adorno e Max Horkheimer no seu Dialéctica do
Iluminismo, publicado em 1944. Com uma propensão heideggeriana – a
sugestão de que o comunismo em si era uma importação ilícita ocidental,
afectado pela orgulhosa ilusão de progresso material interminável – estas
reflexões formavam a base de uma oposição intelectual surgida nos anos 70,
combinando discordância ética com críticas ecológicas, e dirigida por Patocka
e um dos mais entusiastas leitores de Belohradsky, o dramaturgo Vaclav
Havel(4).
A seu tempo, uma crítica ambientalista comum iria servir de ponte entre
novas formas de protesto no Leste e no Ocidente. Mas nas circunstâncias do
início dos anos 70 nenhum dos lados sabia ainda muito – nem, no caso
ocidental, se importava – das opiniões ou problemas dos seus homólogos do
outro lado da Cortina de Ferro. Especialmente os ambientalistas da Europa
Ocidental estavam demasiado ocupados a formar a sua própria participação
política local para dar atenção à política internacional, excepto na medida em
que esta afectasse o único objecto da sua atenção. Nisto, porém, foram
singularmente bem sucedidos.
Foi em 1973 que os primeiros candidatos «ecologistas» se apresentaram a
eleições locais na Inglaterra e em França – o mesmo ano que viu a fundação
do Bauern (Agricultores) Congress na Alemanha Ocidental, precursor dos
Verdes. Alimentado pela primeira crise petrolífera, o movimento
ambientalista da Alemanha Ocidental avançou rapidamente para os meios
políticos principais. Das ocupações, marchas de protesto e iniciativas de
cidadãos no início da década, os Verdes – apoiados ou pelos agricultores,
ambientalistas, pacifistas e ocupantes urbanos ilegais – em 1979 tinham
avançado até ao ponto de garantirem a sua representação nos parlamentos dos
dois Länder alemães. Quatro anos depois, no início do segundo choque
petrolífero, o seu apoio nas eleições federais de 1983 aumentou de 568 000
para 2 165 000 (5,6% da votação) e conferiu-lhes pela primeira vez
representação parlamentar (27 lugares). Em 1985 os Verdes integravam um
importante governo regional, governando Hesse em coligação com o SPD (e
com o jovem político Joschka Fischer como ministro do Ambiente e Energia
de Hesse).
O êxito dos Verdes alemães não foi imediatamente repetido nos outros
países apesar de a seu tempo os partidos austríacos e sobretudo os franceses
se terem portado notavelmente. Os Alemães ocidentais talvez fossem
invulgares. Durante estes anos estavam a ficar relutantes face ao seu próprio
renascimento do pós-guerra: entre 1966 e 1981 a percentagem de população
que encarava favoravelmente a «tecnologia» e as suas realizações caiu
drasticamente de 72% para 30%. Os Verdes da Alemanha Ocidental também
beneficiaram com o sistema alemão de representatividade proporcional, pelo
que até os partidos mais pequenos podiam abrir caminho até aos parlamentos
regionais e federal – embora um sistema aproximadamente comparável na
Itália pouco ali fizesse pelos ambientalistas: em 1987 os Verdes italianos
tinham obtido menos de um milhão de votos e só 13 lugares em 630. Na
Bélgica, os dois partidos ecologistas (um de língua francesa, outro flamengo)
também melhoraram gradualmente: de 4,8% dos votos na sua primeira
aparição em 1981 subiram regularmente, ultrapassando os 7,1% em 1987. Na
Inglaterra, porém, o sistema de votação estava concebido para prejudicar os
partidos pequenos ou marginais e foi exactamente isso que fez.
Na Escandinávia, as perspectivas para os partidos de um só tema como os
ambientalistas (ou os pacifistas, ou os feministas) estavam restringidas pela
amplitude ecuménica dos agrupamentos políticos existentes – para quê
«desperdiçar» um voto nos Verdes quando os sociais-democratas ou os
Partidos Agrários propunham as mesmas preocupações? O ambientalismo na
Noruega, por exemplo, era pelo menos tão amplamente adoptado como na
Alemanha – já em 1970 os planos do governo trabalhista para explorar a
maior queda de água do Norte da Europa, em Mardola, no Círculo Polar
Árctico, para energia hidroeléctrica, provocaram indignação nacional
generalizada e resultaram em políticas ambientalistas na Noruega. Mas nem o
caso Mardola nem os subsequentes protestos contra futuras centrais de
energia nuclear alguma vez se traduziram num movimento político autónomo:
os protestos – e os compromissos – foram negociados no seio da maioria
governamental.
Os Verdes tiveram resultados um pouco melhores na Suécia, onde por fim
entraram no Parlamento em 1988, e na Finlândia, onde ambientalistas
individuais ganharam as eleições em 1987 e só depois formaram a Associação
Verde, um partido ambientalista, no ano seguinte (talvez não
surpreendentemente, os Verdes finlandeses tiveram resultados muito melhores
no Sul do país próspero, urbano, yuppy, do que no pobre centro rural e no
Norte). Mas a Finlândia e a Suécia eram invulgares: pacifistas, feministas,
ambientalistas, os deficientes e outros activistas de tema único tinham tanto a
certeza de um ambiente cultural geralmente compreensivo com as suas
preocupações que se podiam dar ao luxo de se separar da via tradicional e
arriscar dividir os seus próprios apoiantes sem pôr em perigo quer a maioria
governante, quer as expectativas da sua própria agenda.
Os partidos de um só tema, como vimos, muitas vezes surgiam no início
de uma crise, de um escândalo ou de uma proposta impopular: assim, os
ambientalistas austríacos, na medida em que se tornaram uma força nacional,
deviam a sua ascensão à amarga confrontação com as autoridades por uma
proposta de 1984 para construir uma central hidroeléctrica numa floresta na
zona pantanosa de Hainburg, no leste da Áustria. A causa Verde recebeu um
forte impulso devido ao confronto que se seguiu entre o governo de coligação,
chefiado pelos socialistas, e os activistas ambientalistas, e apesar de o
governo ter mais tarde capitulado, o incidente levou a um forte aumento de
apoio aos Verdes pelos eleitores socialistas desiludidos, nomeadamente entre
os intelectuais e profissionais liberais.
A proliferação de partidos e programas de «tema único» e a sua regular
absorção na vida pública convencional cobrou um preço elevado às
organizações tradicionais, em particular da Esquerda. Os partidos comunistas
na Europa Ocidental, debilitados pela constante erosão do seu eleitorado
proletário e desacreditados pela invasão da Checoslováquia, estavam muito
vulneráveis. O Partido Comunista Francês era dirigido por estalinistas que
ainda se atinham às velhas convicções e que nunca se tinham realmente
distanciado dos acontecimentos de 1956, muito menos dos de 1968.
Intrinsecamente conservador e suspeitando de qualquer tema ou pessoa que
não pudesse subordinar e controlar, o Partido viu o seu quinhão de votos cair
regularmente em cada eleição: de um pico, depois da guerra, de 28%, em
1946, para 18,6% em 1977 e daí, num vertiginoso colapso, para menos de
10% nas eleições dos anos 80.
Os comunistas italianos tiveram muito melhores resultados. Onde a
hierarquia comunista francesa era quase universalmente medíocre e pouco
atractiva – reflectindo nisto, como em quase tudo o resto, a servil imitação do
exemplo soviético – o PCI, de Palmiro Togliatti a Enrico Berlinguer
(Secretário do Partido de 1972 até à sua morte prematura, com 62 anos de
idade, em 1984), foi abençoado com dirigentes inteligentes e até cativantes.
Ambos os partidos, como qualquer outra organização comunista, estavam
profundamente dependentes do financiamento soviético: entre 1971 e 1990 as
instituições soviéticas canalizaram 50 milhões de dólares para os comunistas
franceses, 47 milhões para os italianos(5). Mas os Italianos pelo menos
expressaram desaprovação pública pelas escandalosas acções soviéticas –
nomeadamente a invasão da Checoslováquia.
A (relativa) autonomia dos comunistas italianos foi complementada com a
decisão de Berlinguer em 1973 de empenhar o seu partido na defesa da
democracia italiana, mesmo que significasse abandonar a sua franca oposição
aos democratas-cristãos: foi o chamado «compromisso histórico». Esta
mudança foi em parte impulsionada pelo choque do golpe de Estado no Chile,
em 1973, que convenceu Berlinguer e outros intelectuais comunistas de que
mesmo se os comunistas obtivessem uma maioria parlamentar nunca lhes
seria permitido – pelos Americanos e pelos seus aliados nos círculos das
forças armadas italianas, dos negócios e da Igreja – formar um governo
próprio. Mas foi também uma reacção, como vimos no capítulo anterior, à
muito real ameaça à democracia italiana representado pelos terroristas da
Direita e da Esquerda, de quem o Partido Comunista era tão inimigo como o
Estado italiano.
Estas mudanças trouxeram dividendos eleitorais temporários. O eleitorado
comunista na Itália cresceu regularmente – de 6,7 milhões de votos nas
eleições de 1958 para 9 milhões em 1972 e atingindo o auge quatro anos
depois, nas eleições de Junho de 1976, quando o PCI recolheu 12,6 milhões
de votos e 228 assentos parlamentares. Com 34,4% dos votos, eram apenas 4
pontos percentuais e 34 lugares a menos que os democratas-cristãos, no
governo, um resultado sem precedentes num partido comunista ocidental. O
PCI estava a fazer uma tentativa credível para se apresentar como um partido
do «sistema», talvez até (conforme Henry Kissinger e muitos observadores
estrangeiros receavam) uma alternativa de governo(6).
A nova abordagem do Partido italiano e os esforços bastante menos
convincentes do Partido francês para emular os êxito daquele, quando não as
suas ideias, ficou conhecida como «eurocomunismo» – um termo inventado
num encontro de comunistas italianos, franceses e espanhóis em Novembro
de 1975 e oficializado pelo secretário-geral dos comunistas espanhóis,
Santiago Carrillo, no seu ensaio de 1977, Eurocomunismo e o Estado. O
Partido espanhol emergia agora de décadas de clandestinidade e os seus
dirigentes estavam ansiosos por apresentar as suas credenciais democráticas.
Tal como os seus camaradas italianos, perceberam que a melhor maneira de o
conseguirem era mantendo as distâncias tanto da União Soviética
contemporânea como também, mais significativamente, do seu passado
leninista comum.
O «eurocomunismo» revelou-se brevemente sedutor, embora menos para
os eleitores do que para os intelectuais e académicos que tomaram por um
renasccimento político do marxismo o que era de facto uma expressão de
exaustão doutrinária. Para que os comunistas ocidentais ultrapassassem o
peso da sua história e se reprogramassem como um – o – movimento
democrático da Esquerda, precisavam de abandonar mais do que a «ditadura
do proletariado» e outros dogmas retóricos numa fogueira das vaidades
ideológicas no decorrer dos anos 70. Também precisavam de abandonar muito
publicamente a sua associação ao comunismo soviético e isto nem Berlinguer
nem Carrillo conseguiram fazer.
O eurocomunismo era assim uma contradição de termos apesar dos
melhores esforços dos seus arautos. A subordinação a Moscovo era, como
Lenine sempre tencionara, o principal cartão de identificação de qualquer
partido comunista. Até ao desaparecimento da própria União Soviética, os
partidos comunistas da Europa Ocidental estavam-lhe agrilhoados – se não
aos seus próprios olhos, então de certeza absoluta na opinião dos eleitores. Na
Itália, onde o PCI tinha conseguido o feito único de se estabelecer em certas
regiões como partido natural da governação (local), os comunistas
mantiveram uma considerável votação embora nunca mais aos níveis dos seus
êxitos de 1976. Mas noutros locais o regular declínio do eurocomunismo
continuou quase sem interrupção. Os comunistas espanhóis, que o
inventaram, viram a sua votação cair até apenas 4% em 1982.
Ironicamente, em Moscovo Leonid Brejnev deu efectivamente a sua
bênção aos esforços dos eurocomunistas para manterem a sua base local
distanciando-se dele. A jogada soviética, resultado da estratégia de détente
internacional a ser então levada a cabo, pouco fez pelos futuros reformadores
comunistas. Mas por essa altura, apesar de todo o apoio que continuavam a
dar em dinheiro e géneros, os dirigentes soviéticos estavam a perder interesse
nos partidos comunistas ocidentais, que tinham um impacto político limitado
e dificilmente chegariam ao poder num futuro previsível. No entanto, os
sociais-democratas, especialmente aqueles em cargos influentes, eram outra
questão. E os sociais-democratas na Alemanha, ainda o cadinho de um
continente dividido, tinham de facto um interesse muito particular.
Em 1969, o Partido Social-Democrata da Alemanha Ocidental (SPD),
dirigido por Willy Brandt, obteve a maioria nas eleições federais e formou
governo em coligação com o Partido Democrata Livre, empurrando os
conservadores democratas-cristãos para a oposição pela primeira vez desde a
fundação da República Federal. Brandt já fora durante três anos ministro dos
Negócios Estrangeiros na grande coligação de Kiesinger, e aí, em estreita
colaboração com o chefe do seu gabinete de planeamento político, Egon Bahr,
começara a formular uma nova orientação para a política externa alemã, uma
nova aproximação das relações da Alemanha com o bloco soviético:
Ostpolitik.
Até ali a política externa da Alemanha Ocidental fora dominada pela
opinião de Adenauer de que a nova República, firmemente ligada ao Ocidente
através da União Europeia Ocidental, da Comunidade Económica Europeia e
da NATO, devia ser firme na sua recusa em reconhecer a República
Democrática Alemã (RDA), a leste. Afirmando que só a RFA representava a
Alemanha, Adenauer também se recusara a reconhecer os Estados que tinham
relações diplomáticas com a RDA, com a excepção da União Soviética. O seu
sucessor, Ludwig Erhard, tinha aberto missões comerciais em Budapeste,
Sofia, Varsóvia e Budapeste, mas a primeira verdadeira quebra do princípio só
surgira em 1967, quando, com o apoio de Brandt, Bona estabeleceu relações
diplomáticas com a Roménia, seguindo-se um ano depois a Jugoslávia.
Adenauer tinha sempre insistido que a divisão da Alemanha e as disputas
fronteiriças a leste, por resolver, tinham de ser abordadas antes de poder haver
alguma détente ou redução do aparato militar na Europa Central. Mas ao
recusar contestar a construção do Muro de Berlim em 1961, os Estados
Unidos tinham mostrado a sua indisponibilidade para arriscar uma guerra para
manter aberta a fronteira de Berlim: e a América, como o presidente Lyndon
Johnson confirmou em Outubro de 1966, já não permitiria que a sua política
externa fosse refém do princípio da futura unificação da Alemanha. A
mensagem era clara: em vez de insistir na resolução do «problema alemão»
como condição prévia para a détente, uma nova geração de diplomatas
alemães teria de inverter as suas prioridades se quisesse atingir os seus
objectivos.
Se Willy Brandt estava disposto a arriscar uma quebra nas convenções da
política da Alemanha Ocidental era em larga medida devido à sua experiência
como presidente da Câmara de Berlim Ocidental. De facto, não é coincidência
o facto de alguns dos proponentes mais entusiastas da Ostpolitik em todas as
suas formas serem antigos presidentes da Câmara de Berlim – o próprio
Brandt, o futuro Presidente da República Federal Richard von Weizsacker e
Hans-Jochen Vogel, sucessor de Brandt na chefia do SPD. Para estes homens
era óbvio que os aliados ocidentais não iriam correr riscos para eliminar a
divisão da Europa – uma interpretação reconfirmada pela aceitação passiva do
Ocidente da invasão da Checoslováquia pelo Pacto de Varsóvia. Se os
Alemães ocidentais queriam quebrar o impasse na Europa Central, teriam de
ser eles mesmos a fazê-lo, tratando directamente com as autoridades de Leste.
Com estas considerações sempre em mente, Brandt e Bahr planearam a
sua aproximação ao Leste para conseguir aquilo a que Bahr chamou «Wandel
durch Annäherung» – mudança através da aproximação. O objectivo era
«levar a melhor sobre Ialta» através de uma quantidade de contactos –
diplomáticos, institucionais, humanos, e com isso «normalizar» as relações
entre as duas Alemanhas e no interior da Europa sem provocar perturbação
interna ou no estrangeiro. Numa característica inovação retórica, Brandt
abandonou calmamente a insistência da Alemanha Ocidental sobre a
ilegitimidade da RDA e a exigência não negociável de reunificação. A partir
daí, Bona iria continuar a afirmar a unidade fundamental do povo alemão,
mas a inegável facticidade da Alemanha de Leste seria reconhecida: «uma
nação alemã, dois Estados alemães»(7).
Entre 1970 e 1974, Brandt e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros,
Walter Scheel, do Partido Democrático Livre, negociaram e assinaram uma
série de importantes acordos diplomáticos: tratados com Moscovo e Varsóvia
em 1970, reconhecendo a existência de facto e a inviolabilidade das fronteiras
intra-germânicas e germano-polacas («a linha de fronteira existente… deve
constituir a fronteira do Estado ocidental da República Popular da Polónia») e
oferecendo um novo relacionamento entre a Alemanha e os seus vizinhos do
Leste «com base na situação política tal como existe na Europa»; um acordo
quadripartido sobre Berlim, em 1971, no qual Moscovo concordava em não
proceder a quaisquer alterações unilaterais e facilitar o movimento
transfronteiriço, seguido de um Tratado Básico com a RDA, ratificado pelo
Bundestag em 1973, no qual Bona ao mesmo tempo que continuava a garantir
cidadania automática a qualquer habitante da RDA que conseguisse chegar ao
Ocidente, abandonava a sua reivindicação de longa data de ser o único
representante legítimo de todos os Alemães; um tratado com Praga (1973) e a
troca de «Representantes Permanentes» com a RDA em Maio de 1974.
Por estas iniciativas e no seguimento de uma comovente peregrinação a
Varsóvia, onde se ajoelhou em homenagem à memória do Gueto de Varsóvia,
Willy Brandt recebeu o Prémio Nobel da Paz. Internamente também triunfou
– nas eleições de 1972 o seu SPD emergiu pela primeira vez como principal
partido no Parlamento Federal. Apesar da esquiva e antiga insistência de
Bona de que não se tinham alcançado decisões finais quanto a fronteiras e
povos, que as divisões de Ialta não tinham estatuto de jure e que a ficção legal
da continuidade das fronteiras da Alemanha de Dezembro de 1937 devia ser
mantida, Brandt era muito popular na Alemanha(8). E não só no Ocidente: na
sua viagem em 1970 à cidade de Erfurt, a primeira visita à Alemanha de Leste
de um dirigente da Alemanha Ocidental, Brandt foi acolhido por multidões
entusiásticas.
Depois de Brandt ter sido obrigado a demitir-se devido a um escândalo de
espionagem em 1974, os seus sucessores na Chancelaria – o socialista Helmut
Schmidt e o democrata-cristão Helmut Kohl – nunca se desviaram da linha
geral da Ostpolitik, continuando-a não só na diplomacia pública como
também através de múltiplas ligações à RDA, oficiais e não oficiais, todas
destinadas a facilitar os contactos humanos, as relações tranquilas, aliviar
receios de revanchismo da Alemanha Ocidental e, de uma maneira geral,
«normalizar» as relações de Bona com os seus vizinhos do Leste – aceitando,
nas palavras de Brandt depois de assinar o Tratado de Moscovo que
reconhecia as fronteiras da Alemanha de depois da guerra, que «com este
Tratado nada está perdido que não tenha sido já perdido há muito».
Havia três grupos eleitorais distintos que os autores da Ostpolitik tinham
de considerar se quisessem ser bem sucedidos nas suas ambições. Os
europeus ocidentais precisavam de garantias de que a Alemanha não se estava
a voltar para Leste. A primeira resposta do presidente francês Georges
Pompidou ao Tratado de Moscovo fora fazer propostas encorajadoras à Grã-
Bretanha – a participação inglesa na Comunidade Europeia tinha agora o
atractivo de fornecer um contrapeso a uma Alemanha menos adaptável. Os
Franceses acabaram por se tranquilizar com as promessas alemãs de fixar a
República Federal com crescente firmeza às instituições europeias ocidentais
(tal como os sucessores de Pompidou se iriam tranquilizar com o
compromisso da Alemanha para uma moeda europeia comum após a
unificação alemã duas décadas depois); mas em Paris como em Washington,
observações como a do ministro das Finanças Helmut Schmidt em 1973, a
descrever «um mundo em mudança» em que as «categorias tradicionais do
Leste e do Ocidente» estavam a perder significado, tão cedo não foram
esquecidas.
O segundo grupo eleitoral era de Alemães dos dois lados. Para muitos
deles a Ostpolitik de Brandt trouxe reais dividendos. Os contactos e as
comunicações entre as duas Alemanhas floresciam. Em 1969 tinham sido
feitas apenas meio milhão de chamadas telefónicas da Alemanha Ocidental
para a Alemanha de Leste. Vinte anos depois houve cerca de quarenta
milhões. O contacto telefónico entre as duas metades de Berlim, praticamente
inexistente em 1970, tinha atingido um nível de dez milhões de chamadas por
ano em 1988. Em meados dos anos 80 a maior parte dos alemães de Leste
tinha um acesso quase ilimitado à televisão da Alemanha Ocidental; de facto,
as autoridades da Alemanha de Leste até foram ao ponto de colocar cabo no
«vale dos ignorantes» em volta de Dresden (assim chamado devido aos
impedimentos topográficos locais ao sinal da televisão da Alemanha
Ocidental), na crença esperançosa de que se os Alemães de Leste pudessem
ver a televisão da Alemanha Ocidental em casa, não sentiriam a necessidade
de emigrar. Estas e outras disposições, incluindo a reunião de famílias e
libertação dos prisioneiros políticos para o Ocidente, contribuíram para a
credibilização da Ostpolitik e reflectiram a crescente confiança dos
comunistas na política da Alemanha Ocidental de «estabilidade» e de «nada
de surpresas».
Os governantes da Alemanha de Leste tinham particularmente boas razões
para estar satisfeitos com estes desenvolvimentos. Em Setembro de 1973 as
Nações Unidas reconheceram e admitiram a Alemanha Ocidental e a de Leste
como Estados soberanos; no espaço de um ano a República Democrática
Alemã foi diplomaticamente reconhecida por oito países, incluindo os EUA.
Num eco irónico das mudanças em Bona, os próprios dirigentes da RDA
deixaram de se referir à «Alemanha» e começaram em vez disso a falar com
crescente confiança na RDA como Estado alemão distinto e legítimo por
direito próprio, com um futuro próprio – com raízes, insistiam agora, não só
nos «bons» Alemães antifascistas mas no solo e herança da Prússia. Enquanto
que a Constituição de 1968 da RDA falava num compromisso de unificação
com base na democracia e no socialismo, a frase está ausente na constituição
revista de 1974, substituída por uma promessa de se manter «para sempre e
irrevogavelmente aliada da URSS».
Havia também motivos mais imediatos e mercenários para o interesse
oficial da RDA na Ostpolitik. Desde 1963 que a RDA «vendia» prisioneiros
políticos a Bona por dinheiro, dependendo a soma do «valor» e qualificações
do candidato. Em 1977, para conseguir a libertação de um prisioneiro dos
calabouços da Alemanha Ocidental, Bona estava a pagar perto de 96 000
Deutschmarks [DM] por cabeça. Entre as realizações diplomáticas da nova
política contava-se a institucionalização das reunificações familiares
transfronteiriças: para isto as autoridades em Pankow cobravam uns 4500
marcos adicionais por cabeça (uma pechincha – em 1983 o ditador romeno
Ceausescu estava a cobrar a Bona 8000 DM por pessoa para autorizar as
pessoas de etnia alemã a abandonar a Roménia). Segundo uma estimativa, a
quantia total extraída a Bona pela RDA em troca da libertação de 34 000
prisioneiros, reunir 2000 crianças com os pais e «ajustar» 250 000 casos de
reunificação de famílias, estava em 1989 perto dos 3 mil milhões de DM(9).
Uma das consequências não desejadas destes desenvolvimentos foi o
desaparecimento virtual da «unificação» da agenda política alemã. É certo
que a reunificação do país dividido continuou a ser a Lebenslüge («mentira da
vida») da República Federal, conforme Brandt a traduziu. Mas em meados
dos anos 80, poucos anos antes de inesperadamente se dar, a reunificação já
não mobilizava a opinião de massas. Os resultados eleitorais nos anos 50 e 60
sugeriam que até 45% da população achava que a unificação era a questão
«mais importante» na ordem do dia; a partir de meados dos anos 70 o número
nunca excedeu 1%.
O terceiro ponto para a nova abordagem de Bona era, evidentemente, a
União Soviética. Das primeiras negociações de Willy Brandt com Brejnev em
1970, passando pela visita de Gorbachev a Bona quase duas décadas depois,
todos os planos alemães ocidentais para a «normalização» do Leste passavam
por Moscovo e toda a gente o sabia. Nas palavras de Helmut Schmidt,
«naturalmente, as relações germano-soviéticas encontravam-se no centro da
Ostpolitik». De facto, uma vez que os Alemães ocidentais e os Russos tinham
concordado com a manutenção das novas fronteiras da Polónia (respeitando
uma prática europeia de há muito, ninguém perguntou aos Polacos a sua
opinião) e Bona tinha consentido em reconhecer as democracias populares, os
Alemães ocidentais e os Russos encontraram muitas razões em comum.
Quando Leonid Brejnev foi a Bona em Maio de 1973, a primeira visita
deste género de um dirigente comunista soviético, ele e Helmut Schmidt até
conseguiram ter calorosas recordações das suas vivências de guerra comuns –
Schmidt a recordar, convenientemente, que «lutara pela Alemanha de dia e
desejara secretamente à noite a derrota de Hitler». Nas suas memórias, Willy
Brandt, que se tinha de facto oposto ao III Reich desde o princípio até ao fim,
observa friamente que «quando se trocam recordações de guerra, o falso e o
genuíno ficam muito próximos». Mas enquanto as reminiscências talvez
fossem ilusórias, os interesses partilhados eram suficientemente reais.
A URSS havia muitos anos que fazia pressão para o reconhecimento
oficial das suas conquistas pós-guerra e das novas fronteiras da Europa, de
preferência numa Conferência de Paz formal. Os aliados ocidentais, em
especial os EUA, havia muito que estavam relutantes em ir para além do
reconhecimento de facto do status quo dependendo da resolução da «questão
alemã» em particular. Mas agora que os próprios Alemães estavam a abrir-se
aos seus vizinhos de Leste, a posição ocidental tinha de mudar; os dirigentes
soviéticos estavam quase a realizar as suas expectativas. Como parte da sua
ambiciosa estratégia de détente com a URSS e a China, o presidente Richard
Nixon e Henry Kissinger, seu conselheiro nacional para a segurança, estavam
mais receptivos do que os seus antecessores a negociações com Moscovo – e
talvez menos perturbados com a natureza do regime soviético: como
Kissinger explicou ao Comité para as Relações Exteriores do Senado a 19 de
Setembro de 1974, a détente internacional não deveria ser obrigada a esperar
pelas reformas internas soviéticas.
Assim, em Dezembro de 1971, os ministros da NATO encontraram-se em
Bruxelas e concordaram em princípio em tomar parte numa Conferência
Europeia para a Segurança. Dentro de um ano estava em andamento uma
sessão preparatória em Helsínquia e, em Julho de 1973, ainda em Helsínquia,
teve início a Conferência oficial para a Segurança e Cooperação na Europa.
Participaram 35 países (incluindo os EUA e o Canadá) – só a Albânia se
recusou a participar. Durante os dois anos que se seguiram os conferencistas
de Helsínquia redigiram convenções, esboçaram acordos, propuseram
medidas «geradoras de confiança» para melhorar as relações
Ocidente/Oriente e muitas coisas mais. Em Agosto de 1975 os Acordos de
Helsínquia foram unanimemente aprovados e assinados.
Apartentemente, a União Soviética era a principal beneficiária dos
acordos. No Acto Final, sob o «Princípio I», foi acordado que os «Estados
participantes respeitarão a igualdade de soberania de cada um e a
individualidade, assim como todos os direitos inerentes a e abrangidos pela
sua soberania, incluindo em particular o direito de cada Estado à equidade
jurídica, à integridade territorial». Além disso, no Princípio VI, os Estados
participantes comprometeram-se a «evitar quaisquer intervenções, directas ou
indirectas, individuais ou colectivas, nos assuntos internos ou externos que
recaíam na jurisdição interna de outro Estado participante, independentemente
das suas relações mútuas».
Brejnev e os seus colegas não podiam ter desejado mais. Não eram só as
divisões políticas da Europa do pós-guerra que eram agora oficial e
publicamente reconhecidos e a soberania e a integridade territorial da RDA e
outros regimes satélites oficialmente aceites; as potências ocidentais tinham
pela primeira vez repudiado «toda a intervenção armada ou a ameaça de uma
tal intervenção contra outro Estado participante». É certo que as hipóteses de
a NATO ou os EUA alguma vez invadirem o Bloco Soviético havia muito que
eram negligenciáveis: na verdade, o único país que se tinha de facto
envolvido numa tal intervenção armada desde 1948 era a própria União
Soviética… por duas vezes.
Mas era um exemplo da insegurança endémica de Moscovo que a estas
cláusulas dos acordos de Helsínquia, juntamente com o Princípio IV
afirmando que «os Estados participantes respeitarão a integridade territorial
de cada um dos Estados participantes», fosse atribuída tanta importância.
Entre os acordos com a Alemanha Ocidental e a confirmação retrospectiva
dos acordos de Helsínquia e a aceitação de Potsdam, a União Soviética tinha
finalmente conseguido os seus objectivos e podia descansar tranquila. Em
troca, como parecia, os participantes ocidentais da Conferência tinham
procurado e obtido pouco mais do que as inquestionáveis cláusulas pro forma:
cooperação social, cultural e económica e trocas, colaboração de boa-fé para
abordar diferendos excepcionais e futuros, etc., etc.
Mas também incluída no chamado «terceiro pacote» de princípios de
Helsínquia estava uma lista dos direitos não só dos Estados, como das pessoas
e povos, agrupados no Princípio VII («Respeito pelos direitos humanos e
liberdades fundamentais, incluindo a liberdade de pensamento, consciência,
religião ou crença») e no VIII («Direitos iguais à autodeterminação dos
povos»). A maior parte dos dirigentes políticos que assinou estas cláusulas
pouca atenção lhes deu – em ambos os lados da Cortina de Ferro era
geralmente admitido que se tratava de fachada diplomática, uma oferta
conciliatória à opinião interna e, de qualquer maneira, não obrigatória:
segundo os Princípios IV e VI os outros Estados não podiam interferir nos
assuntos internos dos Estados signatários. Como referiu um amargurado
intelectual checo na altura, Helsínquia era na prática uma reedição de cuius
regio, elius religior: dentro das suas fronteiras, os governantes estavam
novamente autorizados a tratar os seus cidadãos como quisessem.
Não foi assim que funcionou. A maior parte dos princípios e protocolos de
Helsínquia de 1975 não fez mais do que embelezar os acordos internacionais
existentes. Mas o Princípio VII não comprometia apenas os Estados
signatários a «respeitarem os direitos humanos e liberdades fundamentais,
incluindo a liberdade de pensamento, consciência, religião ou crença, acima
de tudo sem distinção de raça, sexo, língua ou religião». Também impunha a
todos os 35 Estados que «promovessem e encorajassem o exercício efectivo
dos direitos e liberdades civis, políticas, económicas, sociais, culturais e
outros» e que «reconhecessem e respeitassem a liberdade do indivíduo para
professar e praticar, sozinho ou em comunidade com outros, actuações
religiosas ou crenças de acordo com os ditames da sua própria consciência».
Desta palavrosa e, segundo parecia, inócua lista de direitos e obrigações,
nasceu o movimento dos Direitos de Helsínquia. No espaço de um ano após
terem conseguido a sua há muito esperada conferência de acordo
internacional, os dirigentes soviéticos foram confrontados com um crescente
e, em última análise, incontrolável florescimento de círculos, clubes,
organizações, cartas e indivíduos, todos exigindo «meramente» que os seus
governos se ativessem à letra desse mesmo acordo e que – conforme imposto
pelo Acto Final – «cumprissem as suas obrigações conforme exposto nas
declarações internacionais e acordos neste campo». Brejnev tivera razão em
confiar em Henry Kissinger e nos seus teimosos sucessores para levarem a
sério as cláusulas de não intervenção em Helsínquia; mas nunca lhe ocorreu
(nem de facto a Kissinger) que os outros pudessem levar não menos a sério os
parágrafos mais utópicos que se seguiam(10).
A curto prazo, as autoridades soviéticas e as suas colegas na Europa de
Leste puderam certamente suprimir com bastante facilidade quaisquer vozes
que se erguessem em favor de indivíduos ou dos direitos colectivos: em 1977
os dirigentes de um grupo ucraniano, «Direitos de Helsínquia», foram presos
e condenados a penas que iam de três a quinze anos. Mas a própria ênfase que
os dirigentes comunistas tinham colocado em «Helsínquia» como fonte da
legitimidade internacional dos seus regimes viria agora atormentá-los: ao
invocar os compromissos recentes da própria Moscovo, os críticos (em casa e
no estrangeiro) podiam agora exercer pressão pública sobre os regimes
soviéticos. Contra esta espécie de oposição, a repressão violenta não só era
ineficaz como, na medida em que era do conhecimento público,
contraproducente. Apanhado na própria armadilha do seu cinismo, Brejnev e
os seus colegas tinham inadvertidamente aberto uma brecha nas suas próprias
defesas. Contra todas as expectativas, iria revelar-se mortal.
-
(1) Na Inglaterra esta moda podia remontar aos entusiasmos de longa data pelo vegetarianismo, pela
construção «autêntica» e materiais para vestuário e coisas do género – muitas vezes sobrepondo-se a
redes de sociedades socialistas e clubes excursionistas: a resposta da Esquerda à caça, ao tiro e à pesca
dos conservadores. Na Europa continental, as culturas tanto da Esquerda como da Direita reflectiam
uma história muito diferente. Enquanto que a Good Food Guide inglesa foi fundada e publicada por
socialistas fabianos e apresentada desde o início como uma contrbuição para a luta de classes na frente
gastronómica, o Guia Michelin em França foi sempre e unicamente um empreendimento comercial
apesar de dirigido a um público muito semelhante.

(*) Grupos de trabalhadores desordeiros, que em 1811-16 provocaram desordens nas zonas
industriais, assim chamados devido a Ned Ludd (N. T.)

(2) Em 1980 a União Soviética estava a libertar quase tanto dióxido de carbono para a atmosfera
como os Estados Unidos – uma estatística que até muito recentemente teria sido mais uma fonte de
orgulho do que de constrangimento para os seus admiradores.

(3) Dentro de certos limites, os protestos ambientalistas – devido ao seu carácter aparentemente
apolítico – ofereciam um espaço seguro para a acção política e auto-expressão nacional em regimes que
de outro modo eram restritivos. Em 1983, o problema da poluição da água tinha levado uns bons 10%
da população da Lituânia soviética a formarem a «Associação Lituana para a Protecção da Natureza».

(4) O existencialismo de Heidegger neste registo abriu outro elo com o Ocidente: muitos anos antes
o filósofo francês Emmanuel Mounier tinha afirmado ver no existencialismo dos seus contemporâneos
(como Sartre) uma «barreira subjectiva» contra o que denunciava como «materialismo objectivo» e
«tecnologia». Em décadas posteriores, os herdeiros intelectuais de Mounier no círculo de escritores no
jornal Esprit estariam entre os primeiros na Europa Ocidental a publicar e glorificar Havel e os seus
companheiros dissidentes.

(5) Durante os mesmos anos, Moscovo fundou mesmo o minúsculo Partido Comunista Americano
com um subsídio de 42 milhões de dólares, um exercício revelador de generosidade não discriminativa.

(6) A 13 de Abril de 1976, apenas nove semanas antes das eleições italianas, Kissinger declarou
publicamente que os Estados Unidos não «acolheriam de bom grado» uma presença comunista no
governo da Itália – confirmando assim as intuições de Berlinguer.

(7) Uma das primeiras decisões de Brandt ao assumir o cargo em 1969 foi mudar o nome do
«Ministério para Todas as Questões Alemãs» para o de «Ministério para as Relações Inter-Alemãs»:
para acalmar os receios da Alemanha de Leste de que a República Federal continuasse a defender o seu
direito legal de falar em nome de todos os Alemães e para indicar a sua disponibilidade para tratar com
a RDA como entidade distinta e permanente.

(8) Esta ficção legal e as questões emocionais que a rodeavam foram a causa da relutância inicial do
Partido Democrata-Cristão em assinar o Tratado Básico de 1973 que estabelecia as relações com a
Alemanha de Leste – e da insistência sistemática em manter aberto o tema das fronteiras de leste, até
1990.

(9) Logo desde o início da Ostpolitik foi concedida especial atenção e privilégios aos Volksdeutsche,
Alemães ainda a viver para lá das fronteiras da Alemanha, a leste ou a sul. Definidas pela família ou
origem étnica, a estas pessoas era concedida total cidadania se conseguissem chegar à República
Federal. Centenas de milhares de residentes na Ucrânia, Rússia, Roménia, Hungria e noutros lados
redescobriram subitamente antecedentes alemães que durante o meio século anterior se haviam
esforçado por negar.

(10) O primeiro Grupo de Helsínquia foi fundado a 12 de Maio de 1976, em Moscovo. Os seus onze
membros iniciais incluíam Yuri Orlov, Yelena Bonner e Anatoly Sharansky. A Helsinki Watch, a
organização internacional criada especialmente para publicitar as violações dos direitos nos Estados
signatários de Helsínquia, nasceu dois anos depois.
XVI

Uma Época de Transição


«Em retrospectiva, o nosso único erro foi ter permitido que as eleições se
realizassem. A nossa queda começa aí.»
Brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho
«A Espanha é o problema, a Europa a solução.»
Ortega y Gasset
«A Europa não é só sobre resultados materiais, é sobre o espírito. A Europa é
um estado de espírito.»
Jacques Delors
No Norte da Europa, as mudanças internas e internacionais foram levadas
a cabo contra o sempre presente pano de fundo destas transacções de Grande
Potência e da divisão Leste/Ocidente do continente. Mas na Europa
mediterrânica dominavam as preocupações locais. Até ao início dos anos 70,
a Espanha, Portugal e a Grécia eram periféricos da Europa em mais do que no
sentido geográfico. Apesar de serem «ocidentais» nas suas alianças na Guerra
Fria (Portugal e a Grécia eram membros da NATO), os três países
mantinham-se à parte noutros aspectos. As suas economias – extremamente
dependentes das remessas de uma mão-de-obra rural excedente a trabalhar no
estrangeiro e de um crescente comércio turístico – assemelhavam-se às de
outros países do perímetro sul da Europa: Jugoslávia ou Turquia. O nível de
vida no Sul da Espanha e na maior parte de Portugal e da Grécia era
comparável ao da Europa de Leste e de zonas do mundo em desenvolvimento.
No início dos anos 70 os três países eram governados por líderes
autoritários de um tipo mais familiar na América Latina do que na Europa
Ocidental; as transformações políticas das décadas a seguir à guerra pareciam
em grande medida ter-lhes passado ao lado. Em Portugal – governado por
Salazar de 1932 a 1970 – e Espanha, onde o general Franco efectuara o seu
golpe militar em 1936 e governou sem contestação de 1939 até à sua morte
em 1975, as hierarquias de autoridade de uma outra era encontravam-se
empedernidas. Na Grécia, uma cabala militar tinha deposto o rei e o
parlamento em 1967; a partir daí, o país fora governado por uma junta de
coronéis. O espectro do seu passado instável pairava opressivamente sobre as
pouco prometedoras perspectivas de futuro dos três países.
A história recente da Grécia, como a de Espanha, estava fortemente
ensombrada pela guerra civil. Durante os dois anos após a Segunda Guerra
Mundial, o comunista KKE aterrorizou as aldeias sob seu controlo, deixando
um legado de medo e associando em muitas memórias gregas a Esquerda
radical a repressão e a atrocidades. Depois de os comunistas terem
abandonado a luta, em Outubro de 1949, foi a vez da Esquerda sofrer uma
repressão constante. Guerrilheiros do tempo da guerra (incluindo muitos que
tinham lutado contra os Alemães em anos anteriores) foram obrigados a
exilar-se no estrangeiro durante as décadas seguintes. Aos que ficaram,
juntamente com os filhos e até com os netos, era-lhes proibido o emprego no
funcionalismo público, até meados dos anos 70. Na famosa cadeia de
Makronisos, os comunistas eram detidos por longos períodos e tratados com
notória brutalidade(1).
Mas as divisões políticas da Grécia, por muito ordenadamente que
parecessem encaixar-se nas categorias da Guerra Fria, foram sempre
dominadas por preocupações locais. Em Março de 1949, no auge da luta entre
Tito e Estaline, o servil KKE pró-Moscovo emitiu uma declaração na rádio (a
partir de Bucareste) fazendo exigências para uma Macedónia independente.
Ao encorajarem a fragmentação territorial da Jugoslávia, tencionavam
enfraquecer Tito, mas isto não produziu esse efeito. Em vez disso, prejudicou
durante uma geração a credibilidade interna do comunismo grego, por sugerir
que uma vitória comunista resultaria na autonomia do Norte macedónio, com
as suas minorias eslavas e albanesas e consequentemente na desintegração do
Estado grego.
Se isto era tão importante era por o nacionalismo grego ser peculiarmente
inseguro, mesmo por padrões regionais. Permanentemente no qui vive para
entrar em conflito com os seus anteriores senhores imperiais na Turquia, em
estado de guerra com a Albânia desde 1940 (um situação irremediável até
1985) e relutante em admitir até o facto de uma vasta comunidade eslava que
confinasse as suas fronteiras com a Jugoslávia e a Bulgária, os políticos
conservadores do pós-guerra da Grécia optaram enfaticamente pela ordem e
estabilidade de preferência à democracia ou à reconciliação depois da guerra.
Combinando antigas preocupações gregas com novas divisões internacionais,
o rei grego, o seu exército e os ministros apresentaram-se ao Ocidente como
sendo os aliados mais fiáveis numa região instável.
Foram bem compensados pela sua lealdade(2). Em Fevereiro de 1947, o
Tratado de Paris obrigou a Itália a ceder as ilhas do Dodecaneso a Atenas. A
Grécia foi um importante beneficiário da ajuda americana, tanto proclamando
seguir a «Doutrina de Truman» como sob o Plano Marshall. O país foi
admitido na NATO em 1952 e as forças armadas gregas receberam uma
copiosa ajuda prática em planeamento e material. De facto, o papel do
Exército iria revelar-se crucial. Os Ingleses tinham originalmente esperado
legar à Grécia libertada um Exército digno apolítico e uma força policial
moderna; mas dadas as circunstâncias de tempo e lugar, isto revelou-se
impossível. Em vez disso, o Exército grego emergiu de oito anos de guerra
tão firmemente anticomunista, realista e antidemocrático, com a sua aliança à
NATO e aos seus colegas americanos consideravelmente mais firme do que
qualquer compromisso com as instituições políticas ou leis do seu próprio
Estado.
De facto – e a este respeito muito como o corpo de oficiais espanhol
tradicional – os oficiais gregos consideravam-se a si mesmos os guardas da
Nação e da sua integridade, mais do que dos efémeros documentos
constitucionais que tinham jurado defender. Desde o início que o Exército
estava activo na vida política grega do pós-guerra: nas eleições nacionais do
início dos anos 50, um vitorioso Partido da Recuperação Grego era dirigido
pelo marechal Alexandros Papagos, comandante das forças governamentais
na Guerra Civil. Até 1963, os militares sentiam-se suficientemente felizes por
darem o seu apoio a Constantine Karamanlis, que levou o rebaptizado Partido
da Recuperação (agora União Nacional Radical) às vitórias eleitorais em
1956, 1958 e novamente em 1961 – embora tenha sido suspeito, após o último
e maior destes êxitos, de fraude eleitoral generalizada.
Karamanlis não era ideologicamente anticomunista nem estava
especialmente próximo das forças armadas. Mas não é irrelevante ter nascido
na Macedónia grega e ser profundamente antieslavo. De origem camponesa e
fé ortodoxa, era instintivamente provinciano, nacionalista e conservador – um
representante apropriado do seu país e de uma segura utilidade tanto aos olhos
dos diplomatas americanos como dos oficiais gregos, não revelando qualquer
desejo de obrigar os militares a controlo por civis ou de investigar de muito
perto os crescentes rumores de organizações políticas antiparlamentares e de
conspirações em altos cargos. Sob Karamanlis, a Grécia manteve-se estável,
mesmo que economicamente estagnada e mais do que um pouco corrupta.
Mas em Maio de 1963 um parlamentar da ala esquerda, o Dr. Grigoris
Lambrakis, foi baleado em Tessalonica enquanto discursava num comício
pela paz. A sua morte cinco dias depois criou um mártir político para a
Esquerda e para o nascente movimento para a paz na Grécia, enquanto que o
insucesso calculado por parte das autoridades na investigação das razões
nebulosas do assassinato de Lambrakis» deu origem a uma suspeita
generalizada(3). Seis meses depois Karamanlis perdeu por margem mínima as
eleições para a União do Centro, de George Papandreou, um partido centrista
apoiado pela crescente classe média urbana do país. No ano seguinte, numa
nova ronda de eleições, o partido de Papandreou e os seus aliados fizeram
ainda melhor, obtendo uma maioria absoluta e aumentando a sua percentagem
de 42% para 52,7%.
A nova maioria parlamentar exigiu uma investigação à falsificação dos
resultados das eleições de 1961 e as tensões começaram a crescer entre os
parlamentares e o jovem rei Constantino. As simpatias políticas
conservadoras do rei eram do conhecimento público e ele estava sob crescente
pressão da Direita para demitir Papandreou, que foi finalmente convencido a
demitir-se. Sucedeu-lhe uma série de primeiros-ministros interinos, nenhum
dos quais conseguiu formar uma maioria parlamentar estável. As relações
entre o parlamento e a corte ficaram ainda mais tensas quando um grupo de
oficiais do Exército de tendências liberais foi acusado de conspirar com o
filho de George Papandreou, Andreas. Em Março de 1967, 21 deles foram
julgados em tribunal militar.
Nesta altura, o governo parlamentar na Grécia só existia nominalmente. Os
conservadores e os oficiais do Exército avisaram sombriamente sobre a
crescente influência «comunista» na generalidade do país. O rei não queria
trabalhar com a maioria União do Centro, que acusava de depender dos votos
da Esquerda, enquanto a oposição União Nacional Radical se recusava a
apoiar os sucessivos esforços para instalar governos provisórios. Finalmente,
em Abril de 1967, a própria União Nacional Radical formou um governo
minoritário por tempo suficiente para o rei dissolver o Parlamento e convocar
novas eleições.
A frustração popular com o impasse parlamentar e o sentimento
generalizado de que o rei tivera um inaceitável papel partidário sugeriam que
as futuras eleições produziriam uma maior viragem à Esquerda. Dando apenas
esta desculpa – a «ameaça comunista» insistentemente invocada na Grécia
desde 1949 – e apontando para as indubitáveis incompetências das
instituições democráticas gregas e a incompetência da sua classe política, um
grupo de oficiais no seio das organizações de direita do Exército há muito
estabelecidas tomou o poder a 21 de Abril.
Chefiados pelo coronel George Papadopoulos, enviaram tanques e pára-
quedistas para as ruas de Atenas e outras cidades gregas, prenderam políticos,
jornalistas, sindicalistas e outras figuras públicas, tomaram o controlo de
todos os pontos habitualmente cruciais e declararam-se os salvadores da
nação: a «democracia», como explicaram, seria «colocada numa fisga». O rei
Constantino, passivamente, mesmo que sem entusiasmo, sancionou e deu
posse aos conspiradores. Oito meses depois, após uma pouco convicta
tentativa de «contragolpe», Constantino e a família voaram para Roma, sem
serem lamentados. A junta nomeou um regente e Papadopoulos foi nomeado
primeiro-ministro.
O golpe de Estado dos coronéis foi um pronunciamento clássico.
Inicialmente violento e sempre repressivo, Papadopoulos e os seus colegas
despediram quase 1000 funcionários públicos, prenderem ou expulsaram
políticos da esquerda e do centro e viraram a Grécia para dentro de si mesma
durante sete sufocantes anos. Antimodernos ao ponto do ridículo, os coronéis
censuraram a imprensa, ilegalizaram as greves e proibiram a música moderna
juntamente com as mini-saias. Também proibiram o estudo da sociologia, do
russo e do búlgaro, para além de Sófocles, Eurípides e Aristófanes.
«Populistas» no estilo mas paternalistas na prática, estavam obcecados com a
aparência. Sob o regime dos coronéis o cabelo comprido era proibido. Os
uniformes dos guardas do palácio e outros oficiais dos cerimoniais foram
substituídos pelo aparatoso traje «tradicional» grego. Atenas sobretudo
adquiriu um ar composto e marcial.
As consequências económicas do golpe grego foram mistas. O turismo não
sofreu – os viajantes politicamente conscientes que boicotaram a Grécia dos
coronéis foram facilmente substituídos por turistas atraídos por estâncias
balneares baratas ainda que asfixiantemente sobrerregulamentadas. O
investimento estrangeiro, que no caso da Grécia só começara mais ou menos
uma década antes do golpe, e o aumento regular do PIB – crescendo a uma
média anual de 6% desde 1964 – não foram afectados pelos desenvolvimentos
políticos: como em Espanha, onde os salários baixos (com a cumplicidade da
repressão de todo e qualquer protesto laboral) e um regime baseado na «lei e
ordem», proporcionavam um ambiente benevolente para o capital estrangeiro.
A junta até tivera um amplo apoio inicial nas zonas rurais de onde os coronéis
na sua maioria provinham, especialmente depois de terem cancelado toda a
dívida rural em 1968(4).
Mas o instinto autárcico dos coronéis favoreceu um regresso aos hábitos
nacionais de longa data de substituição da importação – fabricantes
ineficientes produzindo produtos de baixa qualidade e protegidos contra a
concorrência estrangeira. Isto viria a fazer com que o regime militar entrasse
em conflito com a classe média urbana do país, cujos interesses, como
consumidores e produtores, iriam dentro de alguns anos levar a melhor sobre
o seu alívio pela exoneração dos políticos conflituosos. E os coronéis,
medíocres mesmo pelos pouco exigentes padrões dos seus pares, não tinham
nada a oferecer para o futuro: nenhum projecto para a integração grega na
Comunidade Europeia emergente e em expansão, nenhuma estratégia para o
regresso a um regime civil(5).
-
(1) A prática dos guardas prisionais de Makronisos de obrigarem os comunistas a arrepender-se e
depois virar-se para os que recusavam era muito semelhante às técnicas dos comunistas romenos na
prisão de Pitesti nos mesmos anos, embora um pouco menos cruéis. Ver capítulo 6.

(2) Ao princípio, como em qualquer local da Europa, os EUA esperavam encontrar amigos e aliados
no centro-esquerda do espectro político grego. Porém, em breve se desenganaram e voltaram-se para
uma amizade próxima e duradoura com os nacionalistas e a Direita militar.

(3) E ao influente filme de Costas Gravas de 1969, Z, baseado no caso Lambrakis.

(4) Os oficiais, a maior parte deles formada em escolas militares para cadetes durante a ditadura de
antes da guerra de Ioannis Metaxas, talvez não fossem tão impopulares como afirmavam os seus críticos
estrangeiros. Mas pressupunha-se – com razão – que tinham a simpatia (e talvez mais) dos Estados
Unidos. O que era na sua essência uma extensão tardia da guerra civil grega dos anos 40, acabou em vez
disso por ser visto como a mais recente cause célèbre da centenária guerra civil na Europa. A «Grécia»
agora substituía a «Espanha» como varinha de condão para o sentimento político dividido.

(5) Desde 1962 que a Grécia tinha o estatuto de «Associado» na Comunidade Económica Europeia.
Além disso o regime, suficientemente seguro internamente, estava cada
vez mais isolado no estrangeiro – em Dezembro de 1969, o Conselho da
Europa votou unanimemente a expulsão da Grécia; dois meses depois a CEE
interrompeu todas as negociações com a junta. Mais descaradamente do que
muitos, o regime mantinha-se apenas pela força. Foi, pois, inteiramente
apropriado que a ditadura caísse no decorrer de uma tentativa incompetente
para usar a força para além das suas fronteiras, para resolver o muito antigo
problema de Chipre.
A ilha de Chipre, parte do Império Otomano desde 1571, era administrada
pela Inglaterra desde 1878 e fora unilateralmente anexada aquando deflagrou
a Primeira Guerra Mundial. No extremo oriental do Mediterrâneo, perto da
Anatólia turca e afastada da Grécia continental ou de quaisquer outras ilhas
gregas, Chipre tinha apesar disso uma maioria de língua grega, ortodoxa
oriental, cada vez mais disposta a procurar a união com o Estado grego. A
minoria turca, uns 18% da população da ilha, era compreensivelmente
contrária a tais disposições e era apoiada de forma veemente pelas autoridades
de Ancara. O destino de Chipre – apanhada entre os esforços ingleses para se
libertarem de uma incómoda herança imperial e a muito antiga hostilidade
grego-turca – manteve-se perturbadoramente não resolvido durante os anos
50.
Recusado o seu projecto de Enosis – união com a Grécia – a maioria da
chefia greco-cipriota da ilha decidiu-se um tanto relutantemente pela
independência que o Reino Unido lhe concedeu em 1960, mantendo apenas
alguns direitos de trânsito e uma base aérea de importância estratégica. A
nova República de Chipre, com a sua soberania e constituição garantidas pela
Inglaterra, Turquia e Grécia, era governada por uma «parceria» greco-turca
dominada pela presidência do arcebispo Makarios, outrora exilado por
Londres como terrorista armado e violento, e agora o respeitado porta-voz das
ambições «razoáveis» greco-cipriotas.
Entretanto as comunidades grega e turca da ilha viviam lado a lado numa
inquietude desconfiada, interrompida por esporádicos surtos de violência
intercomunitária. Os governos em Atenas e Ancara publicitavam-se ambos
como protectores dos seus respectivos compatriotas e ocasionalmente
ameaçavam intervir. Mas a prudência e a pressão internacional evitavam que
o fizessem, mesmo quando os ataques aos cipriotas turcos em 1963 levaram
ao envio de uma Força de Manutenção da Paz da ONU no ano seguinte.
Apesar do quase monopólio dos cipriotas gregos do emprego público e dos
cargos de autoridade (vagamente comparável à exclusão dos católicos pela
maioria protestante dos privilégios e do poder no Ulster) – ou talvez por isso
– a situação em Chipre parecia estável. Mas se Chipre já não era uma crise,
manteve-se ainda assim uma «questão».
Assim, em 1973, quando os estudantes em Atenas (primeiro na Faculdade
de Direito, depois no Politécnico) embaraçaram os coronéis opondo-se
publicamente ao seu governo pela primeira vez, a resposta dos militares foi
desviar a atenção e procurar reforçar o apoio público voltando a defender a
pretensão grega em Chipre. O general Ioannidis, um elemento da «linha dura»
que retirou Papadopoulos de chefe da junta a seguir às manifestações do
Politécnico, conspirou com George Grivas e outros nacionalistas gregos
cipriotas para demitir Makarios e «voltar a unir» a ilha à Grécia. A 15 de
Julho de 1974, unidades da Guarda Nacional Cipriota, juntamente com
oficiais gregos seleccionados, atacaram o Palácio Presidencial, expulsaram
Makarios (que fugiu para o estrangeiro) e instalaram um governo fantoche,
antecipando-se ao governo directo de Atenas.
Neste momento, porém, o governo turco anunciou a sua própria intenção
de invadir Chipre para proteger os interesses da comunidade cipriota turca e
prontamente assim fez, a 20 de Julho. No espaço de uma semana, dois quintos
da ilha estavam em mãos turcas. Incapaz quer de evitar, quer de responder a
esta acção das forças turcas amplamente superiores, a junta parecia impotente:
ordenando a mobilização geral num dia, cancelando-a no outro. Confrontada
com a ira pública generalizada perante esta humilhação nacional, os ditadores
gregos voltaram-se para o envelhecido Karamanlis e convidaram-no a
regressar do exílio em Paris. A 24 de Julho o anterior primeiro-ministro
regressava a Atenas e dava início ao retorno do país à governação civil.
A transição foi realizada com facilidade notável. O partido da Nova
Democracia de Karamanlis ganhou as eleições de Novembro de 1974 e
repetiu o êxito três anos depois. Em Junho de 1975 foi aprovada uma nova
Constituição, embora os partidos da oposição tenham inicialmente protestado
contra os acrescidos poderes concedidos ao Presidente da República (um
cargo ocupado pelo próprio Karamanlis desde 1980). Com inesperada alegria,
a política interna grega assumiu um perfil europeu familiar, aproximadamente
dividida em partes iguais num centro-direita (Nova Democracia) e um centro-
esquerda (O Movimento Socialista Panhelénico dirigido pelo filho educado na
América do falecido George Papandreou, Andreas).
A suavidade do regresso da Grécia à democracia deveu-se em parte à
perícia de Karamanlis em cortar com o seu próprio passado enquanto ao
mesmo tempo transmitia uma imagem de amadurecida competência e
continuidade. Em vez de recuperar a sua desacreditada União do Centro, tinha
formado um novo partido. Em Dezembro de 1974 convocou um referendo
sobre a desacreditada monarquia e quando 69,2% dos votantes exigiram a sua
abolição dirigiu a instituição de uma república. Para não alienar os militares
resistiu a apelos para fazer saneamentos no Exército, preferindo em vez disso
impor a reserva antecipada aos oficiais mais comprometidos ao mesmo tempo
que recompensava e promovia os leais(6).
Com a monarquia afastada e o Exército neutralizado, Karamanlis tinha de
tratar do assunto inacabado de Chipre. Nem ele nem nenhum dos seus
sucessores tencionava reabrir a questão Enosis mas também não podiam
ignorar publicamente a presença turca na ilha, mesmo depois do regresso de
Makarios em Dezembro de 1974. Num acto em grande parte simbólico que
atraiu aprovação interna generalizada, tanto na Esquerda como na Direita,
Karamanlis retirou a Grécia da NATO durante os seis anos seguintes, em
protesto contra o comportamento de um membro da organização. As relações
greco-turcas entraram numa época de gelo marcada pela proclamação
unilateral da minoria turca em Fevereiro de 1975 de um «Estado Federado
Turco de Chipre» – sempre só reconhecido pela própria Turquia – e por
esporádicos arrufos diplomáticos sobre reivindicações territoriais no Egeu
oriental.
A própria Chipre tornou-se assim um objecto de preocupação
internacional, e os diplomatas e juristas da ONU iriam passar décadas
infrutíferas a tentar, sem êxito, resolver as divisões da ilha. Entretanto, os
políticos gregos ficaram por isso aliviados da responsabilidade pelos assuntos
da ilha (embora se tenham mantido constrangidos pela política interna a
expressar um interesse continuado pelo seu destino) e podiam voltar-se para
horizontes mais prometedores. Menos de um ano depois da queda dos
coronéis, em Junho de 1975, o governo em Atenas candidatou-se
formalmente à CEE. A 1 de Janeiro de 1981, naquilo que muitos em Bruxelas
viriam a considerar um triunfo lamentável da esperança sobre a sensatez, a
Grécia tornou-se membro efectivo da Comunidade.
Ao contrário da Grécia, Portugal não possuía qualquer experiência recente
do mais pequeno vestígio de democracia. O reinado autoritário de Salazar
tinha sido peculiar e autoconscientemente retrógrado, mesmo pelos padrões
predominantes quando tomou o poder em 1932 – de facto, na sua mistura de
clericalismo censório, instituições corporativas e subdesenvolvimento rural,
Portugal assemelhava-se muito à Áustria após 1934. Muito apropriadamente,
o Portugal do pós-guerra foi preferido por Franceses reformados, nostálgicos
da França de Vichy – Charles Maurras, desacreditado dirigente da Action
Française, era muito admirado por Salazar e correspondeu-se com ele até
morrer em 1952(7).
O nível de vida geral no Portugal de Salazar era mais característico da
África contemporânea do que da Europa continental: o rendimento anual per
capita em 1960 era só de 160 dólares (em comparação com os 219 na Turquia
ou 1453 nos EUA) Os ricos eram de facto muito ricos, a mortalidade infantil
era a mais elevada da Europa e 32% da população era analfabeta. Salazar, um
economista que durante uns anos leccionara na Universidade de Coimbra, não
só se mantinha imperturbável perante o atraso de Portugal como o encarava
como a chave da estabilidade – ao ser informado de que se descobrira
petróleo nos territórios angolanos de Portugal, comentou simplesmente que
«era uma pena».
Tal como o ditador romeno Ceausescu, Salazar estava obcecado em evitar
o défice e equilibrava conscienciosamente todos os orçamentos anuais.
Fanaticamente mercantilista, reuniu reservas de ouro invulgarmente elevadas
que tinha o cuidado de não gastar fosse em investimentos ou em importações.
Como resultado, o seu país estava enredado em pobreza, com a maior parte da
população a trabalhar em pequenas propriedades familiares no Norte do país e
nos latifundia mais a sul. Sem capital local disponível para financiar a
indústria interna e sendo os investidores estrangeiros visivelmente
indesejados, Portugal estava muito dependente da exportação ou reexportação
de matérias-primas primárias, incluindo o seu próprio povo.
Até à sua morte em 1970, era um orgulho de Salazar não só ter mantido
Portugal fora das devastadoras guerras estrangeiras do século, como ter
conseguido fazer o seu país navegar entre a cila do mercado capitalista rapace
e a caríbdis do socialismo de Estado. Na verdade, tinha submetido o seu povo
com enorme êxito ao pior das duas coisas: a desigualdade material e a
exploração com fins lucrativos eram mais acentuadas em Portugal do que nos
outros países da Europa, enquanto o Estado autoritário em Lisboa abafava
toda as opiniões e iniciativas independentes. Em 1969, só 18% da população
adulta estava apta para votar.
Na falta de oposição interna, a única resistência a Salazar veio dos
militares, a única instituição independente do país. As forças armadas
portuguesas eram mal pagas – em vez de gastar os escassos recursos em
salários, Salazar incentivava activamente os empobrecidos oficiais a casarem
na burguesia mais endinheirada. Mas até 1961 o regime pelo menos podia
contar com a sua lealdade passiva, apesar de duas tentativas de golpe militar
abortadas e facilmente reprimidas, em 1947 e novamente em 1958. Os oficiais
subalternos do Exército ou da Armada, de espírito liberal, podiam irritar-se
com o marasmo à sua volta, mas faltavam-lhes aliados ou uma base popular.
Tudo isto mudou em 1961 quando Deli [a União Indiana] anexou à força o
território indiano de Goa e a revolta armada eclodiu na colónia africana de
Angola. A perda de Goa foi uma humilhação nacional, mas a rebelião em
África foi mais grave ainda. As grandes «províncias» africanas de Portugal,
como eram conhecidas, incluíam Angola, Guiné-Bissau e as Ilhas de Cabo
Verde na África Ocidental, e Moçambique no Sudeste africano. Destas,
Angola com quase meio milhão de residentes europeus numa população total
inferior a seis milhões, era de longe a mais importante. A sua riqueza material
inexplorada – ferro, diamantes e o recentemente descoberto petróleo na sua
costa – tinham levado Salazar a permitir relutantemente o investimento
estrangeiro (nomeadamente pela companhia dos EUA Gulf Oil) e no decorrer
dos anos 60 o território foi adquirindo crescente significado económico para
Portugal.
Foi também uma revolta aberta. Para esmagar o crescente movimento
nacionalista angolano, Lisboa inaugurou em 1967 uma estratégia de «contra-
sublevação» baseada na reinstalação da população em grandes aldeias mais
fáceis de controlar: em 1974 tinham sido deslocado mais de um milhão de
camponeses. O plano não conseguiu quebrar a revolta, embora tenha tido
efeitos destrutivos e duradouros na sociedade de Angola e na economia rural.
Porém, de facto alienou cada vez mais os soldados que eram chamados para o
impor: tantos os oficiais empobrecidos que se tinham junto ao exército
colonial como forma de facilitar a ascensão social como os relutantes recrutas
enviados para fora para reprimir os rebeldes.
Em Angola os rebeldes estavam divididos em diferentes facções e o
Exército português foi capaz de os conter, pelo menos durante algum tempo.
Em Moçambique, onde havia 60 000 soldados portugueses para proteger uma
população de apenas 100 000 colonos europeus, ou na Guiné e Cabo Verde,
onde o carismático Amílcar Cabral obrigava à permanência de 30 000
soldados portugueses numa guerrilha contra 10 000 revoltosos, a situação
começava a ser insustentável. No início dos anos 70, as guerras africanas
estavam a consumir metade do orçamento anual do país mais pobre da
Europa. Um em cada quatro homens portugueses em idade militar estava a ser
recrutado para servir em África – e depois de 1967, por um tempo mínimo
obrigatório de quatro anos. Em 1973, 11 000 deles tinham ali morrido: uma
taxa de mortalidade consideravelmente mais elevada, em percentagem da
população nacional, do que a sofrida pelo Exército dos Estados Unidos no
auge da Guerra do Vietname.
A defesa de Portugal das suas possessões coloniais era cara, sangrenta e
cada vez mais desesperada; as forças armadas sabiam-no melhor do que
ninguém. E tinham outras razões para se sentirem frustradas. Para manter o
seu próprio poder e para distrair o país das suas dívidas ultramarinas,
Marcello Caetano – o sucessor ungido de Salazar – tinha abrandado as
restrições ao crédito, pediu grandes empréstimos ao estrangeiro e incentivou o
fluxo de importações. Nos anos 1970-73, intensificado pelas remessas dos
emigrantes, o país passou por um breve boom consumista. Mas seguiu-se
rapidamente uma inflação crescente provocada pela crise petrolífera. Os
salários no sector público começaram a ficar muito aquém dos preços.
Pela primeira vez em muitos anos, Portugal teve greves. Os habitantes dos
bairros de lata à volta da capital, muitos deles chegados recentemente da
empobrecida região do Alentejo, sofriam não só da sua indigência endémica
como com a visão de uma nova e exibicionista riqueza na vizinha Lisboa.
Cada vez mais o Exército se sentia mal por ter de travar as «guerras sujas» do
país em terras longínquas em benefício de um governo impopular dirigido por
tecnocratas não eleitos, e o seu descontentamento estava agora a encontrar um
eco generalizado no país. Os motivos de queixa dos oficiais subalternos e das
suas famílias, incapazes de subsistir com salários já de si baixos e ainda mais
reduzidos pela inflação, eram agora partilhados por uma crescente geração de
empresários frustrados com a incompetência dos seus governantes e que
percebiam que o seu futuro estava na Europa e não em África(8).
A 25 de Abril de 1974, oficiais e soldados do Movimento das Forças
Armadas (MFA) desalojaram de funções Caetano e os seus colegas e
declararam um governo provisório cujos objectivos iriam ser a
democratização, a descolonização e as reformas económicas. O golpe (como
o pronunciamento dos oficiais subalternos que tinha colocado Salazar no
poder em 1926) não levantou grande resistência e os dirigentes do antigo
regime foram autorizados a partir para o exílio – primeiro para a Madeira, daí
para o Brasil. O general António de Spínola, anterior Chefe do Estado-Maior
das Forças Armadas e governador da Guiné de 1968 a 1972, foi nomeado
pelos oficiais para encabeçar a junta. A polícia secreta foi abolida, todos os
prisioneiros políticos foram libertados, repôs-se a liberdade de imprensa e os
dirigentes dos partidos socialista e comunista de Portugal regressaram do
exílio, sendo as suas organizações legalmente autorizadas pela primeira vez
em quase meio século.
A revolução foi imensamente popular em todo o lado(9). Spínola levou
centristas e socialistas para o seu governo provisório e em Julho anunciou
publicamente planos para entregar as colónias africanas à autodeterminação.
No espaço de um ano todas as colónias eram independentes – e a Indonésia
tinha-se apoderado de Timor-Leste. A descolonização foi mais do que algo
caótica – as guerrilhas na Guiné e em Moçambique ignoraram a insistência de
Spínola para deporem armas e Angola degenerou em guerra civil – mas vista
de Portugal teve a virtude de ser rápida. Também precipitou, após a retirada
do Exército e dos violentos confrontos na capital angolana, Luanda, o
regresso a Portugal de uns 750 000 europeus. Muitos deles instalaram-se no
Norte de Portugal, mais conservador, e iriam representar um papel político
significativo nos anos seguintes.
Estas mudanças rápidas perturbaram Spínola, cujos instintos
conservadores estavam em desacordo com os projectos cada vez mais radicais
dos colegas mais novos, e em Setembro de 1974 demitiu-se. Durante os
catorze meses seguintes Portugal pareceu estar a avançar para uma revolução
social em grande escala. Com o apoio entusiástico do MFA e do Partido
Comunista de Álvaro Cunhal, inflexivelmente leninista, os bancos e as
principais indústrias foram nacionalizados e foi empreendida uma enorme
reforma agrária: especialmente no Alentejo, a região produtora de cereais do
Sul de Portugal onde a maior parte das herdades se encontrava ainda nas mãos
de grandes e muitas vezes ausentes proprietários.
As nacionalizações foram populares nas cidades e a reforma agrária no Sul
– essencialmente colectivização da terra – foi inicialmente conduzida por
ocupações «espontâneas» e apropriação de terras por rendeiros locais e
trabalhadores mobilizados pelos comunistas e pelos seus aliados,
beneficiando particularmente os comunistas da sua bem merecida reputação
de ser a oposição clandestina mais bem organizada e mais eficaz ao antigo
regime. Mas as mesmas práticas no centro e no Norte do país, onde a terra já
estava subdividida em milhares de pequenas quintas familiares, foram mal
recebidas. As cidades pequenas e rurais no Norte de Portugal eram (e ainda
são) activamente católicas, com uma média de um padre para cada 500 almas
em 1972; o número para o centro-sul era de 1:4500 e ainda mais baixo no sul.
Os projectos anticlericais e colectivistas dos sindicalistas comunistas e dos
dirigentes camponeses depararam assim com forte e veemente oposição nas
populosas regiões do Norte.
No fundo, os revolucionários portugueses de 1974 estavam a repetir o erro
dos agrários radicais da República espanhola dos anos 30: ao procurar impor
uma reforma rural colectivista baseada nas condições sociais do Sul sobre as
pequenas herdades privadas mais eficientes do Norte, voltaram estas últimas
contra si. Nas eleições para a Assembleia Constituinte de Abril de 1975, os
comunistas obtiveram só 12,5% da votação. Os partidos do centro-direita
portaram-se melhor, mas o grande vencedor foi o Partido Socialista fundado
no exílio dois anos antes por Mário Soares, que fez uma campanha muito
eficaz sob o lema «Socialismo sim, Ditadura não!» e obteve 38% dos votos.
O MFA e os comunistas ficaram descontentes com o resultado da votação
e Cunhal reconheceu publicamente que se o caminho parlamentar para o
poder estivesse bloqueado, ter-se-ia de seguir um caminho alternativo – como
disse a uma jornalista italiana em Junho de 1975: «Não é possível uma
democracia como a que têm na Europa Ocidental… Portugal não será um país
com liberdades democráticas e monopólios. Não o permitirá.» De Abril a
Novembro as tensões cresceram. Comentadores estrangeiros avisaram de um
iminente golpe comunista e os aliados de Portugal da NATO e os parceiros
comerciais da Europa Ocidental fizeram promessas de ajuda e associação se
Portugal repudiasse a revolução marxista.
As coisas atingiram o auge no fim do ano. A 8 de Novembro a Assembleia
Constituinte em Lisboa foi cercada por operários da construção civil e durante
duas semanas ouviram-se rumores de uma iminente «Comuna de Lisboa» e
até de guerra civil entre o Norte e o Sul. A 25 de Novembro, grupos de
soldados radicais tentaram um putsch. Ao princípio tinham o apoio tácito do
PCP, mas quando se tornou evidente que o grosso das forças armadas e até
alguns dos próprios oficiais da ala esquerda se opunham à sublevação, até
Cunhal recuou. Conforme alguns dos dirigentes do MFA mais tarde
reconheceriam, o resultado das eleições de Abril de 1975 tinha desacreditado
antecipadamente os objectivos dos oficiais revolucionários: a Esquerda podia
ter uma democracia parlamentar ou uma «transição» revolucionária, mas não
as duas coisas.
Em Fevereiro de 1976, os militares portugueses, que ainda controlavam de
facto o país quase dois anos após o seu golpe, entregaram oficialmente o
poder às autoridades civis. O país seria governado sob uma Constituição
aprovada em Abril de 1976 e que continuava a ecoar a retórica e as ambições
do espírito político do pós-74, comprometendo Portugal a uma «transição
para o socialismo através da criação de condições para o exercício
democrático do poder pelas classes trabalhadoras». Nas eleições legislativas
desse mesmo mês, os socialistas ficaram uma vez mais em primeiro lugar,
embora com uma votação ligeiramente mais baixa, e Mário Soares formou o
primeiro governo democraticamente eleito em Portugal em quase meio
século.
As perspectivas para a democracia portuguesa mantinham-se sombrias –
Willy Brandt era apenas um de muitos observadores contemporâneos
apoiantes que viam em Soares outro Kerensky, um engodo involuntário para
as forças não democráticas que o iriam substituir na primeira oportunidade.
Mas Soares sobreviveu – e mais. As forças armadas mantiveram-se
confinadas às casernas, e o papel das suas franjas politizadas cada vez mais
marginal. A votação comunista até aumentou – melhorando para 14,6% em
1976 e daí para 19% três anos depois, enquanto a economia se deteriorava e
as políticas moderadas de Soares frustravam a ala esquerda do seu partido, a
quem prometera a futura destruição do capitalismo num Portugal socialista –
mas ao preço do abandono das suas ambições revoltosas.
Em 1977, o Parlamento aprovou uma Lei da Reforma Agrária que
confirmava a colectivização da terra do passado recente mas confinava-a ao
Sul, com restrições na dimensão de terra que podia ser expropriada aos
proprietários existentes. Esta decisão acabou com o risco de conflitos rurais e
de uma reacção conservadora, mas pouco pôde fazer a curto prazo para aliviar
a balbúrdia económica que o Portugal democrático tinha herdado. Privado de
matérias-primas baratas das suas antigas colónias (e o mercado cativo que
tinham representado para as suas exportações que sem isso não eram
competitivas), incapaz de exportar mão-de-obra não especializada para a
Europa Ocidental como no passado e constrangido pelas condições dos
empréstimos vitais do FMI para equilibrar o seu orçamento e praticar o rigor
fiscal, Portugal sofreu anos de desemprego e baixo consumo.
Os militares não tinham saído completamente de cena: pela Constituição
de 1976, um «Conselho da Revolução» composto por representantes não
eleitos das forças armadas detinha direito de veto, e no ano de 1980 rejeitou
23 projectos de lei, incluindo um plano do governo de centro-direita eleito
nesse ano para desnacionalizar os bancos portugueses. Mas não puseram
objecções quando o parlamento reviu a constituição nos dois anos seguintes,
reduzindo o poder do executivo (abolindo o próprio Conselho da Revolução
em 1982) e retirando tranquilamente a ênfase anticapitalista do documento
original.
Durante os vinte anos seguintes, os socialistas e os seus opositores, os
sociais-democratas, chefiados por Aníbal Cavaco Silva, iriam alternar-se no
poder. O próprio Mário Soares, tendo há muito abandonado a sua retórica
anticapitalista, ascendeu à presidência do país em 1986, ano em que Portugal
foi admitido na Comunidade Europeia. Por padrões ocidentais, o país
manteve-se impressionantemente pobre – um tributo ao legado duradouro de
Salazar. Mas, contra todas as expectativas, Portugal tinha evitado tanto um
«Terror branco» como um «Terror vermelho». Os comunistas, embora ainda
populares no Sul rural e nos subúrbios industriais de Lisboa, mantiveram-se
convictamente na linha dura sob a liderança de um envelhecido Cunhal, que
se manteve em funções até 1992. Mas a sua influência foi sendo
constantemente reduzida. Os colonos repatriados nunca conseguiram formar
um partido de extrema-direita de nacionalistas ressentidos. Nestas
circunstâncias, o aparecimento de um Portugal democrático foi uma proeza
considerável.
Para um visitante que atravessasse de França para Espanha em, digamos,
1970, a diferença que separava os dois lados dos Pirinéus parecia imensa. O
reinado de 31 anos de Franco acentuara o atraso social e o isolamento cultural
em que a Espanha tinha penado durante grande parte dos dois últimos séculos,
e este regime autoritário parecia estar ainda mais em desacordo com a
moderna cultura política europeia do que no início. À primeira vista, os anos
60 pareciam ter passado completamente ao lado de Espanha: censura rígida,
imposição estrita das leis que regulamentavam o vestuário e o comportamento
públicos, uma polícia omnipresente e leis penais draconianas para os críticos
da política em vigor, tudo sugeria uma terra parada no tempo com o seu
relógio histórico permanentemente parado em 1939(10).
Numa observação mais atenta, porém, a Espanha – ou pelo menos o Norte
da Espanha e as cidades – estava a mudar muito rapidamente. Franco era um
ditador rígido e verdadeiramente reaccionário, mas, ao contrário do seu
vizinho Salazar, era também realista em economia. Em 1959, a Espanha
abandonou as práticas autárcicas das passadas duas décadas, e, sob instigação
de um grupo de ministros da Opus Dei, adoptou um Plano de Estabilização
Nacional destinado a extinguir a inflação endémica do país e a abri-lo ao
comércio e ao investimento. O impacto inicial do Plano foi duro: a
desvalorização, os cortes no orçamento, o crédito congelado e as restrições
salariais – tudo firme e inflexivelmente imposto – baixaram a inflação mas
obrigaram dezenas de milhares de Espanhóis a procurarem trabalho no
estrangeiro.
Mas o sector privado, até aí constrangido por regulamentos corporativistas
e uma política enraizada de substituição de importações, estava mais livre
para se expandir. As tarifas foram reduzidas; a Espanha juntou-se ao Banco
Mundial, ao FMI e ao GATT e foi admitida na OCDE como membro
associado (em 1962 Franco até se candidatou – sem êxito – a fazer parte da
CEE). O momento para a nova política económica de Franco era propício. A
economia interna espanhola tinha sido protegida da concorrência nos anos
iniciais do boom da Europa do pós-guerra, mas estava a abrir-se ao comércio
externo no momento certo. A partir de 1961, o PNB começou a subir
regularmente. A percentagem da mão-de-obra empregada na terra – um
trabalhador em dois em 1950 – caiu precipitadamente quando os
trabalhadores rurais do Sul e do Oeste se mudaram para Norte, para fábricas e
para a florescente indústria do turismo: em 1971 só um espanhol em cinco
permanecia na agricultura. Já em meados dos anos 60 a Espanha tinha
deixado de ser classificada como «país em desenvolvimento» pelos critérios
da ONU.
O «milagre económico» de Franco não deve ser exagerado. A Espanha não
estava sobrecarregada com os resíduos de um império e portanto não
enfrentava nenhum dos custos económicos ou sociais da descolonização. A
maior parte do dinheiro estrangeiro a entrar no país nos anos 60 não vinha da
exportação de bens produzidos em Espanha, mas das remessas do estrangeiro
dos trabalhadores espanhóis emigrantes ou então de turistas europeus do
Norte: resumindo, a modernização económica de Espanha era largamente um
subproduto da prosperidade de outras nações. Fora de Barcelona, a Costa
Brava, partes do País Basco e (em menor medida) Madrid, os transportes, a
educação, as infra-estruturas médicas e de serviços do país ainda estavam
muito atrasados. Mesmo em 1973, o rendimento per capita no país como um
todo era ainda mais baixo do que o da Irlanda e menos de metade da média da
CEE.
De qualquer maneira, as consequências sociais ou mesmo a limitada
modernização económica eram significativas. Numa época anterior à
televisão, a Espanha pode ter sido amplamente protegida do impacto cultural
dos anos 60 de outros países, mas as disparidades económicas e a perturbação
provocada pelo Plano de Estabilização produziram um descontentamento
laboral generalizado. Dos finais dos anos 60 até à morte de Franco, greves,
lock-outs, manifestações e exigências generalizadas de contratação colectiva e
representação sindical passaram a ser permanentes na vida espanhola. O
regime era inflexivelmente contrário a quaisquer concessões políticas; mas
não podia dar-se ao luxo de apresentar uma face pública demasiado
repressiva, numa altura em que tantos estrangeiros visitavam o país – 17,3
milhões em 1966, passando para 34 milhões no ano anterior à morte de
Franco.
Nem as autoridades espanholas podiam renunciar à cooperação e
capacidade de uma crescente mão-de-obra urbana. Estavam assim
constrangidos a admitir de facto o aparecimento de um movimento laboral,
esmagadoramente situado na Catalunha e nas indústrias pesadas da Região
Basca. Juntamente com os sindicatos não oficiais formados pelos funcionários
públicos, pessoal bancário e outras profissões administrativas, esta rede
semiclandestina de representantes dos trabalhadores e empregados podia
invocar quase uma década de organização e experiência na altura em que
Franco morreu.
Porém, os protestos laborais em Espanha estavam firmemente restringidos
a questões de necessidades básicas. Nos últimos anos do regime de Franco –
muito como o de Janos Kadar na Hungria – este dependia não da repressão
aberta e violenta mas de uma espécie de aceitação passiva imposta, uma
despolitização da cultura com décadas de existência. Aos manifestantes
estudantis, que desde 1956 pretediam uma maior autonomia universitária e
um abrandamento dos códigos morais e outras restrições, foi concedida
alguma liberdade para organizar e protestar dentro de limites estritamente
estabelecidos; podiam até contar com alguma simpatia por parte dos críticos
internos ao regime – católicos de espírito refomador e «sociais-falangistas»
desiludidos, entre outros. Mas toda a expressão de simpatia ou colaboração
nos sectores – com mineiros grevistas, por exemplo – estava rigorosamente
interdita(11). O mesmo se aplicava aos críticos adultos do regime.
De facto, todas as opiniões especificamente políticas eram firmemente
ocultadas e os partidos políticos independentes foram proibidos. Até 1967 o
país nem tinha uma Constituição e os direitos e procedimentos tal como
existiam eram em grande parte só fachada para benefício dos parceiros
ocidentais de Espanha. Oficialmente «regente» da monarquia interrompida,
Franco tinha consagrado o jovem Juan Carlos – neto do último rei de Espanha
– para lhe suceder na devida altura, mas para a maior parte dos observadores a
questão da monarquia tinha um pequeno papel nos assuntos espanhóis.
Mesmo a Igreja, ainda uma presença importante no quotidiano de muitos
Espanhóis, teve apenas um papel limitado na política pública.
O papel tradicional da Espanha como baluarte da civilização cristã contra
o materialismo e o ateísmo fazia parte integrante do currículo da escola
primária; mas a própria hierarquia católica (ao contrário dos «cripto-monges
modernizados» da Opus Dei) era mantida bem afastada das rédeas do poder,
em nítido contraste com os neocruzados do espírito do «Nacional
Catolicismo» da primeira década do regime(12). Em Junho de 1968,
vergando-se à realidade moderna, Franco concedeu pela primeira vez o
princípio da liberdade religiosa, permitindo que os Espanhóis exercessem
abertamente o seu culto numa igreja da sua escolha. Mas nessa altura a
própria religião estava a entrar num longo declínio: num país que se podia
gabar de ter 8000 seminaristas no início dos anos 60, havia menos de 2000
doze anos depois. Entre 1966 e 1975 um terço dos jesuítas espanhóis saíra da
Ordem.
Os militares também eram mantidos a uma cuidadosa distância. Tendo ele
próprio chegado ao poder através de um golpe militar, Franco entendia muito
bem os riscos de alienar uma casta militar que herdara um sentido extremo
das responsabilidades quanto aos seus deveres na preservação do Estado
espanhol e dos seus valores tradicionais. Durante todos os anos do pós-guerra
o Exército espanhol foi apaparicado e lisonjeado. A sua vitória na Guerra
Civil era anualmente celebrada nas ruas das cidades principais, com as suas
perdas ostensivamente lembradas no monumental Vale dos Caídos, concluído
em Setembro de 1959. As patentes e as condecorações multiplicavam-se:
quando o regime caiu havia 300 generais e a proporção de oficiais para as
outras categorias era de 1:11, a mais elevada da Europa. Em 1967, uma Lei
Institucional do Estado tornou as forças armadas formalmente responsáveis
pela garantia da unidade da nação e da integridade territorial e pela defesa do
«sistema institucional».
Na prática, porém, as forças armadas tinham-se tornado supérfluas. Franco
tinha durante décadas preservado as suas tropas de qualquer guerra
estrangeira ou colonial. Ao contrário dos exércitos francês e português, não
sofreram derrotas humilhantes nem retiradas forçadas. A Espanha não
enfrentava qualquer ameaça militar e a sua segurança interna estava a cargo
da polícia e de unidades especiais formadas para combater os terroristas –
reais e imaginários. O Exército, amplamente confinado a um papel
cerimonial, tinha-se tornado adverso ao risco; o seu conservadorismo
tradicional era cada vez mais expresso em entusiasmo pelo regresso da
monarquia, uma identificação que se iria revelar ironicamente benéfica na
transição do país para a democracia.
Os assuntos do país eram conduzidos por uma rede restrita de advogados,
professores católicos e funcionários públicos, muitos deles com vastos
interesses nas companhias privadas favorecidas pelas suas políticas. Mas por
a oposição política formal ter sido proibida, seria do interior desses mesmos
círculos de governantes – mais do que entre uma intelligentsia cujos
expoentes permaneciam no exílio – que as ideias reformadoras e a pressão
para a mudança iriam surgir, impelida pela frustração com a ineficácia local,
críticas do estrangeiro ou pelo exemplo do Vaticano II.
Franco morreu finalmente a 20 de Novembro de 1975, com 82 anos de
idade. Recusando até ao fim considerar quaisquer liberalizações sérias ou a
transferência de autoridade, já deixara de ter utilidade até mesmo para os
próprios apoiantes, muitos dos quais simpatizavam com os manifestantes que
no início desse ano tinham exigido o levantamento das restrições à imprensa e
às associações políticas. A transição para a democracia foi assim gerida de
dentro das fileiras dos próprios ministros e nomeados de Franco, o que ajuda
a explicar a sua rapidez e êxito. Nas fases iniciais da saída da Espanha do
franquismo, as forças tradicionais da mudança democrática em Espanha –
liberais, socialistas, comunistas, sindicatos – ocuparam um lugar subalterno.
Dois dias depois de Franco ter morrido, Juan Carlos foi coroado rei. Ao
princípio manteve em funções Carlos Arias Navarro, o último primeiro-
ministro de Franco, juntamente com os seus colegas de governo, para melhor
garantir ao Exército e a outros que não haveria um corte súbito com o
passado. Mas, em Abril de 1976, Árias incorreu no desagrado do rei, quando
suspendeu a recentemente formada Coordenação Democrática, uma coligação
de partidos de esquerda ainda não autorizados, e prendeu os seus dirigentes.
No espaço de dois meses o rei substituíra Árias por um dos seus ministros,
Adolfo Suárez González.
Aos quarenta e quatro anos, Suárez era um típico tecnocrata de finais da
era de Franco. De facto, servira durante um ano como dirigente do
Movimento Nacional Falangista do Caudilho. Suárez revelou ser uma escolha
notavelmente astuta. Formou um novo partido político, a União Centro
Democrática (UCD) e começou a convencer a assembleia franquista a aceitar
um referendo nacional sobre as reformas políticas – essencialmente para
aprovar a introdução do sufrágio universal e um Parlamento com duas
câmaras. Apanhada de surpresa por alguém que julgava ser um dos deles, a
velha guarda franquista concordou – e o referendo passou, a 15 de Dezembro
de 1976, com mais de 94% a favor.
Em Fevereiro de 1974, Suárez autorizou o regresso do Partido Socialista
Espanhol (PSOE), a mais velha organização política do país, agora dirigido
pelo jovem Felipe González, de Sevilha, activo no movimento clandestino
desde os seus vinte anos. Ao mesmo tempo, legalizaram-se os sindicatos e
foi-lhes concedido o direito à greve. A 1 de Abril, Suárez proibiu e
desmantelou o Movimento Nacional que outrora dirigira; uma semana depois
legalizou o Partido Comunista Espanhol (PCE) dirigido por Santiago Carrillo
e já empenhado (em notório contraste com os seus camaradas portugueses)
em operar dentro dos limites de uma transição para a democracia
parlamentar(13).
Em Junho de 1977 houve eleições para se formar uma Assembleia
Constituinte com a tarefa de redigir uma nova Constituição. As eleições – as
primeiras em Espanha desde 1936 – produziram uma maioria relativa para a
UCD de Suarez, que ganhou 165 lugares nas Cortes. O partido em segundo
lugar, os socialistas de González, conseguiu só 121, perfazendo todos os
outros apenas 67(14). Em muitos aspectos este foi o melhor resultado possível;
a vitória de Suárez garantiu aos conservadores (muitos dos quais tinham
votado nele) de que não haveria qualquer viragem à Esquerda, enquanto que a
ausência de uma maioria clara o obrigou a trabalhar com os deputados da ala
esquerda, que assim partilhavam a responsabilidade pela nova Constituição
que a nova Assembleia iria esboçar.
Esta Constituição (devidamente confirmada num segundo referendo em
Dezembro de 1978) era em muitos aspectos bastante convencional. A
Espanha iria ser uma Monarquia parlamentar; não haveria religião oficial
(embora, numa calculada concessão à Igreja, o catolicismo fosse reconhecido
como «facto social»); a idade de voto baixou para os dezoito anos e a pena de
morte foi abolida. Mas numa maior quebra com o passado recente, a
Assembleia inscreveu nas novas leis de Espanha um direito à autonomia das
regiões históricas do país, nomeadamente a Catalunha e o País Basco.
O Artigo 2.o da Constituição afirmava «a indissolúvel unidade da Nação
Espanhola, pátria comum e indivisível de todos os Espanhóis, mas
prosseguia, para «reconhecer e garantir o direito à autonomia das
nacionalidades e regiões que a compõem e a solidariedade entre todas elas».
Os subsequentes Estatutos de Autonomia reconheciam o antigo facto da
variedade linguística e do sentimento regional no seio do até então
ultracentralizado Estado espanhol; também reconheciam o desproporcionado
significado demográfico, em especial da Catalunha, e a intensidade do
sentimento autonomista, tanto no País Basco como na Catalunha. Mas o que
era concedido a uns Espanhóis dificilmente poderia ser negado a outros. No
espaço de quatro anos a Espanha iria ser dividida em dezassete regiões
autónomas, cada qual com a sua bandeira e uma capital. Não só os Catalães
ou os Bascos, mas os Galegos, Andaluzes, Canários, Valencianos, Navarros e
muitos outros iriam ser reconhecidos como distintos e separados(15).
No entanto, pela nova Constituição, Madrid mantinha a responsabilidade
da Defesa, Justiça e Negócios Estrangeiros, um compromisso aceitável, em
especial para os nacionalistas bascos. Como vimos, a ETA tinha
deliberadamente intensificado a sua campanha de violência e assassinatos nos
meses em que a nova Constituição estava a ser discutida, tendo como alvos
polícias e soldados, na esperança de provocar uma reacção adversa e deitar a
perder um processo democrático que parecia cada vez mais provável vir a
enfraquecer a causa dos extremistas.
Em 1981 poderiam ter tido êxito. A 29 de Janeiro, com o
descontentamento económico no auge (ver abaixo) e a Catalunha, Região
Basca, Galiza e Andaluzia todas a iniciarem experiências separatistas em
governação autónoma, Suarez foi obrigado pelo seu próprio partido a demitir-
se – ressentido não com os seus insucessos (as eleições gerais de 1979 sob a
nova Constituição que tinham produzido uma nova vitória para a UCD) mas
pelos que ele conseguira – e pelo seu estilo autocrático de administração.
Antes de outro político da UCD, Calvo Sotelo, lhe suceder em funções,
rebentou uma greve geral nas Províncias Bascas. Para os seus críticos da
Direita, a Espanha democrática parecia sem chefia e prestes a desagregar-se.
A 23 de Fevereiro, o tenente-coronel António Tejero Molín Molina, da
Guarda Civil, apoderou-se das Cortes sob a ameaça de armas. Numa acção
coordenada, o general Jaime Milans del Bosch, comandante da Região Militar
de Valência, declarou o Estado de emergência e instou o rei a dissolver as
Cortes e instalar um governo militar. Apesar de em retrospectiva as suas
acções parecerem teatrais e balbuciantes, Tejero e Milans del Bosch tinham
certamente a tradição e precedentes do seu lado. Além do mais, havia pouco
que as próprias Cortes, ou os vários partidos políticos e seus apoiantes,
pudessem fazer para impedir um golpe de Estado militar e as simpatias do
próprio Exército estavam longe de ser certas(16).
O que determinou o resultado e a forma da posterior história espanhola foi
a pronta rejeição do rei Juan Carlos I das exigências dos conspiradores e o seu
discurso televisivo defendendo intransigentemente a Constituição e
identificando-se, e à monarquia, sem ambiguidades, com a emergente maioria
democrática. Provavelmente ambos os lados ficaram igualmente
surpreendidos com a coragem de um jovem rei que até então vivera na
sombra da sua própria nomeação pelo falecido ditador; mas agora o seu
destino estava irrevogavelmente ligado à democracia parlamentar. Faltando-
lhes uma instituição ou um símbolo à volta do qual congregar as suas forças, a
maior parte daqueles polícias, soldados e outros nostálgicos do antigo regime
afastou-se dos sonhos de revolta ou restituição e limitou-se em vez disso a
apoiar a Aliança Popular de Manuel Fraga Iribarne, um partido recentemente
formado e empenhado em combater «os mais perigosos inimigos da Espanha:
o comunismo e o separatismo», mas dentro da lei.
O descrédito que Tejero trouxera à sua «causa» começou por dar às Cortes
uma oportunidade para cortar no orçamento militar e aprovar projecto-lei, que
há muito se exigia, legalizando o divórcio. Mas a maioria UCD estava cada
vez mais presa entre uma Direita clerical e nacionalista insatisfeita com a
rapidez das mudanças, perturbada com a autonomia regional e ofendida com a
relaxada moral pública da nova Espanha, e uma Esquerda socialista
afirmativa, aberta ao compromisso nas questões constitucionais mas
apresentando uma face radical ao turbulento movimento sindical e ao
crescente número de desempregados.
Tal como em Portugal, a transição política chegara num momento
económico difícil. Isto era em larga medida responsabilidade dos últimos
governos da era Franco, que entre 1970 e 1976 tinham procurado comprar a
popularidade com uma crescente despesa pública e empregos no sector
público, subsidiando os custos de energia, mantendo os preços baixos, ao
mesmo tempo que deixavam os salários subir e prestavam pouca atenção ao
longo prazo. Em 1977 as consequências desta despreocupação começavam a
fazer-se sentir: em Junho desse ano, na altura das eleições gerais, a inflação
era de 26% ao ano, os cofres do Estado (há muito debilitados devido ao
regime fiscal regressivo de Franco) estavam a ficar vazios e o desemprego
estava a entrar numa longa curva ascendente. Entre 1973 e 1982 o país perdeu
uns estimados 1,8 milhões de empregos.(17)
Como na República efémera dos anos 30, a Espanha estava a construir
uma democracia contra uma recessão económica e falava-se muito de o país
estar a seguir o caminho da Argentina, com salários indexados e preços
subsidiados pelo governo degenerando em hiperinflação. Se isto foi evitado,
muito do crédito se deve aos signatários dos chamados Pactos de Moncloa de
Outubro de 1977, os primeiros de uma série de acordos negociados em que
políticos, dirigentes da classe trabalhadora e empregados concordavam em
encetar uma vasta gama de reformas: desvalorização da moeda, uma política
de rendimentos, controlos sobre as despesas do governo e reformas estruturais
no enorme e esbanjador sector público.
Os Pactos de Moncloa e seus sucessores (o último acordo foi assinado em
1984) não fizeram milagres. Em parte graças ao segundo choque petrolífero, a
crise da balança de pagamentos do país piorou regularmente; muitas pequenas
empresas encerraram e o desemprego e a inflação subiram um atrás do outro,
provocando uma vaga de greves, bem como cisões acerbas dentro dos
sindicatos da ala esquerda e o Partido Comunista, relutante em continuar a
partilhar a responsabilidade dos custos sociais da transição democrática. Mas
sem o Pacto estas divisões, e as suas consequências sociais, quase de certeza
teriam sido ainda mais graves.
Nas eleições de Outubro de 1982, no auge das dificuldades económicas, o
Partido Socialista ganhou uma maioria absoluta no Parlamento e Felipe
González assumiu o lugar de primeiro-ministro, um lugar que manteria
durante os catorze anos seguintes. Os centro-democratas de Suárez – que
tinham dirigido a transição de saída do franquismo – foram praticamente
eliminados do Parlamento, ganhando só dois lugares. O Partido Comunista
ganhou quatro, uma humilhante derrota que provocou a demissão de Santiago
Carrillo. A partir daí as políticas de Espanha iriam seguir o padrão do resto da
Europa Ocidental, reagrupando-se à volta de um centro-esquerda e de um
centro-direita, neste caso a Aliança Popular de Fraga Iribarne (rebaptizada
Partido Popular em 1989) que obteve uns surpreendentes 26,5% dos votos.
O Partido Socialista tinha feito campanha com um programa populista e
anticapitalista, prometendo entre outras coisas conservar os empregos e poder
de compra dos trabalhadores e tirar a Espanha da NATO. Depois de assumir o
poder, González manteve políticas de austeridade económica, deu início à
modernização (e mais tarde à progressiva privatização) da indústria e serviços
espanhóis, e em 1986 derrotou muitos dos seus próprios apoiantes num
referendo sobre a questão de se manterem na NATO, que agora aprovava(18).
Estas mudanças de direcção não faziam com que González fosse estimado
pelos socialistas da velha guarda, cujo partido ele agora dirigia, afastado do
seu compromisso marxista de longa data(19). Mas para um político cujo apoio
central vinha cada vez mais de homens e mulheres demasiado jovens para se
lembrarem da Guerra Civil e cujo objectivo confessado era ultrapassar o
atraso da Espanha – o muito debatido atraso que afligia a Península desde o
fim da Idade de Ouro – a velha Esquerda ideológica era parte do problema,
não a solução. Para González, o futuro da Espanha não estava no socialismo,
mas na Europa. A 1 de Janeiro de 1986, a Espanha, acompanhada por
Portugal, tornou-se membro efectivo da Comunidade Europeia.
A transição democrática da Europa mediterrânica foi o desenvolvimento
mais notável e mais inesperado da era. No início dos anos 80, Espanha,
Portugal e a Grécia não tinham apenas passado por uma conversão pacífica
para a democracia parlamentar: nos três países o Partido Socialista local –
clandestino e ostensivamente anticapitalista só alguns anos antes – era agora a
força política dominante, governando efectivamente ao centro. Os regimes de
Salazar e Franco desapareceram não só de funções como também da
memória, enquanto uma nova geração de políticos competia pela lealdade de
um jovem eleitorado «moderno».
Houve várias razões para isto. Uma, já referida, era que em Espanha, em
particular, fora o Estado político, não a sociedade em geral, que se tinha
deixado atrasar. O desenvolvimento económico da última década de Franco e
a mobilidade social e geográfica em grande escala que ocasionou
significavam que a vida diária e as expectativas em Espanha se tinham
modificado muito mais do que os observadores de fora imaginavam e que
ainda olhavam para o país através do prisma dos anos 1936-56. Os jovens na
Europa mediterrânica não acharam difícil adaptar-se às rotinas sociais há
muito familiares mais a norte; de facto, já o estavam a fazer antes das
revoluções políticas. Impacientes por se libertarem das constrições de outra
época, estavam manifestamente cépticos quanto à retórica política da Direita
ou da Esquerda e indiferentes às velhas lealdades. Quem visitava Lisboa ou
Madrid nos anos a seguir à transição ficava constantemente espantado com a
ausência de qualquer referência ao passado recente, quer na política, quer na
cultura(20).
A próxima irrelevância dos anos 30 foi pacientemente captada em La
Guerre est Finie (A Guerra Acabou), o triste e elegíaco filme de 1966 de
Alain Resnais onde o comunista espanhol emigrado Diego – interpretado pelo
incomparável Yves Montand – viaja clandestinamente de Paris para Madrid,
transportando corajosamente literatura subversiva e planos para uma «revolta
de trabalhadores» que ele sabe que nunca acontecerá. «Não percebem? – tenta
ele dizer aos seus controladores do Partido estabelecidos em Paris, que
sonham com um renascimento das esperanças de 1936 – A Espanha
transformou-se no ponto de reunião lírico da Esquerda, um mito para os
veteranos de guerras passadas. Entretanto, 14 milhões passam férias em
Espanha todos os anos. A realidade do mundo resiste-nos». Não é por acaso
que o guião do filme foi a obra de Jorge Semprun, comunista espanhol
clandestino durante muitas décadas, ele próprio um operacional antes de
abandonar o Partido, consternado com a sua nostalgia preconceituosa.
No início dos anos 80 a relutância dos jovens espanhóis em particular em
rememorar o passado recente era inequívoca, nomeadamente na ostensiva
rejeição dos códigos de comportamento público: na linguagem, no vestuário e
sobretudo nos mores sexuais. Os populares filmes de Pedro Almodóvar
oferecem uma espécie de inversão autoconsciente de cinquenta anos de
bafienta governação autoritária, um resumido exercício sobre as novas
convenções contra-culturais. Dirigidos com piscar de olhos astuto e
existencialista aos temas tratados, descrevem mulheres jovens confusas em
circunstâncias sexualmente saturadas. Em Pepi, Luci, Bom y outras chicas del
montón (1980), produzido apenas três anos depois das primeiras eleições
livres do país, as personagens riem intencionalmente a respeito de «erecções
gerais» e da «guerra de erotismo que nos está a afundar».
Dois anos depois, em Laberinto de pasiones, terroristas efeminados e
ninfo maníacas trocam gracejos escatológicos, debatendo a certa altura se os
seus «pequenos casos gay» deveriam vir antes ou depois de «um futuro da
nação». A cada filme os cenários tornavam-se mais brilhantes, os locais de
filmagem urbanos cada vez mais chiques. Em 1988, com Mujeres al borde de
un ataque de nervios, Almodóvar tinha conseguido uma convincente
sintetização de uma sociedade autoconscientemente moderna e agitada, a
tentar desesperadamente recuperar o tempo perdido(21).
É ainda mais irónico que estas mudanças se tivessem tornado possíveis
não através dos radicais culturais ou políticos e dos inovadores, mas por
estadistas conservadores do velho regime. Constantine Karamanlis, António
de Spínola e Adolfo Suárez – tal como Mikahil Gorbachev uns anos depois –
eram todos produtos característicos do sistema que ajudaram a desmantelar.
Karamanlis, é certo, tinha estado no exílio durante o governo dos coronéis,
mas era irrepreensivelmente nacionalista e de vistas curtas como ninguém e
além disso não tinha qualquer responsabilidade directa nas fraudulentas
eleições gregas de 1961 que representaram um papel tão central a desacreditar
o sistema de depois da guerra e levar o Exército ao poder.
Mas era a própria certeza de que estes homens se agarravam ao seu
próprio eleitorado que lhes permitiu desmantelar as instituições autoritárias
que outrora tinham servido lealmente. E estes, por sua vez, foram substituídos
por socialistas – Soares, González, Papandreou – que reafirmaram
convincentemente aos seus apoiantes as suas credenciais radicais intactas, ao
mesmo tempo que implementavam políticas económicas moderadas muitas
vezes impopulares, que lhes eram impostas pelas circunstâncias. A transição,
nas palavras de um eminente comentador espanhol, «exigiu que os franquistas
fingissem nunca ter sido franquistas e que os comprometidos com a ala
esquerda fingissem estar ainda comprometidos com os princípios
esquerdistas(22).
As circunstâncias da época obrigavam assim muitos a abjurar de um dia
para o outro posições de princípio de longa data. O odor familiar das
promessas judiciosamente quebradas e memórias convenientemente
extraviadas pairava pesadamente sobre a vida pública do Mediterrâneo
durante estes anos e talvez sirva em parte para explicar o espírito céptico,
apolítico, de uma nova geração nos três países. Mas os que se atinham
fielmente e sem arrependimento a compromissos passados, dos comunistas
aos falangistas, eram rapidamente ultrapassados pelos acontecimentos. A
constância não era substituta para a relevância.
Finalmente, a Espanha, Portugal e a Grécia conseguiram entrar ou reentrar
no «Ocidente» com tão pouca dificuldade, apesar do seu auto-imposto
isolamento político, porque as suas políticas externas tinham sido sempre
compatíveis – na verdade, alinhadas – com as dos Estados da NATO ou da
CEE. As instituições da Guerra Fria, para não falar num anticomunismo
comum, facilitaram a crescente comunicação e colaboração entre democracias
pluralistas e as ditaduras militares ou clericais. Depois de muitos anos a
reunirem-se, conversarem, planearem ou simplesmente a negociarem com os
seus homólogos não eleitos, os norte-americanos e os europeus ocidentais há
muito que tinham deixado de se melindrar com os arranjos internos em
Madrid, Atenas ou Lisboa.
Para a maior parte dos observadores – incluindo muitos dos seus críticos
locais – os desagradáveis regimes do Sul da Europa não estavam portanto tão
moralmente falidos como institucionalmente anacrónicos. E, evidentemente,
as suas economias eram em aspectos essenciais semelhantes às de outras
nações ocidentais e estavam já bem integradas nos mercados internacionais de
capitais, bens e mão-de-obra. Até o Portugal de Salazar fazia
reconhecidamente parte do sistema internacional de capitalismo – apesar de
estar no extremo errado. A emergente classe média, sobretudo em Espanha,
moldava as suas ambições, não menos que o seu vestuário, pelos
administradores, empresários, engenheiros, políticos e funcionários públicos
de França, ou Itália, ou Inglaterra. Apesar de todo o seu atraso, as sociedades
da Europa mediterrânica já pertenciam a um mundo a que agora aspiravam
juntar-se em condições iguais, e a transição para fora do governo autoritário
foi acima de tudo facilitada pela oportunidade que lhes foi concedida para o
fazerem. As suas elites, que outrora tinham resolutamente olhado para trás,
agora olhavam para norte. A geografia, segundo parecia, triunfara sobre a
história.
Entre 1973 e 1986, a Comunidade Europeia passou por um dos seus surtos
periódicos de activismo e expansão, aquilo a que um historiador chamou a sua
«sequência de irregulares grandes explosões». O presidente francês Georges
Pompidou, liberto pela morte de De Gaulle do fardo da desaprovação do seu
chefe – e algo perturbado, como vimos, pelas implicações estratégicas da
nova Ostpolitik de Willy Brandt –, tornou claro que acolheria bem a
participação da Inglaterra na CEE. Em Janeiro de 1972, em Bruxelas, a CEE
aprovou formalmente a adesão da Inglaterra, Irlanda, Dinamarca e Noruega, a
realizar-se um ano depois.
A bem sucedida candidatura inglesa foi obra do primeiro-ministro
conservador Edward Heath, o único dirigente político inglês desde a Segunda
Guerra Mundial a ser inequívoca e entusiasticamente a favor de unir o destino
da sua nação ao dos seus vizinhos continentais. Quando o Partido Trabalhista
regressou ao poder em 1974 e convocou um referendo sobre a participação do
Reino Unido na Comunidade, o país aprovou por 17 300 000 contra 8 400
000. Mas nem mesmo Heath conseguiu fazer com que os Britânicos –
especialmente os Ingleses – se «sentissem» europeus, e uma percentagem
significativa de eleitores tanto da Direita como da Esquerda continuou a
duvidar dos benefícios de estar «na Europa». Entretanto, os Noruegueses
eram muito distintamente da opinião de que estariam melhor de fora: num
referendo em Setembro de 1972, 54% do país rejeitou fazer parte da CEE e
optou em vez disso por um acordo limitado de comércio livre com a
Comunidade, uma decisão reconfirmada numa votação quase igual 22 anos
depois(23).
A participação britânica na Comunidade iria revelar-se controversa nos
anos seguintes, quando a primeira-ministro Margaret Thatcher se opôs aos
novos projectos para uma união cada vez mais estreita e exigiu que a Grã-
Bretanha fosse reembolsada dos «pagamentos excessivos» para o orçamento
comum. Mas nos anos 70 Londres teve problemas próprios e apesar do
impacto dos preços inflaccionados devidos à adesão, sentiu-se aliviada por
fazer parte de uma área de comércio que agora representava um terço do
investimento interno britânico. As primeiras eleições directas para um novo
Parlamento Europeu tiveram lugar em 1979 – até então, os membros da
Assembleia Europeia, em Estrasburgo, tinham sido seleccionados pelas
respectivas legislaturas nacionais – mas suscitaram pouco interesse popular.
No Reino Unido o resultado foi previsivelmente baixo, só 31,6%; mas
também não foi especialmente elevado nos outros sítios – em França só três
em cinco eleitores se deram ao trabalho de votar, na Holanda ainda menos.
A adesão de três países da «camada norte» à CEE foi relativamente
inquestionável, tanto para os recém-chegados como para os membros antigos.
A Irlanda era pobre mas muito pequena, enquanto que a Dinamarca e o Reino
Unido eram ricos e portanto contribuintes líquidos para o orçamento comum.
Tal como a segunda volta de adesões prósperas, em 1995, quando a Áustria, a
Suécia e a Finlândia se juntaram ao que era então a União Europeia, os novos
participantes contribuíam para os cofres e influência da comunidade em
expansão sem aumentarem significativamente os seus custos ou competindo
em áreas sensíveis com os membros existentes. Os recém-chegados do Sul
eram um caso diferente.
A Grécia, tal como a Irlanda, era pequena e pobre e a sua agricultura não
representava nenhuma ameaça para os agricultores franceses. Assim, apesar
de alguns impedimentos institucionais – a Igreja Ortodoxa tinha uma posição
oficial e influente, e o casamento civil, para dar um exemplo, só foi
autorizado em 1992 – não havia argumentos poderosos contra a sua admissão,
que foi defendida pelo presidente francês Giscard d’Estaing, entre outros.
Mas quando se tratou de Portugal e (sobretudo) Espanha, os Franceses
fizeram uma forte oposição. Vinho, azeite, fruta e outros produtos agrícolas
custam muito menos a criar e comercializar a sul dos Pirinéus; se a Espanha e
Portugal fossem admitidos no mercado comum europeu em iguais condições,
os agricultores ibéricos iriam oferecer aos produtores franceses uma séria
concorrência.
Assim, demorou nove anos para Portugal e Espanha obterem a entrada na
CEE (enquanto que a candidatura da Grécia demorou menos de seis), tempo
durante o qual a imagem pública da França, tradicionalmente positiva na
Península Ibérica, caiu a pique: em 1983, dois terços do caminho percorrido
através de uma série de negociações acrimoniosas, só 39% dos Espanhóis
tinham uma opinião «favorável» sobre a França – um começo pouco
auspicioso para o seu futuro comum. Parte do problema era que a entrada das
nações mediterrânicas exigia mais do que simplesmente compensar Paris com
um aumento dos pagamentos de apoio da Comunidade aos agricultores
franceses; entre si, a Espanha, Portugal e a Grécia trouxeram um acréscimo de
58 milhões de pessoas para a comunidade, a maior parte pobres e portanto
elegível para uma série de programas e subsídios criados por Bruxelas(24).
De facto, com a adesão de três países agrários pobres, o Fundo Agrícola
Comum assumiu novos pesados encargos e a França deixou de ser a sua
principal beneficiária. Era assim necessário obter vários acordos
cuidadosamente negociados para compensar os Franceses pelas suas
«perdas». Os recém-chegados, por seu lado, foram devidamente compensados
pelas suas próprias desvantagens e pelo longo «período de transição» que a
França conseguiu impor antes de lhes permitir as exportações para a Europa
em condições iguais. Os «Programas Mediterrânicos Integrados» – subsídios
regionais de facto mas não no nome – fornecidos a Espanha e a Portugal na
sua entrada em 1986 não tinham sido oferecidos aos Gregos em 1981 e
Andreas Papandreou exigiu com êxito a sua extensão ao seu país, ameaçando
até retirar a Grécia da CEE se isto lhe fosse negado(25)!
Foi nestes anos, então, que a Comunidade Europeia adquiriu a sua imagem
pouco lisonjeira de espécie de feira de gado institucionalizada, onde os países
negociavam alianças políticas em troca de compensação material. E as
compensações eram reais. Os Espanhóis e os Portugueses lucraram muito
com a «Europa» (embora não tanto como a França), tornando-se os
negociadores espanhóis notavelmente hábeis em sugerir e garantir a vantagem
financeira do seu país. Mas foi Atenas que de facto ganhou: apesar de
inicialmente se encontrar atrás do resto da Comunidade nos anos 80 (e ter
substituído Portugal como o membro mais pobre da Comunidade em 1990), a
Grécia beneficiou grandemente com a sua participação.
Na verdade, era por a Grécia ser tão pobre – em 1990, metade das regiões
mais pobres da Comunidade Europeia eram gregas – que se portou tão
satisfatoriamente. Para a Grécia, ser membro da CEE correspondia a um
segundo Plano Marshall: só entre 1985 a 1989, a Grécia recebeu 7,9 mil
milhões de dólares de fundos da CEE, proporcionalmente mais do que
qualquer outro país. Enquanto não houvesse outros países pobres à espera na
fila, este nível de generosidade de redistribuição – o preço da concordância da
Grécia nas decisões da Comunidade – podia ser absorvido pelas finanças
nacionais da Comunidade, principalmente a Alemanha Ocidental. Mas com a
dispendiosa unificação da Alemanha e com a perspectiva de um novo
conjunto de Estados candidatos indigentes da Europa de Leste, os precedentes
generosos dos anos da adesão mediterrânica iriam revelar-se onerosos e
controversos, como veremos.
Quanto mais crescia, mais difícil se tornava administrar a Comunidade
Europeia. A unanimidade exigida no Conselho de Ministros
intergovernamental fazia prever debates intermináveis. As decisões podiam
levar anos a tomar – uma directiva sobre a definição e regulamentação da
água mineral levou onze anos a emergir das câmaras do conselho. Era preciso
fazer qualquer coisa. Havia um consenso de há muito de que o «projecto»
europeu carecia de um reforço de objectivos e energia – uma conferência em
Haia em 1969 foi a primeira de uma série irregular de reuniões com a
intenção de «relançar a Europa» – e a amizade pessoal do presidente da
França, Valéry Giscard d’Estaing, e o chanceler alemão Schmidt nos anos de
1975 a 1981, favoreceu tal agenda.
Mas era mais fácil avançar através da integração económica negativa –
retirando tarifas e restrições ao comércio, subsidiando as regiões e sectores
em desvantagem – do que concordar com critérios intencionais exigindo
acção política positiva. A razão era bastante simples. Enquanto houvesse
dinheiro suficiente para circular, a cooperação económica podia ser
apresentada como um benefício líquido para todas as partes; enquanto que
qualquer avanço político na direcção da integração ou coordenação europeias
ameaçava implicitamente a autonomia nacional e restringia a iniciativa
política doméstica. Só quando os poderosos dirigentes de Estados dominantes
concordavam por razões próprias em trabalhar em conjunto com uma
qualquer finalidade comum se podiam introduzir alterações.
Assim, foram Willy Brandt e Georges Pompidou que lançaram o primeiro
sistema de coordenação monetária, a «serpente»; Helmut Schmidt e Giscard
d’Estaing que o desenvolveram para o Sistema Monetário Europeu (SME) e
Helmut Kohl e François Mitterrand, seus respectivos sucessores, que iriam
planear o Tratado de Maastricht de 1992 que deu origem à União Europeia.
Foram Giscard e Schmidt que inventaram a «diplomacia de cimeira» como
forma de contornar os impedimentos de uma pesada burocracia supranacional
em Bruxelas – mais um aviso de que, tal como no passado, a cooperação
franco-alemã era condição necessária para a unificação da Europa Ocidental.
O impulso por detrás das movimentações franco-alemãs nos anos 70 foi a
ansiedade económica. A economia europeia estava a crescer lentamente, se é
que crescia, a inflação era endémica e a incerteza resultante do colapso do
sistema de Bretton Woods significava que as taxas de câmbio eram voláteis e
imprevisíveis. A «serpente», o SME e o écu eram uma espécie de resposta de
segunda opção – por ser mais regional do que internacional – ao problema,
substituindo gradualmente o dólar pelo Deutschmark como moeda estável de
referência para os banqueiros e mercados europeus. Uns anos depois, a
substituição das moedas nacionais pelo euro, com todas as suas implicações
simbólicas de perturbação, foi o passo lógico seguinte. O aparecimento de
uma única moeda europeia foi, assim, o resultado de respostas pragmáticas
aos problemas económicos, não uma estratégia calculada a caminho de um
objectivo europeu pré-determinado.
De qualquer maneira, ao convencer muitos observadores – nomeadamente
os até então sociais-democratas cépticos – de que a recuperação económica e
a prosperidade já não se podiam conseguir só a nível nacional, a bem
sucedida colaboração dos Estados da Europa Ocidental serviu como um
inesperado ponto de partida para outras formas de acção colectiva. Sem
qualquer eleitorado poderoso em princípio a opor-se, os chefes de Estado e os
governos da Comunidade assinaram uma Declaração Solene em 1983
comprometendo-os a uma futura União Europeia. A forma precisa de uma tal
União foi depois alcançada no decorrer de negociações que resultaram no
Acto Único Europeu (AUE) que foi aprovado pelo Conselho Europeu em
Dezembro de 1985 e assinado em Julho de 1987.
O AUE foi a primeira revisão significativa do Tratado de Roma original. O
Artigo 1.o afirmava com bastante clareza que «As Comunidades Europeias e a
cooperação política europeia deverão ter como objectivo contribuir em
conjunto para o avanço concreto para a unidade europeia». E substituindo
simplesmente «comunidade» por «união», os dirigentes das 12 nações-
membros deram um passo em frente decisivo, em princípio. Mas os
signatários evitaram ou adiaram todas as questões verdadeiramente
controversas, nomeadamente o fardo crescente do orçamento agrícola da
União. Também tornearam cuidadosamente a embaraçosa ausência de
qualquer política europeia comum de defesa e negócios estrangeiros. No auge
da «nova Guerra Fria» dos anos 80 e à beira de desenvolvimentos
importantíssimos a sucederem umas dúzias de milhas para leste, os Estados-
membros da União Europeia mantiveram os olhos resolutamente fixos nos
assuntos internos do que era ainda sobretudo um mercado comum, embora
fosse um mercado abrangendo bastante mais do que 300 milhões de pessoas.
Aquilo em que concordaram realmente foi em avançar com determinação
para um mercado único interno genuíno de bens e mão-de-obra (a ser
implementado em 1992) e em adoptar um sistema de votação de «maioria
qualificada» no processo de tomada de decisões da União – «qualificada»,
isto é, pela insistência dos membros maiores (nomeadamente a Grã-Bretanha
e a França) em manter o poder de vetar propostas consideradas prejudiciais
para os seus interesses nacionais. Estas foram mudanças autênticas e tiveram
acordo porque um mercado único tinha em princípio a aprovação de todos, de
Margaret Thatcher aos Verdes, apesar de por diferentes razões. Facilitaram e
anteciparam a verdadeira integração económica da década seguinte.
Era inevitável um retrocesso no sistema de votação nacional no Conselho
da Europa se quaisquer decisões tivessem de ser tomadas por uma
comunidade de Estados cada vez mais ineficiente, que duplicara a sua
dimensão em apenas treze anos e estava já a prever os pedidos de adesão da
Suécia, Áustria e outros países. Quanto mais crescia, mais atractiva – e de
certo modo «inevitável» – a futura União Europeia se tornaria para os que
ainda não estavam dentro dela. Para aos cidadãos dos seus Estados-membros,
no entanto, a característica mais significativa da União Europeia nesses anos
não era a maneira como era governada (sobre o que a maioria das pessoas se
mantinha totalmente ignorante), nem os projectos dos seus dirigentes para
uma maior integração, mas a quantidade de dinheiro que escorria dos seus
cofres e a forma como esse dinheiro era desembolsado.
O Tratado de Roma original continha um só departamento com o cargo
específico de identificar regiões dos seus Estados-membros que necessitassem
de ajuda, e depois gastar dinheiro da Comunidade com elas: o Banco Europeu
de Investimento, iniciado por insistência da Itália. Mas uma geração depois os
gastos regionais, na forma de subsídios em dinheiro, ajuda directa, fundos
para arranque e outros incentivos em investimentos eram a principal fonte de
expansão orçamental em Bruxelas e de longe a alavanca mais influente ao
dispor da Comunidade.
A razão para isto era a confluência de políticas regionalistas dentro dos
Estados-membros e as crescentes disparidades entre os próprios Estados. Nos
anos iniciais após a Segunda Guerra Mundial, os Estados europeus eram
ainda unitários, governados a partir do centro com pouca consideração pela
diversidade local ou pela tradição. Só a nova Constituição italiana de 1948
ainda reconhecia a questão das autoridades regionais e mesmo assim os
limitados governos locais que estipulava permaneceram letra morta durante
um quarto de século. Mas precisamente quando as exigências locais de
autonomia se tornaram um factor sério nos cálculos políticos domésticos em
toda a Europa, a CEE, por razões próprias, inaugurou um sistema de fundos
regionais, com início em 1975 com o Fundo Europeu de Desenvolvimento
Regional (FEDER).
Do ponto de vista dos funcionários estabelecidos em Bruxelas, o FEDER e
outros chamados «fundos sociais» tinham duas finalidades. A primeira era
abordar o problema do atraso económico e a desigualdade no seio de uma
Comunidade que era ainda muito guiada por uma cultura pós-guerra de
«crescimento», conforme o Acto Único Europeu tornou bem explícito. Com
cada novo grupo de membros vieram novas desigualdades que exigiam
atenção e compensação se a integração económica se quisesse fazer com
êxito. O Mezzogiorno da Itália já não era uma zona empobrecida, como o fora
outrora: grande parte da Irlanda, regiões da Grã-Bretanha (Ulster, Gales,
Escócia e o Norte e Oeste da Inglaterra), a maior parte da Grécia e de
Portugal, o Sul, centro e Noroeste da Espanha, eram todos pobres e iriam
necessitar de subsídios significativos e redistribuição da ajuda central se
quisessem alcançar o mesmo nível.
Em 1982, tomando o rendimento médio da Comunidade Europeia como
100, a Dinamarca – o membro mais rico – tinha 126, a Grécia só 44. Em
1989, o PIB per capita na Dinamarca era ainda mais do dobro do de Portugal
(nos EUA o fosso entre os Estados ricos e os pobres era de 2/3 deste valor). E
estas eram médias nacionais – as disparidades regionais eram ainda maiores.
Até mesmo os países ricos tinham zonas elegíveis: quando a Suécia e a
Finlândia se juntaram à União em meados dos anos 90, as suas regiões
árcticas, subpovoadas e totalmente dependentes de subsídios de manutenção e
outros de Estocolmo e Helsínquia, candidatavam-se agora também à ajuda de
Bruxelas. Para corrigir deformações geográficas e de mercado que tornavam
dependentes a Galiza, em Espanha, ou Vasterbotten, na Suécia, as agências
em Bruxelas iriam atribuir grandes quantidades de dinheiro – trazendo
indubitáveis benefícios locais mas instituindo também no processo
burocracias locais ineficientes e por vezes corruptas(26).
O segundo motivo por detrás dos projectos regionais de consolidação
extremamente onerosos – entre si os inúmeros Fundos de «Coesão» e
«Estruturais» consumiriam no final do século 35% de toda a despesa da UE –
era possibilitar que a Comissão Europeia em Bruxelas evitasse os governos
centrais não cooperantes e colaborasse directamente com os interesses
regionais no interior dos Estados-membros. Esta estratégia revelou-se muito
bem sucedida. Desde finais de 1960 que o sentimento regionalista vinha a
crescer (em alguns casos a renascer) em todo o lado. Activistas quondam de
1968, substituindo o dogma político pela afinidade regional, procuravam
agora fazer reviver e usar a antiga linguagem da Occitânia no Sudoeste da
França. Tal como os seus companheiros activistas na Grã-Bretanha,
encontraram uma causa comum nos separatistas catalães e bascos, nos
nacionalistas escoceses e flamengos, nos separatistas do Norte da Itália e
muitos outros, todos exprimindo um ressentimento comum pelo
«desgoverno» de Madrid, ou Paris, ou Londres, ou Roma.
As novas políticas regionalistas inseriam-se em muitas subcategorias
sobrepostas – históricas, linguísticas, religiosas; que pretendiam autonomia,
autogoverno ou até mesmo independência nacional total – mas geralmente
divididas em províncias ricas, ressentidas por serem obrigadas a subsidiar
regiões miseráveis do seu próprio país e zonas historicamente prejudicadas ou
recentemente desindustrializadas, zangadas por serem esquecidas por
políticos nacionais indiferentes. Na primeira categoria encontravam-se a
Catalunha, a Lombardia, a Flandres belga, Baden-Württemberg ou a Baviera
na Alemanha Ocidental, e a região dos Alpes do Reno no Sudeste da França
(que juntamente com a Île-de-France abrangia quase 40% do PIB francês em
1990). Na segunda categoria encontravam-se a Andaluzia, grande parte da
Escócia, a Valónia de língua francesa e muitas outras.
Ambas as categorias estavam em condições de beneficiar com as políticas
europeias regionais. Regiões ricas como a Catalunha ou Baden-Württemberg
instalaram gabinetes em Bruxelas e aprenderam a fazer lobby em seu
benefício, para investimentos ou para políticas da Comunidade que
favorecessem instituições locais de preferência às nacionais. Representantes
políticos de regiões em desvantagem eram igualmente rápidos a manipular
donativos e ajuda de Bruxelas para aumentar a sua popularidade local – e com
isso pressionar as complacentes autoridades em Dublin ou Londres para
encorajar e até aumentar a generosidade de Bruxelas. Estes arranjos
convinham a toda a gente: os cofres europeus podiam verter milhões para
subsidiar o turismo no despovoado oeste da Irlanda ou financiar incentivos
fiscais para atrair investidores para áreas de desemprego crónico na Lorena ou
em Glasgow; mas mesmo que só por esclarecido interesse próprio, os
beneficiários estavam a tornar-se «europeus» leais. Assim, a Irlanda substituiu
ou actualizou com êxito muito das suas delapidadas infra-estruturas dos
transportes e esgotos e entre os Estados-membros periféricos mais pobres não
foi a única(27).
O AUE estendeu os poderes da Comunidade a muitas áreas políticas – o
ambiente, processos de emprego, iniciativas locais de investigação e
desenvolvimento – onde a CEE não tinha estado anteriormente envolvida,
todas elas requerendo o dispêndio dos fundos de Bruxelas directamente para
as instituições locais. Esta cumulativa «regionalização» da Europa era
burocrática e dispendiosa. Para dar um pequenino exemplo, que pode
representar centenas: a região do Alto Adige / Sul do Tirol, na fronteira norte
do país com a Áustria, fora oficialmente classificada por Bruxelas em 1975
como «montanhosa» (uma afirmação indiscutível); treze anos depois foi
oficialmente declarada como sendo mais de 90% rural (não menos evidente
para qualquer eventual viajante), ou – na gíria de Bruxelas – uma «Área
Objectivo 5-b». Nesta dupla capacidade, o Alto Adige era agora elegível para
fundos de protecção ambiental, subsídios a fundo perdido para apoio à
agricultura, subsídios a fundo perdido para melhorar a formação profissional,
donativos para incentivar o artesanato tradicional e donativos para melhorar
as condições de vida com o fim de manter a população.
Por isso, entre 1993 e 1999 o minúsculo Alto Adige recebeu um total de
96 milhões de écus (aproximadamente o correspondente a euros de 2005). No
chamado «Terceira Fase» dos fundos estruturais europeus, programado para
estar em vigor de 2000 a 2006, mais 57 milhões de euros iriam ser postos à
disposição da província. Ao abrigo do «Objectivo Dois» estas verbas iriam
ser desembolsadas para único benefício dos 83 000 residentes que viviam em
zonas «exclusivamente» montanhosas ou «rurais». Desde 1990, um
departamento governamental em Bolzano, a capital provincial, tem-se
dedicado exclusivamente a instruir os residentes locais a como beneficiarem
da «Europa» e dos recursos europeus. Desde 1995 que a província também
mantém um gabinete em Bruxelas (partilhado com a vizinha província de
Trente e com a região do Tirol austríaco). O site oficial da Província de
Bolzano (disponível em italiano, alemão, inglês, francês e ladino, uma
variante do dialecto suíço romansch) é entusiasticamente eurófilo, tanto
quanto pode ser.
O resultado, no Sul do Tirol como em qualquer outro lado, foi que –
dispendioso ou não – integrar o continente «de baixo para cima», como os
seus defensores insistiram, parece ter resultado. Quando o «Conselho
(posteriormente Assembleia) para as Regiões Europeias» foi lançado em 1985
já incluía 107 regiões-membros, com muitas mais para entrar. Uma certa
espécie de Europa unida estava de facto a tornar-se visível. Ao regionalismo,
outrora assunto de uma mão-cheia de linguistas ou folcloristas locais
reincidentes, era agora oferecida uma identidade «subnacional» alternativa:
substituindo a própria nação e tanto mais legítima quanto vinha com o
imprimatur da aprovação oficial de Bruxelas e até – apesar de com nítido
menor entusiasmo – igualmente das capitais nacionais.
Os habitantes desta cada vez mais parcelada Comunidade, cujos cidadãos
agora professavam múltiplas alianças eleitorais de variadas ressonâncias
culturais e significado diário, estavam talvez menos inequivocamente
«italianos» ou «britânicos» ou «espanhóis» do que em décadas passadas, mas
nem por isso se sentiam necessariamente mais «europeus», apesar da
constante proliferação de rótulos «europeus» e eleições e instituições. A
proliferação exuberante de organismos, media, instituições, representantes e
fundos trouxe muitos benefícios mas ganhou escassa afectividade. Uma razão
era talvez a própria abundância de entidades oficiais para distribuir e
supervisionar a generosidade europeia: a já complexa máquina do moderno
governo do Estado, os seus ministérios e comissões e direcções, estava agora
duplicada e até triplicada a partir de cima (Bruxelas) e de baixo (a província
ou região).
O resultado foi não só a burocracia a uma escala sem precedentes, mas
também a corrupção, induzida e encorajada pelo imenso volume de fundos
disponível, muitos requerendo o exagero e até a invenção de necessidades
locais e, assim, incentivando o tipo de abusos venais locais que passavam
desapercebidos aos administradores da Comunidade em Bruxelas, mas que
corriam o risco de desacreditar a sua iniciativa mesmo aos olhos dos seus
beneficiários. Entre a fama de criar políticas por funcionários públicos
distantes e não eleitos, e os boatos fundamentados de intercâmbio político e
aproveitamento, durante estes anos a «Europa» não foi bem servida pelas suas
próprias realizações.
Os defeitos conhecidos das políticas locais – clientelismo, corrupção,
manipulação – que se julgava que os Estados mais bem governados tinham
ultrapassado, voltavam agora à superfície à escala continental. A
responsabilidade pública pelos ocasionais «euro-escândalos» era
prudentemente transferida pelos políticos nacionais para os ombros de uma
classe invisível de «eurocratas» não eleitos, cuja má fama não acarretava
nenhum custo político. Entretanto, o crescente orçamento era defendido pelos
seus destinatários e promotores em nome da «harmonização» entre nações ou
legítima compensação (e alimentada pelos fundos aparentemente inesgotáveis
da Comunidade).
A «Europa», em resumo, estava em vias de representar um «risco moral»,
como os seus críticos mais acerbos, especialmente na Grã-Bretanha,
prazenteira e insistentemente afirmavam. O esforço de décadas para superar a
desunião continental através de medidas puramente técnicas estava a parecer
nitidamente político ao mesmo tempo que lhe faltava a legitimidade redentora
de um projecto político tradicional acompanhado por uma classe eleita de
políticos conhecidos. Mesmo que a «Europa» tivesse um objectivo distintivo,
a sua estratégia económica ainda se fundava nos cálculos e ambições dos anos
50. Quanto às suas políticas, o tom confiante, intervencionista, das
declarações formais da Comissão Europeia – e a autoridade e os livros de
cheques abertos com que os peritos europeus surgiram em regiões distantes –
sugeriam um estilo de governação firmemente enraizado no apogeu social-
democrata do início dos anos 60.
Apesar de todos os seus esforços louváveis para ultrapassar as
imperfeições dos cálculos políticos nacionais, os homens e as mulheres que
estavam a construir a «Europa» nos anos 70 e 80 eram ainda curiosamente
provincianos. A sua maior realização transnacional da época, o Acordo de
Schengen, assinado em Junho de 1985, é reveladoramente sintomática neste
aspecto. Nos termos deste acordo a França, a Alemanha Ocidental e os países
do Benelux concordaram em abrir as suas fronteiras comuns e inaugurar um
regime de controlo de passaportes partilhado. A partir de então seria fácil
atravessar da Alemanha para França, assim como há já muito tempo não havia
qualquer problema em ir de, digamos, da Bélgica para a Holanda.
Mas os signatários de Schengen tinham em troca de se comprometer a
garantir os mais rigorosos regimes de vistos e alfândegas entre si e os países
não participantes: se os Franceses, por exemplo, fossem abrir as suas
fronteiras a quem quer que viesse da Alemanha, tinham de ter a certeza de
que os próprios Alemães tinham aplicado os critérios mais rigorosos nos seus
pontos de entrada. Ao abrir as fronteiras internas entre alguns Estados-
membros da CEE, portanto, o Acordo reforçava resolutamente as fronteiras
externas que os separavam dos estranhos. Os europeus civilizados podiam de
facto ultrapassar fronteiras – mas os «bárbaros» iriam ser resolutamente
mantidos do outro lado(28).
-
(6) No entanto, a junta em si não escapou ao castigo. Onze dos seus dirigentes foram julgados e
condenados em Agosto de 1975. Foram condenados à morte, sendo mais tarde a pena comutada para
prisão perpétua. Papadopoulos morreu na cadeia em 1999, sem se arrepender até ao fim. O brigadeiro-
general Ioannidis foi condenado num posterior julgamento pelo seu papel na repressão da revolta do
Politécnico. Na altura em que escrevo ainda está preso.

(7) Maurras morreu em 1952 com 84 anos. O próprio Salazar, filho de um regente agrícola, nasceu
no Vimieiro, a 28 de Abril de 1889, só uma semana depois de Hitler. Para um homem ainda a governar
um Estado europeu em finais da década de 60, estava invulgarmente enraizado nos mores do século
anterior – a sua mãe nasceu em 1846.

(8) Em 1973, a Europa Ocidental era responsável simultaneamente por dois terços das importações e
das exportações.

(9) Os jovens oficiais puritanos e os seus aliados da ala esquerda não estavam, porém, muito
satisfeitos com a subsequente efusão do que consideravam literatura e filmes pornográficos, porque
Portugal estava a compensar cinquenta anos de opressão cultural. Tentaram mesmo em determinada
altura proibir que se tocasse fados, a tradicional canção popular portuguesa; segundo eles, encorajava a
«amargura e o fatalismo» e era portanto inimigo dos seus objectivos de esclarecimento e progresso
social.

(10) Ainda em 1963 o dirigente espanhol não tinha hesitado em executar um comunista capturado,
Juan Grimau, num desafio à crítica internacional generalizada.

(11) Uma consequência irónica das liberdades cuidadosamente calibradas que Franco concedeu aos
activistas universitários na última década foi que os estudantes espanhóis da geração de sessenta
exageraram em retrospectiva o papel que desempenharam na subsequente luta do seu país pela
democracia.

(12) Ver capítulo 7. Como resultado, dirigentes católicos, normalmente com alguma passado
franquista, conseguiram um protagonismo activo na transição para a democracia, servindo de «ponte»
entre radicais e conservadores.

(13) Um mês antes de ser declarado legal, o PCE foi anfitrião em Madrid de um encontro público
dos partidos eurocomunistas da Europa Ocidental.

(14) A distribuição sociogeográfica da votação de 1977 era estranhamente parecida à das eleições de
1936 – a política cultural do país tinha de facto ficado suspensa durante quatro décadas.

(15) O Artigo 151.o da Constituição oferecia «autogovernação» a qualquer região que a pedisse.

(16) Iria haver mais duas conspirações contra o rei e o parlamento, em 1982 e 1985, ambas
facilmente frustradas.

(17) Em meados dos anos 80 os dados oficiais do desemprego sugeriam que mais de um em cinco da
população em idade de trabalhar estava sem trabalho. O número real estaria talvez mais próximo de um
em quatro. Num país a que ainda faltava uma segurança social em pleno funcionamento e onde poucas
pessoas tinham poupanças privadas, estes números indicam privações generalizadas.
(18) Em 1982 o PSOE fez campanha com o slogan «OTAN, de entrada no!» Quatro anos depois os
seus cartazes diziam «OTAN, de entrada si!»

(19) O tradicional programa político socialista de nacionalização dificilmente se aplicava à Espanha,


onde o Estado autoritário já era dono de grande parte da economia oficial.

(20) A nova Constituição da Espanha de 1978, cuja intenção era sobretudo a reconciliação dos pólos
antagónicos da história espanhola – Esquerda/Direita; Igreja/anticlericais; centro/periferia – era
manifestamente omissa sobre o regime que substituía.

(21) Os seus filmes – mais recentemente La mala educación (2004) – eram também bastante
intencionalmente anticlericais; talvez o único aspecto em que Almodóvar se mantém consistentemente
fiel a uma velha tradição de dissidência cultural espanhola.

(22) Victor Perez-Diaz, Spain at the Crossroads. Civil Society, Politics and the Rule of Law
(Cambridge, M.A., 1999), p. 65.

(23) Em ambas as ocasiões a capital, Oslo, votou fortemente a favor. Mas a decisão foi tomada por
uma coligação antieuropeia de radicais, ambientalistas, «nacionalistas linguistas» e agricultores das
províncias costeiras e do Norte, juntamente com pescadores veementemente contrários à restrição pela
CEE da zona exclusiva de pesca para apenas 12 milhas. A entrada da Dinamarca também trouxe a
Gronelândia, na altura ainda governada de Copenhaga. Mas depois de a Gronelândia ter atingido a
autodeterminação em 1979, foi convocado um referendo no qual o país votou a saída da CEE, o único
Estado-membro a fazê-lo.

(24) Isto foi no entanto compensado pelas novas oportunidades de investimento para o sector
privado: a proporção de acções propriedade de estrangeiros nas companhias espanholas subiu 374% nos
anos de 1983 a 1992.

(25) Mais do que uma voz influente se levantou em Bruxelas solicitando à Comissão Europeia que
aceitasse o repto…

(26) Evidentemente, a Política Agrícola Comum, a outra importante sobrecarga do orçamento da


União, havia muito que tivera o efeito de exacerbar as mesmas distorções regionais que os Fundos de
Coesão e outros deviam agora eliminar…

(27) Países mais ricos eram habitualmente menos contemplados por Bruxelas e mantinham um
controlo mais apertado dos seus assuntos. Em França, apesar da «descentralização» protegida por leis
promulgadas durante os anos 80, as rédeas do poder orçamental mantinham-se firmemente em mãos
parisienses. Como resultado, regiões prósperas da França seguiram a tendência internacional e
beneficiaram das suas ligações à Comunidade, mas as regiões mais pobres mantiveram-se dependentes,
acima de tudo, da ajuda do Estado.

(28) A «Zona Schengen» foi entretanto aumentada para incluir outros Estados-membros da UE, mas
o Reino Unido manteve-se de fora e a França, entre outros participantes, reservou-se o direito de voltar
a impor o controlo de fronteiras por razões de segurança.
XVII

O Novo Realismo
«Não existe nada a que se possa chamar Sociedade. Há indivíduos homens e
mulheres e há famílias.»
Margaret Thatcher
«Os Franceses estão a começar a perceber que são os negócios que criam
riqueza, determinam o nosso nível de vida e estabelecem o nosso lugar nas
categorias globais.»
François Mitterrand
«No fim da experiência Mitterrand, a Esquerda francesa parecia mais vazia de
ideias, esperanças e apoio do que alguma vez em toda a sua história.»
Donald Sassoon
Todas as revoluções politicamente significativas são antecipadas por uma
transformação da paisagem intelectual. As convulsões europeias dos anos 80
não foram excepção. A crise económica do início dos anos 70 enfraqueceu o
optimismo das décadas do pós-guerra na Europa Ocidental, fracturando os
partidos políticos convencionais e colocando temas pouco familiares no
centro do debate público. As discussões políticas de ambos os lados da Guerra
Fria estavam decisivamente a cortar com décadas de hábitos mentais
arreigados – e, com inesperada velocidade, a formar outros novos. Para o
melhor e para o pior, estava a nascer um novo realismo.
A primeira vítima desta mudança de estado de espírito foi o consenso que
até aí envolvera o Estado do pós-guerra, juntamente com as economias neo-
keynesianas que alimentavam as suas ameias intelectuais. Em finais dos anos
70, o Estado-providência europeu começava a contar os custos do seu próprio
êxito. A geração do baby-boom a seguir à guerra estava a entrar na meia-idade
e os estatísticos governamentais estavam já a chamar a atenção para os custos
de a sustentar na reforma – um problema que estava mais perto do horizonte
orçamental graças à redução generalizada da idade da reforma. Dos homens
da Alemanha Ocidental com a idade de 60-64 anos, por exemplo, 72%
estavam a trabalhar a tempo inteiro em 1960; vinte anos depois, só 44% dos
homens com esta idade estavam ainda empregados. Na Holanda a queda foi
de 81% para 58%.
No espaço de poucos anos, o maior grupo geracional da história da Europa
deixaria de contribuir com impostos para o tesouro nacional e começaria a
extrair grandes quantias – quer sob a forma de pensões asseguradas pelo
Estado, quer indirectamente, mas com impacto comparável, com uma procura
crescente de serviços médicos e sociais públicos. Além disso, sendo também a
geração mais bem alimentada de sempre, quase de certeza viveriam mais
tempo. E a esta preocupação juntava-se agora o crescente custo do pagamento
dos subsídios de desemprego, em 1980 uma importante consideração
orçamental em todos os Estados da Europa Ocidental.
Estas ansiedades generalizadas não eram infundadas. Os Estados-
providência de depois da guerra assentavam em dois pressupostos implícitos:
que o crescimento económico e a criação de emprego (e, assim, o rendimento
governamental) se manteriam nos níveis elevados dos anos 50 e 60 e que as
taxas de natalidade se manteriam muito acima do nível de substituição,
garantindo uma nova leva de contribuintes para pagarem as reformas dos pais
– e dos avós. Ambos os pressupostos estavam agora postos em questão, mas o
erro de cálculo demográfico era o mais dramático dos dois. No início dos
anos 80, na Europa Ocidental, a proporção de substituição da população de
2,1 crianças por mulher só era atingida na Grécia e na Irlanda. Na Alemanha
Ocidental ficava em 1,4. Na Itália em breve iria decair ainda mais: enquanto
que em 1950, 26,1% dos Italianos – mais de um em quatro – tinha menos de
14 anos, em 1980 este número ficava nos 20% ou um em cinco. Em 1990 iria
cair para 15%, aproximando-se de um em sete(1).
Na próspera Europa Ocidental, então, parecia que dentro de duas décadas
não haveria gente suficiente para pagar as contas – e a própria prosperidade
parecia ser a culpada, juntamente com a contracepção segura e a cada vez
maior quantidade de mulheres a trabalharem fora de casa(2). O resultado
foram encargos cada vez mais elevados para os que podiam pagar. Já em
alguns sítios o custo da provisão de pensões e segurança nacional
(nomeadamente em França) pesava fortemente sobre os empregadores – um
facto grave numa época de elevado desemprego endémico. Mas os encargos
directos do tesouro nacional eram uma preocupação mais imediata: como
percentagem do PIB, a dívida governamental em meados dos anos 80 estava a
atingir níveis historicamente elevados – 85% no caso italiano. Na Suécia, em
1977 um terço do produto interno era absorvido pelos gastos sociais, uma
carga orçamental que só podia ser satisfeita com défices ou então aumentando
os impostos ao próprio eleitorado – trabalhadores por conta de outrem,
funcionários públicos e profissionais especializados – de quem até aí o
consenso social-democrata tinha dependido.
A política pública desde os anos 30 assentava num consenso «keynesiano»
amplamente incontestado. O que tinha como certo que o planeamento
económico, o financiamento do défice e o pleno emprego eram em si mesmos
desejáveis e mutuamente sustentáveis. Os seus críticos apresentavam duas
argumentações. A primeira, muito simplesmente, era que a manutenção de
serviços sociais e provisões a que os europeus ocidentais se tinham habituado
não era sustentável. A segunda, apresentada com particular premência na Grã-
Bretanha – onde a economia nacional cambaleara de crise para crise durante a
maior parte das décadas do pós-guerra – era que, sustentável ou não, o Estado
intervencionista era um impedimento ao crescimento económico.
O Estado, insistiam estes críticos, devia ser afastado para tão longe quanto
possível do mercado de bens e serviços. Não devia possuir meios de
produção, não devia partilhar recursos, não devia exercer ou encorajar
monopólios e não devia estabelecer preços ou salários. Na opinião destes
«neoliberais», a maior parte dos serviços presentemente fornecidos pelo
Estado – segurança, habitação, pensões, saúde e educação – podiam ser mais
eficientemente fornecidos no sector privado, com os cidadãos a pagarem por
eles de um rendimento já não (mal) dirigido para os recursos públicos. Na
opinião do principal defensor do liberalismo do mercado livre, o economista
austríaco Friedrich Hayek, até os Estados mais bem governados eram
incapazes de processar dados eficazmente e traduzi-los em boa política: no
próprio acto de trazer a lume informação política, distorcem-na.
Estas não eram ideias novas. Eram a mezinha básica de uma anterior
geração de liberais pré-keynesianos, educados nas doutrinas do mercado livre
da economia neoclássica. Em épocas mais recentes eram familiares a
especialistas da obra de Hayek e do seu discípulo americano Milton
Friedman. Mas com a depressão dos anos 30, com o aumento da procura dos
anos 50 e 60, tais opiniões tinham sido cronicamente afastadas (pelo menos
na Europa) como politicamente míopes e economicamente anacrónicas.
Desde 1973, no entanto, os teóricos do mercado livre tinham ressurgido,
vociferantes e confiantes, para culparem o «grande governo» pela recessão
económica endémica e consequentes angústias e pela presença opressiva dos
impostos e planeamento que impunha às energias e iniciativas nacionais. Em
muitos sítios esta estratégia retórica era bastante sedutora para os jovens
eleitores, sem experiência pessoal das consequências destrutivas de tais
opiniões na última vez em que tinham ganho ascendente intelectual, meio
século antes. Mas só na Grã-Bretanha os discípulos políticos de Hayek e
Friedman conseguiram apoderar-se do controlo da política pública e infligir
uma transformação radical na cultura política do país.
É mais do que um pouco irónico que, entre todos os países, isto tenha
acontecido na Grã-Bretanha, pois a economia do Reino Unido, apesar de
intensamente controlada, era talvez a menos «planeada» de toda a Europa.
Havia constantes manipulações governamentais dos mecanismos de preços e
«sinais» fiscais, mas o único aspecto da vida económica britânica
determinado ideologicamente eram as nacionalizações iniciadas pelo governo
trabalhista após 1945. E mesmo que a questão da «propriedade pelo Estado
dos meios de produção, distribuição e troca» (Cláusula IV da Constituição de
1918 do Partido Trabalhista) tivesse sido mantida como política do Partido,
poucos dos dirigentes trabalhistas faziam mais do que manifestar-lhe falso
apoio, quando muito.
A essência do Estado-providência britânico não consistia no
«colectivismo» económico, mas nas universalizadas instituições sociais do
país, firmemente ancoradas no reformismo do início do século XX dos
contemporâneos liberais de Keynes. O que importava à maior parte dos
eleitores britânicos tanto da Esquerda como da Direita não era o planeamento
económico ou a propriedade do Estado, mas a saúde gratuita, educação
pública gratuita e transportes públicos subsidiados. Estas facilidades não eram
muito boas – o custo de administrar um Estado-providência na Grã-Bretanha
era de facto mais baixo que em qualquer outro lado, graças aos serviços
pouco subsidiados, pensões públicas inadequadas e fraca oferta habitacional –
mas eram amplamente tidas como um direito. Por muito intensamente
criticadas que fossem pelos críticos neoliberais por serem ineficazes,
continuavam a ser politicamente intocáveis.
O moderno Partido Conservador, de Winston Churchill a Edward Heath,
tinha abraçado o «contrato social» quase tão entusiasticamente como os
«socialistas» keynesianos do Partido Trabalhista e durante muitos anos tinha
mantido os pés firmemente assentes em terreno intermédio (afinal, foi
Churchill que disse em Março de 1943 que «não há melhor investimento para
qualquer comunidade do que dar leite a bebés»). Quando, em 1970, Edward
Heath juntou um grupo de defensores do mercado livre em Selsdon Park,
perto de Londres, para discutirem estratégias económicas para um futuro
governo conservador, o seu breve e ambivalente namoro com as propostas
bastante moderadas deles desencadeou uma tempestade de condenação
irónica. Acusado de procurar regressar ao primitivismo pré-histórico da selva
económica, o «homem de Selsdon», fez uma retirada apressada.
Se o consenso político britânico ruiu na década seguinte, não foi devido a
confrontos ideológicos, mas como consequência da incapacidade sistemática
dos governos de todas as facções em identificar e impor uma estratégia
económica bem sucedida. Começando com a opinião de que as aflições
económicas britânicas eram resultado de um subinvestimento crónico,
ineficácia administrativa e disputas laborais endémicas sobre salários e
atribuição de tarefas, tanto os governos trabalhistas como os conservadores
tentaram substituir a anarquia das relações industriais britânicas por um
consenso planeado em moldes austro-escandinavos ou alemães – uma
«Política de Preços e Rendimentos» como era conhecida na Grã-Bretanha,
com característico minimalismo empírico.
Não conseguiram. O Partido Trabalhista foi incapaz de impor a ordem
industrial porque os seus tesoureiros nos sindicatos da indústria preferiram
confrontos estilo século XIX no local de trabalho – que tinham boas hipóteses
de ganhar – aos contratos negociados assinados em Downing Street que lhes
iriam atar as mãos durante muitos anos. Os Conservadores, nomeadamente os
governos de Edward Heath nos anos de 1970 a 1974, ainda tiveram menos
êxito, em grande parte graças à bem fundada e historicamente arreigada
desconfiança em certos sectores da classe operária britânica – os mineiros do
carvão principalmente – por qualquer compromisso com os ministérios tory.
Assim, quando Heath sugeriu em 1973 fechar algumas minas de carvão pouco
económicas e tentou impor constrangimentos legais ao poder dos sindicatos
de começarem disputas laborais (uma coisa que o Partido Trabalhista tinha
sido o primeiro a propor e depois abandonado, uns anos antes) o seu governo
foi bloqueado por uma onda de greves. Quando convocou eleições para
decidir, como disse, «quem governa o país», perdeu por pouco para Harold
Wilson, que prudentemente declinou defenfê-lo.
Só sob o governo trabalhista do sucessor de Wilson, James Callaghan, de
1976 a 1979, começou a emergir uma nova política. Levado pelo desespero e
pelas condições de empréstimo do FMI, Callaghan e o seu ministro das
Finanças (o temível Denis Healey) deram início a uma retirada da panaceia
central das práticas governamentais do pós-guerra. Iniciaram um programa de
reestruturação que reconhecia a inevitabilidade de um certo nível de
desemprego; reduziram as transferências de verbas sociais e os custos laborais
protegendo os trabalhadores especializados, ao mesmo tempo que permitiam
a emergência de uma periferia desfavorecida de trabalhadores a meio tempo,
desprotegidos, não sindicalizados, e prepararam-se para controlar e reduzir a
inflação e as despesas do governo mesmo a custo de dificuldades económicas
e crescimento mais lento.
Nenhum destes objectivos foi publicamente admitido. O governo
trabalhista manteve até ao fim que estava a respeitar os seus valores principais
e a defender as instituições do Estado-providência, mesmo quando inaugurou
uma cuidadosamente planeada ruptura, procurando conseguir, sub-
repticiamente, os tipos de reformas que os seus antecessores tinham sido
incapazes de legislar abertamente. A estratégia não funcionou: os Trabalhistas
só conseguiram alienar os seus próprios apoiantes sem serem capazes de obter
qualquer crédito pelas suas realizações. Em Agosto de 1977, graças em parte
aos profundos cortes nos gastos públicos do governo trabalhista, o
desemprego no Reino Unido tinha ultrapassado 1,6 milhões e continuava a
subir. No ano seguinte, no «Inverno do Descontentamento» britânico de
1978/79, os principais sindicatos, encolerizados, empreenderam uma série de
greves concertadas contra «o seu próprio» governo: o lixo não era recolhido,
os mortos foram deixados insepultos(3).
O primeiro-ministro, James Callaghan, parecia desafasado da realidade em
resposta à pergunta de um jornalista sobre a crescente intranquilidade
industrial, e anunciou que não havia motivos para preocupações, dando com
isso motivo para um famoso cabeçalho num jornal – «Crise? Que crise?» –
que o ajudou a perder as eleições gerais que foi obrigado a convocar na
Primavera seguinte. É algo irónico que os Trabalhistas fossem forçados a
disputar as históricas eleições de 1979 sob a pretensão de não terem criado
uma crise social com a sua radical saída da convenção económica – quando
era exactamente isto que tinham feito – enquanto o Partido Conservador era
empurrado de regresso ao poder sob a enérgica liderança de uma mulher que
insistia em que era necessário esse mesmo tratamento radical para a depressão
britânica.
Margaret Thatcher não era, a avaliar pelas aparências, uma candidata
provável para o papel revolucionário que iria representar. Nascida em
Grantham, uma cidade provinciana apática no Lincolnshire, era filha de um
honesto casal metodista que tinha uma mercearia. Fora sempre conservadora:
o pai fazia parte da assembleia municipal como conservador; a jovem
Margaret Roberts (como se chamava então) ganhou uma bolsa de estudo para
Oxford – onde estudou Química – e ascendeu a Presidente da Sociedade
Conservadora da Universidade. Em 1950, com 25 anos de idade, era
candidata conservadora (sem êxito) nas eleições gerais, a mais jovem
candidata do país. Química e depois jurista fiscal por profissão, entrou pela
primeira vez para o Parlamento em 1959, conseguindo um lugar no
solidamente conservador município de Finchley que iria continuar a
representar até entrar na Câmara dos Lordes em 1992.
Até superar com êxito personalidades conservadoras muito mais antigas
para ganhar a liderança do seu partido em 1975, Margaret Thatcher era mais
conhecida na Grã-Bretanha como a ministra da Educação do governo
conservador de Heath que, para poder corresponder aos objectivos de cortes
orçamentais, aboliu o fornecimento de leite grátis nas escolas britânicas: uma
decisão (tomada com relutância) que levou à alcunha de «Maggie Thatcher,
ladra de leite» e deu o primeiro sinal da sua futura trajectória. No entanto, esta
imagem pública desfavorável não se revelou impeditiva do avanço de
Thatcher – a sua disposição para agradar e enfrentar a impopularidade não só
não a prejudicou entre os colegas como pode até ter feito parte do seu
encanto.
E tinha inquestionavelmente encanto. Na verdade, um número
surpreendente de estadistas experientes na Europa e nos Estados Unidos
confessou, ainda que em privado, que achava Margaret Thatcher bastante
sexy. François Mitterrand, que sabia qualquer coisa a este respeito, uma vez
descreveu-a como tendo «os olhos de Calígula mas a boca de Marilyn
Monroe». Podia tiranizar e intimidar com menos piedade do que qualquer
político britânico desde Churchill, mas também seduzia. De 1979 a 1990,
Margaret Thatcher tiranizou, intimidou – e seduziu – o eleitorado britânico
numa revolução política.
O «thatcherismo» significou várias coisas: redução de impostos, mercado
livre, livre empreendimento, privatização de indústrias e serviços, os «valores
vitorianos», patriotismo, o «indivíduo». Algumas delas – as políticas
económicas – eram uma extensão das propostas já a circular tanto em círculos
conservadores como trabalhistas. Outras, nomeadamente os temas «morais»,
eram mais populares entre os apoiantes do Partido Conservador nos círculos
rurais do que entre o eleitorado em geral. Mas chegaram na ressaca de uma
reacção contra o liberalismo dos anos 60 e agradavam a muitos dos
admiradores de Thatcher das classes média e média-baixa das classes
trabalhadoras: homens e mulheres que nunca se tinham sentido realmente
confortáveis na companhia da intelligentsia progressista que dominara os
assuntos públicos durante esses anos.
Mas o que o thatcherismo significava mais do que qualquer outra coisa era
a «palmada da governação firme». Em finais dos anos 70 havia muito debate
ansioso sobre a suposta «ingovernabilidade» da Grã-Bretanha, a percepção
amplamente partilhada de que a classe política tinha perdido o controlo, não
só da política económica como do local de trabalho e até das ruas. O Partido
Trabalhista, tradicionalmente vulnerável à acusação de que não se podia
contar com ele para conduzir a economia, era agora alvo da acusação, no
seguimento do «Inverno do Descontentamento», de que nem sequer
conseguia governar o Estado. Na sua campanha eleitoral de 1979, os Tories
fizeram grande alarde não só da necessidade do rigor económico e correcta
administração do dinheiro, mas também do manifesto anseio da nação por
governantes fortes, confiantes.
A primeira vitória eleitoral de Margaret Thatcher não foi especialmente
extraordinária por padrões históricos. Na verdade, sob a sua liderança o
Partido Conservador nunca ganhou de facto muitos votos. Nem ganhou tanto
as eleições, antes viu os trabalhistas perdê-las; muitos votantes trabalhistas a
mudarem para candidatos liberais ou então pura e simplesmente abstendo-se.
A esta luz, os propósitos radicais de Margaret Thatcher e a determinação para
os cumprir podem parecer estar fora de todas as proporções do seu mandato
nacional, uma inesperada e até arriscada ruptura com a muito antiga tradição
britânica de governar tão próximo do centro quanto possível.
Mas parece claro, em retrospectiva, que era isto exactamente que
explicava o êxito de Margaret Thatcher. A sua recusa em se deixar comover,
mesmo quando a sua política monetária estava aparentemente a falhar (aos
conservadores que em Outubro de 1980 lhe imploraram que mudasse de
orientação e invertesse a política, respondeu: «Voltem vocês se quiserem, a
senhora não é de viravoltas»); a sua adopção de bom grado da descrição que
dela fizeram os Soviéticos como sendo a «dama de ferro»; o seu prazer
evidente em enfrentar e derrotar um grupo de opositores, da junta militar da
Argentina na Guerra das Falkands ao dirigente do sindicato dos mineiros,
Arthur Scargill; a mala de mão agitada agressivamente para os governantes da
Comunidade Europeia reunidos em assembleia enquanto exigia «o nosso
dinheiro de volta» – tudo isto sugere uma clara avaliação de que o seu
principal trunfo político era a própria obstinação, a recusa tenaz em transigir
que tanto escandalizava os seus críticos. Como todas as sondagens sugeriam,
mesmo os que não se interessavam pela política de Thatcher muitas vezes
mostravam uma admiração relutante pela mulher em si. Os Britânicos
estavam mais uma vez a ser governados.
De facto, e apesar da sua conversa sobre o indivíduo e o mercado,
Margaret Thatcher presidia a um renascimento notável e um tanto
desconcertante do Estado britânico. Na administração, era uma centralizadora
instintiva. Para se certificar de que o seu mandato se estendia por toda a
nação, reduziu os poderes e os orçamentos dos governos locais (a Lei da
Administração Local de 1986 desmantelou as autoridades metropolitanas
britânicas, trazendo os seus poderes de novo para Londres, exactamente
quando o resto da Europa estava empenhada numa descentralização do poder
em larga escala). A direcção da política educativa e o planeamento económico
regional reverteram para os departamentos do governo central sob controlo
político directo, enquanto os próprios ministros viram a sua tradicional
liberdade de manobra cada vez mais restringida por um primeiro-ministro que
dependia muito mais de um pequeno círculo de amigos e conselheiros do que
do tradicional corpo de elite de funcionários públicos superiores.
Margaret Thatcher instintivamente (e com razão) suspeitava que estes
últimos, tal como os seus pares nas instituições educativas e judiciais,
preferiam o velho paternalismo subsidiado pelo Estado. Nas complexas
convenções de um sistema político ciente de que a classe social desempenha
um papel, Margaret Thatcher – uma arrivista da classe média baixa com um
fraquinho pelos empresários nouveau riche – não era muito querida pela
venerável elite governativa e ela retorquia o sentimento com gosto. Os Tories
mais velhos sentiam-se chocados com o seu desdém desapiedado pela
tradição ou hábitos antigos: no auge da mania das privatizações, o anterior
primeiro-ministro Harold Macmillan acusou-a de vender «a prata da família».
O seu antecessor Edward Heath, que tinha uma vez descrito iradamente os
empreendimentos bem publicitados de um empresário britânico corrupto
como sendo «a inaceitável face do capitalismo», detestava tanto Thatcher
como as suas políticas. Ela não se importava.
A revolução de Thatcher fortaleceu o Estado, cultivou o mercado – e
começou a desatar os laços que outrora os ligara. Destruiu para sempre a
influência pública exercida pelos sindicatos britânicos, fazendo aprovar leis
que limitavam a capacidade dos dirigentes sindicais para organizarem greves
e depois fazendo-as cumprir nos tribunais. Num confronto altamente
simbólico em 1984-85, opondo o Estado armado a uma comunidade
condenada de proletários industriais, esmagou um esforço violento e
emocional do Sindicato Nacional dos Mineiros para impedir a política
governamental de fechar as minas ineficientes e acabar com os subsídios à
indústria do carvão.
Os mineiros foram mal conduzidos, a sua era causa desesperada, e a greve
prolongada mais por desespero do que por cálculo. Mas o facto de Margaret
Thatcher ter ganho uma batalha que Edward Heath tinha perdido (e que os
sucessivos dirigentes trabalhistas tinham evitado) fortaleceu imensamente a
sua influência – tal como o fez uma tentativa mal sucedida do IRA Provisório
para a assassinar em plenas greves. Thatcher, tal como todos os melhores
revolucionários, tinha sorte com os seus inimigos. Permitiam-lhe afirmar que
só ela falava pela arraia miúda frustrada, excessivamente controlada, que ela
estava a libertar de décadas de domínio por interesses enraizados e pelos
parasitas beneficiários subsidiados pela generosidade dos contribuintes.
Não há dúvida de que a economia britânica melhorou de facto nos anos de
Thatcher, depois de um declínio inicial de 1979-81. Graças a uma redução de
firmas ineficientes, maior concorrência e os sindicatos manietados, a
produtividade e os lucros subiram bruscamente. O Tesouro foi reabastecido
com os lucros da venda de património nacional. Isto não fazia parte do
programa original de Thatcher em 1979, nem a privatização em si era uma
ideia ideologicamente marcada – fora afinal o Partido Trabalhista que vendera
a participação britânica na British Petroleum em 1976 (por ordem do FMI).
Mas em 1983, o benefício político, bem como o financeiro de liquidar os bens
patrimoniais do Estado ou administrados pelo Estado fez com que a primeiro-
ministro inaugurasse um leilão nacional de uma década, «libertando» tanto os
produtores como os consumidores.
Tudo, ou quase tudo, foi colocado no bloco de privatizações. Na primeira
fase foram as pequenas firmas e fábricas, principalmente as de manufactura,
nas quais o Estado detinha uma participação parcial ou de controlo. A estas
seguiram-se os até então monopólios «naturais», como a rede de
telecomunicações, serviços de energia e transporte aéreo, começando com a
venda da British Telecom em 1984. O governo também vendeu grande parte
do parque habitacional público edificado no pós-guerra: primeiro aos seus
actuais ocupantes, mas no fim a todos. Entre 1984 e 1991, um terço do
património privatizado mundial (em valor) dizia respeito unicamente às
vendas do Reino Unido.
Apesar deste aparente desmantelar do sector público, a percentagem do
PIB britânico absorvido pela despesa pública manteve-se praticamente igual
em 1988 (41,7%) à de dez anos antes (42,5%), apesar da promessa de
Thatcher de «tirar o Estado das costas das pessoas». Isto porque o governo
conservador teve de pagar quantias nunca vistas em subsídios de desemprego.
O «escandalosamente» elevado número de 1,6 milhões de desempregados,
que tanto tinha prejudicado o governo de Callaghan em 1977, atingira os 3,25
milhões em 1985 e manteve-se um dos mais elevados da Europa durante o
resto do tempo do governo Thatcher.
Muitos dos que perderam empregos nas indústrias ineficientes (e
anteriormente subsidiadas pelo Estado) como o aço, minas de carvão, têxteis e
construção naval, nunca mais voltaram a encontrar trabalho, passando a ser
dependentes do Estado para toda a vida, em tudo. Se os seus antigos patrões
em alguns casos continuaram em actividade (nomeadamente no aço),
tornando-se empresas privadas lucrativas, era menos devido ao milagre da
propriedade privada do que os governos de Margaret Thatcher os terem
aliviado dos elevados custos laborais fixos, «socializando» a despesa com os
trabalhadores supérfluos na forma de desemprego subsidiado pelo Estado.
Havia qualquer coisa a dizer a favor da privatização de algumas indústrias
e serviços públicos. Durante muitos anos os activos económicos vitais
tinham-se mantido no sector público, com pouca atenção prestada ao
investimento ou à modernização. Tinham sido privados de liquidez, sendo a
sua actuação protegida da pressão da concorrência e dos consumidores, os
seus administradores limitados pela inércia burocrática e pela interferência
política(4). Graças a Thatcher surgiu na Grã-Bretanha um mercado muito
alargado de bens, serviços e, por fim, de mão-de-obra. Havia mais escolha e
(apesar de levar mais tempo e continuar imperfeita) mais concorrência de
preços. Quando o seu sucessor, John Major, manteve a Grã-Bretanha fora do
«capítulo social» do Tratado da União Europeia, Jacques Delors acusou-o de
ter transformado o Reino Unido num «paraíso para o investimento
estrangeiro»: uma acusação de que os partidários de Thatcher se podiam
considerar alegre e justificadamente culpados.
Como economia, então, a Grã-Bretanha de Thatcher era um lugar mais
eficiente. Mas como sociedade sofreu uma dissolução com consequências
catastróficas a longo prazo. Ao desprezar e desmantelar todos os recursos
detidos colectivamente, ao insistir de forma veemente numa ética
individualista que ignorava quaisquer bens que não fossem quantificáveis,
Margaret Thatcher prejudicou seriamente o tecido da vida pública britânica.
Os cidadãos foram transformados em accionistas, ou «participantes», a sua
relação uns com os outros e com a colectividade era medida em património e
pretensões mais do que em serviços ou obrigações. Com tudo, desde as
companhias de autocarros ao fornecimento eléctrico, nas mãos de companhias
privadas competitivas, o espaço público passou a ser um espaço de mercado.
Se – como afirmava Thatcher – não existe essa coisa de «Sociedade»,
então a seu tempo as pessoas tinham de perder o respeito pelos bens
socialmente definidos. E assim fizeram, quando a Grã-Bretanha do período
final de Thatcher começou a adquirir algumas das características menos
atractivas do modelo americano que a Dama de Ferro tanto admirava. Os
serviços que se mantiveram em mãos públicas estavam esgotados de recursos,
ao mesmo tempo que se acumulava uma riqueza significativa nos sectores
«emancipados» da economia – nomeadamente a City de Londres, onde os
banqueiros de investimento e os correctores beneficiaram grandemente com o
Big Bang de 1986, quando os mercados financeiros da Grã-Bretanha foram
liberalizados e abertos à concorrência internacional. Os espaços públicos
foram descurados. O pequeno crime e a delinquência subiram a par da
crescente percentagem de população enredada em permanente pobreza. A
riqueza privada era acompanhada, como tantas vezes, pela indigência
pública(5).
Mas havia limites ao alcance de Thatcher. O típico votante «thatcher» –
caricaturado como um agente imobiliário com trinta e tal anos, dos subúrbios
orientais de Londres, inculto mas bem remunerado, com bens materiais (casa,
carro, férias no estrangeiro, uma mão-cheia de acções em fundos de
investimento e um PPR) com que os seus pais só podiam ter sonhado –
poderia ter entrado no mundo do individualismo «thatcher». Mas ele e a
família estavam ainda totalmente dependentes do Estado para o fornecimento
dos serviços vitais: educação gratuita, saúde praticamente gratuita e
transportes subsidiados. Assim, quando Margaret Thatcher e o seu sucessor
John Major apenas sugeriram que poderiam privatizar o serviço nacional de
saúde ou cobrar propinas pela educação estatal, o apoio público evaporou-se –
precisamente entre esses sectores da população recentemente prósperos e
altamente vulneráveis que ao princípio se tinham sentido atraídos pelo
«thatcherismo».
Cinco anos após a partida de Thatcher, John Major conseguiu de facto
fazer aprovar as privatizações dos serviços ferroviários. Os conservadores
estavam encorajados com a perspectiva de mais lucros com a venda de
património público à propriedade privada; mas o seu principal motivo era a
necessidade de John Major ser visto a privatizar qualquer coisa – Thatcher
tinha nessa altura vendido quase tudo o resto e a privatização era só e
unicamente o programa do Partido Conservador. Mas a incompetência e
ilegalidade do processo e os desastres que se seguiram – culminando numa
série de trágicos acidentes de comboio manifestamente evitáveis – ajudaram a
provocar não só a derrota do governo conservador dois anos depois, como a
terminar um ciclo de privatizações e o retrospectivo descrédito das mais
extremas encarnações do próprio «thatcherismo».
Entre as principais vítimas de Margaret Thatcher encontrava-se o seu
próprio Partido Conservador. Quando a Dama de Ferro acabou com ele, o
Partido Tory – o partido «natural» de governo na Grã-Bretanha durante quase
um século – não tinha programa, não tinha dirigentes e, como parecia a
muitos, não tinha alma. Isto parece um juízo severo para se fazer de uma
mulher que levou o seu partido a três vitórias eleitorais sucessivas e que
governou praticamente sozinha durante quase doze anos. Mas essa é
precisamente a questão: Margaret Thatcher governou sozinha. Nas palavras
de Frederico, o Grande: «As pessoas dizem o que querem e eu faço o que
quero». Qualquer colega que não concordasse com ela em qualquer tema
insignificante e que portanto não era «um dos nossos», era atirado para a
obscuridade.
Grande parte dos tories contemporâneos de Thatcher, para não falar no
grupo de estadistas mais velhos do partido que ela pôs de lado assim que se
atreveu, era genuinamente conservadora, em muitos casos com idade
suficiente para se lembrarem das amargas divisões políticas dos anos de entre
guerras e cautelosos para não acordarem o demónio da luta de classes.
Thatcher era uma radical, concentrada na destruição e na inovação;
desprezava o compromisso. Para ela, a luta de classes, convenientemente
actualizada, era a própria essência da política. As suas políticas, muitas vezes
planeadas em muito pouco tempo, eram secundárias aos seus objectivos; e
estes por sua vez eram em larga medida em função do seu estilo. O
«thatcherismo» era sobre como governar, mais do que como o fazer. Os seus
infelizes sucessores conservadores, atirados para a amaldiçoada paisagem do
pós-thatcherismo, não tinham políticas, não tinham objectivos – e não tinham
estilo(6).
Margaret Thatcher pode ter destruído o Partido Conservador, mas tem de
se lhe conceder o crédito da salvação e renascimento dos Trabalhistas. A curto
prazo, claro, esmagou os seus opositores trabalhistas – de facto, não podia ter
feito as mudanças que fez a não ser pela formidável incompetência deles.
Embora alguns dirigentes do Partido Trabalhista, em 1979, percebessem os
problemas que enfrentavam, não tinham nem convicção nem apoiantes. Com
Thatcher no poder, o movimento trabalhista britânico entrou numa década de
confusão. O âmago militante e sindicalista do partido via o mundo muito
como Thatcher via, mas do outro lado do espelho: a Grã-Bretanha tinha de
escolher entre um Estado perfeccionista, colectivista, igualitário, regulador –
ou os – mercados abertos, livre concorrência, recursos privatizados e um
mínimo de bens e serviços partilhados. A escolha, graças à Dama de Ferro,
era mais uma vez clara: socialismo ou capitalismo.
Os trabalhistas tradicionalmente moderados, tal como os seus homólogos
conservadores, estavam desesperados. Alguns deles – nomeadamente Roy
Jenkins, um antigo presidente da Comissão Europeia – abandonaram os
Trabalhistas e formaram um Partido Social-Democrata, de curta duração e
que se iria fundir com os Liberais, o eterno terceiro partido da Grã-Bretanha.
Mas a maior parte ficou – apesar da ansiedade. O seu pessimismo tinha razão
de ser. Conduzido pelo intelectualmente apelativo mas politicamente ineficaz
Michael Foot, o partido concorreu às eleições gerais de 1983 com um
programa despudoradamente anacrónico, empenhado não só em desfazer o
thatcherismo como também muitos dos compromissos dos anteriores
governos trabalhistas. O Reino Unido iria retirar-se da arena económica
internacional (e da lealdade inabalável à aliança com a América). Não haveria
privatizações, mercados abertos, «Europa», ou qualquer outro projecto
estranho. A salvo entre as paredes protectoras de uma economia fechada, os
Pequenos Ingleses da Esquerda britânica, desafiadores, iriam construir,
finalmente, a Nova Jerusalém tantas vezes difamada pelos seus colegas.
O manifesto eleitoral dos Trabalhistas em 1983 foi sucinta e
antecipadamente descrito por um dos parlamentares desalentados do próprio
Partido como «a mais longa nota de suicídio da História». Animada pela sua
vitória na recente guerra das Falklands, em que ela estabelecera um
monopólio do partido sobre o «patriotismo» e exibira uma vez mais o seu
invulgar gosto pelo confronto(7), Thatcher ganhou as eleições de Junho de
1983 por uma margem quase recorde. O Partido Trabalhista perdeu mais de
três milhões de votantes e 160 lugares no Parlamento. A sua percentagem na
votação caiu para 27,6%, a pior do partido desde a Primeira Guerra Mundial.
Se o povo britânico queria o que Thatcher estava a vender, continuava a ser
uma incerteza (os votos conservadores não subiram); mas certamente não
queriam a oferta alternativa.
O Partido Trabalhista demorou catorze anos e três dirigentes diferentes
para recuperar da catástrofe de 1983. Politicamente, o partido tinha de isolar e
destruir a influência dos trotskistas e de outros activistas da Esquerda «dura»
em alguns dos seus baluartes (nomeadamente Liverpool). Sociologicamente,
precisava de se conformar com o seu fracasso para se manter actualizado com
as preocupações e aspirações da nova classe média, sem o apoio da qual
nunca mais poderia ser eleito para funções, e que excedia em número o
núcleo em desaparecimento dos proletários industriais e empregados do sector
público em que os Trabalhistas (tal como todos os partidos sociais-
democratas) tradicionalmente se tinham baseado. Intelectualmente, os
dirigentes trabalhistas precisavam de identificar um novo conjunto de
objectivos políticos – e uma nova linguagem para os apresentar.
Em meados dos anos 90 estes objectivos tinham sido atingidos – mesmo
que só como cosmética. O Partido mudou o nome para New Labour em 1996,
um ano depois de o seu novo dirigente Tony Blair ter convencido os seus
colegas a abandonarem finalmente a controversa Cláusula IV obrigando o
Partido às nacionalizações. Quando os Trabalhistas voltaram por fim ao poder
em 1997, derrotando compreensivelmente um Partido Conservador esgotado,
não se falou em desenredar a revolução «thatcherista». Em vez disso, a
campanha dos Novos Trabalhistas apontava quase exclusivamente para os
votantes marginais «moderados» conservadores, que protestavam contra os
elevados impostos, a corrupção e a ineficácia – os mesmos ataques de
Thatcher uma geração antes.
Se Tony Blair e os seus colegas baixaram um véu discreto sobre a era
«thatcherista», não foi por acaso. Os êxitos de Blair assentavam directamente
sobre uma tripla herança da senhora (agora Lady) Thatcher. Primeiro, ela
«normalizara» o desmantelamento radical do sector público nas indústrias e
serviços e a sua substituição pelo «privatizado», a Grã-Bretanha empresarial
cujos louvores Blair cantava com tanto prazer. Segundo, e neste processo, ela
destruíra o velho Partido Trabalhista e facilitara a tarefa aos que tinham lutado
para o reformar: Blair teve simplesmente de colher as recompensas do
trabalho alheio. E terceiro, como vimos, a sua aspereza e intolerância com a
divergência e o desacordo tinham fracturado o seu próprio partido, tornando-o
inelegível.
Aproveitando-se dos frutos do trabalho de Thatcher, Tony Blair partilhava
muitos dos seus preconceitos, embora num tom menos abrasivo. Como ela,
detestava intensamente o velho vocabulário político. No seu caso isto
significava evitar toda a conversa sobre «classe», uma categoria social
antiquada substituída na linguagem formal retórica por «raça» ou «género».
Tal como Thatcher, Blair revelava muito pouca tolerância para com a tomada
de decisões descentralizada ou com os desacordos internos. Como ela,
preferia rodear-se de homens de negócios do sector privado(8). E embora os
Trabalhista se tenham vagamente comprometido com a «sociedade», o seu
grupo de liderança «blairista» era tão visceralmente desconfiado do «Estado»
como o mais doutrinário dos «thatcheristas».
Esta, então, é a medida das realizações de Margaret Thatcher. Não só
destruiu o consenso do pós-guerra como forjou um novo. Antes de subir ao
poder, a situação habitual da política britânica era o Estado ser a fonte natural
da legitimidade e da iniciativa. Na altura em que saiu de cena, isso estava em
vias de se tornar uma opinião minoritária mesmo dentro do Partido
Trabalhista profundamente ligado ao Estado. Pela primeira vez em duas
gerações o papel do Estado fora posto em discussão, e cada vez se ouviam
menos vozes em sua defesa, pelo menos no seio da política dominante. É
certo que havia os que continuavam a acreditar que a revolução «thatcherista»
provocara destruição e que seria ainda desejável um regresso à administração
directa dos serviços pelo Estado (quando não da propriedade pública da
produção). Mas após os anos Thatcher, era um caso que ainda tinha de ser
provado – e com excepção dos bens sociais centrais como a educação e a
saúde, já não era certo haver um público interessado.
Por vezes sugere-se que o papel de Thatcher nesta mudança foi exagerado,
que as circunstâncias teriam de qualquer maneira impulsionado a Grã-
Bretanha numa direcção «thatcherista»: que o pacto social do pós-guerra já
estava a enfraquecer. Talvez. Mas é difícil, mesmo em retrospectiva, ver
quem, senão Thatcher, poderia ter representado o papel de coveiro. É a
própria dimensão da transformação que forjou, para o bem e para o mal, que
tem de ser reconhecida. Para todos os que tivessem adormecido na Grã-
Bretanha em 1978 e acordado vinte anos depois, o seu país teria parecido de
facto estranho: muito diferente da sua velha identidade – e marcadamente
diferente do resto da Europa.
A França também mudou bastante no decorrer destes anos e com algumas
das mesmas consequências. Mas enquanto na Grã-Bretanha os principais
pressupostos do consenso do pós-guerra foram desfeitos por uma revolução
da Direita, em França foi o renascimento e a transformação da Esquerda não
comunista que quebrou o molde político. Durante muitos anos a política
francesa fora escravizada pelos encantos paralelos e opostos do Partido
Comunista, à Esquerda, e pelos gaullistas, à Direita. Juntamente com os seus
parceiros mais recentes, tanto da Esquerda como da Direita, os comunistas e
os gaullistas encarnavam fielmente e prolongavam uma tradição
caracteristicamente francesa de lealdade política determinada pela região,
ocupação e religião.
Estas inflexibilidades da sociologia política francesa, intactas desde
meados do século XIX, estavam já sob o cerco, como vimos, das mudanças
sociais e culturais dos anos 60. A Esquerda já não podia contar com uma
votação em bloco do proletariado. A Direita já não estava unida pela pessoa e
pela aura de De Gaulle, que morrera em 1970, e a medida fundamental do
conservadorismo político em França – a tendência para os votantes
conservadores serem católicos praticantes – estava a ser debilitada pelo
declínio da observância religiosa pública, quando as igrejas de aldeias e
pequenas cidades da França perderam os seus paroquianos e especialmente os
filhos dos seus paroquianos, para os centros metropolitanos.
Mas estava em marcha também uma mudança mais profunda. No decorrer
dos anos 70 e início dos 80, a sociedade francesa tradicional e uma mais
antiga forma de vida – diversa e carinhosamente descrita e relembrada como
la France profonde, la douce France, la bonne vieille Franc, la France
éternelle – parecia aos Franceses estar a desaparecer aos seus olhos. A
modernização agrícola dos anos 50 e 60, a migração dos filhos e filhas dos
camponeses para as cidades tinha estado a esvaziar e a despovoar
regularmente a zona rural francesa. A revitalizada economia nacional estava a
realizar uma transformação nos empregos, nos padrões de viagens e nos
tempos livres de uma nova classe de habitantes das cidades. As estradas e os
caminhos-de-ferro, que tinham acumulado ervas daninhas e lixo durante
décadas, foram reconstruídos, ajardinados de novo ou substituídos por uma
rede viária nacional praticamente nova. As vilas e cidades que havia muito se
mantinham em desleixada manutenção em ruínas e subinvestimento,
começavam a estar superlotadas e activas.
Os Franceses nem sempre se sentiam confortáveis com a rapidez da
mudança. Surgiram movimentos políticos para protestar contra a aceleração e
a urbanização da vida social, o crescimento das cidades e despovoamento da
zona rural. Um legado dos anos 60 – o renovado interesse pelas línguas e
culturas locais e regionais – parecia ameaçar a própria integridade territorial e
a unidade da França. Para os contemporâneos medrosos, o seu país parecia
estar a modernizar-se e a desagregar-se ao mesmo tempo. Mas o Estado não
se amedrontou. Na Grã-Bretanha, a relação entre um Estado que tudo
abrangia e uma economia ineficiente, sobre a qual Margaret Thatcher colocou
uma ênfase tão pejorativa, parecia a muitos óbvia. Mas em França era o
próprio Estado que parecia ter a chave do ressurgimento económico do país.
Os seus administradores eram a elite intelectual do país; os seus planeadores
viam-se a si mesmos como uma classe de desinteressados funcionários
públicos não afectados pela efémera paixão ideológica e pelas erupções
sociais da nação. Os políticos em França dividiram amargamente a nação com
a questão de quem iria ganhar o poder e com que fins sociais; mas havia um
notável consenso prático no que dizia respeito a como iriam controlar esse
poder.
De 1958 a 1969 o Estado francês fora governado por Charles De Gaulle. O
estilo conscientemente tradicional do Presidente e a sua confessada
despreocupação com as minúcias do planeamento económico não se tinham
revelado impeditivos da mudança. Bem pelo contrário: foi sob o disfarce de
uma Constituição meio autoritária, talhada segundo as exigências de um
carismático autocrata militar, que a França deu início à modernização
fracturante que ajudou a suscitar os protestos de 1968 – de facto, foi a
perturbadora mistura da velha autoridade paternal com as destabilizadoras
alterações sociais que provocou esses protestos.
Os opositores e os críticos de De Gaulle fizeram grande alarde da forma
«não democrática» como o general se tinha apoderado e exercido o poder – o
«coup d’état permanent» como François Mitterrand lhe chamou num panfleto
publicado em 1965 – mas os expedientes e o aparato de um poder presidencial
quase sem restrições revelavam ser não menos atraentes para os seus
sucessores de todos os quadrantes políticos. E o característico sistema da
eleição presidencial directa ensombrou as eleições quinquenais para o
Parlamento, concedendo um prémio às técnicas políticas e à personalidade
dos candidatos individuais à volta de quem os partidos tinham forçosamente
de se agrupar. Foi neste cenário que o temível Mitterrand se iria superar.
François Mitterrand, tal como Margaret Thatcher, era um candidato pouco
plausível para o papel que iria representar nos assuntos do seu país. Nascido
numa família católica praticante no Sudoeste de França conservador, era um
estudante de Direito da ala direita nos anos 30 e activista em alguns dos
movimentos antidemocráticos mais extremistas da época. Passou a maior
parte da Segunda Guerra Mundial como funcionário subalterno no governo
colaboracionista de Vichy, mudando a sua lealdade mesmo a tempo de poder
reclamar credenciais de resistente do pós-guerra. A sua carreira parlamentar e
ministerial na IV República fez-se em vários partidos menores do centro-
esquerda, nenhum deles com obediência à corrente principal marxista.
Mesmo quando concorreu sem êxito para Presidente em 1965, com o
apoio dos partidos da Esquerda oficial, Mitterrand não era de modo algum o
seu candidato e teve o cuidado de manter deles as distâncias. Só depois da
implosão do velho Parti Socialiste em 1969, a seguir à humilhação eleitoral
de 1968, Mitterrand começou a planear o papel que teria no seu renascimento:
uma tentativa de assumir o controlo em 1971 com o aparecimento de um novo
Partido Socialista dirigido por Mitterrand e uma nova geração de jovens
ambiciosos recrutados para o servirem.
O relacionamento que ligava Mitterrand ao que restava da orgulhosa
herança do socialismo francês era mutuamente instrumental. O Partido
precisava de Mitterrand: o seu bom desempenho nas eleições presidenciais de
1965, quando conseguiu o apoio de 27% dos eleitores inscritos (incluindo
muitos dos bastiões conservadores do Este e do Oeste) e obrigou De Gaulle a
uma segunda volta, revelou-o como um ganhador de votos – já em 1967,
durante umas eleições legislativas, os distintivos e as fotografias de
Mitterrand vendiam bem. O país estava a entrar numa nova era de política
personalizada televisionada – como Michel Durafour, o presidente da câmara
de St. Etienne, fez notar com mau humor em 1971: «A França só vive na
expectativa das próximas eleições presidenciais». Mitterrand iria ser um
trunfo para a Esquerda.
Mitterrand, por sua vez, necessitava dos socialistas. Não tendo uma
organização própria, mais do que um pouco manchado pelos compromissos e
escândalos da IV República em cujos governos servira, este consumado
oportunista usou o Partido Socialista para se reciclar a si mesmo como
homem da Esquerda empenhada, ao mesmo tempo que se mantinha livre da
incómoda bagagem doutrinária que sobrecarregava a velha Esquerda. Uma
vez descreveu as suas obediências religiosas desta maneira: «Je suis né
chrétien, et je mourrai sans doute en cet état. Dans l’intervalle…» («Nasci
cristão e sem dúvida morrerei como tal. Entretanto…») Com a mesma veia
cínica poderia ter acrescentado que tinha nascido conservador e que morreria
como tal, mas que entretanto tinha conseguido tornar-se socialista.
Este casamento de conveniência funcionou melhor do que qualquer das
partes poderia ter imaginado. No decorrer dos anos 70, quando o Partido
Trabalhista britânico estava a entrar na fase terminal do seu declínio, os
socialistas franceses estavam à beira do seu grande êxito. Os mesmos
impedimentos ao ressurgimento de uma maioria de esquerda em França
tinham sido o encanto pessoal de De Gaulle e o medo de muitos eleitores de
que um governo de Esquerda fosse dominado pelos comunistas. Em 1970, De
Gaulle estava morto; no espaço de dez anos também as expectativas dos
comunistas o estariam. No primeiro caso, Mitterrand não podia ser
directamente responsabilizado, mas este último facto era inquestionavelmente
proeza sua.
Reconhecendo a lógica da necessidade e faltando-lhe a delicadeza
ideológica dos seus antecessores genuinamente socialistas, Mitterrand
começou por alinhar o seu Partido Socialista com os comunistas; em 1972
formou uma coligação eleitoral com eles, por detrás de um Programa Comum
anticapitalista de formulação vaga. Nas eleições de 1977 os comunistas, o
partido dominante da Esquerda desde 1945, estavam 10 pontos percentuais
atrás dos socialistas de Mitterrand. Só então Georges Marchais, o
enfraquecido Secretário-Geral do PCF, começou a perceber o erro que o seu
Partido tinha cometido ao alinhar o seu destino com o jovem e enérgico
partido de Mitterrand – uma decisão tomada em parte sob a influência
optimista e ecuménica do «eurocomunismo» – mas era demasiado tarde.
Depois de ter melhorado o seu desemenho de 1965 com as eleições
presidenciais de 1974, quando foi batido por pouco por Giscard d’Estaing,
depois de se ter apresentado como candidato da Esquerda unida, Mitterrand
forjou uma soberba máquina eleitoral, transformando o Partido Socialista
num movimento inclusivo, fazendo apelo a todo o espectro da sociedade
francesa, incluindo católicos, mulheres, agricultores e pequenos comerciantes,
todos até aí hostis aos socialistas(9). A sua própria imagem tinha-se suavizado
com a idade: na Primavera de 1981 grandes cartazes de campanha por toda a
França mostravam um retrato de Mitterrand desfocado, tendo como pano de
fundo a mesma paisagem rural intemporal outrora preferida na propaganda de
Pétain nesses mesmos outdoors, sob a promessa «La Force Tranquille» – A
Força Tranquila.
Entretanto, os comunistas, estavam fracos – a invasão soviética do
Afeganistão em 1979 era um grande embaraço, assim como o eram as suas
próprias sondagens em declínio. No decurso dos anos 70, o Partido
Comunista tinha deixado de ser uma estrela fixa no firmamento ideológico: o
seu prestígio decrescera juntamente com os seus votos, até mesmo na
«Cintura Vermelha» industrial de Paris que dominara desde meados dos anos
20. De qualquer maneira, Marchais estava determinado a candidatar-se nas
próximas eleições presidenciais: em parte por hábito, em parte por orgulho,
mas sobretudo por uma crescente consciência da necessidade de libertar o
PCF do abraço envenenado dos seus camaradas socialistas.
Na primeira volta das eleições presidenciais de 1981, os dois candidatos
conservadores, Giscard d’Estaing e o jovem Jacques Chirac, juntos tiveram
mais votos do que Mitterrand e Marchais (obtendo este último unicamente
12,2% dos votos). Mas na segunda volta, duas semanas depois, entre os dois
candidatos mais bem colocados, Mitterrand conseguiu o apoio dos socialistas,
comunistas, ambientalistas e até dos normalmente não cooperantes trotskistas,
mais do que duplicando a sua percentagem da primeira volta, e derrotou
Giscard para se tornar no primeiro socialista directamente eleito Chefe de
Estado na Europa. De imediato dissolveu o parlamento e convocou eleições
legislativas, nas quais o seu próprio partido derrotou tanto os comunistas
como a Direita, obtendo para si uma maioria absoluta na Assembleia
Nacional. Os socialistas tinham o controlo total da França.
As celebrações espontâneas que saudaram as vitórias dos socialistas eram
inéditas. Para as dezenas de milhares de (sobretudo jovens) apoiantes de
Mitterrand que dançaram nas ruas esta era a grand soir, a vigília
revolucionária, o limiar de uma ruptura radical com o passado. Com base
unicamente nos dados eleitorais esta teria sido uma afirmação curiosa. Tal
como em anteriores convulsões eleitorais – a vitória da Frente Popular
Francesa em Abril de 1936, com que a proeza de Mitterrand foi
imediatamente comparada, ou a eleição de Margaret Thatcher em 1979 – o
voto francês em 1981 não foi radicalmente redistribuído. De facto, Mitterrand
realmente esteve pior, na votação inicial, do que nas suas anteriores
candidaturas à presidência em 1965 e 1974.
O que fez a diferença foi a disciplina revelada pelos votantes de esquerda,
desta vez a congregaram o seu voto em Mitterrand na segunda volta, em vez
de se absterem numa obstinação sectária, e a divisão de opiniões da Direita.
Dos que votaram em Chirac na primeira volta das eleições presidenciais de
1981, 16% deram os seus votos a Mitterrand duas semanas depois – em vez
de reelegerem o presidente Giscard d’Estaing, em fim de mandato: um
homem sinceramente detestado pelos apoiantes gaullistas de Chirac. Se a
Direita não se tivesse dividido assim não teria havido nenhum Presidente
Mitterrand, nenhum empurrão aos socialistas nas eleições legislativas que se
seguiram – e nenhum grand soir de expectativas radicais.
Vale a pena enfatizar isto, porque tanta coisa parecia depender do resultado
das eleições de 1981. Em retrospectiva, é evidente, como o próprio Mitterrand
percebeu, que a sua façanha em 1981 era para «normalizar» o processo da
alternância na República Francesa, tornar possível aos socialistas serem
tratados como partido normal de governo. Mas para os apoiantes de
Mitterrand em 1981, o quadro parecia muito diferente. O seu objectivo não
era normalizar a alternância de poder no futuro, mas apoderar-se dele e usá-lo,
aqui e agora. Tomaram como boas as promessas de transformação radical dos
seus dirigentes, a sua garantia de varrerem não só a corrupção e o ennui dos
anos de Giscard como também o próprio sistema capitalista. Excluídos de
funções durante tanto tempo, os militantes socialistas de França tinham ficado
livres para sonhar um sonho de revolução.
Porque a Esquerda havia muitas décadas que não exercia o poder em
França; na verdade, nunca tinha exercido o poder sem parceiros de coligação,
banqueiros pouco cooperantes, crises cambiais estrangeiras, emergências
internacionais e uma litania de outras desculpas pelo seu insucesso na
implementação do socialismo. Em 1981, como parecia, nada disto se aplicava
e não haveria desculpa para reincindir no erro. Além disso, a associação de
controlo do Estado com a implementação de mudanças revolucionárias estava
tão profundamente enraizada na cultura política em França, que o simples
facto de ganharem as eleições era em si tido como sinónimo de um próximo
confronto social.
Tal como o próprio Marx, a Esquerda francesa identificava toda mudança
verdadeira com revolução política em geral e com a grande Revolução
Francesa em particular. Fizeram-se assim entusiásticas comparações com
1871 e até com 1791. Nada do que Mitterrand dissera na campanha tinha
levado o mais empenhado dos seus seguidores a pensar de outra maneira. Para
«arrumar» os comunistas e a ala esquerda do seu partido, Mitterrand tinha-
lhes roubado a roupagem revolucionária. A sua campanha eleitoral levantou
expectativas que agora se esperava que realizasse.
Assim, os anos de Mitterrand começaram com uma agenda ambiciosa e
radical: uma mistura de reformas sociais moralmente edificantes e há muito
necessitadas (de que a abolição da pena capital foi a mais significativa) com
um fantasmagórico programa de legislação «anticapitalista». Os salários
subiram, a idade da reforma baixou, os horários de trabalho foram reduzidos.
Mas o elemento central do programa era um plano de nacionalizações sem
precedentes. No primeiro ano de funções, o novo governo socialista do
primeiro-ministro Pierre Mauroy tomou sob o controlo do Estado, inter alia:
36 bancos, duas importantes financeiras, cinco das maiores companhias
industriais da França (incluindo a Thomson-Brandt, o mais importante
produtor de artigos eléctricos e electrónicos) e a Usinor e Sacilor, os gigantes
do ferro e do aço da França.
Não havia uma estratégia económica pré-determinada por detrás destes
movimentos. Falava-se em revigorar a lenta economia francesa com uma
injecção de capital do governo, mas isto não era uma ideia nova, nem
particularmente uma ideia socialista: em meados dos anos 70, o primeiro-
ministro Chirac chegara a acalentar projectos de crescimento semelhantes,
influenciados pela procura. A principal função das nacionalizações dos anos
1981-82, como os controlos de câmbios que as acompanhavam, era
simbolizar a intenção anticapitalista do novo regime; confirmar que as
decisões de 1981 tinham realmente mudado qualquer coisa mais do que
apenas o pessoal do governo.
Na realidade, era claro desde o início para os interessados que os bancos
propriedade do Estado, por exemplo, só podiam funcionar se lhes fosse
permitida «autonomia total de decisão e de acção», eliminando assim os
objectivos reguladora e socialmente redistributivos que tinham sido aduzidos
para justificar antes de mais o seu controlo. Esta pragmática concessão ilustra
o mais vasto impedimento que a «revolução» de Mitterrand enfrentava.
Durante um ano, o novo regime esforçou-se corajosamente por apresentar um
aspecto radical à França e ao mundo. Ao princípio foi convincente – Jacques
Attali, conselheiro próximo de Mitterrand, registou que altos funcionários dos
EUA (sempre atentos a tais reincidências) afirmavam ver pouca diferença
entre a política económica francesa e a da União Soviética.
Mas para a França seguir um caminho «socialista» em 1982 teria
significado impor não só o controlo de câmbios mas todo um leque de
regulamentos separando o país dos seus parceiros comerciais e colocando
virtualmente a economia numa posição autárcica. Retirar a França dos
mercados financeiros internacionais talvez não tivesse sido uma tarefa tão
inimaginável como mais tarde viria a ser: em 1977, só a capitalização de
mercado da IBM foi duas vezes a de toda a Bolsa de Paris. De maior
significado foi o facto de que um tal desenvolvimento teria precipitado a
separação da França e talvez até a saída da Comunidade Europeia, cujos
acordos sobre tarifas, mercados e alinhamento de câmbios – para não falar em
planos iminentes para um mercado único – já restringiam gravemente as
opções disponíveis aos Estados-membros.
Estas considerações parece terem concentrado o pensamento de Mitterrand
– ajudado, sem dúvida, pela evidência do pânico crescente nos círculos
empresariais e sinais de que a moeda, valores e pessoas se estavam a mudar
para o estrangeiro com uma urgência cada vez maior, precipitando uma crise
económica. A 12 de Junho de 1982, o presidente decidiu-se por uma
reviravolta. Rejeitando o conselho dos seus conselheiros mais radicais,
Mitterrand autorizou a seu governo a congelar os preços e os salários por um
período de quatro meses, o corte da despesa pública (que tinha sido
generosamente aumentada no ano anterior), a subir os impostos, dar
prioridade à luta contra a inflação (em vez de emitir moeda, como fora
instado a fazer) – adoptando com efeito a estratégia económica do economista
conservador Raymond Barre, cujo «Plano» de 1977, nunca implementado,
teria introduzido em França uma dose de thatcherismo avant l’heure e
abandonado toda a referência a «uma via francesa para o socialismo».
Os aliados comunistas do presidente e alguns dos seus colegas socialistas
ficaram profundamente chocados. Mas não deviam ter ficado surpreendidos.
Sempre pragmático, Mitterrand rapidamente compreendeu que era
impensável a França sequer considerar a escolha entre permanecer na órbita
económica (e política) do Ocidente ou lançar-se ela própria num meio
caminho duvidosamente sustentável entre o capitalismo e o comunismo.
Fazendo virtude duradoura da necessidade momentânea, remodelou-se como
grande «europeísta». A França iria construir uma sociedade melhor através da
unificação europeia do que contra ela. Em vez de lutar contra o capitalismo, a
França iria inventar uma versão superior.
Em 1984 Mitterrand tinha afastado os quatro ministros comunistas do seu
governo; proclamado publicamente as virtudes da economia «mista»;
nomeado um jovem primeiro-ministro tecnocrata, Laurent Fabius; entregue a
gestão dos assuntos económicos, finanças e orçamento a Jacques Delors, com
instruções para estabilizar a economia francesa(10) e até, num proeminente
discurso em Abril desse ano, pedido uma modernização francesa à
l’américaine.
Mitterrand tinha a França do seu lado – em 1983 só 23% dos seus próprios
eleitores socialistas lamentavam o seu insucesso em «pôr em prática o
socialismo». Se queriam que ele «modernizasse» com um tão grande
entusiasmo, é menos certo, mas modernizou mesmo. Sem abandonar
explicitamente a mais controversa das suas primeiras reformas –
descentralização administrativa, revisão da segurança social, a garantia dos
direitos no local de trabalho para as mulheres e uma muito aguardada reforma
da justiça – Mitterrand dedicou o resto do seu longo reinado (reformou-se em
1995 após dois mandatos presidenciais de sete anos, morrendo aos oitenta
anos no ano seguinte) a dispendiosas obras públicas de estética e utilidade
questionáveis, ao restabelecimento da iniciativa internacional francesa(11), …
e a vigiar a devolução para mãos privadas de muitos serviços e indústrias que
recentemente colocara sob controlo público.
O impulso inicial para privatizar o enorme sector público francês foi
assumido pela maioria parlamentar conservadora, que saiu vitoriosa das
eleições de 1986. Mas sucessivos governos de todos os quadrantes
perseguiram o mesmo objectivo – na verdade, os governos socialistas dos
últimos anos de Mitterrand foram de longe os mais enérgicos de todos a
privatizar. Os primeiros bens a serem vendidos aos privados, seguindo o
modelo britânico de oferta pública, foram os principais bancos e a TF1, um
dos canais da televisão pública. Seguiram-se holdings públicas, seguradoras,
empresas químicas e farmacêuticas e os gigantes do petróleo, Total e Elf.
Porém, ao contrário de Thatcher e dos seus herdeiros, os Franceses foram
cautelosos na venda dos serviços públicos ou firmas «estratégicas», como o
fabricante automóvel Renault (só recentemente salvo da bancarrota por uma
enorme subvenção financeira do Estado, em 1985). Nos mercados tal como
nos jardins, os Franceses desconfiavam do crescimento não planeado.
Preferiram manter uma certa capacidade de intervenção, conservando
habitualmente nas mãos do Estado uma parte das firmas privatizadas. A
própria privatização, em França, foi assim um assunto manifestamente
controlado – as acções que permitiam assegurar o controlo foram
cuidadosamente dirigidas para empresas e negócios em que o Estado podia
confiar, os investidores internacionais mantiveram-se durante muitos anos
compreensivelmente desconfiados. De qualquer maneira, por padrões
franceses, as mudanças foram importantíssimas, conduzindo bruscamente o
país de regresso ao alinhamento com os desenvolvimentos europeus e
internacionais.
É talvez este o momento apropriado para dizer qualquer coisa sobre a vaga
de privatizações que ocorreu na Europa Ocidental nos anos 80 e que iria
prosseguir pelo continente no decurso da década seguinte. Não surgiu
completamente por acaso. A British Petroleum tinha vindo a ser vendida
progressivamente, com início em 1977, como vimos; o governo da Alemanha
Ocidental tinha isentado a cooperativa química Preussag através de uma
emissão pública de acções, já em 1959, e vendera as suas acções na
Volkswagen uns anos depois; até mesmo o Estado austríaco tinha vendido
40% das suas acções em dois bancos nacionalizados no decorrer dos anos 50
e abandonara a sua considerável holding na Siemens em 1972.
Mas estas eram privatizações esporádicas e pragmáticas. O que sucedeu
durante os anos 80 foi bastante diferente, imposto aos governos, de duas
direcções distintas. Em primeiro lugar, os desenvolvimentos tecnológicos
acelerados – nomeadamente nas telecomunicações e nos mercados financeiros
– estavam a enfraquecer os velhos monopólios «naturais». Se os governos já
não conseguiam controlar as transmissões ou o movimento do dinheiro para
seu uso exclusivo, fazia pouco sentido que os «possuíssem». Continuava a
haver razões ponderosas, políticas e sociais para o Estado conservar parte de
um determinado sector – um canal público de televisão, digamos, ou os
Correios, mas a concorrência era agora inevitável.
Em segundo lugar, os governos estavam a ser levados a vender património
público por necessidade económica de curto prazo. Pressionados pela
inflação, pela crise petrolífera de 1979-80, vastos défices anuais e crescente
endividamento dos governos, os ministros das Finanças encaravam a venda
dos bens de propriedade pública como duplamente benéfica. O Estado
aliviava a carga de indústrias ou serviços deficitários e as verbas assim
obtidas iriam ajudar a equilibrar o orçamento, apesar de numa base pontual.
Mesmo se uma indústria ou serviço se mantivessem parcialmente em
propriedade pública (mantendo o Estado geralmente as partes não lucrativas
que os compradores privados não queriam), a injecção de dinheiro da venda
de acções podia ser aplicada em investimentos futuros. Por esta razão, até
mesmo muitos administradores do sector público eram entusiásticos
partidários dessas vendas parciais, há muito ressentidos com o desvio dos
seus lucros para ajudar a equilibrar o défice do orçamento nacional.
Havia uma considerável variação na forma e extensão da propriedade
pública e seu controlo. O sector industrial público era mais pequeno na
Holanda, Dinamarca e Suécia, mais extenso na Itália, França, Espanha e
Áustria. Excluindo a saúde e os serviços sociais, a mão-de-obra no início dos
anos 80 directamente empregada pelo Estado variava de 15% na Alemanha
Ocidental a 28% na Itália e quase um em três na Áustria. Em alguns países –
Áustria, Espanha e Itália – o sector público estava organizado em enormes
holdings, das quais a IRI italiana era a maior(12).
Noutros países, a participação do Estado era filtrada através de um Banco
Nacional de Investimento e de um Fundo de Garantia Industrial – como na
Holanda – ou do seu equivalente belga, a Société Nationale d’Investissement.
Só a indústria do aço era apoiada de variadas formas: na Grã-Bretanha, o
Tesouro anulava habitualmente as dívidas das companhias estatais; em França
o governo concedia empréstimos a juros baixos e intervinha publicamente
para favorecer os produtores locais em detrimento da concorrência
estrangeira; na Alemanha Ocidental o sector privado da siderurgia recebia
subsídios monetários directos.
Dadas tais disparidades nacionais, as formas de privatização na Europa
naturalmente divergiam bastante. De qualquer maneira, no entanto, requeriam
alguma desregulamentação, a liberalização de mercados e a introdução de
novos instrumentos financeiros para facilitar a venda e revenda de acções das
companhias parcial ou totalmente privatizadas. Na Alemanha Ocidental, onde
os principais sectores de exportação (carros, engenharia mecânica,
companhias químicas e electrónicas) já estavam privatizados, o impedimento
à eficiência e competitividade não vinha do controlo do Estado, antes dos
elevados custos fixos e dos regulamentos do mercado de trabalho. A
Privatization na Alemanha, quando chegou, era principalmente
responsabilidade da Treuhandgesellschaft, a empresa pública fundada em
1990 para vender as empresas anteriormente propriedade do Estado da
Alemanha do Leste(13).
Na Itália, o principal obstáculo à privatização eram os interesses não do
Estado, mas dos partidos políticos. Os democratas-cristãos e os socialistas em
particular usavam o sector estatal e as holdings públicas para recompensar
colegas e subornar apoiantes, muitas vezes favorecendo-os com contratos
públicos e absorvendo-os no sottogoverno ou estrutura de poder submersa que
alicerçava o seu domínio. Mas apesar deste poderoso desincentivo, o sector
privado italiano cresceu regularmente neste período, especialmente entre as
firmas de manufactura com menos de cem empregados – muito mais
numerosas na Itália do que na Grã-Bretanha, França ou Alemanha.
Já em 1976 o Tribunal Constitucional tinha acabado com o monopólio da
RAI, as redes estatais de rádio e televisão. Uns anos depois a Alfa Romeo,
nessa altura ainda a funcionar sob a égide de uma holding pública, foi
«transferida» para a FIAT. No espaço de seis anos as principais holdings –
IRI, INA, ENI, e ENEL(14) – tinham todas sido convertidas em sociedades
anónimas. Não tinham em si mesmas qualquer valor – antes pelo contrário:
em 1984 a IRI estava a perder 4,5 milhões de liras por ano por cada um dos
seus 500 000 empregados. Mas conseguiram emitir obrigações convertíveis
em acções nas companhias sob seu controlo agora agendadas para
privatização.
A situação em países acabados de sair de um governo autoritário era
bastante diferente. O sector público na Espanha posterior a Franco, por
exemplo, de facto cresceu. A despesa pública como parte do PIB subiu
regularmente, dado que os centristas, no governo de 1976 a 1982,
prosseguiram com a estratégia do antigo regime de evitar confrontos sociais
transferindo simplesmente as companhias privadas falidas para o Estado.
Dificilmente poderiam ter feito outra coisa – por várias razões esta forma de
nacionalização era a preferida igualmente pelos trabalhadores, proprietários,
políticos nacionais e autoridades regionais. De qualquer maneira, um dos
principais argumentos para cortar no sector público – que a prosperidade que
encarnava era demasiado onerosa para ser mantida – não se aplicava em
Espanha, ou em Portugal, ou na Grécia. Não havia Estado-providência para
desmantelar.
De qualquer maneira, mesmo sem serviços sociais e protecções ao nível
europeu, o sector público – com o fardo da abandonada e inútil recusa da
adolescência acelerada e mimada do capitalismo espanhol – estava
irremediavelmente sobrecarregado. Já em 1976, só o INI (Instituto Nacional
de Indústria) tinha interesses em 747 companhias industriais (na maior parte
não lucrativas) e participações de controlo em outras 379. Era inevitável
alguma privatização e desregulamentação se a Espanha alguma vez quisesse
ter viabilidade económica. Como em França, foi um governo socialista que
iniciou este processo, introduzindo fundos de pensão privados em 1987 e
abolindo o monopólio da televisão estatal dois anos depois.
No Portugal pós-revolucionário, o Artigo 85.o da Constituição, e uma lei
posterior de 1977, proibia explicitamente a iniciativa privada na banca,
seguros, transportes, correios e telecomunicações, produção e distribuição de
electricidade, refinação de petróleo e indústria de armamento. O governo
socialista de Mário Soares tentou em 1983 introduzir alguma flexibilidade,
permitindo que o sector privado concorresse com o estatal na banca e nos
seguros e permitindo que se formassem sociedades anónimas nas indústrias
do aço, petróleo, química e armamento. Mas levaria algum tempo até que os
restantes sectores protegidos estivessem abertos à concorrência limitada.
A Europa mediterrânica – tal como a Europa Central pós-comunista uns
anos depois – teria provavelmente sido ainda mais lenta a renunciar ao
controlo do Estado se não fosse o impacto da Comunidade/União Europeia.
As paridades fixas da moeda do Sistema Monetário Europeu (SME) após
1979 foram um constrangimento inicial – uma das razões pela qual os
governos de Mitterrand começaram a vender bens públicos foi para
tranquilizar os mercados monetários e assim manter o franco no seu nível
acordado pelo SME. Os principais meios de influência de Bruxelas eram os
regulamentos a serem criados para o funcionamento de um mercado único
europeu. Este último obrigava toda a actividade comercial – pública e privada
– a corresponder às normas da concorrência aberta, em cada mercado e, por
fim, entre países. Não haveria qualquer favorecimento dos «campeões»
nacionais ou subsídios escondidos ou outra vantagem para as empresas
públicas ou sob controlo público na concorrência por contratos ou isenção de
impostos.
Por muito que na prática grande parte destes regulamentos fosse
contornada, a sua mera existência obrigava as firmas do Estado a
comportarem-se no mercado de forma não diferente das privadas – altura em
que não havia muitos motivos para manter o envolvimento do Estado nos seus
assuntos. A resposta italiana foi representativa da de muitos outros Estados-
membros da Comunidade: em 1990 a Itália adoptou novos regulamentos que
repercutiam as cláusulas relevantes do Acto Único Europeu, exigindo que
todas as firmas propriedade do Estado aplicassem os princípios da
concorrência livre e igual em todos os seus negócios – exceptuando os casos
das firmas e empreendimentos em que um monopólio do Estado fosse «vital
para as suas tarefas», uma cláusula cuja flexibilidade e imprecisão permitiam
aos governos adaptar-se às normas europeias ao mesmo tempo que se
mantinham sensíveis às pressões locais.
Apesar do empolgamento em Bruxelas (e Londres) sobre um aumento de
abertura e «competitividade», a febre de privatizações europeia destes anos
provavelmente produziu menos mudanças do que as prometidas ou esperadas
pelos seus apoiantes. Os críticos tinham avisado que o resultado não seria
mais concorrência mas apenas uma transferência de poder económico
concentrado da esfera pública para a esfera privada e foi isto que aconteceu.
Graças a complicados ajustes de partilha de acções, muitas grandes
empresas privadas em França, por exemplo, imitaram o comportamento das
velhas empresas públicas. Monopolizaram sectores inteiros e não prestavam
mais contas aos seus pequenos «accionistas» do que aos contribuintes ou
consumidores quando geridas pela administração pública.
Ironicamente, a privatização e a maior concorrência também tiveram
pouco impacto imediato sobre a dimensão do sector estatal propriamente dito.
Já vimos que na Grã-Bretanha de Thatcher o âmbito do Estado na realidade
aumentou. Também assim foi nos outros países. Entre 1974 e 1990 (graças
em certa medida ao desemprego endémico no sector privado) a parte da força
de trabalho empregada no funcionalismo público cresceu de facto: de 13%
para 15,1% na Alemanha; de 13,4% para 15,5% na Itália; de 22,2% para
30,5% na Dinamarca. A maior parte destes empregados do governo, porém,
estava agora no sector terciário em vez de na manufactura: fornecendo e
administrando serviços (financeiros, educativos, médicos e transportes) em
vez de fazerem coisas.
A liberalização económica não assinalou a queda do Estado-providência,
nem o seu declínio, apesar das esperanças dos seus teóricos. No entanto,
ilustrou, isso sim, uma transformação sísmica na distribuição de recursos e
iniciativa do sector público para o privado. Esta mudança foi muito para além
da questão técnica de quem era dono de quais fábricas, ou de qual a
regulamentação que deveria haver em determinada indústria. Durante quase
meio século os europeus tinham visto o Estado e as autoridades públicas a
representar um papel mais proeminente nos seus assuntos. Este processo
tinha-se tornado tão vulgar que a premissa por trás dele – que o Estado
activista era condição necessária para o crescimento económico e melhorias
sociais – era amplamente tomada como garantida. Sem o esclarecimento
cumulativo deste pressuposto no decorrer das pouco brilhantes décadas do
século, nem o thatcherismo nem o volte-face de Mitterrand teriam sido
possíveis.
-
(1) Se não fosse pela curva distintamente ascendente da proporção de nascimentos nas comunidades
imigrantes da Ásia, África e Caraíbas, os números teriam sido ainda inferiores.

(2) Na Europa de Leste, foi a Hungria, onde a economia «clandestina» (ver capítulo 18) fornecia a
muita gente um nível de vida mais elevado do que em qualquer outro sítio do Bloco, a primeira a atingir
proporções de nascimento comparavelmente baixas durante estes mesmos anos.

(3) Os mais elevados níveis de ressentimento raivoso eram os dos sindicatos da função pública,
abrangendo empregados do governo mal pagos, desde os homens do lixo às enfermeiras. Os principais
sindicatos industriais eram de longe muito mais optimistas a respeito dos cortes de Callaghan: desde
que os trabalhistas mantivessem a sua promessa de proteger os trabalhadores tradicionais especializados
e de deixar intactos os seus privilégios, os seus chefes contentavam-se em tolerar a apostasia do
governo. Ficaram bastante surpreendidos ao descobrir que não podiam celebrar tais acordos com
Thatcher.

(4) Em 1966 (o último ano da sua existência) a rede ferroviária nacionalizada da Grã-Bretanha
«alardeava» o mais baixo subsídio para uma rede ferroviária da Europa. Nesse ano os Franceses
estavam a planear para o seu caminho-de-ferro uma taxa de investimento de 21 libras per capita; os
Italianos, 33 libras; os Britânicos, apenas 9.

(5) E também pela pobreza privada. Ao quebrar a ligação entre salários e pensões, Thatcher reduziu
drasticamente o rendimento da reforma da maior parte dos seus concidadãos. Em 1977, as pensões
públicas do Reino Unido eram só 15% dos ordenados médios, a proporção mais baixa da CEE.

(6) Na década que se seguiu à sua reforma, os herdeiros de Margaret Thatcher ao leme conservador
declinaram da monotonia cansativa (John Major) ao presunçosamente incompetente (William Hague),
até ao inepto (Iain Duncan Smith). Depois do longo reinado da Rainha-Sol, seguiu-se um dilúvio de
mediocridade.

(7) Como explicou à Conferência do Partido Tory Escocês, a 14 de Maio de 1982: «É empolgante ter
nas mãos uma verdadeira crise quando se passou metade da vida política a lidar com temas enfadonhos
como o ambiente».

(8) Talvez com esta diferença: enquanto Margaret Thatcher acreditava na privatização como
qualquer coisa semelhante a um bem moral, Tony Blair gosta simplesmente de gente rica.

(9) Uma sondagem de 1979 revelou que o perfil eleitoral do Parti Socialiste de Mitterrand reflectia
estranhamente o que no país em geral nenhum outro partido podia reivindicar.

(10) Banqueiro e antigo conselheiro do primeiro-ministro gaullista, Jacques Chaban-Delmas, Delors


viria a presidir à Comissão Europeia de 1985-1995.

(11) Mesmo no auge do descontentamento popular com a política do governo, no colapso económico
de meados dos anos 80, 57% dos eleitores declararam-se satisfeitos com a política externa de
Mitterrand.

(12) Em 1982 o IRI (Instituto per la Ricostruzione Industriale) controlava, entre muitas coisas mais,
toda a manufactura do ferro fundido, dois terços do seu volume de produção de aço especial, um quarto
da sua produção de gelados e 18% do tomate descascado.

(13) O objectivo original da Treuhand era converter o maior número possível das 9000 companhias
da Alemanha de Leste (empregando sete milhões de homens e mulheres) em verdadeiros negócios e
liquidar o resto. Mas sob pressão política preferiu reabilitar ou consolidar muitos dos negócios não
lucrativos, criando com isso ironicamente um novo sector semipúblico subsidiado com fundos públicos.
Ver capítulo 12.

(14) Instituto per la Ricostruzione Industriale, Instituto Nazionale delle Assicurazioni, Ente
Nazionale Idrocarburi, Ente Nazionale per l’Energia Elettrica.
XVIII

O Poder dos Sem Poder


«O marxismo não é uma filosofia da história, é a filosofia da história e
renunciar a ele é cavar a sepultura da Razão na história.»
Maurice Merleau-Ponty
«Falo em direitos porque só eles nos permitirão abandonar este espectáculo de
lanterna mágica.»
Kazimierz Brandys
«A sociedade totalitária é o espelho distorcido de toda a civilização
moderna.»
Vaclav Havel
«A pressão da máquina do Estado não é nada comparada com a pressão de um
argumento convincente.»
Czeslaw Milosz
Por detrás do longo «momento social-democrata» na Europa Ocidental
não estivera só a fé pragmática no sector público ou a aliança com os
princípios keynesianos da economia, mas um sentido da forma da época que
influenciou e durante muitas décadas sufocou até os seus futuros críticos. Esta
compreensão largamente partilhada do passado recente da Europa combinou-
se com a memória da Depressão, com a luta entre Democracia e Fascismo, a
legitimidade moral do Estado-providência e – para muitos de ambos os lados
da Cortina de Ferro – com a expectativa de progresso social. Foi a Grande
Narrativa do século XX, e quando os seus principais pressupostos começaram
a desgastar-se e a fraccionar-se, levaram consigo não só uma mão-cheia de
companhias do sector público, mas toda uma cultura política e muito mais
para além disso.
Se estivéssemos à procura de um momento simbólico em que esta
transformação se realizou, uma articulação sobre o qual girava o
entendimento que a Europa tinha de si mesma, este surgiria em Paris a 28 de
Dezembro de 1973, com a primeira publicação no Ocidente de O Arquipélago
de Gulag de Alexandre Soljenitsin. Ao fazer a recensão inglesa no Guardian,
W. L. Webb escreveu: «Viver agora e não conhecer esta obra é ser uma
espécie de tonto histórico, passando ao lado de uma parte crucial da
consciência da época». A ironia, conforme o próprio Soljenitsin reconheceu, é
que a mensagem do livro – que o «socialismo realmente existente» era uma
fraude bárbara, uma ditadura totalitária assente sobre um alicerce de trabalho
escravo e assassinato em massa – não era novidade.
O próprio Soljenitsin já tinha escrito sobre o assunto, tal como inúmeras
vítimas, sobreviventes, observadores e académicos. O Arquipélago de Gulag
acrescentou centenas de páginas de pormenores e dados a testemunhos
anteriores, mas no seu fervor moral e impacto emocional não era obviamente
uma obra de testemunho maior do que Viagem ao Redemoinho, de Evgenia
Ginzburg, publicado em 1967; as memórias de Margarete Buber-Neumann
sobre a sua experiência tanto nos campos soviéticos como nazis; o relato
desencantado da sua própria fé perdida, de Wolfgang Leonhard que surgiu em
1955, ou até mesmo anteriores demolições do mito soviético por Victor Serge
e Boris Souvarine(1).
Mas a escolha do momento certo era tudo. Críticos intelectuais ao
comunismo nunca tinham faltado; no entanto, o seu impacto fora mitigado
durante muitas décadas por um desejo generalizado na Europa Ocidental (e,
como vimos, na Europa de Leste durante os anos 60) de encontrar algum
aspecto positivo, por muito fino que fosse, na nuvem tempestuosa do
socialismo de Estado que percorrera o continente desde que rebentara pela
primeira vez sobre a Rússia em 1917. O «anticomunismo», fossem quais
fossem os seus motivos reais ou imputados, sofreu a severa desvantagem de
parecer desafiar a forma da História e do Progresso, de não entender o
«quadro geral», e negar a continuidade essencial que ligava o Estado-
providência democrático (por muito inadequado que fosse) ao projecto
colectivista dos comunistas (por muito maculado que estivesse).
Foi por isso que os opositores do consenso do pós-guerra foram tão
marginalizados. Sugerir, como Hayek e outros tinham feito, que os planos de
restrição de mercado para o bem comum, por muito bem intencionados que
fossem, não só eram economicamente ineficazes como também o primeiro
passo para a servidão, era rasgar o mapa do século XX. Mesmo os opositores
da ditadura comunista como Arthur Koestler, Raymond Aron, Albert Camus
ou Isaiah Berlin, que tentaram insistir na distinção entre as reformas sociais-
democratas para benefício comum e a ditadura do partido estabelecida em
nome de um mito colectivista, pareciam a muitos dos seus críticos
«progressistas» repercutir, e assim, servir, alianças políticas partidárias feitas
durante a Guerra Fria.
Por isso, entraram em conflito com a relutância generalizada,
especialmente da parte da geração de sessenta, em abandonar o catecismo
radical. Uma coisa era zombar intencionalmente de Estaline, agora morto
havia muito e de qualquer maneira condenado pelos seus próprios herdeiros.
Outra muito diferente era reconhecer que o erro não estava no homem, mas
no sistema. E, para ir mais longe, imputar a responsabilidade por todos os
crimes e más acções do leninismo ao projecto de utopia radical em si, iria
minar os próprios fundamentos da política moderna. Conforme o historiador
britânico E. P. Thompson, uma espécie de figura de culto para uma geração
mais nova de pós-comunistas marxistas, escreveu em tom acusador a Leszek
Kolakowski (depois de Kolakowski ter publicado uma acusação condenatória
do comunismo soviético no início de 1968): o seu desencanto é uma ameaça à
nossa fé socialista.
Em 1973, porém, a fé encontrava-se sob ataque grave não só dos críticos
mas também dos próprios acontecimentos. Quando O Arquipélago de Gulag
foi publicado em francês, o diário comunista l’Humanité rejeitou-o,
lembrando aos seus leitores que dado que «toda a gente» já sabe tudo a
respeito de Estaline, quem voltasse a utilizar isso só podia ser motivado pelo
«anti-sovietismo». Mas esta acusação estava a perder a sua força. No início da
invasão soviética de Praga e das suas consequências repressivas e dos relatos
que chegavam da China sobre a Revolução Cultural, a condenação completa
de Soljenitsin de todo o projecto comunista soava verdadeira – mesmo para, e
talvez especialmente, os simpatizantes de primeira hora.
O comunismo, tornava-se agora evidente, tinha conspurcado e espoliado a
sua herança radical. E continuava a fazê-lo, conforme o genocídio do
Camboja e o muito publicitado trauma da boat people vietnamita em breve
iriam revelar(2). Mesmo os que na Europa – e eram muitos – consideravam os
Estados Unidos amplamente responsáveis pelos desastres no Vietname e no
Camboja e cujo antiamericanismo era ainda alimentado pelo assassinato,
engendrado pelos Americanos, de Salvador Allende, no Chile, três meses
antes da publicação de O Arquipélago de Gulag, estavam cada vez mais
relutantes em concluir, como já tinham feito, que o campo socialista tinha
superioridade moral. O imperialismo americano era de facto mau – mas o
outro lado era pior, talvez muito pior.
Neste ponto, a tradicional insistência «progressista» em tratar os ataques
ao comunismo como ataques implícitos a todos os objectivos que visavam a
melhoria social – i. e., que a afirmação de que o comunismo, o socialismo, a
socialdemocracia, as nacionalizações, o planeamento central e a progressiva
engenharia social faziam parte de um projecto político comum – começou a
funcionar contra si mesma. Se Lenine e os seus herdeiros tinham inquinado a
fonte da justiça social, dizia o raciocínio, estamos todos prejudicados. À luz
da história do século XX o Estado estava a começar a aparentar ser menos a
solução do que o problema, e não só, ou principalmente, devido a razões
económicas. O que começa com planeamento central, acaba com matança
centralizada.
Isto, evidentemente, é um tipo de conclusão muito «intelectual», mas na
altura o impacto da retirada do Estado foi sentido mais imediatamente pelos
intelectuais – muito a propósito, visto que tinham sido em primeiro lugar os
intelectuais os mais zelosos na promoção da melhoria social a partir de cima.
Como Jiri Grusa, o escritor checo, iria observar em 1984: «Fomos nós
(escritores) que glorificámos o Estado moderno». Pela sua própria natureza, a
tirania moderna – como disse Ignazio Silone – exige a colaboração de
intelectuais. Era por isso muito apropriado que tenha sido o descontentamento
dos intelectuais da Europa com a grande narrativa do progresso a desencadear
a avalanche seguinte, e de certo modo apropriado que este descontentamento
tenha sido mais acentuado em Paris, onde a própria narrativa tinha assumido
uma forma intelectual e política dois séculos antes.
A França nos anos 70 e 80 já não era a «objectiva incandescente da
civilização ocidental» de Arthur Koestler, mas os pensadores franceses
estavam ainda invulgarmente predispostos a tratar questões universais. Nesta
época, os escritores e comentadores em Espanha ou na Alemanha Ocidental
ou na Itália andavam muito ocupados com os desafios locais – embora a
ameaça terrorista que os preocupava trouxesse implicações próprias para o
descrédito da utopia radical. Os intelectuais no Reino Unido, nunca muito
afectados pelo apelo do comunismo, estavam bastante indiferentes ao seu
declínio e, assim, mantiveram-se afastados do novo espírito continental. Em
França, pelo contrário, tinha havido uma generalizada e antiga simpatia pelo
projecto comunista. À medida que o anticomunismo ganhava espaço na
discussão pública francesa, instigado pelo contínuo declínio da votação no
Partido Comunista e da sua influência, era alimentado pela memória local e
pelo exemplo. Uma nova geração de intelectuais franceses transitou com
impressionante alacridade para fora do marxismo, levados por uma pressa por
vezes indecorosa em renegar o seu próprio comprometimento anterior.
Ao condenar as distorções da utopia radical, os jovens «novos filósofos»
parisienses de meados dos anos 70, como André Glucksmann ou Bernard-
Henri Lévy, foram em muitos aspectos pouco originais. Pouco havia em Les
Maîtres Penseurs de Glucksmann – publicado sob aplauso universal em
Março de 1977 – que Raymond Aron não tenha dito melhor no seu Opium des
Intellectuels vinte anos antes. E não havia nada na Barbarie à Visage Humain,
de Lévy, que surgiu dois meses depois do ensaio de Glucksmann, que os
leitores franceses não tivessem podido encontrar no L’Homme révolté de
Albert Camus. Mas enquanto que o ensaio de Camus fora mordazmente
rejeitado por Jean-Paul Sartre quando foi publicado em 1951, Lévy e
Glucksmann foram influentes bestsellers. Os tempos tinham mudado.
A natureza parricida deste terramoto intelectual local é óbvia. O seu alvo
aparente era o calamitoso desvio marxista no pensamento ocidental, mas
grande parte do seu fogo era dirigido, acima de tudo, para aquelas figuras
dominantes da vida intelectual do pós-guerra, em França e noutros países, que
tinham espreitado através das linhas de fundo da História, vitoriando os
vencedores e afastando politicamente os olhos das suas vítimas. Sartre, de
longe o mais conhecido destes compagnons de route, também caiu em
desgraça nestes anos, mesmo antes da sua morte em 1980, com o seu legado
criativo manchado pelas suas apologéticas, primeiro do comunismo soviético,
depois do maoísmo(3).
A mudança de ambiente em Paris estendeu-se para lá do ajuste de contas
de uma geração de intelectuais comprometidos. Em 1978, The Logic of
Scientific Discovery, de Karl Popper, surgiu pela primeira vez em França,
precursor de uma constante absorção pelo mainstream francês de todo um
corpo de erudição «anglo-americano» na filosofia e ciências sociais de que a
cultura intelectual local havia décadas permanecia quase ignorante. No
mesmo ano, o historiador François Furet publicou o seu inovador Penser la
Révolution Française, no qual desmantelou sistematicamente o «catecismo
revolucionário» com o qual os Franceses durante muitas décadas tinham
aprendido a entender o seu país e o seu passado.
Neste «catecismo», tal como Furet o analisou, a Revolução Francesa fora
o momento originário da modernidade: o confronto que desencadeou a
divisão da França entre culturas políticas opostas de Esquerda e Direita,
aparentemente determinada pela identidade de classe dos antagonistas. Essa
história, que assentava sobre os pilares do optimismo liberal do início do
século XIX e numa visão marxista de transformação social radical, tinha
agora, na avaliação de Furet, sido derrubada – e não especialmente porque o
comunismo soviético, o presuntivo herdeiro revolucionário nesta história de
moralidade da transformação radical determinada, tivesse retroactivamente
maculado toda a herança, nas palavras de Furet. A Revolução Francesa estava
«morta».
As implicações políticas da tese de Furet eram importantíssimas, como o
seu autor muito bem percebeu. Os insucessos do marxismo como política
eram uma coisa que podia sempre ser desculpada como sendo uma
infelicidade ou outras circunstâncias. Mas se o marxismo fosse desacreditado
como Grande Narrativa – se nem a razão nem a necessidade estivessem em
causa na História – então todos os crimes de Estaline, todas as vidas perdidas
e recursos desperdiçados na transformação das sociedades sob orientação do
Estado, todos os erros e insucessos das experiências radicais do século XX
para introduzir a Utopia por diktat, deixavam de ser «dialecticamente»
explicáveis como actos em falso ao longo de um caminho verdadeiro.
Passavam em vez disso a ser o que os seus críticos sempre tinham dito que
eram: perda, desperdício, insucesso e crime.
Furet e os seus jovens contemporâneos rejeitaram o recurso à História que
tanto tinha influenciado o compromisso intelectual na Europa desde o início
dos anos 30. Não há, insistiam, nenhuma «Grande Narrativa» a governar o
curso das acções humanas e portanto nenhuma forma de justificar as políticas
ou acções públicas que provoquem hoje real sofrimento em nome de
benefícios especulativos amanhã. Ovos partidos fazem boas omeletas. Mas
não se pode construir uma sociedade melhor com homens partidos. Em
retrospectiva isto pode parecer uma conclusão um tanto duvidosa para
décadas de intenso debate teórico e político, mas exactamente por essa razão
ilustra bastante bem a extensão da mudança.
Em Ma Nuit Chez Maud, o conte moral de Eric Rohmer de 1969, um
filósofo comunista e o seu colega católico discutem durante bastante tempo as
teses opostas da aposta de Pascal em Deus e a aposta dos marxistas na
História. O que em retrospectiva é notório não é a conversa em si, que será
familiar a quem tiver idade para se lembrar dos anos 60 na Europa
continental, mas a seriedade com que foi levada não só pelo protagonista no
ecrã, como por milhões de espectadores contemporâneos. Dez anos depois, o
assunto, se não o filme, já estava datado. O recurso à História em defesa de
escolhas políticas desagradáveis começara a ser encarado como moralmente
ingénuo e até insensível. Conforme Camus referira muitos anos antes, «A
responsabilidade para com a História liberta-nos da responsabilidade para
com os seres humanos»(4).
A nova incerteza sobre a «História» (e história) inaugurou uma época
desagradável para os intelectuais da Europa Ocidental, desconfortavelmente
conscientes de que a desintegração dos grandes esquemas históricos e
narrativas exemplares era desfavorável para as classes médias que tinham
sido as mais responsáveis por dá-los a conhecer e que agora eram, elas
mesmas – como parecia a muitos deles –, objecto de humilhante indiferença.
Em Setembro de 1986, num revelador aparte solipsista a um jornalista
francês, o sociólogo francês Pierre Bourdieu lamentou a situação apagada do
pensador público empenhado: «Quanto a mim, penso que resta hoje uma
grande causa, é a da defesa dos intelectuais»(5).
A auto-abnegação intelectual perante a História foi uma vez descrita por
Isaiah Berlin como «a horrível saída alemã do fardo da escolha moral». Isto é
um pouco duro para os Alemães, que dificilmente terão sido os únicos
europeus a rebaixar-se no altar da necessidade histórica, embora seja verdade
que a ideia teve as suas raízes na filosofia romântica alemã. Mas remete para
um emergente vácuo nas ideias políticas europeias: se não restava qualquer
«grande causa», se o legado progressista ruíra, se a História ou a necessidade
não podiam já ser credivelmente invocadas em defesa de um acto, política ou
programa, então como deviam os homens resolver os grandes dilemas da era?
Isto não era problema para os radicais do thatcherismo, que tratavam a
política pública como uma extensão dos interesses privados e para quem o
mercado era um árbitro necessário e suficiente dos valores e consequências.
Nem os tempos eram invulgarmente perturbadores para os conservadores
tradicionais da Europa, para quem a medida do bem e do mal nos assuntos
humanos se mantinha ancorada em normas religiosas e convenções sociais,
feridos mas não totalmente desalojados pelo tsunami cultural dos anos 60. Era
a Esquerda progressista, ainda a presença dominante nas mudanças culturais e
políticas da Europa, que necessitava urgentemente de um guião diferente.
O que encontrou, para surpresa colectiva, foi um novo vernáculo político –
ou melhor, um muito antigo, recentemente redescoberto. A linguagem dos
direitos, ou liberdades, estava firmemente inscrita em todas as constituições
europeias, não menos nas das Democracias Populares. Mas como maneira de
pensar em política, «falar de direitos» estivera completamente fora de moda
na Europa havia muitos anos. Depois da Primeira Guerra Mundial, os direitos
– nomeadamente o direito à autodeterminação – representaram um papel de
crucial importância no debate internacional sobre um acordo pós-guerra, e a
maioria das partes interessadas na Conferência de Paz de Versalhes tinha
invocado os seus direitos de forma bastante veemente ao apresentar o seu
caso às Grandes Potências. Mas estes eram direitos colectivos – os direitos
das nações, povos, minorias.
Além disso, o historial dos direitos colectivamente defendidos era infeliz.
Onde os direitos de mais do que uma comunidade étnica ou religiosa tinham
colidido, normalmente por uma reivindicação territorial litigiosa, fora
deprimentemente óbvio que a força, não a lei, era a única forma eficaz de
estabelecer precedência. Os direitos das minorias não podiam ser protegidos
dentro dos Estados nem os direitos dos Estados fracos garantidos contra as
reivindicações dos seus vizinhos mais poderosos. Os vencedores de 1945,
recordando as esperanças desfeitas de Versalhes, concluíram, como vimos,
que os interesses colectivos ficavam mais bem servidos através da dolorosa
mas eficaz solução do reagrupamento territorial (limpeza étnica, como mais
tarde viria a ser conhecido). Quanto às pessoas sem Estado, já não seriam
tratadas como uma anomalia judicial num mundo de Estados e nações, mas
como vítimas individuais de perseguição e injustiça.
A conversa sobre os direitos pós-1945 concentrou-se portanto nos
indivíduos. Também isto foi uma lição de guerra. Embora os homens e as
mulheres fossem perseguidos em nome da sua identidade comum (judeus,
ciganos, Polacos, etc.) sofreram como indivíduos e era como indivíduos com
direitos individuais que as novas Nações Unidas procuraram protegê-los. As
várias Convenções sobre Direitos Humanos, Genocídio ou Direitos Sociais e
Económicos que foram incorporadas na lei internacional e em tratados
tiveram um impacto cumulativo sobre as sensibilidades públicas:
combinavam uma preocupação setecentista, anglo-americana, pelas
liberdades individuais, com uma ênfase muito própria de meados do século
XX nas obrigações do Estado em garantir que um espectro crescente de
reivindicações maiores e menores fosse satisfeito – do direito à vida ao
«direito» à «verdade na publicidade» e mais ainda.
O que impeliu esta retórica legal sobre os direitos individuais para o reino
da política real foi a coincidência do recuo do marxismo com a Conferência
Internacional sobre Segurança e Cooperação na Europa, que começou em
Helsínquia no mesmo ano em que O Arquipélago de Gulag foi publicado em
Paris. Até lá, a conversa sobre «direitos» há muito que fora desfavorecida
entre os intelectuais europeus de tendência de esquerda, repercutindo a
famosa rejeição de Marx dos «ditos direitos do homem» por serem egoístas e
«burgueses». Nos círculos progressistas, termos como «Liberdades» ou
«Liberdade» ou «Direitos» e outras abstracções associadas ao «homem em
geral» só eram levados a sério quando precedidos por um adjectivo:
«burguês» ou «proletário» ou «socialista».
Assim, em 1969 um grupo de intelectuais de esquerda do Parti Socialiste
Unifié francês criticou o seu próprio partido (chefiado na altura por Michel
Rocard e Pierre Mendés-France) por apoiar os reformadores em Praga. Estes
últimos, declararam, tinham sido as «vítimas condescendentes de ideologias
pequeno-burguesas (humanismo, liberdade, justiça, progresso, sufrágio
universal secreto, etc.)». Isto não foi um caso isolado. No decorrer dos anos
60 muitos comentadores ocidentais esquerdistas, cujas políticas eram,
contudo, bastante moderadas, evitavam a menção a «direitos» ou «liberdades»
com receio de parecerem ingénuos. Na Europa de Leste os comunistas
reformistas e os seus apoiantes também tinham evitado esta linguagem: neste
caso devido à sua corrupção e desvalorização na retórica oficial.
Mas a partir dos meados dos anos 70 passou a ser cada vez mais vulgar
encontrar discursos e escritos através do espectro político na Europa
Ocidental que invocavam sem restrições os «direitos humanos» e «liberdades
pessoais». Como observou um comentador italiano em 1977, a ideia e o ideal
da liberdade «total» estavam a ser discutidos abertamente na Esquerda «sem
mistificação ou demagogia» pela primeira vez desde a guerra(6). Isto não se
traduziu necessariamente de imediato nas políticas – durante grande parte dos
anos 80 os partidos trabalhistas e socialistas da Europa Ocidental debateram-
se irremediavelmente, recorrendo em muitos casos à apropriação ilícita dos
programas dos seus opositores para taparem a sua própria nudez. Mas a sua
nova abertura ao vocabulário dos direitos e liberdades deu de facto aos
académicos e intelectuais da Europa Ocidental acesso à linguagem em
mudança da oposição política na Europa de Leste e uma forma de
comunicação através da divisão – mesmo a tempo, pois era a leste da Cortina
de Ferro que as mudanças verdadeiramente originais e significativas estavam
então a caminho.
Em 1975 o reformador comunista checo Zdenek Mlynar escreveu uma
«Carta aberta aos Comunistas e Socialistas da Europa», dirigida sobretudo aos
eurocomunistas e apelando ao apoio contra a repressão dos dissidentes na
Checoslováquia. As ilusões do comunismo reformador levaram tempo a
morrer. Mas Mlynar estava já em minoria e a sua fé no socialismo e nos seus
simpatizantes ocidentais era já encarada com espanto pela maior parte dos
críticos internos do comunismo no bloco soviético.
Estes críticos, ainda não chamados «dissidentes» (um termo geralmente
rejeitado por aqueles que descrevia), tinham-se na maior parte afastado do
regime e da linguagem «socialista» que abraçaram. Depois de 1968, essa
linguagem, com a sua rígida adopção de «paz», «igualdade» e «benevolência
fraterna», soava particularmente falsa – especialmente aos activistas dos anos
60 que a tinham levado a sério. Estes últimos – na sua esmagadora maioria
estudantes, pessoas cultas, jornalistas, dramaturgos e escritores – tinham sido
as principais vítimas da repressão, especialmente na Checoslováquia, onde a
direcção do Partido sob Gustav Husak (o «Presidente do Esquecimento»),
calculou, e bem, que a sua melhor esperança de restabelecimento da «ordem»
assentava na pacificação do descontentamento popular através de melhorias
materiais, ao mesmo tempo que se silenciavam energicamente todas as vozes
dissidentes e referências ao passado recente.
Obrigados a uma actividade clandestina – muito literalmente, no caso
checo, onde muitos professores desempregados e escritores encontraram
trabalho como fogueiros ou caldeireiros – os opositores ao regime
dificilmente se poderiam empenhar num debate político com os seus
opressores. Em vez disso, abandonando o vocabulário marxista e os debates
revisionistas de décadas anteriores, fizeram da necessidade uma virtude e
abraçaram deliberadamente temas «apolíticos». Destes, graças aos Acordos
de Helsínquia, os «direitos» eram de longe os mais acessíveis.
Todas as constituições do bloco soviético davam uma atenção formal aos
direitos e deveres do cidadão; o pacote de direitos adicionais bastante
específicos acordado em Helsínquia fornecia assim aos críticos internos do
comunismo uma abertura estratégica. Como observou o historiador checo Petr
Pithart, a questão não era exigir alguns direitos que até então não se tinha –
um convite garantido a mais repressão – mas reivindicar os que o regime já
reconhecia e que estavam consagrados na lei, conferindo assim à «oposição»
um ar moderado, quase conservador, ao mesmo tempo que obrigavam o
Partido a colocar-se na defensiva.
Levar a letra da lei «socialista» a sério era mais do que simples táctica, um
instrumento para embaraçar os dirigentes comunistas. Nas sociedades
fechadas onde tudo era político – e os políticos propriamente ditos eram assim
excluídos – os «direitos» proporcionavam uma via para a frente, uma primeira
fenda na cortina de pessimismo que amortalhava a Europa de Leste nos
«silenciosos anos 70», um fim para o monopólio do regime da linguagem
enquanto poder. Além disso, os direitos constitucionais das pessoas, pela sua
própria natureza, certificavam formalmente a existência de pessoas como tal,
com exigências umas para com as outras e para com a comunidade.
Descrevem um espaço entre indivíduos impotentes e o Estado todo-poderoso.
O movimento dos direitos («direitos humanos»), como o jovem teórico
húngaro Miklos Haraszti admitiu, era o reconhecimento de que as necessárias
correcções aos defeitos do comunismo não eram um melhor comunismo mas
a constituição – ou reconstituição – da sociedade civil (i. e. «burguesa»). A
ironia de se inverter a agenda do marxismo e procurar substituir o Estado
socialista por uma sociedade burguesa não caiu em saco roto para os
intelectuais em Praga ou Budapeste. Mas como o colega húngaro de Haraszti,
Mihaly Vajda, explicou: a supremacia do burguês parecia sem dúvida
preferível à «intolerável experiência histórica da tirania do cidadão» do seu
país.
O significado dos esforços para reconstituir a sociedade civil – uma
expressão nebulosa descrevendo um objectivo incerto mas largamente
adoptada pela oposição intelectual na Europa de Leste a partir dos anos 70 – é
que reconheciam a impossibilidade, depois de 1968, de tentar reformar o
Estado-Partido. Poucos esperavam seriamente que Husak, em Praga, ou
Honecker, em Berlim (muito menos os próprios Soviéticos), admitissem a
lógica da «discussão dos direitos» e levassem as suas próprias constituições a
sério. Falar teoricamente em direitos era precisamente ilustrar a sua ausência
na prática, lembrar aos observadores no país e no estrangeiro até que ponto
estas sociedades eram de facto não livres. Em vez de atrair as autoridades
comunistas, a nova oposição estava deliberadamente a falar para além delas.
Para os dissidentes como Haraszti, ou Adam Michnik na Polónia, cujo
ensaio de 1976, «Um novo Evolucionismo», expunha grande parte da
estratégia da oposição polaca para os anos seguintes, esta era um afastamento
radical do seu compromisso juvenil com o marxismo e das suas prioridades
socioeconómicas. Para os que nunca tinham sido remotamente atraídos para
os debates marxistas, como Vaclav Havel, a transição foi muito mais fácil.
Filho de um rico negociante de Praga cuja família fora espoliada pelo governo
comunista depois de 1948, Havel não demonstrava nada do juvenil
entusiasmo revolucionário dos seus contemporâneos comprometidos, nem
teve um papel muito activo nos seus esforços reformistas antes de 1968. A
relação de Havel com as autoridades comunistas foi sempre antagónica,
graças em larga medida às suas origens burguesas, que nunca tinham sido
políticas.
No decorrer dos anos 70 e 80, quando foi perseguido, detido e finalmente
preso devido às suas actividades, Havel tornar-se-ia numa figura sumamente
política. Mas a sua «mensagem» manteve-se resolutamente não política. A
questão, insistia, não era discutir com os que estavam no poder. Nem sequer
era principalmente dizer a verdade, embora num regime baseado em mentiras
isso fosse importante. A única coisa que fazia sentido nas circunstâncias da
época, escreveu, era «viver na verdade». Tudo o resto era compromisso – «O
próprio acto de formar grupos de forças políticas para começar a jogar um
jogo do poder, em vez de dar prioridade à verdade».
O objectivo, como explicou Havel num ensaio de 1984 que reflectia sobre
os objectivos e tácticas da frágil oposição intelectual da Checoslováquia,
devia ser actuar com autonomia, seja o que for que o regime tente impor:
viver como se fôssemos verdadeiramente livres. Esta dificilmente seria uma
receita para a maior parte das pessoas, como Havel muito bem entendia:
«Estes são talvez métodos impraticáveis no mundo de hoje e muito difíceis de
aplicar na vida diária. De qualquer maneira, não conheço melhor alternativa».
A posição de Havel não deixava de ter precedentes, mesmo em tempos
recentes. Ludvik Vaculik, dirigindo-se ao IV Congresso da União de
Escritores da Checoslováquia em Junho de 1967, tinha já então recomendado
uma estratégia de «como se» aos seus colegas. Devemos, disse-lhes, «brincar
a sermos cidadãos… fazer discursos como se fôssemos crescidos e legalmente
independentes». Mas na atmosfera mais optimista dos anos 60, Vaculik e
outros ainda podiam esperar alguma acomodação e adaptação por parte dos
que estavam no poder. Na altura em que Michnik ou Havel estavam a abraçar
argumentos semelhantes, as circunstâncias tinham mudado. A questão já não
era aconselhar o governo sobre a forma de governar, mas sugerir à nação –
por exemplo – como poderia viver.
Nas circunstâncias dos anos 70, a ideia de que os intelectuais da Europa de
Leste podiam «sugerir à nação» como se comportar poderia parecer algo mais
do que ambiciosa – a maior parte dos intelectuais não estava em situação de
sugerir grande coisa nem mesmo uns aos outros, muito menos ainda aos seus
concidadãos em geral. A intelligentsia na Hungria e na Polónia, em especial,
era largamente ignorante das condições e opiniões nos centros industriais e
estava ainda mais desligada do mundo dos camponeses. Poder-se-ia de facto
dizer que graças ao comunismo – um sistema político que, nas palavras dos
dissidentes húngaros Ivan Szelenyi e George Konrad, colocava «os
intelectuais no caminho para o poder de classe» – a velha distinção centro-
europeia entre «intelligentsia» e «povo» (mais aplicável em sociedades
aristocráticas como a Hungria e a Polónia que nas plebeias como a
Checoslováquia, mas artificialmente aí instituída mesmo depois de 1948)
tinha ressurgido sob uma forma aguda.
Os primeiros a preencherem esta lacuna foram os Polacos. Em 1976, na
sequência a uma série de greves em protesto contra os graves aumentos de
preço da alimentação, o regime respondeu duramente, espancando e
prendendo trabalhadores nas cidades industriais de Ursus e Radom. Numa
reacção que rompeu deliberadamente a indiferença mútua entre os protestos
dos intelectuais e os dos trabalhadores uns anos antes, Jacek Kuron e alguns
colegas anunciaram em Setembro de 1976 a formação do KOR, um acrónimo
para Comité para a Defesa dos Trabalhadores. O objectivo do KOR e de uma
Comissão para a Defesa dos Direitos Humanos e Civis (ROPCiO), fundada
uns meses depois, era publicitar o ataque às liberdades civis dos
trabalhadores, ajudar na sua defesa legal e formar uma frente comum. Três
anos depois, em Dezembro de 1979, os dirigentes intelectuais do KOR –
alguns judeus, outros católicos e alguns ex-comunistas, outros não – seriam
responsáveis pela composição e publicação de uma «Carta dos Direitos dos
Trabalhadores».
A criação – ou melhor, a afirmação – de uma esfera civil autónoma na
Polónia surgiu assim de um confronto social. Do outro lado da fronteira, na
Checoslováquia, em circunstâncias políticas ainda menos prometedoras,
nasceu de uma oportunidade legal. Em Janeiro de 1977 um grupo de cidadãos
checoslovacos assinou um documento (inicialmente publicado como
manifesto num jornal da Alemanha Ocidental) criticando o seu governo pelo
seu insucesso na implementação das cláusulas sobre direitos humanos da
Constituição checa, do Acto Final dos Acordos de Helsínquia de 1975 e das
intenções das Nações Unidas sobre os direitos políticos, civis, económicos e
culturais, todos assinados por Praga – e no caso do Decreto 120 de
Helsínquia, formalmente incorporado no Código Legal checo(7).
Os signatários deste documento («Carta 77» como ficou conhecida)
descreviam-se a si mesmos como uma «associação de pessoas livre, informal
e aberta… ligadas pela vontade de lutar individual e colectivamente pelo
respeito pelos direitos humanos e civis no nosso país e em todo o mundo».
Tiveram o cuidado de enfatizar que a Carta 77 não era uma organização, não
possuía estatutos nem órgãos permanentes e «não constitui a base para
qualquer actividade política oposicionista», uma afirmação destinada a manter
o seu acto dentro dos limites da lei checa.
A Carta 77 foi sempre obra de uma pequena rede de indivíduos corajosos
que não representavam ninguém senão a si mesmos: 243 pessoas assinaram o
documento original e juntaram-se-lhes mais outras 1621 (numa população de
15 milhões) no decorrer da década seguinte. Os primeiros porta-vozes da
Carta foram Havel, Jiri Hajek (ministro dos Negócios Estrangeiros do país
durante o governo de Dubcek) e o idoso Jan Patocka, o mais importante
filósofo da Checoslováquia, todos eles intelectuais isolados sem posição
pública ou influência; mas isto não impediu as autoridades de reagirem
furiosamente ao seu manifesto, «uma peça anti-Estado, anti-socialista,
demagógica, abusiva». Os signatários individuais foram descritos de várias
formas – numa linguagem retirada literalmente dos julgamentos encenados
dos anos 50 – como «traidores e renegados», «um servidor leal e agente do
imperialismo», «um político falido» e «um aventureiro internacional». Houve
retaliações e intimidações contra os signatários, incluindo despedimento do
trabalho, recusa de escolaridade para os filhos, suspensão das cartas de
condução, exílio forçado e perda de cidadania, detenção, julgamento e prisão.
O rude tratamento dos signatários da Carta 77 e a vingativa perseguição do
governo checo a uma nova geração de jovens músicos (nomeadamente o
grupo de rock The Plastic People of the Universe) instigou a formação, em
Abril de 1978, de um grupo de apoio, o «Comité para a Defesa dos
Injustamente Perseguidos» (VONS), com objectivos semelhantes aos do
KOR. A resposta do regime de Praga a este último desenvolvimento foi
prender seis das principais figuras do VONS, incluindo Havel, e julgá-los por
subversão no ano seguinte: em Outubro de 1979 foram condenados a penas de
prisão de até cinco anos.
Após 1968 os regimes comunistas tinham adoptado todos na prática (com
excepção da Roménia de Ceausescu) a abordagem húngara de Kadar. Já nem
sequer fingiam pretender a genuína lealdade dos seus súbditos, pedindo só
que as pessoas apresentassem os símbolos exteriores da concordância pública.
Um dos objectivos da Carta, tal como do VONS ou KOR – era superar a
cínica indiferença aos assuntos públicos por parte dos seus concidadãos.
Havel, em especial, salientou a necessidade de privar os governos da
satisfação de verem as pessoas humilharem-se negligentemente para passar
despercebidas. De outro modo, escreveu, o regime pode contar com um
«posto avançado em cada cidadão» – um tema ilustrado no seu ensaio
clássico «O Poder dos Sem Poder» com o exemplo merceeiro que pendurava
ritualmente na sua montra o letreiro «Trabalhadores do mundo, uni-vos!»
Algumas das preocupações da intelligentsia dissidente estavam mais bem
adaptadas do que outras a este esforço para superar a apatia e o medo
públicos. A emergente catástrofe ambiental já mencionada no capítulo 15 foi
uma delas. Na Eslováquia, segundo os números do regime, 45% dos 5600
quilómetros de rios estavam «perigosamente» poluídos em 1982; quatro
quintos da água de nascente na parte oriental da república estavam impróprios
para consumo. Isto devia-se em grande parte ao uso excessivo de fertilizantes
nas herdades colectivas da região, conduzindo ao envenenamento do solo e a
insucessos nas colheitas como as que houve nas regiões de solo preto na
União Soviética.
No início dos anos 80 o Norte da Boémia tinha a pior poluição atmosférica
da Europa graças ao uso da lignite local (barata) na produção industrial e
energética. Dos 73,5 mil milhões de kwh de energia produzidos na região, 64
mil milhões provinham de fábricas que queimavam este combustível de
elevado teor em enxofre. Como resultado, em 1983 cerca de 35% do total de
florestas checas estavam mortas ou a morrer e um terço de todos os cursos de
água checos estava demasiado poluído até para usos industriais. Na própria
Praga, o governo foi obrigado a instalar um serviço hospitalar especial para
tratar as doenças respiratórias nas crianças. Ivan Klima, num conto chamado
Uma Conspiração de Natal, descreveu o que era sair para as ruas da capital
checa: «O escuro e frio nevoeiro cheirava a fumo, enxofre e a irritabilidade».
Durante o socialismo era o Estado que poluía. Mas era a sociedade que
sofria e por isso a poluição era assunto com que toda a gente se preocupava.
Era também implicitamente política: a razão por que era tão difícil proteger o
ambiente era ninguém ter interesse em tomar medidas preventivas. Só as
sanções oficiais sistematicamente aplicadas poderiam ter obrigado a
melhorias e estas teriam de emanar da mesma autoridade que era a primeira a
encorajar o desperdício. Qualquer fábrica ou administrador de herdade
suficientemente imprudente para pôr em risco as suas «quotas» aplicando
medidas de controlo da poluição por iniciativa própria estaria em apuros. O
sistema económico comunista era intrinsecamente prejudicial ao seu
ambiente, como cada vez mais pessoas se aperceberam(8).
Escritores e académicos estavam preocupados, e com razão, com a
censura. Os impedimentos à publicação, ou representação, variavam
consideravelmente de um país comunista para outro. Na Checoslováquia,
desde 1969, as autoridades eram imperturbavelmente repressivas: não só
centenas de homens e mulheres eram excluídos da imprensa ou de aparecer
em público, como uma enorme gama de temas, pessoas e acontecimentos nem
sequer podiam ser mencionados. Na Polónia, pelo contrário, a Igreja Católica
e as suas instituições e jornais forneciam um tipo de espaço semiprotegido
onde se podia praticar algum grau de liberdade literária e intelectual, embora
cautelosamente.
Aqui, tal como na Hungria, o problema era muitas vezes de autocensura.
Para garantir acesso a um público, intelectuais, artistas ou académicos
sentiam-se sempre tentados a adaptar a sua obra, desbastar ou usar de
evasivas num argumento, em antecipação a prováveis objecções oficiais. Os
benefícios profissionais e até materiais de tais ajustamentos não eram
negligenciáveis em sociedades onde a cultura e as artes eram levadas muito a
sério; mas o custo moral em auto-respeito podia ser considerável. Como
escrevera Heine 150 anos antes, em termos que muitos intelectuais da Europa
de Leste teriam reconhecido imediatamente, «estes carrascos do pensamento
fazem de nós criminosos. Pois o autor… comete frequentemente infanticídio:
mata o seu próprio filho-pensamento no terror insano da opinião do censor».
Este era dos tipos de cumplicidade parcial. O silêncio – a emigração
interior do «Ketman» em Mente Cativa, de Czeslaw Milosz – era outro. Mas
os que de facto falavam, fazendo circular a sua obra em fotocópias ilícitas,
enfrentavam a sombria perspectiva da quase invisibilidade, de terem as suas
ideias e a sua arte confinadas a um minúsculo público fechado – tendo, no
melhor dos casos, aquilo a que um intelectual checo tristemente chamou a
satisfação onanista de publicar samizdat para os mesmos dois mil intelectuais,
escrevendo-o todos eles também.
Além disso, a coragem em si não garantia a qualidade. O aspecto não
conformista, opositor e frequentemente perigoso da escrita clandestina
conferia-lhe (especialmente entre os seus admiradores no Ocidente) uma aura
de romance e por vezes um significado exagerado. Ideias originais e radicais
podiam de facto florescer e vicejar no húmus em decomposição do bloco
soviético – os textos de Havel e Michnik são os melhores, mas de forma
alguma os únicos exemplos disto, as Fleurs du Mal do comunismo(9). Mas
para muitos outros, não ser publicado não constituía garantia de qualidade.
Não existe nenhuma «musa da censura» (George Steiner). Só porque o regime
não gostava de ti, não significava que fosses talentoso.
Assim, a reputação de alguns dos mais conhecidos intelectuais da oposição
iria murchar e encolher quando exposta a um mercado livre de ideias. George
Konrad, da Hungria – cujos ensaios bastante complacentes sobre
«antipolíticas» eram muito admirados nos anos 80 – era um de entre muitos
que sairiam de cena depois de 1989. Outros, como a romancista da Alemanha
de Leste Christa Wolf, perceberam bem que eram as próprias dificuldades de
se ser escritor sob o comunismo que lhe forneciam tanto o assunto como
alguma energia (e reputação pública). Esta é uma das razões por que tantos
intelectuais nas sociedades comunistas preferiam renunciar à oportunidade da
emigração e do exílio – é preferível ser perseguido e significativo do que ser
livre mas irrelevante.
O medo da irrelevância estava por detrás de outra consideração durante
estes anos, a generalizada insistência na urgência de «regressar» à Europa. Tal
como a censura, esta preocupação estava limitada aos intelectuais – na
verdade sobretudo aos escritores das províncias ocidentais do império dos
Habsburgo, onde o atraso e subdesenvolvimento impostos pela ordem
soviética tinham sido especialmente dolorosos. O mais conhecido porta-voz
deste sentimento era o romancista e argumentista checo Milan Kundera, a
escrever no exílio em Paris, para quem a tragédia da Europa Central (um
termo geográfico ressuscitado explicitamente para dar razão a Kundera) era o
seu controlo por parte de uma ditadura estranha, asiática.
O próprio Kundera não era muito apreciado na sua pátria, onde tanto o seu
exílio como o seu sucesso eram mal recebidos por aqueles de entre os seus
pares que tinham decidido (por sua conta e risco) renunciar a ambos. Mas a
sua tese geral era amplamente partilhada, particularmente na medida em que
era dirigida aos leitores ocidentais, acusados de negligenciarem e ignorarem o
«outro» Ocidente a Leste – um tema já esboçado por Milosz nos anos 50
quando observou que «num hipotético livro sobre a poesia polaca do pós-
guerra devia ser dedicado um capítulo à ironia e até ao escárnio no tratamento
dos europeus ocidentais e particularmente dos intelectuais franceses».
Para Kundera, que era céptico quanto às iniciativas dos cidadãos, como a
Carta 77, a condição dos Checos sob o comunismo era uma extensão do
problema mais antigo da identidade nacional e do destino da região central da
Europa, onde pequenas nações e povos estavam sempre em risco de
desaparecer. A ideia da oposição intelectual ali e no estrangeiro, achava ele,
era trazer esta preocupação à atenção internacional e não perder tempo a
tentar modificar o império «bizantino» de Moscovo. Além disso, a Europa
Central era o «destino do Ocidente em forma concentrada». Havel
concordava: o comunismo era o espelho negro que a história estava a mostrar
ao Ocidente.
Polacos como Michnik não usavam o termo «Europa Central», nem
falavam muito em «regressar à Europa»: em parte porque, ao contrário dos
Checos, estavam em situação de perseguir objectivos mais próximos e
exequíveis. Isto não pretende sugerir que Polacos e outros não sonhavam em
partilhar um dia os benefícios da nova Comunidade Europeia – em trocar o
mito fracassado do socialismo pela fábula de sucesso da «Europa». Mas
tinham prioridades mais imediatas, como veremos.
Também os Alemães de Leste tinham preocupações próprias. Um dos
paradoxos da Ostpolitik, tal como praticada por Brandt e seus sucessores, era
que ao transferir grandes quantias de moeda forte para a Alemanha de Leste e
presentear a RDA com reconhecimento, atenção e apoio, as autoridades da
Alemanha Ocidental impediriam, sem intenção, qualquer hipótese de
mudança interna. «Estreitanto laços», geminando cidades, apresentando
cumprimentos e distanciando-se da crítica ocidental aos regimes do bloco de
Leste, os estadistas de Bona concederam à liderança da RDA uma falsa
sensação de estabilidade e segurança.
Além disso, «ao comprar» opositores políticos e prisioneiros, a Alemanha
Ocidental privou a Alemanha de Leste de alguns dos seus melhores
dissidentes. Nenhuma outra sociedade comunista possuía um doppelgänger
ocidental que falava a mesma língua. A tentação de partir estava assim sempre
presente e o «direito à deslocação» encabeçava habitualmente a lista de
direitos que preocupavam escritores e artistas na RDA. Mas muitos críticos
«internos» do regime alemão de Leste preferiram não abandonar nem o seu
país nem as suas velhas ideias. Em vez disso, em finais dos anos 70 a RDA
era o único Estado comunista europeu que ainda se podia gabar de uma
oposição marxista formal e até inter-partidária. Os seus dissidentes mais
conhecidos da Esquerda atacavam todos a autoridade comunista – uma
atitude que os tornava simultaneamente inaudíveis e irrelevantes nos outros
sítios da Europa Ocidental, como observou mordazmente o escritor checo Jiri
Pelikan.
Por isso, Rudolf Bahro, que após anos de perseguição foi deportado em
1979, era mais conhecido pelo seu ensaio A Alternativa, uma crítica marxista
explícita ao «socialismo realmente existente». Robert Havemann, um velho
comunista que foi processado e multado nestes anos pelo seu empenhamento
a favor do cantor popular Wolf Biermann (expulso para o Ocidente em 1976),
criticou severamente o partido governante não por abuso de direitos mas por
trair os seus ideais e incentivar o consumo e a propriedade privada dos bens
de consumo. Wolfgang Harich, uma figura importante nos círculos filosóficos
da RDA e crítico de longa data do desvio «burocrático» do regime, era
igualmente veemente na sua oposição às «ilusões do consumismo», contra o
qual considerava obrigação do partido governante reeducar a populaça.
Qualquer oposição que houvesse na RDA ao comunismo enquanto tal
tendia a congregar-se, como na Polónia, à volta das igrejas: na Alemanha a
Bund der Evangelischen Kirchen protestante. Aqui, a nova linguagem de
direitos e liberdades confinava com a da fé cristã e (uma vez mais, como na
Polónia) era reforçada pela associação com a única instituição pré-socialista
sobrevivente. A influência das igrejas também é responsável pela
proeminência da questão da «paz» nos círculos dissidentes da Alemanha de
Leste.
Nos outros países da Europa de Leste os «pacifistas» ocidentais e os
activistas do desarmamento nuclear eram encarados com considerável
suspeição. Eram vistos, na melhor das hipóteses, como inocentes ingénuos,
como instrumentos insensatos da manipulação soviética(10). Vaclav Havel,
entre muitos, considerava o crescente movimento antiguerra da Europa
Ocidental do início dos anos 80 como sendo o veículo perfeito para utilizar,
desviar e neutralizar a intelligentsia ocidental: «a paz» insistia, não é uma
opção em países onde o Estado está permanentemente em guerra com a
sociedade. A paz e o desarmamento sob as condições que prevaleciam
deixavam a Europa Ocidental livre e independente ao mesmo tempo que
mantinha a Europa de Leste sob controlo soviético. Era um erro separar a
questão da «paz» da exigência de direitos e liberdades. Ou, como disse Adam
Michnik, «a condição para reduzir o perigo de guerra é o total respeito pelos
direitos humanos».
Mas na Alemanha de Leste, o movimento pacifista encontrou uma
profunda ressonância local. Não há dúvida de que em parte graças às ligações
com a Alemanha Ocidental. Mas havia qualquer coisa mais. A RDA – um
Estado fortuito sem história nem identidade – podia com algum resquício de
plausibilidade descrever a paz, ou pelo menos a «coexistência pacífica»,
como a sua verdadeira raison d’être. No entanto, ao mesmo tempo era de
longe o mais militarizado e militarista dos Estados socialistas: a partir de
1977 foram introduzidos «Estudos de Defesa» nas escolas da Alemanha de
Leste e o Movimento Juvenil estatal era invulgarmente paramilitar, mesmo
pelos padrões soviéticos. A tensão gerada por este paradoxo conspícuo
encontrou o seu escape num movimento da oposição que obtinha grande parte
do seu apoio na sua concentração no tema da paz e desarmamento.
Em 1962, o regime da Alemanha de Leste tinha introduzido o serviço
militar obrigatório de dezoito meses para todos os homens com idades entre
os 18 e os 50 anos. Mas dois anos depois acrescentou uma cláusula de
revogação: os que desejassem ser dispensados do serviço militar por motivos
morais podiam ingressar nos Bausoldaten, uma unidade alternativa de
trabalhadores. Embora fazer parte deste último se pudesse revelar mais tarde
uma desvantagem, a sua mera existência significava que a RDA reconhecia o
facto e a legitimidade da objecção de consciência. Em 1980, tinham passado
pelo Bausoldaten milhares de homens da Alemanha de Leste e representavam
uma substancial rede potencial de activistas da paz.
Assim, quando os pastores luteranos começaram em 1980 a oferecer apoio
e protecção aos primeiros activistas da paz, puderam fazê-lo de forma
considerável sem incorrer na desaprovação do Estado. Este emergente
movimento de paz espalhou-se então da igreja para as universidades,
suscitando não só apelos ao desarmamento como também a exigência do
direito de exprimir estes apelos sem impedimento. Desta forma indirecta, os
dissidentes da Alemanha de Leste encontraram tardiamente uma forma de
comunicar (e acompanhar) a oposição nos outros lados do bloco.
Os Romenos não tiveram esta sorte. O aparecimento da Carta 77 provocou
uma corajosa carta de apoio do escritor Paul Goma e de outros sete
intelectuais romenos, sendo todos eles prontamente reprimidos. Fora isso, a
Roménia manteve-se tão silenciosa como tinha estado durante três décadas.
Goma foi obrigado ao exílio: ninguém o substituiu. Por isto o Ocidente teve
uma parte de responsabilidade – mesmo se tivesse aparecido uma Carta 77
romena ou uma versão local do Solidariedade polaco (ver capítulo 19), é
improvável que tivesse recebido muito apoio do Ocidente. Nunca nenhum
presidente dos EUA, alguma vez exigiu que o ditador Nicolae Ceausescu
«deixasse a Roménia ser a Roménia».
Até mesmo a União Soviética permitiu uma muito restrita liberdade de
acção a alguns intelectuais – na maioria cientistas proeminentes, sempre uma
categoria privilegiada. O biólogo Zhores Medvedev, cuja denúncia de
Lysenko de 1960 há muito circulava em samizdat, foi primeiro perseguido e
depois privado de cidadania. Instalou-se no Reino Unido em 1973. Mas
Andrei Sakharov, o mais conhecido físico nuclear do país e de há muito
crítico do regime, permaneceu em liberdade – até a sua oposição pública em
1979 à invasão do Afeganistão tornar a sua presença intolerável. Sakharov era
demasiado embaraçoso para ser ignorado (ganhara o Prémio Nobel da Paz em
1975) mas demasiado importante para ser expulso. Ele e a mulher Yelena
Bonner foram em vez disso obrigados ao exílio (interno) na cidade fechada de
Gorky.
Mas Sakharov insistiu sempre que estava a responsabilizar a União
Soviética pelas suas falhas e pela sua perseguição aos críticos em vez de
procurar a sua derrota – uma postura que o colocava algures entre uma
geração mais velha de comunistas reformistas e os novos dissidentes da
Europa Central. Outros, menos proeminentes e declaradamente anti-
soviéticos, eram tratados com muito mais dureza. A poetisa Natalya
Gorbanevskaya passou três anos num hospital psiquiátrico prisional, tendo-
lhe sido diagnosticada, juntamente com centenas de outros, «esquizofrenia
tardia». Vladimir Bukovsky, o mais conhecido dos jovens radicais, passou
doze anos nas prisões soviéticas, campos de trabalho e enfermarias
psiquiátricas antes dos protestos internacionais pelo seu tratamento
conduzirem à sua troca com Luis Corvalán, um comunista chileno, em 1976.
Com excepção destes protestos ocasionais a favor de indivíduos e de uma
campanha concertada em favor do direito dos judeus soviéticos à emigração,
o Ocidente prestou muito pouca atenção aos assuntos internos da URSS –
muito menos do que a que estava a ser prestada em 1980 à oposição interna
na Polónia ou até mesmo à Checoslováquia, por exemplo. Só em 1983 a
União Soviética se retirou da Associação Psiquiátrica Mundial, quando esta
última – com vergonhoso atraso – começou finalmente a criticar os seus
abusos.
Mas com ou sem instigação externa, a esmagadora maioria da
intelligentsia soviética nunca iria seguir o exemplo estabelecido, por muito
cautelosamente que fosse, nos outros sítios da Europa de Leste. O medo
inspirado pela repressão de Estaline pendia como um pano mortuário sobre a
paisagem moral três décadas após a sua morte, mesmo que ninguém de facto
falasse nisso e quase todos os críticos mais francos e corajosos tivessem o
cuidado de se manter dentro dos limites legais soviéticos dos temas e
linguagem. Partiam do princípio, bastante razoável, de que a União Soviética
estava ali para ficar. Escritores como Andrei Amalrik, cujo ensaio
«Sobreviverá a União Soviética até 1984?» apareceu pela primeira vez no
Ocidente em 1970 e foi novamente publicado em versão aumentada dez anos
depois, eram proféticos mas atípicos. Ao contrário dos regimes fantoches que
instalara nas suas fronteiras, em 1983 a União Soviética existia há mais tempo
do que a maior parte dos seus cidadãos se podia lembrar e parecia
fundamentalmente estável.
A oposição intelectual na Europa Central teve pouco impacto imediato. O
que não surpreendeu ninguém: o novo realismo dos dissidentes da era de 70
abrangia não só uma compreensão desencantada do insucesso do socialismo
como também uma apreciação clarividente dos factos do poder. Além do mais
havia limites ao que se podia pedir às pessoas, como argumentou Ludvik
Vaculik, o escritor checo, no seu «Ensaio sobre a Coragem» sobre as pessoas
vulgares que lutam para superar as suas vidas diárias. A maior parte das
pessoas vivia numa espécie de «zona cinzenta moral», um espaço seguro
mesmo que sufocante, onde o entusiasmo era substituído pela aceitação. A
resistência activa, arriscada, à autoridade era muito difícil de justificar porque
– uma vez mais, para a maior parte das pessoas vulgares – parecia
desnecessária. «Feitos não heróicos, realistas» era o máximo que se podia
esperar.
Os intelectuais, na sua maioria, estavam a falar uns para os outros em vez
de se dirigirem à comunidade em geral: em alguns casos estavam a facultar
correcções implícitas para os seus anteriores entusiasmos. Além do mais,
eram os herdeiros (em certos casos, quase literalmente os filhos) da classe
governante da primeira geração do poder socialista – tendo a educação e os
privilégios passado com razoável eficiência através das gerações,
especialmente na Polónia e na Hungria. Isso nem sempre os tornava
estimados pela maioria da população. Tal como no passado, quando tinham
falado a favor dos regimes a que agora se opunham, eram uma pequena
minoria da população e só se representavam a si mesmos.
Assim, quando George Konrad escreveu um tanto sentenciosamente que
«nenhuma pessoa pensante deveria querer tirar os outros de posições de poder
político para as ocuparem eles mesmos», estava a reconhecer uma verdade
simples – nenhuma «pessoa pensante» estava em posição no momento de
fazer tal coisa. Esta mesma apreciação dos factos sombrios da vida forma
também um pano de fundo para a insistência da oposição na não violência:
não só na Checoslováquia, onde a passividade perante a autoridade tinha uma
longa história; ou na RDA, onde a Igreja Luterana era cada vez mais influente
nos círculos da oposição; mas até na Polónia, onde representava para Michnik
e outros uma barreira tanto pragmática como ética às perigosas e inúteis
«aventuras».
A proeza da nova oposição consistia noutra coisa. Tanto no Leste como no
Ocidente, os anos 70 e 80 foram um tempo de cinismo. A energia dos anos 60
tinha-se dissipado, os seus ideais políticos tinham perdido credibilidade moral
e o empenhamento no interesse público dera lugar a cálculos de vantagem
privada. Ao criar uma discussão sobre direitos, ao centrar a atenção no
conceito bastante vago de «sociedade civil», ao falar insistentemente nos
silêncios do presente e do passado da Europa Central – ao emitir juízos
morais descaradamente em público, digamos assim – Havel e outros estavam
a construir uma espécie de espaço público «virtual» para substituir o destruído
pelo comunismo.
Uma coisa em que os intelectuais dissidentes não falavam muito era na
economia. Também isto era uma espécie de realismo. Desde Estaline que o
crescimento económico – ou mais precisamente, industrial – tinha sido
simultaneamente o objectivo e a principal medida do êxito do socialismo. A
economia, como vimos no capítulo 13, tinha sido a preocupação dominante de
uma anterior geração de intelectuais reformistas: reflectindo no regime
comunista as suas próprias obsessões e fazendo eco de um pressuposto –
partilhado igualmente por marxistas e não marxistas – de que todas as
políticas são em última análise sobre economia. A discussão crítica expressa
na forma de recomendações para a reforma económica tinha sido a coisa mais
parecida com uma oposição autorizada durante a década revisionista de 1956
a 1968.
Em meados dos anos 70 era difícil a qualquer observador bem informado
do bloco soviético levar a sério a perspectiva de reforma económica a partir
de dentro e não só porque a linguagem do marxismo tinha sucumbido após
décadas de indecoroso abuso. A partir de 1973, as economias da Europa de
Leste estavam a ficar aquém até dos índices de crescimento reduzidos da
Europa Ocidental. Com excepção de um breve pulsar nas finanças da União
Soviética, rica em petróleo, provocado pela subida dos preços da energia, a
inflação dos anos 70 e a «globalização» do comércio e serviços nos anos 80
colocaram as economias do bloco soviético numa insuperável desvantagem.
Em 1963 o comércio internacional dos países do Comecon tinha
correspondido a 12% do total mundial. Em 1979 baixara para 9% e estava a
cair rapidamente(11).
Os países do bloco soviético não podiam competir em qualidade com as
economias industriais do Ocidente; nem nenhuma delas, com excepção da
própria URSS, possuía uma reserva sustentável de matéria-prima para vender
ao Ocidente, pelo que nem podiam competir com os países subdesenvolvidos.
O fechado sistema do Comecon excluía a participação nas novas redes
comerciais da Europa Ocidental e o GATT, e os Estados comunistas não
podiam em qualquer caso adaptar as suas economias aos níveis dos preços
mundiais sem correrem o risco da fúria dos consumidores nacionais (que foi o
que aconteceu na Polónia em 1976).
A insuficiência incapacitante das economias comunistas era nesta altura
uma ineficácia endémica, ideologicamente induzida. Devido a uma
intransigente insistência na importância do volume de produção
fundamentalmente industrial para a «construção do socialismo», o bloco
soviético não fez a mudança da produção extensiva para a intensiva de
elevado valor, que transformou as economias ocidentais no decurso dos anos
60 e 70. Em vez disso manteve-se confiante num modelo de actividade
económica muito ultrapassado, lembrando Detroit ou o Ruhr nos anos 20, ou
a Manchester de finais do século XIX.
Assim, a Checoslováquia – um país com muito limitados recursos em ferro
– era em 1981 o terceiro maior exportador mundial de aço (per capita). Até
ao fim, a RDA esteve a planear uma produção sempre em expansão de bens
industriais pesados obsoletos. Ninguém que tivesse capacidade de escolha
queria de facto comprar aço checo, ou máquinas da Alemanha de Leste,
excepto por preços altamente subsidiados: estes bens eram portanto
produzidos e vendidos com prejuízo. De facto, as economias de estilo
soviético estavam agora a subtrair valor – as matérias-primas que
importavam ou retiravam do solo valiam mais do que os bens acabados em
que eram transformadas.
Até mesmo em áreas de vantagens comparativas a economia soviética
ficava para trás. Tal como a Hungria era a produtora de camiões e autocarros
escolhida pelo Comecon, também a RDA nos anos 80 fora encarregada da
tarefa de fabricar computadores. Mas não eram só as máquinas fabricadas na
Alemanha de Leste que não eram de confiança e antiquadas; o sistema
centralizado era simplesmente incapaz de as fabricar em quantidade
suficiente. Em 1989, a Alemanha de Leste (com uma população de 16
milhões) estava a produzir apenas um quinquagésimo do número de
computadores fabricados na Áustria (população: 7,5 milhões) – e como
produtora de computadores a Áustria era uma concorrente negligenciável no
mercado internacional. A «vantagem comparativa» neste caso era assim
estritamente relativa – a RDA estava a gastar milhões de marcos a produzir
bens não desejados que estavam disponíveis a preços inferiores e de melhor
qualidade no mercado mundial.
Grande parte da responsabilidade por tudo isto assentava nos defeitos
intrínsecos do planeamento centralizado. Em finais dos anos 70, a Gosplan, a
agência central soviética de planeamento económico, possuía 40
departamentos para diferentes ramos da economia e 27 ministérios da
economia individuais. A obsessão com os objectivos numéricos era notória ao
ponto da autoparódia: Timothy Garton Ash cita o exemplo do «Plano
Económico do Povo para o Município de Prenzlauer Berg» (em Berlim Leste)
no qual se anunciava que «a quantidade de livros para emprestar nas
bibliotecas deve ser aumentada de 350 000 para 450 000 volumes. O número
de empréstimos deve ser aumentado em 108,2%»(12).
Os sistemas de preços fixos tornaram impossível determinar os custos
reais, corresponder às necessidades ou adaptar-se às limitações de recursos.
Os administradores, a todos os níveis, tinham medo de correr riscos e de
inovar, para não reduzirem a curto prazo o volume de produção conjunta. De
qualquer maneira, não tinham incentivos: estavam garantidos nos seus lugares
por muito incompetentes que fossem, graças à bem conhecida preferência de
Brejnev pela «estabilidade dos quadros» (a palavra de ordem a partir de
1971). Entretanto, para garantir que atingiriam os objectivos estabelecidos a
partir de cima, os capatazes das fábricas e os administradores esforçavam-se
muito para esconder das autoridades reservas de material e mão-de-obra.
Desperdício e escassez eram assim mutuamente auto-sustentados.
O efeito previsível de um tal sistema era encorajar não só a estagnação e a
ineficácia como um permanente ciclo de corrupção. É um dos paradoxos do
projecto socialista que a falta de propriedade tenda a gerar mais corrupção,
não menos. Poder, posição e privilégios não podem ser directamente
adquiridos, mas dependem em vez disso do relacionamento entre patronato e
clientelismo que se reforça mutuamente. Os direitos legais são substituídos
pelo sicofantismo, que é devidamente recompensado com a segurança de
emprego ou progressão. Para conseguir até objectivos modestos e legítimos –
tratamento médico, necessidades materiais, oportunidades educativas – as
pessoas são obrigadas a contornar a lei numa variedade de formas menores
mas corruptoras.
O que explica em larga medida o acentuado aumento de cinismo durante
estes anos. Um exemplo simboliza muitos: as fábricas de tractores ou
fabricantes de camiões não se preocupavam em produzir peças sobresselentes
suficientes porque podiam mais facilmente satisfazer as suas «normas»
construindo grandes máquinas – com o resultado de que quando estas grandes
máquinas se avariavam não havia peças sobresselentes disponíveis. Os dados
oficiais publicavam só o número total de máquinas de todo o tipo produzidas
num determinado sector; não diziam quantas funcionavam ainda. Os
trabalhadores, claro, sabiam.
O contrato social dos socialistas estava mordazmente resumido na popular
anedota: «tu finges trabalhar, nós fingimos pagar-te». Muitos trabalhadores,
especialmente os menos especializados, tinham interesse nestes acordos que –
em troca de tranquilidade política – ofereciam segurança social e um baixo
nível de pressão no local de trabalho. Como diz o Pequeno Dicionário
Político da Alemanha de Leste com ironia não intencional, «no socialismo, a
contradição entre trabalho e tempo livre, típica do capitalismo, desaparece».
As únicas partes de uma economia comunista típica que funcionavam com
relativa eficiência em 1980 eram as indústrias de defesa de alta tecnologia e a
chamada «segunda economia» – o mercado negro de bens e serviços. A
importância desta segunda economia – cuja própria existência não podia ser
oficialmente reconhecida – era testemunha do triste estado da oficial. Na
Hungria, no início dos anos 80, calcula-se que uns meros 84 000 artesãos –
operando exclusivamente no sector privado – estavam a cumprir quase 60%
da procura local de serviços, da canalização à prostituição.
Junte-se a isto a produção camponesa privada, e com os recursos públicos
(tijolos, fio de cobre, caracteres tipográficos) «desviados» por trabalhadores
para uso em empresas privadas, e pode-se ver que o comunismo de estilo
soviético – muito como o capitalismo italiano – dependia para sua
sobrevivência de uma economia paralela(13). O relacionamento era
simbiótico: o Estado comunista só podia mater o seu monopólio público
canalizando para a esfera privada todas as actividades e necessidades que não
podia negar nem satisfazer; enquanto que a segunda economia dependia da
oficial para recursos, mas sobretudo da própria ineficácia do sector público
que lhe garantia um mercado e aumentava artificialmente o seu valor e
portanto os seus lucros.
A estagnação económica era em si mesma uma censura permanente às
pretensões de superioridade do comunismo sobre o capitalismo. E se não era
um estímulo à oposição, era certamente uma fonte de descontentamento. Para
muitas das pessoas a viverem sob o comunismo na era Brejnev, de finais dos
anos 60 até ao início dos 80, a vida já não era moldada pelo terror ou
repressão. Mas era cinzenta e monótona. Os adultos tinham cada vez menos
filhos; bebiam mais – o consumo anual per capita de bebidas alcoólicas na
União Soviética quadruplicou nesses anos – e morriam novos. A arquitectura
pública nas sociedades comunistas era não só esteticamente pouco atraente,
era de má qualidade e desconfortável, um espelho fiel do autoritarismo de má
qualidade do próprio sistema. Como uma vez observou um taxista de
Budapeste a este autor, apontando para os blocos de apartamentos húmidos,
sujos, que desfiguravam os subúrbios da cidade: «Vivemos naqueles.
Construção tipicamente comunista – quente no Verão, muito frio no Inverno».
Os apartamentos, como muita coisa mais no bloco soviético, eram baratos
(a renda custava em média 4% de um orçamento doméstico típico na URSS),
porque a economia era regulada não pelo preço, mas pela escassez. Isto tinha
as suas vantagens para as autoridades – a atribuição arbitrária dos artigos
escassos ajudava a manter a lealdade – mas trazia consigo um sério risco que
a maior parte dos dirigentes comunistas muito bem percebia. Desde que se
tornara evidente, em finais dos anos 60, que já não podiam contar com a
futura promessa de socialismo para ligar os cidadãos ao regime, os dirigentes
comunistas tinham em vez disso optado por tratar os seus súbditos como
consumidores e substituir a utopia (socialista) de amanhã pela abundância
material de hoje.
Esta escolha foi feita bastante conscientemente. Como Vasil Bil’ak, o
checo da linha dura decisivo no convite aos Soviéticos para invadirem o seu
país em 1968, o exprimiu à Comissão Ideológica do seu partido em Outubro
de 1970: «[Em 1948] tínhamos cartazes nas montras das lojas a respeito de
como o socialista iria ser e as pessoas estavam-lhe receptivas. Era um género
diferente de entusiasmo e um tempo histórico diferente e hoje não podemos
colocar cartazes sobre como o socialismo irá ser, mas hoje as montras das
lojas têm de estar cheias de artigos para podermos documentar que estamos a
avançar para o socialismo e que temos socialismo aqui»(14).
O consumismo iria então ser encorajado como medida do êxito do
socialismo. Isto não era o mesmo que o famoso «debate na cozinha» em 1959
entre Khrushchev e Nixon, quando garantiu ao vice-presidente americano que
o comunismo iria ter um desempenho melhor do que o capitalismo num
futuro previsível. Bil’ak – tal como Kadar na Hungria – não tinha tais ilusões.
Contentava-se com o comunismo ser uma pálida imitação do capitalismo
enquanto os bens em oferta mantivessem os consumidores satisfeitos. Erich
Honecker, da Alemanha de Leste, que substituiu Walter Ulbricht, que não
deixou saudades como dirigente do partido em 1971, também se preparou
igualmente para oferecer aos cidadãos da RDA uma modesta adaptação do
«milagre» da Alemanha Ocidental em 1950.
Esta estratégia foi moderadamente bem sucedida durante algum tempo. O
nível de vida na Checoslováquia, Hungria e Polónia melhorou durante os anos
70, pelo menos quando avaliado pelo consumo a retalho. O número de carros
e de aparelhos de televisão – os bens de consumo icónicos da época – cresceu
regularmente: na Polónia o número de carros particulares per capita
aumentou quatro vezes entre 1975 e 1989. Em finais dos anos 80 havia quatro
televisões por cada dez pessoas na Hungria; os números da Checoslováquia
eram semelhantes. Se os compradores estavam dispostos a aceitar a má
qualidade, o estilo indiferenciado e a fraca diversidade, podiam normalmente
encontrar o que queriam nas lojas oficiais ou através do sector «privado». Na
União Soviética, porém, tais bens «opcionais» eram mais difíceis de encontrar
– e relativamente mais caros.
O mesmo se aplicava às necessidades básicas. Em Março de 1979 um
comprador em Washington teria de trabalhar 12,5 horas para poder pagar um
«cabaz» genérico de bens essenciais (salsichas, leite, ovos, batatas, vegetais,
chá, cerveja, etc.). Um cabaz semelhante «custaria» 21,4 horas de trabalho em
Londres, mas 42,3 horas em Moscovo, apesar de extremamente
subsidiado(15). Além disso, os consumidores soviéticos ou europeus de Leste
tinham de passar muito mais horas à procura e a comprar alimentos e outros
bens. Medida em tempo e esforço, se não em rublos ou coroas ou forints, a
vida sob o comunismo além de dispendiosa era exaustiva.
O problema em definir o comunismo pelo seu êxito em satisfazer os
consumidores privados é que toda a economia estava orientada, como já
vimos, para a manufactura de grande maquinaria industrial e matérias-primas.
Com excepção dos alimentos, as economias comunistas não produziam os
bens que os consumidores queriam (e também não eram muito eficientes a
produzir alimentos – a União Soviética havia muito que se tinha tornado um
importador líquido de cereais, tendo triplicado as suas importações de
alimentos só entre 1970 e 1982). Aúnica forma de contornar este
impedimento era importar bens de consumo do estrangeiro, mas estes tinham
de ser pagos em moeda forte. Esta só podia ser adquirida através das
exportações, mas, com excepção do petróleo soviético, o mercado mundial
tinha pouco interesse na produção socialista a não ser que fosse vendido com
grande desconto e em muitos casos nem mesmo assim. Na prática, a única
maneira de encher as prateleiras no Leste era pedir emprestado ao Ocidente.
O Ocidente estava certamente desejoso de ajudar. O FMI, o Banco
Mundial e os banqueiros de bom grado emprestavam dinheiro aos países do
bloco soviético: o Exército Vermelho era uma garantia tranquilizadora de
estabilidade e os funcionários comunistas adulteravam o volume de produção
e os recursos do seu país de forma convincente(16). Só no decurso dos anos
70, a dívida em moeda forte triplicou. Na Polónia aumentou uns 3000%, dado
que o Primeiro Secretário Gierek e os seus colegas absorveram os bens
ocidentais subsidiados, introduziram novos e dispendiosos programas de
segurança social para os camponeses e congelaram os preços dos alimentos a
valores de 1965.
Uma vez iniciados os pedidos de empréstimo a estes níveis, era difícil
contê-los. Os aumentos de preço dos alimentos de Gierek em 1976
desencadearam motins e foram rapidamente revogados, tendo o regime em
vez disso decidido continuar a contrair empréstimos: entre 1977 e 1980, um
terço da linha de crédito externa da Polónia era utilizado em subsídios ao
consumo doméstico. Os economistas comunistas em Praga recomendaram o
fim faseado dos subsídios e a introdução dos preços «reais», mas os seus
superiores políticos receavam as consequências sociais de tal recuo e
preferiram em vez disso aumentar as suas dívidas. Tal como nos anos entre as
guerras, os frágeis pequenos Estados da Europa de Leste estavam uma vez
mais a pedir capital emprestado ao Ocidente para financiarem as suas
economias autárcicas e evitarem escolhas difíceis.
Miklos Nemeth, o último primeiro-ministro comunista da Hungria, iria uns
anos depois reconhecer o mesmo. Um empréstimo de mil milhões de marcos
de Bona, concedido em Outubro de 1987 e descrito pelos políticos alemães
ocidentais como contribuição para a «reforma» económica da Hungria, foi na
realidade desembolsado da seguinte forma: «gastámos dois terços dele em
juros e o resto a importar bens de consumo para aliviar a impressão de crise
económica». Em 1986, o défice oficial na Hungria em conta corrente era de
1,4 mil milhões de dólares por ano. Entre 1971 e 1980 a dívida da Polónia
subira de mil milhões de dólares para 20,5 mil milhões de dólares, com o pior
ainda para vir. Na sua própria avaliação, a RDA, nos seus últimos anos, estava
a gastar mais de 60% dos seus lucros anuais da exportação só para cobrir os
juros (muito generosamente reduzidos) das suas dívidas ao Ocidente. A
Jugoslávia, um cliente sempre favorecido (de 1950 a 1964 os EUA tinham
coberto três quintos dos défices anuais de Belgrado), recebeu empréstimos
generosos e acordos bonificados com base em dados oficiais que nem sequer
tinham a mais pequena relação com a realidade.
No conjunto, a dívida da Europa de Leste, que estava em 6,1 mil milhões
de dólares em 1971, cresceu para 66,1 mil milhões de dólares em 1980. Em
1988, atingiria 95,6 mil milhões. Estes números não incluíam a Roménia,
onde Ceausescu pagara os empréstimos estrangeiros ao seu país à custa dos
seus súbditos, sofredores de longa data, e bem podiam ter sido mais elevados
se não fosse alguma latitude no estabelecimento dos preços introduzida na
Hungria no decorrer dos anos 70. Mas a sua mensagem era clara: o sistema
comunista estava não só a viver de empréstimos como também do
prolongamento dos prazos de pagamento. Mais cedo ou mais tarde seria
necessário fazer ajustes económicos dolorosos e socialmente disruptivos.
Em anos futuros, Markus Wolf, o mestre dos espiões da Alemanha de
Leste, viria a afirmar que em finais dos anos 70 já tinha concluído que a RDA
não «iria funcionar», e não era, certamente o único. Economistas como o
húngaro Támás Bauer e o seu contemporâneo polaco Leszek Balcerowicz
sabiam muito bem até que ponto o castelo de cartas comunista se tinha
tornado frágil. Mas enquanto os capitalistas o financiassem, o comunismo
podia sobreviver. A «era de estagnação» de Leonid Brejnev (Mikhail
Gorbachev) criou muitas ilusões e não só internamente. Em 1978, quando um
Relatório do Banco Mundial de facto determinou que a RDA tinha um nível
de vida mais elevado que a Grã-Bretanha, o príncipe Potemkin deve ter
sorrido na sua sepultura distante.
Mas os comunistas compreendiam uma coisa que os banqueiros do
Ocidente não tinham percebido. A reforma económica no bloco soviético não
tinha sido meramente adiada. Estava fora de questão. Conforme Amalrik
tinha previsto em Sobreviverá a URSS até 1984?, a elite comunista «encarava
o regime como um mal menor comparado com o penoso processo de o
modificar». As reformas económicas, mesmo as de tipo mais localizado e
microeficientes, iriam ter ramificações políticas imediatas. Os ajustes
económicos do socialismo não eram uma zona autónoma; estavam
completamente integrados no próprio regime político.
Não era por acaso que os Estados-satélites da Europa de Leste eram todos
governados por oportunistas conservadores idosos. Numa nova era de
realismo, Edward Gierek em Varsóvia (nascido em 1913), Gustav Husak em
Praga (nascido em 1913), Erich Hoenecker em Berlim (nascido em 1912),
Janos Kadar em Budapeste (nascido em 1912) e Todor Zhivkov em Sofia
(nascido em 1911) – para não falar em Enver Hoxha em Tirana (nascido em
1908) e Josip Broz Tito em Belgrado (nascido em 1892) – eram os mais
realistas de todos. Tal como Leonid Brejnev – nascido em 1906, Sete Ordens
de Lenine, quatro vezes Herói da União Soviética, vencedor do Prémio
Lenine da Paz, Secretário-Geral e, desde 1977, Chefe de Estado – estes
homens tinham envelhecido à velha maneira. Tinham poucos incentivos para
puxar o tapete de debaixo de si mesmos. Tinham toda a intenção de morrer
nas suas camas(17).
O facto de o «socialismo realmente existente» ser disfuncional e estar
desacreditado não selou por si só o seu destino. Em 1971, no discurso de
aceitação do Prémio Nobel (lido na sua ausência), Alexandre Soljenitsin tinha
emocionadamente afirmado que «uma vez dissipada a mentira, a nudez da
violência será revelada em todo o seu aspecto repulsivo e então a violência,
tornada decrépita, acabará por se despedaçar». Mas isto não era bem verdade.
A nudez da violência soviética há muito que tinha sido revelada – e voltaria a
ser exposta na desastrosa invasão do Afeganistão em 1979 – e a mentira do
comunismo foi progressivamente espalhada e dispersa no decorrer dos anos
após 1968.
Mas o sistema ainda não ruíra. O contributo singular de Lenine para a
história europeia fora raptar a herança política centrífuga do radicalismo
europeu e canalizá-la para o poder através de um inovador sistema de
controlo monopolizado: reunido sem hesitações e mantido à força num
mesmo sítio. O sistema comunista poderia corroer indefinidamente na
periferia, mas a iniciativa do seu colapso final só podia vir do centro. Na
história da morte do comunismo, o notável florescimento em Praga ou em
Varsóvia de um novo tipo de oposição foi só o fim do princípio. A emergência
de um novo tipo de liderança na própria Moscovo, no entanto, iria ser o
princípio do fim.
-
(1) Evgenia Ginzburg, Journey into the Whirlwind (Harcourt, 1967); Margarete Buber-Neumann,
Von Potsdam nach Moskau: Stationen eines Irrweges (Estugarda: Deutsche Verlags-Anstalt, 1957);
Wolfgang Leonhard, Child of the Revolution (Pathfinder Press, 1979), publicado pela primeira vez em
Colónia em 1955 como Die Revolution entlässt ihre Kinder; Victor Serge, Mémoires d’un
révolutionnaire (Paris, 1951); Boris Souvarine, Stalin. A Critical Survey of Bolshevism (publicado
inicialmente em inglês em 1939).

(2) Entre 1975 e 1981, só a França recebeu 80 000 refugiados da Indochina.

(3) Em 1963, muito depois de ter perdido o interesse pelos próprios comunistas em França, o autor
de Les Mains Sales ainda podia ser ouvido em Praga entusiasmado com o Realismo Socialista perante
uma assistência estupefacta de escritores e intelectuais checos.

(4) «La responsabilité envers l’Histoire dispense de la responsabilté vers les êtres humains».

(5) «Pour ma part je pense que s’il y a une grande cause aujoud’hui, c’est la défense des
intellectuels». Ver Le Nouvel Observateur, n.o 140, Setembro de 1968, «Les Grandes Causes, ça existe
encore?»

(6) Antonio Bruno, Marxismo e Idealismo Italiano (1977), pp. 99-100.

(7) Curiosamente, foi a decisão do governo da Checoslováquia em ratificar as convenções da ONU


sobre direitos Humanos em 1976 – o 35.o Estado a fazê-lo – que tornou esses convénios vinculativos à
lei internacional.

(8) Mas até o ambientalismo tinha os seus dissidentes internos. Milan Simecka, escritor esloveno,
avisou os seus colegas (Havel entre eles) contra o subestimar dos benefícios modernos: «Sou de opinião
que até a poluição que acompanha a prosperidade industrial é melhor do que o caos e brutalidade que
atormentam as sociedades em que as pessoas são incapazes de satisfazer as suas necessidades básicas».
Milan Simecka, «Um Mundo com Utopias ou Sem Elas», Cross-currents, 3 (1984), pág 26.

(9) A Jugoslávia é a excepção que confirma a regra: «Dado que nunca tinha havido uma cultura
oficial estabelecida na Jugoslávia (o que não evitou a presença de figuras oficiais na vida cultural),
nunca poderia ser o seu oposto natural, uma cultura subterrânea, alternativa ou paralela, como a que era
generosamente acalentada em outros países socialistas». Dubravka Ugresic, The culture of Lies (1998),
pág. 37.

(10) Com bons motivos. Como ficámos desde então a saber, os movimentos pacifistas britânicos e
alemães ocidentais da época estavam completamente infiltrados por agentes soviéticos e alemães de
Leste.

(11) Durante os anos 80, a Polónia e a Checoslováquia deslizaram ambas para um crescimento
económico negativo – com as suas economias de facto a encolher. A economia da própria URSS tinha
provavelmente estado a diminuir desde 1979.

(12) Timothy Garton Ash, The uses of Adversity (N.Y., 1989), pág. 9.

(13) Na agricultura, grande parte da União Soviética, Hungria e Roménia assemelhava-se uma vez
mais aos latifúndios do século XIX: trabalhadores rurais mal equipados, mal pagos, fraco desempenho,
faziam o mínimo para os seus patrões ausentes ao mesmo tempo que guardavam as energias para o
trabalho verdadeiro com que tratavam dos lotes familiares.

(14) Estou grato a Paulina Bren por esta referência.

(15) Nos anos de Brejnev, meio quilo de carne de vaca custava três rublos e meio para produzir mas
era vendido nas lojas por dois rublos. A Comunidade Europeia também subsidiava os seus agricultores e
aproximadamente na mesma proporção. A diferença, evidentemente, é que a Europa Ocidental podia
pagar uma Política Agrícola Comum e a União Soviética não.

(16) A Hungria juntou-se ao FMI em Maio de 1982, para satisfação mútua. Só em 1989 se veio a
saber que o seu governo tinha subestimado em muito a sua dívida interna e externa da década anterior.

(17) Além disso, tal como o próprio Brejnev, eram os principais consumidores da época. Numa
anedota soviética da altura, o líder soviético está a mostrar à mãe a sua datcha, os seus carros e os seus
pavilhões de caça. «É maravilhoso, Leonid – diz ela. – Mas e se os comunistas voltam ao poder?»
XIX

O Fim da Velha Ordem


«Não podemos continuar a viver assim.»
Mikhail Gorbachev (para a sua mulher, Março de 1985)
«O momento mais perigoso para um mau governo é quando começa a
reformar-se.»
Alexis De Tocqueville
«Não temos qualquer intenção de prejudicar ou destabilizar a RDA.»
Heinrich Windelen, ministro da Alemanha Ocidental das Relações Inter-
Germânicas
«A experiência história mostra que os comunistas foram por vezes obrigados
pelas circunstâncias a comportar-se racionalmente e a concordar com
compromissos.»
Adam Michnik
«Povo, o vosso governo voltou para vós.»
Vaclav Havel, Discurso Presidencial, 1 de Janeiro de 1990
A narrativa convencional do colapso final do comunismo começa com a
Polónia. A 16 de Outubro de 1978, Karol Wojtyla, cardeal de Cracóvia, foi
eleito para o papado como João Paulo II, o primeiro polaco no cargo. As
expectativas criadas pela sua eleição não tinham precedente no mundo
moderno. Alguns na Igreja Católica consideravam-no um provável radical –
era novo (só tinha 58 anos quando foi eleito Papa em 1978, tendo sido
nomeado arcebispo de Cracóvia quando ainda andava pelos trinta anos) mas
era já um veterano do Concílio Vaticano II. Enérgico e carismático, este era o
homem que podia completar a obra dos papas João XXIII e Paulo VI e que
iria conduzir a Igreja para uma nova era, um pastor e não um burocrata da
Cúria.
Os católicos conservadores, entretanto, satisfizeram-se com a fama de
intransigente firmeza teológica de Wojtyla e com o absolutismo moral e
político resultantes da sua experiência como sacerdote e prelado sob o
comunismo. Era um homem que, com toda a sua reputação de «papa das
ideias», aberto à mudança intelectual e ao debate erudito, não iria transigir
com os inimigos da Igreja. Tal como o cardeal Joseph Ratzinger, o poderoso
chefe da Congregação para a Doutrina da Fé (e seu sucessor como Papa),
Wojtyla fora despertado do seu anterior entusiasmo reformador pelo abalo
radical das reformas de João XXIII. Na altura da sua eleição era já um
administrativo assim como um conservador doutrinário.
As origens polacas de Karol Wojtyla e o seu trágico princípio de vida
ajudam a explicar a força invulgar das suas convicções e a qualidade
distintiva do seu papado. Perdeu a mãe quando tinha oito anos (iria perder o
seu único irmão, mais velho, Edmund, três anos depois; o seu último parente
próximo ainda vivo, o pai, morreu durante a guerra quando Wojtyla tinha
dezanove anos). Depois da morte da mãe foi levado pelo pai ao santuário
mariano de Kalwaria Zebrzydowska e fez ali muitas peregrinações nos anos
seguintes – Zebrzydowska, tal como Czestochowa, é um importante centro de
culto à Virgem Maria na Polónia moderna. Com quinze anos, Wojtyla era já o
presidente da irmandade Mariana em Wadowice, sua cidade natal, uma
precoce indicação da sua inclinação para o culto de Maria (que por sua vez
contribuiu para a sua obsessão com o casamento e o aborto).
A visão cristã do novo Papa estava enraizada no peculiar estilo messiânico
do catolicismo polaco. Via na Polónia moderna não só a fronteira leste
preparada para a batalha da Verdadeira Fé, mas também uma terra e um povo
escolhidos para serem o exemplo e a espada da Igreja, tanto na luta contra o
ateísmo de Leste como contra o materialismo do Ocidente(1). Juntamente com
o seu longo serviço em Cracóvia, isolado das correntes teológicas e políticas
do Ocidente, isto explicava provavelmente a sua tendência para adoptar uma
visão polaca-cristã paroquial e por vezes perturbadora(2).
Mas também explica o entusiasmo inaudito no seu país natal. O papa
cortou desde o início com a aquiescência cosmopolita romana para com a
modernidade, o secularismo e o compromisso do seu antecessor. A sua
campanha de viagens internacionais – completadas com actuações
cuidadosamente encenadas em grandes espaços abertos, acompanhadas por
crucifixos de grande dimensão e uma parafernália de luz, som e timing teatral
– foi empreendida com um propósito. Este era um Grande Papa, levando-se e
à sua Fé ao mundo: ao Brasil, México, Estados Unidos e às Filipinas; a Itália,
França e Espanha; mas acima de tudo à própria Polónia.
Abandonado a cautelosa Ostpolitik dos seus antecessores, João Paulo II
chegou a Varsóvia a 2 de Junho de 1979, para a primeira de três dramáticas
«peregrinações» à Polónia comunista. Foi recebido por enormes multidões
veneradoras. A sua presença afirmava e reforçava a influência da Igreja
Católica na Polónia; mas o papa não estava interessado em apoiar meramente
a sobrevivência passiva dos cristãos sob o comunismo. Por vezes para
embaraço dos seus bispos, começou a desencorajar explicitamente os
católicos na Polónia e em qualquer outro lado da Europa de Leste de qualquer
compromisso com o marxismo e ofereceu a sua igreja não só como um
santuário silencioso mas como um pólo alternativo de autoridade moral e
social.
Como os comunistas da Polónia muito bem entendiam, uma tal mudança
de posição da Igreja Católica – do compromisso para a resistência – podia ter
um impacto local destabilizador, colocando um desafio aberto ao monopólio
de autoridade do Partido. Em parte porque os Polacos se mantinham
esmagadora e entusiasticamente católicos, em larga medida devido ao papa.
Mas havia muito pouca coisa que pudessem fazer – proibir o papa de visitar a
Polónia ou de ali falar, teria unicamente fortalecido o seu encanto e afastado
também muitos milhões de admiradores seus. Mesmo depois da imposição da
lei marcial, quando o papa voltou à Polónia em Junho de 1983 e falou aos
seus «compatriotas» na catedral de São João em Varsóvia sobre a sua
«desilusão e humilhação, nos seus sofrimentos e perda de liberdade», os
dirigentes comunistas mais não puderam fazer do que ficar de pé e ouvir. «A
Polónia», disse ele a um constrangido general Jaruzelski num discurso
televisivo, «tem de ocupar o seu próprio lugar entre as nações da Europa,
entre o Leste e o Ocidente».
O papa, como Estaline uma vez observou, não tem divisões militares. Mas
Deus nem sempre está do lado dos grandes batalhões: o que faltava a João
Paulo II em soldados era compensado em visibilidade – e oportunidade. Em
1978 a Polónia estava já à beira da convulsão social. Desde a revolta dos
trabalhadores em 1970 e novamente em 1976, ambas provocadas pelo grave
aumento de preço dos alimentos, que o Primeiro Secretário Edvard Gierek
tentava arduamente evitar o descontentamento interno – principalmente, como
vimos, através de grandes empréstimos no estrangeiro e usando este dinheiro
para facultar aos Polacos alimentos a preços subsidiados e outros bens de
consumo. Mas a estratégia estava a fracassar.
Graças ao aparecimento do KOR de Jacek Kuron, a oposição intelectual e
os dirigentes dos trabalhadores cooperavam agora muito mais do que no
passado. Em resposta ao cauteloso aparecimento dos sindicatos «livres» (i. e.
ilegais) numa série de cidades industriais e portuárias, começando em
Katowice e Gdansk, os dirigentes do KOR redigiram uma «Carta dos Direitos
dos Trabalhadores» em Dezembro de 1979: as suas exigências incluíam o
direito a sindicatos autónomos não partidários e o direito à greve. A resposta
previsível das autoridades foi prender os activistas intelectuais e despedir os
trabalhadores transgressores – entre eles o então desconhecido electricista
Lech Walesa e 14 outros empregados da Elektromontaz em Gdansk.
Se o movimento semiclandestino pelos direitos dos trabalhadores teria
continuado a crescer, não se sabe. Os seus porta-vozes estavam certamente
incentivados pela recente visita do Papa e pela sua percepção de que o regime
estaria relutante em retaliar violentamente com medo da desaprovação
internacional. Mas era ainda uma rede de activistas muito pequena e informal.
O que espoletou o apoio das massas foi a tentativa do Partido Comunista –
pela terceira vez numa década – de resolver as suas dificuldades económicas
anunciando a 1 de Julho de 1980 um imediato aumento do preço da carne.
No dia a seguir ao anúncio, KOR declarou-se uma «agência de informação
da greve». Nas três semanas seguintes espalharam-se greves de protesto, da
fábrica de tractores Ursus (palco dos protestos de 1976) a todas as principais
indústrias do país, chegando a Gdansk e aos seus Estaleiros Lenine a 2 de
Agosto. Ali os operários ocuparam o estaleiro e constituíram-se em sindicato
não oficial, o Solidarnosc (Solidariedade), dirigido por Walesa, que a 14 de
Agosto de 1980 saltou o muro do estaleiro para a direcção de um movimento
nacional grevista.
Tendo falhado a resposta instintiva das autoridades – prender os
«cabecilhas» e isolar os grevistas –, optaram em vez disso por ganhar tempo e
dividir os seus opositores. Numa acção inédita, foram enviados representantes
do Politburo a Gdansk para negociarem com dirigentes «razoáveis» dos
trabalhadores, mesmo quando Kuron, Adam Michnik e outros dirigentes do
KOR se encontravam temporariamente detidos para interrogatório. Mas
outros intelectuais – o historiador Bronislaw Geremek, o advogado católico
Tadeusz Mazowiecki – foram a Gdansk para ajudar os grevistas a negociar e
os próprios grevistas insistiram em ser representados pelo porta-voz que
escolheram: nomeadamente o cada vez mais proeminente Walesa.
O regime foi obrigado a ceder. A 1 de Setembro a polícia libertou todos os
restantes detidos e duas semanas depois o Conselho de Estado polaco
concedeu oficialmente a principal exigência dos grevistas, o direito de formar
e registar associações livres de trabalhadores. No espaço de oito semanas, a
rede informal de greves e associações ad hoc que agora entrecruzavam a
Polónia tinha-se fundido numa única organização cuja existência as
autoridades já não podiam fingir negar: a 10 de Novembro de 1980, o
Solidariedade tornou-se no primeiro sindicato independente oficialmente
registado num país comunista, com um número estimado de dez milhões de
membros. No seu congresso nacional fundador, em Setembro seguinte,
Walesa foi eleito presidente.
De Novembro de 1980 a Dezembro de 1981, a Polónia viveu num limbo
entusiasmado e inquieto. Os conselheiros de Walesa – conscientes de erros
passados e cautelosos para não provocarem uma reacção adversa da
humilhada direcção comunista – aconselharam cautela. Esta iria ser uma
«revolução autolimitadora». Jacek Kuron, com a recordação de 1956 e 1968
bem presente, insistiu na continuação do seu compromisso com o «sistema
socialista» e reiterou a aceitação por parte do Solidariedade do «papel
dirigente do Partido» – ninguém queria dar às autoridades em Varsóvia ou
Moscovo uma desculpa para mandarem os tanques.
As restrições auto-impostas compensaram até certo ponto. Temas
abertamente políticos – desarmamento ou política externa – foram mantidos
fora da agenda pública do Solidariedade, que se centrou em vez disso na
estratégia estabelecida pelo KOR de «sociedade praticante»: estabelecer laços
com a Igreja Católica (de particular interesse para Adam Michnik, que estava
determinado a ultrapassar o tradicional anticlericalismo da Esquerda polaca e
formar uma aliança com a recentemente renovada chefia católica), formando
sindicatos locais e conselhos fabris; pressionando para a autogestão do local
de trabalho e para os direitos sociais (estes últimos pedidos inspirados palavra
por palavra nas convenções da Organização Internacional do Trabalho com
sede em Genebra).
Mas sob o comunismo até estas cautelosas tácticas «não políticas» teriam
de deparar com dificuldades face à relutância do Partido em conceder
qualquer autoridade real ou autonomia. Além disso, a economia continuava a
implodir: a produtividade industrial baixou drasticamente em 1981, quando os
recentemente sindicalizados trabalhadores polacos faziam reuniões,
manifestações e greves para insistir com as suas exigências. Visto de
Varsóvia, e especialmente de Moscovo, o país estava à deriva e o regime
estava a perder o controlo. Estava também a dar um mau exemplo aos seus
vizinhos. Apesar dos melhores esforços dos seus dirigentes cautelosos, o
Solidariedade foi condenado por ressuscitar os fantasmas de Budapeste e
Praga.
O general Wojciech Jaruzelski, que passara de ministro da Defesa para
primeiro-ministro em Fevereiro de 1981, substituindo o agora desacreditado
Gierek, em Outubro sucedeu a Stanislaw Kania como Secretário do Partido.
Com a garantia do apoio do Exército e com a liderança soviética a encorajar
acção firme para travar o deslizar da Polónia para fora de controlo, agiu
rapidamente para pôr fim a uma situação que ambos os lados sabiam não
poder durar indefinidamente. A 13 de Dezembro de 1981 – exactamente
quando as conversações sobre desarmamento entre os EUA e a União
Soviética estavam a decorrer em Genebra – Jaruzelski instaurou a lei marcial
na Polónia, aparentemente para evitar uma intervenção soviética. Os
dirigentes do Solidariedade e os conselheiros foram presos (embora só no ano
seguinte o sindicato em si tenha sido formalmente proibido, altura em que
entrou na «clandestinidade»)(3).
Em retrospectiva, depois de 1989, a ascensão do Solidariedade surge como
o tiro de partida na luta final contra o comunismo. Mas a «revolução» polaca
de 1980-81 percebe-se melhor como o último de um crescendo de protestos
dos trabalhadores que começaram em 1970 e eram dirigidos contra a
incompetente e repressiva administração da economia pelo Partido.
Incompetência cínica, carreirismo e vidas desperdiçadas; aumentos de preços,
greves de protesto e repressão; a emergência espontânea de sindicatos locais e
a participação activa dos intelectuais dissidentes; a simpatia e o apoio da
Igreja Católica: esses eram aspectos familiares no renascimento de uma
sociedade civil, comoventemente retratados por Andrzej Wajda em Homem de
Mármore (1977) e Homem de Ferro (1981), o seu relato cinematográfico
didáctico das ilusões traídas e renascidas esperanças da Polónia comunista.
Mas eram apenas isto. Não eram em si mesmos precursores da queda do
poder comunista. Como Michnik, Kuron e outros continuavam a insistir, antes
e depois da imposição da lei marcial, o comunismo poderia ser
progressivamente corroído a partir de dentro e de baixo, mas não podia ser
derrubado. O confronto aberto poderia ser catastrófico, como a história tinha
convincentemente demonstrado. Sim, a lei marcial (que se manteve em vigor
até Julho de 1983) e o consequente «estado de guerra» eram a admissão de
um certo tipo de fracasso por parte das autoridades – nunca nenhum outro
Estado comunista fora levado a tais medidas e o próprio Michnik chamou-
lhes «um desastre para o Estado totalitário» (ao mesmo tempo que admitia
que era um grave «contratempo para a sociedade independente»). Mas o
comunismo tinha que ver com poder e o poder não estava em Varsóvia mas
em Moscovo. Os desenvolvimentos na Polónia eram um estimulante prólogo
para a narrativa do colapso do comunismo, mas continuaram a ser um evento
secundário. A verdadeira história estava algures.
A restrição das actividades na Polónia contribuiu ainda para o gradual
arrefecimento das relações Leste/Oeste que começara em finais dos anos 70.
A «segunda Guerra Fria», como ficou conhecida, não deve ser exagerada:
apesar de em determinada altura tanto Leonid Brejnev como Ronald Reagan
terem acusado o outro de estar a encarar e até a planear uma guerra nuclear,
nem a União Soviética nem os Estados Unidos tinham tais intenções(4). Com
a conclusão dos Acordos de Helsínquia pareceu a Washington e a Moscovo
que a Guerra Fria estava a acabar para vantagem de ambos. De facto, a
situação na Europa servia às duas grandes potências, com os EUA agora a
comportarem-se bastante como a Rússia czarista nas décadas após a derrota
de Napoleão em 1815: ou seja, como uma espécie de polícia continental cuja
presença garantia que ali não haveria mais qualquer quebra do status quo
através de um poder revolucionário obstinado.
Seja como for, as relações Leste/Ocidente estavam a deteriorar-se. A
invasão soviética do Afeganistão em Dezembro de 1979, levada a cabo, em
grande parte, por instigação do ministro dos Negócios Estrangeiro Andrei
Gromyko, para restabelecer um regime estável e complacente nas sensíveis
fronteiras meridionais da União Soviética, ocasionou um boicote dos EUA
aos Jogos Olímpicos que se iriam realizar em Moscovo (um cumprimento
devidamente devolvido quando o bloco soviético desprezou os Jogos
Olímpicos de Los Angeles em 1984 e fez com que o presidente Jimmy Carter
revisse publicamente «a minha própria opinião sobre o que são os principais
objectivos dos Soviéticos» (The New York Times, 1 de Janeiro de 1980). A
invasão também confirmou aos dirigentes ocidentais a sensatez da sua decisão
tomada numa cimeira da NATO, apenas duas semanas antes, de instalar 108
novos Pershing II e 464 mísseis Cruise na Europa Ocidental – uma resposta à
instalação na Ucrânia de uma nova geração de mísseis de alcance médio
SS20. Parecia que uma nova corrida ao armamento se estava a insentificar.
Ninguém, e muito menos os dirigentes da Europa Ocidental cujos países
seriam os primeiros a sofrer num confronto nuclear, tinha quaisquer ilusões
quanto ao valor dos mísseis nucleares. Como instrumentos de guerra essas
armas eram invulgarmente inúteis – ao contrário das lanças, só eram
realmente boas para se sentar em cima. No entanto, como instrumento de
intimidação um arsenal nuclear tinha a sua utilidade – se se pudesse
convencer o opositor de que poderia ser usado em último caso. De qualquer
maneira, não havia outra maneira de defender a Europa Ocidental do Pacto de
Varsóvia, que no início dos anos 80 se vangloriava de mais de 50 divisões de
infantaria e blindadas, 16 000 tanques, 26 000 veículos de combate e 4000
aviões.
Foi por isso que os primeiros-ministros britânicos (Margaret Thatcher e
antes dela James Callaghan), os chanceleres da Alemanha Ocidental e os
dirigentes da Bélgica, Itália e Holanda acolheram com agrado os novos
mísseis de combate e autorizaram que ficassem estacionados em seu
território. No seu entusiasmo recente pela aliança Ocidental, o presidente
francês François Mitterrand estava especialmente empolgado: num discurso
dramático perante um Bundestag um tanto espantado, em Janeiro de 1983,
incutiu nos Alemães ocidentais a necessidade urgente de aguentar firme e
adoptar os mais recentes mísseis americanos(5).
A «nova» Guerra Fria reabriu uma perspectiva de terror completamente
desproporcionada face aos temas em questão – ou das intenções da maior
parte dos participantes. Na Europa Ocidental, o movimento pacífico
antinuclear passou por uma renovação, reforçado pela nova geração de
activistas «verdes». Na Grã-Bretanha, um sortido entusiasta e
inequivocamente inglês de feministas, ambientalistas e anarquistas,
juntamente com os seus amigos e parentes, montou um prolongado cerco à
base de mísseis Cruise em Greenham Common – para espanto da sua
desencantada guarnição.
A oposição era maior na Alemanha Ocidental, onde o chanceler social-
democrata Helmut Schmidt foi obrigado a demitir-se depois da ala esquerda
do seu partido ter votado contra os novos mísseis – que estavam agora a ser
aprovados e instalados pelo seu sucessor democrata-cristão Helmut Kohl(6).
A miragem de uma zona neutra não nuclear na Europa Central era ainda
querida de muitos Alemães e Verdes proeminentes na Alemanha Ocidental e
os sociais-democratas associaram as suas vozes ao apelo oficial da Alemanha
de Leste contra as armas nucleares – numa manifestação em Bona em
Outubro de 1983, o ex-chanceler Willy Brandt instou uma multidão
simpatizante de 300 000 pessoas a exigirem ao seu governo que renunciasse
unilateralmente aos novos mísseis. O chamado «apelo Krefeld» contra o
posicionamento de mísseis Pershing e Cruise na República Federal reuniu 2,7
milhões de assinaturas.
Nem a invasão do Afeganistão nem o «estado de guerra» na Polónia
suscitaram uma preocupação comparável na Europa Ocidental, mesmo nos
círculos oficiais (na verdade, a resposta do chanceler Helmut Schmidt à
declaração da lei marcial de Jaruzelski foi enviar um alto representante a
Varsóvia, em Fevereiro de 1982, para ajudar a vencer o «isolamento» polaco)
(7). Quanto aos «pacifistas», estavam muito menos preocupados com a
repressão em Varsóvia do que com a retórica belicosa vinda de Washington.
Embora a decisão da NATO de posicionar novos mísseis tenha sido
acompanhada pela oferta de negociações para reduzir essas armas (a chamada
abordagem de «duas faixas»), parecia cada vez mais óbvio que os EUA, com
seu novo presidente, tinham adoptado uma nova e agressiva estratégia.
Muito da beligerância em Washington era simplesmente retórica – quando
Ronald Reagan pediu que a «Polónia fosse a Polónia», ou chamou a Moscovo
«um império do mal» (em Março de 1983), estava a representar para um
público interno. Afinal, este mesmo presidente estava a iniciar conversações
para a redução de armas nucleares e a propor a retirada dos seus próprios
mísseis de médio alcance se os Soviéticos desmantelassem os deles. Mas os
Estados Unidos estavam de facto a iniciar um importante programa de
rearmamento. Em Agosto de 1981, Reagan anunciou que os EUA iriam
acumular bombas de neutrões. O sistema MX de mísseis, uma violação dos
Tratados de Redução de Armas Estratégicas, foi anunciado em Novembro de
1982, a que se seguiu cinco meses depois a Iniciativa de Defesa Estratégica
(«Guerra das Estrelas»), provocando um pronto protesto soviético com base
no argumento, credível, de que violava o Tratado de Mísseis Antibalísticos. A
ajuda militar oficial e o apoio clandestino ao Afeganistão e à América Central
foram gradualmente aumentados. Em 1985, a despesa com a defesa nos EUA
cresceu 6%, um aumento sem precedentes em tempo de paz(8).
Em Setembro de 1981, Reagan tinha avisado de que sem um acordo
efectivo sobre as armas nucleares se iria dar uma corrida ao armamento, e que
se houvesse uma corrida ao armamento, os EUA ganhariam. E assim foi. Em
retrospectiva, o desenvolvimento da defesa americana acabaria por ser visto
como a astuciosa alavanca que levou à bancarrota e acabou por desfazer o
sistema soviético. Isto, no entanto, não é bem exacto. Já em 1974 a União
Soviética não tinha meios para pagar a corrida ao armamento em que se
envolvera. Mas a bancarrota só por si não teria feito vergar o comunismo.
A Segunda Guerra Fria e a beligerância pública da América aumentaram
sem dúvida as tensões num sistema periclitante e disfuncional. A União
Soviética tinha construído uma máquina militar que derrotou Hitler, ocupou
metade da Europa e igualou o Ocidente arma por arma durante quarenta anos
– mas a um custo terrível. No seu auge, entre 30-40% dos recursos soviéticos
eram desviados para a despesa militar, quatro a cinco vezes a percentagem
americana. Era já óbvio para muitos peritos soviéticos que o seu país não
podia manter indefinidamente um tal fardo. A longo prazo, a factura
económica para este desenvolvimento militar de gerações tinha de ser paga.
Mas pelo menos a curto prazo, as tensões estrangeiras terão provavelmente
ajudado a suportar o regime. A União Soviética podia ser uma aldeia
Potemkin com a dimensão de um continente – «o Alto Volta com mísseis» na
expressiva descrição de Helmut Schmidt – mas, apesar de tudo, tinha esses
mísseis e estes impunham um determinado estatuto e granjeavam respeito aos
seus possuidores. Além disso os envelhecidos líderes soviéticos, em especial
o director do KGB Yuri Andropov, levaram muito a sério a ameaça
americana. Tal como os seus homólogos em Washington, acreditavam de
facto que o outro lado estava a considerar uma guerra nuclear preventiva. A
linha dura de Reagan e em particular a sua Iniciativa de Defesa Estratégica
tornaram a velha liderança soviética ainda menos disposta a transigir.
O verdadeiro dilema militar que os dirigentes soviéticos enfrentavam não
estava nem na Europa nem em Washington, mas em Cabul. Apesar da muito
recente sensibilidade de Jimmy Carter para com as ambições estratégicas
soviéticas, a invasão do Afeganistão não abriu uma nova frente na luta
estratégica do comunismo contra o mundo livre. Resultou, pelo contrário, da
ansiedade interna. O censo soviético de 1979 revelou um aumento sem
precedentes da população (principalmente muçulmana) da Ásia Central
soviética. No Cazaquistão soviético e nas repúblicas confinando com as
fronteiras do Afeganistão – Turquemenistão, Uzbequistão e Tajiquistão – os
números haviam aumentado mais de 25% desde 1970. No decorrer da década
seguinte, enquanto que a população ucraniana cresceria só uns 4%, a do
Tajiquistão cresceu quase metade. A Rússia europeia, como parecia aos seus
dirigentes, estava sob a ameaça subdemográfica das suas minorias internas:
como reconheceu um inquieto Leonid Brejnev no 26.o Congresso do seu
Partido, em Fevereiro de 1981, havia ainda «questões de nacionalidade» que
necessitavam de ser abordadas.
Se a ocupação do Afeganistão tivesse conseguido instalar em Cabul um
regime seguro, amigável, os dirigentes soviéticos poderiam ter alcançado um
êxito duplo. Teriam reafirmado a presença vacilante de Moscovo no Médio
Oriente ao mesmo tempo que enviavam uma «clara mensagem» a uma nova
geração de muçulmanos soviéticos tentados por sonhos de independência.
Mas os Soviéticos, evidentemente, fracassaram no Afeganistão. Brejnev,
Gromyko e os seus generais ignoraram não só as lições do Vietname,
repetindo muitos dos erros dos Americanos, também esqueceram os próprios
insucessos da Rússia czarista na mesma região oitenta anos antes. Em vez
disso, a desastrosa tentativa para manter um regime fantoche em território
hostil e desconhecido suscitou uma oposição intransigente das guerrilhas e
dos fanáticos (mujahidin), armados e financiados pelo estrangeiro. E em vez
de «abordarem» as questões nacionais do próprio império, só serviu para as
inflamar: as autoridades «marxistas» apoiadas pelos Soviéticos em Cabul
pouco fizeram pela posição de Moscovo no mundo islâmico, em casa ou no
estrangeiro.
Resumindo, o Afeganistão foi uma catástrofe para a União Soviética. O
seu impacto traumático sobre uma geração de soldados recrutados só mais
tarde surgiria. No início dos anos 90, calculava-se que um em cada cinco
veteranos das guerras do Afeganistão era alcoólico confirmado; na Rússia
pós-soviética, muitos dos outros, incapazes de encontrar trabalho regular,
juntavam-se a organizações nacionalistas de extrema-direita. Mas muito antes
disso, até mesmo os próprios dirigentes soviéticos podiam ver a enormidade
do seu erro. Para além do custo em homens e material, a guerra de dez anos
nas montanhas afegãs representava uma maior humilhação internacional.
Excluía num futuro previsível qualquer posicionamento do Exército Vermelho
para lá das suas fronteiras: como o membro do Politburo Yegor Ligachev iria
mais tarde reconhecer ao jornalista americano David Remnick, depois do
Afeganistão já estava fora de questão aplicar a força na Europa de Leste.
Isto diz qualquer coisa sobre a fragilidade subjacente da União Soviética,
tão vulnerável ao impacto de uma aventura neocolonial – ainda que
espectacularmente fracassada. Mas o desastre no Afeganistão, tal como o
custo da acelerada corrida aos armamentos do início dos anos 80, não teria em
si mesmo provocado o colapso do sistema. Sustentada pelo medo, pela inércia
e interesses próprios dos anciãos que a dirigiam, a «era de estagnação» de
Brejnev poderia ter durado indefinidamente. Como é evidente, não havia
nenhuma autoridade compensadora, nenhum movimento dissidente – quer na
União Soviética, quer nos Estados seus clientes – que a tivesse podido abater.
Só um comunista o poderia fazer. E foi um comunista que o fez.
A premissa orientadora do projecto comunista era a sua fé nas leis da
história e os interesses da colectividade, que deveriam sempre ultrapassar os
motivos e acções dos indivíduos. Foi por isso ironicamente apropriado que o
que lhes sucedeu tivesse sido no fim determinado pelo destino dos homens. A
10 de Novembro de 1982, com 76 anos de idade, Leonid Brejnev finalmente
morreu, embora há muito parecesse que já estava morto. O seu sucessor,
Andropov, tinha já 68 anos e não gozava de muito boa saúde. Ao fim de um
ano, antes de poder implementar qualquer das reformas que planeava,
Andropov morreu e foi substituído como Secretário-Geral por Konstantin
Chernenko, ele próprio com 72 anos e com uma saúde tão débil que mal
conseguiu terminar o seu discurso no funeral de Andropov, em Fevereiro de
1984. Treze meses depois, também ele estava morto.
A morte em rápida sucessão de três velhos comunistas, todos nascidos
antes da Primeira Guerra Mundial, era de certo modo sintomática: a geração
de dirigentes do Partido com recordações pessoais das origens bolcheviques
da União Soviética e cujas vidas e carreiras tinham sido frustradas por
Estaline, estava agora a desaparecer. Tinham herdado e controlado uma
burocracia autoritária, gerontocrática, cuja principal prioridade era a sua
própria sobrevivência: no mundo em que Brejnev, Andropov e Chernenko
tinham crescido, morrer na cama não era proeza de somenos. A partir de
então, porém, esse mundo iria ser governado por homens mais novos: não
menos instintivamente autoritários mas que teriam pouca opção para além de
encarar o problema da corrupção, estagnação e ineficácia que atormentava o
sistema soviético transversalmente.
O sucessor de Cernenko, devidamente promovido a Secretário-Geral do
Partido Comunista da União Soviética, a 11 de Março de 1985, foi Mikhail
Sergeyevich Gorbachev. Nascido numa aldeia da região sul de Stavropol em
1931, tinha sido eleito para o Comité Central aos 41 anos. Agora, apenas treze
anos depois, era o chefe do Partido. Gorbachev não era só vinte anos mais
novo do que os seus antecessores soviéticos: era também mais novo do que
qualquer presidente americano até Bill Clinton. A sua rápida ascensão fora
encorajada e facilitada por Andropov e era generalizadamente visto como um
provável reformador.
Um reformador, mas dificilmente um radical. Mikhail Gorbachev era
muito apparatchik. No Partido, subira de Primeiro Secretário dos Jovens
Comunistas do distrito de Stavropol, em 1956, passando por secretário do
comité das herdades estatais regionais, até membro do Soviete Supremo
(eleito em 1970). O novo dirigente encarnava muitos dos sentimentos da sua
geração comunista: nunca abertamente crítico do Partido ou das suas
políticas, estava apesar disso profundamente afectado e entusiasmado com as
revelações de 1956, para se vir a desapontar com os erros da era de
Khrushchev e desiludir com a repressão e inércia das décadas de Brejnev que
se seguiram.
Neste sentido Mikhail Gorbachev foi um reformador comunista clássico –
não é coincidência ele ter sido na Faculdade de Direito da Universidade de
Moscovo, no início dos anos 50, muito amigo de Zdeneck Mlynar, que iria
representar um papel central na Primavera de Praga de 1968. Mas tal como
todos os comunistas reformistas da sua geração, Gorbachev era primeiro um
comunista e só depois um reformador. Como explicou ao jornal comunista
francês L’Humanité, numa entrevista em Fevereiro de 1986, o comunismo de
Lenine continuava a ser para ele um belo e puro ideal. O estalinismo? «Um
conceito inventado pelos opositores do comunismo e usado em larga escala
para manchar a União Soviética e o socialismo como um todo»(9).
Não há dúvida de que isso era o que um Secretário-Geral do Partido diria,
mesmo em 1986. Mas Gorbachev certamente acreditava nisso e as reformas
que iniciou eram conscienciosamente leninistas – ou «socialistas» – na sua
intenção. De facto, Gorbachev pode muito bem ter sido ideologicamente mais
sério do que alguns dos seus antecessores soviéticos: não é por acaso que
enquanto Nikita Kruschev, uma vez numa frase célebre, declarara que, fosse
ele britânico, votaria Tory, o estadista estrangeiro preferido de Mikhail
Gorbachev era Felipe González, cujo tipo de social-democracia o dirigente
soviético viria a considerar o mais próximo do seu.
Até que ponto as esperanças estavam postas em Gorbachev, reflectia mais
do que qualquer outra coisa a ausência de oposição interna na União
Soviética. Só o Partido podia limpar a trapalhada que fizera e por sorte o
Partido tinha eleito como seu chefe um homem com a energia e a experiência
administrativa suficientes para proceder ao esforço. Para além de ter tido uma
excelente instrução e de ser muito culto para um alto burocrata soviético,
Gorbachev apresentava uma característica distintamente leninista: estava
disposto a comprometer os seus ideais para atingir os seus objectivos.
Não havia nada de misterioso nas dificuldades que Gorbachev herdara
como Secretário-Geral do PCUS. Impressionado com o que vira nas viagens à
Europa Ocidental durante os anos 70, o novo dirigente tencionava desde o
princípio dedicar os seus principais esforços a uma revisão da moribunda
economia da União Soviética e da ineficácia e corrupção entrelaçadas do seu
pesadíssimo aparelho institucional. A dívida externa crescia constantemente,
quando o preço internacional do petróleo, a principal exportação da União
Soviética, caiu, depois de ter atingido um pico em finais dos anos 70: 30,7 mil
milhões de dólares em 1986, a dívida atingiria 54 mil milhões de dólares em
1989. A economia, que mal crescera durante os anos 70, estava agora de facto
a retroceder: sempre qualitativamente atrasado, o volume de produção
soviético era agora também quantitativamente inadequado. Os objectivos do
planeamento central arbitrariamente estabelecidos, a escassez endémica, o
afunilamento dos abastecimentos e a ausência de indicadores de preço ou de
mercado, paralisavam efectivamente toda a iniciativa.
O ponto de partida para uma «reforma» num tal sistema, como os
economistas húngaros e outros economistas comunistas há muito tinham
compreendido, era a descentralização da fixação de preços e da tomada de
decisões. Mas isto deparou com obstáculos quase insuperáveis. Fora dos
Estados bálticos quase ninguém na União Soviética tinha qualquer
experiência de agricultura independente ou de economia de mercado: de
como fazer qualquer coisa, atribuir-lhe um preço ou encontrar um comprador.
Mesmo depois de a Lei de 1986 sobre a Actividade Laboral Individual ter
permitido a iniciativa privada limitada (de pequena escala), houve
surpreendentemente poucos interessados. Três anos depois, ainda só havia
300 000 empresários em toda a União Soviética, numa população de 290
milhões.
Além disso, qualquer futuro reformador económico enfrentaria um dilema
‘do ovo e da galinha’. Se a reforma económica começasse com a
descentralização da tomada de decisões, ou a atribuição de autonomia aos
negócios locais e o abandono das directivas emanadas de longe, como é que
os produtores, administradores ou empresários iriam funcionar sem mercado?
A curto prazo passaria a haver mais escassez e afunilamentos, não menos,
quando toda a gente se retirasse para uma auto-suficiência regional, e até para
uma economia local de permuta. Por outro lado, um «mercado» não podia ser
apenas anunciado. A própria palavra colocava sérios riscos políticos numa
sociedade onde o «capitalismo» fora oficialmente censurado e detestado
durante décadas (o próprio Gorbachev evitou qualquer menção a uma
economia de mercado até finais de 1987 e mesmo então falou sempre num
«mercado socialista»).
O instinto reformista era transigir: fazer experiências com a criação – a
partir de cima – de algumas empresas protegidas sem entraves burocráticos e
com a garantia de um fornecimento de matérias-primas fiável e de mão-de-
obra especializada. Estas, pensava-se, serviriam de modelos bem sucedidos e
até lucrativos para outras empresas semelhantes: o objectivo era a
modernização controlada e a progressiva adaptação ao estabelecimento de
preços e à produção em resposta à procura. Mas uma tal abordagem estava
antecipadamente condenada pela sua premissa de base – que as autoridades
podiam criar negócios eficientes por decreto administrativo.
Ao canalizar os escassos recursos para algumas herdades-modelo, fábricas
ou serviços, o Partido foi de facto capaz de criar unidades temporariamente
viáveis e até simbolicamente lucrativas – mas só com muitos subsídios e
deteriorando operações menos favorecidas nutros lugares. O resultado foi
ainda mais distorção e frustração. Entretanto, os administradores de herdades
e directores locais, incertos quanto à direcção na qual soprava o vento,
restringiram as suas apostas contra o regresso das normas planeadas e
acumularam tudo a que conseguiam deitar a mão para o caso dos controlos
centrais voltarem a apertar.
Para os críticos conservadores de Gorbachev, isto era uma velha história.
Todos os programas de reforma soviéticos desde 1921 tinham começado da
mesma maneira e tinham perdido a energia pelas mesmas razões, a começar
com a Nova Política Económica de Lenine. Reformas económicas sérias
implicavam o abrandamento ou abandono dos controlos. Não só isto
exacerbava inicialmente os problemas que devia solucionar, como significava
exactamente o que dizia: uma perda de controlo. Mas o comunismo dependia
do controlo – de facto, o comunismo era controlo: controlo da economia,
controlo do conhecimento, controlo do movimento e da opinião e das pessoas.
Tudo o resto era dialéctica e a dialéctica – como explicou um veterano
comunista ao jovem Jorge Semprún em Buchenwald – «é a arte e a técnica de
cair sempre em pé»(10).
Depressa se tornou óbvio para Gorbachev que para cair de pé quando se
debatia com a economia soviética, tinha de aceitar que o problema da
economia soviética não podia ser resolvido de forma isolada. Não era mais do
que um sintoma de um problema maior. A União Soviética era dirigida por
homens que tinham interesses instalados nas alavancas institucionais e
políticas de uma economia planificada; os pequenos absurdos endémicos e a
corrupção quotidiana eram a própria fonte da sua autoridade e poder. Para o
Partido reformar a economia teria primeiro de se reformar a si mesmo.
Também isto não era uma ideia nova – as purgas periódicas com Lenine e
seus sucessores tinham tradicionalmente proclamado os mesmos objectivos.
Mas os tempos tinham mudado. A União Soviética, por muito repressiva e
atrasada que fosse, já não era uma tirania mortífera totalitária. Graças aos
monumentais projectos de habitação de Khrushchev, a maior parte das
famílias soviéticas vivia agora no seu próprio apartamento. Feios e
ineficientes, estes apartamentos de renda baixa proporcionavam ainda assim
às pessoas comuns um grau de privacidade e segurança desconhecido das
gerações anteriores: já não estavam tão expostas aos informadores ou
correndo o risco de serem denunciadas às autoridades pelos vizinhos ou pelos
parentes por afinidade. A era do terror tinha acabado para a maior parte das
pessoas e, pelo menos para a geração de Gorbachev, um regresso ao tempo
das prisões em massa e purgas partidárias era impensável.
Para quebrar o estrangulamento do apparat do Partido e prosseguir com os
seus planos de reestruturação económica, então, o Secretário-Geral recorreu
em vez disso à glasnost – «abertura»: incentivo oficial à discussão pública de
uma gama de tópicos cuidadosamente restrita. Ao tornar as pessoas mais
conscientes das mudanças próximas e ao elevar as expectativas do público,
Gorbachev iria criar um estratagema com o qual ele e os seus apoiantes
poderiam espreitar para a indefinida oposição oficial aos seus planos.
Também isto foi uma táctica vantajosa, familiar aos czares reformadores,
entre outros. Mas para Gorbachev a urgência da necessidade de abertura
oficial foi-lhe transmitida pelos acontecimentos catastróficos de 26 de Abril
de 1986.
Nesse dia, à 1:23 da manhã, um dos enormes reactores de grafite da
central de energia nuclear em Chernobyl (Ucrânia) explodiu, lançando para a
atmosfera 120 milhões de curies de material radioactivo – mais de cem vezes
a radiação de Hiroxima e Nagasáqui juntas. A nuvem de poeiras radioactivas
foi levada para Noroeste, para a Europa Ocidental e Escandinávia, chegando
até Gales e à Suécia e expondo uns estimados cinco milhões de pessoas aos
seus efeitos. Para além dos 30 trabalhadores de emergência mortos no local,
umas 30 000 pessoas morreram desde então devido a complicações
provocadas pela exposição à radiação de Chernobyl, incluindo mais de 2000
casos de cancro da tiróide entre os residentes na vizinhança.
Chernobyl não foi o primeiro desastre ambiental da União Soviética. Em
Cheliabinsk-40, um local de investigação secreto perto de Ekaterinburg nos
Urais, um tanque de resíduos nucleares explodiu em 1957, poluindo
gravemente uma área de 8 km de largura por 100 km de comprimento. Cerca
de 76 milhões de metros cúbicos de resíduos radioactivos foram despejados
para o sistema hidrográfico dos Urais, contaminando-o durante décadas. Dez
mil pessoas acabaram por ser evacuadas e 23 aldeias arrasadas. O reactor de
Cheliabinsk era da primeira geração de construções atómicas soviéticas e fora
construído com trabalho escravo em 1948-51(11).
Outras calamidades ambientais provocadas pelo homem a uma escala
comparável incluíam a poluição do Lago Baikal; a destruição do Mar de Aral;
a descarga no Mar Ártico e no Mar de Barents de centenas de milhares de
toneladas de navios atómicos defuntos e seus conteúdos radioactivos e a
contaminação com dióxido de enxofre, usado na produção de níquel, de uma
área do tamanho da Itália, próxima de Norilsk, na Sibéria. Estes e outros
desastres ecológicos foram todos resultado directo da indiferença, má
administração e da atitude soviética de «abate e queima» para com os
recursos naturais. Eram o resultado de uma cultura de secretismo. Durante
muitas décadas a explosão de Cheliabinsk-40 não foi oficialmente
reconhecida, apesar de ter ocorrido a poucos quilómetros de uma grande
cidade – a mesma cidade onde, em 1979, várias centenas de pessoas
morreram com devido a uma fuga de antrax de uma fábrica de armas
biológicas no centro da cidade.
Os problemas com os reactores nucleares da URSS eram todos do
conhecimento interno: dois relatórios distintos do KGB, datados de 1982 e
1984, chamavam a atenção para o equipamento de má qualidade (fornecido
pela Jugoslávia) e para as graves deficiências nos reactores 3 e 4 de
Chernobyl (foi este último que explodiu em 1986). Mas assim como esta
informação fora mantida secreta (e não se tomou nenhuma acção) também a
primeira resposta instintiva da direcção do Partido à explosão de 26 de Abril
foi manter-se calada a esse respeito – afinal, havia nessa altura 14 centrais do
tipo Chernobyl em funcionamento por todo o país. O primeiro
reconhecimento de Moscovo de que qualquer coisa de adverso tinha
acontecido surgiu quatro dias depois do acontecimento e então num
comunicado oficial de duas frases.
Mas Chernobyl não se podia manter secreto: a ansiedade internacional e a
própria incapacidade dos Soviéticos para controlar os danos obrigaram
Gorbachev a fazer uma declaração pública duas semanas depois,
reconhecendo alguma coisa, mas não tudo o que tinha acontecido e mesmo
assim para pedir ajuda e técnicos estrangeiros. E exactamente quando os seus
concidadãos ficaram assim publicamente a saber, pela primeira vez, o grau da
incompetência oficial e da indiferença pela vida e pela saúde, também
Gorbachev foi forçado a reconhecer a extensão dos problemas do seu país. A
incompetência, a falsidade e o cinismo dos homens responsáveis, tanto pelo
desastre como pela tentativa de o esconder, não podiam ser descartados como
lamentável perversão dos valores soviéticos: eram valores soviéticos, como o
dirigente soviético começou a compreender.
No Outono de 1986, Gorbachev mudou as coisas. Em Dezembro desse
ano, Andrei Sakharov, o dissidente mundialmente mais conhecido, foi
libertado da prisão domiciliária em Gorky (Nizhniy Novgorod), um prenúncio
da grande libertação de prisioneiros políticos soviéticos que teve início no ano
seguinte. A censura abrandou – 1987 viu a publicação, há muito protelada, de
Vida e Destino de Vassily Grossman (26 anos depois de M. A. Suslov, o
comissário ideológico do Partido, ter previsto que não poderia ser publicado
antes de «dois ou três séculos»). A polícia recebeu instruções para deixar de
obstruir as emissões das rádios estrangeiras. E o Secretário-Geral do PCUS
escolheu a ocasião do seu discurso ao Comité Central do Partido, em Janeiro
de 1987, transmitido na televisão, para defender uma democracia mais
abrangente, por cima das cabeças dos conservadores do Partido e
directamente para a nação em geral.
Em 1987, mais de nove em cada dez lares soviéticos possuíam uma
televisão, e a táctica de Gorbachev foi inicialmente um impressionante
sucesso: ao criar uma esfera pública de facto de debate semiaberto sobre as
preocupações do país e rompendo o monopólio da casta governamental da
informação, estava a obrigar o Partido a jogar a mesma cartada – e fazendo
com que fosse seguro para os até aí silenciosos reformadores dentro do
sistema exprimirem-se e dando-lhes o seu apoio. No decurso de 1987-88, o
Secretário-Geral estava, quase apesar de si mesmo, a preparar um novo
eleitorado nacional para a mudança. Brotaram organizações informais:
nomeadamente o «Clube Perestroika» formado no Instituto Matemático de
Moscovo em 1987, que por sua vez deu origem ao «Memorial» cujos
membros se dedicavam a «manter viva a memória das vítimas» do passado
estalinista. Inicialmente espantados com a sua própria existência – a União
Soviética, afinal, era ainda uma ditadura de partido único –, em breve
floresceram e multiplicaram-se. Em 1988, o apoio a Gorbachev vinha cada
vez mais do exterior do Partido, da opinião pública que surgira recentemente.
O que aconteceu foi que a lógica dos objectivos reformistas de Gorbachev
e a sua decisão, na prática, de apelar à nação contra os seus críticos
conservadores de dentro do aparelho, tinha transformado a dinâmica da
perestroika. Tendo começado como reformador dentro do Partido governante,
o seu Secretário-Geral estava agora a trabalhar cada vez mais contra ele ou
pelo menos a tentar contornar a oposição do Partido à mudança. Em Outubro
de 1987 Gorbachev falou pela primeira vez em público nos crimes de Estaline
e avisou que se o Partido não apoiasse as reformas, perderia o seu papel de
liderança na sociedade.
Na Conferência do Partido de Junho de 1988, reiterou o seu
empenhamento na reforma e abrandamento da censura e convocou a
preparação de eleições abertas (isto é, com oposição) para um Congresso de
Representantes do Povo no ano seguinte. Em Outubro de 1988, despromoveu
alguns dos seus principais opositores – nomeadamente Yegor Ligachev, um
crítico de longa data – e fez-se eleger a si mesmo Presidente do Soviete
Supremo (ou seja, Chefe de Estado), demitindo Andrei Gromyko, o último
dos dinossauros. Dentro do Partido ainda enfrentava forte oposição da
retaguarda, mas no país em geral a sua popularidade estava no auge, razão por
que lhe foi possível avançar – e de facto tinha poucas opções a não ser fazê-
lo(12).
As eleições de Maio/Junho de 1989 foram as primeiras mais ou menos de
voto livre na União Soviética desde 1918. Não eram eleições multipartidárias
– isso só sucederia em 1993, altura em que a União Soviética há muito
desaparecera – e o resultado estava em grande parte predeterminado,
restringindo muitos lugares aos candidatos do Partido e proibindo a
concorrência interna no Partido; mas o Congresso que elegeram incluía
muitas vozes independentes e críticas. Os seus procedimentos foram
transmitidos pela rádio para uma audiência de uns 100 milhões de
espectadores e os pedidos de Sakharov e outros para mais mudanças –
nomeadamente a destituição do cada vez mais desacreditado Partido da sua
posição privilegiada – não podiam ser tratados como coisa de menor
importância, mesmo por um inicialmente relutante Gorbachev. O monopólio
do poder dos comunistas estava a fugir, e com o encorajamento de Gorbachev
o Congresso iria votar em Fevereiro seguinte a eliminação da Constituição
soviética da cláusula-chave – Artigo 6.o – atribuindo ao Partido Comunista
um «papel principal»(13).
O curso da revolta interna soviética de 1985 a 1989 foi facilitado por uma
importante mudança na política externa soviética sob Gorbachev e do seu
ministro dos Negócios Estrangeiros, Edvard Chevardnaze. Desde o princípio,
Gorbachev tornou clara a sua determinação em aliviar a URSS até ao último
dos últimos dos seus encargos militares mais onerosos. Passado um mês da
chegada ao poder, tinham travado o posicionamento de mísseis soviéticos e
proposto negociações incondicionais sobre forças nucleares, começando com
uma proposta para as duas superpotências reduzirem para metade os seus
arsenais estratégicos. Em Maio de 1986, depois de uma bem sucedida
«cimeira» com Reagan em Genebra (o primeiro de cinco encontros inéditos),
Gorbachev concordou em permitir que os «sistemas sediados na frente»
fossem excluídos das conversações sobre armas estratégicas, se isso ajudasse
a que estas prosseguissem.
Seguiu-se uma segunda cimeira (Reykjavik) em Outubro de 1986 onde
Reagan e Gorbachev, ao mesmo tempo que não conseguiam chegar a acordo
sobre o desarmamento nuclear, lançaram mesmo assim as bases para um êxito
futuro. Em finais de 1987, Chevardnaze e o secretário de Estado dos EUA,
George Schultz tinham esboçado um Tratado das Forças Nucleares de Médio
Alcance, assinado e ratificado no ano seguinte. Este Tratado, ao aprovar a
anterior proposta de Reagan de «opção zero», constituiu a aceitação soviética
de que uma guerra nuclear na Europa não podia ser ganha – e serviu como
prólogo para um tratado ainda mais importante, assinado em 1990, limitando
estritamente a presença e funcionamento de forças convencionais no
continente Europeu.
Visto de Washington, as concessões de Gorbachev sobre os armamentos
pareciam naturalmente uma vitória para Reagan – e assim, na soma zero dos
cálculos dos estrategas da Guerra Fria, uma derrota para Moscovo. Mas para
Gorbachev, cujas prioridades eram internas, garantir um ambiente
internacional mais estável era já de si uma vitória. Deu-lhe tempo e apoio
para as suas reformas internas. O verdadeiro significado desta sequência de
encontros e acordos residia no reconhecimento soviético de que um confronto
militar no estrangeiro era não só dispendioso como também disfuncional:
conforme Gorbachev o expressou em Outubro de 1986 durante uma visita a
França, a «ideologia» não era uma base apropriada para a política externa.
Estas opiniões reflectiam o conselho que começava a receber de uma nova
geração de peritos soviéticos em assuntos externos, nomeadamente do seu
colega Aleksandr Yakovlev, para quem se tornara evidente que a URSS podia
exercer um maior controlo das suas relações externas através de concessões
bem calculadas do que através de confrontos infrutíferos. Ao contrário dos
intratáveis problemas que enfrentava no seu país, a política externa era uma
arena sobre a qual Gorbachev exercia controlo directo e podia assim esperar
realizar melhoramentos imediatos. Além disso a estrita dimensão de Grande
Potência das relações estrangeiras soviéticas não devia ser exagerada:
Gorbachev dava pelo menos tanta importância às suas relações com a Europa
Ocidental como às suas relações com os EUA – fez ali frequentes visitas e
estabeleceu boas relações com González, Khol e Thatcher (que, numa
apreciação célebre, o considerou um homem com quem podia «fazer
negócios»)(14).
De facto, em aspectos importantes, Gorbachev considerava-se acima de
tudo um estadista europeu, com prioridades europeias. O seu interesse em
acabar com a corrida às armas e acumulação de armas nucleares estava
estreitamente ligado a uma nova abordagem do papel da União Soviética
como poder distintamente europeu. «Os armamentos», declarou em 1987,
«devem ser reduzidos para um nível necessário a estritos fins de defesa. É
tempo de as duas alianças militares corrigirem os seus conceitos estratégicos
para os ajustar mais aos objectivos da defesa. Cada apartamento no ‘lar
europeu’ tem o direito de se proteger dos ladrões, mas deve fazê-lo sem
destruir a propriedade do seu vizinho».
Num espírito semelhante e pelas mesmas razões, o dirigente soviético
percebeu desde o início a necessidade urgente de retirar a União Soviética do
Afeganistão, a «ferida a sangrar», como o descreveu num Congresso do
Partido em Fevereiro de 1986. Cinco meses depois anunciou a retirada de
6000 soldados soviéticos, completada em Novembro do mesmo ano. Em
Maio de 1988, a seguir a um acordo com o Afeganistão e o Paquistão obtido
em Genebra e garantido pelas duas grandes potências, as tropas soviéticas
começaram a sair do Afeganistão: os restantes soldados do Exército Vermelho
partiram a 15 de Fevereiro de 1989(15).
Longe de lidar com as questões de nacionalidade soviéticas, a aventura
afegã tinha-as, como era agora absolutamente claro, exacerbado. Se a URSS
enfrentava um conjunto intratável de minorias nacionais, isso era em parte um
problema criado por si: fora Lenine e os seus sucessores, afinal, quem tinha
inventado as várias «nações» súbditas a quem tinham atribuído as devidas
regiões e repúblicas. Numa imitação das práticas imperiais noutros sítios,
Moscovo tinha incentivado o aparecimento – em lugares onde a nacionalidade
era desconhecida cinquenta anos antes – de instituições e dirigentes
agrupados à volta de um centro urbano nacional ou «capital». Os Primeiros
Secretários dos partidos comunistas do Cáucaso, ou nas repúblicas da Ásia
Central, eram geralmente escolhidos de entre o grupo étnico local dominante.
Para garantir o seu feudo, estes homens, compreensivelmente, eram levados a
identificar-se com o «seu próprio» povo, particularmente quando as fissuras
começaram a aparecer no aparelho central. O Partido estava a começar a
fracturar-se sob o impulso centrífugo de administradores locais ansiosos a
protegerem os seus próprios interesses.
Parece que Gorbachev não compreendeu totalmente este processo.
«Camaradas», disse ao Partido em 1987, «podemos afirmar sinceramente que
para o nosso país o assunto das nacionalidades está resolvido». Talvez
também não acreditasse inteiramente nas suas afirmações, mas pensou
certamente que um abrandamento do controlo central e a resolução de antigos
agravos seria o suficiente (em 1989, os Tártaros da Crimeia, por exemplo,
foram finalmente autorizados a regressar a casa após muitas décadas de exílio
asiático). Num império continental de mais de cem grupos étnicos, do Báltico
ao Mar de Okhotsk, a maior parte dos quais tinha queixas de longa data que a
glasnost agora os incentivava a manifestar, isto revelar-se-ia um grave erro de
cálculo.
A inadequação da resposta de Gorbachev aos pedidos de autonomia nas
afastadas margens do império soviético não nos deve surpreender. Gorbachev
era desde o início, como vimos, um «comunista reformador», apesar de muito
invulgar: compreensivo com a necessidade de mudança e renovação, mas
relutante em atacar os dogmas centrais do sistema sob que tinha crescido.
Como muitos da sua geração na União Soviética e noutros países, acreditava
genuinamente que o único caminho para a melhoria residia num regresso aos
«princípios» leninistas. A ideia de que era o projecto leninista em si que
poderia estar errado mantevese estranha ao dirigente soviético até muito tarde
– só em 1990 permitiu finalmente a publicação interna de escritores
abertamente antileninistas como Alexandre Soljenitsin.
O espírito dos objectivos iniciais de Gorbachev está exemplificado no
inimitável estilo da recentemente descoberta tolerância oficial pela música
pop, conforme expresso pelo Pravda em Outubro de 1986: «O Rock and Roll
tem o direito de existir mas só se for melodioso, significativo e bem
executado». Era precisamente o que Mikhail Gorbachev queria: um
comunismo melodioso, significativo e bem executado. As reformas
necessárias seriam empreendidas e as liberdades apropriadas concedidas, mas
não haveria autorização não regulamentada – em Fevereiro de 1988 o governo
estava ainda a proibir firmemente as editoras e as tipografias independentes.
É uma das curiosidades dos reformadores comunistas começaram sempre
com o objectivo quixotesco de reformar alguns aspectos do seu sistema ao
mesmo tempo que mantinham outros não afectados – introduzindo incentivos
orientados para o mercado ao mesmo tempo que mantinham os controlos do
planeamento central, ou permitindo maior liberdade de expressão ao mesmo
tempo que mantinham o monopólio da verdade do Partido. Mas a reforma
parcial ou a reforma de um sector isolado dos outros era em si mesma
contraditória. O «pluralismo administrado» ou o «mercado socialista»
estavam condenados desde o princípio. Quanto à ideia de que o «papel
principal» do Partido Comunista se poderia manter enquanto o próprio
Partido se libertava apenas das excrescências patológicas de sete décadas de
poder absoluto, sugere uma certa ingenuidade política da parte de Gorbachev.
Num sistema autoritário o poder é indivisível – abandona-se-o em parte e
acaba-se por perdê-lo na totalidade. Quase quatro séculos antes, o monarca
Stuart Jaime I percebeu estas coisas muito melhor – como o disse numa
sucinta rejeição dos protestos dos presbiterianos escoceses contra o poder
investido nos seus bispos: «Não há Bispo, não há Rei».
Gorbachev e a sua revolução controlada acabaram por ser afastados pela
dimensão das contradições que levantaram. Em retrospectiva, observou com
algum arrependimento que «naturalmente, sinto-me perturbado com o facto
de não ter conseguido manter todo o processo da perestroika dentro do meu
quadro de intenções». Mas as intenções e o quadro eram incompatíveis. Uma
vez removidos os suportes da censura, controlo e repressão, tudo o que era
importante no sistema soviético – a economia planeada, a retórica pública, o
monopólio do Partido – simplesmente ruiu.
Gorbachev não atingiu o seu objectivo, um comunismo reformado e
eficiente, despojado das suas disfunções. De facto, falhou completamente.
Mas a sua proeza foi ainda assim impressionante. Na URSS não havia
instituições independentes ou mesmo semiautónomas para os críticos e
reformadores se mobilizarem em seu favor: o sistema soviético só poderia ser
desmantelado a partir de dentro e por iniciativa vinda de cima. Ao começar
por introduzir um elemento de mudança, e depois outro e depois outro,
Gorbachev foi progressivamente minando o próprio sistema através do qual
tinha subido. Usando dos vastos poderes de um Secretário-Geral do Partido,
eviscerou a ditadura do Partido a partir de dentro.
Este foi um feito notável e sem precedentes. Ninguém o podia ter previsto
em 1984, quando Chernenko morreu, e ninguém o previu. Gorbachev, na
opinião de um dos seus conselheiros próximos, era «um erro genético do
sistema»(16). Em retrospectiva, tornou-se tentador concluir que a sua ascensão
foi estranhamente oportuna – quando o sistema soviético estava vacilante, eis
que surgiu um dirigente que percebia o que se estava a passar e que procurou
com êxito uma saída estratégica do império. Chegada a hora, chegado o
homem? Talvez. E Mikhail Gorbachev de certeza não era mais um
apparatchik.
Mas de certeza que não fazia ideia do que estava a fazer e teria ficado
horrorizado se tivesse sabido. Os seus críticos eram mais perspicazes. Por
outro lado, os da linha dura do Partido, compreensivelmente, detestavam
Gorbachev – muitos deles aprovaram calorosamente a famosa carta publicada
no jornal Sovetskaya Rossiya a 13 de Março de 1988, em que Nina
Andreyeva, uma professora de Leninegrado, avisou, zangada (com bastante
razão, como se sabia), que as novas reformas iriam inevitavelmente levar o
país de volta ao capitalismo. Por outro lado, Gorbachev nunca teve o apoio
incondicional dos reformistas radicais, que se sentiam cada vez mais
frustrados com a aparente indecisão. Era uma das fraquezas de Gorbachev
que para manter o controlo dos acontecimentos se sentisse obrigado a ocupar
o terreno do centro sempre que possível, incentivando novas ideias, mas
depois deslizando de volta para os braços dos conservadores do Partido,
exactamente quando reformistas radicais como Yakovlev ou Boris Yeltsin o
estavam a pressionar para ir muito mais longe. Estas hesitações, a aparente
relutância de Gorbachev em impor a lógica das suas iniciativas e a sua
insistência em não ir demasiado longe ou demasiado depressa deixou muitos
dos admiradores iniciais desiludidos.
O problema era que, ao renunciar ao monopólio do poder e da iniciativa do
Partido, Gorbachev reduzia também consideravelmente a sua influência. Era
assim obrigado a criar alianças tácticas e a equilibrar-se entre as posições
extremistas dos outros. Esta é uma necessidade familiar, ainda que incómoda,
aos políticos democráticos, mas aos olhos de uma nação habituada a setenta
anos de ditadura, estas manobras faziam simplesmente com que Gorbachev
parecesse fraco. A partir dos primeiros meses de 1989, o presidente soviético
caiu regularmente nas sondagens de opinião. No Outono de 1990, Gorbachev
teria apenas o apoio de 21% do público.
Muito antes da sua queda do poder, então, Gorbachev perdera o seu estado
de graça. Mas só em casa: no exterior, a «Gorbimania» florescia. Nas suas
cada vez mais frequentes visitas ao estrangeiro, Gorbachev era recebido pelos
políticos e aplaudido por multidões entusiásticas. Em finais de 1988,
Margaret Thatcher – uma das mais fervorosas apoiantes de Gorbachev –
declarou que a Guerra Fria «acabou». Visto da Europa de Leste, isto pode ter
parecido um pouco prematuro, mas também aí Mikhail Gorbachev era
imensamente popular.
Nas «democracias populares», os esforços internos do dirigente soviético,
apesar de devidamente notados, contavam menos do que as suas declarações
formais no estrangeiro, nomeadamente um amplamente divulgado discurso às
Nações Unidas a 7 de Dezembro de 1988. Depois de anunciar cortes
unilaterais nas forças convencionais soviéticas na Europa, Gorbachev
prosseguiu, advertindo a assistência de que a «liberdade de escolha é um
princípio universal. Não deveria haver excepções». Isto era mais do que
simplesmente uma renúncia da «doutrina de Brejnev», um reconhecimento de
que Moscovo não usaria a força para impor a sua versão do «socialismo» aos
Estados fraternos. O que Gorbachev estava a admitir – e que foi de imediato
entendido como tendo admitido – era que os cidadãos dos Estados-satélites
tinham agora liberdade para seguir o seu próprio caminho, socialista ou não.
A Europa de Leste estava prestes a reentrar na história.
Sob a liderança de Mikhail Gorbachev, a União Soviética desde 1985 que
se retirara progressivamente da supervisão directa dos seus Estados clientes.
Mas as implicações deste crescente afastamento mantinham-se pouco claras.
As democracias populares eram ainda governadas por cliques partidárias
autoritárias cujo poder assentava sobre um aparelho repressivo sólido. Os seus
serviços policiais e secretos mantinham-se estreitamente ligados e obrigados
ao aparelho de segurança da União Soviética e continuavam a funcionar semi-
independentes das autoridades locais. E enquanto os governantes em Praga,
ou Varsóvia, ou Berlim Leste começavam a perceber que já não podiam
contar com o apoio incondicional de Moscovo, nem eles nem os seus súbditos
faziam uma ideia clara do que isto significava.
A situação na Polónia simbolizava estas incertezas. Por um lado, a
declaração da Lei Marcial tinha reafirmado o governo autoritário do Partido
Comunista. Por outro, a supressão do Solidariedade e o silenciamento dos
seus dirigentes nada fez para aliviar os problemas subjacentes do país. Bem
pelo contrário: a Polónia ainda estava endividada, mas agora – graças à
condenação internacional da repressão – os seus governantes já não se podiam
desembaraçar das dificuldades pedindo mais empréstimos ao estrangeiro. De
facto, os governantes da Polónia estavam a enfrentar o mesmo dilema que
tinham tentado resolver nos anos 70, mas ainda com menos opções.
Entretanto, a oposição podia ter sido criminalizada, mas não se tinha
evaporado. A publicação clandestina continuou, assim como palestras,
debates, récitas teatrais e muito mais coisas. O próprio Solidariedade, apesar
de proibido, mantinha uma existência virtual, especialmente depois do seu
porta-voz mais conhecido, Lech Walesa, ter sido libertado do internamento
em Novembro de 1982 (e de lhe ter sido concedido o Prémio Nobel da Paz no
ano seguinte). O regime não podia correr o risco de proibir uma outra visita
do Papa, em Junho de 1983, após a qual a Igreja ficou ainda mais empenhada
em actividades clandestinas e semioficiais.
A polícia política preferia a repressão: num caso infame em 1984,
orquestraram o rapto e assassinato de um popular padre radical, o padre Jerzy
Popieluszko – pour décorager les autres. Mas Jaruzelski e a maior parte dos
seus colegas percebiam que tais provocações e confrontos já não iriam
funcionar. O funeral de Popieluszko atraiu uma multidão de 350 000 pessoas
e, longe de assustar a oposição, o incidente limitou-se a publicitar a amplitude
do apoio popular à Igreja e ao Solidariedade, legal ou não. Em meados dos
anos 80, a Polónia estava a aproximar-se rapidamente de um distanciamento
entre uma sociedade recalcitrante e um Estado cada vez mais desesperado.
O instinto natural da liderança do Partido (em Varsóvia como em
Moscovo) era propor «reformas». Em 1986, Jaruzelski, agora Chefe de
Estado, libertou da prisão Adam Michnik e outros dirigentes do Solidariedade
e, através de um «Ministério da Reforma Económica» recentemente criado,
ofereceu um modesto conjunto de alterações económicas destinadas, entre
outros objectivos, a atrair uma nova consolidação estrangeira do défice
nacional polaco, agora a aproximar-se rapidamente dos 40 mil milhões de
dólares(17). Num aceno bizarro à democracia, o governo começou
efectivamente a perguntar aos Polacos, em 1987, qual o tipo de «reforma»
económica de que gostariam: «Preferem», foi-lhes perguntado, «um aumento
de 50% no preço do pão e 100% no petróleo, ou 60% no petróleo e 100% no
pão?» Sem grande surpresa, a resposta do público foi essencialmente
«nenhum dos dois».
A pergunta – e a decisão de a fazer – ilustrava perfeitamente tanto a
falência política como económica dos dirigentes comunistas da Polónia. De
facto, diz algo a respeito da fraccionada credibilidade das autoridades que a
participação da Polónia no FMI tenha sido possível em parte devido ao
consentimento do próprio Solidariedade. Apesar de ter sido proibido, o
sindicato conseguira manter a sua organização no estrangeiro e foi o escritório
do Solidariedade em Bruxelas que aconselhou o director-geral do FMI, em
Setembro de 1985, a admitir a Polónia – ao mesmo tempo que insinuava que
as melhorias parciais de Jaruzelski estavam antecipadamente condenadas e
que só um pacote de profundas reformas podia resolver os problemas do
país(18).
Em 1987, o aspecto que mais chamava a atenção na situação polaca era a
total impotência do Partido e dos seus órgãos. Sem enfrentar realmente
qualquer ameaça visível ao seu monopólio do poder, o Partido Polaco dos
Trabalhadores Unidos estava a resvalar para a irrelevância. A «contra-
sociedade» teorizada por Michnik e outros uma década antes estava a emergir
como uma fonte de facto de autoridade e iniciativa. Depois de 1986, o debate
no seio da oposição polaca voltou-se não tanto para ensinar a sociedade a ser
livre, como sobre até que ponto a oposição devia concordar em comprometer-
se com o regime e para que fim.
Um grupo de jovens economistas da Escola de Planeamento e Estatística
de Varsóvia, liderado por Leszek Balcerowicz, estava já a estabelecer planos
para um sector empresarial privado autónomo liberto do planeamento central
– ou seja, um mercado; esta e outras propostas foram intensamente debatidas
entre os Polacos «não oficiais» e muito discutidas no estrangeiro. Mas os
princípios orientadores do «realismo» político e dos objectivos
«autolimitadores» de 1980-81 mantinham-se em força – confronto e
violência, que só podiam dar vantagem aos da linha dura do Partido, foram
cuidadosa e afortunadamente evitados. Conversações eram uma coisa,
«aventuras» era outra.
O que desencadeou o eclipse final do Partido, como seria previsível, foi
mais outra tentativa para «reformar» a economia – ou, mais modestamente,
reduzir o défice insustentável do país. Em 1987, os preços no consumidor
subiram quase 25%; em 1988 mais 60%. Tal como em 1970, 1976 e
novamente em 1980, assim era agora: os graves aumentos de preços
desencadearam uma sequência de greves culminando num movimento maciço
de paralisações e ocupações na Primavera e no Verão de 1988. No passado,
não possuindo qualquer influência sobre a mão-de-obra, as autoridades
comunistas ou abandonavam os esforços para subir os preços, ou então
recorriam à força – ou às duas coisas. Nesta ocasião tinham uma terceira
opção – pedir ajuda aos dirigentes dos próprios trabalhadores. Em Agosto de
1988, o general Czeslaw Kiszczak, ministro de Interior, pressionou Lech
Walesa – nominalmente um cidadão privado, o líder não reconhecido de uma
organização não reconhecida – para se encontrar com ele e negociarem um
fim aos protestos laborais do país. Inicialmente relutante, Walesa acabou por
concordar.
Walesa teve pouca dificuldade em apelar aos grevistas – a autoridade
moral do Solidariedade crescera desde 1981 – mas as questões subjacentes
mantinham-se: a taxa de inflação do país estava agora a atingir os 1000% ao
ano. Seguiram-se quatro meses de contactos não oficiais esporádicos entre o
Solidariedade e o governo, estimulando mais apelos públicos para a
«reforma». À deriva, desamparadas, as autoridades oscilavam entre gestos e
ameaças: substituindo ministros, negando quaisquer planos de negociações,
prometendo alterações económicas, ameaçando fechar o estaleiro de Gdansk.
A confiança pública no Estado, nestes moldes, ruiu.
A 18 de Dezembro de 1988 – sintomaticamente, ainda que por
coincidência, apenas uma semana depois do discurso seminal de Gorbachev
na ONU – formou-se uma «Comissão de Cidadãos» de Solidariedade em
Varsóvia para planear negociações em grande escala com o governo.
Jaruzelski, com as suas opções aparentemente esgotadas, admitiu finalmente o
óbvio e obrigou um Comité Central um tanto relutante a concordar com as
conversações. A 6 de Fevereiro de 1989, os comunistas reconheceram
oficialmente o Solidariedade como parceiro de negociações e inauguraram
uma «mesa-redonda» com os seus representantes. As conversações duraram
até 5 de Abril. Nesse dia (uma vez mais uma semana depois de importantes
desenvolvimentos soviéticos, desta vez as eleições livres para o Congresso de
Representantes do Povo) todas as partes concordaram com a legalização dos
sindicatos independentes, legislação económica abrangente e acima de tudo
com a eleição de uma nova Assembleia.
Em retrospectiva, o resultado das conversações de mesa-redonda foi um
fim negociado do comunismo na Polónia e pelo menos para alguns dos
participantes isto já era evidente. Mas ninguém previu a rapidez do desenlace.
As eleições a ter lugar a 4 de Junho, ao mesmo tempo que permitiam um
elemento inédito de verdadeira escolha, foram falsificadas para garantir uma
maioria comunista: a votação para o Senado nacional iria ser genuinamente
livre, mas nas eleições para o Sejm (Assembleia Parlamentar) metade dos
lugares estavam reservados para os candidatos oficiais (ou seja, comunistas).
E ao programar as eleições para tão cedo o governo esperava ganhar com a
desorganização e inexperiência dos seus opositores.
Os resultados foram um choque para toda a gente. Com a cobertura da
«Gazeta das Eleições» (Gazeta Wyborcza) improvisada por Adam Michnik, o
Solidariedade ganhou 99/100 lugares para o Senado e todos os lugares a que
lhe foi permitido candidatar-se para o Sejm. Entretanto, só dois dos candidatos
comunistas aos lugares «reservados» garantiram os 50% de votos exigidos
para ocuparem os seus lugares. Perante uma derrota completa e uma
humilhação pública sem precedentes, os governantes comunistas da Polónia
tiveram a opção de ignorar a votação, declarando uma vez mais a lei marcial,
ou então aceitar a derrota e renunciar ao poder.
Posto assim, a escolha era clara – como Gorbachev tornou bastante
explícito a Jaruzelski numa conversa telefónica privada, as eleições tinham de
se manter. A primeira ideia de Jaruzelski foi garantir um compromisso para
salvar a face, convidando o Solidariedade para se lhe juntar num governo de
coligação, mas isto foi recusado. Em vez disso, umas semanas após mais
negociações e fracassados esforços comunistas para nomear o seu próprio
primeiro-ministro, a direcção do Partido vergou-se ao inevitável, e, a 12 de
Setembro de 1989, Tadeusz Mazowiecki foi aceite como o primeiro não
comunista da Polónia do pós-guerra a ser primeiro-ministro (embora os
comunistas tenham mantido o controlo de alguns ministérios-chave).
Entretanto, num movimento político perspicaz, o grupo parlamentar do
Solidariedade votou simultaneamente para tornar Jaruzelski Chefe de Estado,
congregando os «moderados» comunistas na subsequente transição e
aliviando o seu embaraço. No mês seguinte, o governo de Mazowiecki
anunciou planos para instituir uma «economia de mercado», apresentados
num programa de estabilização – o chamado «Plano Balcerowicz» – que foi
aprovado pelo Sejm a 28 de Dezembro. Um dia depois, o «papel de liderança»
do Partido Comunista Polaco era retirado formalmente da Constituição do
país. No espaço de quatro semanas, a 27 de Janeiro de 1990, o próprio partido
estava dissolvido.
A desorganização dos últimos meses da Polónia comunista não nos devem
cegar para o longo e bastante lento desenvolvimento que se dera antes. A
maior parte dos actores do drama de 1989 – Jaruzelski, Kiszczak, Walesa,
Michnik, Mazowiecki – já estava em cena havia muitos anos. O país tinha
passado de um breve florescimento de relativa liberdade em 1981 para a lei
marcial, seguida por um longo e incerto purgatório de semitolerância
repressiva que por fim se resolveu numa repetição das crises económicas da
década anterior. Apesar de toda a força da Igreja Católica, da ampla
popularidade do Solidariedade e do ódio permanente da Polónia aos seus
governantes comunistas, estes últimos agarraram-se ao poder durante tanto
tempo que o seu declínio final surgiu quase como uma surpresa. Tinha sido
um longo adeus.
Na Polónia, a lei marcial e as suas consequências revelaram os limites e
insuficiências do Partido, mas enquanto a repressão paralisava a oposição,
também a tornava cautelosa. Na Hungria, uma precaução comparável nasceu
de uma experiência muito diferente. Duas décadas de tolerância ambígua
tinham obscurecido os limites precisos da dissidência oficialmente
condenada. A Hungria, afinal, era o Estado comunista onde a cadeia Hilton
abriu o seu primeiro hotel do outro lado da Cortina de Ferro, em Dezembro de
1976; onde Billy Graham realizou não uma, mas três digressões no decurso
dos anos 80 e que foi visitada (e implicitamente favorecida) na mesma década
por dois secretários de Estado dos EUA e pelo vice-presidente George Bush.
Em 1988, a Hungria comunista tinha sem dúvida uma «boa» imagem.
Em parte por esta razão, a oposição ao governo do Partido levou muito
tempo a vir à superfície. A dissimulação e as manobras pareciam ser a melhor
parte da coragem, especialmente para quem se lembrasse de 1956; e a vida na
Hungria de Janos Kadar era tolerável, mesmo que monótona. Na realidade, a
economia oficial, como vimos no capítulo anterior, não estava em melhores
condições do que a da Polónia, apesar das várias reformas e dos «Novos
Mecanismos Económicos». É certo que a economia «negra» ou paralela
permitiu que muitas pessoas mantivessem um estilo de vida um tanto mais
elevado do que o dos vizinhos da Hungria. Mas como a investigação feita
pelos estudiosos da estatística social húngaros estava já a revelar, o país
padecia de significativas desigualdades de rendimentos, saúde e habitação; a
mobilidade social e a previdência estavam de facto abaixo das do Ocidente e
as longas horas de trabalho (muitas pessoas trabalhavam em dois ou até três
empregos), os elevados níveis de alcoolismo e perturbações mentais,
juntamente com a elevada percentagem de suicídios na Europa de Leste,
estavam a fazer-se pagar entre a população.
Havia, pois, um vasto campo para o descontentamento. Mas não havia
qualquer oposição política organizada. Apesar de algumas organizações
independentes terem surgido no decorrer dos anos 80, estavam na sua maior
parte confinadas aos temas ambientais ou aos protestos contra o mau
tratamento dado pela Roménia às minorias húngaras – um tema para o qual
podiam contar com a simpatia tácita dos comunistas (o que explica a
tolerância oficial para com o Fórum Democrático Húngaro formado em 1987
e inequivocamente nacionalista). A Hungria continuava a ser uma «república
socialista» (como era oficialmente descrita na revisão constitucional de 1972).
A dissidência e a crítica estavam largamente confinadas ao âmbito do Partido
governante, embora nas eleições de Junho de 1985 tivessem sido autorizados
pela primeira vez vários candidatos e ter sido eleita uma mão cheia de
independentes oficialmente aprovados. Mas só em 1988 começaram as
mudanças importantes.
O catalizador da mudança na Hungria foi a frustração os jovens
comunistas «reformistas» – abertamente entusiasmados com as
transformações que Gorbachev estava a fazer no PCUS – com a
inflexibilidade da envelhecida direcção do seu próprio Partido. Em Maio de
1988, numa Conferência Comunista especial convocada com essa finalidade,
conseguiram finalmente afastar Kadar, com 76 anos, da liderança e substituí-
lo por Karoly Grosz, o primeiro-ministro. As consequências estritamente
práticas deste golpe interno no Partido limitaram-se a um programa de
austeridade económica destinado a fortalecer as «forças do mercado», mas
teve grande força simbólica.
Janos Kadar governara a Hungria desde a revolução de 1956, em cuja
supressão representara um importante papel. Apesar da sua imagem bastante
favorável no estrangeiro, encarnava para os Húngaros a mentira oficial no
coração do «comunismo goulash»: que o movimento reformista húngaro não
passara de uma «contra-revolução». Kadar era também a personificação viva
da conspiração de silêncio que rodeava Imre Nagy desde o seu rapto,
julgamento secreto e ainda mais secreta execução e enterro três décadas
antes(19). O afastamento de Kadar parecia assim sugerir que alguma coisa de
fundamental tinha mudado na vida pública húngara – uma impressão
confirmada quando os seus sucessores não só permitiram que um grupo de
jovens comunistas dissidentes e outros formassem o Fidesz (Jovens
Democratas), mas em Novembro de 1988 permitiram oficialmente o
aparecimento de partidos políticos independentes.
Nos primeiros meses de 1989, a legislatura comunista aprovou uma série
de medidas reconhecendo o direito à livre associação: sancionando
oficialmente a «transição» para um sistema pluripartidário e, em Abril,
abandonando oficialmente o «centralismo democrático» dentro do próprio
Partido. Mais importante ainda, os governantes comunistas da Hungria –
reconhecendo tacitamente que o seu partido não poderia esperar manter o
controlo sobre o país a não ser que fosse sincero quanto ao seu passado –
anunciaram a sua intenção de exumar e voltar a sepultar os restos mortais de
Imre Nagy. Ao mesmo tempo Imre Pozsgay e outros reformadores no
Politburo húngaro convenceram os seus colegas a criarem uma comissão de
inquérito aos acontecimentos de 1956 e a redefinirem-nos oficialmente: já não
uma «contra-revolução», eram agora «um levantamento popular contra uma
governação oligárquica que tinha degradado a nação».
A 16 de Junho de 1989 – o trigésimo primeiro aniversário da sua morte –
os restos mortais de Imre Nagy e de quatro dos seus colegas foram
cerimoniosamente enterrados como heróis nacionais. Cerca de 300 000
Húngaros bordejavam as ruas, com muitos milhões mais a verem a cerimónia
em directo na televisão. Entre os oradores junto à sepultura estava Viktor
Orban, o dirigente dos Jovens Democratas, que não pôde deixar de referir que
alguns dos comunistas presentes no enterro de Nagy eram os mesmos que,
alguns anos antes, tinham tão tremendamente falsificado a própria revolução
de que agora cantavam louvores.
Isto era verdade. Uma curiosidade da saída húngara do comunismo era
esta ter sido conduzida pelos próprios comunistas – só em Junho foram
convocadas conversações com partidos da oposição, em conscienciosa
imitação do precedente polaco. O que provocou algum cepticismo entre os
húngaros anticomunistas, para quem a ressurreição de Nagy, tal como a sua
anterior execução, era assunto interno do partido de pouco interesse para as
muitas vítimas do comunismo. Mas faríamos mal em subestimar a força
simbólica do enterro de Nagy. Era uma admissão de derrota, um
reconhecimento de que o Partido e os seus dirigentes tinham vivido, ensinado
e imposto uma mentira.
Quando Janos Kadar morreu apenas três semanas depois – no exacto dia
em que o Supremo Tribunal húngaro pronunciava a total reabilitação de Nagy
–, o comunismo húngaro morreu com ele. Tudo o que restava era concordar
com as formalidades do seu falecimento. O «papel principal» do Partido foi
abolido; foram programadas eleições multipartidárias para Março seguinte e a
7 de Outubro os comunistas – o Partido Socialista Húngaro dos Trabalhadores
– rebaptizaram-se como Partido Socialista Húngaro. A 23 de Outubro, o
Parlamento, ainda esmagadoramente composto por deputados comunistas
eleitos sob o regime do velho partido, votou por sua vez para que se desse um
novo nome ao próprio país, simplesmente o de República Húngara.
A «revolução húngara» de 1989 teve duas características diferentes. A
primeira, como vimos, é que foi a única transicção de um regime comunista
para um sistema multipartidário genuíno efectuada inteiramente a partir de
dentro. O segundo ponto digno de nota é que enquanto na Polónia, como mais
tarde na Checoslováquia e noutros países, os acontecimentos de 1989 eram
em grande parte auto-referenciais, a transição na Hungria representou um
papel vital no desenrolar de outro regime comunista, o da Alemanha de Leste.
Para os observadores externos, a República Democrática Alemã parecia o
menos vulnerável dos regimes comunistas e não só por toda a gente acreditar
que nenhum dirigente comunista a deixaria alguma vez cair. O ambiente
físico da RDA, nomeadamente das suas cidades, poderia parecer
espalhafatoso e delapidado; a sua polícia política, a Stasi, estava notoriamente
omnipresente e o muro de Berlim continuava a ser um ultraje estético e moral.
Mas a economia da Alemanha de Leste era geralmente considerada em
melhor estado do que as dos seus vizinhos socialistas. Quando o Primeiro
Secretário Erich Honecker se gabou nas celebrações do quadragésimo
aniversário do país em Outubro de 1989 de que a RDA era uma das dez
primeiras economias mundiais, ouviu-se o seu convidado Mikhail Gorbachev
conter o riso; mas mesmo que o não fosse em mais nada, o regime era
eficiente no fabrico e na exportação de falsa informação: muitos observadores
ocidentais acreditaram em Honecker.
Os mais entusiastas admiradores da RDA encontravam-se na República
Federal. O êxito aparente da Ostpolitik a neutralizar tensões e a facilitar as
comunicações económicas e humanas entre as duas metades da Alemanha
tinha levado quase toda a classe política a investir as suas esperanças no seu
prolongamento indefinido. As figuras públicas da RFA não encorajaram
apenas as ilusões entre a nomenklatura da RDA, enganaram-se a si mesmas.
Simplesmente por repetirem que a Ostpolitik estava a ter o efeito de aliviar
tensões no Leste, acabaram por acreditar nisso.
Preocupados com a «paz», «estabilidade» e «ordem», muitos Alemães
Ocidentais acabaram assim por partilhar o ponto de vista dos políticos de
Leste com quem estavam a negociar. Egon Bahr, um proeminente social-
democrata, explicou em Janeiro de 1982 (imediatamente a seguir à declaração
da lei marcial na Polónia) que os Alemães tinham renunciado à sua
reivindicação de unidade nacional para bem da paz e os Polacos tinham só de
renunciar à sua reivindicação de liberdade em nome da mesma mais «alta
prioridade». Cinco anos depois o influente escritor Peter Bender, falando num
simpósio do partido social-democrata sobre a «Europa Central», insistiu
orgulhosamente que «no desejo pelo desanuviamento de tensões temos mais
em comum com Belgrado e Estocolmo, também com Varsóvia e Berlim Leste
[itálicos acrescentados], do que com Paris e Londres».
Em anos posteriores soube-se que em mais de uma ocasião os dirigentes
nacionais do SPD tinham feito declarações confidenciais e comprometedoras
a altos funcionários da RDA em visita ao Ocidente. Em 1987, Björn Engholm
elogiou as políticas internas da RDA como sendo «históricas», enquanto que
no ano seguinte o seu colega Oskar Lafontaine prometeu fazer tudo ao seu
alcance para garantir que o apoio da Alemanha Ocidental aos Alemães de
Leste dissidentes se mantivesse silencioso. «Os sociais-democratas», garantiu
ele aos seus interlocutores, «têm de evitar tudo que signifique um reforço
dessas forças». Como anotava um relatório soviético ao Politburo da RDA em
Outubro de 1984: «Muitos argumentos que tinham sido previamente
apresentados por nós aos representantes do SPD, foram agora assumidos por
eles»(20).
As ilusões dos sociais-democratas da Alemanha Ocidental talvez sejam
compreensíveis. Mas também eram partilhadas com quase igual fervor por
muitos democratas-cristãos. Helmut Kohl, o chanceler alemão ocidental desde
1982, estava exactamente tão desejoso como os seus opositores por cultivar
boas relações com a RDA. No funeral em Moscovo de Yuri Andropov, em
Fevereiro de 1984, conheceu e falou com Erich Honecker – e voltou a fazê-lo
no enterro de Chernenko no ano seguinte. Fizeram-se acordos entre os dois
lados para permutas culturais e para a retirada de minas da fronteira entre as
Alemanhas. Em Setembro de 1987, Honecker tornou-se o primeiro dirigente
da Alemanha de Leste a visitar a República Federal. Entretanto, os subsídios
da Alemanha Ocidental para a RDA continuaram em ritmo acelerado (mas
nunca esteve disponível nenhum apoio para a oposição interna à Alemanha de
Leste).
Estimulado com o patrocínio da Alemanha Ocidental, confiante no apoio
de Moscovo e livre de exportar para o Ocidente os seus dissidentes
problemáticos, o regime da Alemanha de Leste poderia ter sobrevivido
indefinidamente. Certamente parecia imune à mudança: em Junho de 1987,
manifestantes em Berlim Leste contrários ao muro e a entoarem elogios ao
distante Gorbachev foram sumariamente dispersados. Em Janeiro de 1988 o
governo não hesitou em prender e expulsar mais de 100 manifestantes que
estavam a assinalar o assassinato em 1919 de Rosa Luxemburgo e Karl
Liebknecht com cartazes com uma citação da própria Luxemburgo: «A
liberdade é também a liberdade dos que pensam de maneira diferente». Em
Setembro de 1988, numa visita a Moscovo, Honecker elogiou publicamente a
perestroika de Gorbachev – fazendo depois questão de evitar cuidadosamente
a sua implementação ao regressar a casa(21).
Apesar dos desenvolvimentos inéditos em Moscovo, Varsóvia e
Budapeste, os comunistas da RDA estavam ainda a manipular as eleições de
um modo que era conhecido desde os anos 50. Em Maio de 1989, o resultado
oficial das eleições autárquicas na RDA – 98,85% para os candidatos do
governo – foi tão escandalosamente fabricado que suscitou protestos em toda
a nação, dos padres, grupos de ambientalistas e até de críticos no interior do
partido governante. O Politburo ignorou-os, mas agora, pela primeira vez, os
Alemães de Leste tinham uma escolha. Já não precisavam de aceitar o status
quo, correr o risco de ser presos ou então tentar uma fuga arriscada para o
Ocidente. A 2 de Maio de 1989, no seguimento do abrandamento do controlo
de circulação e de expressão dentro da própria Hungria, as autoridades em
Budapeste tinham retirado a vedação electrificada ao longo da fronteira
ocidental do país, embora a fronteira em si se mantivesse formalmente
fechada.
Os Alemães de Leste começaram a afluir à Hungria. A 1 de Julho de 1989,
25 000 já se tinham dirigido para lá em «férias». Seguiram-se milhares mais,
muitos procurando refúgio temporário nas embaixadas da RFA em Praga e
Budapeste. Alguns passaram pela fronteira austro-húngara ainda fechada, sem
serem impedidos pelos guardas fronteiriços, mas a maior parte ficou
simplesmente na Hungria. No início de Setembro, havia 60 000 cidadãos da
RDA na Hungria, à espera. Interrogado num programa da televisão húngara a
10 de Setembro sobre qual seria a resposta do seu governo se algumas dessas
pessoas se começassem a encaminhar para o Ocidente, o ministro dos
Negócios Estrangeiros húngaro Gyula Horn respondeu: «Deixamos que
entrem de imediato e partimos do princípio de que os Austríacos os deixam
entrar». A porta para o Ocidente estava oficialmente aberta: no espaço de 72
horas 22 000 cidadãos da RDA tinham-na transposto precipitadamente.
As autoridades da Alemanha de Leste protestaram furiosamente – a atitude
húngara implicou uma violação no acordo de longa data entre os governos
comunistas para não permitirem que os seus países fossem usados como rotas
de fuga dos vizinhos fraternos. Mas as autoridades em Budapeste apenas
insistiram que estavam vinculados pela assinatura do Acto Final de
Helsínquia. As pessoas acreditaram nas suas palavras. No decorrer das três
semanas seguintes, as autoridades da RDA enfrentaram um desastre de
relações públicas, quando dezenas de milhares dos seus concidadãos tentaram
sair através desta nova rota.
Numa tentativa para controlar os acontecimentos, os governantes da RDA
ofereceram aos refugiados alemães de Leste nas embaixadas em Praga e
Varsóvia um salvo-conduto através do seu próprio país e depois para a
Alemanha Ocidental num comboio selado. Isto, no entanto, não fez mais do
que exacerbar a crescente humilhação do regime: à medida que o comboio
atravessava a RDA era saudado por dezenas de milhares aclamando,
invejosos. Estima-se que cinco mil pessoas tentaram subir a bordo quando o
comboio de refugiados parou por momentos em Dresden; quando a polícia os
espancou para os rechaçar, eclodiu uma revolta – tudo sob os olhos dos media
mundiais.
Os esforços do regime estimulavam os seus críticos. No dia a seguir à
Hungria ter aberto as suas fronteiras, um grupo de dissidentes da Alemanha
de Leste em Berlim Leste fundou o Neues Forum («Novo Fórum») seguido
uns dias depois por outro movimento de cidadãos, «Democracia Agora»,
fazendo os dois grupos pressão para uma «reestruturação» democrática da
RDA. Na segunda-feira, 2 de Outubro, em Leipzig, uma multidão de 10 000
manifestou-se, frustrada com a recusa do regime de Honecker em reformar-se
– a maior reunião pública na Alemanha de Leste desde o levantamento de
Berlim em 1953, de má memória. Honecker, de 77 anos, manteve-se
impassível. Os Alemães de Leste que procuravam emigrar, declarou em
Setembro, tinham sido «chantageados através de aliciamentos, promessas e
ameaças para renunciarem aos princípios básicos e valores fundamentais do
socialismo». Para crescente ansiedade dos seus colegas mais novos – que já
não podiam continuar a ignorar a dimensão do desafio que enfrentavam – a
liderança parecia impotente: estática no lugar. A 7 de Outubro, para festejar o
quadragésimo aniversário da fundação da RDA, Mikhail Gorbachev veio e
falou, avisando de forma memorável o seu anfitrião impassível de que «a vida
castiga os que protelam». Em vão: Honecker declarou-se satisfeito com as
coisas como estavam.
Encorajados pela visita do dirigente soviético – para não falar nos
desenvolvimentos no estrangeiro – os manifestantes em Leipzig e outras
cidades começaram a fazer regularmente manifestações e «vigílias» pela
mudança. As reuniões de segunda-feira em Leipzig, agora um encontro
regular, acolheram 90 000 na semana a seguir ao discurso de Gorbachev, com
as multidões reunidas a proclamarem «Nós somos o povo!» e a gritar por
«Gorby» para os ajudar. Na semana seguinte os números tinham voltado a
crescer; um Honecker cada vez mais agitado propunha agora usar a força para
suprimir qualquer nova manifestação de oposição.
A perspectiva de confronto directo parece ter finalmente ocupado o
espírito dos críticos de Honecker no Partido. A 18 de Outubro, conduzidos
por Egon Krenze, alguns dos seus colegas prepararam um golpe e retiraram o
velho do poder, ao fim de 18 anos(22). O primeiro acto de Krenze foi voar
para Moscovo, apoiar (e procurar o apoio de) Mikail Gorbachev e regressar a
Berlim para preparar uma cautelosa perestroika alemã oriental. Mas era
demasiado tarde. Na mais recente manifestação de Leipzig tinha-se reunido
um número estimado em 300 000 pessoas para exigir mudanças; a 4 de
Novembro, reuniram-se em Berlim meio milhão de Alemães de Leste para
exigirem reformas imediatas. Entretanto, no mesmo dia, a Checoslováquia
abriu as suas fronteiras: nas 48 horas seguintes atravessaram-na 30 000
pessoas.
Agora as autoridades estavam verdadeiramente em pânico. A 5 de
Novembro, o governo da RDA propôs hesitantemente uma lei de circulação
moderadamente liberalizada, para a verem rejeitada pelos críticos como sendo
lamentavelmente inadequada. Então, o governo da RDA demitiu-se
dramaticamente, seguido pelo Politburo. Na noite seguinte – 9 de Novembro,
simultaneamente aniversário da abdicação do Kaiser e da Kristallnacht –
Krenze e os seus colegas propuseram uma nova lei de circulação para travar a
debandada. Numa conferência de imprensa transmitida em directo na
televisão e na rádio alemãs, Günter Schabowski explicou que as novas
provisões, com efeito imediato, autorizavam as viagens ao estrangeiro sem
aviso prévio e permitiam a circulação através das fronteiras até à Alemanha
Ocidental. O Muro, por outras palavras, estava aberto.
Mesmo antes da transmissão ter acabado, as pessoas estavam já nas ruas
de Berlim Leste e a dirigir-se para a fronteira. No espaço de umas horas,
tinham acorrido 50 000 pessoas para Berlim Ocidental: alguns para sempre,
outros só para ver. Na manhã seguinte o mundo tinha mudado. Como todos
podiam ver, o Muro abrira uma brecha para sempre e não podia haver retorno
possível. Quatro semanas depois, a Porta de Brandeburgo, sobre a fronteira
Leste-Oeste, foi reaberta; durante os feriados de Natal de 1989, 2,4 milhões
de Alemães de Leste (1 em cada 6 da população total) visitaram o Ocidente.
Não fora esta de certeza absoluta a intenção dos governantes da RDA. Como
mais tarde o próprio Schabowski explicou, as autoridades não faziam a
«menor ideia» de que abrir o Muro pudesse provocar a queda da RDA – antes
pelo contrário: viam-no como o princípio da «estabilização».
Ao tomar a decisão hesitante de abrir a fronteira, os dirigentes da RDA
esperavam apenas abrir a válvula de segurança, talvez garantir um pouco de
popularidade e acima de tudo ganhar tempo suficiente para proporem um
programa de «reformas». O Muro, afinal, fora aberto pelas mesmas razões
que tinham levado a erigi-lo e fechá-lo uma geração antes: para estancar uma
hemorragia demográfica. Em 1961, este estratagema desesperado tinha
resultado; em 1989 também funcionou de certo modo da mesma maneira –
surpreendentemente, poucos Alemães de Leste ficaram permanentemente em
Berlim Ocidental ou emigraram para a Alemanha Ocidental uma vez
tranquilizados de que se regressassem não voltariam a ser presos. Mas o preço
dessa garantia foi a queda de mais do que um regime.
No seguimento da queda do Muro, o SED passou pelos – agora familiares
– últimos ritos de um Partido Comunista moribundo. A 1 de Dezembro a
Volkskammer (Parlamento da RDA) votou 420-0 (com cinco abstenções) para
apagar da Constituição da RDA a cláusula declarando que o Estado «é
liderado pela classe operária e pelo seu Partido marxista-leninista». Quatro
dias depois o Politburo demitiu-se uma vez mais; foi escolhido um novo
dirigente – Gregor Gysi e o nome do partido mudou para Partido do
Socialismo Democrático. A velha liderança comunista (incluindo tanto
Honecker como Krenze) foi expulsa do partido; começaram conversações em
mesa-redonda (uma vez mais) com representantes do Neues Forum (por
consenso geral o mais destacado dos grupos da oposição) e programaram-se
eleições livres.
Mas antes de o mais recente (e último) governo da RDA, sob o líder do
Partido de Dresden, Hans Modrow, ter começado a esboçar um «programa de
acção do partido», já as suas acções e intenções eram praticamente
irrelevantes. Os Alemães de Leste, afinal, tinham uma opção que não estava
disponível aos outros povos – não havia nenhuma «Checoslováquia de Leste»
ou uma «Polónia de Leste» – e não iriam renunciar a isso. As balizas estavam
a mudar de sítio: em Outubro de 1989 os manifestantes de Leipzig tinham
entoado «Wir sind das volk» «Nós somos o povo». Em Janeiro de 1990 as
mesmas multidões estavam a proclamar uma exigência subtilmente diferente:
«Wir sind ein Volk» – «Nós somos um povo».
Porque a morte do comunismo iria causar, como veremos no capítulo
seguinte, a morte de um Estado alemão – em Janeiro de 1990 a questão não
era só sair do socialismo (muito menos «reformá-lo») mas entrar na
Alemanha Ocidental – não é clara, em retrospectiva, a forma de interpretar as
esperanças das multidões que derrubaram a RDA no Outono de 1989. O que é
claro, porém, é que nem o Partido (como na Hungria) nem a oposição (como
na Polónia) podem reivindicar grande crédito pelo curso dos acontecimentos.
Vimos como o Partido era lento a perceber o seu dilema, mas os seus críticos
intelectuais não eram muito mais rápidos.
A 28 de Novembro, Stefan Heym, Christa Wolf e outros intelectuais da
Alemanha de Leste divulgaram uma petição «Pela Nossa Pátria», para salvar
o socialismo e a RDA e aguentar firmes contra aquilo que Heym descrevia
como o «lixo reluzente» do Ocidente. Bärbel Bohley, a principal figura do
Neues Forum, até descreveu a abertura do Muro de Berlim como «infeliz»,
porque evitava as «reformas» e precipitava eleições antes de os partidos ou os
eleitores estarem «prontos». Como muitos intelectuais «discordantes» da
Alemanha de Leste (para não falar nos seus admiradores na Alemanha
Ocidental), Bohley e os seus colegas ainda imaginavam um socialismo
reformado, despojado de polícias secretas e partido governante, mas
mantendo uma distância segura dos seus doppelgänger capitalistas a ocidente.
Como os acontecimentos iriam demonstrar, isto era pelo menos tão irrealista
como a fantasia de Erich Honecker de um regresso a uma submissão neo-
estalinista. O Neues Forum condenou-se assim à irrelevância política, e os
seus dirigentes reduzidos ao carpir ressentido com a imprudência das
massas(23).
A sublevação alemã de 1989 foi talvez a única revolução popular – isto é,
em massa – desse ano (e de facto a única revolta popular bem sucedida na
história da Alemanha)(24). A queda do comunismo na vizinha
Checoslováquia, embora tenha surgido na mesma altura que a transformação
na Alemanha de Leste, seguiu um caminho muito diferente. Em ambos os
países a liderança do Partido era rígida e repressiva e a subida de Gorbachev
foi pelo menos tão indesejável para o regime em Praga como o foi em
Pankow. Mas as semelhanças acabam aqui.
Tal como na Hungria, assim era na Checoslováquia, a governação
comunista assentava precariamente na memória silenciosa de um passado
roubado. Mas enquanto que no caso húngaro Kadar tinha conseguido com
algum sucesso distanciar-se e ao seu partido da sua herança estalinista, os
dirigentes da Checoslováquia não tinham conseguido uma tal transição. Nem
a tinham procurado. A invasão do Pacto de Varsóvia de 1968 e a subsequente
«normalização» perduraram com Gustav Husak, no poder desde 1969.
Mesmo quando Husak, agora com 75 anos, se demitiu de Secretário-Geral do
Partido em 1987 (mantendo-se como Chefe de Estado), foi substituído por
Milos Jakes – mais novo, certamente, mas mais conhecido pelo seu papel
proeminente nas grandes purgas do início dos anos 70.
Os comunistas checos foram realmente bastante bem sucedidos na
manutenção do controlo mesmo até ao fim. Nem a Igreja Católica (sempre um
interveniente menor nos assuntos checos, se não também nos eslovacos) nem
a oposição intelectual conseguiram apoio significativo na sociedade em geral.
Graças à brutalmente eficiente administração dos saneamentos, a maior parte
da intelligentsia do país, de dramaturgos a historiadores e ex-reformadores
comunistas dos anos 60, fora não só expulsa dos seus empregos como retirada
da visibilidade pública. Até 1989, alguns dos críticos internos mais francos do
comunismo na Checoslováquia, a começar pelo próprio Vaclav Havel, eram
mais conhecidos no estrangeiro do que no seu país. Como vimos no último
capítulo, a organização cívica de Havel, Carta 77, só conseguiu menos de dois
mil signatários numa população de quinze milhões.
Como é óbvio, as pessoas tinham medo de correr o risco de criticar
abertamente o regime, mas há que dizer que a maior parte dos Checos e dos
Eslovacos não estava muito infeliz com a sua sorte. A economia checa, como
muitas outras economias europeias de Leste a partir do início dos anos 70,
tinha sido deliberadamente ajustada para fornecer os bens de consumo básico,
e no caso checo algo mais. Na verdade, a Checoslováquia comunista imitava
conscienciosamente aspectos da sociedade de consumo ocidental –
nomeadamente programação da televisão e actividades populares de lazer –
ainda que num registo medíocre. A vida na Checoslováquia era monótona, o
ambiente estava a deteriorar-se e especialmente as pessoas mais novas
irritavam-se com as autoridades omnipresentes e censórias. Mas em troca de
evitarem confrontos com o regime e elogiarem falsamente a sua pomposa
retórica, as pessoas estavam entregues aos seus próprios expedientes.
O regime mantinha rédea curta e até brutal sobre quaisquer sinais de
desacordo. Os manifestantes em Praga e noutros locais que pretenderam
assinalar o vigésimo aniversário da invasão em Agosto de 1988 foram presos;
as tentativas não oficiais para realizar em Praga um seminário «Leste-Oeste»
foram suprimidas. Em Janeiro de 1989, no vigésimo aniversário do suicídio
de Jan Palach na Praça Venceslau, Havel e treze outros activistas da Carta 77
foram detidos e uma vez mais presos (embora ao contrário do áspero
tratamento que lhe fora infligido em anos anteriores, Havel – agora uma
figura internacional, que se fosse maltratada poderia embaraçar os seus
carcereiros – tenha sido solto em Maio).
No decorrer da Primavera e Verão de 1989, apareceram subitamente redes
informais e grupos em todo o país, numa imitação optimista dos
desenvolvimentos nos países vizinhos: a seguir ao «Clube Pacífico John
Lennon» formado em Dezembro de 1988, surgiu o protesto das «Mães de
Praga» de Maio de 1989, a que se seguiram manifestações de ambientalistas
em Bratislava no mês seguinte. Nenhuma destas pequenas e facilmente
contidas bolhas de iniciativa cívica representava qualquer ameaça para a
polícia ou para o regime. Mas em Agosto, exactamente quando Mazowiecki
estava a finalizar planos para o seu governo em Varsóvia e pouco antes das
fronteiras húngaras se terem aberto, os manifestantes encheram as ruas da
capital checa para comemorarem, uma vez mais, o derrube da Primavera de
Praga.
Nesta ocasião, porém, a polícia checa foi sem dúvida mais contida. O
regime de Jakes tinha decidido mudar um pouco, apresentando pelo menos a
aparência de reconhecer a mudança de espírito em Moscovo, ao mesmo
tempo que não alterava nada de substancial na sua governação. Os mesmos
cálculos explicam sem dúvida a atitude distanciada face à importante
manifestação pública seguinte, em 28 de Outubro, aniversário da fundação do
Estado da Checoslováquia em 1918 (oficialmente ignorado desde 1948). Mas
ainda não havia uma grande pressão pública sobre os dirigentes comunistas –
até mesmo o anúncio a 15 de Novembro de que os vistos de saída já não
seriam necessários para viajar para o Ocidente foi menos uma concessão às
exigências do que uma imitação estratégica das mudanças nos outros países.
Foi esta aparente falta de real intenção reformadora da parte dos chefes do
partido e a ausência de qualquer oposição externa eficaz – às manifestações
do Verão faltava um objectivo comum e ainda não tinham surgido dirigentes
para canalizar o descontentamento para um programa – que desse crédito à
desconfiança generalizada de que o que se seguiu era em certa medida um
«conluio» encenado: uma tentativa dos futuros reformadores da administração
e da polícia para dar um empurrão ao partido moribundo na direcção de uma
perestroika checa.
Isto não é tão bizarro como para parecer em retrospectiva. A 17 de
Novembro, a polícia de Praga autorizou oficialmente uma marcha de
estudantes pelo centro da cidade para comemorarem uma outra data triste, o
50.o aniversário do assassinato pelos nazis de um estudante checo, Jan
Opletal. Mas quando os estudantes em marcha começaram a entoar slogans
anticomunistas a polícia carregou, dispersando a multidão e espancando
vítimas isoladas. Os próprios polícias então incentivaram o boato de que –
numa repetição do assassinato de Opletal – um dos estudantes tinha sido
morto. Mais tarde viria a reconhecer-se que se tratara de um relatório falso,
mas entretanto teve o efeito previsível de provocar a ira entre os próprios
estudantes. Nas 48 horas seguintes dezenas de milhares de estudantes foram
mobilizados, as universidades foram ocupadas e enormes multidões
começaram a juntar-se nas ruas para protestar. Desta vez, no entanto, a polícia
limitou-se a assistir.
Se alguma vez houvera uma conspiração, sem dúvida que o tiro saiu pela
culatra. É certo que os acontecimentos de 17 de Novembro e as suas
consequências desalojaram a liderança neo-estalinista do Partido Comunista:
no espaço de uma semana todo o Presidium, liderado por Jakes, tinha-se
demitido. Mas os seus sucessores não tinham credibilidade popular e foram
de qualquer maneira imediatamente submergidos pela rapidez dos
acontecimentos. A 19 de Novembro, Vaclav Havel, que fora condenado a uma
quase prisão domiciliária no Norte da Boémia rural, regressou à capital em
alvoroço, onde os comunistas estavam rapidamente a perder poder mas não
havia ainda ninguém para lho tirar das mãos.
Instalando-se – muito apropriadamente – num teatro de Praga, Havel e os
amigos da Carta 77 formaram o Obcanské Fórum (Forum Cívico), uma rede
informal e fluida que se transformou, em poucos dias, de sociedade de debate
numa iniciativa cívica e daí num governo-sombra. A discussão no Fórum
Cívico era motivada em parte pelos objectivos de há muito dos seus
participantes mais conhecidos, mas sobretudo pela espectacular aceleração do
curso dos acontecimentos nas ruas. A primeira coisa que o Fórum fez foi
exigir a demissão dos homens responsáveis pela invasão de 68 e as suas
consequências.
A 25 de Novembro, o dia a seguir aos dirigentes do Partido se terem
devidamente demitido em bloco, uma multidão de meio milhão de pessoas
reuniu-se no estádio Letná em Praga, não tanto para exigirem reformas
especiais como para darem a conhecer a sua presença após duas décadas de
intimidado silêncio público: a si mesmos e uns aos outros. Nessa mesma noite
Havel teve uma entrevista inédita na televisão checa. No dia seguinte dirigiu-
se a uma multidão de 250 000 pessoas na Praça Venceslau, partilhando o
palanque com o primeiro-ministro comunista Ladislav Adamec – e Alexander
Dubcek.
Por essa altura tornara-se claro para a emergente liderança do Fórum
Cívico que estavam, contra sua vontade, a fazer uma revolução. Para fornecer
alguma direcção – e para terem qualquer coisa para dizer às multidões – um
grupo conduzido pelo historiador Petr Pithart redigiu os «Princípios
Programáticos do Fórum Cívico». Estes continham um breve sumário dos
objectivos gerais do Fórum e constituem um guia instrutivo do espírito e
prioridades dos homens e mulheres de 1989. «O que queremos?» pergunta o
programa. 1: um Estado de direito. 2: eleições livres. 3: justiça social. 4: um
ambiente limpo. 5: um povo instruído. 6: prosperidade. 7: regresso à Europa.
A mistura de um conjunto de exigências políticas, ideais culturais e
ambientais e a invocação da «Europa» é caracteristicamente checa e devia
muito a várias declarações da Carta 77 durante a década anterior. Mas o tom
do programa captava muito bem o estado de espírito das multidões nos
empolgantes dias de Novembro: simultaneamente pragmático, idealista e
extremamente ambicioso. O estado de espírito em Praga e no resto do país era
portanto mais confessadamente optimista do que em qualquer das outras
«transições» comunistas. O que era um efeito da aceleração(25).
Uma semana depois da sangrenta repressão dos manifestantes estudantis, a
direcção do Partido demitiu-se. Uma semana depois o Fórum Cívico e o
Público Contra a Violência (PCV – o seu alter ego eslovaco) foram
legalizados e estavam a negociar com o governo. A 29 de Novembro, a
Assembleia Federal, respondendo docilmente a uma exigência do Fórum
Cívico, retirou da constituição checa a cláusula seminal garantindo ao Partido
Comunista o seu «papel principal». Nesta altura, o governo de Adamec
propôs uma nova coligação governamental de compromisso, mas os
representantes do Fórum Cívico – estimulados por grandes e determinadas
multidões, agora permanentemente nas ruas – rejeitaram-na de imediato.
Nesta altura os comunistas dificilmente podiam deixar de reparar nos
acontecimentos no estrangeiro: não só os seus colegas da liderança da ex-
Alemanha de Leste tinham sido expulsos em 3 de Dezembro, como Mikhail
Gorbachev estava a jantar com o presidente Bush em Malta e os Estados do
Pacto de Varsóvia se preparavam publicamente para repudiar a sua invasão da
Checoslováquia em 1968. Desacreditados e desqualificados pelos seus
próprios financiadores, os restantes membros do grupo de Husak de
comunistas checos e eslovenos, incluindo o primeiro-ministro Adamec,
demitiram-se.
Após reuniões de «mesa redonda» de dois dias (a mais breve de todas as
mesas redondas do ano) os dirigentes do Fórum Cívico concordaram agora
em formar governo. O primeiro-ministro – o esloveno Marían Calfa – era
ainda membro do Partido, mas a maioria dos ministros – pela primeira vez
desde 1948 – não eram comunistas: Jiri Dienstbier, da Carta 77 (até cinco
semanas antes era fogueiro), iria ser ministro dos Negócios Estrangeiros; o
advogado católico Jan Carnogursky do PAV iria ser primeiro-ministro
adjunto; Vladimir Kusy, do Fórum Cívico, era ministro da Informação e o até
então desconhecido economista do mercado livre Vaclav Klaus iria dirigir o
Ministério das Finanças. O novo governo foi empossado a 10 de Dezembro
pelo presidente Husak que depois se demitiu prontamente.
O reaparecimento de Alexander Dubcek após duas décadas de obscuridade
permitira a possibilidade de ser escolhido para substituir Husak como
Presidente – em parte como símbolo de continuidade das esperanças
frustradas de 1968, em parte para suavizar os sentimentos feridos dos
comunistas e talvez até pacificar os da linha dura na polícia e noutros
serviços. Mas assim que começou a fazer discursos públicos tornou-se
penosamente evidente que o pobre Dubcek era um anacronismo. O seu
vocabulário, o seu estilo e até os seus gestos eram os dos comunistas
reformistas dos anos 60. Nada aprendera, segundo parecia, com as suas
amargas experiências, mas falava ainda em ressuscitar um caminho checo
mais amável, mais suave, para o socialismo. Para as dezenas de milhares de
jovens nas ruas de Praga, ou Brno, ou Bratislava era principalmente uma
curiosidade histórica; cedo se transformou numa irritante irrelevância(26).
À guisa de compromisso, Dubcek foi eleito Presidente da Assembleia
Federal. Cobre ao próprio Vaclav Havel tornar-se presidente – uma ideia tão
bizarramente pouco plausível apenas cinco semanas antes que ele tinha
delicadamente rejeitado a sugestão quando o seu nome foi pela primeira vez
abordado por multidões entusiasmadas nas ruas de Praga: «Havel na Hrad!»
(«Havel no Castelo»). A7 de Dezembro, porém, o dramaturgo começara a
perceber que o facto de ele aceitar o cargo poderia ser a melhor forma de
facilitar a saída do seu país do comunismo; a 28 de Dezembro de 1989 a
mesma Assembleia comunista que tinha devidamente carimbado a legislação
que até aí relegava Havel e outros para anos de encarceramento, elegia-o
agora Presidente da República Socialista Checa. No dia de Ano Novo de
1990, o novo presidente amnistiou 16 000 presos políticos; no dia seguinte a
própria polícia política foi dissolvida.
A notavelmente expedita e pacífica saída da Checoslováquia do
comunismo – a chamada «revolução de veludo» – foi possível devido a uma
confluência de circunstâncias. Como na Polónia, a oposição intelectual estava
sobretudo unida pela memória das derrotas passadas e pela determinação em
evitar o confronto directo – não era sem motivo que a principal organização
cívica na Eslováquia se chamava «Público Contra a Violência». Tal como na
RDA, a completa falência do Partido governante tornou-se tão rapidamente
evidente que a opção por uma acção organizada na retaguarda foi excluída
quase desde o princípio.
Mas o papel de Havel era igualmente crucial – nenhum indivíduo de
posição pública comparável surgiu em qualquer outro país comunista e
embora a maior parte das ideias práticas e até mesmo as tácticas políticas do
Fórum Cívico pudessem estar iminentes na sua ausência, foi Havel quem
captou e canalizou a disposição do público, empurrando os seus colegas para
a frente ao mesmo tempo que mantinha as expectativas das multidões dentro
de limites controláveis. O impacto de Havel e do seu apelo público não
podem ser exagerados. Tal como Tomás Masaryk, com quem era cada vez
mais comparado, o improvavelmente carismático Havel era agora
amplamente considerado por muitos uma espécie de salvador nacional. O
cartaz de um estudante de Praga, de Dezembro de 1989, numa alusão
religiosa, talvez não intencional mas altamente adequada, retrata o novo
presidente com as palavras «Ele deu-Se a nós».
Não eram só as várias vezes que fora preso e o seu inabalável registo de
oposição moral ao comunismo que o tinham colocado no seu pedestal: era
também a sua característica disposição apolítica. Não foi apesar das suas
preocupações teatrais que os seus concidadãos se voltaram para Havel, foi por
causa delas. Como observou um comentador italiano sobre o emergente papel
de Havel na cena política checa, a sua voz característica permitia-lhe articular
os sentimentos de uma nação silenciada: «Se un popolo non ha mai parlato,
la prima parole che dice è poesia»(27). Exactamente por estas razões foi
Havel – particularmente céptico quanto às seduções do capitalismo (ao
contrário do seu ministro das Finanças, Klaus) – o único a poder estabelecer
uma ponte sobre o fosso incómodo que separava o falso mas sedutor
igualitarismo de um comunismo defunto das desconfortáveis realidades do
mercado livre.
Na Checoslováquia uma ponte assim era importante. Apesar de ser em
muitos aspectos o mais ocidental dos países comunistas europeus, a
Checoslováquia era também a única com cultura política marcadamente
igualitária e esquerdista: afinal, este era o único país do mundo onde quase
dois votantes em cinco tinham elegido um Partido Comunista em eleições
livres, em 1946. Apesar de quarenta anos de «socialismo realmente existente»
– e vinte anos de mortífera «normalização» – ainda se mantinha qualquer
coisa desta cultura política: nas primeiras eleições pós-comunismo, realizadas
em Junho de 1990, 14% do eleitorado optou pelo Partido Comunista. Era a
presença persistente deste considerável núcleo de apoiantes comunistas –
juntamente com a muito mais vasta penumbra de cidadãos apolíticos não
suficientemente descontentes para protestarem contra a sua situação – que
levara escritores dissidentes como Ludvik Vaculik a questionar a
probabilidade de grandes mudanças no futuro imediato. A história parecia
estar contra os Checos e os Eslovenos: desde 1938 que a Checoslováquia não
conseguia retomar o controlo do seu próprio destino.
Assim, quando o povo finalmente tomou a iniciativa em Novembro de
1989, a consequente revolução de veludo parecia quase boa demais para ser
verdade. Daí falar-se em conspirações da polícia e crises fabricadas, como se
a sociedade checa tivesse tão pouca confiança que até a iniciativa para
destruir o comunismo tivesse de vir dos próprios comunistas. Tal cepticismo
estava quase de certeza deslocado – todos os indícios que desde então
surgiram sugerem que a 17 de Novembro a polícia de segurança checa foi
simplesmente longe demais. Não havia qualquer «conspiração» para forçar a
mão da clique governante. Em 1989 o povo da Checoslováquia tomou
realmente conta do seu destino.
O caso romeno foi outra questão. Ali, parece claro que em Dezembro de
1989 uma facção do Partido dos Trabalhadores Romeno decidiu de facto que
a sua melhor hipótese de sobrevivência seria remover à força a clique
governante que rodeava Nicolae Ceausescu. A Roménia, claro, não era um
Estado tipicamente comunista. Se a Checoslováquia era o mais ocidental dos
países satélites comunistas, a Roménia era o mais «oriental». Sob Ceausescu
o comunismo tinha degenerado do leninismo nacional para uma espécie de
satrapia neo-estalinista, em que níveis bizantinos de nepotismo e ineficiência
eram mantidos por uma polícia secreta tentacular.
Comparado com a ditadura cruel de Dej dos anos 50, o regime de
Ceausescu governava com relativa pouca brutalidade manifesta; mas as raras
insinuações de protesto público – greves no vale mineiro de Jiu em Agosto de
1977, por exemplo, ou uma década depois nas oficinas de tractores Estrela
Vermelha em Brasov – foram violenta e eficazmente reprimidas. Além disso,
Ceausescu podia contar não só com uma população intimidada, como também
com uma notável falta de crítica estrangeira aos seus actos na Roménia: oito
meses depois de ter preso os dirigentes da greve no Vale Jiu (e de os ter
assassinado) o ditador romeno visitava os Estados Unidos como convidado do
presidente Jimmy Carter. Ao manter as distâncias de Moscovo – vimos como
a Roménia se absteve na invasão da Checoslováquia em 1968 – Ceausescu
obteve para si liberdade de manobra e até aplauso estrangeiro, particularmente
nas fases iniciais da «nova» Guerra Fria dos anos 80. Por ao dirigente romeno
agradar a crítica aos Russos (e enviar os seus ginastas aos Jogos Olímpicos de
Los Angeles), os Americanos e outros mantinham-se calados sobre os seus
crimes na Roménia(28).
No entanto, os Romenos pagaram um preço terrível pelo estatuto
privilegiado de Ceausescu. Em 1966, para aumentar a população – uma
tradicional «obsessão» romena – proibiu o aborto a mulheres com menos de
quarenta anos e com menos de quatro filhos (em 1986 a barreira subiu para
quarenta e cinco). Em 1984 a idade mínima para o casamento das mulheres
foi reduzida para os quinze anos. Para evitar o aborto foram introduzidos
exames médicos obrigatórios mensais para todas as mulheres em idade de
engravidar, sendo o aborto permitido, quando muito, só na presença de um
representante do Partido. Os médicos nas regiões com uma taxa de natalidade
em declínio viam os seus salários reduzidos.
A população não aumentou, mas a percentagem de mortes por aborto
excedeu em muito a de qualquer outro país europeu: sendo a única forma de
controlo da natalidade, os abortos ilegais eram amplamente praticados, muitas
vezes nas mais assustadoras e perigosas condições. Durante os vinte e três
anos seguintes, a lei de 1966 resultou na morte de pelo menos 10 000
mulheres. A verdadeira taxa de mortalidade infantil era tão elevada, que
depois de 1985 os nascimentos só eram oficialmente registados até a criança
ter sobrevivido à quarta semana – a apoteose do controlo comunista do
conhecimento. Na altura em que Ceausescu foi deposto, a taxa de mortalidade
nos recém-nascidos era de 25 por 1000 e havia acima de 100000 crianças em
instituições.
O cenário desta tragédia nacional era uma economia que tinha sido
deliberadamente atrasada, da subsistência para a indigência. No início dos
anos 80, Ceausescu decidiu melhorar ainda mais a situação internacional do
seu país pagando as enormes dívidas externas da Roménia. As organizações
do capitalismo internacional – a começar no Fundo Monetário Internacional –
ficaram encantadas e não pouparam elogios ao ditador romeno. A Bucareste
foi concedida uma completa revisão de prazos para a sua dívida externa. Para
pagar aos seus credores ocidentais, Ceausescu exerceu uma pressão
implacável e inédita sobre o consumo interno.
Ao contrário dos governantes comunistas nos outros países, que contraíam
empréstimos ilimitados no estrangeiro para subornar os seus súbditos com
prateleiras bem fornecidas, o Conducator romeno começou a exportar todos
os artigos disponíveis produzidos internamente. Os Romenos foram obrigados
a usar lâmpadas de 40 watts em casa (quando havia electricidade) para a
energia poder ser exportada para Itália e para a Alemanha. Carne, açúcar,
farinha, manteiga, ovos e muito mais eram rigorosamente racionados. Para
intensificar a produtividade, introduziram-se quotas fixas para trabalho
público obrigatório aos domingos e feriados (a corvée [corveia], como era
conhecida no ancien régime em França).
O consumo de gasolina foi reduzido ao mínimo: em 1986 foi introduzido
um programa de criação de cavalos para substituir os veículos motorizados.
As carroças puxadas a cavalos passaram a ser o principal meio de transporte e
a colheita era feita com gadanha e foice. Isto era algo verdadeiramente novo:
todos os sistemas socialistas dependiam do controlo centralizado da escassez
sistematicamente causada, mas na Roménia uma economia baseada no
sobreinvestimento em maquinaria industrial pesada foi transformada numa
outra, indesejada, baseada na subsistência agrária pré-industrial.
As políticas de Ceausescu tinham uma certa lógica mórbida. A Roménia
pagou de facto aos seus credores internacionais, embora ao custo da redução
da sua população à penúria. Mas, nos seus últimos anos, a governação de
Ceausescu não se resumia a economias loucas. Para melhor controlar a
população rural do país – e aumentar ainda mais a pressão sobre os
agricultores para produzirem alimentos para exportação – o regime inaugurou
uma pretensa «sistematização» da zona rural romena. Metade das 13 000
aldeias do país (desproporcionadamente seleccionadas entre comunidades
minoritárias) foi demolida à força e os seus habitantes transferidos para 558
«cidades agrárias». Se Ceausescu tivesse tido tempo para levar a cabo o seu
projecto teria destruído completamente o pouco que restava do tecido social
do país.
A força motriz do projecto de «sistematização» rural era a megalomania
crescente do ditador romeno. Com Ceausescu, o impulso leninista para
controlar, centralizar e planear todos os pormenores do quotidiano
transformou-se numa obsessão com a homogeneidade e a grandeza,
ultrapassando até as ambições do próprio Estaline. A perene encarnação física
deste impulso megalómano seria a capital do país, para a qual estava prevista
uma transformação imperial sem precedentes desde Nero. Este projecto para a
«renovação» de Bucareste seria interrompido pelo golpe de Dezembro de
1989, mas já fora feito o suficiente para que a ambição de Ceausescu ficasse
indelevelmente gravada na estrutura da cidade contemporânea. Uma zona
histórica do centro de Bucareste do tamanho de Veneza foi completamente
arrasada. Quarenta mil edifícios e dezenas de igrejas e outros monumentos
foram demolidos para dar lugar a uma nova «Casa do Povo» e para a Avenida
Vitória do Socialismo com cinco quilómetros de comprimento e 150 metros
de largura.
Todo o empreendimento era mera fachada. Por detrás das resplandecentes
fachadas brancas da avenida estavam os conhecidos blocos sujos, sinistros, de
betão armado. Mas a própria fachada era agressiva, humilhante,
implacavelmente uniforme, uma síntese visual da governação totalitária. A
Casa do Povo, projectada por um arquitecto de vinte e cinco anos (Anca
Petrescu) como palácio pessoal de Ceausescu, era indescritível e
invulgarmente feia mesmo pelos padrões do seu género. Grotesca, cruel e de
mau gosto, era acima de tudo grande (três vezes o tamanho do Palácio de
Versalhes…) Com um vasto espaço em hemiciclo à sua frente que pode
conter meio milhão de pessoas, a sua área de recepção, do tamanho de um
campo de futebol, o palácio de Ceausescu era (e continua a ser) uma
monstruosa metáfora lapidar à tirania sem limites, a própria contribuição da
Roménia para o urbanismo totalitário.
Nos seus últimos anos, o comunismo romeno assentava precária e
transversalmente na intersecção da brutalidade com a paródia. Havia por todo
o lado retratos do chefe do Partido e da sua mulher; era elogiado em termos
ditirâmbicos que teriam embaraçado até o próprio Estaline (embora talvez não
Kim Il Sung, da Coreia do Norte, com quem o líder romeno era por vezes
comparado). Uma curta lista com os epítetos oficialmente aprovados por
Ceausescu para serem usados em relatos das suas realizações devia incluir: O
Arquitecto; O Formador de credos; o Sábio Timoneiro; o Mastro Mais Alto;
O Nimbo da Vitória; O Visionário; O Titã; O Filho do Sol; Um Danúbio de
Ideias e o Génio dos Cárpatas.
O que os servis colegas de Ceausescu realmente pensavam de tudo isto,
não o diziam. Mas é claro que em Novembro de 1989 – quando, após 67 anos
de constantes ovações, foi reeleito Secretário-Geral do Partido e
orgulhosamente declarou que não iria haver nenhumas reformas – uma
quantidade deles já o tinha começado a considerar um risco: remoto e
desfasado não só do espírito dos tempos mas do crescente nível de desespero
entre os seus próprios súbditos. Mas enquanto tivesse o apoio da polícia
secreta, a Securitate, Ceausescu parecia intocável.
Muito apropriadamente, então, foi a Securitate que precipitou a queda do
regime quando em Dezembro de 1989 tentou afastar um popular pastor
protestante húngaro, Lazslo Tökés, na cidade ocidental de Timisoara. A
minoria húngara, objecto especial de preconceito e repressão sob a
governação de Ceausescu, fora encorajada pelos acontecimentos mesmo do
outro lado da fronteira, na Hungria, e sentia-se ainda mais ressentida devido
aos abusos sistemáticos a que estava sujeita na Roménia. Tökés tornou-se um
símbolo e foco das suas frustrações e quando o regime fez dele o seu alvo a
15 de Dezembro, a igreja onde se refugiara foi cercada por paroquianos, que
fezeram uma vigília toda a noite em seu apoio.
No dia seguinte, quando a vigília se transformou inesperadamente numa
manifestação contra o regime, a polícia e o exército dispararam contra a
multidão. A Voz da América e a Rádio Europa Livre transmitiram relatos
exagerados do «massacre» e estes espalharam-se por todo o país. Para
estancar os protestos inéditos que agora se tinham espalhado de Timisoara a
Bucareste, Ceausescu regressou de uma visita oficial ao Irão. A 21 de
Dezembro apareceu numa varanda na sede do Partido com a intenção de fazer
um discurso denunciando a «minoria» de «agitadores» – e foi interrompido
pela multidão, ficando reduzido a um chocado e espantado silêncio. No dia
seguinte, depois de uma segunda fracassada tentativa para se dirigir às
multidões reunidas, Ceausesco e a mulher fugiram pelo telhado do edifício do
Partido para um helicóptero.
Neste ponto o equilíbrio do poder pendia claramente para longe do
Partido. Ao princípio, o exército apareceu para proteger o ditador, ocupando
as ruas da capital e disparando sobre os manifestantes que tentavam ocupar os
estúdios da televisão nacional. Mas a partir de 22 de Dezembro os soldados,
agora comandados por uma «Frente de Salvação Nacional» (FSN) que
ocupou o edifício da televisão, trocaram de lado e viram-se emboscados pelos
soldados da Securitate, fortemente armados. Entretanto, os Ceausescu foram
apanhados, presos e sumariamente julgados. Considerados culpados de
«crimes contra o Estado» foram executados prontamente no Dia de Natal de
1989(29).
A FSN converteu-se num conselho governante provisório e – depois de
renomear o país como «Roménia», simplesmente – nomeou Presidente o seu
próprio dirigente Ion Iliescu. Iliescu, tal como os seus colegas da Frente, era
um antigo comunista que cortara com Ceausescu uns anos antes e que podia
reivindicar alguma credibilidade como «reformador», ainda que apenas por
causa do seu relacionamento de estudante com o jovem Mikhail Gorbachev.
Mas a verdadeira qualificação de Iliescu para liderar uma Roménia pós-
Ceausescu era a sua capacidade para controlar as forças armadas, em especial
a Securitate, cujos últimos resistentes abandonaram a luta a 27 de Dezembro.
De facto, para além de autorizar a 3 de Janeiro de 1990 o restabelecimento de
partidos políticos, o novo presidente fez muito pouco para desmantelar a
instituição do velho regime.
Como os acontecimentos posteriores viriam a demonstrar, o aparelho que
tinha governado com Ceausescu permaneceu notavelmente intacto, mudando
apenas a própria família de Ceausescu e aqueles que lhe eram próximos e
escandalosamente incriminados. Os boatos de milhares de mortos durante os
protestos e batalhas de Dezembro revelaram-se um exagero – o número estava
mais próximo de uma centena – e tornou-se evidente que apesar de toda a
coragem e entusiasmo das enormes multidões em Timisoara, Bucareste e
outras cidades, a verdadeira luta fora entre os «realistas» à volta de Ceausescu
e a velha guarda do séquito de Ceausescu. A vitória dos primeiros garantiu à
Roménia uma suave – na verdade, de forma suspeita – saída do comunismo.
Os absurdos do final da era Ceausescu foram afastados, mas a polícia, a
burocracia e grande parte do Partido mantiveram-se intactos e no lugar. Os
nomes mudaram – a Securitate foi oficialmente abolida – mas não os
arreigados pressupostos e práticas: Iliescu nada fez para evitar os distúrbios
em Tirgu Mures em 19 de Março onde foram mortas oito pessoas e umas 300
feridas em ataques orquestrados à minoria húngara local. Além disso, depois
de a sua Frente de Salvação Nacional ter obtido uma esagadora maioria nas
eleições de Maio de 1990 (tendo antes prometido não as contestar) e ele
próprio ter sido formalmente reeleito Presidente, em Junho Iliescu não hesitou
em transportar mineiros de autocarro para Bucareste para espancar
manifestantes estudantis: vinte e um manifestantes foram mortos e uns 650
feridos. A Roménia ainda tinha um longo caminho a percorrer.
A natureza de «golpe palaciano» da revolução romena era ainda mais
evidente no Sul, onde o Comité Central do Partido Comunista Búlgaro
expulsou sem cerimónias do poder Todor Zhivkov, com a provecta idade de
78 anos. Sendo o dirigente do bloco comunista há mais tempo no poder –
ascendera à chefia do Partido em 1954 – Zhivkov tinha feito o melhor que
podia, ao estilo caracteristicamente búlgaro, para se moldar ao modelo russo:
no início dos anos 80 instituiu um «Mecanismo de Nova Economia» para
melhorar a produção e em Março de 1987, seguindo a orientação de
Moscovo, prometeu o fim do controlo «burocrático» da economia, garantindo
ao mundo que a Bulgária podia agora apresentar uma perestroika sua.
Mas os constantes insucessos da economia búlgara e a crescente
insegurança da liderança comunista à medida que os assuntos em Moscovo se
redefiniam levaram Zhivkov a procurar uma fonte alternativa de legitimidade
interna: o nacionalismo étnico. A significativa minoria turca na Bulgária
(cerca de 900 000 numa população de menos de nove milhões) era um alvo
tentador: não só era etnicamente distinta e de uma religião diferente como
também era a herdeira infeliz e o símbolo de uma era de odiada governação
otomana, só agora a ser esquecida. Tal como na vizinha Jugoslávia, assim na
Bulgária: uma autocracia do Partido vacilante voltou toda a fúria do
preconceito étnico contra uma vítima interna indefesa.
Em 1984 foi oficialmente anunciado que os Turcos da Bulgária não eram
de maneira alguma «Turcos», mas Búlgaros obrigados a converter-se que
iriam agora ser devolvidos à sua verdadeira identidade. Os ritos muçulmanos
(como a circuncisão) foram restringidos e criminalizados, o uso da língua
turca nas emissões, publicações e educação foi proscrito e, numa acção
particularmente ofensiva (e que deixou um ressentimento raivoso), todos os
cidadãos búlgaros com nomes turcos foram instruídos para doravante usarem
nomes propriamente búlgaros. O resultado foi um desastre. Houve bastante
resistência turca – que por sua vez levantou alguma oposição entre os
intelectuais búlgaros. A comunidade internacional protestou fortemente; a
Bulgária foi condenada nas Nações Unidas e no Tribunal de Justiça Europeu.
Entretanto, os oligarcas comunistas colegas de Zhivkov no estrangeiro
afastavam-se dele. Em 1989, os comunistas búlgaros estavam mais isolados
do que nunca e nem sequer minimamente perturbados com o curso dos
acontecimentos na vizinha Jugoslávia, onde o Partido parecia estar a perder o
controlo. As coisas entraram em crise com o êxodo para a Turquia durante o
Verão de 1989 de cerca de 300 000 Turcos étnicos – mais uma calamidade
para a imagem do regime e também económica, dado que o país começou a
ter falta de mão-de-obra(30). Quando a polícia reagiu de forma exagerada a 26
de Outubro a uma pequena reunião de ambientalistas no parque de Sófia –
prendendo e espancando activistas do grupo Ecoglasnost por fazerem circular
uma petição –, reformadores do partido conduzidos pelo ministro dos
Negócios Estrangeiros, Petar Mladenov, decidiram actuar. A 10 de Novembro
(não por coincidência no dia a seguir à queda do Muro de Berlim) expulsaram
o desgraçado Zhivkov.
Seguiu-se a já habitual sequência de acontecimentos: a libertação dos
presos políticos; a autorização dos partidos políticos; retirada da constituição
do «papel principal» dos comunistas; uma «mesa redonda» para planear
eleições livres, uma mudança de nome do antigo partido, agora intitulado
«Partido Socialista Búlgaro» e, na devida altura, as próprias eleições que –
como na Roménia – os antigos comunista ganharam facilmente (houve várias
alegações de fraude eleitoral).
Na Bulgária, a «oposição» política surgira muito depois do facto, e tal
como na Roménia houve palpites de que fora em certa medida criada para fins
próprios pelas facções comunistas dissidentes. Mas as mudanças foram apesar
disso reais. Mesmo à última hora, a Bulgária evitou com êxito a catástrofe que
esperava a Jugoslávia: a 29 de Dezembro, perante os furiosos protestos
nacionalistas, foram concedidos aos muçulmanos e Turcos direitos iguais. Em
1991, um partido maioritariamente turco, o Movimentos para os Direitos e
Liberdade, tinha garantido apoio eleitoral suficiente para manter o equilíbrio
de lugares na Assembleia Nacional do país.
Porque ruiu o comunismo tão precipitadamente em 1989? Não devemos
sucumbir às sereias do determinismo retrospectivo, por muito sedutor que
seja. Mesmo que o comunismo estivesse condenado pelo seu absurdo
intrínseco, poucos previram o momento e a forma da sua partida. É certo que
a facilidade com que a ilusão do poder comunista foi arruinada revelou que
estes regimes eram ainda mais fracos do que toda a gente supunha, o que
lança uma nova luz sobre a sua história inicial. Mas, ilusório ou não, o
comunismo durou muito tempo. Porque não durou mais?
Uma resposta é a versão da «teoria do dominó». Logo que os dirigentes
comunistas começaram a cair num sítio, a sua legitimidade noutros países foi
fatalmente reduzida. A credibilidade do comunismo assentava em parte na sua
pretensão de personificar a necessidade, de ser o produto lógico do progresso
histórico, um facto da vida política, uma presença inevitável na paisagem
moderna. Logo que foi demonstrado que isto era claramente falso – na
Polónia, por exemplo, o Solidariedade tinha aparentemente invertido a
história – então, porquê continuar a acreditar nele na Hungria ou na
Checoslováquia? Já vimos que o exemplo dos outros pesou claramente na
balança.
De qualquer maneira, o aspecto impressionante do colapso do comunismo
na Europa não foi o contágio per se: todas as revoluções se espalharam desta
maneira, corroendo a legitimidade das autoridades estabelecidas por exemplo
cumulativo. Foi o que aconteceu em 1848, 1919 e, num registo menor, em
1968. A novidade de 1989 foi a pura rapidez do processo. Ainda em Outubro
de 1989, Imre Pozsgay, na Hungria, ou Egon Krenze, na Alemanha de Leste,
julgavam ingenuamente que podiam controlar e gerir a sua versão da
perestroika. A maioria dos seus opositores tinha tendência para acreditar e
continuava a procurar um qualquer compromisso interino. Em 1980, Adam
Michnik escrevera que «uma sociedade híbrida é concebível, uma sociedade
onde a organização totalitarista do Estado coexista com as instituições
democráticas da sociedade»; a meio do Verão de 1989 tinha poucos motivos
para esperar outra coisa.
Um factor novo era o papel dos meios de comunicação. Húngaros, Checos
e Alemães em particular puderam ver a sua própria revolução nos noticiários
da televisão todas as noites. Para a população de Praga, repetições constantes
na televisão dos acontecimentos de 17 de Novembro constituíam uma espécie
de educação política instantânea, matraqueando em casa uma dupla
mensagem: «eles não têm poder» e «fomos nós que o fizemos». Como
consequência, o trunfo crucial do comunismo, o controlo e monopólio da
informação, perdeu-se. O medo de estar sozinho – a impossibilidade de saber
se os seus próprios sentimentos eram partilhados por outros – dissipou-se para
sempre. Mesmo na Roménia a ocupação dos estúdios da televisão nacional foi
o momento determinante da revolta. Não foi por acaso que o destino horrível
de Ceausescu foi filmado para ser transmitida a nível nacional. Este não era
um modelo novo, claro – durante o século XX as estações de rádio e as
estações de correios foram o primeiro objectivo das multidões
revolucionárias, de Dublin a Barcelona. Mas a televisão é rápida.
A segunda característica vincada das revoluções de 1989 foi a sua natureza
pacífica. A Roménia foi uma excepção, evidentemente, mas dada a natureza
do regime de Ceausescu era de esperar. A verdadeira surpresa foi que mesmo
em Timisoara e Bucareste a dimensão do derramamento de sangue foi muito
menor do que todos temiam. Também isto foi, em parte, por causa da
televisão. Com toda a população – para não falar em grande parte do resto do
mundo – a observar cada um dos seus passos, os regimes comunistas ficaram
bloqueados. Ser observado desta maneira era em si uma perda de autoridade e
restringia gravemente o seu leque de opções(31).
É certo que tais considerações não inibiram as autoridades comunistas na
China, que mataram a tiro centenas de manifestante pacíficos na Praça de
Tiananmen a 4 de Junho desse mesmo ano. Nicolae Ceausescu não teria
hesitado em imitar Pequim se tivesse podido fazê-lo. E vimos que pelo menos
Erich Honecker pensou em qualquer coisa de semelhante. Mas para a maior
parte dos seus colegas isso já não era uma opção. Em algum momento crucial,
todos os moribundos regimes totalitários vacilam entre a repressão e o
compromisso. No caso dos comunistas, a confiança na sua própria capacidade
para governar estava a evaporar-se tão rapidamente que as hipóteses de se
agarrarem ao poder apenas pela força começaram a parecer fracas – e os
benefícios de o fazerem de forma alguma evidentes. No cálculo do interesse
próprio para a maior parte dos burocratas comunistas e apparatchiks, a
balança da vantagem do partido estava rapidamente a inclinar-se para o outro
lado – melhor ir com a corrente do que ser arrastado por uma onda de
mudança.
Este cálculo poderia ter parecido diferente se as multidões tivessem estado
enraivecidas ou se os seus chefes estivessem beligerantemente determinados a
vingar-se da velha ordem. Mas por muitas razões – incluindo o próprio
exemplo de Tianamen, a desenrolar-se na televisão no mesmo dia das eleições
polacas – os homens e mulheres de 1989 evitaram conscientemente a
violência. Não foi só a revolução polaca que foi «autolimitadora». Com
décadas de violência em seu descrédito e todas as armas e munições do seu
lado, os regimes comunistas tinham ensinado muito eficazmente aos seus
súbditos a inconveniência e imprudência do recurso à força. Com a polícia
ainda a rachar cabeças em Berlim e Praga até às derradeiras horas do antigo
regime, os Eslovacos não foram o único «Público Contra a Violência».
A aversão à violência era tudo que muitos dos revolucionários de 1989
tinham em comum. Eram um grupo invulgarmente heterogéneo, mesmo pelos
padrões da maior parte das insurreições anteriores. O equilíbrio variava de
lugar para lugar, mas habitualmente «o povo» continha uma mistura de
comunistas reformistas, sociais-democratas, intelectuais liberais, economistas
de mercado livre, activistas católicos, sindicalistas, pacifistas, alguns
trotskistas e outros. Esta própria variedade era em si mesma parte da sua
força: constituía de facto precisamente o conjunto informal das organizações
civis e políticas que é tão contrário a um Estado de partido único.
Podia-se já detectar pelo menos uma linha de fractura importante – a que
separava os democratas liberais dos nacionalistas populistas –, distinguindo
Mazowiecki de Walesa, por exemplo, ou os democratas livres de esquerda
(dirigidos por Janos Kis e outros intelectuais dissidentes) dos nacionalistas da
velha guarda do Fórum Democrático. Havia também (como vimos) um
aspecto geracional nas multidões de 1989. Muitos dos dirigentes moderados
da oposição intelectual partilhavam uma história comum com os críticos
dentro do próprio partido. Para os estudantes e outros jovens, no entanto,
pareciam farinha do mesmo saco: parte de um passado que não podia e não
devia ser revivido. Na imagem do seu líder, de 26 anos, Viktor Orban, o
Fidesz na Hungria foi originalmente designado como partido político
exclusivamente para pessoas com menos de trinta anos(32).
As memórias e ilusões da «geração de Dubcek» não eram partilhadas
pelos seus filhos, que revelavam pouco interesse em recordar 1968 ou guardar
os «bons» aspectos da RDA. A nova geração estava menos interessada em
fazer com que os seus governantes entrassem em debate, ou oferecer
alternativas radicais à sua governação, do que simplesmente sair do seu
controlo. O que contribuiu para o aspecto carnavalesco de 1989, notado por
alguns observadores na Polónia e na Checoslováquia; também contribuiu para
a despreocupação com a resposta violenta. O comunismo já não era tanto um
obstáculo como uma irrelevância.
Isto percebe-se melhor na linguagem com que os objectivos de 1989 eram
vulgarmente expressos. O tema do «regresso à Europa» não era novo. Muito
antes do comunismo, a metade oriental do continente fora a Europa que
procurava aprovação e reconhecimento; a Europa Ocidental era a Europa que
se «conhecia» e cujo reconhecimento era tão ansiosamente procurado(33).
Com a chegada do bloco soviético, a sensação de que a sua parte da Europa
estava separada das suas raízes tinha-se tornado um leitmotiv da dissidência
intelectual e da oposição em toda a região.
Mas o lamento pela sua identidade europeia perdida tinha adquirido nos
anos recentes significado especial para os europeus de Leste com o
aparecimento no Ocidente de uma coisa nova: uma entidade institucional –
uma «Comunidade Europeia», uma «União Europeia» – construída à volta de
valores «europeus» com que os europeus de Leste se podiam muito bem
identificar: direitos do indivíduo, obrigações cívicas, liberdade de expressão e
de circulação. A conversa sobre a «Europa» tornou-se menos abstracta e
portanto, entre outras coisas, mais interessante para a gente nova. Não sendo
agora apenas um lamento pela cultura perdida da velha Praga ou Budapeste,
representava um conjunto de objectivos políticos concretos e atingíveis. O
oposto de comunismo não era capitalismo, mas «Europa».
O que era mais do que uma mera questão de retórica. Embora os velhos
quadros comunistas pudessem convincentemente (e até convictamente)
apontar para as depredações de uma abstracção chamada «capitalismo», nada
tinham a oferecer em vez da «Europa» – porque representava não uma
alternativa ideológica mas simplesmente a norma política. Por vezes a ideia
inflectia-se como «a economia de mercado», às vezes «uma sociedade civil»;
mas em qualquer dos casos a «Europa» significava – directa e simplesmente –
normalidade e estilo de vida moderno. O comunismo já não era o futuro – o
seu trunfo insistente durante seis décadas – mas o passado.
Naturalmente, havia variações. Os nacionalistas e até mesmo alguns
conservadores políticos e religiosos – muitos deles activos e influentes em
1989 – não estavam dispostos a pensar tanto na Europa como na «Polónia» ou
«Hungria». E alguns deles talvez estivessem menos interessados na liberdade
e nos direitos do indivíduo do que outros. As prioridades imediatas da
multidão também variavam – a ideia de regressar à Europa era mais
importante na mobilização do sentimento popular na Checoslováquia do que
na Roménia, para dar um exemplo óbvio, onde apear um ditador e pôr comida
na mesa era mais importante. E embora alguns dos dirigentes de 1989
pretendessem desde o princípio construir uma economia de mercado (ao
formar o seu primeiro governo em Setembro de 1989 Tadeusz Mazowiecki
declarou de forma memorável que estava «à procura do meu Ludwig
Erhard!») outros – nomeadamente Havel – preferiram centrar-se nas
fundações cívicas da democracia.
O significado destas cambiantes só mais tarde surgiria. No entanto, poderá
ser apropriado aqui apresentar uma observação relativa ao papel dos Estados
Unidos nesta história. Os europeus de Leste, especialmente os de Berlim
Leste, estavam perfeitamente conscientes do papel dos EUA na contenção da
União Soviética. Também percebiam as cambiantes que distinguiam os
políticos europeus ocidentais – que, na maior parte, se sentiam satisfeitos em
viver com o comunismo desde que os deixassem em paz – dos políticos
americanos como Ronald Reagan, que o descreveu abertamente como sendo
«um império do mal». O Solidariedade era amplamente financiado pelos EUA
e foram os EUA que deram o mais insistente apoio oficial aos manifestantes
de Berlim e de outros sítios – assim que se tornou claro que provavelmente
ganhariam.
Mas não se deve concluir daqui, como muitas vezes se faz, que os povos
cativos da Europa de Leste estavam ansiosos por se tornarem… americanos;
muito menos que tenha sido o incentivo ou o apoio americano que precipitou
e facilitou a sua libertação(34). Os EUA representaram um papel
extremamente pequeno nos dramas de 1989, pelo menos até depois do facto
consumado. E o próprio modelo social americano – o «mercado livre» – só
foi tido ocasionalmente como objecto de admiração ou emulação pelas
multidões ou pelos seus porta-vozes. Para a maioria das pessoas que tinha
vivido sob o comunismo, a libertação não significava de modo algum um
desejo pela competição económica sem entraves, muito menos a perda dos
serviços sociais grátis, emprego garantido, rendas baratas ou qualquer outros
dos benefícios associados ao comunismo. Afinal, um dos atractivos da
«Europa», tal como era imaginada no Leste, era esta oferecer a perspectiva de
riqueza e segurança e protecção. Podia-se ter o seu bolo socialista e comê-lo
em liberdade.
Tais sonhos europeus prenunciavam desilusões futuras. Mas poucos o
viram na altura. No mercado dos modelos alternativos, o estilo de vida
americano era ainda um gosto minoritário e a América, com toda a sua
influência global, estava muito longe. A outra superpotência, porém, estava
mesmo à porta. Os Estados-satélites da Europa de Leste eram todos colónias
do império comunista sedeado em Moscovo. Como tal, só parte é que pode
ser atribuído às forças sociais ou políticas indígenas nas mudanças de 1989 –
quer fossem organizações católicas clandestinas na Eslováquia, grupos de
música rock na Polónia ou intelectuais livre-pensadores em todo o lado. Em
última análise, era sempre Moscovo que contava.
No empolgante resplendor da libertação, muitos europeus de Leste
minimizaram o significado de Moscovo para melhor realçar as suas próprias
proezas. Em Janeiro de 1992, József Antall, do Fórum Democrático, agora
primeiro-ministro da Hungria, lamentou a um público húngaro a falta de
apreço do Ocidente pelo papel heróico dos habitantes da Europa Central na
queda do comunismo: «Este amor não retribuído tem de terminar, porque nos
mantivemos nos nossos postos, lutámos as nossas lutas sem disparar um tiro e
ganhámos para eles a terceira guerra mundial». O amargurado relato de
Antall, por muito lisonjeiro que fosse para o seu auditório, esquece a verdade
seminal sobre 1989: se as multidões europeias de Leste e os intelectuais e os
dirigentes sindicais «ganharam a terceira guerra mundial» é porque, muito
simplesmente, Mikhail Gorbachev os deixou.
Em 6 de Julho de 1989, Gorbachev discursou perante o Conselho da
Europa em Estrasburgo e informou a assistência de que a União Soviética não
impediria a reforma da Europa de Leste: que era «uma questão inteiramente
dos próprios povos». Numa conferência de dirigentes do bloco de Leste em
Bucareste a 7 de Julho de 1989, o dirigente soviético afirmou o direito de
cada Estado socialista de seguir a sua própria trajectória sem interferência
externa. Cinco meses depois, num salão do navio SS Maximo Gorky ao largo
de Malta, garantiu ao presidente Bush que não seria usada a força para manter
no poder os regimes comunistas da Europa de Leste. Não havia qualquer
ambiguidade nesta posição. Gorbachev, como Michnik observara em 1988,
era «prisioneiro dos seus êxitos na política externa». Depois de uma
metrópole imperial reconhecer que não iria, não poderia, agarrar-se à sua
periferia colonial – e ter sido universalmente aclamada por o ter dito – as suas
colónias estavam perdidas e com elas os colaboradores indígenas do império.
Tudo quanto restava para ser determinado era a direcção e a maneira como
caíam.
Os próprios colaboradores perceberam certamente o que se estava a
passar: entre Julho de 1988 e Julho de 1989, Károly Grosz e Miklos Nemeth,
os principais reformadores do Partido húngaro, fizeram quatro visitas a
Moscovo para se encontrarem com Mikhail Gorbachev. O seu colega Reszo
Nyers também falou com ele em Bucareste a 7 de Julho de 1989, no dia a
seguir à morte de Kadar, data em que era já claro que a sua causa estava
perdida. Gorbachev nada fez activamente para precipitar ou encorajar as
revoluções de 1989: deixou-se apenas ficar. Em 1849 a intervenção russa
tinha selado o destino da revolução húngara e outras nesse ano; em 1989 a
abstenção russa ajudou a garantir o seu êxito.
Gorbachev fez mais do que simplesmente abdicar das colónias. Ao indicar
que não interviria, enfraqueceu sem dúvida a única fonte real de legitimidade
política disponível aos governantes dos Estados-satélites: a promessa (ou
ameaça) de intervenção militar de Moscovo. Sem essa ameaça os regimes
locais ficaram politicamente despidos. Economicamente, poderiam ter lutado
durante alguns anos mais, mas também aí a lógica da retirada soviética era
implacável: assim que Moscovo começasse a cobrar os preços de mercado
mundiais pelas suas exportações para os países do Comecon (como fez em
1990), estes últimos, fortemente dependentes dos subsídios imperiais, teriam
ruído em qualquer circunstância.
Como este último exemplo sugere, Gorbachev estava a deixar cair o
comunismo na Europa de Leste para salvar a própria Rússia – tal como
Estaline tinha construído os regimes satélites não para bem deles, mas como
segurança para a sua fronteira ocidental. Tacticamente Gorbachev calculou
muito mal – no espaço de dois anos as lições da Europa de Leste iriam ser
usadas contra o libertador da região no seu território natal. Mas
estrategicamente a sua realização foi imensa e sem precedentes. Nenhum
outro império territorial na história conhecida alguma vez abandonou os seus
domínios tão rapidamente, tão graciosamente e com tão pouco sangue
derramado. Gorbachev não pode receber o crédito directo pelo que aconteceu
em 1989 – não o planeou e só entendeu vagamente o seu significado a longo
prazo. Mas foi a sua causa permissiva e aceleradora. Foi a revolução de
Gorbachev.
-
(1) É evidentemente tarefa da Igreja Católica censurar os ídolos materiais e o pecado do orgulho.
Mas Karol Wojtyla foi muito mais longe. Nas suas Celebrações da Quaresma no Vaticano, em 1975, três
anos antes de se tornar papa, anunciou explicitamente que das duas ameaças à Igreja, o consumismo e a
perseguição, o primeiro era de longe o perigo mais grave e portanto o maior inimigo.

(2) Testemunha-o o seu apoio inicial ao convento de Carmelitas projectado para Auschwitz, mais
tarde retirado perante os protestos internacionais. A sua imprudente descrição da Polónia sob a lei
marcial como um «vasto campo de concentração» reflecte uma limitação semelhante.

(3) Com o encorajamento do Vaticano, os Estados Unidos iriam providenciar apoio financeiro
significativo ao Solidariedade durante os seus anos de clandestinidade – por alguns calculado nuns 50
milhões de dólares.

(4) Embora no início da sua presidência, em Novembro de 1981, Reagan tenha deixado escapar a
ideia de que uma guerra nuclear na Europa não precisava de conduzir a uma mudança estratégica. Os
aliados de Washington da Europa Ocidental ficaram pelo menos tão alarmados como Moscovo, e ambos
protestaram de forma veemente.

(5) Nunca esteve, evidentemente, em questão os Pershing ou Cruise serem colocados na própria
França…

(6) Após 1990, soube-se que pelo menos 25 membros do Bundestag durante esses anos eram agentes
pagos da RDA.

(7) A 13 de Dezembro de 1981, o dia em que a lei marcial foi declarada na Polónia, Schmidt estava
na RDA numa «cimeira» com o seu homólogo Erich Honecker e ficou de certo modo desencantado,
menos pela prisão de centenas de dissidentes polacos que pelo impacto potencialmente «destabilizador»
dos desenvolvimentos polacos na melhoria das relações inter-germânicas.

(8) Graças a um PIB cada vez maior, o factor defesa na despesa pública da América tinha caído
regularmente em termos relativos desde meados dos anos 50 até 1979, mesmo durante os anos do
Vietname. Cresceu então espectacularmente: como percentagem da despesa Federal, os gastos com a
defesa em 1987 estavam 24% acima dos níveis de 1980.
(9) De facto, a própria família de Gorbachev sofrera bastante durante a chefia de Estaline: os seus
dois avós foram presos e exilados no decorrer das purgas do ditador. Mas o novo dirigente soviético
nem sequer admitiu o facto até Novembro de 1990.

(10) «Mais c’est quoi, la dialectique?» «C’est l’art et la manière de toujours retomber sur ses pattes,
mon vieux!» Jorge Semprún, Quel Beau Dimanche (Paris : Grasset, 1980), p. 100.

(11) Isto foi tema de um livro de Zhores Madvedev, Desastre Nuclear nos Urais, publicado no exílio
em 1979.

(12) Numa sondagem de opinião feita uns meses depois, em Janeiro de 1990, Gorbachev
posicionava-se logo atrás de Pedro, o Grande, na preferência pública – mas muito à frente de Karl Marx
e V. I. Lenine…

(13) Foi Sakharov quem forçou o tema para o público, exigindo – na televisão em directo – a
revogação do Artigo 6.o e o regresso aos representantes do poder do povo «roubado» pelo Partido em
1918. O próprio Gorbachev desligou o microfone de Sakharov, mas demasiado tarde.

(14) Também fez questão no funeral de Chernenko, em Março de 1985, de conhecer e cumprimentar
Alessandro Natta, o chefe do Partido Comunista Italiano, até então perpetuamente nas más graças de
Moscovo.

(15) Num eco apropriadamente irónico do fiasco da América no Vietname, o regime fantoche de
Cabul – agora privado de apoio armado do estrangeiro – prosseguiu com dificuldade até 1992, antes de
sucumbir (apesar dos seus avalistas internacionais) às forças dos talibans.

(16) Andrei Grachev, citado em The Gorbachev Factor de Archie Brown (Oxford, 1997), pág. 88.

(17) Em 1986, os EUA levantaram o veto à participação da Polónia no FMI em troca da libertação de
todos os restantes presos políticos e de uma amnistia geral.

(18) Ver Harold James, International Monetary Cooperation since Bretton Woods
(FMI/Universidade de Oxford, 1996), pág. 567.

(19) Oficialmente, o sítio da sepultura de Nagy permanecera desconhecido durante trinta anos; de
facto, a sua localização num canto obscuro e não assinalado do Cemitério Municipal de Budapeste era
do conhecimento público.

(20) Agradeço ao Professor Timothy Garton Ash esta referência.

(21) Parece que Honecker tinha calculado, com razão, que Gorbachev não iria durar e podia ser
ignorado sem perigo.

(22) Três dias depois da visita de Gorbachev, Honecker recebeu um dignitário chinês em visita e
comparou o desassossego na RDA com a recente «contra-revolução» chinesa. Parece provável que
estivesse pelo menos a contemplar uma repetição alemã do massacre da Praça de Tiananmen – um dos
motivos que levaram os seus colegas a desalojá-lo do poder.

(23) Em rigor, os dissidentes alemães de Leste interpretaram realmente mal a coragem das multidões
em Novembro de 1989 como base de uma república socialista renovada. Por outro lado, a fonte dessa
má interpretação foi a sua incapacidade cega para perceberem o que «socialismo» passara a significar –
e o seu próprio investimento na sua sobrevivência.

(24) Em determinados aspectos a sua equivalente polaca surgiu em 1980-81 – a transição política na
Polónia uma década depois foi um caso mais calculado e negociado.
(25) O autor, que estava em Praga nesta altura, pode testemunhar a sensação inebriante de se estar a
fazer história no momento.

(26) Um cartoon num dos efémeros jornais de estudantes de Praga de Dezembro de 1989 capta
perfeitamente a diferença de gerações. Um homem barrigudo de meia-idade de camisola interior olha
desgastado pelo seu espelho de barbear para uma mulher desarranjada à entrada da porta, com uma
camisa suja por cima dos ombros, o cabelo com rolos, um cigarro nos lábios. «Não me reconheces?»,
troça ela. «Sou os teus sonhos de 1968».

(27) «Se um povo nunca falou, as primeiras palavras que profere são poesia». Ferdinando Camon em
La Stampa «Tutto Libri», 16 de Dezembro 1989.

(28) Pelo menos até à subida de Mikhail Gorbachev, após o que o Ocidente já não precisava de um
desalinhado soviético.

(29) O julgamento e a execução por fuzilamento foram filmados para a televisão, mas só exibidos
dois dias depois.

(30) Oficialmente, claro, os Turcos não existiam: «Não há turcos na Bulgária» (Dimitur Stoyanov,
ministro do Interior).

(31) Tais considerações nem sempre se aplicavam às remotas comunidades rurais e às pequenas
cidades de província, onde a polícia continuou até mesmo ao fim a operar sem ser estorvada pelas
câmaras de televisão ou pela desaprovação pública.

(32) Um piscar de olhos ambíguo ao único monumento duradouro dos anos 60, a ideia de que a
juventude é uma condição em si mesma superior – nas palavras de Jerry Rubin: «Nunca confies em
ninguém com mais de trinta anos».

(33) Esta linha de raciocínio foi desenvolvida por Voltaire, entre outros, e é elegantemente descrita
por Larry Wolf em Inventing Western Europe, (Stanford, 1994).

(34) Até a resposta inicial de Reagan à declaração da lei marcial na Polónia foi caracteristicamente
pouco entusiástica. Só depois de veemente crítica pública (de Henry Kissinger, entre outros), é que
Washington adoptou oficialmente a postura dura pela qual era mais conhecida.
IV Parte

Depois da Queda: 1989-2005


XX

Um Continente Físsil
«Não tenho de fazer nada para o impedir, os Soviéticos fá-lo-ão por mim.
Nunca hão-de admitir esta grande Alemanha mesmo diante deles.»
François Mitterrand, 28 de Novembro de 1989
«No princípio, não compreendíamos a profundidade dos problemas que se nos
deparavam.»
Mikhail Gorbachev, 1990
«O nosso país não teve sorte. Decidiram sujeitar-nos a esta experiência
marxista. No fim, provámos que não há lugar para esta ideia – que nos afastou
do caminho seguido pelos países civilizados do mundo.»
Boris Yeltsin, 1991
«A existência da nação checa nunca foi uma certeza, e é precisamente essa
incerteza que constitui o seu aspecto mais marcante.»
Milan Kundera
Libertada do comunismo, a Europa de Leste sofreu uma segunda
transformação, mais profunda ainda do que a anterior. No decurso da década
de 90, quatro Estados estabelecidos desapareceram do mapa do continente e
nasceram – ou ressuscitaram – 14 novos países. As seis repúblicas mais a
ocidente da União Soviética – Estónia, Letónia, Lituânia, Bielorrússia,
Ucrânia e Moldávia – tornaram-se Estados independentes, juntamente com a
própria Rússia. A Checoslováquia deu origem a dois países distintos, a
Eslováquia e a República Checa. Por seu lado, a Jugoslávia dividiu-se nas
suas unidades constituintes: Eslovénia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia-
Montenegro e Macedónia.
O impacto deste processo de formação e divisão de nações pode ser
comparado ao dos tratados de Versalhes que se seguiram à Primeira Guerra
Mundial – e, em certos aspectos, pode mesmo considerar-se que foi mais
dramático. O estabelecimento de Estados-nações em Versalhes foi o culminar
de um longo processo que se iniciou em meados do século XIX ou até antes;
não foi uma surpresa. Mas a possibilidade de algo semelhante vir a ocorrer
em finais do século XX era quase impensável. Com efeito, três dos Estados
que viriam a desaparecer ao longo da década de 90 – Checoslováquia,
Jugoslávia e URSS – haviam-se formado após a guerra de 1914-18.
O facto de estes terem sido os últimos Estados federais e multiétnicos da
região não é, todavia, uma coincidência. A divisão territorial dos anos 90 deu-
se em simultâneo com a extinção do último dos quatro impérios continentais
da Europa, a Rússia. Foi, com efeito, um epílogo tardio da formação pós-
imperial de Estados que se seguiu à queda dos restantes três: a Turquia
otomana, a Áustria dos Habsburgo e a Alemanha dos Guilhermes. Mas a
lógica da ruptura imperial não teria, por si só, desencadeado a reorganização
institucional da Europa de Leste. Como tantas vezes aconteceu no passado, o
destino da região foi determinado por acontecimentos na Alemanha.
O mérito pela reunificação da Alemanha – caso único de fusão numa
década de divisão – deve, antes de mais, ser atribuído a Helmut Kohl. O
chanceler da Alemanha Ocidental mostrou-se inicialmente hesitante, como
toda a gente – a 28 de Novembro de 1989 apresentou ao Bundestag um
programa quinquenal de passos cautelosos com vista à unidade da Alemanha.
No entanto, depois de auscultar a população da Alemanha de Leste (e de ter
assegurado o apoio de Washington), Kohl apercebeu-se de que uma
Alemanha unificada era agora não apenas possível, mas talvez até urgente.
Tornava-se claro que a única forma de estancar o fluxo para oeste (2000
pessoas por dia a determinada altura) era estender a Alemanha Ocidental para
leste. Para impedir os Alemães de Leste de abandonar o seu país, o líder da
Alemanha Ocidental estava determinado a aboli-la.
Tal como no século XIX, a unificação da Alemanha deveria processar-se
mediante uma convergência de moeda; mas a união política deu-se logo em
seguida. As conversações acerca de uma «confederação», inicialmente
encorajadas pela Alemanha Ocidental e manifestamente apoiadas pelo
governo de Hans Modrow, da RDA, foram precipitadamente postas de parte
e, nas eleições convocadas à pressa na Alemanha de Leste, em Março de
1990, os candidatos da democracia cristã apostaram na unificação. A sua
«Aliança pela Alemanha» obteve 48% dos votos: os sociais-democratas,
prejudicados pela sua ambivalência relativamente à questão, amplamente
divulgada, conseguiram apenas 22%(1). Os antigos comunistas – agora o
Partido do Socialismo Democrático – obteve uns respeitáveis 16%; mas a
Aliança ’90, uma coligação de antigos dissidentes, que incluía o Neues Forum
de Bärbel Bohley, não foi além dos 2,8%(2).
O primeiro acto da nova maioria no parlamento da RDA, representado por
uma coligação CDU-SPD-Liberal liderada por Lothar de Maizière, foi
assumir um compromisso pela unidade da Alemanha(3). A 18 de Maio de
1990, foi assinada uma «união social, económica e monetária» entre as duas
Alemanhas e, a 1 de Julho, a sua cláusula fundamental – a extensão do marco
alemão à Alemanha de Leste – entrou em vigor. Os Alemães da ex-RDA
podiam trocar os seus marcos da Alemanha de Leste, agora quase inúteis, até
uma quantia equivalente a DM 40 000, à taxa altamente vantajosa de 1:1. Os
salários seriam a partir de então também pagos em marcos alemães – um
estratagema extremamente eficaz para manter os Alemães de Leste no lugar
onde estavam, mas com sérias consequências a longo prazo para os empregos
na Alemanha de Leste e para o orçamento da Alemanha Ocidental.
A 23 de Agosto, mediante um pré-acordo com Bona, a Volkskammer,
parlamento da RDA, aprovou a integração na República Federal. Uma
semana mais tarde foi assinado um Tratado de Unificação que determinou que
a RDA fosse absorvida pela RFA – conforme aprovado pelos eleitores nas
eleições de Março e ao abrigo do Artigo 23.o da Lei Básica de 1949. A 3 de
Outubro, o Tratado entrou em vigor: a RDA foi absorvida pela República
Federal e deixou de existir.
A divisão da Alemanha fora determinada pelos vencedores da Segunda
Guerra Mundial e a sua reunificação em 1990 nunca se teria concretizado sem
o encorajamento ou acordo daqueles. A Alemanha de Leste era um satélite da
União Soviética, com 360 000 soldados soviéticos ainda aí estacionados em
1989. A Alemanha Ocidental, apesar de independente, não tinha a liberdade
de agir autonomamente naquela questão em particular. Quanto a Berlim, até
ao estabelecimento de um último acordo de paz, continuava a ser uma cidade
cujo destino dependia formalmente das potências ocupantes – França,
Inglaterra, Estados Unidos da América e União Soviética.
Nem os Ingleses nem os Franceses tinham pressa de ver uma Alemanha
reunificada. Se a Europa Ocidental pensava sequer numa Alemanha una,
partia do princípio – naturalmente – que esse passo estaria no fim de um longo
processo de mudança da Europa de Leste, e não logo no seu começo. Como
Douglas Hurd (o ministro dos Negócios Estrangeiros inglês) observou em
Dezembro de 1989, ao reflectir sobre a conclusão iminente da Guerra Fria:
Este foi «um sistema… sob o qual vivemos bastante felizes durante 40 anos».
A sua primeira-ministra, Margaret Thatcher, não escondeu os seus receios.
Na sua autobiografia, recorda uma reunião convocada apressadamente com o
presidente francês Mitterrand: «Retirei da minha mala um mapa com as várias
configurações da Alemanha no passado, as quais não eram de forma alguma
tranquilizadoras relativamente ao futuro… [Mitterrand] disse que, em
momentos de grande perigo no passado, a França sempre estabelecera
relações privilegiadas com a Grã-Bretanha, e que ele sentia estarmos
novamente perante uma dessas situações… Pareceu-me que, embora não
soubéssemos ainda de que forma, ambos estávamos pelo menos determinados
a deter o poderio da Alemanha. Já era um ponto de partida.»
Thatcher – e neste aspecto não era a única – temia igualmente que a
unificação da Alemanha pudesse desestabilizar Mikhail Gorbachev, podendo
inclusivamente levar à sua destituição (por analogia com a queda de Nikita
Khrushchev, depois da sua humilhação na questão de Cuba). Mas os Ingleses,
apesar dos seus receios, nada tinham a propor como alternativa aos
acontecimentos que então se desenrolavam na Alemanha, pelo que a seu
tempo aquiesceram. Mitterrand não foi tão facilmente tranquilizado. Mais do
que qualquer outra nação, a França estava verdadeiramente perturbada pelo
colapso da organização estável e familiar da Alemanha e do bloco comunista
como um todo(4).
A primeira reacção de Paris foi tentar bloquear qualquer passo no sentido
da unificação da Alemanha – Mitterrand chegou mesmo a visitar a RDA em
Dezembro de 1989, numa demonstração de apoio à sua soberania. Declinou o
convite de Helmut Kohl para estar presente numa cerimónia que assinalava a
reabertura da Porta de Brandeburgo, e tentou convencer os líderes soviéticos
de que, sendo aliados tradicionais, a França e a Rússia tinham um interesse
comum em bloquear as ambições alemãs. Com efeito, os Franceses contavam
com que Gorbachev vetasse a unificação da Alemanha, conforme explicou
Mitterrand aos seus conselheiros em 28 de Novembro de 1989: «Não tenho de
fazer nada para o impedir, os Soviéticos fá-lo-ão por mim. Nunca hão-de
admitir esta grande Alemanha mesmo diante deles.»
Mas quando a realidade se revelou bem diferente – e no seguimento da
vitória decisiva de Kohl nas eleições da Alemanha de Leste –, o presidente
francês adoptou uma táctica diferente. Os Alemães poderiam ter a sua
unidade, mas havia um preço a pagar por isso. Não seria de forma alguma
aceitável que uma Alemanha fortalecida seguisse um caminho independente,
muito menos que retomasse as suas antigas prioridades centro-europeias.
Kohl deveria comprometer-se a acompanhar o projecto europeu sob um
governo conjunto franco-alemão, e a Alemanha teria de se adaptar no seio de
uma união «mais estreita do que nunca» – cujos termos, nomeadamente uma
moeda única europeia, seriam salvaguardados num novo tratado (a ser
negociado no ano seguinte na cidade holandesa de Maastricht)(5).
Os Alemães concordaram prontamente com todas as condições impostas
pela França (apesar de o carácter pouco hábil das manobras diplomáticas
francesas ter arrefecido as relações durante algum tempo) – um eco de tempos
passados, quando, depois de 1955, Bona concordou em confinar a «Europa»
aos seis países iniciais, por forma a apaziguar a ansiedade da França
relativamente à restituição da soberania total à Alemanha. Ao longo dos
meses que se seguiram, Kohl acabou mesmo por ceder numa série de questões
secundárias com vista a recompensar a França pela sua tolerância(6). A
unificação bem que merecia o apaziguamento dos nervosos vizinhos europeus
da Alemanha. De qualquer modo, a Kohl – nascido em Ludwigshafen e, à
semelhança do seu amigo Adenauer, natural da região do Reno,
instintivamente disposto a olhar para Oeste – não desagradava a ideia de
aproximar a Alemanha da Comunidade Europeia.
Mas, mais importante do que tudo, o chanceler alemão tinha a maré a seu
favor, como qualquer fotografia da época pode confirmar: a unificação da
Alemanha tinha o apoio total dos Estados Unidos. Como seria de esperar, a
Administração do presidente George Bush começou por supor, tal como os
seus aliados, que a unificação da Alemanha podia apenas surgir no final de
uma série de mudanças imprevisíveis a decorrer na URSS e na Europa de
Leste, e apenas com o consentimento da União Soviética. No entanto,
Washington apercebeu-se mais depressa do ambiente que se vivia, sobretudo
depois de uma sondagem de Fevereiro de 1990 ter mostrado que 58% da
população da Alemanha Ocidental era a favor de uma Alemanha unida e
neutral. Este era precisamente o resultado que os EUA (e muitos dos políticos
da Alemanha Ocidental) mais temiam: uma Alemanha unificada, neutral e
independente no centro da Europa, desestabilizando e inquietando os seus
vizinhos em ambos os lados.
Os EUA comprometeram-se então a apoiar sem reservas os objectivos de
Kohl, para garantir que os Alemães não se vissem em circunstância alguma
forçados a escolher entre a unidade e a aliança ocidental. Pressionadas por
Washington, a França e a Inglaterra concordaram em sentar-se à mesa com a
União Soviética e com representantes das duas Alemanhas para analisarem os
termos da formação de uma nova Alemanha. As chamadas conversações de
«dois mais quatro» conduzidas pelos ministros dos Negócios Estrangeiros
entre Fevereiro e Setembro de 1990, culminaram num «Acordo Final em
Relação à Alemanha», assinado em Moscovo a 12 de Setembro.
Com este tratado, que reconheceu formalmente as fronteiras da futura
Alemanha como sendo as dos dois Estados alemães na altura, o estatuto de
poder quadripartido de Berlim chegou ao fim, expirando às zero horas do dia
2 de Outubro de 1990. A União Soviética permitiu que a nova Alemanha
permanecesse na NATO, e chegou-se a acordo relativamente à retirada do
Exército Vermelho e à partida de todas as tropas estrangeiras de Berlim (num
prazo de quatro anos, findo o qual apenas um pequeno contingente de tropas
da NATO permaneceria em solo alemão).
Por que razão aceitou Mikhail Gorbachev tão prontamente que a
unificação alemã avançasse? Durante décadas, o objectivo estratégico
fundamental da União Soviética fora manter o status quo territorial no centro
da Europa: Moscovo – como Londres, Paris e Washington – acabara por se
sentir à vontade com uma Alemanha dividida, e abandonara há muito o
propósito traçado por Estaline no pós-guerra de libertar Bona da aliança
ocidental. E, ao contrário dos chefes de Estado da França e da Inglaterra, o
líder soviético estava ainda, em princípio, em posição de bloquear o processo
de unificação.
Como toda a gente em 1990, Gorbachev não tinha meios de prever o
desenrolar dos acontecimentos. Ninguém, nem a Leste nem a Ocidente, tinha
um plano definido para o caso de a RDA se desintegrar; e não havia um
projecto para a unificação da Alemanha. Contudo, o líder soviético, ao
contrário dos seus homólogos ocidentais, não tinha boas opções. Não podia,
de forma realista, impedir a unificação da Alemanha sem ir contra as suas
declarações públicas benevolentes dos anos anteriores e sem prejudicar
gravemente a sua credibilidade. Inicialmente, opôs-se à integração de uma
Alemanha unida na NATO e, mesmo após ter cedido neste ponto em
princípio(7), continuou a insistir que as tropas da NATO não deviam ser
autorizadas a deslocar-se 300 quilómetros para leste para a fronteira polaca –
algo que o secretário de Estado dos EUA, James Baker, chegou
inclusivamente a prometer ao seu homólogo em Fevereiro de 1990. No
entanto, quando mais tarde essa promessa foi quebrada, Gorbachev viu-se
impossibilitado de intervir.
O que pôde fazer foi, literalmente, estabelecer um preço para as suas
concessões. Tal como o chanceler da Alemanha Ocidental antevira, a URSS
mostrou-se receptiva à persuasão financeira. Gorbachev tentou inicialmente
manter como reféns as negociações para a unificação, pedindo um resgate de
20 mil milhões de dólares, antes de acordar finalmente num valor de
aproximadamente 8 mil milhões, mais 2 mil milhões em crédito sem juros.
Ao todo, entre 1990 e 1994, Bona transferiu para a União Soviética (e depois
para a Rússia) o equivalente a 71 mil milhões de dólares (com mais 36 mil
milhões para os antigos Estados comunistas da Europa de Leste). Helmut
Kohl concordou também em apaziguar os receios soviéticos (e polacos)
relativamente ao irredentismo alemão, comprometendo-se, como vimos, a
aceitar como permanentes as fronteiras orientais do seu país, um
compromisso ratificado no ano seguinte num tratado assinado com a Polónia.
Tendo assegurado os melhores termos que lhe foi possível obter, Moscovo
concordou em abandonar a RDA. Na medida do possível, a União Soviética
reverteu a situação a seu favor, e abdicou da sua aliada diminuta e ressentida,
a Alemanha de Leste, objectando, como era forçoso, mas sem muitas razões
para lamentar. Fazia mais sentido construir uma relação estratégica com uma
nova Alemanha amigável e agradecida do que fazer dela inimiga, e, na
perspectiva da União Soviética, uma Alemanha unida bem segura – e contida
– pela mão do Ocidente não era, afinal, um mau resultado.
A RDA não era muito querida. Todavia, houve quem a lamentasse. Para
além de intelectuais da Alemanha Ocidental como Günter Grass e Jürgen
Habermas que receavam pela alma de uma «Grande» Alemanha
reunificada(8), muitos Alemães de Leste que não tinham conhecido outra terra
natal viram, com sentimentos contraditórios, a «sua» Alemanha ser-lhes
arrancada: tinham crescido duas gerações na RDA. Talvez não acreditassem
nos absurdos flagrantes com que lhes descreviam o seu país, mas não podiam
alhear-se por completo da propaganda oficial. Não é de estranhar que muito
depois de 1989 as crianças nas escolas secundárias de leste da Alemanha
continuassem a acreditar que as tropas da Alemanha de Leste tinham lutado
ao lado do Exército Vermelho para libertar o seu país de Hitler.
Este tremendo equívoco fazia parte da identidade da RDA e em nada
contribuiu para facilitar a transição dos seus cidadãos «de volta» à Alemanha,
especialmente porque a «sua» Alemanha era sistematicamente excluída dos
registos oficiais. Os nomes de cidades, ruas, edifícios e municípios foram
mudados, retomando frequentemente o seu uso anterior a 1933. Foram
restaurados rituais e memoriais. Não se tratava da recuperar a história, mas de
apagá-la – era como se a RDA nunca tivesse existido. Quando Erich Mielke
foi levado a julgamento e declarado culpado por homicídio, não foi por
crimes que ele autorizou enquanto chefe da Stasi, mas por um assassínio
político cometido na década de 30, constando as provas dos registos de
interrogatórios nazis.
Por outras palavras, mais do que reconhecer a história conturbada da
RDA, os seus antigos súbditos foram encorajados a esquecê-la – uma espécie
de repetição da época, nos anos 50, em que fora a própria Alemanha
Ocidental a ter de esquecer. E tal como nos primeiros anos da República
Federal, também após 1989 a prosperidade seria a resposta. A Alemanha
compraria a sua saída da História. Não havia dúvidas de que a RDA era um
caso para tratamento. Não eram apenas as suas instituições que se estavam a
desmoronar – grande parte das infra-estruturas estava decrépita. Em cada
cinco habitações, duas tinham sido construídas antes de 1914 (na Alemanha
Ocidental, em 1989, a proporção era inferior a uma para cinco); um quarto do
número total de casas não tinha banheira, um terço tinha apenas uma casa-de-
banho exterior, e mais de 60% não tinham qualquer espécie de aquecimento
central.
Tal como nas suas negociações com Moscovo, a resposta de Bona
consistiu em atribuir quantias avultadas de dinheiro ao problema. Nos três
anos que se seguiram à unificação, o total das transferências da Alemanha
Ocidental para a de Leste ascendia ao equivalente a 1200 mil milhões de
euros; em finais de 2003, os custos da integração da antiga RDA tinham
atingido os 1,2 biliões de euros. Os Alemães de Leste foram subsidiados para
entrar na República Federal: os seus empregos, as pensões, os transportes, a
educação e o alojamento eram financiados pelo governo, cujas despesas
aumentavam drasticamente. A curto prazo, estas medidas funcionaram –
justificando a fé dos Alemães de Leste, não tanto no mercado livre, como nos
recursos inesgotáveis do erário público da Alemanha Ocidental. Todavia, após
o primeiro entusiasmo da unificação, muitos Ossies cansaram-se depressa do
triunfalismo condescendente dos seus primos ocidentais – um sentimento que
os antigos comunistas iriam explorar com algum êxito nas eleições seguintes.
Entretanto, para não desagradar ao eleitorado da Alemanha Ocidental – e
dado que nem todos tinham encarado a unificação com genuíno entusiasmo –
Kohl decidiu não aumentar os impostos. Em vez disso, de modo a cumprir os
seus novos e difíceis compromissos, a República Federal – que até então
mantivera um saldo orçamental positivo – não teve outra hipótese senão
entrar em défice. O Bundesbank, perplexo com o impacto inflacionário de
uma tal política, tomou medidas em conformidade e começou a subir as taxas
de juro, com início em 1991 – precisamente no momento em que o marco
alemão se via irremediavelmente implicado na planeada moeda única
europeia. O efeito devastador destas taxas de juro – aumento do desemprego e
abrandamento do crescimento económico – iria fazer-se sentir não apenas na
Alemanha, mas em todo o Sistema Monetário Europeu. Com efeito, Helmut
Kohl exportou o custo da unificação do seu país e os parceiros europeus da
Alemanha tiveram de partilhar o seu fardo.
As cedências de Mikhail Gorbachev face à Alemanha contribuíram sem
dúvida para o declínio da sua reputação a nível interno – de facto, ele
prevenira James Baker de que uma Alemanha unida no seio da NATO poderia
«ser o fim da perestroika». Perder os restantes Estados-satélites de Leste
europeu poderia dever-se a um acaso infeliz; mas abrir mão da Alemanha
também parecia desleixo. O ministro da Defesa soviético, o marechal Sergei
Akhromeyev, estava convencido de que Gorbachev poderia ter negociado
melhores condições com o Ocidente se tivesse prestado atenção ao problema
atempadamente; e não era o único a pensar assim. Mas isso, claro, era
problema de Gorbachev: em finais da década de 80, ele estava tão absorvido
pelos desafios internos que a sua resposta à evolução rápida das questões no
«Ocidente próximo» da URSS foi, como vimos, deixar este último cada vez
mais entregue a si mesmo.
No entanto, esta negligência benevolente não era aceitável quando foi
necessário lidar com desafios semelhantes dentro das fronteiras da URSS. O
império russo crescera por meio da conquista e da anexação ao longo dos
séculos e grande parte daquilo que em tempos fora território estrangeiro
encontrava-se agora intimamente associado à terra pátria. Aparentemente, era
impensável «libertar» esse território, no sentido em que a Polónia e a Hungria
tinham agora sido «libertadas». No entanto, as conquistas mais recentes da
União Soviética permaneciam semi-integradas e, conforme vimos,
vulneráveis a influências externas, como acontecia na Ásia Central e no
Cáucaso, mas sobretudo na fronteira mais ocidental do império, ao longo do
Mar Báltico.
As repúblicas bálticas da União – Estónia, Letónia e Lituânia –
distinguiam-se em três aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, estavam
mais expostas ao Ocidente do que qualquer outra região da União Soviética.
Os Estónios, em especial, estavam em contacto com os países escandinavos,
viam a televisão finlandesa desde os anos 70 e estavam perfeitamente
conscientes do contraste entre a sua situação e a dos seus prósperos vizinhos.
Os Lituanos, que tinham uma afinidade particular em termos históricos e
geográficos com a vizinha Polónia, não podiam ignorar que, mesmo sob o
comunismo, os Polacos eram claramente mais livres e viviam em melhores
condições do que eles.
Em segundo lugar, e apesar da comparação pouco lisonjeira com os países
vizinhos, os Estados bálticos eram prósperos para os padrões da União
Soviética. Eram os principais produtores de muitos produtos industriais –
vagões, aparelhos de rádio, derivados do papel –, para além de constituírem
uma das principais fontes de peixe, lacticínios e algodão. Entre os bens que
produziam e aqueles que passavam através das suas docas, os Estónios,
Letões e Lituanos tinham pelo menos um contacto superficial com um modo e
um nível de vida com que o resto da União Soviética podia apenas sonhar.
Mas o terceiro traço distintivo das repúblicas bálticas, e de longe o mais
significativo, tinha a ver com o facto de serem os únicos países que tinham
uma história recente de genuína independência. Depois de terem conquistado
a sua liberdade em 1919, na sequência do colapso do império czarista, tinham
sido reintegrados por via da força vinte anos mais tarde pelos herdeiros
soviéticos dos Romanov, nas cláusulas secretas do Pacto Molotov-Ribbentrop
de Agosto de 1939. Contudo, a invasão de 1940 estava ainda muito viva na
memória. No Báltico, a glasnost de Gorbachev – que noutras partes da União
Soviética levou as populações a exigirem mais direitos civis ou económicos –
reanimou inevitavelmente a questão da independência. O samizdat nesta
região revestiu-se sempre, como não podia deixar de ser, de um tom
nacionalista.
Outro dos motivos que contribuíram para isto foi a questão «russa». Em
1945, a população das três repúblicas bálticas era bastante homogénea; a
maioria dos habitantes pertencia ao grupo nacional dominante e falava a
língua local. Mas no início da década de 80, devido a expulsões forçadas
durante e depois da guerra e a um fluxo imigratório regular de soldados,
administradores e trabalhadores russos, a população diversificara-se
consideravelmente, sobretudo nas repúblicas do Norte. Na Lituânia, cerca de
80% dos residentes na república continuavam a ser lituanos; mas na Estónia,
estima-se que apenas 64% da população fosse de etnia estónia e falasse o
estónio; enquanto na Letónia a número da população nativa de Letões,
segundo o recenseamento de 1980, era de 1,35 milhões num total de cerca de
2,5 milhões: apenas 54%. As zonas rurais continuavam povoadas por
Bálticos, mas as cidades eram cada vez mais russas, e nelas falava-se cada vez
mais o russo: uma transformação que motivava ressentimentos.
As primeiras ondas de protesto na região foram, então, ocasionadas por
questões de língua e nacionalidade, e pela memória que lhes estava associada
das deportações soviéticas para a Sibéria de milhares de «subversivos» locais.
A 23 de Agosto de 1987, houve manifestações simultâneas em Vílnius, Riga e
Talin, para assinalar o aniversário do Pacto de Molotov-Ribbentrop, e três
meses mais tarde, apenas em Riga, realizou-se um encontro público para
comemorar o aniversário da declaração da independência da Letónia de 1918.
Encorajados pelo seu sucesso – ou, mais precisamente, pela tolerância sem
precedentes das autoridades face a tais demonstrações públicas de oposição
implícita – começaram a emergir na região grupos independentes e
ajuntamentos.
Assim, a 25 de Março de 1988, em Riga, centenas de pessoas juntaram-se
para relembrar as deportações da Letónia em 1949, seguindo-se uma
manifestação em Junho destinada a assinalar as expulsões de 1940. Teve em
seguida lugar uma reunião invulgarmente animada por parte da até então
inactiva Sociedade de Autores da Letónia, em que se falou de uma «Frente
Popular da Letónia». Algumas semanas mais tarde, sob o auspício do «Clube
de Protecção do Ambiente» (CPA), uma organização aparentemente apolítica,
nasceu o Movimento Nacional para a Independência da Letónia. O rumo dos
acontecimentos na Estónia foi praticamente idêntico: na sequência das
comemorações de 1987 e de uma série de protestos ambientalistas, nasceu
primeiro a «Sociedade do Património Estónio», dedicada à preservação e
restauração de monumentos culturais da região; depois, em Abril de 1988,
uma «Frente Popular da Estónia»; e finalmente, em Agosto – um mês depois
da sua congénere letónia – o Movimento para a Independência Nacional da
Estónia.
O aspecto mais marcante destes movimentos que nasciam na Estónia e na
Letónia era a sua própria existência – bem como a sua nomenclatura
invulgarmente subversiva. Foi, contudo, na Lituânia, onde a presença russa
era bastante menos sufocante, que o desafio ao poder soviético se tornou
explícito. A 9 de Julho de 1988 uma manifestação em Vílnius para exigir
protecção ambiental, democracia e uma maior autonomia para a Lituânia
atraiu 100 000 pessoas para apoiar o Sajudis, o recém-formado «Movimento
para a Reorganização da Lituânia», declaradamente crítico do Partido
Comunista da Lituânia pela sua subserviência face a Moscovo, com faixas
onde se lia «Red Army Go Home». Em Fevereiro de 1989, o Sajudis
transformara-se num partido político de dimensão nacional. No mês seguinte,
nas eleições para o Congresso de Deputados do Povo, obteve 36 dos 42
lugares reservados à Lituânia.
As eleições nas três repúblicas deram uma vitória clara aos candidatos
independentes e desencadearam a progressiva tomada de consciência de uma
trajectória comum para as repúblicas do Báltico. Isto foi simbolicamente
confirmado a 23 de Agosto de 1989 pela formação de uma cadeia humana
(Hands across the Baltic) com 650 quilómetros de comprimento, que se
estendeu de Vílnius a Talin, passando por Riga, para assinalar o 50.o
aniversário do Pacto Molotov-Ribbentrop. Estima-se que participaram no
acontecimento 1,8 milhões de pessoas – um quarto de toda a população da
região. Com os movimentos para a independência da Estónia e da Letónia
ecoando agora os da vizinha Lituânia e proclamando abertamente a
independência nacional como seu objectivo, o confronto com Moscovo
parecia inevitável.
E, no entanto, este demorou a surgir. Os movimentos de independência do
Báltico passaram o ano de 1989 a exercer pressão contra os limites do
admissível. Quando os Sovietes Supremos, agora independentistas, primeiro
da Lituânia e depois da Letónia tentaram imitar uma lei estónia de Novembro
de 1988, autorizando a privatização de empresas públicas locais, Moscovo
anulou o decreto, como anteriormente anulara a iniciativa estónia; mas, para
além desta medida, o governo absteve-se de qualquer envolvimento. Quando,
a 8 de Outubro de 1989 (o dia que se seguiu ao aviso público de Gorbachev
em Berlim Leste de que «a vida castiga aqueles que tardam»), a Frente
Popular da Letónia proclamou a sua intenção de avançar para a independência
total, as autoridades soviéticas estavam demasiado preocupadas com a
escalada da crise na Alemanha para agir.
Mas, a 18 de Dezembro, o Partido Comunista da Lituânia dividiu-se; uma
maioria esmagadora declarou-se a favor da independência imediata.
Gorbachev já não podia manter-se em silêncio. Deslocou-se a Vílnius a 11 de
Janeiro de 1990 para desaconselhar a secessão proposta, apelando à
«moderação». No entanto – e não pela primeira vez – o seu próprio exemplo
funcionava contra ele. Encorajado pela vitória eleitoral do Sajudis, pelo êxito
do próprio presidente soviético ao levar o Comité Central Soviético a
abandonar a garantia constitucional do «protagonismo»(9) do Partido, e pelas
negociações «4+2» então para breve, o Soviete Supremo da Lituânia aprovou
a 11 de Março, por unanimidade a restauração da independência lituana,
restabelecendo simbolicamente a «Constituição do Estado da Lituânia» de
1938 e anulando a autoridade da Constituição da URSS na República da
Lituânia.
É sintomático da instabilidade que se vivia em 1990 – quando o próprio
governo da República da Rússia afirmava a sua «soberania» e a precedência
das leis russas sobre os decretos da URSS – o facto de a resposta dos líderes
soviéticos à declaração de Vílnius ter sido iniciar algo nada mais ameaçador
do que um boicote económico: impotente para impedir a separação da
Lituânia, Gorbachev mostrou-se, todavia, ainda capaz de evitar a intervenção
militar que muitos dos seus colegas da linha dura exigiam. O próprio boicote
foi abandonado em Junho, em troca do compromisso assumido pela Lituânia
de «suspender» a implementação total da sua declaração de independência.
Ao fim de um período de seis meses agitados, durante o qual praticamente
todas as principais repúblicas soviéticas proclamaram a sua «soberania»,
quando não a sua total independência, a posição de Gorbachev tornava-se
insustentável. Os esforços empreendidos no sentido de controlar as iniciativas
dos Bálticos enfraqueceram substancialmente a sua imagem de «reformador»,
enquanto o seu fracasso em suprimir o discurso de autonomia, soberania e
independência despertava ressentimentos entre os seus colegas e – mais
preocupante ainda – nas forças militares e de segurança. A 20 de Dezembro
de 1990, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Edvard Chevardnaze,
demitiu-se e fez um comunicado alertando para o crescente risco de um golpe
de Estado.
A 10 de Janeiro de 1991, com os EUA e os seus aliados profundamente
distraídos pela Guerra do Golfo prestes a começar no Iraque, Gorbachev
emitiu um ultimato aos Lituanos, exigindo, na qualidade de presidente da
União, que aderissem imediatamente à Constituição da URSS. No dia
seguinte, soldados das forças de elite do KGB e do Ministério do Interior
soviético ocuparam edifícios públicos em Vílnius e estabeleceram um
«Comité de Salvação Nacional». Vinte e quatro horas mais tarde, atacaram os
estúdios da rádio e da televisão na cidade, e disparam contra uma multidão de
manifestantes que aí se tinham reunido: 14 civis foram mortos, 700 feridos.
Passada uma semana, tropas das mesmas unidades tomaram de assalto o
Ministério do Interior letão em Riga, matando quatro pessoas.
O sangue derramado no Báltico assinalou o princípio do fim da União
Soviética. No espaço de uma semana, mais de 150 000 pessoas reuniam-se
em Moscovo para se manifestar contra as hostilidades. Boris Yeltsin, antigo
secretário do Comissão da Cidade de Moscovo e – desde Maio de 1990 –
presidente do Soviete Supremo da Rússia, viajou até Talin para assinar um
reconhecimento mútuo de «soberania» entre a Rússia e as Repúblicas do
Báltico, à margem das autoridades soviéticas. Em Março de 1991, um
referendo realizado na Letónia e na Estónia veio confirmar que a esmagadora
maioria dos eleitores era a favor da independência total. Gorbachev, que
começara, embora algo relutante, por reprimir as repúblicas recalcitrantes,
retomou então a sua postura inicial e tentou, em vão, estabelecer um modus
vivendi com elas.
Mas o presidente soviético estava agora a ser atacado em ambas as frentes.
A sua relutância em esmagar os Bálticos afastou definitivamente os seus
aliados militares (dois dos generais responsáveis pelos ataques em Vílnius e
Riga seriam figuras proeminentes no posterior golpe em Moscovo). Mas os
seus antigos amigos e admiradores já não confiavam nele. Em Março de
1991, Yeltsin denunciou publicamente «as mentiras e as fraudes» de
Gorbachev e pediu a sua demissão, desafiando a pressão oficial para
permanecer em silêncio, sob pena de ter de enfrentar a impugnação.
Entretanto, o exemplo do Báltico começava a ser seguido por outras
repúblicas.
Enquanto as estruturas do poder soviético se tinham mantido firmes, os
líderes comunistas, da Ucrânia ao Cazaquistão, tinham limitado as suas
«reformas» a uma imitação cautelosa do próprio Gorbachev. Contudo, depois
do colapso no Báltico, a mesma antena bem afinada que os sintonizara com a
perestroika dava agora sinal de que a própria União podia estar condenada;
em qualquer dos casos, podiam ver por si próprios que em alguns círculos de
poder o presidente soviético era um homem marcado. Assim, enquanto que a
nova política das Repúblicas do Báltico reflectia um renascimento nacional
genuíno e difundido, os movimentos com vista à «soberania» em muitas das
outras repúblicas compunham-se tipicamente de uma mistura mais variável de
nacionalismo e preservação da nomenklatura. Havia também um crescente
elemento de medo: a sensação de que, se a segurança e a autoridade estavam a
ruir ao nível superior – ou, pior, se podiam em breve ser restabelecidas
unilateralmente e por via da força pelos inimigos de Gorbachev –, talvez fosse
prudente concentrar as principais rédeas do poder em mãos locais.
Finalmente, surgia agora a noção por parte dos dirigentes soviéticos de que,
caso o poder central caísse, muitos bens públicos valiosos ficariam
disponíveis para mudar de mãos: propriedades do Partido, direitos sobre
explorações mineiras, quintas, fábricas, receitas provenientes dos impostos e
assim por diante.
De longe, a mais importante das futuras repúblicas «soberanas» que agora
davam voz às suas reivindicações específicas era a Ucrânia(10). Tal como as
repúblicas do Báltico, a Ucrânia tinha uma história de independência (embora
descontínua), proclamada pela última vez e perdida logo em seguida no
rescaldo da Primeira Guerra Mundial. Estava também intimamente ligada à
história da própria Rússia: aos olhos de muitos nacionalistas russos, Kievan
«Rus» – o reino do século XIII, sediado na capital da Ucrânia, que se estendia
desde os Cárpatos até ao Volga – era uma parte tão fundamental para a
identidade do império como a própria Rússia. Mas as questões de carácter
mais prático e imediato tinham a ver com os recursos materiais da região.
Posicionada entre a Rússia e as suas vias de acesso ao Mar Negro (e ao
Mediterrâneo), bem como à Europa Central, a Ucrânia era um pilar da
economia russa. Tendo apenas 2,7% da área territorial da URSS, esta
república tinha 18% da sua população total e gerava perto de 17% do produto
nacional bruto do país, logo a seguir à própria Rússia. Nos últimos anos da
União Soviética, a Ucrânia detinha 60% das reservas de carvão do país e uma
quota-parte maioritária do titânio (vital para a moderna produção de aço); o
seu solo invulgarmente fértil era responsável por mais de 40% do valor da
produção agrícola soviética.
A importância desproporcional da Ucrânia na história russa e soviética
reflectia-se na própria liderança da URSS. Tanto Nikita Khrushchev como
Leonid Brejnev eram russos vindos de Leste da Ucrânia – Khrushchev
regressara para lá nos anos 30 como secretário-geral do Partido Ucraniano.
Konstantin Chernenko era filho de kulaks ucranianos deportados para a
Sibéria, enquanto que Yuri Andropov chegara ao topo em virtude de ter
ocupado o cargo estrategicamente central de director do KGB na Ucrânia.
Contudo, esta estreita associação entre a República da Ucrânia e a liderança
soviética não implicava qualquer consideração especial pelos seus habitantes.
Antes pelo contrário. Durante grande parte da sua história como república
soviética, a Ucrânia foi tratada como uma colónia interna: os seus recursos
naturais foram explorados, a população mantida sob vigilância apertada (e, na
década de 30, exposta a um programa de repressão punitiva que resultara num
quase genocídio). Os produtos ucranianos – nomeadamente alimentos e
metais ferrosos – eram enviados para o resto da União a preços altamente
subsidiados, uma prática que se manteve quase até ao fim. Na sequência da
Segunda Guerra Mundial, a República Socialista da Ucrânia viu-se
consideravelmente aumentada, tendo-lhe sido anexados os territórios de Leste
da Galícia e do Oeste da Volínia, anteriormente pertencentes à Polónia: a
população polaca local foi, como vimos anteriormente, expulsa para ocidente
em troca de indivíduos de etnia ucraniana forçados a abandonar a Polónia.
Estas trocas de população – e o extermínio durante a guerra de grande
parte da comunidade judaica local – resultou numa região bastante
homogénea, para os padrões soviéticos: assim, enquanto que a República
Russa em 1990 continha mais de uma centena de minorias, vivendo trinta e
uma delas em regiões autónomas, a Ucrânia era 84% ucraniana. A população
restante era, na sua maioria, composta por Russos (11%), e por um pequeno
número de Moldavos, Polacos, Magiares, Búlgaros e os judeus sobreviventes
do país. Significativamente, a minoria mais expressiva, a russa, estava
sobretudo concentrada no leste industrial do país e na capital, Kiev.
A Ucrânia Central e Ocidental, nomeadamente na região de Lviv, a
segunda cidade mais importante, falava predominantemente o ucraniano e
tinha por religião a Igreja Ortodoxa de Leste ou Uniata (católica de rito
grego). Graças à relativa tolerância dos Habsburgo, fora permitido aos
Ucranianos da Galícia preservar a sua língua nativa. Variando de região para
região, entre 78 e 91% da população local usava-a como primeira língua em
1994, enquanto que nos territórios em tempos governados pelo czar muitas
vezes até os habitantes que se identificavam como Ucranianos mais
facilmente falavam russo.
A Constituição Soviética atribuiu, como vimos, identidades nacionais aos
residentes nas suas repúblicas diferenciadas, definindo, com efeito, todos os
seus cidadãos segundo categorias étnico-nacionais. Como nos restantes casos,
também na Ucrânia – especialmente na parte ocidental recentemente anexada
– esta medida teve as consequências esperadas. No passado, quando a língua
local estava praticamente confinada às remotas zonas rurais, e nas cidades sob
domínio soviético se falava o russo, o carácter teoricamente descentralizado e
federal desta união de repúblicas nacionais tinha interesse apenas para os
académicos e os apologistas da União Soviética. Mas com o crescente número
de falantes de ucraniano na população urbana, com a comunicação social a
falar cada vez mais esta língua e com uma elite política que se identificava de
forma consciente com os interesses «ucranianos», era de prever que o
nacionalismo ucraniano surgisse a par da fragmentação soviética(11).
Um movimento não-partidário – o RUKH (o «Movimento do Povo para a
Perestroika» – foi fundado em Kiev em Novembro de 1988, sendo a primeira
organização política ucraniana autónoma em muitas décadas. Teve um apoio
considerável, nomeadamente nas principais cidades e por parte dos
«comunistas reformadores da década de 60», mas, ao contrário dos
movimentos pela independência das repúblicas do Báltico, não podia contar
com o apoio das massas e não reflectia qualquer crescendo de sentimento
nacional. Nas eleições para o Soviete Supremo da Ucrânia, em Março de
1990, os comunistas alcançaram uma maioria expressiva; o RUKH obteve
menos de um quarto dos lugares.
Assim, não seriam os nacionalistas ucranianos a tomar a iniciativa, mas os
comunistas. A 16 de Julho de 1990, os comunistas do Soviete da Ucrânia
votaram a declaração da «soberania» da Ucrânia, e para afirmar o direito da
república a possuir as suas próprias forças militares e para estabelecer a
primazia das suas próprias leis. E foi sob a direcção de Leonid Kravchuk –
um apparatchik comunista e antigo «secretário para as questões ideológicas»
do Partido Ucraniano – que os Ucranianos participaram, em Março de 1991,
num referendo destinado a toda a União, e reafirmaram o seu apoio a um
sistema federal, ainda que «renovado» (para utilizar o termo empregue por
Gorbachev). Só na Ucrânia Ocidental, onde se perguntou aos eleitores se
preferiam a independência absoluta a uma soberania intrafederal, é que os
comunistas foram ultrapassados por aqueles que procuravam a ruptura
completa com Moscovo: 88% votaram sim. Kravchuk e os seus colegas na
liderança do partido tomaram a devida nota da escolha dos eleitores, enquanto
aguardavam cautelosamente os restantes resultados.
Este padrão repetiu-se nas repúblicas mais pequenas e mais ocidentais da
União Soviética, variando consoante as circunstâncias locais. A Bielorrússia
(ou «Belarus»), a norte da Ucrânia, não tinha uma identidade nacional ou
tradições comparáveis. A efémera «República Nacional Belarusan (sic)» de
1918 nunca obteve o reconhecimento externo e muitos dos seus cidadãos
sentiam uma maior lealdade para com a Rússia, a Polónia ou a Lituânia.
Depois da Segunda Guerra Mundial, com a anexação de regiões de Leste da
Polónia, a República Socialista Soviética da Bielorrússia continha uma
minoria significativa de Russos, Polacos e Ucranianos. Os próprios
Bielorrussos – embora fossem de longe a maior comunidade linguística da
república – não deram sinais de querer ou esperar uma soberania de qualquer
espécie; nem o seu país, profundamente dependente da Rússia, podia julgar-se
capaz de sustentar uma independência genuína.
Sendo uma região pobre e pantanosa, mais adequada à criação de gado do
que à produção agrícola em grande escala, a Bielorrússia fora devastada pela
guerra. O seu contributo mais relevante para a economia soviética do pós-
guerra consistia em produtos químicos industriais e linho – e na sua
localização estratégica junto a condutas de gás e às vias de comunicação entre
Moscovo e o Mar Báltico. O que tinha de mais semelhante a um movimento
independentista era a Adradzhenne («Renascimento»), uma organização
sediada na capital, Minsk, que surgiu em 1989, ecoando em larga medida o
RUKH ucraniano. Na Bielorrússia, como na Ucrânia, as eleições soviéticas de
1990 assistiram ao regresso dos comunistas a uma clara maioria; e quando o
Soviete Supremo da Ucrânia declarou a sua «soberania» em Julho de 1990, o
seu vizinho a norte seguiu-lhe o exemplo duas semanas mais tarde. Em
Minsk, tal como em Kiev, a nomenklatura avançava com prudência,
aguardando os acontecimentos em Moscovo.
A Moldávia soviética, apertada entre a Ucrânia e a Roménia, era um caso
diferente e bastante mais interessante(12). O território em questão – a
«Bessarábia», como era mais conhecido no tempo dos czares – tinha
alternado entre as mãos da Rússia e da Roménia ao longo do século ao sabor
dos acasos da guerra. Os seus quatro milhões e meio de habitantes eram
predominantemente moldavos, sendo as minorias russa e ucraniana também
significativas, para além de um número significativo de Búlgaros, judeus,
ciganos e Gagauzes (um povo ortodoxo que falava turco e vivia perto do Mar
Negro). Nesta mistura de povos tipicamente imperial, a maioria falava
romeno; mas, sob o domínio soviético – para melhor os separar dos vizinhos
romenos – os cidadãos da Moldávia tinham sido forçados a escrever a sua
língua em cirílico e a intitular-se não Romenos, mas «Moldovos».
Assim, a identidade nacional era aqui bastante incerta. Por um lado,
muitos dos seus habitantes, sobretudo na capital Chisinau (Kishinev), falavam
bem o russo e consideravam-se cidadãos soviéticos; por outro, a ligação à
Roménia (tanto na história como na linguagem) fornecia-lhes uma ponte para
a Europa e uma base para exigirem uma maior autonomia. Quando um
movimento de «Frente Popular» surgiu em 1989, o seu principal objectivo era
exigir que o romeno passasse a ser a língua oficial da república, exigência que
foi satisfeita pelas autoridades comunistas locais nesse mesmo ano. Houve
também rumores inflamados, sobretudo de natureza especulativa e
prontamente desencorajados por parte de Bucareste, segundo os quais a
Moldávia poderia «unir-se» à própria Roménia.
Na sequência das eleições de 1990, em que a Frente Popular obteve a
maioria, o novo governo começou por mudar o nome da república de
República Socialista Soviética da Moldávia para «República Socialista
Soviética da Moldova (mais tarde simplesmente «República da Moldova») e
depois, em Junho, declarou-se «soberano». Estes passos, em grande medida
simbólicos, despertaram cada vez mais ansiedade e começou-se a falar de
separatismo preventivo entre os falantes de russo, bem como na pequena
comunidade de Gagauzes. Depois de um referendo sobre a autonomia
realizado no Outono de 1990, a liderança comunista em Tiraspol – a principal
cidade no Leste na Moldova, do outro lado do rio Dniester, onde Russos e
Ucranianos formavam uma maioria local – proclamou uma República
Socialista Soviética Autónoma Transnístria, ecoando uma República
Socialista Soviética Gagauzes igualmente «autónoma» no sudeste.
Dado que existem no máximo 160 000 Gagauzes, e que a «Transnístria» é
uma faixa de terra em forma de banana com apenas 4000 quilómetros
quadrados de área e uma população inferior a meio milhão, o aparecimento de
«repúblicas autónomas» como esta poderia parecer absurdo, o reductio ad
absurdum de «tradições inventadas» e «nações imaginadas». Mas enquanto
que a república Gagauz nunca foi além da proclamação da sua existência (o
futuro Estado moldavo iria reincorporá-la pacificamente, ficando-lhe
reservado o direito de secessão caso a Moldova se «unisse» à Roménia), a
«independência» da Transnístria foi assegurada pela presença do 14.o
Exército soviético (mais tarde Russo), que ajudou os seus clientes a repelirem
as tentativas iniciais da Moldova para recuperar o território.
No crescente clima de instabilidade que se vivia, as autoridades soviéticas
(e depois russas) não hesitaram em oferecer-se para patrocinar um Estado
minúsculo que, por necessidade, era leal a Moscovo, totalmente dependente
da boa vontade dos Russos e cujos líderes eram sátrapas comunistas da região
que tinham tomado o controlo do território e que em pouco tempo o tornariam
num paraíso para contrabando e lavagem de dinheiro. Sendo a Transnístria a
produtora de 90% da electricidade da Moldova, os novos dirigentes tinham
até uma fonte de recursos legítima, e podiam ameaçar bloqueá-la caso
Chisinau recusasse colaborar.
A independência da Transnístria não foi reconhecida pela Moldova, nem
por mais ninguém; nem Moscovo foi ao ponto de dar o seu acordo à
legitimidade oficial da região. Mas a divisão na pequena Moldova deixava
antever outros problemas mais sérios que surgiriam algumas centenas de
quilómetros para leste, no Cáucaso. Aí, os antagonismos de longa data entre
Arménios e Azeris, agravados em particular pela presença no Azerbaijão de
uma importante minoria arménia na região de Nagorno-Karabakh, tinham já
ocasionado violentos confrontos, não só entre eles, mas também com as
tropas soviéticas em 1988, causando centenas de baixas(13). Em Baku, a
capital do Azerbaijão, registaram-se mais confrontos em Janeiro do ano
seguinte.
Na vizinha Geórgia, com o clima de tensão a agravar-se entre as multidões
que exigiam a secessão da União e as autoridades incumbidas de a preservar,
20 manifestantes foram alvejados durante confrontos em Tbilissi, a capital,
entre nacionalistas e soldados, em Abril de 1989. Mas a Geórgia soviética,
como as vizinhas repúblicas soviéticas da Arménia e do Azerbaijão, era
demasiado vulnerável em termos geográficos e demasiado complexa em
termos étnicos para poder contemplar serenamente a insegurança que
acompanhou o colapso soviético. Assim, as autoridades locais decidiram
antecipar essa eventualidade precipitando-a, e os partidos comunistas no
poder redefiniram-se, assumindo a forma de movimentos para a
independência nacional e de líderes de partidos regionais – sendo Edvard
Chevardnaze o mais conhecido de entre eles –, colocando-se em posição de
tomar o poder assim que este caísse nas ruas.
Deste modo, na Primavera de 1991, toda a gente na periferia aguardava
para ver o que aconteceria no centro. A chave era, claro, a própria Rússia –
sem margem de dúvida a república dominante da União, com metade da
população do país, três quintos do seu PNB e três quartos do seu território
total. De certa forma, o país «Rússia» enquanto tal não existia: fora, ao longo
de séculos, um império, de facto ou por mera aspiração. Estendendo-se por
uma área com onze fusos horários e dezenas de povos diferentes, a «Rússia»
sempre fora demasiado grande para ser reduzida a uma única identidade ou a
uma noção de objectivo comum(14).
Durante e após a Grande Guerra Patriótica, as autoridades soviéticas
tinham efectivamente usado a imagem da Rússia, apelando ao orgulho
nacional e exaltando a «vitória do povo russo». Mas o povo russo nunca se
reconhecera como uma entidade separada, não da forma como os Cazaques
ou os Ucranianos ou os Arménios eram oficialmente «nações» na linguagem
soviética. Nem sequer havia um Partido Comunista «Russo» à parte. Ser russo
era ser soviético. Havia uma complementaridade natural entre estas duas
identidades: numa era pós-imperial, a União Soviética serviu de capa ao
Estado imperial russo, enquanto a «Rússia» forneceu à União Soviética uma
legitimidade histórica e territorial. As fronteiras entre «a Rússia» e «a União
Soviética» foram, então (deliberadamente), mantidas pouco claras(15).
No tempo de Gorbachev, foi dada ainda mais ênfase à identidade russa,
por algumas das mesmas razões que tinham levado a Alemanha de Leste a
assumir um orgulho muito público em Frederico, o Grande e a exaltar as
qualidades verdadeiramente alemãs da República Democrática da Alemanha.
Nos últimos anos das repúblicas populares, o patriotismo ressurgiu como
substituto útil do socialismo. Precisamente por esse motivo, tratava-se da
forma mais fácil e menos ameaçadora de oposição política. Na Rússia ou na
RDA, como na Hungria, os críticos intelectuais podiam ser alvo de
perseguição, mas as expressões mudas de nacionalismo não eram
necessariamente reprimidas ou desencorajadas – podiam ser utilizadas para
benefício das autoridades. O recrudescimento do «grande chauvinismo russo»
nas publicações soviéticas e na comunicação social deve ser entendido sob
este prisma. Foi também, é claro, mais uma fonte de ansiedade para as
minorias nacionais vulneráveis.
Foi neste cenário que se deu o inesperado aparecimento de Boris Yeltsin.
Apparatchik convencional da era de Brejnev que se especializara em
construção industrial antes de se tornar secretário do Comité Central, Yeltsin
foi subindo de forma regular na hierarquia do Partido – até ser despromovido
em 1987 por se exceder nas críticas feitas a colegas de posição mais elevada.
Nesse momento crucial, Yeltsin, que tivera várias oportunidades para
observar até que ponto o Partido e a burocracia do Estado eram eficazes a
impedir qualquer mudança real, teve o instinto político de se reprogramar
como sendo um político distintivamente russo: emergindo primeiro como
deputado pela Federação Russa após as eleições de Março de 1990, e depois
como presidente do Soviete Supremo da Rússia – i.e. o Parlamento Russo.
Foi neste cargo influente e visível que Boris Yeltsin se tornou o principal
reformador do país, abandonando ostensivamente o Partido Comunista em
Julho de 1990 e usando a sua base de poder na Moscovo russa para visar
antigos camaradas que se cruzassem no seu caminho na Moscovo soviética. O
seu primeiro alvo foi então o próprio Gorbachev (apesar de Yeltsin ter
inicialmente sido um firme apoiante do presidente soviético, em cuja região
natal, Sverdlovsk, ele trabalhara durante mais de uma década). Os erros do
líder soviético tornavam-se cada vez mais evidentes – e a sua popularidade
decaía rapidamente, como Yeltsin não podia deixar de notar.
O principal erro táctico de Gorbachev nas questões internas fora encorajar
a emergência de uma assembleia nacional com visibilidade nacional, poderes
reais e considerável independência. Yeltsin e os seus apoiantes russos foram
muito mais rápidos do que o próprio Gorbachev a perceber que este novo
organismo seria um palco natural para a expressão de descontentamentos de
toda a espécie; e Yeltsin tornou-se particularmente exímio em alinhar os
interesses da Rússia com os das várias nações e repúblicas. Gorbachev estava
consciente da ameaça que tais alianças representavam para a própria União;
mas agora era já demasiado tarde para ele fazer alguma outra coisa para além
de se alinhar, pouco à vontade e pouco convicto, com os funcionários
soviéticos nostálgicos do antigo monopólio do Partido – o monopólio que ele
tanto se esforçara por quebrar.
Assim, enquanto Gorbachev continuava a hesitar entre o ideal e o possível,
defendendo um «federalismo controlado» (um compromisso tipicamente
gorbacheviano), Yeltsin defendia apaixonadamente e com bastante
visibilidade as lutas pela independência das repúblicas do Báltico. Em Abril
de 1991, Gorbachev, embora relutante, concedeu às repúblicas o direito à
secessão numa nova constituição da União; mas este gesto, que era uma
forma de se render à realidade, colocou-o numa posição ainda mais frágil,
deixando os seus inimigos conservadores convencidos de que o presidente
tinha de ser afastado para que a ordem fosse restabelecida. Entretanto, a 12 de
Junho de 1991, Yeltsin, que há muito ultrapassara Gorbachev nas sondagens
de popularidade, foi eleito presidente da República Soviética da Rússia – o
primeiro líder de sempre da Rússia a ser democraticamente escolhido(16).
No mês seguinte, a 12 de Julho, o Soviete Supremo votou a favor de uma
nova União: descentralizada e que permitisse uma considerável latitude aos
Estados-membros dissidentes. Esta medida, juntamente com a eleição popular
de Yeltsin, que agora assumia abertamente a sua postura anticomunista, foi a
gota de água. A ala conservadora do Partido sentia-se desesperada e um grupo
de altos funcionários – incluindo o primeiro-ministro, o ministro da Defesa, o
ministro do Interior e Vladimir Kryuchkov, o chefe da KGB – começaram a
preparar um golpe de Estado. Já não era segredo em Moscovo que algo do
género estava para acontecer; já a 20 de Junho o embaixador americano
avisara, em vão, Gorbachev da existência de uma conspiração.
O golpe estava previsto para coincidir com as férias anuais de Gorbachev
na Crimeia; o último líder do partido a ser deposto pela força, Nikita
Khrushchev, estava também de férias no Sul do país quando os seus colegas
em Moscovo prepararam o seu afastamento inesperado. Os conspiradores de
1991 estavam, assim, a regressar sem pudor às antigas práticas do Partido. A
17 de Agosto, foi pedido a Gorbachev que entregasse os seus poderes
presidenciais às mãos de um «Comité de Emergência». Quando recusou fazê-
lo, o Comité de Emergência anunciou, a 19 de Agosto, que o presidente
estava impossibilitado de exercer as suas funções «por razões de saúde», e
que por isso o comité iria assumir plenos poderes. O vice-presidente
soviético, Gennady Yanaev, assinou um decreto destituindo Gorbachev da sua
autoridade e foi declarado o «estado de emergência».
Mas embora Gorbachev estivesse afastado, para todos os efeitos
prisioneiro na sua villa junto ao Mar Negro, no promontório sul da Crimeia,
os conspiradores não estavam a ser bem-sucedidos. Em primeiro lugar, o
simples facto de se terem visto obrigados a declarar o estado de emergência e
a anunciar aquilo que era, na prática, uma lei marcial, apenas para substituir
um líder comunista por outro, mostrava quão distantes estavam as estruturas
tradicionais da União Soviética. Os responsáveis pela conspiração não tinham
sequer o apoio unânime das suas agências – numa atitude crucial, a maioria
de oficiais superiores do KGB recusou-se a apoiar Kryuchkov. E, apesar de
não haver dúvidas relativamente àquilo que os conspiradores eram contra,
estes não se mostraram capazes de indicar aquilo de que eram a favor.
Além disso, os conspiradores correspondiam, sem intenção, a uma
caricatura de tudo o que estava mal no passado soviético: homens velhos e
cinzentos da era de Brejnev, com um discurso repetitivo e lento, alheios às
mudanças num país cujo relógio tentavam atabalhoadamente atrasar trinta
anos. No passado, quando homens como aqueles congeminavam no Kremlin,
eram mantidos longe da vista do público, limitando-se o seu aparecimento a
palanques ocasionais distantes em cerimónias públicas. Agora, porém, viam-
se forçados a aparecer na televisão e a falar à imprensa para explicar e
defender as suas acções – e o público tinha a oportunidade de observar em
grande plano a fisionomia do socialismo oficial em toda a sua senilidade.
Entretanto, Boris Yeltsin aproveitou o momento. Conseguira uma posição
ainda mais favorável ao obter um encontro pessoal com George Bush,
aquando da visita do presidente americano à URSS apenas três semanas antes.
Então, a 19 de Agosto, denunciou publicamente a tomada do Kremlin como
um golpe de Estado ilegal e colocou-se à frente da resistência ao novo poder,
dirigindo as operações a partir da sua base no Parlamento Russo e
mobilizando as multidões que o rodeavam para defender a democracia contra
os tanques. Ao mesmo tempo, sob as luzes dos media internacionais, Yeltsin
encetou longas conversações e negociações com líderes mundiais; todos eles,
com uma única excepção, lhe ofereceram publicamente o seu total apoio,
recusando qualquer reconhecimento aos conspiradores cada vez mais
isolados(17).
A resistência não foi uma mera formalidade: na noite de 20 para 21 de
Agosto, três manifestantes morreram em confrontos com o Exército. No
entanto, os líderes do golpe de Estado – tendo perdido o apoio público –
começavam a perder o sangue-frio. Não tinham das forças armadas o apoio de
que precisavam para dominar o país, e a cada hora que se prolongavam os
conflitos nas ruas de Moscovo (e de Leninegrado) começavam a perder o seu
principal trunfo: o medo. Em vez de se sentirem intimidados pelo desenrolar
dos acontecimentos no Kremlin, democratas e nacionalistas sentiram-se
encorajados: num clima de incerteza, a 20 de Agosto a Estónia declarou a sua
independência, imitada pela Letónia logo no dia seguinte. A 21 de Agosto, um
dos responsáveis pelo golpe de Estado, Boris Pugo (ministro do Interior e
antigo director do KGB na Letónia), suicidou-se; sob o comando de Yeltsin,
os seus colegas foram presos. Nesse mesmo dia, um Gorbachev exausto e
nervoso foi enviado de avião de regresso a Moscovo.
Em termos formais, Gorbachev retomou as suas funções, mas, na
realidade, tudo mudara para sempre. O Partido Comunista da União Soviética
(PCUS) estava irreversivelmente desacreditado – foi só a 21 de Agosto que o
porta-voz do Partido condenou publicamente o golpe levado a cabo pelos seus
colegas, numa altura em que os conspiradores se encontravam já na prisão e
Yeltsin aproveitara as hesitações fatais do Partido para o impedir de operar no
seio da federação russa. Gorbachev, que parecia confuso e indeciso quando
era visto em público, não compreendeu de imediato (o que é compreensível)
as consequências do que acontecera. Em vez de elogiar Yeltsin, o Parlamento
Russo ou o povo russo pelo êxito alcançado, falou diante das câmaras a
respeito da perestroika e do papel indispensável que o Partido continuaria a
desempenhar ao renovar-se, ao promover reformas, etc.
Esta abordagem fazia sentido para o Ocidente, onde, regra geral, se
supunha (e se esperava) que depois do golpe falhado tudo se mantivesse mais
ou menos como até então. Porém, na União Soviética propriamente dita, o
facto de Gorbachev reiterar anacronicamente objectivos falhados e a sua
aparente ingratidão para com aqueles que o tinham salvo foram uma
revelação. Ali estava um homem que fora ultrapassado pela História, sem o
saber. Para muitos Russos, os acontecimentos de Agosto tinham sido uma
verdadeira revolução, uma revolta genuinamente popular, não a favor dos
reformistas e do seu partido, mas contra eles: o PCUS, como os manifestantes
gritaram a Gorbachev aquando do regresso tardio ao Parlamento Russo, era
«uma empresa criminosa», cujos próprios ministros tinham tentado derrubar a
Constituição. Quando um Gorbachev agora subjugado chegou ao fulcro da
questão, suspendeu o PCUS e (a 24 de Agosto) apresentou a sua demissão do
cargo de secretário-geral do Partido, era demasiado tarde. O comunismo
tornara-se irrelevante, tal como Mikhail Gorbachev.
O antigo secretário-geral era ainda, claro, o presidente da União Soviética.
Mas a razão de ser da própria União estava agora a ser directamente
questionada. O golpe falhado fora o último e maior impulso para a secessão.
Entre o dia 24 de Agosto e o dia 21 de Setembro, a Ucrânia, a Bielorrússia, a
Moldova, o Azerbaijão, o Quirguistão, o Uzbequistão, a Geórgia, o
Tajiquistão e a Arménia seguiram as repúblicas do Báltico e declararam a sua
independência da União Soviética – na sua maioria, fizeram esta proclamação
nos dias confusos e incertos após o regresso de Gorbachev(18). Seguindo os
passos de Kravchuk na Ucrânia, os primeiros secretários regionais como
Nursultan Nazarbaev, no Cazaquistão, Askar Akaev, no Quirguistão, Gaidar
Aliev, no Azerbaijão, Stanislav Shushkevich, na Bielorrússia, e outros,
distanciaram-se astutamente da sua filiação de longa data no Partido e
reposicionaram-se na liderança dos seus novos Estados, encarregando-se de
nacionalizar tão depressa quanto possível todos os bens locais do Partido.
Gorbachev e o Soviete Supremo em Moscovo pouco mais podiam fazer
para além de aceitar a realidade, reconhecer os novos Estados e propor sem
convicção uma «nova» constituição que incluiria as repúblicas independentes
numa espécie de organização federal. Entretanto, a algumas centenas de
metros de distância, Boris Yeltsin e o Parlamento Russo estabeleciam uma
Rússia independente. Em Novembro, Yeltsin colocara sob o controlo da
Rússia toda a actividade financeira e económica existente em território russo.
A União Soviética era agora um Estado oco, esvaziado do seu poder e dos
seus recursos.
Por esta altura, as principais instituições da URSS estavam nas mãos de
Estados independentes ou então tinham sido extintas: a 24 de Outubro, o
próprio KGB foi formalmente abolido. Quando Gorbachev propôs um novo
«Tratado sobre a Comunidade Económica dos Estados Soberanos», a maioria
das repúblicas simplesmente recusou assinar. Nas sessões de Outubro do
Soviete Supremo as repúblicas ocidentais estiveram ausentes. Finalmente, a 8
de Dezembro, os presidentes e primeiros-ministros da Rússia, Ucrânia e
Bielorrússia – os Estados eslavos centrais do império soviético – tomaram a
iniciativa de se encontrar perto de Minsk e denunciar o Tratado da União de
1922, abolindo a União Soviética. No seu lugar, propuseram que se
estabelecesse uma Comunidade de Estados Independentes (CEI).
Ao tomar conhecimento, Gorbachev, em Moscovo, denunciou
severamente este acto como sendo «ilegal e perigoso». Mas as opiniões do
presidente da União Soviética já não preocupavam ninguém: como o próprio
Gorbachev começava finalmente a dar-se conta, ele era o líder de coisa
nenhuma. Nove dias mais tarde, a 17 de Dezembro, Gorbachev encontrou-se
com Yeltsin e concordaram (ou melhor, Gorbachev reconheceu) que a União
Soviética tinha de ser formalmente abolida: os seus ministros, embaixadas e
exércitos deveriam passar para o controlo da Rússia, devendo o seu lugar, ao
abrigo do direito internacional, ser herdado pela República da Rússia.
Vinte e quatro horas mais tarde, Gorbachev comunicou a sua intenção de
se demitir da presidência. No dia de Natal de 1991, a bandeira russa substituiu
a insígnia soviética no cimo do Kremlin: Mikhail Gorbachev cedeu as suas
prerrogativas como comandante supremo ao presidente da Rússia, Boris
Yeltsin, e abandonou as suas funções. Quarenta e oito horas depois,
Gorbachev vagara o seu gabinete e Yeltsin ocupara-o. À meia-noite de 31 de
Dezembro de 1991, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas deixou de
existir.
O desaparecimento da União Soviética foi um acontecimento
impressionante, sem paralelo na história moderna. Não houve uma guerra
externa, uma revolução sangrenta ou uma catástrofe natural. Um grande
Estado industrial – uma superpotência militar – simplesmente caiu: a sua
autoridade esgotou-se, as instituições que a compunham evaporaram-se. O
desmoronamento da União Soviética não foi inteiramente desprovido de
violência, como podemos ver pelo que sucedeu na Lituânia e no Cáucaso; e
iria haver conflitos em algumas das repúblicas independentes nos anos
seguintes. Mas, na sua maior parte, o maior país do mundo saiu de cena quase
sem contestação. Descrever o que se passou como uma retirada do império
sem derramamento de sangue é, sem dúvida, correcto; no entanto, não basta
para exprimir a facilidade do processo, algo que ninguém pudera antecipar.
Então, por que motivo foi tudo aparentemente tão penoso? O que foi que,
ao fim de décadas de violência interna e agressão externa, levou a primeira
sociedade socialista do mundo a implodir sem sequer tentar defender-se? Uma
resposta possível é, claro, que nunca chegou realmente a existir: que, nas
palavras do historiador Martin Malia, «não existe essa coisa do socialismo, e
a União Soviética é que o construiu». Mas se isto explica a futilidade da
autoridade socialista nos Estados-satélites, coagidos por nada mais do que a
sombra do Exército Vermelho, não basta para explicar o que aconteceu na
terra pátria propriamente dita. Mesmo que a sociedade que o comunismo
afirma ter construído fosse essencialmente fraudulenta, o Estado leninista era,
afinal de contas, bem real. E era um produto interno.
Parte da resposta consiste no êxito inadvertido de Mikhail Gorbachev em
esvaziar o aparato administrativo e repressivo do qual o Estado soviético
dependia. Tendo o Partido perdido o seu poder coercivo, tendo-se tornado
claro que nem o exército nem o KGB agiriam impiedosamente para silenciar
os oponentes ao regime e para castigar os dissidentes – e isto só se tornou
claro em 1991 –, então, as tendências naturalmente centrífugas de um império
de território vasto fizeram-se sentir. Só nessa altura se tornou evidente –
apesar de 70 anos em que se defendeu energicamente o contrário – que não
existia uma sociedade comunista propriamente dita: apenas um Estado
enfraquecido e os seus cidadãos ansiosos.
Mas – e este é o segundo aspecto da explicação – o Estado soviético não
desapareceu de facto. A URSS fragmentou-se, antes, numa multiplicidade de
pequenos Estados sucessores, na sua maioria governados por experientes
autocratas russos, cujo primeiro instinto foi o de reproduzir e impor os
sistemas e a autoridade que até então tinham exercido enquanto dirigentes
soviéticos. Na maior parte das repúblicas sucessoras não se verificou uma
«transição para a democracia»; essa transição aconteceu – se é que aconteceu
de facto – algum tempo depois. O poder de um Estado autocrático, o único
tipo de poder que a maioria dos habitantes do império soviético interno
alguma vez conhecera, não foi exactamente derrubado, mas sim reproduzido a
uma escala menor. Vista do exterior, esta foi uma mudança extraordinária;
mas, vivida por dentro, as suas implicações foram consideravelmente menos
radicais.
Além disso, enquanto os secretários comunistas locais que se
metamorfosearam tão discretamente em presidentes da república tinham todas
as razões para agir prontamente de forma a conservar os seus feudos, as
autoridades soviéticas no centro não tinham um feudo territorial seu para
proteger. Tudo o que podiam oferecer era um retorno às estruturas decrépitas
que Gorbachev combatera de modo tão entusiástico; não constitui surpresa
que não tenham tido vontade de prosseguir a sua luta(19). O único antigo líder
comunista com uma base de poder em Moscovo era Boris Yeltsin, o qual,
como vimos, agiu de forma decisiva – mas em representação de uma
«Rússia» renascente.
Assim, a formação de Estados sucessores não significa que a União
Soviética caiu sob o peso de um nacionalismo até então submisso e depois
revigorado nas suas repúblicas constituintes. À excepção dos países do
Báltico, cuja trajectória se assemelhava mais à dos seus vizinhos ocidentais,
as repúblicas soviéticas eram elas próprias obra do planeamento soviético e –
como vimos – bastante complexas do ponto de vista étnico. Mesmo nos
Estados recém-formados existiam muitas minorias vulneráveis (especialmente
os omnipresentes Russos) –, até então cidadãos soviéticos com boas razões
para lamentar a perda da protecção «imperial» e que se viriam a mostrar
ambivalentes face às suas novas circunstâncias.
Não eram os únicos. Quando o presidente George Bush visitou Kiev a 1 de
Agosto de 1991, fez questão de recomendar publicamente aos Ucranianos que
permanecessem na União Soviética. «Algumas pessoas», declarou, «instaram
os Estados Unidos a escolher entre apoiar o presidente Gorbachev e apoiar
líderes que aspiram à independência por toda a URSS. Considero que esta é
uma falsa escolha. O presidente Gorbachev conseguiu coisas
impressionantes… Iremos manter relações tão sólidas quanto possível com o
Governo Soviético do Presidente Gorbachev». Esta tentativa de amparar o
presidente cada vez mais vulnerável não foi exactamente uma aprovação da
União Soviética… mas esteve perigosamente perto disso.
Este aviso do presidente americano, expressado publicamente, relembra-
nos mais uma vez o papel limitado que os Estados Unidos tiveram no curso
dos acontecimentos. Apesar da narrativa presunçosa que chegou ao público
americano, Washington não «derrubou» o comunismo – o comunismo
implodiu por si próprio. Entretanto, se o público ucraniano ignorou o
conselho de Bush e votou, na sua esmagadora maioria, a favor de abandonar a
União de vez, tal não se deveu a um súbito acesso de patriotismo. Na Ucrânia,
na Moldova, ou até na Geórgia, a independência não era tanto uma questão de
autodeterminação como de autopreservação – uma base sólida para a
formação de um Estado, como se provou, mas um fraco ponto de partida para
a democracia.
Nada define tão bem a União Soviética como o seu fim. O mesmo se
aplica à ruptura da Checoslováquia, o «divórcio de veludo» entre Eslovacos e
Checos que se consumou pacífica e amigavelmente a 1 de Janeiro de 1993.
Num primeiro olhar, isto poderia parecer um exemplo típico da súbita
afluência de sentimentos étnicos ao vazio deixado pelo comunismo: o
«regresso da História» na forma de renovação nacional. E foi assim, claro,
que foi publicitado por muitos dos protagonistas locais. Contudo, a um olhar
mais atento, a divisão da Checoslováquia em dois Estados – a Eslováquia e a
República Checa – ilustra uma vez mais, numa escala reduzida e no coração
da Europa, as limitações de semelhante interpretação.
É certo que não havia falta de «história» à qual recorrer. Checos e
Eslovacos, ainda que parecessem indistintos aos olhos perplexos de quem
estivesse de fora, tinham passados profundamente diferentes. A Boémia e a
Morávia – os territórios históricos que compreendem os territórios checos –
podiam gabar-se não só de um notável passado medieval e renascentista no
centro do Sacro Império Romano, mas também de um papel cada vez mais
importante na industrialização da Europa Central. Integrados na metade
austríaca do Império Habsburgo, os Checos gozavam de uma autonomia cada
vez mais visível e de uma prosperidade digna de nota. A sua maior cidade,
Praga – uma das glórias estéticas do continente – era, em 1914, um
importante centro do modernismo nas artes plásticas e na literatura.
Os Eslovacos, pelo contrário, pouco tinham de que se gabar. Governados
durante séculos a partir de Budapeste, tinham uma história nacional peculiar –
na metade húngara do império, eram encarados não como «Eslovacos» mas
como camponeses do Norte rural da Hungria que falavam uma língua eslava.
Os habitantes urbanos da região eslovaca eram predominantemente Alemães,
Húngaros ou judeus: não era por acaso que a maior cidade na região, uma
vasta comunidade urbana pouco atractiva junto ao Danúbio, alguns
quilómetros a leste de Viena, fosse conhecida como Pressburg (pelos
Austríacos que falavam alemão) ou como Pozsony (pelos Húngaros). Foi só
com a independência da Checoslováquia em 1918 e a incorporação algo
relutante dos Eslovacos no novo país que aquela cidade se tornou a segunda
maior no Estado sob o nome de Bratislava.
A República da Checoslováquia, entre as duas guerras, era democrática e
liberal, para os padrões que prevaleciam na região, mas as suas instituições
centralizadas favoreciam consideravelmente os Checos, que ocupavam quase
todas as posições de poder e influência. A Eslováquia era uma mera província
pobre e algo negligenciada. O mesmo impulso que levou muitos dos três
milhões de habitantes falantes de alemão a dar ouvidos aos separatistas pró-
nazis levou também alguns dos 2,5 milhões de Eslovacos a ver com bons
olhos os populistas eslovacos que queriam a autonomia e até a independência.
Em Março de 1939, quando Hitler integrou as regiões checas no
«Protectorado da Boémia e da Morávia», foi instituído um Estado-fantoche
eslovaco, clerical e autoritário, governado pelo padre Józef Tiso. O primeiro
Estado independente da Eslováquia surgiu, então, pela primeira vez, sob as
ordens de Hitler e sobre o cadáver da República da Checoslováquia.
É difícil saber ao certo até que ponto a independência da Eslováquia
durante a guerra chegou a ser popular. Nos anos do pós-guerra, foi
desacreditada tanto por sua responsabilidade (a Eslováquia deportou para os
campos de morte toda a sua população judia de antes da guerra – 140 000
pessoas), como pela sua estreita dependência do patrono nazi. Depois de
libertada, a Checoslováquia foi restabelecida como um único Estado e as
expressões de nacionalismo eslovaco não eram vistas com bons olhos. Com
efeito, nos primeiros anos estalinistas, o «nacionalismo burguês eslovaco» era
uma das acusações lançadas aos seus putativos defensores nos julgamentos
encenados que então se preparava – Gustav Husak passou seis anos na prisão,
considerado culpado deste crime.
No entanto, com o passar do tempo, os comunistas da Checoslováquia, e
não só, acabaram por se dar conta das vantagens de encorajar um patriotismo
moderado. Reflectindo um crescente sentimento nacional em Bratislava, os
reformistas de 1968 (muitos dos quais de origem eslovaca) propuseram, como
vimos, uma nova Constituição federal que compreenderia duas repúblicas
distintas, a Checa e a Eslovaca; entre todas as inovações de relevo discutidas
ou implementadas na Primavera de Praga, esta foi a única a sobreviver à
subsequente «normalização». Tendo inicialmente tratado a Eslováquia rural e
católica como território hostil, as autoridades do Partido como que acabaram
por preferi-la (ver capítulo 13).
O atraso da Eslováquia – ou, antes, o facto de não haver grandes
concentrações de população urbana e culta de classe média – funcionava
agora a seu favor. Com menos automóveis e televisões e piores comunicações
que as províncias ocidentais mais desenvolvidas, os Eslovacos mostravam-se
menos vulneráveis à influência externa que os radicais e dissidentes sediados
em Praga, com acesso aos media do exterior. Assim, sofreram de forma
menos intensa a repressão e as purgas dos anos 70. Agora eram os Checos a
sentir o desagrado das autoridades(20).
Com esta história em mente, a ruptura da Checoslováquia após 1989
poderia parecer, se não uma conclusão predeterminada, pelo menos o
resultado lógico de décadas de desconforto mútuo: suprimido e explorado sob
domínio comunista, mas não esquecido. Mas não foi assim. Nos três anos
decorridos entre o fim do comunismo e a separação final, todas as sondagens
de opinião pública revelavam que a maioria da população checa e eslovaca
era favorável a uma qualquer forma de Estado checo-eslovaco. Nem a classe
política se encontrava substancialmente dividida a este respeito: tanto em
Praga como em Bratislava, era um ponto de partida aceite que a nova
Checoslováquia seria uma federação, com considerável autonomia para cada
uma das suas partes constituintes. E o novo presidente, Vaclav Havel,
defendia convictamente, como era do conhecimento geral, que Checos e
Eslovacos deviam continuar num mesmo país.
A pouca importância que a questão «nacional» despertou inicialmente foi
comprovada pelos resultados das primeiras eleições livres, em Junho de 1990.
Na Boémia e na Morávia, o Fórum Cívico de Havel assegurou metade dos
votos, dividindo-se a restante metade entre comunistas e democratas-cristãos.
Na Eslováquia, o quadro era mais complexo. O partido congénere do Fórum
Cívico, Público Contra a Violência (PCV), surgiu como grupo maioritário,
mas uma considerável parcela dos votos dividiu-se entre democratas-cristãos,
comunistas, democratas-cristãos húngaros e verdes(21). Mas o Partido
Nacional Eslovaco obteve apenas 13,9% dos votos nas eleições para um
Conselho Nacional Eslovaco, 11% na eleição de deputados para a Assembleia
Federal (parlamento). Menos de um eleitor eslovaco em sete optou pelo único
partido que pretendia dividir o país nos seus círculos eleitorais étnicos.
Todavia, no ano de 1991, o Fórum Cívico começou a desmembrar-se.
Sendo uma aliança baseada num inimigo comum (o comunismo) e num líder
popular (Havel), o partido perdera ambos: o comunismo desaparecera e Havel
era o Presidente da República, aparentemente acima das querelas
interpartidárias. As divergências políticas entre antigos colegas vinham agora
à superfície, com os apologistas do mercado livre liderados pelo ministro das
Finanças, Vaclav Klaus (assumidamente thatcherista), numa posição cada vez
mais influente. Em Abril de 1991, na sequência da aprovação no parlamento
de uma lei relativa à privatização de empresas públicas, o Fórum Cívico
desmembrou-se e a facção (dominante) de Klaus constituiu o Partido
Democrático Cívico.
Klaus estava determinado a conduzir rapidamente o país na direcção do
«capitalismo». Porém, se no território checo havia um eleitorado a favor deste
objectivo, o mesmo não se verificava na Eslováquia. A privatização, o
mercado livre e um sector público reduzido não eram apelativos para a
maioria dos Eslovacos, que dependiam bastante mais do que os Checos de
empregos em minas e fábricas obsoletas e pouco rentáveis, pertencentes ao
Estado – «empresas» para cujos produtos deixara de haver um mercado
protegido e que dificilmente atrairiam capital estrangeiro e investidores
externos. Aos olhos de determinados círculos do mundo político e de
negócios em Praga, a Eslováquia era uma herança pesada.
Entretanto, o Público Contra a Violência (o PCV) extinguiu-se também,
por razões análogas. A sua principal figura pública era agora Vladimir
Meciar, um ex-pugilista que desempenhara um papel secundário nos
acontecimentos de 1989, mas que desde então se revelara bastante mais hábil
do que os seus colegas nos meandros da política democrática. Na sequência
das eleições de Junho, tinha formado um governo no Conselho Nacional
Eslovaco, mas o seu estilo pessoal rude levou à ruptura da sua coligação e
Meciar foi substituído pelo político católico Jan Carnogursky. Meciar
abandonou prontamente o PCV, formando então o seu próprio Movimento
para uma Eslováquia Democrática.
A partir do Outono de 1991 até ao Verão de 1992, representantes das
administrações checa e eslovaca levaram a cabo negociações demoradas,
procurando uma base para uma constituição descentralizada e federal que
satisfizesse ambas as partes, sendo essa claramente a preferência da maioria
dos políticos e eleitores dos dois lados. Mas Meciar, procurando estabelecer
um eleitorado para si próprio e para o seu partido, fez do nacionalismo
eslovaco a sua causa – uma questão pela qual não demonstrara ainda grande
interesse. Os Eslovacos, segundo informou o seu público, eram ameaçados
por tudo, desde os planos checos para a privatização ao separatismo húngaro,
passando pela perspectiva de absorção por parte da «Europa». A sua
existência nacional (já para não mencionar os seus meios de sustento) estava
agora em jogo.
Fazendo uso desta retórica e do seu estilo kitsch mas carismático, Meciar
conduziu o seu novo partido a uma clara vitória nas eleições federais em
Junho de 1992, com perto de 40% dos votos na Eslováquia. Entretanto, nas
regiões checas, o novo Partido Democrático Cívico de Vaclav Klaus, coligado
com os democratas-cristãos, saiu também vitorioso. Com Klaus eleito
primeiro-ministro na região checa, ambas as metades autónomas da república
federal estavam nas mãos de homens que – por razões distintas mas
complementares – não se importariam de ver o país dividir-se. Só o presidente
federal continuava, tanto na sua posição constitucional como na sua própria
pessoa, a representar o ideal de uma Checoslováquia federal unida.
Mas Vaclav Havel já não era tão popular – nem, por isso, tão influente –
como fora menos de dois anos antes. Na sua primeira visita oficial como
presidente, Havel não viajara para Bratislava, mas para a Alemanha – um
gesto compreensível, tendo em conta a antiga animosidade entre Checos e
Alemães e a necessidade do seu país em estabelecer uma ponte com a Europa
Ocidental, mas um erro táctico do ponto de vista das sensibilidades eslovacas.
E Havel nem sempre foi bem servido pela sua equipa: em Março de 1991, o
seu porta-voz, Michael Zantovsky, declarou que a política eslovaca estava
cada vez mais nas mãos de ex-comunistas e «pessoas que recordavam o
Estado eslovaco como tendo sido a idade de ouro da nação eslovaca»(22).
A afirmação de Zantovsky não era totalmente desprovida de sentido, mas
no contexto revelar-se-ia algo arrogante. Como outros antigos dissidentes
checos, Havel e os seus colegas nem sempre tinham a melhor opinião acerca
dos Eslovacos. Viam-nos, antes, como chauvinistas menores: na melhor das
hipóteses, perseguindo ingenuamente a miragem da soberania; na pior,
nostálgicos do Estado-fantoche do tempo da guerra. Ironicamente, Klaus não
partilhava destes preconceitos liberais, nem se preocupava, de uma forma ou
de outra, com o passado da Eslováquia. Como Meciar, era realista. Estes dois
homens, agora os políticos mais poderosos nas suas respectivas regiões,
passaram as semanas seguintes a negociar aparentemente os termos de um
tratado de Estado para uma Checoslováquia federal.
É pouco provável que alguma vez conseguissem chegar a um acordo:
Meciar exigia a emissão de moeda e o direito a empréstimos para uma
república eslovaca praticamente soberana; uma moratória relativamente à
privatização; o restabelecimento dos subsídios da era comunista; e todo um
conjunto de outras medidas – sendo todas elas um anátema para Klaus, que
perseguia obstinadamente o seu plano de marcha forçada para um mercado
sem restrições. Com efeito, os seus encontros ao longo dos meses de Junho e
de Julho de 1992 não foram, de todo, negociações: Klaus mostrou-se
surpreendido e consternado com as exigências de Meciar, embora estas
fossem já sobejamente conhecidas, a avaliar pelos muitos discursos de Meciar
sobre o assunto. Na prática, era Klaus que estava a manipular o líder
eslovaco, conduzindo-o a uma situação de ruptura, e não o contrário.
Consequentemente, e não havendo dúvidas de que a maioria dos
deputados eslovacos no Conselho Nacional Eslovaco e na Assembleia Federal
se teria dado por satisfeita em aprovar um tratado de Estado assegurando a
cada metade do país total autonomia e igual estatuto num Estado federal, o
parlamento foi colocado perante um fait accompli. Quando as negociações
foram interrompidas, Klaus disse aos seus interlocutores eslovacos: uma vez
que parecemos incapazes de chegar a um acordo, o melhor será
abandonarmos este esforço inútil e seguirmos caminhos separados. Os
Eslovacos, perante a aparente concretização dos seus próprios desejos, foram
levados a aceitar – em muitos casos contra o que lhes ditava o bom senso.
A 17 de Julho de 1992, o Conselho Nacional foi a votos para adoptar uma
nova bandeira, uma nova constituição e um novo nome: a República
Eslovaca. Uma semana mais tarde, Klaus e Meciar, este último ainda algo
perplexo com o seu próprio «êxito», concordaram em dividir o país, com
efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1993. Nesse dia, a Checoslováquia
desapareceu e as duas repúblicas tornaram-se Estados separados, com Klaus e
Meciar como seus respectivos primeiros-ministros. Vaclav Havel, cujos
esforços para unir o país vinham sendo progressivamente desprezados – e
inteiramente ignorados nos últimos meses – deixou de ser o presidente da
Checoslováquia e passou a ser o presidente da agora reduzida República
Checa(23).
Se o divórcio se revelou positivo para os dois parceiros foi algo que só o
tempo permitiu avaliar – nem a República Checa nem a Eslováquia
prosperaram na primeira década pós-comunismo. A «terapia de choque» de
Klaus e o nacional-comunismo de Meciar falharam ambos, embora de formas
diferentes. No entanto, apesar de os Eslovacos terem vindo a lamentar o seu
enamoramento por Vladimir Meciar, e de a estrela de Klaus ter esmorecido
em Praga, a nostalgia da Checoslováquia nunca se tornou muito patente. O
divórcio checoslovaco foi um processo manipulado, no qual a direita checa
fez acontecer aquilo que afirmava não pretender, enquanto os populistas
eslovacos alcançaram mais do que tencionavam; não foram muitos os que
ficaram profundamente satisfeitos com o resultado, mas também ninguém
lamentou o sucedido durante muito tempo. Tal como no colapso da União
Soviética, o poder do Estado e a sua máquina política não se viram
ameaçados, mas apenas duplicados.
A divisão da Checoslováquia foi um produto do acaso e das circunstâncias.
Foi também obra dos homens. Com outras pessoas no poder – com diferentes
resultados nas eleições de 1990 e 1992 – a história ter-se-ia desenrolado de
modo diferente. O contágio desempenhou também um pequeno papel: o
exemplo da União Soviética – e os acontecimentos nos Balcãs – fizeram com
que a cisão entre as duas «repúblicas nacionais» de um pequeno Estado
central europeu parecesse menos absurda ou proibida do que de outra forma
teria parecido. Se em 1992 se tivesse chegado a um tratado de Estado federal
– se a Checoslováquia tivesse resistido alguns anos mais – é altamente
improvável que alguém em Praga ou Bratislava tivesse visto alguma
vantagem em insistir nas suas questiúnculas, com a perspectiva da entrada na
União Europeia e os massacres sangrentos na Bósnia a absorverem toda a
atenção.
-
(1) Em Agosto de 1989, o vice-presidente do Partido Social Democrata criticara o governo de Kohl
por «agravar» a crise ao acolher os refugiados da Alemanha de Leste que tentavam vir para ocidente
através da fronteira húngara, aberta pouco antes. Contudo, em Berlim (um bastião tradicional do SPD),
o SPD teve muito melhores resultados nas eleições de 1990, obtendo 35% dos votos.

(2) A resposta de Bohley, por sua vez, consistiu num comentário algo amargo: «Queríamos justiça e
o que conseguimos foi o Rechtstaat [Estado constitucional].

(3) O segundo acto de De Maizière foi reconhecer finalmente que a Alemanha de Leste era também
responsável pelo Holocausto e disponibilizar 6,2 milhões de marcos alemães para reparação de danos.

(4) Não foi coincidência o facto de Mitterrand ter sido a única figura política ocidental de primeiro
plano a aceitar sem hesitação a aparente queda de Gorbachev no infrutífero golpe de Estado em
Moscovo no ano seguinte.

(5) Não deixa de ser irónico que os sucessores de Mitterrand estejam actualmente a debater-se com
as limitações orçamentais e as consequências sociais desse mesmo tratado.

(6) Entre as quais a nomeação de Jacques Attali, amigo de Mitterrand, para chefiar uma nova
instituição – o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD) – destinada a investir
na reconstrução da Europa de Leste. Depois de ter gasto milhões a restaurar um prestigiado edifício para
si próprio – mas muito pouco com os putativos beneficiários do banco – Attali foi afastado em
descrédito. Manifestamente, a experiência não afectou a sua considerável auto-estima.

(7) Existem alguns indícios de que Gorbachev terá cedido neste ponto crucial inadvertidamente, ao
atender em Maio de 1990 à sugestão do presidente Bush de que o direito da Alemanha à
autodeterminação devia incluir a liberdade de «escolher as suas alianças».

(8) No ponto de vista de Grass, a história recente da Alemanha consiste numa tendência perene para
aumentar e para se expandir, seguida de tentativas desesperadas para a conter por parte do resto do
continente – citando: «A intervalos de alguns anos, para a nossa obstipação tão alemã, dão-nos um
clister europeu.»

(9) Note-se que, apenas oito semanas antes, Gorbachev recusara-se peremptoriamente a considerar
qualquer mudança deste tipo.

(10) As cinco repúblicas asiáticas centrais – Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão e


Uzbequistão – cobriam entre si mais terra (18% do território soviético) do que qualquer outra república
para além da Rússia, apesar de a sua parcela conjunta no PNB, em Setembro de 1991, corresponder a
apenas 9,9%. Mas a sua história ultrapassa o âmbito deste livro.

(11) Mas tal não foi, na verdade, previsto. Para uma impressionante excepção, consultar os ensaios
de Roman Szporluk: escritos no decurso dos anos 70 e 80 e compilados sob o título Russia, Ukraine and
the Break-Up of the Soviet Union (Hoover Institution, Stanford, 2000).

(12) E não deve ser confundida com a Moldávia histórica, do outro lado do rio Prut, na Roménia.

(13) Sendo os Azeris de origem turca, os motivos responsáveis, em parte, por estas tensões
remontam aos massacres arménios na Primeira Guerra Mundial na Turquia otomana.

(14) A forma típica como o povo russo se vê a si próprio, uma amálgama instável de insegurança e
excesso de confiança, foi muito bem captada nos comentários do filósofo liberal Peter Chaadayev,
retirado da sua obra Cartas Filosóficas, de 1836: «Somos uma daquelas nações que parecem não ser
parte integrante da raça humana, mas que existem apenas para dar uma grande lição ao mundo. A
instrução que estamos destinados a fornecer não se perderá, certamente: mas quem sabe quando virá o
dia em que nos veremos como parte da humanidade, e quanta infelicidade teremos de sentir antes que se
cumpra o nosso destino.»

(15) Esta é uma das razões pelas quais o fim da União Soviética foi, e é ainda, genuinamente
lamentado por muitos Russos. Para todos os outros, «independência» significava algo ganho; para a
Rússia, a independência constituiu uma tremenda perda.

(16) Yeltsin obteve 57% dos votos, tendo a afluência às urnas sido da ordem dos 74%.

(17) A excepção foi o presidente francês François Mitterrand, que continuava incomodado com a
desestabilização da Europa de Leste e que se precipitara um pouco ao reconhecer o êxito dos
conspiradores em repor o status quo ante.

(18) Mesmo na Ucrânia, onde muitos falantes de russo tinham encarado com desconfiança os
rumores acerca da independência nacional, o golpe de Agosto teve um impacto dramático no estado de
espírito do público: a 24 de Agosto, o Soviete Supremo ucraniano votou a favor da independência,
mediante a realização de referendo, por 346 votos contra 1. No referendo nacional que teve lugar a 1 de
Dezembro, 90,3% (tendo comparecido às urnas 84% do eleitorado) votaram a favor de abandonar a
União Soviética.

(19) A vontade, mas não os meios. Se Gorbachev – ou os conspiradores de Agosto – tivessem


decidido usar o Exército para esmagar toda a oposição, não podemos ter a certeza de que teriam
falhado.

(20) Este estado de coisas causou algum incómodo à população checa. Numa visita a Praga em 1985,
o autor do presente livro foi posto a par por liberais checos dos privilégios concedidos pelo regime à
minoria eslovaca. Os professores da Eslováquia – recrutados para leccionar nas escolas primárias de
Praga e considerados pelos pais como sendo pouco sofisticados e inadequados para o cargo –
constituíam um particular alvo de ressentimento.
(21) O aparecimento de um partido húngaro à parte reflecte a presença em território eslovaco de
cerca de 500 000 Húngaros, 10% da população total da Eslováquia.

(22) Citado em Mladá Fronta dnes 12 de Março de 1991. Ver Abby Innes, Czechoslovakia: The
Short Goodbye (Yale U.P., Newhaven, 2001), p. 97.

(23) Revelou-se mais fácil proceder à separação política do que à separação económica; foi somente
em 1999 que se chegou finalmente a acordo relativamente à divisão dos bens federais da
Checoslováquia.
XXI

O Balanço
«Se alguma vez voltar a haver uma guerra na Europa, será ocasionada por
uma patetice qualquer nos Balcãs.»
Otto von Bismarck
«É como se estes camponeses em confronto estivessem ansiosos pela invasão
do seu país para se poderem perseguir e matar uns aos outros.»
Milovan Djilas, Tempo de Guerra (1977)
«Não temos nenhum interesse em jogo nesta guerra.»
James Baker, Secretário de Estado dos EUA (Junho de 1991)
«A pior coisa do comunismo é aquilo que se lhe segue.»
Adam Michnik
«A verdade é sempre concreta.»
G. W. Hegel
A fragmentação pacífica da Checoslováquia contrasta dramaticamente
com a catástrofe que se abateu sobre a Jugoslávia nos mesmos anos. Entre
1991 e 1999 centenas de milhares de Bósnios, Croatas, Sérvios e Albaneses
foram mortos, violados ou torturados pelos seus concidadãos; milhões foram
forçados a abandonar as suas casas e exilados. Ao tentarem perceber os
massacres e uma guerra civil numa escala inédita após 1945 – num país
considerado por radicais ocidentais como uma sociedade socialista exemplar
–, os comentadores estrangeiros têm geralmente proposto duas explicações
contraditórias.
Uma perspectiva, amplamente veiculada pelos meios de comunicação
social ocidentais e adoptada nas declarações públicas de estadistas europeus e
americanos, apresenta os Balcãs como um caso insolúvel, um caldeirão de
conflitos misteriosos e ódios antigos. A Jugoslávia estava «condenada». Nas
palavras de um bon mot muito citado, era composta por seis repúblicas, cinco
nações, quatro línguas, três religiões e dois alfabetos, e mantida unida por um
único partido. O que aconteceu depois de 1989 era simples: tendo sido
retirada a tampa, o caldeirão explodiu.
Segundo esta explicação, conflitos «intemporais» – naquilo que o marquês
de Salaberry descrevera em 1791 como «as arestas não limadas» da Europa –
fervilhavam desde há séculos. Animosidades assassinas, alimentadas por
memórias de injustiça e vingança, controlavam toda uma nação. Nas palavras
do secretário de Estado dos EUA, Lawrence Eagleburger, em Setembro de
1992: «Até os Bósnios, Sérvios e Croatas decidirem parar de se matar uns aos
outros, não há nada que o resto do mundo possa fazer».
Numa interpretação divergente, alguns historiadores e observadores
externos afirmaram que, pelo contrário, a tragédia dos Balcãs era em larga
medida da responsabilidade do exterior. Ao longo dos últimos dois séculos,
graças à intervenção externa e a ambições imperialistas, o território da antiga
Jugoslávia tinha sido ocupado, dividido e explorado em proveito de outros –
Turquia, Grã-Bretanha, França, Rússia, Áustria, Itália e Alemanha. Se havia
mal-estar entre os povos da região, tal devia-se à manipulação imperial, não a
hostilidade étnica. Segundo este ponto de vista, foi a interferência
irresponsável de potências estrangeiras que exacerbou as dificuldades locais:
se, por exemplo, o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Hans-Dietrich
Genscher, não tivesse insistido em 1991 em reconhecer «prematuramente» a
independência da Eslovénia e da Croácia, talvez os Bósnios não se tivessem
conformado, Belgrado não teria sido invadida, e poderia ter sido evitada uma
década catastrófica.
Independentemente do que se pense destas duas interpretações da história
dos Balcãs, é impossível não notar que, apesar da sua aparente
incompatibilidade, elas têm um traço em comum importante. Ambas
diminuem ou ignoram o papel dos Jugoslavos, que são encarados como
vítimas do seu próprio destino ou da manipulação e dos erros de terceiros.
Uma coisa é certa: havia muita história enterrada nas montanhas da antiga
Jugoslávia, assim como muitas más recordações. E, de facto, um contributo
fundamental para a tragédia do país veio do exterior, mas sobretudo na forma
de um consentimento irresponsável perante os crimes que tiveram lugar na
região. Contudo, o desmembramento da Jugoslávia – assemelhando-se neste
aspecto ao desmantelar de outros dos antigos Estados comunistas – foi obra
do Homem, não do destino. E a esmagadora responsabilidade pela tragédia da
Jugoslávia não cabe a Bona, nem a qualquer outra capital estrangeira, mas aos
políticos de Belgrado.
Quando Josip Broz Tito morreu em 1980, aos 87 anos de idade, a
Jugoslávia que ele reunificara em 1945 tinha uma existência real. As
repúblicas que a constituíam eram unidades distintas dentro de um Estado
federal cuja presidência compreendia representantes de cada uma das seis
repúblicas, bem como das duas regiões autónomas (Voivodina e Kosovo)
integradas na Sérvia. As diferentes regiões tinham passados bem distintos. A
Eslovénia e a Croácia, no Norte, eram predominantemente católicas e tinham
em tempos feito parte do Império Austro-Húngaro, tal como, por um breve
período de tempo, a Bósnia. A parte sul do país (Sérvia, Macedónia,
Montenegro e Bósnia) esteve durante séculos sob o domínio otomano turco, o
que explica o elevado número de muçulmanos, a juntar aos Sérvios
maioritariamente ortodoxos.
Contudo, estas diferenças históricas – embora genuínas e exacerbadas pela
experiência da Segunda Guerra Mundial – tinham sido atenuadas nas décadas
subsequentes. As mudanças na economia tinham posto em contacto
populações rurais até então isoladas, gerando-se uma convivência por vezes
difícil em cidades como Vukovar ou Mostar; mas as mesmas mudanças
vieram também acelerar a integração, permeando antigas fronteiras sociais e
étnicas.
Assim, embora o mito comunista de unidade fraternal implicasse esquecer
o tempo da guerra e as divisões – os manuais de história da Jugoslávia de Tito
eram prudentemente omissos relativamente às sangrentas guerras civis que
tinham marcado o passado em comum do país –, os benefícios desses
silêncios oficiais eram reais. A geração pós-guerra foi encorajada a pensar em
si como sendo «jugoslava», não como «croata» ou «macedónia»; e muitos –
especialmente os mais novos, os mais cultos e a cada vez mais numerosa
população urbana – tinham-se familiarizado com esta identidade(1). Os
intelectuais mais jovens em Ljubljana ou Zagreb já não estavam muito
interessados no passado heróico ou conturbado dos seus antepassados étnicos.
Em 1981, na cosmopolita Sarajevo, a capital da Bósnia, 20% da população
intitulava-se «jugoslava».
A Bósnia fora sempre a região da Jugoslávia mais diversificada em termos
étnicos, pelo que talvez não fosse o exemplo mais característico, mas todo o
país era uma tapeçaria em que as minorias se entrelaçavam. Em 1991 os 580
000 Sérvios residentes na Croácia constituíam cerca de 12% da população
daquela república. Nesse mesmo ano, a Bósnia era 44% muçulmana, 31%
sérvia e 17% croata. Até o pequeno Montenegro era uma mistura de
Montenegrinos, Sérvios, muçulmanos, Albaneses e Croatas – já para não
mencionar aqueles que, no censo efectuado, se definiram como «jugoslavos».
Os habitantes de regiões com várias etnias raramente tinham noção da
nacionalidade ou religião dos seus amigos e vizinhos. Os casamentos entre
elementos de diferentes etnias tornavam-se cada vez mais frequentes.
Com efeito, a separação «étnica» dentro da Jugoslávia nunca foi muito
bem definida. As diferenças linguísticas são um bom exemplo disso.
Albaneses e Eslovenos falam línguas distintas. Os Macedónios falam
macedónio (isto é, búlgaro com pequenas variações). No entanto, as
diferenças entre as formas «sérvia» e «croata» do «servo-croata» tal como é
falado pela esmagadora maioria da população eram, e ainda são,
efectivamente pequenas. Os Sérvios usam o alfabeto cirílico e os Croatas
(como os Bósnios) o alfabeto latino; mas para além de alguns termos
literários e académicos, de variantes ocasionais na grafia e uma forma distinta
de pronunciar a letra «e» ([ie] na forma «iekaviana», ou croata, [i:] na
variante «ekaviana», ou sérvia), as duas «línguas» são idênticas. Além disso,
os Montenegrinos escrevem em cirílico (como os Sérvios), mas pronunciam
segundo a forma «iekaviana», como os Croatas e os Bósnios – tal como os
Sérvios que vivem na Bósnia. Só os habitantes históricos da Sérvia
propriamente dita utilizam a variante «ekaviana» – e quando os líderes
nacionalistas sérvios-bósnios tentaram, depois de 1992, impor oficialmente a
pronúncia «sérvia» (isto é, «ekaviana») aos Sérvios bósnios da região que
tinham separado da Bósnia, depararam com tremenda resistência.
Assim, a língua «croata» reconhecida em 1974 como língua oficial da
República da Croácia – satisfazendo as reivindicações de uma «Declaração
sobre a Língua» de 1967 concebida por um grupo de intelectuais de Zagreb –
era sobretudo um rótulo de identidade: uma forma de protesto por parte dos
Croatas contra a supressão imposta por Tito de todas as expressões de
identidade nacional na sua federação. O mesmo se pode dizer da obsessão de
alguns escritores sérvios em preservar ou reafirmar o sérvio «puro». Parece
lógico concluir que – ao contrário das diferenças convencionais entre
dialectos de uma única língua nacional, em que o uso dos falantes varia
consideravelmente mas as elites tendem a partilhar uma forma «correcta»
comum – na antiga Jugoslávia eram as massas a falar uma única língua
permeável, enquanto uma minoria de nacionalistas procurava diferenciar-se
acentuando o narcisismo das pequenas variações.
As muito invocadas diferenças religiosas são igualmente enganadoras. A
distinção entre Croatas católicos e Sérvios ortodoxos, por exemplo, foi muito
mais importante em séculos anteriores – ou durante a Segunda Guerra
Mundial, quando os Ustashi em Zagreb se serviram do catolicismo como
arma contra Sérvios e judeus(2). Nos anos 90, a prática religiosa nas cidades
jugoslavas em crescimento acelerado estava a esmorecer e era só nas zonas
rurais que a correspondência entre religião e identidade nacional tinha ainda
alguma expressão. Muitos Bósnios aparentemente muçulmanos estavam
completamente secularizados – e, de qualquer forma, tinham pouco em
comum com os Albaneses muçulmanos (de modo algum se pode dizer que
todos os Albaneses eram muçulmanos, apesar de este facto ter passado
despercebido aos seus inimigos). Assim, embora não haja dúvida de que a
velha prática otomana de definir a nacionalidade através da religião deixou as
suas marcas, sobretudo ao exagerar a importância da cristandade ortodoxa
entre os Eslavos do Sul, as diferenças estavam cada vez mais atenuadas.
Ainda que uma geração mais velha de Jugoslavos mantivesse preconceitos
de outros tempos – o futuro presidente croata Franjo Tudjman era
manifestamente ecuménico nos seus preconceitos, desprezando da mesma
forma muçulmanos, Sérvios e judeus –, a única discriminação generalizada
em anos recentes era, provavelmente, a que se votava à minoria no Sul,
criticada por muitos Eslovenos, Croatas, Sérvios, Macedónios e
Montenegrinos, como sendo criminosa e preguiçosa. Estes sentimentos eram
mais fortes na Sérvia(3).
Várias razões contribuíam para esta realidade. A população albanesa era a
que apresentava o crescimento mais rápido no país. Enquanto em 1931 os
Albaneses constituíam apenas 3,6% da população da Jugoslávia, em 1948
eram já 7,9% (em virtude da imigração do pós-guerra da vizinha Albânia).
Em 1991, graças à sua taxa de natalidade substancialmente mais elevada (dez
vezes superior à das comunidades sérvia ou croata), os cerca de 1 728 000
Albaneses na Jugoslávia correspondiam a 16,6% do total da população da
Sérvia (incluindo a Voivodina e o Kosovo), em 1991. A maior parte dos
cidadãos albaneses da Jugoslávia vivia na Sérvia, na região autónoma do
Kosovo, onde constituíam 82% da população local e superavam largamente
os 194 000 Sérvios – embora fossem estes últimos a usufruir dos melhores
empregos, melhores habitações e outros privilégios sociais.
O Kosovo tinha um significado histórico para os nacionalistas sérvios,
visto ter sido a última região da Sérvia medieval a resistir ao avanço dos
Turcos e palco de uma derrota histórica em campo de batalha no ano de 1389.
Alguns intelectuais e políticos sérvios encaravam a predominância de
Albaneses na região simultaneamente como um problema demográfico e uma
provocação em termos históricos. Além disso, na república adjacente da
Bósnia, os Sérvios eram substituídos pelos muçulmanos na posição de
principal minoria. Ao que parecia, os Sérvios estavam a perder – face a
minorias até então subservientes que tinham beneficiado da política de Tito,
que fizera prevalecer a igualdade federal(4). O Kosovo era, então, uma
questão explosiva, por razões que já pouco tinham a ver com as «velhas»
lutas dos Balcãs: como disse, sensatamente, André Malraux a um jugoslavo
de visita a França nos anos 60: «Le Kosovo c’est votre Algérie dans
l’Orléanais».(*)
Enquanto que o ódio dos Sérvios pelos Albaneses se alimentava da
proximidade e da insegurança, no extremo norte da Jugoslávia o desagrado
face aos preguiçosos do Sul não tinha a ver com discriminações étnicas e
baseava-se não na nacionalidade, mas em questões económicas. À
semelhança do que acontecia em Itália, no Norte mais próspero da Jugoslávia
crescia a indignação relativamente aos habitantes do Sul empobrecido,
sustentados – ao que parecia – por transferências e subsídios oriundos dos
seus concidadãos mais produtivos. O contraste entre a riqueza e a pobreza
estava a tornar-se dramático na Jugoslávia: e correlacionava-se
provocadoramente com a geografia.
Assim, tendo a Eslovénia, a Macedónia e o Kosovo aproximadamente a
mesma percentagem da população nacional (8%), em 1990 a pequena
Eslovénia era responsável por 29% do total de exportações, enquanto a
Macedónia produzia apenas 4% e o Kosovo 1%. Tanto quanto é possível
apurar pelos registos oficiais da Jugoslávia, o PIB per capita na Eslovénia era
o dobro da região centro da Sérvia, três vezes superior ao PIB per capita da
Bósnia e oito vezes superior ao do Kosovo. Nos Alpes Julianos [Eslovénia], a
taxa de analfabetismo em 1988 era inferior a 1%; na Macedónia e na Sérvia
era de 11%. No Kosovo situava-se nos 18%. Na Eslovénia, em finais dos anos
80, a taxa de mortalidade infantil correspondia a 11 mortes por cada 1000
nascimentos. Na vizinha Croácia, a proporção era de 12 para 1000; na Bósnia,
16/1000. Mas na Sérvia, a taxa era de 22/1000; na Macedónia de 45/1000 e
no Kosovo de 52/1000.
O que estes números sugerem é que a Eslovénia e (de forma não tão
evidente) a Croácia estavam já a par dos países menos prósperos da
Comunidade Europeia, enquanto o Kosovo, a Macedónia e a Sérvia rural
tinham mais semelhanças com algumas parte da Ásia e da América Latina. Se
havia uma crescente inquietação por parte de Eslovenos e Croatas na sua terra
jugoslava comum, isso não se devia ao ressurgimento de sentimentos
religiosos e linguísticos profundamente enraizados, nem ao reaparecimento de
particularidades étnicas. Devia-se, sim, ao facto de começarem a acreditar que
estariam bastante melhor entregues a si mesmos, sem terem de se preocupar
com as necessidades e interesses dos Jugoslavos menos bem-sucedidos do
Sul.
A autoridade pessoal de Tito e a sua vigorosa repressão de críticas menos
favoráveis mantinha estas opiniões divergentes longe do conhecimento
público. Contudo, depois da sua morte, a situação deteriorou-se rapidamente.
Ao longo da década de 60 e no início dos anos 70, quando o rápido
crescimento do Ocidente europeu absorvia a mão-de-obra jugoslava e enviava
de volta remessas substanciais em moeda forte, o excesso de população e o
trabalho precário no Sul do país não eram tão preocupantes. Contudo, em
finais da década de 70 a economia jugoslava começou a deteriorar-se. Como
outros Estados comunistas, a Jugoslávia estava seriamente endividada para
com o Ocidente: mas enquanto que a resposta de Varsóvia ou Budapeste foi
continuar a recorrer ao crédito estrangeiro, Belgrado optou por cunhar cada
vez mais moeda. Ao longo dos anos 80, o país aproximou-se gradualmente da
hiperinflação. Em 1989, a taxa anual de inflação era de 1240%, com
tendência para subir.
Os erros económicos eram cometidos na capital, Belgrado, mas as suas
consequências eram sentidas e sofridas sobretudo em Zagreb e Ljubljana.
Muitos Croatas e Eslovenos, comunistas e não comunistas, acreditavam que
seriam mais bem sucedidos tomando as suas próprias decisões no plano
económico, livres da corrupção e do nepotismo dos círculos dirigentes da
capital federal. Estes sentimentos eram exacerbados pelo crescente receio de
que um pequeno grupo de apparatchiks que rodeava Slobodan Milosevic, o
até então obscuro presidente da Liga de Comunistas na sua Sérvia natal,
estivesse a preparar-se para assumir o poder no vácuo político que se seguiu à
morte de Tito – excitando e manipulando as emoções nacionais dos Sérvios.
O comportamento de Milosevic não era, naquela época, intrinsecamente
invulgar para um líder comunista. Na RDA, como vimos anteriormente, os
comunistas tentavam ganhar popularidade invocando as glórias da Prússia
oitocentista; e o «nacional comunismo» ganhara bastante visibilidade nos
últimos anos nas vizinhas Bulgária e Roménia. Quando Milosevic manifestou
abertamente o seu agrado face a um Memorando patriótico da Academia de
Artes e Ciências sérvia em 1986, ou quando visitou o Kosovo no ano seguinte
para se mostrar solidário com as queixas dos Sérvios relativamente ao
«nacionalismo» albanês, as suas intenções não eram muito diferentes das de
outros líderes comunistas de Leste europeu da altura. Na era de Gorbachev,
com a legitimidade ideológica do comunismo e o declínio do partido que o
representava, o patriotismo proporcionava uma forma alternativa de segurar o
poder.
Mas enquanto nas restantes partes de Leste europeu este recurso ao
nacionalismo e a consequente invocação de memórias nacionais corria apenas
o risco de causar ansiedade entre os estrangeiros, na Jugoslávia o preço seria
pago em casa. Em 1988, procurando consolidar a sua posição na república
sérvia, Milosevic começou a encorajar abertamente reuniões nacionalistas em
que a insígnia dos Chetniks do tempo da guerra era publicamente exibida pela
primeira vez em quatro décadas – recordação de um passado que Tito
suprimira, um gesto destinado a agitar os ânimos, em particular entre os
Croatas.
O nacionalismo foi a arma utilizada por Milosevic para dominar a Sérvia,
o que se confirmou em Maio de 1989 com a sua eleição para presidente da
República Sérvia. Mas para preservar e fortalecer a influência da Sérvia sobre
a Jugoslávia como um todo, o novo presidente teria de transformar o sistema
federal propriamente dito. O equilíbrio cuidadosamente calculado da
influência das várias repúblicas constituintes fora conseguido primeiro através
da liderança carismática de Tito e depois por uma presidência rotativa. Em
Março de 1989, Milosevic estava preparado para quebrar a ordem
estabelecida.
Impondo uma emenda à própria Constituição da Sérvia, Milosevic
«absorveu» as até então províncias autónomas do Kosovo e da Voivodina na
Sérvia Central, permitindo-lhes, no entanto, que mantivessem os seus dois
lugares na presidência federal. A partir desse momento, a Sérvia podia contar
com quatro dos oito votos federais em qualquer disputa (Sérvia, Kosovo,
Voivodina e a república subserviente e pró-Sérvia de Montenegro). Uma vez
que o objectivo de Milosevic era criar um Estado mais unitário (e liderado
pela Sérvia), algo a que as restantes repúblicas naturalmente se oporiam, o
sistema federal de governação estava efectivamente numa situação de
impasse. Especialmente do ponto de vista da Eslovénia e da Croácia, o rumo
dos acontecimentos apontava para uma única solução possível: uma vez que
já não podiam esperar avançar ou preservar os seus interesses através de um
sistema federal disfuncional, a sua única esperança era distanciarem-se de
Belgrado, se necessário declarando-se totalmente independentes.
Por que razão tinham os acontecimentos chegado a este ponto, no final de
1989? Nos restantes casos, a saída do comunismo foi a «democracia»:
funcionários do Partido e burocratas, da Rússia à República Checa,
transformaram-se, em apenas alguns meses, de elementos subservientes da
nomenklatura em profissionais desenvoltos de partidos políticos pluralistas. A
sobrevivência implicava reajustar as alianças públicas de acordo com a
organização partidária convencional de uma cultura política liberal. Contudo,
por pouco plausível que parecesse a transição em vários casos individuais, a
verdade é que funcionou. E funcionou porque não havia alternativa. Na
maioria dos países pós-comunistas, o tema da «classe» esgotara-se e havia
poucas divisões étnicas internas com que lidar: assim, um novo conjunto de
categorias públicas – «privatização», «sociedade civil» ou «democratização»
(ou «Europa», que englobava as três anteriores) ocupava quase todo o novo
terreno político.
Mas a Jugoslávia era um caso diferente. Precisamente por as suas
populações estarem tão misturadas (e por não terem sofrido os genocídios e as
transferências de população que tinham originado uma nova estruturação em
lugares como a Polónia ou a Hungria em décadas anteriores), o país era um
campo fértil para demagogos como Milosevic, ou Franjo Tudjman, o seu
homólogo croata. Moldando a sua saída do comunismo em torno de um novo
eleitorado político, eles podiam usar o factor étnico que já não estava
disponível no resto da Europa – e substituí-lo por uma preocupação com a
democracia.
Nos Estados do Báltico, na Ucrânia ou na Eslováquia, os políticos pós-
comunistas podiam recorrer à independência nacional como porta de saída do
passado comunista – construir ao mesmo tempo um novo Estado e uma nova
democracia –, sem terem de se preocupar desnecessariamente com a presença
de minorias nacionais. Todavia, na Jugoslávia, a divisão da federação nas suas
repúblicas constituintes deixaria em todos os casos, à excepção da Eslovénia,
uma minoria significativa ou um conjunto de minorias isoladas num país que
não era o seu. Dadas as circunstâncias, logo que uma república se declarasse
independente, outras sentir-se-iam compelidas a imitá-la. Em suma, a
Jugoslávia enfrentava as mesmas questões incontornáveis que Woodrow
Wilson e os seus colegas tinham deixado por resolver em Versalhes setenta
anos antes.
O elemento catalisador, como muitos tinham previsto, foi o Kosovo. Ao
longo da década de 80, tinham-se registado em Pristina nomeadamente, a
capital da região, esporádicas demonstrações e protestos por parte da
comunidade albanesa contra o tratamento hostil de que era vítima em
Belgrado. As suas instituições tinham sido encerradas, os seus líderes
afastados, as suas rotinas diárias limitadas por uma dura vigilância policial e,
a partir de Março de 1989, por um recolher obrigatório. As emendas
constitucionais sérvias retiravam efectivamente aos Albaneses, uma subclasse
deprimida e discriminada, qualquer autonomia política ou representação –
uma sucessão de acontecimentos celebrada e realçada pela visita de Milosevic
àquela província para celebrar o 600.o aniversário da «Batalha do Kosovo».
Discursando perante uma multidão que se estimava em cerca de um
milhão de pessoas, Milosevic assegurou aos Sérvios da região que tinham
recuperado «o seu Estado, a sua integridade nacional e espiritual. […] Até
aqui, graças aos seus líderes e políticos e à sua respectiva mentalidade de
vassalos [os Sérvios] sentiam-se culpados diante de si próprios e dos outros.
Esta situação durou décadas, anos, e agora aqui estamos, no campo do
Kosovo, para dizer que já não é assim». Alguns meses mais tarde, na
sequência de conflitos sangrentos entre forças policiais e manifestantes que
resultaram num elevado número de mortos e feridos, Belgrado encerrou a
Assembleia Legislativa da Província do Kosovo, colocando a região sob o
domínio directo de Belgrado.
O curso dos acontecimentos no Sul do país afectou directamente as
decisões tomadas nas repúblicas do Norte. Se estavam, na melhor das
hipóteses, solidários com as queixas dos Albaneses, Ljubljana e Zagreb
sentiam-se bastante mais ameaçadas pelo crescente autoritarismo sérvio. Nas
eleições da Eslovénia, em Abril de 1990, apesar de a maioria dos eleitores
continuar a favor da permanência na Jugoslávia, verificou-se que apoiavam
candidatos não comunistas da oposição, os quais criticavam abertamente a
organização federal. No mês seguinte, na vizinha Croácia, um novo partido
nacionalista obteve uma esmagadora maioria e o seu líder, Franjo Tudjman,
assumiu o cargo de Presidente da República.
A gota de água deu-se em Dezembro de 1990, quando – sob as ordens de
Milosevic – os dirigentes políticos sérvios em Belgrado se apropriaram sem
autorização de 50% do direito de saque da Federação Jugoslava junto do FMI
para cobrir salários em atraso e bónus pagos a funcionários federais e
trabalhadores de empresas estatais. Os Eslovenos – cujos 8% da população
contribuíam com um quarto do orçamento da federação – ficaram
particularmente chocados. No mês seguinte, o Parlamento esloveno anunciou
que tencionava abandonar o sistema fiscal federal e proclamou a
independência da república, embora sem iniciar quaisquer movimentos no
sentido da secessão. Um mês mais tarde, o Parlamento croata tomara a mesma
iniciativa (logo seguido pelo Parlamento macedónio em Skopje).
Inicialmente, as consequências destes passos foram pouco claras. A
substancial minoria sérvia residente no Sudeste da Croácia – em especial
numa região ocupada pelos Sérvios, com fronteiras há muito estabelecidas, a
Krajina – entrara já em confronto com a polícia croata e pedia auxílio a
Belgrado contra o seus opressores Ustashi. Contudo, a distância entre a
Eslovénia e Belgrado, e a presença de menos de 50 000 Sérvios na república
deixavam supor que se chegaria a uma resolução pacífica. As opiniões da
comunidade internacional dividiam-se: Washington, que suspendera toda a
ajuda económica à Jugoslávia devido às medidas tomadas pelos Sérvios no
Kosovo, não deixou de se opor publicamente a quaisquer movimentos com
vista à separação.
Antecipando o presidente Bush, que estaria em Kiev algumas semanas
mais tarde, o secretário de Estado James Baker visitou Belgrado em Junho de
1991 e garantiu aos seus dirigentes que os EUA eram a favor de «uma
Jugoslávia democrática e unida». Mas, já nessa altura, uma Jugoslávia
«democrática e unida» era um oxímoro. Cinco dias depois de Baker falar, a
Eslovénia e a Croácia assumiram o controlo das suas fronteiras e iniciaram
um processo unilateral de secessão da federação, com a aprovação
esmagadora dos seus cidadãos e o apoio tácito de vários estadistas europeus
proeminentes. Em resposta, o exército federal avançou para a nova fronteira
eslovena. A guerra da Jugoslávia estava prestes a começar.
Ou, melhor, as guerras da Jugoslávia, pois houve cinco. O ataque
jugoslavo à Eslovénia, em 1991, durou apenas algumas semanas, ao fim das
quais o exército recuou, permitindo ao Estado dissidente que concluísse o
processo em paz. Seguiu-se então uma guerra bem mais sangrenta entre a
Croácia e a sua minoria sérvia rebelde (apoiada pelo exército da ‘Jugoslávia’
– na prática, Sérvia e Montenegro), que se prolongou até ao início do ano
seguinte, altura em que foi instituído um cessar-fogo precário mediado pela
ONU. Depois de os Croatas e os muçulmanos da Bósnia terem votado a favor
da independência em Março de 1992, os Sérvios da Bósnia declararam guerra
ao novo Estado e deram início à formação de uma ‘República Srpska’, mais
uma vez com o apoio do exército jugoslavo, cercando uma série de cidades
bósnias – nomeadamente a capital, Sarajevo.
Entretanto, em Janeiro de 1993, uma guerra civil à parte eclodiu entre os
Croatas e os muçulmanos da Bósnia, com a tentativa por parte de alguns
Croatas de formar um pequeno Estado efémero na Herzegovina, região sob
domínio croata. E finalmente, depois de terminados estes outros conflitos
(mas não antes do reinício da guerra croata-sérvia em 1995, com Zagreb a
recuperar com êxito a Krajina, perdida para as forças sérvias três anos antes),
surgiu a guerra interna e contra o Kosovo: tendo efectivamente sido derrotado
em todas as restantes frentes, Milosevic voltou-se novamente para o Kosovo,
e só foi impedido de destruir ou expulsar a população albanesa por um ataque
à Sérvia levado a cabo por forças da NATO, facto sem precedentes, na
Primavera de 1999.
Em cada um destes conflitos houve tanto uma dinâmica interna como um
envolvimento externo. A independência da Eslovénia e da Croácia partiu de
motivações internas bem fundadas, como vimos. Mas foi o reconhecimento
apressado por parte da Alemanha – e em seguida da Comunidade Europeia –
que confirmou a sua existência oficial, perante os seus amigos e inimigos. A
existência de uma Croácia independente desencadeou uma propaganda
histérica na rádio e na televisão de Belgrado, que podiam então começar a
manipular os receios da comunidade sérvia residente no novo Estado,
invocando memórias dos massacres do tempo da guerra e encorajando os
Sérvios a pegar em armas para combater os seus vizinhos Ustashi.
Na Bósnia, onde a população sérvia era consideravelmente mais
numerosa, a perspectiva de uma Bósnia independente com uma maioria
croata-muçulmana despertou uma inquietação semelhante. Se a
independência da Bósnia era de facto inevitável é algo que continua por
explicar: entre as repúblicas de antes da guerra, era a que mais se
caracterizava por uma população mista, a que mais tinha a perder com a
separação à força das suas comunidades constituintes, as quais se
encontravam dispersas por todo o seu território. Além disso, antes da subida
de Milosevic ao poder nenhuma das minorias étnicas ou religiosas da Bósnia
mostrara qualquer desejo relevante de uma separação institucional. Mas
depois da secessão dos vizinhos a norte, a questão começou a ser alvo de
debate.
Depois de 1991, era de prever que os Croatas e muçulmanos da Bósnia
prefeririam uma independência soberana ao estatuto de minoria naquilo que
restava da Jugoslávia de Milosevic, e foi nesse sentido que votaram num
referendo realizado em finais de Fevereiro de 1992. Por sua vez, os Sérvios da
Bósnia, ao fim de alguns meses de exposição ao discurso de Belgrado – que
incidia não só sobre os massacres Ustashi, como também sobre a iminência
de uma jihad muçulmana –, estavam também mais inclinados a unir-se à
Sérvia, ou a ter a sua própria região autónoma, do que a permanecerem com o
estatuto de minoria num Estado muçulmano-croata governado a partir de
Sarajevo. Quando a Bósnia (ou melhor, os seus líderes muçulmanos e croatas
– os Sérvios boicotaram tanto o referendo como o voto parlamentar) se
declarou independente em Março de 1992, o seu destino estava traçado. No
mês seguinte, os líderes dos Sérvios da Bósnia proclamaram a Republika
Srpska e o exército jugoslavo posicionou-se na região para os ajudar a
defender o território e a «limpá-lo».
As guerras servo-croata e servo-bósnia tiveram um preço terrível para os
seus povos. Apesar de inicialmente se terem verificado combates entre
exércitos mais ou menos regulares, sobretudo no interior e em redor de
cidades estratégicas como Sarajevo ou Vukovar, grande parte das lutas eram
travadas por tropas irregulares, nomeadamente sérvios. Pouco mais eram do
que grupos organizados de bandidos e criminosos, armados por Belgrado e
chefiados ou por assassinos profissionais como Arkan (Zeljko Raznatovic),
cuja «Guarda Voluntária Sérvia» (os «Tigres») massacrou centenas de pessoas
nas regiões de Leste da Croácia e da Bósnia, ou então por ex-oficiais do
Exército jugoslavo, como o tenente-coronel Ratko Mladic (descrito pelo
diplomata americano Richard Holbrooke como sendo «um assassino
carismático»), que chefiou as forças sérvias da Bósnia a partir de 1992 e
ajudou a organizar os primeiros ataques a camponeses croatas que viviam em
comunidades maioritariamente sérvias na Krajina.
O principal objectivo estratégico não era tanto derrotar as forças oponentes
como expulsar os cidadãos não sérvios das suas casas, terras e meios de
subsistência nos territórios reivindicados pelos Sérvios(5). Esta «limpeza
étnica» – um termo novo para uma prática antiga – era levada a cabo por toda
a parte, mas as forças sérvias eram de longe as que mais a praticavam. Para
além dos que perderam a vida (um número estimado em cerca de 300 000 no
final da guerra da Bósnia), milhões de pessoas foram forçadas ao exílio. Os
pedidos de asilo à Comunidade Europeia mais do que triplicaram entre 1988 e
1992: em 1991, só a Alemanha tinha pedidos de asilo de 256 000 refugiados.
No primeiro ano das guerras na Croácia e na Bósnia havia 3 milhões de
pessoas da Jugoslávia (um oitavo da população antes da guerra) que
procuravam refúgio no estrangeiro.
Por isso, a comunidade internacional estava necessariamente a par da
tragédia que se vivia na Jugoslávia – a qual se desenrolava também em tempo
real nos ecrãs de televisão do mundo inteiro, com imagens chocantes de
muçulmanos a morrerem de fome em campos prisionais sérvios, e pior ainda.
Os Europeus foram os primeiros a tentar intervir, enviando uma delegação da
CE à Jugoslávia em Junho de 1991 – foi por esta ocasião que o ministro dos
Negócios Estrangeiros do Luxemburgo, Jacques Poos, proferiu a imortal e
infeliz afirmação de que «a hora da Europa» tinha chegado. Mas para além de
estabelecer comissões a alto nível para investigar, arbitrar e propor, a
Comunidade Europeia e as suas diversas instituições revelaram-se bastantes
impotentes – também porque os seus Estados-Membros se encontravam
divididos entre aqueles que, como a Alemanha e a Áustria, eram a favor das
repúblicas dissidentes e outros, liderados pela França, que queriam manter as
fronteiras e os Estados existentes e que, por essa razão entre outras, não eram
totalmente avessos aos objectivos sérvios.
Dado que os EUA (logo, a NATO) se mantinham resolutamente acima do
conflito, restavam apenas as Nações Unidas. Mas para além de impor sanções
a Belgrado, a ONU não podia, aparentemente, fazer muito mais.
Habitualmente, os soldados sob o comando da ONU eram introduzidos em
regiões e países devastados pela guerra para assegurar e manter a paz; mas na
Jugoslávia não havia ainda paz a preservar, e não existiam meios nem vontade
de a instaurar. À semelhança do que aconteceu na Guerra Civil de Espanha, a
posição ostensivamente neutral da comunidade internacional favoreceu na
prática o agressor numa guerra civil: o embargo de armas internacional
imposto à ex-Jugoslávia nada fez para conter os Sérvios, que podiam contar
com a substancial indústria de armamento da antiga federação jugoslava, mas
limitou severamente os muçulmanos na sua luta e determinou em larga
medida as suas derrotas militares entre 1992 e 1995.
A única medida com êxito da comunidade internacional antes de 1995
consistiu em colocar uma Força de Protecção da ONU de 14 000 elementos
na Croácia, de forma a separar Croatas e Sérvios quando a intensidade dos
combates diminuiu, tendo em seguida inserido em determinadas cidades da
Bósnia – designadas por «Áreas Seguras» – algumas centenas de capacetes
azuis com a função de proteger o crescente número de refugiados (sobretudo
muçulmanos) encaminhados para estas zonas. Mais tarde surgiu o
estabelecimento de «zonas aéreas interditas» autorizadas pela ONU em
algumas partes da Bósnia, destinadas a restringir a liberdade da Jugoslávia
para ameaçar civis (ou violar as sanções impostas pela ONU).
Uma medida mais significativa a longo prazo foi, talvez, a criação em
Haia, em 1993, de um Tribunal Internacional para Crimes de Guerra. A mera
existência deste tribunal confirmou aquilo que já se tornara óbvio – que
crimes de guerra, e pior, estavam a ser perpetrados uns meros quilómetros a
sul de Viena. No entanto, dado que os presumíveis criminosos, incluindo
Mladic e o seu colega sérvio-bósnio Radovan Karadzic (presidente da
Republika Srpska), continuavam a praticar os seus crimes com impunidade, o
tribunal era ainda uma sombra espectral e irrelevante.
A situação começou a alterar-se apenas em 1995. Até aí, todas as
conversações sobre intervenção externa tinham sido frustradas pela afirmação
– energicamente repetida por oficiais britânicos e franceses dentro e fora da
ONU – de que os Sérvios-bósnios eram fortes, decididos, e estavam bem
armados. Não deviam ser provocados: qualquer tentativa séria de forçar um
acordo de paz na Bósnia contra a sua vontade ou os seus interesses, pensava-
se, não seria apenas injusto, como poderia agravar a situação… uma linha de
raciocínio astutamente encorajada em Belgrado por Milosevic, que no entanto
afirmava (sem grande credibilidade) não ter muito a ver com as decisões dos
seus concidadãos Sérvios na Bósnia.
Vendo que lhes era permitida uma completa liberdade de acção(6), os
Sérvios-bósnios conseguiram no entanto excedê-la. Apesar do consenso
generalizado na comunidade internacional (incluindo um «Grupo de
Contacto» de diplomatas estrangeiros que procuravam incansavelmente
chegar a um acordo) de que uma federação «muçulmano-croata» (constituída
em Março de 1994 numa cerimónia em Washington que pôs fim ao conflito
entre Croatas e muçulmanos) deveria receber 51% de uma nova Bósnia
federal, cabendo aos Sérvios 49%, os líderes sérvios sediados na cidade de
Pale ignoraram a resolução e prosseguiram com os ataques. Em Fevereiro de
1994, a partir das montanhas circundantes, as suas forças tinham lançado um
morteiro sobre o mercado de Sarajevo, matando 68 pessoas e causando
centenas de feridos. Na sequência deste atentado, a NATO – com o apoio da
ONU – ameaçou dar início a um bombardeamento aéreo caso ocorressem
novos ataques, conseguindo um interregno nas hostilidades.
Mas em Maio de 1995, como retaliação por avanços militares da Bósnia e
pela recuperação bem sucedida da Krajina por parte da Croácia (pondo fim ao
mito da excelência militar sérvia), os Sérvios recomeçaram os
bombardeamentos sobre Sarajevo. Quando, em resposta, os aviões da NATO
bombardearam as bases militares sérvias na Bósnia, os Sérvios fizeram reféns
350 capacetes azuis da ONU. Temendo pelo destino dos seus soldados, os
governos ocidentais insistiram com a ONU e a NATO para que desistissem. A
presença internacional, longe de limitar os Sérvios, oferecia-lhes agora
cobertura acrescida.
Encorajados por esta prova de pusilanimidade do Ocidente, a 11 de Julho,
as forças sérvias bósnias comandadas por Mladic invadiram insolentemente
uma das chamadas «Áreas Seguras» da ONU, a cidade de Srebrenica, no
Leste da Bósnia, nessa altura repleta de refugiados muçulmanos aterrorizados.
Srebrenica estava oficialmente ‘protegida’ não apenas pelo mandato da ONU
como também por um contingente de paz armado constituído por 400
soldados holandeses. Todavia, quando os homens de Mladic chegaram, o
batalhão holandês depôs as armas e não ofereceu qualquer resistência às
tropas sérvias, que passaram a pente fino a comunidade muçulmana,
separando sistematicamente os homens e os rapazes dos restantes. No dia
seguinte, depois de Mladic ter dado a sua «palavra de honra como oficial» de
que os homens não seriam maltratados, os seus soldados encaminharam os
muçulmanos de sexo masculino, incluindo rapazes com apenas 13 anos, para
os campos em redor de Srebrenica. Ao longo dos quatro dias seguintes, quase
todos eles – 7400 – foram mortos. Os soldados holandeses regressaram ao seu
país em segurança.
Srebrenica foi o pior assassínio em massa desde a Segunda Guerra
Mundial: um crime de guerra à escala de Oradour, Lidice ou Katyn, praticado
diante dos olhos dos observadores internacionais. Ao fim de poucos dias, as
notícias daquilo que parecia ter acontecido em Srebrenica foram transmitidas
para todo o mundo. No entanto, a única resposta imediata consistiu num
comunicado oficial da NATO avisando os Sérvios de que os
bombardeamentos aéreos seriam retomados caso outras «áreas seguras»
fossem atacadas. Foi só a 28 de Agosto, sete semanas mais tarde, que a
comunidade internacional finalmente respondeu – e fê-lo apenas porque os
Sérvios-bósnios, julgando, como seria de esperar, que tinham carte blanche
para cometer os massacres que lhes aprouvesse, cometeram o erro de
bombardear o mercado de Sarajevo por uma segunda vez: matando mais 38
civis, muitos dos quais crianças.
Então, finalmente, a NATO agiu. Vencendo uma relutância que se
arrastava por parte dos dirigentes da ONU, de alguns líderes europeus e até de
parte das suas forças armadas, o presidente Clinton autorizou uma campanha
séria e prolongada de bombardeamentos destinada a eliminar a capacidade
sérvia de prosseguir com as hostilidades. A medida foi tardia, mas funcionou.
A tão exaltada máquina de guerra sérvia evaporou-se. Confrontados com um
ataque prolongado às suas posições e sem apoio por parte de Milosevic (que
se apressou a sublinhar o seu distanciamento face aos homens de Pale) os
Sérvios-bósnios foram subjugados.
Com os Sérvios fora de cena e os EUA bem dentro dela, revelou-se
surpreendentemente fácil instaurar a paz – ou pelo menos a ausência de
guerra – nos Balcãs. A 5 de Outubro, o presidente Clinton anunciou um
cessar-fogo, declarando que as partes intervenientes tinham concordado em
encetar conversações de paz nos EUA. No dia 1 de Novembro, as
negociações tiveram início numa base aérea dos EUA em Dayton, no Ohio.
Três semanas mais tarde ficaram concluídas com um acordo assinado em
Paris, a 14 de Dezembro de 1995(7). Tudjman representou a Croácia, Alija
Izetbegovic falou em nome dos Bósnios muçulmanos e Slobodan Milosevic
assinou em representação da Jugoslávia e dos Sérvios-bósnios.
O objectivo de Dayton, do ponto de vista americano, era encontrar uma
solução para as guerras da Jugoslávia que não implicasse a divisão da Bósnia.
A divisão teria representado uma vitória para os Sérvios (que então teriam
tentado unir a sua parcela à Sérvia central e criar a Grande Sérvia dos sonhos
nacionalistas); e a comunidade internacional estaria a sancionar a limpeza
étnica como processo de formação de Estados. Em vez disso, foi estabelecido
um complexo sistema tripartido de governação, no qual os Sérvios, os
muçulmanos e os Croatas da Bósnia tinham todos determinado grau de
autonomia administrativa e territorial, mas dentro de um único Estado bósnio
cujas fronteiras externas permaneceriam inalteradas.
Assim, em termos formais, a Bósnia sobreviveu à guerra civil. No entanto,
as consequências do terror e da expulsão não podiam ser apagadas. Muitos
dos que foram expulsos das suas casas (muçulmanos, principalmente) nunca
regressaram, apesar das garantias e do encorajamento por parte de autoridades
locais e internacionais. Com efeito, não tinham terminado as «limpezas» –
desta vez de Sérvios, sistematicamente expulsos por Zagreb da Krajina,
novamente sob domínio croata, ou então pressionados pelas suas próprias
milícias armadas para abandonarem as suas casas em Sarajevo e noutras
partes e para se ‘restabelecerem’ em áreas predominantemente sérvias. Mas,
regra geral, a paz foi assegurada e a Bósnia permaneceu unida – sob a
vigilância de um exército da NATO de 60 000 elementos, no papel de Força
de Implementação (posteriormente Força de Estabilização), e um alto
representante civil encarregado de administrar o país até este poder assumir as
suas responsabilidades.
O alto representante e as tropas internacionais estão ainda na Bósnia e
continuam em funções na altura em que escrevo (dez anos depois de Dayton),
o que indica o estado de calamidade em que o país se encontrava depois da
guerra, o mal-estar que ainda se vive e a falta de cooperação entre as três
comunidades(8). ABósnia acolheu todo um conjunto de organizações
internacionais: governamentais, intergovernamentais e não governamentais.
Com efeito, desde 1995, a economia bósnia tem dependido quase
inteiramente da presença e do financiamento destas organizações. Uma
estimativa do Banco Mundial em Janeiro de 1996 indicava que, para
recuperar, a Bósnia precisaria de 5,1 mil milhões de dólares ao longo de três
anos. Esta previsão revelou-se bastante optimista.
Terminada a guerra da Bósnia, e estando no local as várias organizações
internacionais para ajudar a manter a paz, o interesse externo esmoreceu. A
União Europeia, como de costume, estava presa às suas próprias questões
institucionais; Clinton, absorvido pelas eleições internas e depois com a
expansão da NATO e a instabilidade da Rússia de Yeltsin, deixou de se
concentrar na crise dos Balcãs. Todavia, apesar de a Eslovénia, a Croácia e a
Bósnia terem passado a ser Estados independentes, o problema da Jugoslávia
não fora solucionado. Slobodan Milosevic mantinha-se à frente daquilo que
restava do seu país e a questão que inicialmente o levara ao poder estava
prestes a explodir.
A comunidade albanesa da Sérvia continuava a ser alvo de discriminação e
repressão – na verdade, com a atenção internacional desviada para a crise a
norte, os Albaneses estavam mais vulneráveis do que nunca. Depois de
Dayton, as perspectivas de Milosevic perante a comunidade internacional
tinham melhorado visivelmente: embora não tivesse conseguido a anulação de
todas as sanções (o seu principal objectivo ao aceder tão prontamente em
cooperar com os EUA no restabelecimento da paz na Bósnia), a Jugoslávia
deixara de ser o pária que fora em tempos. E assim, com uma série de derrotas
associada ao seu nome e os políticos nacionalistas sérvios de Belgrado a
criticá-lo por ter negociado com os «inimigos» da Sérvia, Milosevic voltou-se
para o Kosovo.
Na Primavera de 1997, Elizabeth Rehn, enviada especial das Nações
Unidas para os direitos humanos, chamou a atenção para o desastre iminente
na província do Kosovo, uma vez que Belgrado exercia pressão sobre a
maioria albanesa da região, rejeitando todos os pedidos de autonomia local e
privando a população local de toda e qualquer representação institucional.
Sobrepondo-se ao seu líder moderado, Ibrahim Rugova, o qual se viu
humilhado e sem meios para agir, uma geração mais jovem de Albaneses –
armada e encorajada pela própria Albânia – abandonou a resistência não
violenta e voltou-se progressivamente para o ELK (Exército de Libertação do
Kosovo).
Fundado na Macedónia em 1992, o ELK preconizava a luta armada pela
independência do Kosovo (e possivelmente a união com a Albânia). A sua
estratégia – que consistia fundamentalmente em ataques de guerrilha a
esquadras de polícia isoladas – dava a Milosevic a oportunidade de condenar
toda a resistência albanesa, rotulando-a de «terrorista» e de autorizar uma
campanha de crescente violência. Em Março de 1998, depois de forças sérvias
– armadas com morteiros e apoiadas por helicópteros de combate – terem
morto e ferido dezenas de pessoas em massacres praticados em Drenica e
noutras aldeias albanesas, a comunidade internacional respondeu finalmente
aos apelos de Rugova e passou a estar mais atenta. Mas quando os EUA e a
União Europeia se declararam «atónitos perante a violência policial no
Kosovo», a resposta beligerante de Milosevic consistiu em avisar que «o
terrorismo com vista à internacionalização do problema será mais prejudicial
para aqueles que recorreram a esses meios».
Por esta altura, todos os dirigentes albaneses do Kosovo – a maioria,
exilada ou escondida – decidiram que só a completa separação da Sérvia
poderia salvar a sua comunidade. Entretanto, os EUA e os países do «Grupo
de Contacto» continuavam a tentar mediar negociações entre Milosevic e os
Albaneses – em parte para alcançar uma solução «justa», em parte para evitar
que uma guerra de maior amplitude eclodisse no Sul dos Balcãs. Este não era
um receio infundado: se a Jugoslávia não fosse forçada a tratar
adequadamente os seus habitantes albaneses – e caso eles optassem pela
independência –, a questão poderia ter sérias consequências para a vizinha
Macedónia, onde vivia uma importante minoria de Albaneses descontentes.
A Macedónia, independente havia pouco tempo, conhecida, em virtude da
insistência por parte dos Gregos, por Antiga República Jugoslava da
Macedónia (ARJM)(9), era uma zona historicamente sensível. As suas
fronteiras com a Bulgária, a Grécia e a Albânia tinham sido disputadas antes e
depois de ambas as guerras mundiais. Era alvo de olhares desconfiados por
parte de todos os seus vizinhos – dos quais o pequeno Estado, sem costa,
dependia inteiramente, tanto para o comércio como para o acesso ao mundo
exterior. E, com o desmembramento da Jugoslávia, a sua sobrevivência não
estava de forma alguma garantida. Mas se a Macedónia caísse, então a
Albânia, a Bulgária, a Grécia e talvez mesmo a Turquia poderiam ser
arrastadas para o conflito.
Deste modo, os maus-tratos – massacres – sistemáticos de Milosevic aos
Albaneses do Kosovo condená-lo-iam forçosamente à reprovação e, no limite,
à intervenção das potências ocidentais. Curiosamente, ele parece nunca ter
tomado consciência deste facto, apesar dos vários avisos ao longo de todo o
Verão de 1998, da secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright (que
afirmou que consideraria Milosevic «pessoalmente responsável»), pelo
presidente francês, Jacques Chirac, e pelo secretário-geral da NATO, Javier
Solana. À semelhança de Saddam Hussein alguns anos mais tarde, Milosevic
isolava-se e alheava-se da opinião do mundo Ocidental, confiando
excessivamente na sua capacidade de manipular os estadistas estrangeiros e
de contornar os obstáculos que lhe colocavam.
Milosevic não era o único culpado por esta situação. Lisonjeado pelas
visitas frequentes de alguns diplomatas americanos – demasiado confiantes no
seu talento de negociadores –, Milosevic tinha boas razões para acreditar que
era visto no Ocidente não como um inimigo intransigente, mas como um
interlocutor privilegiado(10). E o ditador jugoslavo estava bem ciente da
preocupação da comunidade internacional em evitar qualquer nova alteração
às fronteiras europeias. Ainda em Julho de 1998, apesar dos claros indícios
em como a situação no Kosovo era insustentável, o Grupo de Contacto de
ministros dos Negócios Estrangeiros rejeitou publicamente a independência
como solução para o conflito.
O que Milosevic não percebia era a transformação na opinião internacional
operada pela catástrofe da Bósnia. Os direitos humanos – a limpeza étnica em
particular – eram agora uma questão prioritária; o mundo não interviera a
tempo, e esse fracasso gerara um sentimento colectivo de culpa
profundamente incómodo. Em Junho de 1998, o Tribunal de Haia para
Crimes de Guerra declarou-se competente para exercer jurisdição sobre os
crimes cometidos no Kosovo – Louise Harbour, procuradora-geral, afirmou
que a dimensão e a natureza dos combates na região permitiam considerá-los
um conflito armado sujeito à lei internacional –, e a 19 de Julho o Senado dos
EUA instou os oficiais de Haia a indiciar Milosevic por «crimes de guerra,
crimes contra a humanidade e genocídio».
Estas acusações tornavam-se cada vez mais plausíveis. Não só centenas de
«terroristas» albaneses eram mortos por forças policiais especiais vindas da
Sérvia, como havia cada vez mais indícios de que este conflito dissimulava os
planos de Belgrado de ‘encorajar’ a partida da população albanesa, forçando
milhares de pessoas a abandonar a sua terra e os seus meios de sustento para
salvar a vida. Ao longo de todo o Inverno de 1998-99, foram divulgadas
acções da polícia sérvia – por vezes em resposta a ataques do ELK e, mais
frequentemente, envolvendo execuções em massa de uma ou mais famílias –
com a intenção de aterrorizar comunidades inteiras, levando-as a abandonar
as suas aldeias e a atravessar as fronteiras para a Albânia ou para a
Macedónia.
A resposta internacional encontrava-se agora dividida. Já em Outubro de
1998, os EUA e a maior parte dos restantes membros da NATO eram
abertamente a favor de uma intervenção militar em defesa dos Albaneses
sitiados. Mas na ONU (que teria de autorizar esse tipo de intervenção nas
questões «internas» de um Estado soberano) havia uma forte oposição por
parte da China e da Rússia – cujo parlamento aprovou uma resolução
considerando qualquer futura acção da NATO uma «agressão ilegal». Na
própria NATO e na UE, a Grécia, por motivos próprios, opunha-se a qualquer
tipo de intervenção nos assuntos jugoslavos. Entretanto, a Ucrânia e a
Bielorrússia expressaram uma «solidariedade incondicional» e «apoio moral»
aos Eslavos da Sérvia.
Este aparente impasse prolongar-se-ia indefinidamente se Belgrado não
tivesse decidido proceder a uma série de brutais assassínios em massa logo no
início de 1999, começando a 15 de Janeiro na aldeia de Racak, no Sul do
Kosovo, e prosseguindo em Março, um pouco por toda a região. O ataque de
Racak, em que foram mortos 45 Albaneses (23 dos quais, ao que tudo indica,
executados), serviu finalmente – como o massacre no mercado de Sarajevo –
para forçar a comunidade internacional a agir(11). Depois de negociações
infrutíferas em Rambouillet entre Madeleine Albright e uma delegação
jugoslava, que terminaram, como era de prever, com a recusa de Belgrado em
retirar as suas forças do Kosovo e aceitar a presença militar estrangeira na
região, a intervenção tornou-se inevitável. A 24 de Março, e apesar de não
haver uma aprovação formal da ONU, navios, aviões e mísseis da NATO
entraram em acção na Jugoslávia, na prática declarando guerra ao regime de
Belgrado.
A última guerra da Jugoslávia durou perto de três meses, durante os quais
as forças da NATO provocaram graves danos na Sérvia Central, embora não
tendo um êxito pleno em impedir a expulsão da população albanesa do
Kosovo: durante a guerra, 865 000 pessoas (metade da comunidade albanesa
do Kosovo) refugiaram-se em campos provisórios no Montenegro, na Bósnia,
na Albânia e nas regiões de etnia albanesa na zona ocidental da Macedónia.
No entanto, apesar da insistência do presidente Clinton, imprudentemente
tornada pública, de que não deveria haver tropas da NATO no terreno –
obrigando a aliança a conduzir uma campanha aérea com os inevitáveis erros
que favoreceram a propaganda jugoslava e o papel de vítima dos Sérvios – o
resultado foi aquele que se previa. A 9 de Junho, Belgrado concordou em
retirar todas as suas tropas e forças policiais do Kosovo, os ataques da NATO
foram suspensos, e a ONU decretou a ocupação «temporária» da região pela
Força Multinacional no Kosovo (KFOR), liderada pela NATO.
A ocupação do Kosovo assinalou o fim de uma década de guerras na
Jugoslávia – e também o princípio do fim do próprio Milosevic. Com a sua
credibilidade minada pela última e pior derrota para o projecto nacionalista
sérvio, Milosevic foi vencido nas eleições presidenciais da Jugoslávia, em
Setembro de 2000, pelo candidato da oposição, Vojislav Kostunica. Quando
Milosevic reconheceu, cinicamente, que Kostunica tinha mais votos, mas
afirmou que a margem era tão escassa que seria necessária uma segunda
volta, desencadeou finalmente uma onda de protesto entre o próprio povo
sérvio, já cansado de sofrer. Dezenas de milhares de manifestantes invadiram
as ruas de Belgrado e a 5 de Outubro Milosevic admitiu finalmente a derrota e
abandonou o poder. Seis meses mais tarde, o governo sérvio, cada vez mais
desesperado pelo auxílio económico por parte do Ocidente, concordou em
prender o ditador e entregou-o ao Tribunal de Haia, onde foi acusado de
genocídio e crimes de guerra.
A quem cabia a culpa da guerra da Jugoslávia? Eram muitas as
responsabilidades a atribuir. Inicialmente, a ONU não demonstrou grande
preocupação – numa atitude inadequada e passiva, o secretário-geral Boutros
Boutros-Ghali descreveu a Bósnia como sendo «uma guerra de um homem
rico» – e quando os seus representantes finalmente chegaram aos Balcãs
passaram a maior parte do tempo a bloquear qualquer acção militar decisiva
contra os piores prevaricadores. Os europeus não agiram muito melhor. A
França, em particular, mostrou-se claramente relutante em atribuir culpas pelo
rumo dos acontecimentos no Kosovo, da mesma forma que se mostrara pouco
inclinada a qualquer tipo de envolvimento.
Assim, quando em Setembro de 1990 Washington procurou colocar a
Jugoslávia na agenda de uma cimeira da OSCE que se realizaria brevemente
em Paris, François Mitterrand acusou os Americanos de estarem a
«dramatizar» a questão e recusou. Quatro meses mais tarde, quando a questão
ressurgiu, o ministério dos Negócios Estrangeiros declarou que era
«demasiado tarde» para a intervenção externa… De igual modo, Paris
revelou-se pouco disposta a cooperar mesmo depois de as forças
internacionais terem sido obrigadas a actuar na região: o general francês
Bernard Janvier, comandante da Força de Protecção da ONU na Bósnia,
proibiu pessoalmente ataques aéreos contra as forças sérvias bósnias em
Srebrenica(12). Quanto ao governo holandês, foi inclusivamente ao ponto de
vetar quaisquer ataques da NATO aos bastiões dos Sérvios-bósnios até os
soldados holandeses se encontrarem a salvo fora do país.
Outros países portaram-se algo melhor, mas não à altura da situação.
Apesar de Londres ter acabado por se colocar ao lado dos Americanos,
apoiando-os na sua pressão para intervir, as autoridades britânicas passaram
os primeiros anos (que se revelaram cruciais) do conflito jugoslavo a evitar
qualquer envolvimento directo por parte da CE ou da NATO. E a forma como
os Britânicos trataram os refugiados jugoslavos foi vergonhosa: em
Novembro de 1992, quando o fluxo de Bósnios desesperados e sem abrigo
atingiu o auge, Londres anunciou que nenhum Bósnio poderia viajar para o
Reino Unido sem visto. Esta posição foi de uma perversidade atroz. Uma vez
que não existe embaixada britânica em Sarajevo para emitir tais vistos, a
única forma de uma família bósnia os obter seria através de um terceiro
país… altura em que o governo britânico afirmaria (como de facto fez) que,
uma vez que tinham encontrado asilo noutro lugar, não era necessário a Grã-
Bretanha acolhê-los. Deste modo, enquanto a Alemanha, a Áustria e os países
escandinavos se mostraram anfitriões generosos para centenas de milhares de
refugiados jugoslavos entre 1992 e 1995, o Reino Unido registou um declínio
no número de pedidos de asilo ao longo destes mesmos anos.
Washington, por sua vez, demorou muito tempo a concentrar-se nos
acontecimentos dos Balcãs; mas a partir do momento em que se envolveram,
os EUA tiveram um desempenho francamente melhor. O facto de ter sido
sistematicamente a iniciativa americana a liderar a intervenção externa foi
motivo de humilhação para os aliados ocidentais europeus. Mas os EUA
avançaram também a custo – sobretudo porque o establishment da defesa
americana era avesso a correr riscos e porque muitos políticos americanos
continuavam a acreditar que o seu país não tinha interesses naquela guerra. A
ideia de fazer a NATO intervir naquelas novas circunstâncias – ou de os EUA
intervirem sozinhos nas questões internas de um Estado soberano com o qual
não tinham conflitos por resolver – não foi do agrado de muitos. Era, como
disse o secretário de Estado Warren Christopher no auge da guerra da Bósnia,
«um problema vindo do inferno».
Quanto aos Jugoslavos, ninguém se destacou por um comportamento
honroso. O fracasso do sistema federal jugoslavo foi precipitado por
Belgrado, mas Ljubljana e Zagreb não lamentaram o rumo dos
acontecimentos. Os muçulmanos bósnios, é certo, tiveram poucas
oportunidade de cometer crimes de guerra; na sua maioria, eram vítimas da
agressão de outros. Foram eles a sofrer a maior perda – e a destruição de
Sarajevo foi especialmente lamentada. Com as devidas limitações, a capital
da Bósnia era uma cidade genuinamente cosmopolita: possivelmente o último
dos centros urbanos multiétnicos, multilingues e ecuménicos que fizeram em
tempos a glória da Europa Central e do Leste mediterrânico. Será
reconstruída, mas nunca poderá recuperar totalmente.
Por seu turno, alguns Croatas armados foram responsáveis por inúmeros
actos de violência contra civis – quer sob as ordens de Zagreb, quer por sua
própria iniciativa. Em Mostar, uma cidade no oeste na Bósnia com uma
percentagem invulgarmente elevada de casamentos entre pessoas de
diferentes religiões, os extremistas croatas expulsaram muçulmanos e famílias
mistas da metade ocidental da cidade. Substituíram-nas em seguida por
camponeses croatas levados para a cidade e que se haviam tornado mais
radicais devido à sua própria experiência de limpeza étnica nas aldeias onde
habitavam, e sitiaram os bairros muçulmanos da zona leste. Entretanto, em
Novembro de 1993 destruíram sistematicamente a ponte otomana sobre o rio
Neretva, a qual datava do século XVI e era um símbolo do passado misto e
ecuménico de Mostar.
Os Croatas tinham, assim, poucos motivos para se sentir orgulhosos – e de
todos os líderes pós-comunistas que emergiram dos escombros, Franjo
Tudjman era um dos que mereciam menos consideração. Mais do que
qualquer outro, Tudjman encarregou-se pessoalmente de apagar o passado
jugoslavo da memória dos seus concidadãos: em Março de 1993, a própria
palavra «Jugoslávia» tinha sido retirada dos manuais escolares, antologias,
enciclopédias, títulos de livros e mapas publicados na nova Croácia. Foi só
após da morte de Tudjman que o Estado croata por ele fundado se redefiniu
como um candidato credível para aderir à comunidade internacional.
No entanto, feito o balanço, a principal responsabilidade pela catástrofe
jugoslava só pode ser atribuída aos Sérvios e ao seu líder, Slobodan
Milosevic. Foi por causa da ânsia de Milosevic pelo poder que as outras
repúblicas escolheram a separação. Foi, depois, Milosevic quem encorajou os
Sérvios na Croácia e na Bósnia a criar enclaves, fornecendo-lhes apoio
militar. E foi Milosevic quem autorizou e conduziu o contínuo ataque à
população albanesa da Jugoslávia que levou à guerra no Kosovo.
As acções de Belgrado revelaram-se desastrosas para os Sérvios por toda a
parte. Perderam a sua terra na região da Krajina, na Croácia; viram-se
obrigados a aceitar a independência da Bósnia e a abandonar os seus planos
de estabelecer um Estado sérvio soberano; foram derrotados no Kosovo, o
que levou a maior parte da população sérvia a fugir da região, com justo
receio da retaliação albanesa; e naquilo que restou do Estado da Jugoslávia
(do qual até Montenegro tentou separar-se) o seu nível de vida baixou
drasticamente. O curso dos acontecimentos exacerbara ainda mais a antiga
propensão dos Sérvios para a autocomiseração colectiva perante a injustiça da
História e, na verdade, é possível que a longo prazo os Sérvios sejam os
grandes vencidos das guerras na Jugoslávia. O facto de hoje até a Bulgária e a
Roménia usufruírem de um nível de vida superior e de melhores perspectivas
futuras em comparação com a Sérvia é revelador do estado actual do país.
Contudo, esta ironia não deve cegar-nos face à responsabilidade sérvia. A
chocante violência e o sadismo das guerras da Croácia e da Bósnia – os
sucessivos maus-tratos, a degradação, a tortura, a violação e o assassínio de
centenas de milhares de pessoas – foi obra de homens sérvios, na sua maioria
jovens, que se tornaram capazes de um ódio arbitrário e de indiferença ao
sofrimento devido à propaganda e ao incitamento de líderes locais cujo poder
e directivas provinham, em última instância, de Belgrado. O que se seguiu
não foi inédito: acontecera na Europa apenas algumas décadas antes, quando
– por todo o continente e com a sanção da guerra – pessoas comuns
cometeram crimes tremendos.
Não há dúvida de que, especialmente na Bósnia, havia uma história
propícia à propaganda sérvia, uma história de tormentos passados enterrada
logo por baixo da superfície ilusoriamente plácida da vida jugoslava do pós-
guerra. Todavia, a decisão de despertar essa memória, de a manipular e
explorar para fins políticos coube aos homens: a um homem em particular.
Durante as negociações de Dayton, dissimuladamente, Slobodan Milosevic
revelou a um jornalista que nunca esperara que as guerras no seu país
durassem tanto. Sem dúvida que isso é verdade, mas essas guerras não foram
desencadeadas por uma combustão étnica espontânea. A Jugoslávia não caiu:
foi empurrada. Não morreu: mataram-na.
A Jugoslávia foi o pior dos exemplos, mas o pós-comunismo foi difícil em
todo o lado. O caminho do autoritarismo para a democracia em Portugal ou
Espanha acompanhou a modernização acelerada de uma economia agrária
atrasada – uma combinação com a qual a Europa Ocidental estava
familiarizada em virtude do seu passado. Contudo, a saída do comunismo não
tinha precedente. A tão antecipada passagem do capitalismo ao socialismo
fora teorizada ad nauseam em academias, universidades e cafés, de Belgrado
a Berkeley; mas ninguém se tinha lembrado de traçar um plano da transição
do socialismo para o capitalismo.
Entre os muitos legados penosos do comunismo, a herança económica era
a mais evidente. A obsoleta máquina industrial da Eslováquia, da Transilvânia
ou da Silésia aliava a disfuncionalidade económica à irresponsabilidade
ambiental. Estavam ambas estreitamente relacionadas: o envenenamento do
Lago Baikal, a morte do Mar Aral, as chuvas ácidas que caíam sobre as
florestas do Norte da Boémia, representavam não só uma catástrofe natural
como uma tremenda hipoteca para o futuro. Antes de se investir em novas
indústrias, as antigas tinham de ser desmanteladas e alguém teria de
compensar os danos causados.
Nos Länder de Leste da Alemanha, a factura a pagar pelos danos
resultantes do comunismo foi assumida pelo governo federal. O Treuhand
(ver capítulo 17) gastou milhares de milhões de marcos nos quatro anos que
se seguiram, procedendo à compra e liquidação de instalações industriais e
fábricas, indemnizando os funcionários excedentários e corrigindo – na
medida do possível – as consequências das suas actividades. Os resultados
nem sempre foram os melhores e quase levaram o tesouro federal à falência,
mas, ainda assim, os Alemães de Leste tiveram sorte: a sua saída do
comunismo foi paga pela economia mais forte da Europa Ocidental. Noutros
lugares, os custos de reinventar a vida económica tiveram de ser pagos pelas
próprias vítimas.
A escolha fundamental que se colocava aos governos pós-comunistas era a
seguinte: ou tentar uma transição única e repentina das economias socialistas
subsidiadas para o capitalismo orientado para o mercado – a abordagem big
bang; ou, pelo contrário, proceder cautelosamente ao desmantelamento ou
liquidação dos sectores da «economia planificada» cujo mau funcionamento
era mais flagrante, preservando por tanto tempo quanto possível as
características mais importantes para a população local: rendas baixas,
empregos garantidos, serviços sociais gratuitos. A primeira estratégia era mais
conforme aos teoremas do mercado livre, favorecendo os interesses de uma
geração emergente de economistas e empresários pós-comunismo; a segunda
era mais prudente em termos políticos. O problema residia no facto de que
qualquer das abordagens implicaria sofrimento e perda a curto prazo (e talvez
esse prazo não fosse tão curto…): na Rússia de Boris Yeltsin, onde ambas as
estratégias foram aplicadas, a economia regrediu dramaticamente durante oito
anos – o maior atraso em tempo de paz sofrido por uma economia de primeiro
plano na história moderna.
Foi na Polónia, sob a supervisão determinada de Leszek Balcerowicz
(primeiro como ministro das Finanças, mais tarde como director do banco
central do país), que a abordagem big bang foi aplicada mais cedo e de forma
mais consistente. Balcerowicz defendia que o seu país – à beira da falência –
não poderia recuperar sem a ajuda internacional. No entanto, essa ajuda viria
apenas quando a Polónia tivesse estabelecido estruturas credíveis que
oferecessem garantias aos banqueiros ocidentais e às instituições de crédito.
Não era o Fundo Monetário Internacional que estava a impor medidas duras à
Polónia; em vez disso, antecipando as exigências do FMI, a Polónia daria
provas de merecer a ajuda de que precisava. E a única forma de conseguir
fazê-lo era depressa, durante a lua-de-mel do pós-comunismo e antes que as
pessoas tomassem consciência de quão doloroso seria todo o processo.
Foi assim que a 1 de Janeiro de 1990 o primeiro governo pós-comunista da
Polónia iniciou um ambicioso programa de reformas: criação de reservas de
moeda estrangeira, fim do controlo de preços, redução do crédito e corte de
subsídios (por outras palavras, passou a permitir que as empresas falhassem)
– tudo à custa de salários reais, os quais caíram imediatamente cerca de 40%.
Excepto no reconhecimento explícito da inevitabilidade do desemprego
(suavizado pela criação de um fundo destinado a sustentar e ajudar a reinserir
os que perdiam o emprego), este cenário não era muito diferente daquele que
por duas vezes se tinha tentado implementar sem êxito nos anos 70. O que
tinha mudado era o clima político.
Na vizinha Checoslováquia, sob a direcção do ministro das Finanças (mais
tarde primeiro-ministro) Vaclav Klaus, foi posto em prática um programa
igualmente ambicioso – com uma ênfase adicional na conversão de moeda, na
liberalização do comércio externo e na privatização, sempre no âmbito do seu
confesso «thatcherismo». Como Balcerowicz e alguns dos jovens economistas
do Kremlin, Klaus era a favor da «terapia de choque»: considerando que não
havia nada da economia socialista que merecesse a pena preservar, não via
benefícios em atrasar a mudança para o capitalismo.
No extremo oposto encontravam-se homens como Meciar, da Eslováquia,
Iliescu, da Roménia, ou o primeiro-ministro da Ucrânia (que viria a ser
presidente) Leonid Kuchma. Receando transtornar os seus eleitores, adiaram
tanto quanto possível a introdução das mudanças – o primeiro «programa de
reforma económico» da Ucrânia foi anunciado em Outubro de 1994, e
revelou-se particularmente relutante em liberalizar os mercados internos ou
reduzir a participação do Estado na economia. Em Setembro de 1995,
Kuchma iria defender a sua posição – em termos familiares para os
historiadores da região – alertando para os malefícios de «copiar cegamente a
experiência estrangeira».
Depois de ter passado por um atoleiro de depressão económica no início
da década de 90, a primeira linha de antigos Estados comunistas reergueu-se
sobre bases mais sólidas, capaz de atrair o investimento estrangeiro e de
ambicionar uma futura integração na União Europeia. O relativo sucesso das
estratégias económicas da Polónia ou da Estónia, comparativamente à
situação da Roménia ou da Ucrânia, é óbvio para qualquer visitante; com
efeito, ao nível da pequena actividade empresarial ou até do optimismo das
populações, os países mais bem-sucedidos de Leste europeu saíram-se melhor
do que a antiga RDA, apesar de todas as aparentes vantagens desta última.
É tentador concluir que os Estados pós-comunistas mais «avançados»
como a Polónia – ou a República Checa, a Estónia, a Eslovénia e talvez a
Hungria – foram, ao fim de alguns anos difíceis, capazes de transpor o hiato
entre o Estado socialista e o capitalismo de mercado, apesar do elevado custo
que esta transição representou para os seus cidadãos mais pobres e idosos;
entretanto, uma segunda fileira de países dos Balcãs e da antiga União
Soviética lutava na esteira da primeira, impossibilitada de avançar por uma
elite dirigente incapaz e sem vontade de proceder às reformas necessárias.
Isto é, em grande parte, verdade. No entanto, mesmo sem Klaus ou
Balcerowicz, ou os seus homólogos na Hungria e na Estónia, alguns antigos
Estados comunistas iriam sempre adaptar-se melhor do que outros à passagem
para uma economia de mercado: ou porque essa era já a sua orientação antes
de 1989 (como vimos), ou porque as distorções da sua era soviética não eram
tão patológicas como as que apresentavam alguns dos seus vizinhos menos
afortunados (a comparação entre a Hungria e a Roménia é bem reveladora
deste aspecto). E, evidentemente, os milagres da transformação económica
visíveis nas capitais de alguns países – em Praga, Varsóvia ou Budapeste, por
exemplo – nem sempre são copiados nas suas províncias distantes. Hoje,
como no passado, as verdadeiras fronteiras na Europa Central e de Leste não
se situam entre países, mas entre os centros urbanos prósperos e o interior
rural empobrecido.
Bastante mais reveladoras do que as diferenças entre as experiências pós-
comunistas destas terras são as suas semelhanças. Feitas as contas, em todos
os países as novas elites dirigentes deparavam com as mesmas opções
estratégicas. O «romance da economia de mercado», como lhe chamou
desdenhosamente o primeiro-ministro russo Viktor Chernomyrdin em Janeiro
de 1994, foi universal(13). Universais eram também os objectivos
económicos: liberalização da economia, transição para uma qualquer forma
de mercado livre e acesso à União Europeia – com a sedutora promessa de
investimento e consumidores estrangeiros, e de fundos regionais que
aliviassem a dor do desmantelamento da economia centralizada. Estes eram
os resultados que quase todos procuravam – e de qualquer modo, como
parecia concordar quase toda a opinião informada, não havia alternativa.
Se havia diferenças profundas na política pública das sociedades pós-
comunistas, então, tal não se devia a uma divergência importante de opinião
relativamente a onde estes países queriam chegar ou como deviam fazê-lo. A
questão que se impunha era saber como dispor dos recursos existentes. As
economias dos Estados comunistas podiam ser distorcidas e ineficientes, mas
dispunham de bens potencialmente lucrativos: energia, minerais, armas, bens
imóveis, meios de comunicação, redes de transporte e muito mais. Além
disso, nas sociedades pós-soviéticas, as únicas pessoas que sabiam como gerir
um laboratório, uma exploração agrícola ou uma fábrica – que tinham
experiência de comércio internacional ou de como chefiar uma grande
instituição – e que sabiam como obter resultados, eram as pessoas do próprio
Partido: a elite intelectual, os burocratas e a nomenklatura.
Eram estas as pessoas que iriam estar à frente dos seus países após 1989,
tal como até aí – pelo menos até que uma nova geração pós-comunista
pudesse surgir. No entanto, estariam agora a funcionar sob uma nova
aparência: em vez de trabalharem para o Partido, encontrar-se-iam dispersos
por vários partidos políticos, competindo pelo poder; e em vez de serem
empregados pelo Estado, seriam operadores independentes num mercado
competitivo de quadros especializados, bens e capital. Quando o Estado
vendeu a sua participação em tudo, desde os direitos de extracção de petróleo
e minérios aos blocos de apartamentos, foram estes os homens (e tratava-se,
com efeito, sobretudo de homens, sendo a futura primeira-ministra da
Ucrânia, Yulia Timoshenko, uma notável excepção) que se encarregaram da
venda – e da compra.
O capitalismo, segundo a crença que se generalizou em toda a Europa pós-
comunista, tem a ver com mercados. E os mercados implicam a privatização.
A liquidação de bens públicos nos países de Leste europeu após 1989 não
tinha precedentes históricos. O culto da privatização na Europa Ocidental que
começara a ganhar balanço em finais da década de 70 (ver capítulo 16)
fornecia um modelo para o abandono apressado da propriedade pública no
Leste; mas, para além disso tinham muito pouco em comum. O capitalismo,
tal como emergira no mundo atlântico e na Europa Ocidental ao longo dos
quatro séculos passados, fazia-se acompanhar de leis, instituições,
regulamentos e práticas dos quais dependia totalmente para o seu
funcionamento e a sua legitimidade. Em muitos países pós-comunistas, essas
leis e instituições eram praticamente desconhecidas – e perigosamente
subestimadas pelos neófitos do mercado livre.
O resultado foi a privatização como cleptocracia. Na sua forma mais
vergonhosa, na Rússia governada por Boris Yeltsin e seus amigos, a economia
pós-transição passou a estar nas mãos de um pequeno número de homens que
se tornaram extraordinariamente ricos – em 2004, 36 milionários russos
(«oligarcas») tinham-se apoderado de cerca de 110 mil milhões de dólares,
um quarto do produto interno do país. As diferenças entre privatização,
extorsão e simples roubo desapareceram: havia tanto (petróleo, gás, minérios,
metais preciosos, oleodutos) para roubar e ninguém para impedir o roubo. As
instituições e os bens públicos foram confiscados e redistribuídos entre
funcionários públicos que se apoderavam de literalmente tudo o que pudesse
ser legalmente transferido para grupos privados.
A Rússia foi o pior caso, mas a Ucrânia vinha logo a seguir. Kuchma e
outros políticos foram eleitos com um financiamento desmesurado por parte
de «homens de negócios», na forma de pagamentos por conta de rendimentos
futuros; na Ucrânia pós-soviética, como estas pessoas bem compreendiam, o
poder gerava dinheiro, e não o contrário. Bens públicos, empréstimos do
Estado ou subsídios passavam directamente das mãos do governo para os
bolsos de um pequeno número de clãs, transitando depois em grande parte
para contas privadas em paraísos fiscais. Com efeito, os novos «capitalistas»
destes países não criaram nada; limitaram-se a branquear bens públicos para
benefício privado.
O nepotismo floresceu, à semelhança do que acontecera no tempo do
comunismo, mas agora com muito mais vantagem para os privados: quando a
Kryvorizhstal, uma das maiores fábricas de aço do mundo – com 42 000
funcionários e um lucro anual bruto de 300 milhões de dólares (num país cujo
salário médio era de 95 dólares por mês) – foi leiloada em Junho de 2004,
ninguém em Kiev ficou surpreendido ao saber que o «licitador» que fora
bem-sucedido era Viktor Pinchuk, um dos homens de negócios mais ricos do
país e genro do presidente ucraniano.
Na Roménia e na Sérvia, os bens públicos sofreram um destino semelhante
ou então não foram de todo vendidos, preferindo os dirigentes políticos locais
ignorar a questão da privatização e manter o seu poder e influência à maneira
antiga. Como aconteceu aos Albaneses, mais ou menos pela mesma altura, os
Romenos que pretendiam as recompensas instantâneas do mercado livre
depararam, em vez disso, com falsos esquemas que prometiam lucros imensos
a curto prazo sem riscos. Exemplo deste tipo de operação foi a fraude
«Caritas», que decorreu de Abril de 1992 a Agosto de 1994 e teve cerca de
quatro milhões de participantes – aproximadamente um quinto da população
romena.
Tal como a privatização «legítima», estes esquemas (que eram comuns
também na Rússia), tinham como objectivo principal a canalização de capital
privado para máfias instaladas em velhas redes do Partido e antigos serviços
de segurança. Entretanto, 14 anos depois da queda de Ceausescu, 66% da
indústria romena era ainda propriedade pública, embora algumas das
empresas mais lucrativas e cobiçadas tenham mudado de mãos. Como seria
de esperar, os investidores estrangeiros recearam durante muitos anos arriscar
o seu capital nestes países: a ausência crónica de protecções legais
sobrepunha-se à perspectiva de lucros substanciais.
Noutras partes da Europa Central, o risco controlado favorecia o
investimento estrangeiro, até porque a perspectiva de adesão à UE estava a
acelerar a legislação e as reformas institucionais necessárias. Ainda assim,
grande parte da privatização na Hungria ou na Polónia consistiu inicialmente
na transformação das actividades de mercado negro da era comunista em
negócios legítimos; ou, em alternativa, numa venda rápida das secções mais
viáveis das empresas públicas a empresários locais, financiados por dinheiro
estrangeiro. Três anos após a revolução, apenas 16% dos activos do Estado
tinham sido vendidos a privados. Na República Checa, um engenhoso
esquema de recibos que oferecia às pessoas a possibilidade de comprar acções
de empresas públicas como que se propunha transformar o país numa nação
de capitalistas: mas o seu principal efeito ao longo dos anos que se seguiram
foi estabelecer os alicerces para escândalos futuros e para um retrocesso
político contra a «especulação» desenfreada.
Uma das razões para a deturpação da privatização na Europa pós-
comunista foi a falta de envolvimento ocidental. Evidentemente, Moscovo ou
Varsóvia viram-se inicialmente inundados de jovens economistas americanos
dispostos a ensinar aos seus anfitriões como construir o capitalismo, e as
firmas alemãs em particular mostraram desde logo interesse em empresas
comunistas relativamente importantes, como a fábrica checa de automóveis
Skoda(14). No entanto, os governos estrangeiros não tomaram parte no
processo, não houve um Plano Marshall nem nada que lhe fosse sequer
semelhante: excepto na Rússia, para onde Washington enviou consideráveis
quantias na forma de donativos e empréstimos para ajudar a reforçar o regime
de Yeltsin – verbas que foram parar aos bolsos dos amigos e apoiantes do
presidente.
O investimento estrangeiro não se assemelhava ao esforço consistente pós-
Segunda Guerra Mundial que ajudou a reconstruir a Europa Ocidental, antes
ao envolvimento desconexo do sector privado que se seguira às resoluções de
Versalhes, investindo nos momentos favoráveis e retirando-se quando a
situação se complicava(15). Assim, tal como no passado, os europeus de Leste
tiveram de competir com o Ocidente num campo claramente desigual, tendo
falta de capital local e de mercados estrangeiros, e sendo capazes de exportar
apenas alimentos e matérias-primas com estreita margem de lucro, ou então
bens industriais e de consumo mantidos a preços reduzidos à custa de salários
baixos e subsídios públicos.
Como se poderia prever, muitos dos novos governos pós-comunistas
sentiram-se tentados, como os seus antecessores de entre-as-guerras, a
defender-se dos custos políticos desta situação instituindo protecções – neste
caso, leis com vista a restringir a posse de terra e empresas por estrangeiros.
Considerados (algo injustamente) por críticos estrangeiros como
«nacionalistas», estes ecos de esforços anteriores tendentes à autonomia
económica não obtiveram grandes resultados: ao inibir o investimento
estrangeiro e ao deformar o mercado local, apenas desviaram o processo de
privatização um pouco mais no sentido da corrupção(16).
Assim, por cada oligarca russo desonesto com uma segunda casa em
Londres ou em Cannes, por cada jovem empresário polaco com um BMW e
um telemóvel, havia milhões de pensionistas decepcionados e trabalhadores
que perderam o lugar, para quem a transição para o capitalismo foi, na melhor
das hipóteses, um benefício ambíguo – já para não mencionar os milhões de
camponeses que não podiam ser reocupados nem ter independência
económica: na Polónia, no final do século XX, a agricultura gerava apenas
3% do PIB, mas ocupava ainda um quinto da população activa. O desemprego
permanecia endémico em muitas regiões – e com a perda do emprego
desapareciam também os serviços a custos reduzidos e outros benefícios que
estavam tradicionalmente ligados ao trabalho nestes países. Com a subida
constante dos preços, quer devido à inflacção(17) ou em antecipação da
entrada na Europa, qualquer pessoa que tivesse um rendimento fixo ou uma
pensão do Estado (o que significava a maior parte dos professores, médicos e
engenheiros que em tempos tinham sido o orgulho do socialismo) tinha boas
razões para se sentir nostálgica.
Muitas pessoas da Europa de Leste – sobretudo as que tinham mais de 40
anos – queixavam-se daquilo que tinham perdido em termos de segurança
material e alimentação, alojamento e serviços a custos reduzidos; mas isso
não significava que desejassem voltar ao comunismo. Como uma engenheira
militar de 50 anos que vivia, com o seu marido pensionista, com um
rendimento mensal de 448 dólares explicou a jornalistas estrangeiros em
2003: «O que queríamos era que a nossa vida fosse tão fácil como era na
União Soviética, com a garantia de um futuro bom e estável e preços baixos –
e, ao mesmo tempo, com esta liberdade que antes não existia.»
As sondagens de opinião dos Letões, que ficariam horrorizados ao
imaginar um regresso ao domínio soviético, sugerem, no entanto, que,
sobretudo os camponeses, estão convencidos de que viviam melhor nos
tempos da URSS. É possível que tenham razão, e talvez o mesmo se aplique a
outras áreas de actividade. Em finais dos anos 80, antes das revoluções, os
europeus de Leste eram ávidos frequentadores dos cinemas. Em 1997, as idas
ao cinema na Letónia tinham caído 90%. O mesmo acontecia nos outros
países – na Bulgária caiu 93%, na Roménia 94%, na Rússia 96%.
Curiosamente, a frequência dos cinemas na Polónia nesses mesmos anos
desceu apenas 77%, na República Checa 71%, na Hungria 51%. Na Eslovénia
a redução foi inexpressiva. Estes dados apontam para uma relação directa
entre a prosperidade e a ida ao cinema, e confirmam a explicação que uma
sondagem efectuada na Bulgária dava para o declínio na frequência dos
cinemas locais: desde o fim do comunismo havia uma melhor oferta de
filmes… mas as pessoas já não podiam comprar os bilhetes.
Dadas as circunstâncias, a difícil e incompleta transformação económica
da Europa de Leste traz à memória uma observação do Dr. Johnson: apesar de
não ter sido bem feito, surpreendemo-nos que tenha sequer sido feito. O
mesmo se pode dizer da transição para a democracia. À excepção da
Checoslováquia, nenhuma das antigas sociedades comunistas de Viena a
Vladivostok tinha memória do que era a genuína liberdade política e muitos
comentadores locais mostravam-se pessimistas relativamente às hipóteses de
uma política pluralista. Se o capitalismo sem enquadramento legal se desvia
inevitavelmente para o roubo, então – na ausência de limites acordados e
compreendidos na retórica pública e na competição política – a democracia
podia correr o risco de cair na demagogia competitiva.
Este era um receio com fundamento. Ao concentrar a informação, a
iniciativa e a responsabilidade nas mãos de um Estado-partido, o comunismo
dera origem a uma sociedade de indivíduos que não só se olhavam com
desconfiança e se mostravam cépticos relativamente a quaisquer declarações
ou promessas oficiais, como também não tinham qualquer experiência em
termos de iniciativa individual ou colectiva, e que não dispunham de qualquer
base para fazer escolhas públicas informadas. Não foi por acaso que a
iniciativa jornalística mais importante nos Estados pós-soviéticos foi o
aparecimento de jornais destinados a veicular informação concreta: Factos e
Argumentos, em Moscovo, Factos, em Kiev.
As pessoas idosas eram as menos preparadas para lidar com a transição
para uma sociedade aberta. A geração mais jovem tinha mais fácil acesso à
informação – através da televisão estrangeira, da rádio e, cada vez mais, da
internet. No entanto, se por um lado isso fez com que muitos eleitores jovens
nos países em questão se tornassem mais cosmopolitas e sofisticados, por
outro criou um afastamento entre estes e os seus pais e avós. Um estudo sobre
os jovens eslovacos efectuado cerca de dez anos após a independência do seu
país revelou um claro desfasamento entre as gerações. Os jovens estavam
totalmente desligados da época anterior a 1989, da qual tinham pouco
conhecimento; queixavam-se, por seu lado, de que os seus pais estavam à
deriva no admirável mundo novo da Eslováquia pós-comunista: não podiam
ajudar nem aconselhar os seus filhos.
Este afastamento entre as gerações teria consequências políticas por todo o
lado, com os eleitores mais idosos e mais pobres revelarem-se periodicamente
vulneráveis aos apelos de partidos que ofereciam alternativas nostálgicas ou
ultranacionalistas ao novo consenso liberal. Como seria de prever, este
problema foi mais acentuado nas regiões da União Soviética onde a
perturbação e o isolamento eram mais graves e a democracia até então
desconhecida. Tremendamente pobres, inseguros e ressentidos com a riqueza
ostensiva de uma pequena minoria, os eleitores idosos – e outros não tão
idosos – da Rússia e da Ucrânia, em especial, sentiam-se particularmente
atraídos por políticos autoritários. Assim, embora tenha sido relativamente
fácil inventar constituições exemplares e partidos democráticos nos territórios
pós-comunistas, no que tocava a formar um eleitorado informado a questão
era bem diferente. Em toda a parte, as eleições iniciais tenderam a favorecer
as alianças liberais ou de direita que tinham estado implicadas na queda do
antigo regime; mas o retrocesso ocasionado pelas dificuldades económicas e a
inevitável decepção funcionou a favor dos antigos comunistas, agora
reciclados sob uma aparência nacionalista.
Esta transformação da velha nomenklatura não era tão estranha como
poderia parecer vista do exterior. O nacionalismo e o comunismo tinham mais
em comum do que qualquer deles com a democracia: partilhavam uma
«sintaxe» política – enquanto o liberalismo era uma língua totalmente distinta.
Quanto mais não fosse, o comunismo soviético e os nacionalistas tradicionais
tinham um mesmo inimigo – o capitalismo, ou «o Ocidente» – e os seus
herdeiros revelar-se-iam exímios em manipular um igualitarismo invejoso
bastante popular («pelo menos dantes éramos todos pobres»), culpando a
interferência externa pelas amarguras pós-comunistas.
Deste modo, não houve nada de particularmente incongruente na
popularidade de Corneliu Vadim Tudor, por exemplo: um famoso autor
bajulador do séquito de Nicolae Ceausescu e que se dedicava a escrever odes
para glória do Conducator antes de trocar o comunismo nacional pelo
ultranacionalismo. Em 1991, financiado por remessas de emigrantes, fundou
o Partido da Grande Romania, cuja orientação política combinava uma
nostalgia irredentista com ataques à minoria húngara e com um anti-
semitismo explícito. Nas eleições presidenciais de Dezembro de 2000, um
terço dos eleitores romenos preferiu Tudor à única alternativa disponível, o
antigo apparatchik comunista Ion Iliescu(18).
Mesmo quando os políticos nacionalistas começaram como críticos do
comunismo – como no caso do movimento «nacional-patriótico» russo
Pamyat («Memória») – passavam depois com relativo à-vontade para uma
aprovação simbiótica do passado soviético, aliando uma espécie de
ressentimento nacionalista à nostalgia pela herança soviética e os seus
monumentos. A mesma combinação de retórica patriótica e saudosismo do
regime autoritarista soviético explicava a popularidade dos novos
nacionalistas na Ucrânia, Bielorrússia, Sérvia e Eslováquia – e tem como
exemplos próximos os vários partidos «populares» e «de camponeses» que
surgiram na Polónia em finais dos anos 90, nomeadamente o Partido de
Autodefesa, de Andrzej Lepper, que conheceu uma forte adesão.
Embora os comunistas reciclados tenham, um pouco por toda a parte, feito
alianças com nacionalistas genuínos(19), o apelo do nacionalismo puro foi
mais forte e duradouro na Rússia, o que não é de admirar: nas palavras de
Vladimir Jirinovsky, uma nova e temperamental figura pública de discurso
inflamado que atraiu o seu eleitorado com base numa assumida xenofobia à
velha maneira russa: «O povo russo tem sido o mais humilhado em todo o
mundo». Independentemente das suas limitações, a União Soviética fora uma
potência mundial: um gigante no que se referia a território e cultura, a
legítima herdeira e extensão da Rússia Imperial. A sua desintegração era fonte
de profunda humilhação para os Russos mais velhos, muitos dos quais
partilhavam da indignação das forças armadas soviéticas perante a absorção
pela NATO da parte da Rússia mais «ocidentalizada» e a impotência do seu
país para a evitar. O desejo de recuperar algum «respeito» internacional
orientou em larga medida a política externa pós-soviética de Moscovo e
explica a natureza da presidência de Vladimir Putin e o amplo apoio com que
este pode contar, apesar (e por causa) da sua política interna cada vez menos
liberal.
Por razões óbvias, os cidadãos do antigo império russo na Europa Central
não estavam inclinados para este tipo de nostalgia. Ainda assim, o mundo
perdido do comunismo exercia alguma atracção na Alemanha de Leste, onde
sondagens efectuadas em meados da década de 90 revelaram a convicção
generalizada de que, excepto no que se referia às viagens, às
telecomunicações e à liberdade de expressão, as pessoas viviam melhor antes
de 89. Noutros países, até os media da era comunista despertavam alguma
afeição – em 2004, o programa mais popular na televisão checa era a
repetição de Major Zeman, uma série policial de princípios dos anos 70 cujo
guião consistia essencialmente em exercícios de propaganda da
«normalização» pós-68.
Foi só na República Checa (contando com a França e os Estados da antiga
URSS) que o Partido Comunista manteve corajosamente o seu nome. Mas em
todos os países pós-comunistas da Europa Central aproximadamente um
quinto dos eleitores apoiava partidos «anti-» semelhantes: antiamericano,
anti-EUA, antiocidental, antiprivatização… ou, como era mais frequente,
todos os atrás mencionados. Nos Balcãs, em particular o «antiamericanismo»
ou «antieuropeísmo» era invariavelmente um código para anticapitalismo, um
disfarce para os ex-comunistas que não podiam expressar abertamente a sua
nostalgia pelos velhos tempos mas que a exploravam da mesma forma nas
suas declarações públicas dissimuladas.
Este voto de protesto ilustrava indirectamente o inevitável consenso que
unia o discurso político dominante: havia apenas um futuro possível para a
região, e esse futuro estava no Ocidente, na União Europeia e no mercado
global. No que dizia respeito a estes objectivos, não havia grandes
divergências entre os partidos principais, os quais ganhariam as eleições à
custa de criticar as políticas «falhadas» dos seus opositores, prosseguindo em
seguida com a implementação de um programa visivelmente idêntico. Na
Europa Central e de Leste, o resultado foi uma nova linguagem «oca» da
política pública – «democracia», «mercado», «défice orçamental»,
«crescimento», «competição» – desprovida de significado ou interesse para a
maioria dos cidadãos.
Os eleitores que queriam registar o seu protesto ou expressar o seu
descontentamento eram impelidos para as franjas. No início da década de 90,
os comentadores viram no aparecimento na Europa pós-comunista de partidos
marginais nacionais-populistas e dos seus líderes demagógicos uma reacção
perigosamente antidemocrática, o recuo atávico de uma região retrógrada
presa durante meio século num desvio do tempo. No entanto, em anos mais
recentes, o sucesso de Jörg Haider na Áustria, de Jean-Marie Le Pen em
França, e de líderes de partidos políticos de orientação semelhante um pouco
por todo o lado, desde a Noruega à Suíça, tem vindo a diluir o tom
condescendente dos observadores da Europa Ocidental. O atavismo não
respeita fronteiras.
O sucesso da democracia política em muitos dos antigos países comunistas
teve consequências ambíguas para os intelectuais que tanto se tinham
esforçado para a instaurar. Alguns, como Adam Michnik na Polónia,
conservaram uma voz influente através do jornalismo. Outros, como Janos
Kis na Hungria, passaram da dissidência intelectual para a política
parlamentar (no caso de Kis como líder dos Democratas Livres) apenas para
regressar à vida académica depois de alguns anos turbulentos na vida pública.
Contudo, na sua maioria, os intelectuais da oposição dos tempos anteriores
não tiveram êxito como políticos pós-comunistas ou figuras públicas, excepto
como exemplos utilizados na transição, e muitos dos que tentaram mostraram-
se incompetentes nas suas funções. Vaclav Havel foi um caso sem paralelo – e
nem ele foi particularmente bem-sucedido.
Como observara, crítico, Edmund Burke a propósito de uma geração
anterior de activistas revolucionários: «Os melhores eram homens só de
teoria». Na sua maior parte, não estavam aptos a lidar com a política confusa
e as questões técnicas da década que se seguia. Foram também incapazes de
lidar com a queda dramática de estatuto público da generalidade dos
intelectuais, uma vez que os hábitos de leitura mudaram e uma geração mais
jovem afastou-se das fontes tradicionais de orientação e opinião. Em meados
dos anos 90, alguns dos jornais outrora influentes de uma geração intelectual
com mais idade tinham-se tornado lamentavelmente marginais.
A Zeszyty Literackie, de Barbara Torunczyck, uma revista literária muito
admirada publicada a partir de Paris por uma exilada polaca da geração de 68,
tinha desempenhado um papel importante ao alimentar o debate cultural
polaco até 1989. Agora, depois de se estabelecer triunfalmente na capital da
sua pátria libertada, a revista debatia-se com dificuldade para manter um
conjunto de cerca de 10 000 leitores. Literární Novin´y, a mais antiga e
influente publicação semanal cultural checa tinha resultados pouco melhores,
com uma circulação de menos de 15 000 exemplares em 1994. Estes
números, em função da população, não seriam de desprezar aos olhos dos
editores de revistas literárias e periódicos na maioria dos países ocidentais;
mas, na Europa Central, o seu lugar cada vez mais marginal representava uma
mudança traumática nas prioridades culturais.
Um dos motivos para o declínio da elite intelectual foi o facto de a sua
ênfase na ética do anticomunismo, a necessidade de construir uma sociedade
civil atenta aos valores morais para preencher o espaço anómico entre o
indivíduo e o Estado ter sido ultrapassada pelas questões práticas inerentes à
construção de uma economia de mercado. Ao fim de poucos anos, a
«sociedade civil» tornara-se uma noção arcaica na Europa Central, um
conceito com interesse apenas para um punhado de sociólogos estrangeiros.
Verificara-se algo de semelhante na Europa Ocidental após a Segunda Guerra
Mundial (ver capítulo 3), quando o registo de elevação moral da Resistência
do tempo da guerra fora reduzido e substituído, primeiro pelas questões
práticas da reconstrução, e depois pela Guerra Fria. Mas enquanto os
escritores franceses ou italianos da época conservavam um público
considerável – em parte graças ao seu envolvimento político bem publicitado
– os autores húngaros ou polacos não tiveram a mesma sorte.
Os intelectuais que efectivamente transitaram com êxito para a vida
pública democrática foram na sua maioria «tecnocratas» – juristas ou
economistas – que não se tinham evidenciado na comunidade dissidente antes
de 1989. Não tendo, até então, desempenhado um papel heróico, eram
modelos mais credíveis para os seus concidadãos igualmente não heróicos.
Pouco depois de ter sucedido a Havel como presidente da República Checa
em 2003, Vaclav Klaus expôs a questão de forma muito simples num
comunicado presidencial: «Eu sou um pouco como vós. Nem um antigo
comunista, nem um antigo dissidente; nem um seguidor do regime, nem um
moralista cuja mera presença em cena relembre a coragem que vós não
tivestes: o vosso sentimento de culpa.»
As alusões ao sentimento de culpa levantavam a questão perturbadora da
retribuição – daquilo que as pessoas tinham feito no passado comunista e
daquilo que lhes poderia acontecer agora (se é que alguma coisa aconteceria).
Este seria um dilema traumático em quase todos os regimes pós-comunistas.
Por um lado, havia um consenso amplamente estabelecido, e não apenas entre
intelectuais moralistas, de que os crimes políticos cometidos na era soviética
seriam divulgados e os seus perpetradores castigados. Se a verdade acerca do
passado comunista não fosse tornada pública, a já difícil transição para a
liberdade seria ainda mais dura: os apologistas do antigo regime poderiam
camuflar as faltas cometidas e as pessoas acabariam por esquecer o que
causara os acontecimentos de 1989.
Por outro lado, em todos estes países os comunistas tinham estado no
poder durante mais de 40 anos – 50 anos nos Estados do Báltico, 70 na União
Soviética. O Estado-partido exercera um monopólio de poder. As suas leis, as
suas instituições e a sua polícia tinham constituído a única força no território.
Quem podia dizer, em retrospectiva, que os comunistas não tinham sido
governantes legítimos? Tinham, inegavelmente, sido reconhecidos como tal
pelos governos estrangeiros, e nenhum tribunal internacional declarara
alguma vez que o comunismo era um regime criminoso. Desta forma, poderia
alguém ser castigado por ter obedecido às leis comunistas ou por ter
trabalhado para o Estado comunista?
Além disso, alguns dos que mais alto clamavam por vingança contra a
tirania comunista eram eles próprios de procedência duvidosa – o
anticomunismo, no clima confuso do início da década de 90 coincidia muitas
vezes com uma certa nostalgia dos regimes que os comunistas tinham
substituído. Nem sempre seria fácil separar a condenação do comunismo da
recuperação dos seus antecessores fascistas. Muitas pessoas de bom senso
reconheceram que seria necessário estabelecer limites dentro da era
estalinista: era demasiado tarde para castigar aqueles que tinham colaborado
nos golpes e nos julgamentos encenados e nas perseguições dos anos 50, e a
maior parte das suas vítimas estava morta.
Esses assuntos deveriam ser deixados para os historiadores, que teriam
agora acesso aos arquivos e que poderiam contar toda história para benefício
das gerações futuras. Relativamente às décadas pós-estalinistas, todavia, havia
o acordo generalizado de que deveria existir alguma forma de ajuste de contas
público dos crimes e criminosos mais flagrantes: os líderes comunistas checos
que tinham contribuído para pôr fim à Primavera de Praga; os polícias
polacos responsáveis pelo assassínio do padre Popieluszko (ver capítulo 19);
as autoridades da Alemanha de Leste que ordenaram que se abatesse a tiro
quem tentasse escalar o muro de Berlim, e assim por diante.
Contudo, ficaram por resolver dois dilemas bem mais difíceis. Que se
devia fazer com os antigos membros do Partido Comunista e com a polícia
oficial? Se não eram acusados de crimes específicos, deveriam sofrer algum
castigo pelos seus actos passados? Deveria ser-lhes permitida a participação
na vida pública – como agentes da polícia, políticos ou até como primeiros-
ministros? Por que não? Afinal, muitos deles tinham colaborado activamente
do desmantelamento do seu próprio regime. Mas, caso contrário, se fossem
definidas restrições ao nível dos direitos cívicos ou políticos dessas pessoas,
então, por quanto tempo deveriam essas restrições ser aplicadas e até que
nível da nomenklatura deveriam ir? Estas questões assemelhavam-se àquelas
com que depararam as forças aliadas aquando da ocupação da Alemanha do
pós-guerra, tentando aplicar o seu programa de desnazificação – excepto que
no período após 1989 as decisões estava a ser tomadas, não por um exército
de ocupação, mas pelos partidos directamente implicados.
Esta era uma das situações delicadas. A segunda revelou-se, em certos
aspectos, mais complicada ainda, tendo surgido apenas com o decorrer do
tempo. Os regimes comunistas não se limitaram a impor o seu domínio sobre
uma população relutante; encorajaram também as pessoas a conspirar na
repressão, colaborando com os serviços de segurança e relatando as
actividades e opiniões dos seus colegas, vizinhos, conhecidos, amigos. A
amplitude desta rede subterrânea de espiões e informadores variava de país
para país, mas estava presente em todo o lado.
Em consequência desta prática, toda a sociedade estava sob suspeita
(quem é que não teria trabalhado para a polícia ou para o regime em dado
momento, nem que apenas inadvertidamente?). Da mesma forma, tornava-se
difícil distinguir a colaboração venal ou mercenária da simples covardia ou
até do desejo de proteger a própria família. O preço de uma recusa em
informar a Stasi poderia ser o futuro dos filhos. O véu cinzento da
ambiguidade moral recaía assim sobre muitas das escolhas pessoais de
indivíduos impotentes(20). Em retrospectiva, quem – para além de um
punhado de dissidentes heróicos e resolutos – poderia julgar os outros? E é
notável que muitos desses mesmos antigos dissidentes – entre os quais se
destaca Adam Michnik – tenham sido aqueles que mais se opuseram a
qualquer forma de retaliação para com os seus concidadãos.
Embora estas dificuldades fossem comuns a todos os Estados pós-
comunistas, cada país lidou com a situação à sua maneira. Em lugares onde
nunca se verificou uma verdadeira transição – onde os comunistas ou os seus
amigos se mantiveram no poder sob uma nova nomenclatura e com objectivos
«ocidentais» branqueados – o passado não foi tocado. Na Rússia, como na
Ucrânia, na Moldova, ou naquilo que restou da Jugoslávia, a questão do
castigo nunca se colocou realmente e funcionários de altos cargos do antigo
regime foram silenciosamente reciclados e recolocados no poder: metade do
gabinete informal do presidente Vladimir Putin é constituída por siloviki
(promotores públicos, polícia e pessoal militar ou de segurança) da era
comunista.
Por outro lado, na Alemanha, as revelações acerca da amplitude e do
alcance da burocracia da segurança do Estado tinham espantado a nação.
Descobriu-se que, para além dos seus 85 000 funcionários a tempo inteiro, a
Stasi tinha aproximadamente 60 000 «colaboradores não oficiais», 110 000
informadores regulares e mais de 500 000 informadores a «tempo parcial»,
muitos dos quais não tinham forma de saber sequer que integravam essa
categoria(21). Maridos espiavam as mulheres, professores denunciavam os
alunos, padres davam informações acerca dos seus paroquianos. Constavam
dos arquivos 6 milhões de residentes na antiga Alemanha de Leste, um terço
da população total. Toda a sociedade tinha sido infiltrada, desintegrada e
poluída pelos que se auto-intitulavam seus guardiões.
Para acabar com o clima de medo e suspeita, em Dezembro de 1991, o
governo federal designou uma comissão chefiada pelo antigo pastor luterano
Joachim Gauck com o objectivo de inspeccionar os arquivos da Stasi e evitar
que estes fossem violados. Cada indivíduo podia averiguar se tinha um
«processo» e depois, caso o desejasse, era-lhe permitido lê-lo. As pessoas
ficavam assim a saber – por vezes à custa de consequências domésticas
devastadoras – quem tinha andado a informar a seu respeito; mas o material
não foi dado a conhecer ao público em geral. Tratou-se, com efeito, de um
compromisso algo invulgar, mas a sua aplicação foi bastante bem-sucedida:
em 1996, 1145 000 pessoas tinham pedido para ver os seus ficheiros. Não
havia como desfazer os danos humanos, mas existindo a confiança de que não
haveria abuso de poder por parte da Comissão Gauck, a informação que esta
controlava quase não foi utilizada para proveito político.
Foi precisamente o receio de tal utilização que inibiu práticas semelhantes
na Europa de Leste. Na Polónia, as acusações de colaboração no passado
tornaram-se uma forma comum de desacreditar opositores políticos – em
2000, o próprio Lech Walesa foi acusado de colaborar com os antigos
serviços especiais, apesar de a acusação nunca ter vingado. Um ministro do
Interior pós-comunista chegou inclusivamente a ameaçar publicar os nomes
de todos os seus opositores políticos que estavam manchados pela
colaboração. Foi por temerem este tipo de comportamento que Michnik e
outros tinham preferido simplesmente riscar o passado comunista e seguir em
frente. Em conformidade com este ponto de vista, Michnik opôs-se mesmo
aos esforços empreendidos em 2001 para julgar o antigo presidente comunista
Jaruselski (então com 78 anos de idade) por ter ordenado em 1970 que
disparassem sobre trabalhadores em greve. Em 1989, a memória recente da lei
marcial e as suas consequências fizeram com que parecesse insensato
desvendar o passado e atribuir culpas; na altura em que já não seria arriscado
fazê-lo, a oportunidade passara, a atenção popular concentrara-se noutras
questões e a procura tardia de justiça retroactiva ganhava contornos de
oportunismo político.
Na Letónia foi decretado que qualquer pessoa com anterior envolvimento
no KGB ficaria impedida de exercer cargos públicos durante dez anos. A
partir de 1994, e seguindo o modelo alemão, os cidadãos da Letónia passaram
a ter acesso aos seus próprios processos policiais da era comunista; mas o
conteúdo destes apenas era divulgado publicamente no caso de a pessoa se
candidatar a um cargo público ou procurar emprego no sistema judicial. O
novo governo da Bulgária, inspirando-se na prática pós-Vichy em França,
estabeleceu tribunais com autoridade para impor a «degradação cívica» aos
culpados de alguns crimes associados ao regime anterior.
Na Hungria, o papel benigno do Partido Comunista ao sair do poder fez
com que se tornasse difícil justificar a exoneração ou o castigo por crimes do
passado – sobretudo porque na Hungria pós-Kadar o principal ponto de
contenda era, claro, 1956, uma data que em breve seria história muito antiga
para a maioria da população. Na vizinha Roménia, onde havia de facto
motivos recentes de sobra para retaliação, os esforços para criar uma versão
local da Comissão Gauck depararam durante vários anos com a oposição
firme da elite política pós-comunismo, dado que muitos dos seus ilustres
membros (a começar pelo próprio presidente Iliescu) seriam certamente
implicados em qualquer inquérito rigoroso sobre as actividades do regime de
Ceausescu. Por fim, foi inaugurado um «Conselho Nacional para a
Investigação dos Arquivos ‘Securitate’», o qual nunca pôde, no entanto,
aspirar à autoridade do original alemão.
Em nenhum destes países o ajuste de contas com o passado comunista
chegou a ser resolvido a contento de todos, nem de forma absolutamente
justa. No entanto, na Checoslováquia, a solução adoptada suscitou uma
controvérsia que ultrapassou as fronteiras do país. Ali, o estalinismo chegara
mais tarde e durara mais do que em qualquer outra parte, e a memória
desagradável da ‘normalização’ estava ainda bem viva. Ao mesmo tempo, o
comunismo tinha uma base política mais sólida na região checa do que em
qualquer outro ponto da Europa de Leste. Por último, havia um certo
desconforto nacional perante a memória dos vários aparentes fracassos da
Checoslováquia em opor resistência à tirania – em 1938, em 1948 e depois de
1968. Por uma ou outra razão, todo o país (no parecer dos seus próprios
críticos mais intransigentes) padecia de um sentimento de culpa. Vaclav Klaus
sabia do que falava.
A primeira legislação checoslovaca pós-comunista – uma lei de 1990 que
ilibava todos os que tinham sido condenados ilegalmente entre 1948 e 1989, e
que pagava 100 milhões de euros em indemnizações – não se revelou
polémica. Foi, contudo, seguida de uma lei da «lustração»(22) (renovada por
cinco anos em 1996, e novamente renovada quando expirou no início do
século XXI), que tinha por objectivo rejeitar todos os funcionários públicos
ou futuros funcionários públicos com ligação aos antigos serviços de
segurança. No entanto, este objectivo aparentemente legítimo criou
numerosas oportunidades de corrupção. Veio-se a saber que muitos dos nomes
encontrados nas listas de informadores da antiga polícia secreta diziam apenas
respeito a «candidatos»: homens e mulheres que o regime queria forçar a
colaborar. Incluíam vários dos escritores checos mais famosos, alguns dos
quais nem sequer residiam no país.
As listas da polícia secreta depressa caíram nas mãos da imprensa, sendo
publicadas e publicitadas por políticos e candidatos ao parlamento com a
intenção de desacreditar os seus oponentes. No decorrer deste processo sujo, o
próprio Havel foi mencionado como tendo uma vez sido candidato ao
recrutamento para a rede de espiões da polícia. E, como alguns críticos
tinham alertado, embora os arquivos da polícia secreta facultassem dados
abundantes acerca dos possíveis candidatos, mantinham-se todavia
silenciosos relativamente às identidades dos polícias que procediam ao
recrutamento. Um cartoon no diário Lidové Novin´y mostrava dois homens a
conversar em frente do parlamento em Praga: «Não estou preocupado com
exonerações», diz um deles. «Eu não era informador. Limitava-me a dar as
ordens»(23).
A exoneração não era um processo penal, mas causava sérios embaraços a
muitas das suas vítimas injustamente mencionadas e humilhadas. Mais grave
é, talvez, o facto de ter sido usado logo de início e de modo evidente como
instrumento político. Foi uma das questões que determinaram o
desmembramento da aliança Fórum Cívico – dissidentes de longa data
(incluindo Havel) opuseram-se à nova lei, enquanto Klaus a apoiou
entusiasticamente como forma de esclarecer «quem se encontrava onde» (e
colocar numa posição embaraçosa os seus críticos ex-dissidentes, alguns dos
quais antigos comunistas reformistas). Será de referir que Vladimir Meciar na
Eslováquia também se opôs à lei da lustração, não menos devido aos rumores
que o apontavam como tendo ligação à antiga polícia secreta – embora depois
de ter conduzido o seu país à independência Meciar se tenha repetidamente
servido da informação dos arquivos policiais para os seus próprios fins
políticos.
Nos primeiros 12 anos da sua aplicação, a lei da lustração teve poucas
consequências directas. Foi aplicada a cerca de 300 000 pessoas, que
recorreram para ver o seu nome ilibado: cerca de 9000 destes pedidos foram
indeferidos, um número surpreendentemente pequeno quando comparado
com os cerca de 500 000 Checos e Eslovacos que perderam os seus empregos
ou foram expulsos do Partido depois de 1968. Mas o impacto mais duradouro
da legislação foi o gosto amargo que deixou atrás de si, contribuindo para um
cinismo generalizado na sociedade checa relativamente à forma como a
«revolução de veludo» terminou. Na República Checa, a «lustração» teve
mais a ver com a legitimação de uma elite que procurava estabelecer-se do
que com o tratamento honesto do passado.
Em Julho de 1993, o parlamento checo adoptou uma lei relativa à
ilegalidade do Partido Comunista e à resistência ao mesmo, declarando-o uma
organização criminosa. Em teoria, esta lei deveria ter criminalizado milhões
de antigos membros do Partido mas o seu impacto foi puramente retórico e
não teve qualquer consequência prática. Em vez de desacreditar o comunismo
e de legitimar o seu derrube, a lei serviu apenas para acentuar o
distanciamento céptico do público a quem se dirigia. Dez anos depois desta
lei ter sido aprovada, sondagens de opinião revelaram que um em cada cinco
eleitores checos preferia o Partido Comunista, sem reformas aplicadas (e
perfeitamente legal), o qual continuava a ser a maior organização política do
país, com 160 000 militantes.
-
(1) Zagreb, Belgrado e Skopje (a capital da Macedónia) contavam-se entre as cidades da Europa
Central de crescimento mais rápido entre 1910 e 1990.

(2) «Mataremos alguns Sérvios, deportaremos outros, e obrigaremos os restantes a abraçar o


catolicismo» – palavras do ministro Ustashe da Religião em Zagreb, 22 de Julho de 1941.

(3) Numa visita a Skopje destinada a «apurar os factos», imediatamente após a guerra de 1999 no
Kosovo, o autor do presente livro foi «confidencialmente» informado pelo primeiro-ministro da
Macedónia de que os Albaneses (incluindo o seu próprio colega de governo que acabara de sair da sala)
não eram de confiança: «Não se pode acreditar em nada do que eles dizem – eles, simplesmente, não
são como nós. Não são cristãos.»

(4) Não era esta, naturalmente, a perspectiva dos Croatas e outros, que apontavam o domínio por
parte dos Sérvios do exército nacional (em 1984, 60% do efectivo militar era sérvio, reflectindo a
presença sérvia na população em geral, o que não tornava a situação mais tranquilizadora), e a
desproporção do investimento e da despesa federal de Belgrado.

(*) «O Kosovo é a vossa Argélia no Orléanais» [região no centro do território francês] (N. R.).

(5) Uma vez que a identidade étnica na Jugoslávia não podia ser definida em função da aparência ou
da língua, as milícias contavam com as denúncias dos camponeses pelos seus vizinhos – frequentemente
famílias com quem tinham vivido em paz, de quem por vezes tinham sido amigos durante anos ou
décadas.

(6) Entre 1992 e 1994, as agências da ONU nos Balcãs foram praticamente cúmplices dos Sérvios-
bósnios – permitindo-lhes, por exemplo, um veto efectivo sobre tudo e todos os que podiam entrar e sair
da cidade sitiada de Sarajevo.

(7) A França fez questão de que o acordo fosse assinado em Paris – um exercício de excessiva
compensação que apenas tornou mais evidente a anterior relutância dos Franceses em agir contra os
Sérvios.
(8) A Força de Estabilização da NATO foi substituída pela EUFOR da União Europeia a 2 de
Dezembro de 2004.

(9) O idoso primeiro-ministro grego Papandreou, manipulando o sentimento nacionalista para obter
vantagem eleitoral, defendia que o termo «Macedónia» fazia parte da antiga herança do seu país e que
podia apenas aplicar-se à região mais a norte da Grécia. Se o Estado eslavo do Sul da antiga Jugoslávia
reclamava para si esse nome, então devia ter ambições irredentistas. Papandreou recusava-se a aceitar
que muitos dos «Gregos» da Macedónia grega eram eles próprios de ascendência eslava, ainda que
oficialmente helenizados para fins patrióticos.

(10) No Inverno de 1996, na sequência dos resultados visivelmente fraudulentos nas eleições
regionais, os estudantes sérvios manifestaram-se durante três meses nas ruas de Belgrado, protestando
contra a ditadura de Milosevic e exigindo uma mudança. Não obtiveram, no entanto, qualquer apoio ou
encorajamento por parte das potências ocidentais, as quais viam em Milosevic um elemento
estabilizador nos anos pós-Dayton e nada fizeram para enfraquecer a sua posição.

(11) E à semelhança do que se verificou aquando da atrocidade de Sarajevo, Belgrado e os seus


apologistas afirmaram, primeiro, que tal nunca acontecera, e depois, quando esta versão se tornou
insustentável, que se tratara de uma «provocação» encenada pelas próprias vítimas.

(12) O desempenho de Janvier levou a que várias pessoas, em França e não só, o apontassem como
co-responsável pelo massacre, insistindo para que se procedesse a uma acusação formal.

(13) No seio de uma geração mais jovem, voltada para o mundo dos negócios e impaciente por
escapar ao passado incómodo do seu país, deu até origem a um novo conformismo em substituição da
inflexível linguagem pública do comunismo: uma adulação acrítica dos mantras da economia
neoclássica, felizmente postos a nu por se saber qual o seu custo social.

(14) Dando origem a impulsos nacionalistas perante a perspectiva de Praga ser reabsorvida na esfera
de influência da Alemanha unificada – e a uma piada popular:
– Tenho más notícias e boas notícias acerca das expectativas da Checoslováquia pós-comunista.
– Quais são as boas notícias?
– Os Alemães estão a chegar!
– E as más notícias?
– Os Alemães estão a chegar.

(15) Uma notável excepção em toda esta história é a Estónia, que beneficiou extraordinariamente da
sua «adopção» por parte dos vizinhos escandinavos. Em 1992, quando deixou a zona do rublo, 92% do
comércio da Estónia efectuava-se com a antiga União Soviética. Cinco anos mais tarde, mais de três
quartos desse comércio processava-se com o Ocidente, grande parte do qual com o outro lado do
Báltico.

(16) E da ineficácia – uma ironia do ritual da privatização na Europa de Leste consistiu no facto de
as explorações agrícolas colectivas terem sido divididas em pequenos terrenos, o que impossibilitava o
uso de tractores e levou a que todo o trabalho tivesse de ser feito manualmente.

(17) Estima-se que a inflação na Ucrânia pós-comunista tenha atingido uma taxa anual de 5371% em
1993.

(18) Contudo, a Roménia é talvez um caso único. Nas eleições autárquicas de 1998, o Partido dos
Trabalhadores Romenos revestiram a cidade de cartazes de Nicolae Ceausescu, onde se lia: «Mataram-
me. Estás a viver melhor? Lembra-te de tudo o que eu fiz pelo povo romeno.»

(19) E até, ocasionalmente, com fascistas que não abdicaram da sua causa, nostálgicos dos bons
velhos tempos da Segunda Guerra Mundial.

(20) Embora talvez não fosse o caso das atitudes em proveito próprio de alguns escritores
proeminentes – que não teriam arriscado muito ao recusar os seus serviços: por exemplo, Christa Wolf,
cuja ambivalência literária, tão apreciada, parece menos fascinante à luz de revelações posteriores da
sua colaboração com a Stasi.

(21) A título de comparação, em 1941 a Gestapo tinha menos de 15 000 funcionários para policiar
toda a Grande Alemanha.

(22) Do checo lustrace, que significa «trazer à luz», apesar de a tradução encerrar também a
conotação de exoneração.

(23) Fico em dívida para com o Dr. Jacques Rupnik pela referência.
XXII

A Europa Antiga – e a Nova


«É inevitável perguntarmo-nos por que razão a Europa parece incapaz de agir
de forma determinada no seu próprio teatro.»
Richard Holbrooke
« Si c’était à refaire, je commencerais par la culture. (Se fosse possível voltar
atrás, eu começaria pela cultura).»
Jean Monnet
«É sempre possível unir um número considerável de pessoas numa relação de
amor, desde que restem outras pessoas para receber as suas manifestações de
agressividade.»
Sigmund Freud
«Qual é a explicação para esta curiosa combinação de desemprego
permanente de 11 por cento da população com um sentimento geral de
relativa prosperidade por parte da maioria dos habitantes?»
Beatrice Webb (1925)
O clima político de cisão dos anos 90 não se confinava aos países do
antigo Leste comunista. O mesmo impulso de escapar aos laços do poder
centralizado – ou de abrir mão da responsabilidade por concidadãos pobres
em regiões distantes – foi também sentido no Ocidente. De Espanha ao Reino
Unido, as unidades territoriais estabelecidas da Europa Ocidental foram alvo
de uma descentralização administrativa sistemática, embora todas tenham
conseguido manter em traços gerais pelo menos a forma convencional do
Estado nacional.
Em alguns lugares, esta tendência centrífuga emergira já algumas décadas
antes, como vimos no capítulo 16. Em Espanha, onde a autonomia há muito
exigida pela Catalunha ou pela região basca fora reconhecida pela nova
Constituição, a Catalunha, em particular, adquirira no espaço de uma geração
os contornos de um Estado-dentro-do-Estado, com a sua própria língua, as
suas instituições e os seus conselhos governativos. Graças a uma Lei de
Normalização Linguística (sic) de 1983, o catalão viria a tornar-se a «língua
dominante no ensino»; dez anos mais tarde, a Generalitat (parlamento
catalão) decretou o uso exclusivo do catalão nos jardins de infância e no
ensino pré-escolar. Como seria de esperar, embora o uso do castelhano se
tenha mantido em todo o país, muitos jovens começaram a falar catalão de
modo mais fluente.
Nenhuma das restantes regiões autónomas espanholas viria a adquirir este
nível de diferenciação nacional, mas também nenhuma delas tinha o mesmo
peso no país. Em 1993, a Catalunha, uma das 17 regiões espanholas,
contribuía com um quinto do PNB. Mais de um quarto de todo o investimento
estrangeiro em Espanha vinha para a Catalunha, grande parte dele para a sua
próspera capital, Barcelona; o rendimento per capita na província como um
todo situava-se mais de 20% acima da média nacional. Se fosse um país
independente, a Catalunha estaria entre as nações mais prósperas do
continente europeu.
Uma das razões que determinavam a afirmação de uma identidade
caracteristicamente catalã era um ressentimento particularmente inflamável
face ao contributo substancial que os Catalães deveriam dar para o tesouro
nacional, em parte graças à criação em 1985 de um Fundo de Compensação
Interterritorial destinado a auxiliar as regiões mais pobres de Espanha. No
entanto, a Catalunha – como o País Basco, a Galiza, Navarra e outras
províncias que cada vez mais afirmavam a sua autonomia – também
beneficiava de um «esvaziamento» da identidade espanhola. Franco explorara
até à exaustão todos os emblemas nacionais tradicionais – a glória do império,
a honra das forças armadas, a autoridade da Igreja Espanhola – e, depois da
sua queda, poucos Espanhóis tinham interesse na retórica da herança ou da
tradição.
Na verdade, à semelhança de uma geração anterior de Alemães educados
numa época de pós-autoritarismo, os Espanhóis sentiam-se pouco à vontade
com a sua identidade nacional. Por outro lado, a identificação regional ou
provincial estava livre da mácula da associação autoritária: pelo contrário,
fora um alvo preferencial do regime e podia por isso ser apresentada como um
aspecto integral da transição para a democracia. Esta associação entre
autonomia, separatismo e democracia era menos evidente no caso do País
Basco, onde a ETA prosseguia a sua actividade criminosa (indo ao ponto de
preparar atentados contra o rei e o primeiro-ministro em 1995). Além disso,
enquanto os seis milhões de Catalães prosperavam, as velhas regiões
industriais do País Basco estavam em declínio. O desemprego atingia
proporções críticas e os níveis de rendimento na região eram mais baixos do
que na Catalunha, aproximando-se da média nacional.
Se os nacionalistas bascos não aproveitaram estes problemas, tal deveu-se
em larga medida ao facto de dois milhões dos habitantes da região serem
novos na província – em 1998 só um quarto da população sabia falar Euskera,
a língua basca. Não admirava, pois, que revelassem pouco interesse por
movimentos separatistas: apenas 18% dos Bascos se mostraram a favor da
independência, preferindo a autonomia regional que já tinham assegurada. A
maioria dos eleitores do Partido Nacional Basco partilhava, inclusivamente,
desta posição. Quanto ao Herri Batasuna, o braço político da ETA, vinha
perdendo votos para autonomistas moderados e até para os principais partidos
espanhóis. No final da década, vira-se reduzido a um partido marginal,
escolhido por Verdes descontentes, feministas, marxistas e grupos
antiglobalização.
Em Espanha, a natureza fragmentária do Estado-nação era determinada
por memórias do passado. Em Itália, resultava sobretudo da insatisfação face
ao presente. As regiões tradicionalmente dissidentes de Itália encontravam-se
no extremo norte: zonas fronteiriças onde a população local se vira abrangida
pela identidade italiana – muitas vezes devido à guerra e quase sempre contra
a sua vontade – e onde muitos dos habitantes falavam ainda francês, alemão
ou esloveno em detrimento do italiano. O descontentamento que se fazia
sentir nestas zonas fora atenuado graças a uma série de acordos que
estabeleceram regiões autónomas: Val d’Aosta, no noroeste alpino, onde
convergem a Itália, a França e a Suíça; Trentino-Alto Adige, adjacente ao
Tirol austríaco; e Friuli-Venezia Giulia, terras habitadas por diferentes etnias
que confinam com a Jugoslávia (mais tarde com a Eslovénia). Estas regiões
beneficiaram também (como vimos já no caso do Alto Adige) de um conjunto
de subsídios regionais e outras formas de incentivo por parte da União
Europeia em Bruxelas. Nos anos 90, com o passar do tempo e a ajuda do
turismo alpino, as regiões fronteiriças do Norte de Itália tinham esmorecido
do ponto de vista político: bolsas regionais num continente regionalizado.
O seu lugar fora, contudo, ameaçado por uma forma sem dúvida mais
grave de separatismo regional. Desde 1970, no cumprimento tardio daquilo
que ficara estipulado na Constituição pós-guerra, a Itália fora subdividida em
15 regiões, a acrescentar às cinco províncias autónomas (os três distritos junto
à fronteira juntamente com a Sardenha e a Sicília). Era certo que não faltavam
precedentes: Piemonte, Umbria ou Emilia tinham, pelo menos, um argumento
forte na distinção histórica, como a Catalunha ou a Galiza, e embora as
diferenças linguísticas regionais, tão evidentes algumas décadas antes, se
tivessem atenuado, não tinham desaparecido por completo.
Mas as novas regiões da Itália – ao contrário das de Espanha – eram, em
larga medida, uma ficção administrativa. Por muito que se gabassem dos seus
próprios conselhos e autoridades eleitos – e apesar de darem emprego a
muitas pessoas – as unidades regionais da Itália nunca poderiam sobrepor-se à
identificação ultralocal dos Italianos com a sua aldeia ou cidade natal, nem
vencer o alcance político e, sobretudo, financeiro da capital. O que o
estabelecimento de regiões conseguiu efectivamente foi relembrar aos
Italianos a divisão fundamental e contínua entre o Norte próspero e o Sul
dependente – e proporcionar expressão política aos ressentimentos que daí
advinham.
O resultado foi o aparecimento de algo inédito, pelo menos na realidade
italiana: o separatismo dos prósperos. O Norte italiano – especialmente os
centros urbanos do Piemonte e da Lombardia, com forte actividade industrial
e empresarial, e as explorações agrícolas e as pequenas empresas de Bolonha
e o seu interior – era, havia várias décadas, consideravelmente mais rico do
que o resto do país, e a distância que os separava agravava-se. Em finais da
década de 80, o produto regional bruto per capita na região da Lombardia em
redor de Milão correspondia a 132% da média nacional: na Calábria, situada
na ponta da bota da Itália, era de 56%. A taxa de pobreza no Mezzogiorno em
finais dos anos 80 era o triplo da que apresentava o Norte da Itália. Enquanto
o Norte e o Norte-Centro do país se equiparavam, em termos de riqueza e
serviços, à França ou à Grã-Bretanha, o Sul apresentava uma contínua
recessão; daqui resultava um desfasamento apenas atenuado por substanciais
transferências de dinheiro.
Ao longo da década de 80, uma nova aliança política, a Liga Lombarda
(mais tarde, Liga do Norte, Lega Nord), cresceu com base na convicção
generalizada de que o «Sul» era há demasiado tempo sustentado pela riqueza
do Norte. Segundo defendia o carismático fundador e líder da Liga, Umberto
Bossi, a solução era retirar a Roma os seus poderes fiscais, separar o Norte do
resto da Itália e reclamar a independência para a Lombardia e as regiões suas
vizinhas, deixando a cauda empobrecida e «parasita» do país entregue a si
própria. A semelhança relativamente à Catalunha (ou à Eslovénia, ou até à
República Checa liderada por Vaclav Klaus) é bem patente.
Nas eleições legislativas dos anos 90, a Liga do Norte conseguiu votos
suficientes na Lombardia e no Veneto para garantir um lugar importante nas
coligações de governo conservadoras. Ironicamente, a influência da Liga no
meio político dependia, no entanto, da sua aliança com o movimento Forza
Italia de Silvio Berlusconi e com a Aliança Nacional de Gianfranco Fini –
que dependiam ambos (especialmente o último) do apoio dos eleitores pobres
e subsidiados do Sul, tão desprezados pela Liga. Mas apesar destas antipatias
recíprocas e das ilusões de alguns dos apoiantes mais ousados de Bossi, a
divisão da Itália ou a independência de qualquer uma das suas províncias
nunca esteve seriamente em causa.
O mesmo acontecia em França, onde a presidência de Mitterrand levou a
cabo uma descentralização administrativa moderada e iniciou alguns esforços
pouco consistentes para dispersar instituições e recursos pelas províncias.
Entre as novas unidades regionais estabelecidas, nem sequer a Alsácia ou as
zonas francesas de influência basca demonstraram grande interesse em cortar
laços com Paris, apesar das suas identidades históricas distintas. Só a ilha da
Córsega conheceu um progressivo movimento favorável à separação nacional,
baseado numa consciência genuína da sua singularidade histórica e
linguística, e na ideia pouco plausível de que a ilha poderia prosperar com a
independência face ao continente. Contudo, à semelhança do que se
verificava com a ETA, a apetência dos nacionalistas corsos pela violência (e
pelos ajustes de contas entre famílias) privava-os do apoio popular.
Característico do caso francês, enquanto no resto da Europa políticos e
comentadores louvavam as virtudes da autonomia e do autogoverno local, em
França, pelo contrário, até os mais ténues indícios de separatismo regional
desencadeavam em Paris uma avalanche de desdém neojacobino por todo o
espectro político. Por outro lado, as províncias francesas com maior noção de
diferença – a Bretanha, por exemplo, ou as montanhas despovoadas no Alto
Languedoc – eram também há muito as mais dependentes dos apoios
governamentais. Desde gastos com infra-estruturas, como linhas férreas de
alta velocidade, a benefícios fiscais para investimento interno, tudo vinha de
Paris, e os separatistas bretões ou occitanos (na sua maioria militantes idosos,
perdidos na esteira dos entusiasmos da década de 60) nunca alcançaram apoio
substancial. Por outro lado, regiões mais ricas, como Alpes-Rhône, à volta de
Lyon e Grenoble, podiam ter prosperado sozinhas: mas tinham há muito
perdido qualquer memória de independência e não tinham aspirações a
recuperá-la.
Contudo, do outro lado do Canal da Mancha, a minoria celta – apesar da
sua forte dependência de Londres – passara por uma espécie de revivalismo
nacional. No País de Gales, este processo assumiu sobretudo uma forma
cultural, com uma crescente pressão para se usar o galês no ensino e na
comunicação social. Foi só nas regiões mais montanhosas e de menor
densidade demográfica do Norte do País de Gales que o movimento pela
independência total, conforme expresso pelo partido nacionalista Plaid
Cymru, obteve reacções favoráveis. Com melhores vias de acesso a Inglaterra
e ligações políticas bem estabelecidas ao movimento sindical nacional e aos
partidos Liberal e Trabalhista, o Sul urbano manteve-se à margem das
ambições nacionalistas dos habitantes do Norte.
Assim, apesar de os candidatos do Plaid Cymru terem sido relativamente
bem-sucedidos nas eleições legislativas de 1974, tendo aí assegurado uma
presença modesta mas visível desde então, nunca conseguiram levar os seus
compatriotas a aderir à causa nacionalista. Da minoria de eleitores galeses que
votou nas eleições de Março de 1979 para decidir a transferência de poder
para as assembleias regionais, a maioria era contra. Quando essa transferência
aconteceu de facto no País de Gales, duas décadas mais tarde, não ficou a
dever-se aos nacionalistas locais, mas a uma restruturação administrativa
levada a cabo pelo primeiro governo trabalhista de Tony Blair – que calculou,
astutamente, que os poderes conferidos a um novo parlamento galês em
Cardiff cairiam certamente nas mãos das mesmas pessoas que agora os
exerciam em Westminster.
O resultado – uma assembleia galesa com considerável valor simbólico
mas escasso poder na realidade – satisfez, ao que tudo indica, qualquer
reivindicação de identidade nacional autónoma que eventualmente existisse
no principado. Afinal, o País de Gales fora integrado na Inglaterra em 1536,
durante o reinado de Henrique VIII – ele próprio descendente de uma dinastia
galesa –, e embora se verificasse efectivamente um interesse renovado na sua
língua e na sua história, tal não deveria ser confundido com uma recuperação
de consciência nacional em larga escala. Se havia ódios ou ressentimentos
latentes na vida pública galesa, estes deviam-se a razões de ordem económica,
não a aspirações nacionais frustradas. Se lhes fosse dado a escolher entre um
País de Gales independente e a recuperação, sob o domínio inglês, das minas,
vilas e portos devastados pela desindustrialização e pelo desemprego, muito
poucos Galeses teriam hesitado.
No que se referia à Escócia, a questão era bem diferente. Também aí o
declínio das velhas indústrias tivera um preço elevado; mas o Partido
Nacional Escocês, que surgira na década de 70, podia contar com uma parcela
dos votos locais quatro vezes superior à dos seus vizinhos galeses. Duas
décadas após a sua entrada na cena política como um partido «de uma só
causa» nas eleições de 1974 – em que elegeu 11 membros para o parlamento
–, o Partido Nacional ultrapassara os Conservadores e ameaçava alguns
bastiões trabalhistas. Ao contrário dos Galeses, os eleitores da Escócia eram
de facto a favor da transferência de poder; e embora tenham tido de esperar
até 1997, o parlamento escocês em Edimburgo fala indiscutivelmente em
nome de um país que se considera uma nação à parte, se não mesmo um
Estado.
O nacionalismo escocês beneficiou simultaneamente da descoberta casual
de petróleo e gás no Mar do Norte – que trouxe prosperidade a Aberdeen e ao
Nordeste – e das políticas regionais da CE, que permitiram aos
administradores e empresários escoceses contornar Londres e aceder
directamente a Bruxelas. No entanto, a Escócia, apesar de unida à Inglaterra
por uma Lei de União de 1707, fora sempre uma terra à parte. O seu sentido
de identidade não assenta tanto em distinções de cariz linguístico ou religioso,
as quais – ainda que existentes – são pouco relevantes para a maioria dos seus
habitantes, mas mais numa curiosa combinação de superioridade e
ressentimento.
Assim, da mesma forma que tantos dos clássicos da literatura inglesa
moderna são na realidade irlandeses, também algumas das grandes obras em
língua inglesa do pensamento político e social desde o Século das Luzes, de
David Hume a Adam Smith, passando por John Stuart Mill, são, de facto,
escocesas. Edimburgo foi em alguns aspectos a capital intelectual numa
primeira fase da industrialização na Grã-Bretanha, e Glasgow o centro radical
do movimento proletário no início do século XX, mas os empresários
escoceses, os executivos escoceses – e os emigrantes escoceses – foram
também responsáveis pelo estabelecimento, consolidação e administração de
grande parte do império da Inglaterra. Além disso, a Escócia sempre afirmara
e mantivera uma identidade própria e à parte: mesmo no auge do poder
centralizado de Londres, preservou o seu próprio sistema educativo e o seu
sistema legal.
Assim, uma Escócia independente era uma proposta perfeitamente
plausível – especialmente numa União Europeia onde não seria de forma
alguma o Estado-nação mais pequeno ou mais pobre. Se a maioria da
população escocesa, tendo preservado bastante da forma e algum do conteúdo
da independência, quereria eventualmente ir mais longe, não se sabe. As
limitações da geografia, da demografia e dos recursos que fizeram com que a
Escócia continuasse dependente do Reino Unido mantêm-se, e, em finais dos
anos 90, havia razões para supor que na Escócia, como noutros locais, o
nacionalismo começava a esmorecer.
Talvez o mesmo não fosse tão óbvio entre os descendentes dos emigrantes
escoceses na Irlanda. O canal que separa a Escócia da Irlanda do Norte tem
menos de 20 quilómetros de largura, mas o fosso que separa as sensibilidades
das duas comunidades é ainda hoje imenso. Enquanto o nacionalismo escocês
resulta essencialmente de um desejo de resistir aos Ingleses e de os repelir, o
patriotismo nacional da população protestante do Ulster consistia na
determinação destrutiva de permanecer a todo o custo no seio da «União». A
tragédia dos ‘problemas’ irlandeses consiste nos objectivos opostos, mas de
outro modo idênticos aos dos extremistas de ambos os lados: o IRA
Provisório a tentar expulsar as autoridades britânicas do Ulster e unir a
província a uma Irlanda independente e católica; os Unionistas protestantes,
com os seus voluntários paramilitares, determinados a suprimir os «papistas»
e a reter sine die os laços de 300 anos com Londres (ver capítulo 14).
Se nos últimos anos do século XX tanto Unionistas como Provisórios
foram finalmente forçados a chegar a acordo, tal não se deveu a falta de
determinação por parte dos extremistas de ambos os lados. Pelas mesmas
razões que os massacres na Bósnia e no Kosovo levaram à intervenção
externa, também o ciclo interminável de atrocidades e contra-atrocidades no
Ulster minou a simpatia da população local pelos militantes armados nas
comunidades que estes alegavam representar, e forçou Londres, Dublin e até
Washington a intervir de forma mais enérgica e a pressionar pelo menos um
acordo temporário entre as partes do conflito.
Se os Acordos de Sexta-feira Santa, assinados em Abril de 1998, podiam
solucionar a questão nacional na Irlanda só o futuro diria. A solução
temporária que ambas as partes aceitaram com relutância deixou muito por
resolver. Com efeito, os termos do acordo, em que foram intermediários os
primeiros-ministros da Irlanda e do Reino Unido, com o auxílio do presidente
Clinton – autogoverno local através de uma assembleia sediada em Ulster,
com garantia de representação para a minoria católica, o fim do monopólio
protestante da polícia e outros poderes, medidas com vista a uma relação de
confiança entre as duas comunidades e uma Conferência Intergovernamental
permanente para supervisionar a implementação – poderiam ter sido
encontrados, com boa vontade de ambos os lados, vinte anos mais cedo.
Contudo, como um armistício na Guerra dos Cem Anos da Irlanda, o acordo
parecia destinado a vigorar durante algum tempo. À semelhança do que se
verifica por vezes em situações deste tipo, os radicais de idade avançada que
encabeçavam a insurreição pareciam ter-se deixado vencer pela perspectiva
de um cargo político.
Verificou-se também que a própria República da Irlanda sofreu uma
transformação socioeconómica sem precedentes ao longo dos anos 90 e tinha
agora pouco em comum com o «Eire» das fantasias nacionalistas. No ponto
de vista da jovem Dublin, uma cidade multicultural e de baixos impostos,
absorvida pelo seu novo papel de candidata à prosperidade pós-nacional do
euro, as preocupações sectárias do IRA Provisório eram encaradas da mesma
forma que as obsessões unionistas e imperiais da Ordem de Orange eram
vistas em Londres: resquícios estranhos e antigos de um outro tempo.
Para qualquer pessoa familiarizada com a história do continente, a nova
política de particularismo subnacional nos maiores Estados da Europa
Ocidental poderia parecer simplesmente um retorno ao tipo particular do
desvio centralizador do século anterior. A regra é confirmada pela óbvia
excepção da Europa contemporânea: a Alemanha, o maior Estado europeu a
ocidente da ex-União Soviética, não conheceu semelhante ressurgimento
separatista. Tal não se deveu a quaisquer particularidades da sua história, mas
ao facto de a Alemanha pós-nazi ser já uma república verdadeiramente
federal.
Quer coincidissem geograficamente com Estados antigos (com no caso da
Baviera), ou resultassem de combinações territoriais recentes de antigos
principados e repúblicas independentes (como Baden-Württemberg ou
Nordrhein-Westfalen, os Länder da Alemanha moderna gozavam de um
considerável nível de autonomia financeira e administrativa em muitos dos
aspectos que interferem mais directamente com a vida quotidiana dos
cidadãos: a educação, a cultura, o meio ambiente, o turismo, e a rádio e
televisão públicas locais. Na medida em que uma política de identidade
definida em termos territoriais poderia ser apelativa para os Alemães – e aqui
o passado singular da Alemanha desempenhou provavelmente um papel
inibidor – os Länder constituíam um substituto funcional.
Com efeito, não foi no maior país da Europa Ocidental, mas num dos mais
pequenos que a política de separatismo nacional assumiu uma forma mais
evidente. A Bélgica, aproximadamente com a área territorial do País de Gales
e uma densidade populacional inferior apenas à da vizinha Holanda, foi o
Estado da Europa Ocidental cujas divisões internas mais se assemelharam às
de Leste comunista. A sua história pode ajudar a compreender por que razão,
depois da onda separatista de finais do século XX se ter esbatido, os Estados
nacionais da Europa Ocidental permaneceram intactos.
Na década de 90, as cidades e vales da Valónia encontravam-se num
estado de declínio pós-industrial. A extracção de carvão, o fabrico de aço, as
indústrias metalúrgicas e de ardósia, a produção têxtil – fonte tradicional da
riqueza industrial da Bélgica – tinham desaparecido: em 1998 a produção de
carvão belga era inferior a dois milhões de toneladas por ano, quando em
1961 era de 21 milhões de toneladas. Naquela que em tempos fora a região
industrial mais lucrativa da Europa restavam apenas as fábricas decrépitas dos
vales do Meuse sobre Liège e as sombrias e silenciosas explorações mineiras
nos arredores de Mons e Charleroi. A maior parte dos antigos mineiros,
operários e as suas famílias nestas comunidades dependia agora de um
sistema de segurança social administrado a partir da capital bilingue do país e
pago – como acreditavam os nacionalistas flamengos – com os impostos de
habitantes com bons empregos no Norte do país.
A Flandres conhecera um desenvolvimento extraordinário. Em 1947, mais
de 20% da mão-de-obra flamenga encontrava-se ainda no sector agrícola; 50
anos mais tarde, eram menos de 3% os Belgas falantes de neerlandês que
viviam da agricultura. Entre 1966 e 1975, a economia flamenga cresceu ao
ritmo sem precedentes de 5,3% per annum; mesmo durante o abrandamento
económico de finais dos anos 70 e início dos anos 80, continuou a crescer a
um ritmo quase duas vezes superior ao da Valónia. Sem o fardo de uma
indústria envelhecida, nem mão-de-obra excedentária, cidades como
Antuérpia e Ghent prosperaram com o desenvolvimento dos serviços, da
tecnologia e do comércio, favorecidas pela localização junto à «banana
dourada» da Europa, que se estende de Milão ao Mar do Norte. Havia então
mais falantes de neerlandês que de francês no país (numa proporção de três
para dois), os quais produziam e ganhavam mais per capita. O Norte belga
substituíra o Sul no seu papel de região dominante e privilegiada – uma
transformação que se fez acompanhar de novas exigências por parte dos
Flamengos, que aspiravam a vantagens políticas que fossem ao encontro da
sua preponderância económica.
Em suma, a Bélgica combinava todos os ingredientes dos movimentos
nacionalistas e separatistas que se registavam na Europa: uma divisão
territorial antiga(1) reforçada por uma barreira linguística igualmente
importante e aparentemente intransponível (enquanto muitos dos residentes
nas regiões de expressão neerlandesa tinham um conhecimento pelo menos
superficial do francês, a maioria dos Valões não fala neerlandês), e acentuada
por contrastes económicos evidentes. Havia ainda uma outra complicação:
durante a maior parte da breve história da Bélgica, as comunidades mais
pobres da Flandres rurais tinham sido dominadas pelos seus compatriotas
urbanos, industrializados e francófonos. O nacionalismo flamengo tinha
origem no ressentimento perante a obrigação de falar francês, do aparente
monopólio de poder e influência por parte dos falantes de francês, da
concentração nas mãos da elite francófona de toda a autoridade política e
cultural.
Os nacionalistas flamengos tinham, então, assumido um papel semelhante
ao dos Eslovacos antes do divórcio da Checoslováquia – ao ponto de terem
colaborado activamente com os ocupantes durante a Segunda Guerra
Mundial, na esperança vã de conseguirem algumas migalhas de autonomia da
mesa nazi. Todavia, na década de 60, os papéis económicos tinham-se já
invertido: a Flandres era agora apresentada pelos seus políticos nacionalistas
já não como uma Eslováquia retrógrada e sem privilégios, mas como a
Eslovénia (ou – como eles possivelmente prefeririam – a Lombardia): uma
nação dinâmica e moderna presa num Estado antiquado e disfuncional.
Estas duas identidades assumidas – minoria linguística reprimida e dínamo
económico frustrado – estavam agora ambas entrelaçadas no tecido da
política separatista flamenga, de tal forma que, apesar de as velhas injustiças
terem desaparecido e as províncias de expressão neerlandesa do Norte terem
há muito conquistado o direito a falar a sua própria língua nos assuntos
públicos, os ressentimentos se projectavam em novas questões, trazendo aos
debates públicos da Bélgica uma intensidade – e um veneno – que os assuntos
por si só nunca poderiam explicar.
-
(1) A Gallia Belgica de Júlio César situava-se junto à linha destinada a separar os territórios galo-
romanos dos Francos e a estabelecer a fronteira que a partir de então separaria a Europa latina dominada
pelos Franceses do Norte germânico.
Um dos momentos simbólicos cruciais na «guerra da língua» teve lugar na
década de 60 – meio século depois de o neerlandês ter sido oficialmente
autorizado nas escolas flamengas, nos tribunais e no governo local, e quatro
décadas depois de o seu uso ser tornado obrigatório –, quando estudantes
falantes de neerlandês da Universidade de Leuven (Louvain) se opuseram à
presença de professores de expressão francesa numa universidade situada na
província de Flanders-Brabant onde se falava neerlandês. Marchando sob o
slogan de Walen buiten! («Valões, fora!»), conseguiram a divisão da
universidade, cujos membros francófonos se deslocaram para a região
Brabant-Wallon, a sul, onde estabeleceram a Universidade de Louvain-la-
Neuve (posteriormente, a biblioteca da universidade foi também dividida e os
seus bens redistribuídos, o que foi desvantajoso para ambos os lados).
Os incidentes dramáticos em Leuven – um eco curiosamente chauvinista e
paroquial dos protestos estudantis contemporâneos noutros lugares –
provocaram a queda de um governo e levaram directamente a uma série de
revisões constitucionais (ao todo sete) ao longo dos trinta anos seguintes.
Embora fossem concebidas por políticos moderados como cedências
destinadas a satisfazer as exigências dos separatistas, as alterações
institucionais da Bélgica foram sempre entendidas por estes últimos como
meros passos no caminho para o divórcio. No fim, nenhum dos lados atingiu
exactamente os seus objectivos, mas estiveram bem perto de desmantelar o
Estado unitário belga.
O resultado foi profundamente complexo. A Bélgica foi subdividida em
três «Regiões»: Flandres, Valónia e «Bruxelas-capital», cada uma com o seu
parlamento eleito (para além do parlamento nacional). Depois havia as três
«Comunidades» formalmente instituídas: a de expressão neerlandesa, a de
expressão francesa e a de expressão alemã (representando esta última os cerca
de 65 000 falantes de alemão que vivem no leste da Valónia, perto da fronteira
alemã). As Comunidades obtiveram também os seus próprios parlamentos.
As regiões e as comunidades linguísticas não coincidem exactamente – há
falantes de alemão na Valónia e diversas cidades onde se fala francês (ou
partes de cidades) dentro da Flandres. Foram estabelecidos privilégios,
concessões e protecções para todas elas, uma fonte sistemática de
descontentamento para todas as partes. Duas das regiões, a Flandres e a
Valónia, são efectivamente unilingues, à parte as referidas excepções.
Bruxelas foi oficialmente declarada bilingue, embora pelo menos 85% da sua
população fale francês.
Para além das Comunidades regionais e linguísticas, a Bélgica encontra-se
também dividida em dez províncias (cinco na Flandres e cinco na Valónia).
Estas províncias têm também funções governativas e administrativas. No
entanto, no decurso das várias revisões constitucionais, a verdadeira
autoridade foi progressivamente atribuída ou à região (em questões de
urbanismo, ambiente, economia, obras públicas, transportes e comércio
externo) ou à comunidade linguística (educação, língua, cultura e alguns
serviços sociais).
O resultado de todas estas mudanças foi ridiculamente desvantajoso. A
correcção linguística (e a constituição) exigiam agora, por exemplo, que todos
os governos nacionais, independentemente da sua cor política, apresentassem
um «equilíbrio» entre ministros falantes de neerlandês e de francês, tendo o
primeiro-ministro de ser bilingue (ou seja, provavelmente oriundo da
Flandres). A igualdade linguística na Cour d’Arbitrage (Tribunal
Constitucional) obedecia a regras similares, com a presidência a alternar
anualmente entre as duas línguas. Em Bruxelas, os quatro membros do
governo da região da capital passariam a reunir (falando na língua que
entendessem escolher) para tratar de assuntos de interesse mútuo; mas para as
questões da «comunidade» flamenga e francófona deveriam reunir
separadamente, dois a dois.
Deste modo, a Bélgica já não era um, nem sequer dois Estados, mas um
mosaico desordenado de autoridades que se sobrepunham e se duplicavam.
Era difícil formar governo: eram necessários acordos interpartidários nas e
entre regiões; uma «simetria» entre o nacional, regional, comunitário,
provincial e as coligações de partidos locais; uma maioria activa em cada um
dos principais grupos linguísticos; e paridade linguística a todos os níveis
políticos e administrativos. E quando um governo era finalmente formado,
tinha fraco poder de iniciativa: até a política externa – teoricamente, uma das
responsabilidades que cabiam ao governo nacional – estava de facto nas mãos
das regiões, dado que para a Bélgica contemporânea tal significa acordos de
comércio externo, os quais são prerrogativa regional.
A política desta convulsão constitucional revelou-se tão intrincada como
as reformas institucionais propriamente ditas. Do lado flamengo, emergiram
partidos radicais nacionalistas e separatistas com o objectivo de exercer
pressão para que se procedesse às mudanças e beneficiar das oportunidades
que estas criavam. Quando o Vlaams Blok, herdeiro espiritual dos
ultranacionalistas do tempo da guerra, se tornou o partido maioritário em
Antuérpia e em alguns subúrbios a norte de Bruxelas onde se falava
neerlandês, os partidos mais tradicionais de expressão neerlandesa sentiram-
se obrigados a adoptar posições mais sectárias, para poderem competir.
Do mesmo modo, na Valónia e em Bruxelas, políticos dos partidos
dominantes de expressão francesa posicionaram-se numa linha «comunitária»
mais inflexível, de forma a atrair eleitores valões que eram contra o domínio
flamengo na agenda política. Assim, todos os principais partidos acabaram
por ter de se dividir em função de linhas linguísticas e determinadas pelas
comunidades: na Bélgica, os democratas-cristãos (desde 1968), os liberais
(desde 1972) e os socialistas (desde 1978) existem todos em duplicado, com
um partido de cada tipo para cada uma das comunidades linguísticas. Daqui
resultou, inevitavelmente, um acentuar do fosso entre as diferentes
comunidades, visto que os políticos se dirigiam agora apenas aos «seus»(2).
Para apaziguar os separatistas regionais e linguísticos houve um elevado
preço a pagar. Em primeiro lugar, este processo teve um custo económico.
Não foi por acaso que em finais do século XX a Bélgica tinha
proporcionalmente ao PIB a dívida pública mais alta da Europa Ocidental – é
dispendioso duplicar todos os serviços, todos os empréstimos, todas as
contribuições, todos os símbolos. A prática instituída de utilizar dinheiro
público (incluindo subsídios regionais da UE) numa base proporcional para
recompensar clientes dos ‘pilares’ das várias comunidades era agora aplicada
à política da comunidade linguística: ministros, secretários de Estado, as suas
equipas, os seus orçamentos e os seus amigos existem a uma escala global,
mas é só na Bélgica que cada um deles se encontra associado a um
doppelgänger linguístico.
No final do século XX, a Bélgica assumira indiscutivelmente uma
condição pro forma. Ao entrar no país por via terrestre, talvez passasse
despercebida a um estrangeiro a placa de sinalização com «België» ou
«Belgique» escrita em pequenas letras tímidas. Mas era quase impossível um
visitante não reparar no painel colorido que o informava da província onde
acabara de entrar (Liège, por exemplo, ou West-Vlaanderen), muito menos o
painel informativo (em francês ou neerlandês, mas não nas duas línguas) que
indicava se estava na Flandres ou na Valónia. É como se as disposições
convencionais tivessem sido invertidas: como se as fronteiras internacionais
do país fossem uma mera formalidade, mas as suas fronteiras internas
imponentes e bem reais. Assim sendo, por que é que a Bélgica não se dividiu,
simplesmente?
Existem três factores que ajudam a explicar a improvável sobrevivência da
Bélgica e, a um nível mais abrangente, a persistência de todos os Estados da
Europa Ocidental. Em primeiro lugar, com a sucessão de gerações e a
implementação de reformas constitucionais, a causa separatista perdeu a sua
premência. Os velhos ‘pilares’ comunitários – redes sociais e políticas
hierarquicamente organizadas que substituíram o Estado-nação –
encontravam-se já em declínio. Uma geração mais jovem de Belgas mostrava-
se bastante menos susceptível a apelos baseados em afinidades sectárias,
embora os políticos mais velhos tivessem demorado a aperceber-se desse
facto.
O declínio da prática religiosa, o acesso à educação superior e a
deslocação das áreas rurais para os centros urbanos fizeram com que os
partidos tradicionais perdessem parte da sua influência. Por razões óbvias,
este factor aplica-se especialmente aos ‘novos’ Belgas: as centenas de
milhares de segundas e terceiras gerações de imigrantes da Itália, Jugoslávia,
Turquia, Marrocos ou Argélia. Como os novos Bascos, estas pessoas têm
preocupações próprias e prementes, e pouco interesse nas agendas bafientas
de separatistas mais velhos. Sondagens de opinião realizadas na década de 90
indicaram que a maioria da população, mesmo na Flandres, já não colocava as
questões regionais ou linguísticas no topo da lista das suas preocupações.
-
(2) Os jornais mais importantes, Le Soir e De Standaard, praticamente não têm leitores fora das
respectivas comunidades linguísticas. Por esse motivo, nenhum deles se dá ao trabalho de relatar
notícias da outra metade do país. Quando alguém fala neerlandês na televisão da Valónia (e vice-versa)
são utilizadas legendas. Até os painéis de informação automática nos comboios inter-regionais alternam
entre neerlandês e francês à medida que atravessam as fronteiras regionais (apresentando ambas as
línguas no caso de Bruxelas). Dizer que o inglês é actualmente a língua comum falada na Bélgica não é
apenas uma piada.
Em segundo lugar, a Bélgica era um país rico. Existe uma diferença óbvia
entre a Bélgica e outras partes menos afortunadas da Europa onde os
nacionalistas puderam explorar com êxito pontos sensíveis das comunidades:
para a maioria substancial dos residentes na Bélgica moderna, a vida era
tranquila e desprovida de preocupações materiais. O país está em paz – se não
consigo mesmo, pelo menos com todos os outros – e a mesma prosperidade
que determinou o «milagre flamengo» atenuou também a política do
ressentimento linguístico. Esta observação é igualmente válida para a
Catalunha e algumas regiões da Escócia, onde os representantes mais radicais
da causa da independência nacional viram os seus argumentos esmorecer
perante efeitos desmobilizadores de uma riqueza pouco habitual.
A terceira razão para a sobrevivência da Bélgica – e dos outros Estados-
nações internamente fragmentados da Europa Ocidental – não é tanto de
natureza económica como geográfica, apesar de estas estarem intimamente
relacionadas. Se a Flandres – ou a Escócia – foram, por fim, capazes de
permanecer confortavelmente no seio da Bélgica ou do Reino Unido, não foi
por lhes faltar um forte sentimento nacional, que aparentemente ressurgira nos
antigos territórios comunistas. Muito pelo contrário: o desejo de
independência era visivelmente mais forte na Catalunha do que, por exemplo,
na Boémia; e o distanciamento entre Flamengos e Valões era bastante mais
pronunciado do que entre Checos e Eslovacos, ou até Sérvios e Croatas. O
que fez a diferença foi o facto de os Estados da Europa Ocidental já não
serem unidades nacionais independentes com o monopólio de autoridade
sobre os seus súbditos. Eram também, e cada vez mais, parte de uma outra
coisa.
O mecanismo formal com vista a uma União Europeia total foi definido no
Acto Único Europeu (AUE) de 1987; mas o que realmente fez o processo
progredir foi o fim da Guerra Fria. O AUE criara o compromisso entre os 12
membros da União Europeia de instituir até 1992 a livre e total circulação de
bens, serviços, capital e pessoas – não se tratava exactamente de um avanço,
uma vez que estes mesmos objectivos tinham já sido traçados décadas antes.
Foi o Tratado de Maastricht desse mesmo ano, e o seu sucessor, o Tratado de
Amsterdão, assinado cinco anos mais tarde, que levaram os membros da
União Europeia a proceder a um conjunto realmente novo de disposições
institucionais e financeiras, as quais foram o resultado directo de
circunstâncias externas completamente distintas.
O que chamou a atenção do público para as deliberações de Maastricht foi
o tão divulgado acordo de instituir uma moeda europeia comum. Os
Franceses, procurando ultrapassar a sua inquietação perante a unificação da
Alemanha, seguraram firmemente a República Federal no «Ocidente»,
levando Bona a concordar em trocar o marco alemão por uma moeda única
europeia – o euro – e fazendo com que o Estado alemão unificado se
enquadrasse nas restrições de uma União Europeia cada vez mais coesa, com
uma malha cada vez mais densa de leis, regras e acordos. Bona, por seu turno,
fez questão de que a nova moeda fosse uma cópia do antigo marco alemão,
regulada – como a moeda alemã – por uma comissão autónoma de banqueiros
centrais e conforme aos princípios fiscais do Banco Central Alemão: inflação
baixa, limites rígidos às reservas monetárias dos bancos comerciais, e défices
mínimos. Os negociadores alemães – receando as tendências despesistas dos
países do «Club Med», como a Itália ou a Espanha – impuseram condições
severas para a sua adesão à moeda única, ficando a Comissão Europeia
autorizada a impor multas aos governos que não cumprissem as exigências.
A pedido de Bona, os ministros das Finanças da Europa ficariam assim
presos, como Ulisses, ao mastro-euro: impossibilitados de responder ao canto
de sereia de eleitores e políticos que procurassem dinheiro fácil e um aumento
da despesa pública. Estes termos, estabelecidos para garantir que o novo euro
seria tão à prova de inflação como o próprio marco alemão, não foram do
agrado de todos – havia, por parte dos Estados-Membros mais pobres, o justo
receio de que pudessem restringir a política pública e talvez até impedir o
crescimento. Assim, de modo a tornar as condições de Maastricht mais
apelativas, foram disponibilizados bónus em dinheiro para os governos mais
recalcitrantes: Jacques Delors, o presidente da Comissão, praticamente
subornou os ministros das Finanças da Grécia, Espanha, Portugal e Irlanda,
prometendo consideráveis aumentos nos fundos estruturais da UE em troca da
sua assinatura no Tratado.
O Reino Unido e a Dinamarca, por sua vez, assinaram o principal corpo do
Tratado, mas optaram por não aderir à moeda única – em parte porque
previam o seu impacto restritivo em termos económicos; em parte devido à
sua ressonância simbólica em nações já de si relutantes em abandonar os
sinais exteriores da soberania a favor de instituições transnacionais; e, no caso
do Reino Unido, porque – como tantas vezes no passado – o caminho para a
União era encarado com sérias reservas como mais um avanço no sentido de
um superestado europeu(3).
É certo que o Tratado de Maastricht recorreu bastante à «subsidiariedade»
– uma espécie de «navalha de Occam» para eurocratas, afirmando que «a
União não toma providências (excepto nas áreas que recaem na sua
competência exclusiva) a não ser que estas sejam mais eficazes do que as
empreendidas a nível nacional, regional ou local». Todavia, até estas palavras
tinham significados diferentes para ouvidos diferentes: em França, significava
limitar o poder das instâncias supranacionais fora do controlo de Paris; para
os Alemães, implicava privilégios especiais para os governos regionais; para
os Britânicos representava um mecanismo destinado a bloquear a integração
nacional.
Maastricht teve três efeitos colaterais. Um deles foi o impulso inesperado
que deu à NATO. Nos termos restritivos do Tratado ficava claro (como era
pelo menos intenção dos Franceses) que os países recentemente libertados de
Leste europeu não poderiam juntar-se à União Europeia num futuro imediato
– nem as suas frágeis instituições legais e financeiras, nem as suas economias
em convalescença estavam em condições de se enquadrar no rígido sistema
fiscal e em outros regulamentos que os membros da União tinham imposto a
todos os signatários, presentes e futuros.
Em vez disso, nos corredores de Bruxelas havia quem sugerisse que se
devia oferecer à Polónia, à Hungria e aos seus vizinhos a possibilidade de se
tornarem primeiro membros da NATO, como uma espécie de compensação:
um prémio temporário. O valor simbólico de alargar a NATO desta forma era,
obviamente, considerável, pelo que a iniciativa foi logo à partida bem
recebida pelos novos Estados-Membros candidatos. Os benefícios práticos
não eram tão óbvios (ao contrário do agravamento das relações com
Moscovo, que era bem real e imediato). No entanto, uma vez que Washington
tinha as suas próprias razões para pretender a expansão da comunidade de
Defesa do Atlântico Norte, um primeiro grupo de nações da Europa Central
foi admitido na NATO poucos anos mais tarde(4).
O segundo impacto teve a ver com a tomada de consciência pública na
Europa. O Tratado de Maastricht provocou um interesse sem precedentes
relativamente àquilo que tinham sido, até então, os processos obscuros da
União Europeia e a sua burocracia anónima. Apesar de ter sido aprovado em
todos os países em que foi sujeito a referendo nacional (embora apenas com
50,1% no caso da França), suscitou oposição suficiente para colocar a questão
da «Europa» nas agendas políticas internas, em muitos casos pela primeira
vez. Durante quatro décadas, as instituições e regras de um novo sistema
continental tinham sido concebidas discretamente e decididas em obscuras
cidades do Benelux, à margem dos anseios públicos ou dos procedimentos
democráticos. Esses dias, ao que parecia, tinham terminado.
A terceira consequência de Maastricht foi ter aberto caminho para a união,
não exactamente da Europa, mas pelo menos da sua metade ocidental. O fim
da Guerra Fria e o compromisso europeu para com um mercado único
afastaram os impedimentos para a adesão dos restantes membros da antiga
Associação Europeia de Comércio Livre(5) [mais conhecida pela sua sigla
inglesa – EFTA]. A Suécia, a Finlândia e a Áustria candidataram-se, já
libertas do seu compromisso de neutralidade (ou, no caso finlandês, da
necessidade de manter boas relações com Moscovo) e com uma crescente
inquietação por se verem de fora do espaço comum europeu.
As negociações de acesso com as novas candidatas estavam concluídas ao
fim de apenas três meses, facilitadas pelo facto de os três países serem não só
estáveis e pequenos – a soma das suas populações era inferior a um quarto da
população alemã –, mas, também, ricos. O mesmo se poderia dizer das duas
últimas nações que ficavam de fora, a Noruega e a Suíça. Com efeito, apesar
de um considerável entusiasmo por parte de líderes empresariais, as
populações de ambos os países votaram contra a adesão – receando perder a
sua autonomia e iniciativa numa federação supranacional e olhando com
cepticismo os benefícios da participação na nova moeda.
O mesmo cepticismo tornou-se patente no referendo realizado na Suécia
em Novembro de 1994, para decidir da entrada na União Europeia. Apenas
52,3% dos votos eram a favor, apesar de ser condição assente que o país
ficaria de fora da moeda única (dez anos mais tarde, quando o governo de
Estocolmo recomendou à nação que optasse pelo abandono da coroa e
aderisse ao euro, sofreu uma derrota decisiva e humilhante no referendo, tal
como acontecera ao governo dinamarquês em Setembro de 2000 ao colocar a
mesma questão). A reacção de Per Gahrton, deputado do Riksdag sueco pelo
partido dos Verdes e opositor convicto à adesão à União Europeia, deu voz a
uma ansiedade escandinava bastante difundida: «Este é o dia em que o
Riksdag decidiu transformar a Suécia, uma nação independente, numa espécie
de província de uma superpotência em expansão; fará, assim, com que a
Suécia passe de corpo legislativo a pouco mais do que uma comissão
consultiva.»
Os sentimentos de Gahrton eram comuns a muitos dos habitantes do Norte
da Europa, incluindo alguns dos que ainda assim votaram a favor da adesão.
Mesmo as elites do mundo político e empresarial, na Suíça ou na
Escandinávia, que queriam aderir à UE para não perderem as vantagens do
mercado comum, reconheciam que essa opção tinha custos políticos e
económicos. Sabiam, no entanto, que mesmo que a decisão lhes fosse
prejudicial, não seria uma catástrofe para o seu país. Na Suécia – ou na
Noruega, ou até na Dinamarca e no Reino Unido – a UE (já para não falar da
sua nova moeda única) era vista como uma escolha, não uma necessidade.
Mas na Europa Central e de Leste a adesão à «Europa» era a única opção
possível. Qualquer que fosse o seu raciocínio – quer o objectivo fosse
modernizar as suas economias, garantir novos mercados, obter ajuda externa,
estabilizar as suas políticas internas, introduzir-se no «Ocidente» ou
simplesmente afastar a possibilidade de um recuo para o comunismo nacional
–, os novos governantes, de Talin a Tirana, olhavam para Bruxelas. A
possibilidade de se juntarem à UE, com a sua promessa de abundância e
segurança, pairava tentadoramente diante dos eleitorados da Europa pós-
comunista. Avisavam-nos de que não deviam deixar-se seduzir por aqueles
que diziam que o antigo sistema era melhor. A dor da transição, prometiam,
havia de valer a pena: a Europa era o seu futuro(6).
Visto de Bruxelas, contudo, o panorama era bem diferente. Desde o seu
início, o projecto europeu era profundamente esquizofrénico. Por um lado, era
culturalmente inclusivo, abrindo-se a todos os povos da Europa. A
participação na Comunidade Económica Europeia, na Comunidade Europeia
e, finalmente, na União Europeia propriamente dita era um direito de qualquer
Estado europeu «cujo sistema de governo assentasse nos princípios da
democracia» e que concordasse em aceitar os termos da adesão.
Mas, por outro lado, a União era funcionalmente exclusiva. Cada novo
acordo e tratado impusera requisitos mais complicados aos seus membros
para, em compensação, os acolher na família «europeia»; e estas
regulamentações e regras tinham o resultado cumulativo de erguer barreiras
que mantinham de fora países e povos que não conseguiam passar nos testes.
Assim, o Tratado de Schengen (1985) foi uma benesse para os cidadãos dos
Estados-Membros signatários, que podiam agora deslocar-se sem restrições
através de fronteiras abertas entre Estados soberanos. Porém, os residentes
dos países que se encontravam fora do clube Schengen eram obrigados a fazer
fila – literalmente – para a admissão.
Maastricht, com as suas normas severas para a moeda única e a sua
insistência em que todos os candidatos a Estados-membros integrassem nos
seus sistemas de governação a acquis communautaire, o código em expansão
acelerada das práticas europeias, era a zona de exclusão burocrática por
excelência. Não colocava impedimentos aos candidatos nórdicos, nem à
Áustria, mas representava um tremendo obstáculo para os possíveis
concorrentes de Leste. Comprometida pelos próprios termos da sua Carta a
receber as novas nações europeias, a UE procurava na realidade mantê-las de
fora tanto tempo quanto possível.
Havia bons motivos para este procedimento. Mesmo os mais ricos dos
novos candidatos – a Eslovénia, por exemplo, ou a República Checa – eram
nitidamente mais pobres do que qualquer um dos membros já existentes da
UE, e a maioria deles era efectivamente muito pobre. Sob todos os aspectos, o
fosso que separava a Europa Ocidental da Europa de Leste era enorme: a
mortalidade infantil nos Estados bálticos correspondia ao dobro da média dos
15 membros da UE em 1996. Na Hungria, a esperança de vida para os
homens era inferior em oito anos à média da UE; na Letónia, 11 anos.
Se a Hungria, a Eslováquia ou a Lituânia – e especialmente a Polónia, com
os seus 38 milhões de habitantes – fossem admitidas na União nos mesmos
termos dos seus presentes membros, os custos em subsídios, auxílio regional,
fundos para infra-estruturas e outras transferências arruinariam certamente o
orçamento da UE. Em Dezembro de 1994, a Fundação Bertelsmann, na
Alemanha, publicou um estudo em que se calculava que se os seis países da
Europa Central então à espera de ser admitidos (Polónia, Hungria,
Eslováquia, República Checa, Roménia e Bulgária) aderissem à União na
mesmas condições dos quinze, o custo só em fundos estruturais ultrapassaria
os trinta mil milhões de marcos alemães por ano.
Receava-se que uma tal situação desencadeasse uma reacção negativa
entre os eleitorados dos países que pagavam a maior parte das contas da
União e que certamente teriam de contribuir mais ainda: a Holanda e a Grã-
Bretanha, mas especialmente a Alemanha, o que se afigurava ainda mais
preocupante. Em qualquer dos casos, os países beneficiários de Leste não
estavam sequer em posição de cumprir com o mínimo de fundos requeridos
para a adesão, segundo os regulamentos da UE. Aquilo de que a Europa pós-
comunista realmente precisava era de um Plano Marshall, mas ninguém lho
oferecia.
Para além de dispendiosos, os novos recrutas causariam outros problemas.
Os seus sistemas legais eram corruptos ou disfuncionais, os seus líderes
políticos não tinham ainda dado provas, as suas moedas eram instáveis, as
fronteiras porosas. Temia-se, também, que os cidadãos indigentes e
carenciados destes países se deslocassem para ocidente à procura de ajuda e
trabalho, ou que ficassem no seu país a viver de salários irrisórios – tentando
investidores e empresários a abandonarem os países mais antigos da UE para
se estabelecerem nos novos. Em qualquer dos casos, estas nações
representariam uma ameaça. Havia rumores sobre uma possível «invasão» da
Europa – um eco distante mas inconfundível dos receios de Herder face à
agitação dos «povos selvagens» do Leste europeu. Ninguém tinha dúvidas de
que a UE podia fazer muito pela Europa de Leste. Mas que poderia a Europa
de Leste fazer pela UE?
Tendo estas preocupações em mente, os europeus do Ocidente protelaram
a questão. Logo após os acontecimentos de 1989, o ministro dos Negócios
Estrangeiros alemão, Hans-Dietrich Genscher, sugeriu inicialmente que a UE
devia absorver todos os países da Europa de Leste com a maior brevidade
possível, como medida profilática contra um regresso ao nacionalismo.
Contudo, não tardou a tomar consciência da realidade; e embora Margaret
Thatcher continuasse a defender entusiasticamente que o alargamento não
devia tardar (imaginando que uma União alargada se converteria
inevitavelmente na área de comércio livre pan-europeia dos sonhos
britânicos), foi a abordagem francesa que acabou por dominar a estratégia da
UE.
A primeira resposta de François Mitterrand consistira em propor uma
«Confederação Europeia» que unisse os vários países, embora numa malha
não tão apertada como a que caracterizava a UE – uma rede de segundo
plano, aberta a todos os que quisessem aderir, sem condições impostas e com
poucos benefícios materiais. Anos mais tarde, os diplomatas franceses
lamentariam a falta de apoio que teve esta proposta, vendo nela uma
oportunidade perdida de promover uma «colaboração tranquila» com vista a
uma união alargada. Contudo, na altura, considerou-se, e com razão, que a
ideia era um truque óbvio, uma forma de encurralar os Estados recém-
libertados da Europa de Leste num sucedâneo da comunidade europeia, para
os manter indefinidamente afastados do seu objectivo real. Vaclav Havel
compreendeu-o desde o início, pelo que rejeitou a proposta (tornando-se
durante algum tempo persona non grata no Palácio do Eliseu).
Assim, as relações entre o Ocidente e o Leste europeu mantiveram-se por
alguns anos num impasse, limitando-se a trocas bilaterais e a acordos de
comércio, sendo conferido a alguns países – Hungria, Polónia, República
Checa e Eslováquia – um estatuto «associativo» com limitações rígidas face à
UE, mas nada mais do que isso. No entanto, o golpe de Estado de Moscovo
de 1991 e as guerras dos Balcãs que eclodiram pouco depois chamaram a
atenção do Ocidente para os riscos de deixar os países pós-comunistas
deambular na incerteza; foi, então, acordado numa cimeira da UE em
Copenhaga em Junho de 1993 que em princípio – e em data a definir – «os
países associados da Europa Central e de Leste que o desejem tornar-se-ão
membros da União Europeia».
Este compromisso não contribuiu muito para aliviar a frustração dos
possíveis futuros membros; as negociações com Bruxelas e as capitais
ocidentais tinham-nos deixado, nas palavras contidas da primeiro-ministro
polaca Hanna Suchocka, ‘desapontados’. E, com efeito, os líderes políticos da
Europa de Leste passaram quase toda a década seguinte a tentar
pacientemente e sem grande êxito estabelecer relações firmes com os seus
relutantes parceiros ocidentais, prometendo aos seus eleitores que a adesão à
UE estava realmente na agenda, ao mesmo tempo que procuravam convencer
os seus interlocutores estrangeiros de como esse passo era urgente.
Na verdade, a atenção do Ocidente estava concentrada noutro ponto. A
transição para a nova moeda única e a concretização dos planos de Maastricht
para a integração institucional eram a preocupação dominante de todas as
capitais ocidentais. Na Alemanha vivia-se uma ansiedade crescente
relativamente aos custos e dificuldades de integrar os territórios da antiga
RDA. Entretanto, a catástrofe na Jugoslávia – que a princípio servira para
relembrar aos estadistas ocidentais os riscos de subestimar os problemas pós-
comunismo em geral – tinha-se agora tornado uma obsessão a permanente.
O olhar dos intelectuais mais conceituados – um barómetro seguro das
modas políticas – voltara-se noutra direcção. Tinham passado ainda poucos
anos desde que a «Europa Central» fora redescoberta pelos comentadores
ocidentais, com Havel, Kundera, Michnik e os seus colegas brilhando nos
artigos de fundo e nos jornais e revistas mais eruditos de Paris a Nova Iorque.
Mas a história avançava rapidamente: Praga e Budapeste, já esquecida a sua
milagrosa libertação da tirania, estavam entregues aos turistas e homens de
negócios. Bernard-Henri Lévy e Susan Sontag estariam mais provavelmente
em Sarajevo. Os minutos de fama da Europa Central tinham passado, e com
eles toda a pressão pública para acelerar a sua integração nas instituições
ocidentais. Em público, políticos e dirigentes insistiam na vontade de ver a
União alargada a leste quando as condições fossem «adequadas». Em privado,
eram mais directos. Como um alto funcionário da Comissão Europeia
observou em meados dos anos 90: «Aqui ninguém está a levar a sério a
questão do alargamento».
Ainda assim, o alargamento constava do programa europeu. Segundo os
seus próprios princípios, a UE não podia impedir os restantes países de se
candidatarem à adesão. A Comissão Europeia viu-se então forçada a aceitar as
candidaturas da Hungria e da Polónia em 1994, da Roménia, Eslováquia,
Letónia, Estónia, Lituânia e Bulgária em 1995, e da Eslovénia e da República
Checa em 1996. Os dez Estados ex-comunistas juntaram-se a Malta e a
Chipre, que se tinham candidatado em 1989, e à Turquia (cuja candidatura se
arrastava desde 1987). Todos estes países candidatos aguardavam agora numa
antecâmara bastante concorrida, até que a UE lhes dedicasse a sua atenção.
Em 1997, o Tratado de Amsterdão acrescentou uma série de emendas
técnicas importantes ao Tratado de Roma original, completando os objectivos
de Maastricht e fazendo avançar a intenção expressa da União em
desenvolver um programa de cidadania europeia e de instituições à escala
europeia destinadas a lidar com o emprego, a saúde, o ambiente e a gritante
ausência de uma política externa comum. Por essa altura, com a entrada em
vigor da moeda comum prevista para 1999, a União completara uma década
de integração interna que absorvera todas as suas energias burocráticas.
Deixara de haver desculpa para o adiamento da cada vez mais delicada
questão do alargamento.
Alguns líderes nacionais e muitas figuras proeminentes da Comissão
Europeia teriam preferido limitar as negociações da adesão aos casos
«fáceis»: países pequenos como a Eslovénia ou a Hungria, contíguos às
fronteiras da UE na época e com economias relativamente modernizadas, que
colocavam um desafio moderado às estruturas institucionais e ao orçamento
da UE. Mas rapidamente se tornou claro que tal opção seria imprudente em
termos políticos – caso se sentissem desiludidas, a Roménia e a Polónia
poderiam ver-se arrastadas para águas perigosas não-democráticas – pelo que,
em 1998, a União Europeia iniciou oficialmente o processo de adesão de
todos os dez candidatos da Europa de Leste, juntamente com o Chipre. Malta
juntou-se à lista pouco depois. A Turquia foi, no entanto, afastada.
A partir de então, o alargamento adquiriu uma dinâmica própria, não
obstante as contínuas hesitações por parte de alguns membros antigos da UE
e, a avaliar pelas sondagens de opinião, da generalizada falta de entusiasmo
entre as suas populações. Foram iniciadas as negociações bilaterais com vista
à adesão, primeiro com um núcleo mais restrito de candidatos: Chipre,
República Checa, Estónia, Hungria, Polónia e Eslovénia; e depois, um ano
mais tarde, com os restantes: Bulgária, Roménia, Eslováquia, Letónia,
Lituânia e Malta. A presença da Polónia no primeiro grupo, apesar das
dificuldades económicas que colocava, foi explicada pelo seu tamanho e
importância. A Eslováquia, por seu turno, foi «relegada» para o segundo
grupo em consequência da estagnação e corrupção devidas à política
autoritária de Meciar – como um aviso e exemplo para os outros.
Seguiram-se cinco anos de negociações intensas e por vezes acerbas.
«Bruxelas» ‘invadiu’ as capitais de todos os países candidatos, inundando-os
de conselheiros, recomendações, exemplos, programas e instruções, na
tentativa de aproximar as suas instituições, leis, regulamentações, práticas e
funcionalismo público de um nível mínimo compatível com o da União
Europeia. Os candidatos, por sua vez, pressionavam o mais que podiam, de
forma a obter garantias de que teriam livre acesso aos consumidores da UE,
tentando ao mesmo tempo impedir que o seu mercado interno fosse esmagado
pelos bens e serviços mais eficientes e apelativos do Ocidente.
A luta era nitidamente desigual. Enquanto a UE era, como há muito se
sabia, o objecto dos desejos dos países de Leste, os putativos novos membros
não tinham muito para oferecer em troca, excepto a promessa do seu bom
comportamento. Assim, ficou acordado que enquanto os novos membros
teriam algumas concessões – entre os quais restrições relativamente à compra
de terras por estrangeiros, uma questão política bastante delicada –, teriam de
aceitar que a UE, apesar da sua orientação para um mercado único, impusesse
consideráveis restrições à exportação de bens e, especialmente, pessoas, dos
novos países.
Em resposta a estimativas consideravelmente exageradas dos possíveis
fluxos migratórios (um relatório da UE publicado em 2000 profetizava um
êxodo anual da ordem das 335 000 pessoas dos dez Estados de Leste, caso as
fronteiras fossem abertas sem restrições), a maioria dos Estados-Membros
ocidentais insistiu na fixação de um número limite de Europeus de Leste que
poderiam deslocar-se para o Ocidente – num desrespeito flagrante pelo
espírito e pelo significado de uma década de proclamações e tratados. A
Alemanha, a Áustria e a Finlândia impuseram limitações severas por dois
anos, reservando-se o direito de as prolongar por mais um período de cinco
anos. A Bélgica, a Itália e a Grécia copiaram a iniciativa. Só o Reino Unido e
a Irlanda declararam estar dispostos a agir em conformidade com os
princípios de «porta aberta» da União – embora anunciando que os benefícios
de segurança social seriam mantidos a um nível mínimo para os cidadãos de
Leste que lá procurassem emprego.
A extensão para Leste de subsídios destinados à agricultura e outros
benefícios foi também sujeita a limites rígidos. Como explicava o Relatório
de Transição 2003, esta medida devia-se a «dúvidas relativamente à
capacidade dos países-candidatos em absorver e aplicar eficazmente os
subsídios após a entrada que adviessem dos fundos estruturais e de coesão da
UE». Mas o principal propósito era simplesmente reduzir os custos do
alargamento e minimizar a competição face aos produtores ocidentais. Só em
2013 é que os agricultores de Leste europeu teriam direito aos mesmos
subsídios então pagos no Ocidente – altura em que se esperava que a maioria
deles se tivesse já reformado ou abandonado o negócio.
Na altura em que as negociações foram dadas por terminadas, os termos
acordados e as 97 000 páginas do acquis communautaire da União
devidamente incorporadas nos códigos governativos dos Estados-candidatos,
o alargamento propriamente dito surgiu como uma espécie de anticlímax.
Depois de quinze anos à espera da adesão, não se podia levar a mal aos novos
Estados a falta do entusiasmo que poderiam ter demonstrado uma década
antes. De qualquer modo, muitos dos efeitos práticos do envolvimento
ocidental tinham já começado a fazer-se sentir – nomeadamente na indústria
automóvel, onde os antigos Estados comunistas tinham já uma oferta
preparada de mão-de-obra especializada barata e na qual investiram
substancialmente companhias como a Volkswagen, a Renault e a Peugeot-
Citroën durante os anos 90. Entre 1989 e 2003, o valor total de investimento
externo directo na Europa de Leste como um todo atingira os 117 mil milhões
de dólares.
No início do século XXI, o investimento externo na Europa ex-comunista
estava efectivamente a diminuir, o que em larga medida se devia,
ironicamente, ao alargamento agendado para breve. Quando estivessem
inseridos na União, seria certamente mais fácil estabelecer relações
comerciais com países como a Polónia ou a Estónia. Por sua vez, os novos
Estados-Membros poderiam vender mais ao Ocidente: a Polónia esperava
duplicar as suas exportações de bens alimentares à UE três anos após a sua
adesão. No entanto, esta era a consequência de um relativo atraso. Uma vez
integrados na União Europeia, os salários e outros custos nos países da
Europa de Leste começariam a subir para os níveis ocidentais. A vantagem da
região em termos de custos relativamente a fábricas na Índia ou no México
perder-se-ia. As margens de lucro – pelo menos no sector industrial –
começariam a decair.
Entretanto, em virtude dos custos elevados que implicava o
desenvolvimento das economias comunistas, em vésperas da adesão à UE a
Europa de Leste mantinha-se ainda bastante atrás dos membros mais antigos.
Mesmo nos mais prósperos dos novos Estados-Membros, o PIB per capita
situava-se bastante abaixo do dos seus vizinhos ocidentais; na Eslovénia
correspondia a 69% da média da UE, na República Checa a 59%, na Hungria
a 54%. Na Polónia era apenas 41%; na Letónia, o mais pobre dos novos
membros, 33%. Mesmo que as economias dos novos Estados da UE
apresentassem um crescimento médio 2% mais rápido do que o dos membros
já existentes(7), a Eslovénia precisaria de 21 anos para ficar a par da França.
Para a Lituânia, o desfasamento era de 57 anos. Os cidadãos dos antigos
Estados comunistas não tinham, evidentemente, acesso a este tipo de dados.
Ainda assim, estavam cientes das dificuldades que se lhes apresentavam.
Quando, numa série de sondagens de opinião realizadas no ano 2000,
perguntaram aos Checos quanto tempo pensavam que seria necessário para
ver a sua situação «melhorar», 30% dos inquiridos responderam «cinco
anos»; 30% disseram «10 anos»; 30% consideravam que seriam precisos «15
anos ou mais»; e 10% responderam «nunca».
No entanto, apesar de todo o cepticismo justificado dos beneficiários, as
implicações formais do alargamento big bang da UE foram bem reais.
Quando o tratado de adesão, assinado em 2003 na cidade de Atenas, entrou
em vigor no dia 1 de Maio de 2004, a União Europeia passou subitamente de
15 membros para 25 (a Bulgária e a Roménia tiveram de continuar a aguardar,
prevendo-se a sua adesão para 2007). A população da União aumentou um
quinto (embora a sua economia se tenha expandido menos de 5%), o mesmo
acontecendo com o seu território. E as fronteiras da «Europa», que ainda em
1989 não se estendiam para leste de Trieste, avançavam agora por território
que fora em tempos da URSS.
Na alvorada do século XXI, a União Europeia debatia-se com um
assustador leque de problemas: alguns antigos, alguns novos e outros da sua
própria responsabilidade. As dificuldades económicas eram talvez as mais
conhecidas e, afinal, as menos sérias das suas preocupações. Com ou sem os
novos Estados-membros, a UE continuava a gastar – como se verificava
desde o início – quantias desproporcionalmente avultadas com os seus
agricultores. Quarenta por cento do orçamento da União – ou 52 mil milhões
de dólares em 2004 – destinava-se a «subsídios de apoio aos agricultores»,
muitos dos quais destinados a grandes explorações mecanizadas em França ou
Espanha que não precisavam, na verdade, de apoio.
Mesmo depois de se ter chegado a acordo relativamente à redução destes
subsídios e a cortes na Política Agrícola Comum [PAC], previa-se que os
apoios aos custos agrícolas constituiriam mais de um terço das despesas da
UE ainda durante a segunda década do novo século, impondo uma sobrecarga
intolerável ao orçamento. O problema não era que a UE fosse pobre; antes
pelo contrário: a riqueza e os recursos colectivos dos seus membros
equiparavam-se aos dos EUA. Mas o orçamento da União, para citar um
relatório independente encomendado por Bruxelas em 2003, era uma
«relíquia histórica».
A UE começara, havia meio século, como uma união aduaneira – um
«mercado comum» – unidos por pouco mais do que uma tarifa externa. As
suas despesas eram determinadas, e depois restringidas, por acordos
negociados sobre as tarifas, preços, subsídios e apoios. Ao longo dos anos, as
suas ambições tinham-se expandido para os domínios cultural, jurídico,
governativo e político, assumindo – em Bruxelas e não só – muitos dos
aspectos de um governo convencional.
-
(3) Talvez aos mais inclinados para a história ocorra o excerto da obra Mémorial de Sainte-Hélène,
do conde de Las Cases, em que Napoleão Bonaparte, no exílio, considera uma futura «associação
europeia» com «um código, um tribunal, uma moeda».

(4) A Polónia, a Hungria e a República Checa aderiram em 1999, mesmo a tempo de se


comprometerem (com alguma relutância) no envolvimento da NATO no Kosovo. A Bulgária, Roménia,
Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia e Eslovénia foram admitidas em 2004.
(5) A recessão económica no início dos anos 90 também ajudou, contribuindo para a ideia, difundida
sobretudo na Suécia, de que os exportadores do país não poderiam sobreviver sem o acesso ilimitado ao
mercado europeu.

(6) Ver capítulo 21. A dor foi bem real. Os países de Leste europeu perderam entre 30 e 40% do seu
rendimento nacional nos anos após 1989. O primeiro a recuperar o nível de 1989 foi a Polónia, em
1997; outros tiveram de esperar até ao ano 2000, ou ainda mais.

(7) Uma estimativa muito optimista. Nos anos que se seguiram à sua adesão à CE em 1986, as
economias de Espanha e Portugal tiveram um crescimento, em média, entre 1 e 1,5% mais rápido do
que o do resto da comunidade.
Mas enquanto os governos convencionais têm a liberdade de subir os
impostos para satisfazer as despesas previstas, a UE tinha e tem fraca
capacidade de decidir por si o aumento das receitas. O seu rendimento
provém de taxas fixas dos direitos alfandegários, impostos agrícolas, IVA e,
principalmente, das contribuições dos Estados-Membros, tendo como limite
1,24% do Rendimento Nacional Bruto (RNB). Deste modo, só uma
pequeníssima parte do rendimento da UE está sob o controlo directo da sua
administração – encontrando-se o total do mesmo sujeito à pressão política
interna de cada um dos Estados-Membros.
A maioria dos Estados-Membros beneficia mais do que contribui para o
orçamento da União. Em 2004, na sequência do alargamento para Leste, 19
dos países membros recebiam de Bruxelas mais do que pagavam. Os custos
do funcionamento da União eram, na realidade, suportados pelas
contribuições líquidas de apenas seis Estados-Membros: Reino Unido,
França, Suécia, Áustria, Holanda e Alemanha. Mais preocupante para as
perspectivas futuras da União foi o facto de os referidos seis países terem
dirigido uma petição à Comissão em Dezembro de 2003 com o objectivo de
verem as suas contribuições nacionais reduzidas de 1,24% do RNB para
apenas 1%.
O orçamento da União, pequeno em comparação com aquele que
apresentava mesmo o mais pequeno dos Estados-Membros e gasto sobretudo
em fundos estruturais, financiamento dos preços e na própria administração
dispendiosa da UE, está constantemente vulnerável aos interesses dos seus
contribuintes e beneficiários. Para a sua eficácia, as alavancas da máquina
económica da União dependem do consentimento de todas as suas partes
constituintes. Nos pontos em que todos estão mais ou menos de acordo em
termos de princípio e em que beneficiam de uma determinada política –
fronteiras internas abertas, mercados livres para bens e serviços – a UE
conheceu um progresso notável. Nas questões em que se verificam
divergências entre alguns dos Estados-Membros (ou apenas um,
principalmente se for um contribuinte importante), verifica-se um impasse nas
negociações: a harmonização fiscal, tal como a redução do financiamento à
agricultura, consta da agenda há décadas.
E por vezes dá-se um retrocesso. Ao fim de duas décadas de esforços
empreendidos por Bruxelas para levar os vários países a eliminar subsídios do
Estado a empresas representativas, de forma a garantir uma competição justa
na economia europeia, o comissário da UE para o mercado único (o holandês
Frits Bolkestein) expressou em Julho de 2004 a sua surpresa ao ver que a
França e a Alemanha estavam a regressar às políticas «proteccionistas» dos
anos 70 em defesa de empresas locais em risco. Acontece que Berlim e Paris,
ao contrário dos comissários não eleitos de Bruxelas, têm eleitores que pagam
impostos, e não podem simplesmente ignorá-los.
Estes paradoxos da União estão bem representados nas tribulações do
euro. O problema de uma moeda única não reside na substituição técnica de
uma série de moedas nacionais por uma única unidade de referência – este
processo estava já em andamento muito antes da abolição do franco, da lira
ou do dracma, e a transição revelou-se afinal surpreendentemente suave e
fácil(8) –, mas na harmonização necessária das políticas económicas
nacionais. Para evitar problemas de ordem ética e os riscos da falta de
contenção por parte de alguns países, Bona, como vimos, insistira naquilo que
ficou conhecido como «pacto de estabilidade e crescimento».
Os países que quisessem aderir ao euro viam-se obrigados a manter a sua
despesa pública abaixo dos 60% do PIB, e esperava-se que não deixassem os
seu défice orçamental ir além dos 3% do mesmo. Qualquer país que falhasse
nestas provas estaria sujeito a sanções, incluindo multas substanciais impostas
pela União. O objectivo destas medidas era assegurar que nenhum dos
governos da zona euro negligenciaria a sua política fiscal ultrapassando o seu
orçamento como lhe aprouvesse; isto exigia um maior esforço económico aos
outros membros, que teriam de suportar a estabilidade da moeda única.
Para surpresa geral, os países do Sul, tradicionalmente esbanjadores,
mostraram-se bastante disciplinados. A Espanha «qualificou-se» para a
adesão ao euro através daquilo que um comentador espanhol descreveu
sarcasticamente como uma combinação de fortuna e virtu: uma melhoria na
economia permitiu ao governo pagar a despesa pública mesmo a tempo da
introdução em 1999 da nova moeda. Até a Itália conseguiu passar nos testes
teutónicos (que muitos Italianos suspeitavam, e com razão, destinar-se a
mantê-los de fora), apesar de alguns malabarismos de números e do recurso à
venda de bens públicos. Em 2003, a zona euro englobava 12 países,
estendendo-se da Irlanda até à Grécia.
Contudo – como muitos cépticos tinham previsto – o esforço de uma
moeda única para realidades tão diferentes depressa começou a fazer-se notar.
O Banco Central Europeu (BCE), estabelecido em Frankfurt, manteve desde o
início uma taxa de juro relativamente elevada, de forma a suportar a nova
moeda e a preservá-la da inflação. Porém, as economias dos Estados da zona
euro diferiam tanto em termos de desenvolvimento como na sua posição no
ciclo económico. Algumas, como a da Irlanda, expandiam-se rapidamente;
outras – especialmente no caso de Portugal – mantinham-se bastante atrás e
teriam sido favorecidas pelo estímulo na actividade interna e nas exportações
que habitualmente acompanham a redução das taxas de juro e o
«enfraquecimento» da moeda.
Não tendo poder para implementar tais medidas, o governo de Portugal
viu-se obrigado pelos termos do «pacto» a reduzir a despesa pública – sob
pena de ter de pagar multas substanciais – precisamente na altura em que
(segundo a teoria económica convencional) deveria estar a ultrapassar os
custos da recessão. Esta situação não ajudou à popularidade interna; mas pelo
menos o país podia gabar-se de não ter falhado no cumprimento das
condições da sua participação na moeda única: em 2003, Lisboa tinha
reduzido a despesa pública para 59,4% do PIB e o défice anual para 2,8%,
ficando à justa abaixo dos limites impostos.
No entanto, no ano seguinte, a França incorreu num défice de quase 4,1%
– e a Alemanha, com a sua economia envelhecida a pagar finalmente o preço
da unificação, seguiu-a de perto com um défice de 3,9% e uma dívida
proporcional de quase 65%. Dadas as dimensões das suas respectivas
economias, o facto de nem a França nem a Alemanha estarem a aderir às suas
próprias regras representava um sério desafio a todo o acordo. Mas desta vez,
quando a Comissão deu início ao processo de sanção, Paris e Berlim tornaram
claro que encaravam os défices «temporários» como sendo inevitáveis do
ponto de vista económico e que não tencionavam pagar multas, nem sequer
comprometer-se a obter melhorias significativas no ano seguinte.
Os Estados mais pequenos da União – aqueles que, como a Grécia e
Portugal, tinham feito um enorme esforço, não sem consequências, para
cumprir os termos dos pacto, e também aqueles, como a Holanda e o
Luxemburgo que receavam pela estabilidade daquela que era agora também a
sua moeda – protestaram indignados, como seria de esperar, mas a lição foi
clara. Com menos de uma década de existência, o pacto de crescimento e
estabilidade estava morto. Muitos consideraram que o verdadeiro problema
residia não nos governos nacionais, mas no Banco Central, com as suas
normas rígidas e aparentemente desfasadas da realidade, insistindo
obstinadamente na sua completa independência e continuando a travar as
mesmas batalhas anti-inflacionistas dos anos 70.
As dificuldades do euro apontavam para uma outra falha mais grave do
projecto europeu: a extrema dificuldade do seu sistema de governo. O
problema devia-se à sua própria concepção. Jean Monnet e os seus herdeiros
tinham deliberadamente renunciado a imaginar, muito menos a implementar,
um sistema democrático ou federal. Em vez disso, tinham desenvolvido um
projecto para a modernização da Europa a partir do topo: uma estratégia com
vista à produtividade, à eficiência e ao crescimento económico concebida
segundo uma linha saint-simoniana, gerida por especialistas e funcionários
públicos, e sem grande atenção para com os desejos dos beneficiários. As
energias dos seus proponentes e exponentes eram em larga medida dedicadas
às complexas dimensões técnicas da «construção da Europa». Outras
preocupações que eventualmente surgissem viam a sua resolução
sistematicamente adiada.
Assim, na década de 90, a União Europeia orientava-se ainda por linhas
que tinham sido definidas várias décadas antes e quase sempre em função da
conveniência administrativa. A Comissão não eleita em Bruxelas geria uma
burocracia substancial, iniciando políticas e implementando programas e
decisões sujeitos à aprovação de um Conselho de Ministros dos Estados-
Membros. Um Parlamento Europeu pouco ágil que se reunia ora em
Estrasburgo, ora em Bruxelas e eleito por via directa desde 1979, exercia um
papel cada vez mais de vigilância (no Tratado de Roma original a sua função
era meramente consultiva), mas de forma lenta e sem poder de iniciativa.
As decisões não contenciosas eram geralmente tomadas em Bruxelas por
peritos e funcionários públicos. As políticas susceptíveis de afectar
eleitorados significativos ou interesses nacionais eram negociadas em
Conselho de Ministros, dando origem a compromissos complicados ou a
acordos dispendiosos. Todas as questões que não obtinham resolução e
relativamente às quais não se chegava a acordo eram simplesmente adiadas.
Os Estados-Membros dominantes – a Grã-Bretanha, a Alemanha e, sobretudo,
a França – nem sempre conseguiam o que queriam; mas aquilo que realmente
não queriam não era aprovado.
Tratava-se de uma forma de organização única. Era completamente
distinta da estabelecida para os Estados da América do Norte em 1776, os
quais tinham emergido como satélites de um único país – a Inglaterra – cuja
língua, cultura e sistema legal partilhavam. E também não se assemelhava à
Confederação Suíça, embora essa analogia fosse ocasionalmente sugerida: na
sua teia de soberanias, enclaves administrativos e direitos e privilégios locais
com séculos de existência, os cantões da Suíça lembravam mais a França do
antigo regime sem a presença do rei(9).
Os Estados-Membros da União Europeia, pelo contrário, continuavam a
ser unidades totalmente independentes numa associação voluntária à qual
tinham, com o tempo, concedido um conjunto de poderes e iniciativas
acumulados arbitrariamente sem sequer definirem que princípio presidia à sua
ligação e até que ponto deveria o projecto avançar. «Bruxelas» – uma sede
adequadamente anónima para uma entidade administrativa indefinida, nem
democrática, nem autoritária – governava apenas mediante o consentimento
dos governos dos seus membros. Assumira, inicialmente, para todos eles a
forma de um projecto claramente vantajoso: a Comunidade/União contribuía
para o bem-estar dos seus membros sem consequências significativas para a
sua independência. Contudo, esse estado de coisas não poderia manter-se
indefinidamente.
O que tornou necessária uma liderança não foi a natureza intrinsecamente
complicada e expansiva do sistema governativo da União, mas a
impossibilidade de o manter com 25 membros. Até então, a presidência
rotativa do Conselho de Ministros transitava de seis em seis meses, sendo
cada um dos países anfitrião de uma conferência europeia bianual
autopromocional – um sistema que já não era do agrado dos administradores a
tempo inteiro da União. A perspectiva de uma tal estrutura se deslocar entre
25 capitais diferentes, de Lisboa a Ljubljana, era simplesmente absurda. Além
disso, um sistema com poder decisivo concebido para seis Estados-membros e
já algo atabalhoado com 12 elementos, quanto mais com 15, tornar-se-ia
simplesmente obsoleto com 50 comissários europeus (dois de cada país), ou
com um Conselho Europeu que representasse 25 Estados-membros – em que
cada um teria o poder de veto.
As prováveis dificuldades tornaram-se bem claras numa reunião que teve
lugar em Nice em Dezembro de 2000. Tendo sido convocada para definir as
bases para o alargamento e conceber um novo sistema de votação no
Conselho de Ministros da UE – um sistema que pesasse os votos em função
da população e garantisse, ao mesmo tempo, que se alcançavam soluções do
agrado da maioria –, a conferência terminou num clima de azedume
profundamente embaraçoso. Os Franceses insistiam em ficar em igualdade de
circunstâncias com a Alemanha (apesar de uma diferença populacional na
ordem dos 20 milhões de pessoas), enquanto países como a Espanha e a
Polónia, este último com estatuto de observador no encontro, procuravam
optimizar o voto a que teriam futuramente direito no Conselho vendendo o
seu apoio ao melhor licitador.
A indecorosa luta por influência que teve lugar em Nice, com estadistas
europeus de primeiro plano como Tony Blair, Jacques Chirac e Gerhard
Schroeder a passarem noites sem dormir, discutindo e regateando por estatuto
e influência na sua casa europeia comum, foi um exemplo do preço que se
estava agora a pagar pela anterior negligência face ao rigor constitucional.
Tendo visto a União descer a um nível lastimável, Nice conduziu
directamente ao estabelecimento de uma «Convenção Europeia»: uma espécie
de assembleia constituinte não eleita autorizada a produzir um sistema de
governação prático para uma «Europa» alargada e, esperava-se, com uma
descrição credível dos objectivos comunitários. Na sequência de alguma
pressão (que já se tornara familiar) por parte de Paris, a presidência da
Convenção foi entregue ao idoso mas sempre arrogante Valéry Giscard
d’Estaing.
Ao fim de dois anos de deliberações, a Convenção emitiu algo que era
mais do que um esboço mas que não chegava a ser uma constituição. Retirado
o seu impressionante preâmbulo giscardiano (desde logo desfavorecido pelo
contraste com a brevidade elegante do seu antecessor jeffersoniano), o
documento da Convenção oferecia pouco nas propostas constitucionais
clássicas – sem definições abrangentes de liberdade individual, nem uma
afirmação clara relativamente à divisão de poderes, etc. A este respeito, como
muitos tinham previsto, foi uma decepção.
Contudo, o texto de Giscard – que depois de alguma discussão foi
adoptado em Roma em 2004 como um Tratado Constitucional – fornecia
efectivamente um programa útil para a gestão prática dos assuntos da União:
sistemas melhorados de coordenação da defesa e da imigração; uma síntese
simplificada e coesa do direito da UE; uma Carta dos Direitos Fundamentais
para os cidadãos da UE destinada a consolidar a autoridade dos tribunais
europeus; uma descrição clara e até ambiciosa das competências formais e da
autoridade da União.
Acima de tudo, a constituição proposta teria servido para reduzir – com o
tempo – o pesado sistema de representação nacional na Comissão; e propunha
um sistema de votação no Conselho Europeu que, depois de alguma
discussão, se revelou aceitável para todas as partes e justo em termos
demográficos. Não era possível prever se as novas disposições obteriam
maiorias claras em assuntos polémicos: até porque para questões
verdadeiramente contenciosas, como a cobrança de impostos e a defesa, foi
acordado – mediante a insistência da Grã-Bretanha, mas para grande alívio de
muitos outros países – que seria mantido o velho sistema gaullista de vetos
nacionais. E ninguém tinha dúvidas de que apesar da cuidadosa distribuição
proporcional de votos, o verdadeiro poder continuava nas mãos dos maiores
países – como Ortega y Gasset concluíra em 1930, a «Europa» era, para
efeitos práticos, «a trindade da França, Inglaterra e Alemanha». Mas, pelo
menos – e partindo do princípio de que a constituição seria ratificada em
todos os Estados-Membros, o que não era de todo uma certeza – seria agora
possível tomar decisões.
Assim, em 2004, a UE tinha – para surpresa de muitos observadores –
aparentemente ultrapassado, ou pelo menos aligeirado, as dificuldades
práticas de governação de uma comunidade estruturalmente pesada e algo
rudimentar de 25 Estados individuais. Mas o que não fora feito – aquilo que
nem a Convenção de Giscard, nem os vários Tratados, nem a Comissão
Europeia e os seus diversos relatórios e programas, nem as publicações caras
e os websites destinados a informar o público europeu a respeito da União e
do seu funcionamento tinham sequer começado a fazer – era rectificar a
crónica falta de interesse por parte do público europeu.
Se os tecnocratas que construíam as instituições da nova «Europa» tinham
demonstrado uma falta de atenção arrogante pelas opiniões do público em
geral, este sentimento estava agora a ter as suas devidas consequências.
Referindo-se com tristeza à obsessão dos seus colegas do Partido Trabalhista
pelas técnicas e regras da gestão político-partidária, o primeiro-ministro
britânico Clement Attlee costumava alertar para a «falácia fundamental» de
acreditar que «é possível através de mecanismos cada vez mais elaborados
escapar à necessidade de os seres humanos confiarem uns nos outros»(10).
Mas esta era exactamente a premissa na qual se baseavam as instituições da
unidade europeia pós-guerra, com consequências que estavam finalmente a
fazer-se sentir. A UE sofria de um sério «défice democrático».
A cada eleição directa para o Parlamento Europeu a abstenção aumentava;
as únicas excepções a esta regra eram as ocasiões em que as eleições
nacionais e europeias coincidiam e os eleitores que tinham sido mobilizados
em torno das questões locais ou nacionais aproveitavam também para votar
nas eleições europeias. Caso contrário, o declínio acentuava-se – em França, a
ida às urnas caiu de 60% em 1979 para 43% em 2004; na Alemanha, de 66%
para 43%; na Holanda, de 58% para 39%(11).
O contraste entre o interesse que os eleitores demonstravam pela política
nacional e a sua crescente indiferença pelo Parlamento em Estrasburgo é
especialmente elucidativo. Nas eleições europeias de Junho de 2004, as
primeiras desde o alargamento da União, os votos no Reino Unido caíram 20
pontos percentuais em relação às eleições nacionais mais recentes, e em
Espanha 23 pontos percentuais; Portugal registou uma descida de 24 pontos
percentuais, a Finlândia 39 pontos, a Áustria 42 pontos e a Suécia 43 pontos
(de uma comparência às urnas na ordem dos 80% nas eleições nacionais para
apenas 37% para a votação europeia).
O padrão é demasiado consistente para ser atribuído a circunstâncias
locais. Por outro lado – e com implicações mais sérias para o futuro da União
–, verificou-se também nos novos Estados-Membros de Leste, embora tendo
sido a sua primeira oportunidade de participar nas eleições para o Parlamento
Europeu, depois de tanto tempo a aguardar pela adesão. Na Hungria, a
comparência às urnas nas eleições europeias realizadas em Junho de 2004 foi
inferior à das últimas eleições nacionais em 32 pontos percentuais; na
Estónia, 31 pontos; na Eslováquia, onde as últimas eleições nacionais tinham
tido uma adesão de 70%, a faixa do eleitorado que se deu ao incómodo de ir
votar para as eleições europeias foi de 17%. Na Polónia, a adesão de apenas
20% representava um declínio de 26 pontos relativamente à eleições
nacionais de 2001 e foi a mais baixa desde a queda do comunismo.
Por que razão se mostravam os europeus, tanto os «antigos» como os
«novos», tão indiferentes aos assuntos da União Europeia? Em larga medida
devido à convicção generalizada de que esses assuntos não tinham influência
nas suas vidas. A maioria do governos europeus nunca realizara um referendo
para determinar se deviam ou não aderir à UE ou à zona euro – também
porque nos países em que a questão fora efectivamente objecto de um
referendo nacional tinha sido rejeitada, ou então aprovada por margens
diminutas. Por esse motivo, a União não «pertencia» aos cidadãos – parecia
de certo modo à parte dos instrumentos habituais da democracia.
Além disso, grande parte do público europeu sentia (e com razão) que de
todas as instituições da UE, os 732 membros eleitos do Parlamento Europeu
eram os menos importantes. O verdadeiro poder encontrava-se nas mãos de
uma Comissão designada por governos nacionais e de um Conselho de
Ministros que compreendia os seus representantes. Em suma, era nas eleições
nacionais que as escolhas decisivas eram feitas. Para quê perder tempo com
questões de segundo plano?
Por outro lado, como se tornava cada vez mais claro mesmo para os
cidadãos menos atentos, os homens e mulheres «sem rosto» de Bruxelas
detinham agora um verdadeiro poder. Tudo, desde a forma dos pepinos à cor e
à escolha de palavras nos passaportes, era agora decidido em Bruxelas.
«Bruxelas» podia dar (desde subsídios para o leite a bolsas de estudo) e
«Bruxelas» podia tirar (a nossa moeda, o direito a despedirmos os nossos
funcionários, até o rótulo do queijo que comíamos). E todos os governos
nacionais num momento ou outro das últimas décadas tinham aproveitado
para atribuir a «Bruxelas» as culpas pelo aparecimento de leis ou impostos
impopulares, ou políticas económicas que apoiavam tacitamente, mas pelas
quais preferiam não assumir a responsabilidade.
Nestas circunstâncias, o défice democrático da União podia facilmente
converter o desinteresse em hostilidade, na medida em que as decisões
estavam a ser tomadas «lá» com consequências prejudiciais para nós «aqui» e
em relação às quais «nós» não tínhamos uma palavra a dizer: um preconceito
alimentado por políticos irresponsáveis de partidos dominantes, mas
difundido por demagogos nacionalistas. Não foi por acaso que nas mesmas
eleições de Junho de 2004, em que se registou uma diminuição acentuada do
interesse dos eleitores, muitos daqueles que efectivamente compareceram à
urnas deram o seu voto a candidatos abertamente – por vezes radicalmente –
antieuropeus.
Na Europa Ocidental, foi o próprio alargamento a determinar o aumento
da abstenção. Na Grã-Bretanha, o eurofóbico Partido da Independência
Britânico e o Partido Nacional Britânico de extrema-direita somaram entre si
21% dos votos, prometendo manter o Reino Unido livre da «Europa» e
protegê-lo da vaga de imigrantes que se previa que viesse procurar asilo no
país. O Vlaams Blok na Bélgica, o Dansk Folkeparti (Partido do Povo) na
Dinamarca, e a Liga do Norte em Itália situavam-se todos num registo
idêntico – como acontecera no passado, mas desta vez com bastante mais
sucesso.
Em França, a Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen adoptou uma posição
semelhante; mas as dúvidas dos Franceses relativamente ao alargamento da
União não se circunscreviam aos extremos políticos. Já não era segredo que a
classe política francesa era contra o alargamento da UE, que resultaria numa
diluição da influência da França: Mitterrand, Chirac e os seus representantes
diplomáticos tinham-se todos esforçado para adiar o inevitável tanto quanto
possível. A opinião pública reflectia estes sentimentos: numa sondagem
efectuada quatro meses antes de os novos Estados-Membros aderirem à
União, 70% dos eleitores franceses declararam que a UE «não se encontrava
preparada» para a sua chegada, enquanto 55% simplesmente se opunham à
sua inclusão (em comparação aos 35% do total de eleitores da UE)(12).
Contudo, a antipatia face à UE verificou-se também na Europa de Leste.
Na República Checa, o Partido Democrático Cívico – na linha de Vaclav
Klaus e ostensivamente céptico relativamente à UE e aos seus poderes
«excessivos» – foi o claro vencedor em 2004, conquistando 38% dos lugares
do país no Parlamento Europeu. Na vizinha Polónia, os partidos eurocépticos
da extrema-direita tiveram melhores resultados do que a coligação de centro-
esquerda então no poder – o que não causa surpresa, dado que numa
sondagem do Eurobarómetro, realizada alguns meses antes, só metade do
eleitorado polaco acreditava que a UE era uma «coisa boa».
E no entanto, feitas as contas, a União Europeia é uma coisa boa. Os
benefícios económicos do mercado comum têm sido reais, como até os
Britânicos mais eurocépticos acabaram por reconhecer, especialmente com o
passar da paixão pela «harmonização» que caracterizou a presidência de
Jacques Delors. A nova liberdade de viajar, trabalhar e estudar em qualquer
parte da União foi vantajosa sobretudo para os mais jovens. E havia ainda
outro motivo. Em termos relativos, o chamado elemento «social» no
orçamento da UE foi diminuto – menos de 1% do PNB da área europeia. No
entanto, desde finais dos anos 80, os orçamentos da Comunidade Europeia e
da União tiveram um carácter redistributivo, sendo transferidos recursos de
regiões ricas para regiões mais pobres e contribuindo para uma redução
progressiva do fosso entre ricos e pobres: substituindo, com efeito, os
anteriores programas nacionais sociais-democratas(13).
Nos últimos anos, os cidadãos da Europa adquiriram até o seu próprio
tribunal. O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), que
constava em 1952 do mesmo Tratado de Paris que estabeleceu a Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço, começou por desempenhar a função limitada
de garantir que a legislação da CE («lei comunitária») era interpretada e
aplicada do mesmo modo em cada um dos Estados-Membros. Mas no final do
século, os seus juízes – originalmente um de cada Estado-Membro – foram
autorizados a resolver contendas legais entre os Estados-Membros e as
instituições da UE, assim como a pronunciar-se sobre processos movidos
contra decisões de tribunais de instância inferior ou mesmo contra governos
nacionais. O TJCE tinha, com efeito, assumido muitos dos poderes e atributos
de um Tribunal de Apelos pan-europeu(14).
Como sugere o exemplo do Tribunal, o modo algo indirecto e muitas vezes
inadvertido como surgiram as instituições europeias teve algumas vantagens.
Muito poucos juristas ou legisladores, mesmo nos Estados mais pró-Europa
do «núcleo» europeu, estariam dispostos a abdicar da supremacia legal do
país caso essa proposta tivesse surgido logo de início. Da mesma forma, se
um «projecto europeu» claramente articulado, descrevendo os objectivos e as
instituições da União tal como vieram a tornar-se mais tarde, tivesse sido
submetido a referendos nos vários Estados da Europa Ocidental, teria
certamente sido rejeitado.
A vantagem da ideia europeia nas décadas que se seguiram à Segunda
Guerra Mundial residira precisamente na sua imprecisão. Como
«crescimento» ou «paz» – conceitos com os quais estava intimamente
associada nos objectivos dos seus proponentes –, a «Europa» era algo
demasiado benigno para despertar qualquer oposição efectiva(15). No início
dos anos 70, quando o presidente francês Georges Pompidou começou a falar
em termos vagos numa «União Europeia», o ministro dos Negócios
Estrangeiros Michel Jobert perguntou uma vez ao seu colega Edouard
Balladur (futuro primeiro-ministro francês) a que se referia exactamente o
presidente. «Nada», replicou Balladur. «Mas essa é que a beleza da coisa». O
próprio Pompidou disse que se tratava apenas de uma «fórmula vaga… para
evitar paralisar as discussões doutrinais»(16).
Claro que foi esta imprecisão na fórmula, combinada com as directivas
legislativas tão exactas da UE, que deu origem ao défice democrático: é difícil
os europeus interessarem-se por uma União cuja identidade se manteve pouco
clara durante tanto tempo e que parece ao mesmo tempo interferir em cada
aspecto das suas vidas. E contudo, apesar de todas as suas falhas como
sistema indirecto de governação, é inegável que a União tem alguns traços
interessantes e originais. As decisões e as leis podem situar-se a um nível
supragovernamental, mas a sua implementação deve-se às autoridades
nacionais. Tudo tem de ser sujeito a acordo, uma vez que não existem
instrumentos de coerção: não existem cobradores de impostos da UE, nem
polícias da UE. A União Europeia representa, assim, um compromisso
invulgar: governação internacional empreendida por governos nacionais.
Finalmente, embora a UE não tenha meios nem mecanismos para evitar
que os seus Estados-Membros entrem em conflito, a sua própria existência faz
com que a ideia se torne absurda. A lição de que a guerra era um preço
demasiado elevado para a obtenção de benefícios políticos ou territoriais tinha
já ficado clara para os vencedores da Primeira Guerra Mundial, embora
tivesse sido necessária uma outra guerra para transmitir a mesma lição aos
vencidos. Mas a hipótese de uma terceira guerra intra-europeia ser catastrófica
e talvez terminal não significa que esta não pudesse ter acontecido, pelo
menos nos primeiros anos do pós-guerra.
No final do século, contudo, as elites e as instituições da UE encontravam-
se de tal forma interligadas e dependentes umas das outras que um conflito
armado, embora nunca totalmente impossível, se tornara de algum modo
inconcebível. É por esse motivo que a «Europa» era tão ambicionada pelos
membros aspirantes, como a Letónia ou a Polónia, uma fuga ao seu passado e
um seguro para o futuro. Ironicamente, é também essa a razão de os próprios
líderes da UE se terem revelado tão desconcertantemente impotentes quando
confrontados com o cenário bem real que foi a guerra dos Balcãs.
A forma como se viu humilhada por causa da Jugoslávia(17) serve para
relembrar que a UE não pode escapar aos defeitos das suas virtudes. Por não
ser um Estado, a União conseguiu unir cerca de 450 milhões de pessoas numa
única comunidade livremente articulada, onde as divergências são
surpreendentemente escassas. Todavia, por não ser um Estado – uma vez que
a lealdade dos cidadãos vai em primeiro lugar para o país onde se encontram,
a cujas leis obedecem, cuja língua falam e cujos impostos pagam –, a UE não
tem mecanismos para determinar ou reforçar os seus próprios interesses em
questões de segurança.
Tal não significa que a «Europa» não tenha uma política externa comum.
Pelo contrário, a Comunidade Europeia e a sua sucessora UE têm, ao longo de
muitas décadas, sido extraordinariamente eficazes a promover e a defender os
seus interesses em fóruns internacionais e contra competidores externos.
Contudo, desde o início que esses interesses têm tido uma orientação
declaradamente económica – ou melhor, proteccionista. Os ministros da
Economia europeus e os comissários do Comércio têm estado envolvidos em
autênticos combates com Washington por causa da redução das taxas para os
exportadores americanos ou das restrições impostas à importação de produtos
europeus.
Mais controverso ainda é o facto de a UE se ter revelado bastante eficaz na
luta para manter tarifas externas elevadas em defesa dos agricultores europeus
subsidiados – limitando o comércio livre em bens como o açúcar, por
exemplo, em detrimento dos produtores de África ou da América Central(18).
Porém, se os diferentes Estados-Membros da UE – mesmo os mais poderosos
– têm de bom grado passado para Bruxelas a responsabilidade de defender o
seu caso económico na Organização Mundial de Comércio e não só, têm
reservado para si próprios o atributo vital de qualquer Estado moderno. A UE
não tem Exército.
Em parte, isto é um acaso da história. No início da década de 50, muita
gente acreditava que no futuro os europeus ocidentais podiam e deviam
organizar colectivamente a sua política militar – numa sessão da Assembleia
Consultiva do Conselho da Europa em Agosto de 1950, Paul Reynaud,
representando a França, chegou a defender a existência de um ministro
europeu da Guerra. Contudo, o facto de a proposta ter sido derrotada a favor
de uma Força de Defesa Europeia (ver capítulo 8), e a incorporação da
Alemanha de Leste na NATO, puseram fim a tais ideias durante uma geração;
em vez disso, a Europa Ocidental acomodou-se confortavelmente sob o
guarda-chuva nuclear americano.
Com o fim da Guerra da Coreia e a retirada do império, todos os países da
Europa Ocidental procederam a cortes no seu orçamento da Defesa. Depois
do colapso do comunismo, os gastos com as forças armadas sofreram uma
nova redução. Em finais dos anos 80, a despesa orçamental com a Defesa
entre os membros da NATO tinha, em média, caído para 3,4% do PNB; em
2003, a Dinamarca gastava apenas 1,6% do PNB com a Defesa; a Itália,
1,5%; a Espanha, apenas 1,4%. Só a França e a Grã-Bretanha gastavam
substancialmente mais, embora em nenhum dos casos ultrapassassem os 5% –
um valor irrisório em termos históricos.
Por outro lado, nenhuma das forças armadas da Europa estava sob controlo
«europeu», nem se previa que viesse a estar num futuro próximo, apesar dos
planos anunciados em 2000 para uma «Força de Reacção Rápida». Embora
tenha existido durante alguns anos um comissário europeu para as Relações
Externas, desde o Tratado de Amsterdão as suas funções tinham sido
duplicadas (e a sua autoridade consequentemente reduzida) por um alto
representante para a Política Externa e de Segurança Comum, responsável
apenas perante o Conselho de Ministros da UE. E nem o comissário nem o
alto representante tinham qualquer autoridade para iniciar a sua própria
política, enviar contingentes armados ou falar de políticas externas pelos
ministros dos Estados-Membros, salvo instruções nesse sentido. A questão
mordaz colocada anteriormente por Kissinger – «Se eu quiser telefonar à
Europa, para que número devo ligar?» – fazia ainda todo o sentido.
Contudo, estas limitações – o facto de, apesar da sua dimensão e riqueza, a
União não ser um Estado, muito menos uma grande potência – serviram
paradoxalmente para promover a sua imagem, na Europa e não só. A este
respeito, pelo menos, a UE começava a assemelhar-se à Suíça, um repositório
de organizações internacionais e cooperação, um modelo de estratégias «pós-
nacionais» para resolver problemas e garantir a coesão social: não tanto uma
rede de instituições ou um corpo de leis, mas, antes, um conjunto de valores –
os «valores europeus» – concretizados na nova Carta dos Direitos
Fundamentais.
Se os valores e normas desta nova Europa se encontravam sob pressão em
finais do século XX, tal não se devia aos Estados-nações estabelecidos aos
quais a ideia de Europa sempre estivera erradamente justaposta. Em vez disso,
tanto a UE como os diversos Estados-membros deparavam agora com uma
vaga sem precedentes de desafios económicos e sociais, a qual lhes era
imposta por forças que escapavam ao seu controlo, na sua maioria associadas
de uma forma ou outra com aquilo que começava a ser vulgarmente
designado como globalização.
Não havia na globalização nada de especialmente misterioso. Nem sequer
era algo de inédito – o impacto na economia mundial das rápidas e modernas
redes de transportes e telecomunicações em finais do século XIX foi pelo
menos tão dramático como a transformação causada pela Internet e pela
desregulamentação e liberalização dos mercados financeiros um século mais
tarde. Nem sequer havia nada de novo na distribuição desigual dos benefícios
do comércio liberalizado – sobretudo porque, em finais do século XX, como
nos anos que antecederam 1914, os regimes de comércio internacional iam
sistematicamente ao encontro dos interesses dos mais ricos e poderosos.
No entanto, da perspectiva europeia, as últimas transformações no mundo
económico distinguiam-se num aspecto importante. No final do século XIX,
os Estados europeus estavam apenas a começar a expandir o seu alcance
interno: com o decorrer do tempo, muitos deles viriam a possuir, operar ou
regular os grandes sectores da economia. A despesa pública – financiada por
impostos novos e progressivos – iria sofrer um aumento acentuado, em parte
para pagar as guerras, mas cada vez mais para satisfazer as necessidades dos
serviços e da assistência social pelos quais o Estado passava a assumir
responsabilidade.
Contudo, a internacionalização económica dos anos 90 surgiu na esteira da
primeira grande vaga de privatizações na Europa e deu origem a outras (ver
capítulo 17). O Estado europeu encontrava-se agora em recessão – primeiro
na Grã-Bretanha, depois na maior parte da Europa Ocidental e finalmente na
antiga Europa de Leste – um processo intensificado ainda pela implementação
após 1987 do Acto Único Europeu, o qual promovia a concorrência dentro e
através das fronteiras. Mediante fusões, aquisições e a internacionalização das
suas operações, as empresas e multinacionais actuavam agora a uma escala
global. A produção e a distribuição de bens ultrapassavam muitas vezes o
controlo dos países enquanto entidades individuais.
O capital, por sua vez, começava a multiplicar-se e a migrar de formas que
seriam impensáveis apenas alguns anos antes. Em 1980, a soma de todos os
empréstimos bancários correspondia a 324 mil milhões de dólares por ano;
em 1991, esse número crescera para 7,5 biliões – uma subida de 2000% em
pouco mais de uma década. E era apenas o começo. O controlo sobre o
movimento de capital – eliminado pela maioria dos Estados europeus ao
longo da década de 80 – parecia agora uma prática tão antiquada como o
racionamento de comida. O crash de Setembro de 1992 – quando primeiro o
Reino Unido e depois a Itália foram forçados a sair do Sistema Monetário
Europeu e obrigados a desvalorizar a moeda por especuladores privados e
investidores institucionais cujas actividades não podiam impedir – foi um
momento simbólico.
As vantagens desta revolução na economia internacional eram evidentes.
O capital de investimento, não estando já restringido por fronteiras nacionais,
regimes de taxas de câmbio ou regulação monetária local, viajava livremente
para onde era necessário (e onde previa lucro) – em 1990, 34% da dívida da
Alemanha estava já na mão de estrangeiros. Mas havia também desvantagens:
as indústrias europeias, com as margens de lucro limitadas pelos salários
elevados e pelos custos inerentes à contratação de mão-de-obra especializada
na Alemanha, na França ou na Suécia, tinham agora a liberdade de procurar
no estrangeiro investidores internacionais e mão-de-obra mais flexível e
menos dispendiosa.
Em vez de importar para a Europa mão-de-obra barata de países pobres –
como acontecera no passado –, as empresas alemãs, britânicas ou francesas
consideravam agora mais vantajoso exportar as suas fábricas, instalando-as no
Brasil ou na Nigéria, em Portugal ou na Roménia, vendendo depois
directamente o produto final em mercados de todo o mundo. Esta prática
acelerou ainda mais a desindustrialização da Europa Ocidental, acentuando o
desemprego, já grave, em muitas regiões – e sobrecarregando o Estado,
responsável pelos subsídios e outros serviços sociais.
Quando a última mina de carvão em França – em Creutzwald, na Moselle
– fechou em Abril de 2004, ninguém fingiu sequer que os antigos mineiros
voltariam a encontrar trabalho regular. O desemprego no distrito de Moselle
rondava os 10% da população activa; mais a norte, nas antigas cidades ao
longo da fronteira com a Bélgica, correspondia a 15%. A França perdera no
total 1,5 milhões de postos de trabalho na indústria ao longo das últimas três
décadas do século, a maioria dos quais durante os anos 80. A Espanha, que
perdeu rapidamente qualquer vantagem relativa no facto de ser uma das
economias mais atrasadas da Europa Ocidental, viu-se privada de 600 000
postos de emprego nos 20 anos que se seguiram à sua transição para a
democracia. No pico da recessão que se viveu em meados dos anos 90, 44%
da população activa com menos de 25 anos estava desempregada.
O desemprego não era novo. E graças à generosa rede de segurança social,
na maioria dos países da UE, o impacto económico da falta de emprego nos
indivíduos e nas comunidades não foi, de modo algum, comparável à
devastação que se fez sentir no período de entre-as-guerras (as consequências
a nível psicológico constituem outra questão). Contudo, o que realmente
distinguia os custos sociais da estagnação económica dos últimos anos do
século XX era o facto de se verificarem numa época de abundância. A
privatização e a abertura dos mercados financeiros tinham gerado uma
riqueza substancial, embora nas mãos de uma minoria; em certos lugares –
Londres ou Barcelona, por exemplo – as suas consequências eram claramente
visíveis. E graças à redução das distâncias e à crescente velocidade dos meios
de comunicação – através dos computadores e dos media electrónicos – a
informação relativamente à forma como viviam as outras pessoas tornava-se
acessível para todos.
Foi esta noção dos contrastes flagrantes entre riqueza e pobreza,
prosperidade e insegurança, abundância privada e miséria pública que deu
origem na Europa a um crescente cepticismo face às tão apregoadas virtudes
dos mercados livres e da globalização sem limites – mesmo sendo muitos
europeus os beneficiários indirectos das mudanças que deploravam. No
passado, sentimentos deste tipo – aliados à pressão do trabalho organizado e
ao interesse de políticos – poderiam ter favorecido um recuo para uma
qualquer forma de proteccionismo.
No entanto, os governos tinham agora as mãos atadas e a organização
laboral, no sentido tradicional, já praticamente não existia. Foi só em França
que uma mão-de-obra sindicalizada conseguiu, com a ajuda da opinião
pública, bloquear temporariamente a privatização de empresas públicas, e só
em casos tão especiais como a Electricité de France, um ícone do sector
nacionalizado do pós-guerra, cujos funcionários estavam entre os escassos
membros que restavam da Confédération Générale du Travail (CGT), um
gigante de outros tempos (de liderança comunista). Nos últimos anos do
século, mesmo quando o resto do mercado europeu de energia se encontrava
já liberalizado, a EdF continuou a ser propriedade do Estado.
Contudo, a CGT, que fora em tempos o principal sindicato dos operários
em França, era uma sombra de si própria – desde 1980, o movimento sindical
francês perdera, ao todo, dois terços dos seus membros – e os trabalhadores
que representava já não eram típicos da população activa em França ou
noutros países. O próprio trabalho mudara. O que começava a emergir em
alguns lugares era um novo sistema de quatro classes. No topo encontravam-
se o novo estrato profissional: metropolitano, cosmopolita, rico e instruído –
muitas vezes ligado a bancos e outras agências financeiras, os primeiros
beneficiários da nova economia global. Depois vinha uma segunda camada,
um núcleo protegido de trabalhadores tradicionais – em fábricas, indústrias de
serviços ou no sector público– com empregos seguros e muitos dos seus
benefícios e garantias tradicionais ainda intactos.
Uma terceira camada consistia em pequenos negócios e serviços – donos
de lojas, agentes de viagens, alfaiates, técnicos de reparação de material
electrónico e outros –, onde donos e empregados vinham cada vez mais de
comunidades imigrantes ou eram seus descendentes (Árabes em França,
Turcos ou Curdos na Alemanha, sul-asiáticos na Grã-Bretanha). A este grupo
deve ser acrescentada a economia «cinzenta», de consideráveis dimensões e
organização tipicamente familiar, do Sul da Europa. Em Itália, onde todos os
artigos, desde os sapatos aos têxteis, passando por peças de máquinas, eram
muitas vezes produzidos e distribuídos abaixo do escrutínio das autoridades,
calculava-se, em 1997, que o sector «informal» contribuía pelo menos com
um quarto do PIB do país. Em Portugal, a estimativa apontava para os 22%;
mas, em algumas regiões – como Braga, no norte do país – os trabalhadores
«não oficiais» constituíam 45% da mão-de-obra local.
Finalmente, vinha a quarta camada – aquela que apresentava um
crescimento mais rápido: pessoas empregadas (quando o estavam de facto)
em lugares que não ofereciam nem a segurança a longo prazo da mão-de-obra
especializada tradicional, nem os benefícios que se tinham generalizado com
o crescimento económico acelerado dos anos 50-60. É certo que em alguns
países – a Grã-Bretanha ou a Holanda – os números relativos ao desemprego
mantinham-se satisfatoriamente baixos. Mas, apesar da ideia bastante
difundida de que tal se devia aos virtuosos mecanismos do mercado livre e
globalizado, muitas das pessoas que já não constavam das listas de
desempregados – mulheres e jovens, na sua maioria – tinham agora empregos
mal pagos a tempo parcial, sem benefícios; ou então tinham contratos a prazo
em programas de emprego subsidiados ou suportados pelo Estado.
Aqueles cujos salários eram demasiado baixos para se sustentarem a si e às
suas famílias podiam ainda recorrer ao Estado-providência, e foi isso que
muitos fizeram. No Reino Unido, onde o assalto thatcherista simultaneamente
ao Estado e à sociedade se fez sentir de forma mais acentuada, 14 milhões de
pessoas viviam agora na pobreza, incluindo 4 milhões de crianças(19). Uma
em cada seis pessoas dependia dos programas de Apoio ao Rendimento ou do
Crédito Familiar para se manter acima do limiar da pobreza. O problema dos
sem-abrigo, que no Norte da Europa tinham sido efectivamente resolvido em
finais dos anos 50, estava a ressurgir: ao longo dos mandatos de Thatcher, o
número de sem-abrigo em Londres aumentou dez vezes. Em meados dos anos
90, chegara às 80 000 pessoas. Apenas a alguns quilómetros de algumas das
áreas residenciais mais caras do mundo, certas zonas da capital britânica
começavam a assemelhar-se à «Londres Rejeitada» de finais da época
vitoriana(20).
No passado, as fases de crescimento económico tendiam a melhorar a
situação dos pobres, proporcionando a muitas pessoas empregos mais seguros
e mais bem pagos, mas isso já não se verificava. Por outras palavras, a Europa
estava a desenvolver uma subclasse desfavorecida no meio da abundância.
Conforme tinha previsto o sociólogo francês André Gorz nos anos 60, o fim
da era industrial daria origem a uma nova classe de trabalhadores temporários
sem emprego fixo – «uma não-classe de não-trabalhadores» –
simultaneamente à margem da vida moderna e, contudo, bem no seu
âmago(21).
Como a sua equivalente americana, esta subclasse europeia caracterizava-
se não apenas pela pobreza e pelo desemprego (ou subemprego), mas
também, e cada vez mais, pela raça: em meados da década de 90, a taxa de
desemprego em Londres para os jovens negros do sexo masculino era de
51%. Os pobres, como a Europa no seu todo em finais do século, eram
surpreendentemente multinacionais – ou «multiculturais», como tinham
começado a ser descritos, atendendo ao facto de que muitos Holandeses,
Alemães ou Britânicos de pele escura eram filhos, ou até netos, da primeira
vaga de imigrantes marroquinos, turcos ou paquistaneses. Cidades como
Roterdão ou Leicester eram agora multilingues e multicolores, de uma forma
que impressionaria qualquer pessoa que regressasse depois de uma ausência
de apenas duas décadas. Em 1998, as crianças brancas eram uma minoria nas
escolas secundárias públicas das zonas pobres de Londres.
As maiores cidades europeias, especialmente Londres, eram agora
verdadeiramente cosmopolitas. Se os empregos bem remunerados da cidade
se destinavam ainda aos europeus de raça branca (e aos Norte-Americanos),
quase todo o trabalho mal pago, desde a limpeza de ruas ao tomar conta de
crianças era agora feito, não pelos europeus tradicionalmente de «segunda
classe» vindos do Alentejo ou do Mezzogiorno, mas por minorias
frequentemente constituídas por negros ou mestiços que muitas vezes não
tinham licença de trabalho. Segundo dados oficiais, o número de estrangeiros
residentes em Londres e no Sudeste de Inglaterra nos anos 1992-2002 era de
700 000; mas o número real era consideravelmente mais elevado.
A imigração, embora sempre desencorajada e sujeita a um controlo
rigoroso em toda a Europa Ocidental, era ainda, então, um factor demográfico
de importância maior: de entre as crianças das zonas pobres de Londres, em
1998, um terço delas não tinha o inglês por primeira língua. Tratava-se em
muitos casos dos filhos de refugiados, pessoas que tinham vindo procurar
asilo, o que se intensificara depois das guerras da Jugoslávia; mas também
trabalhadores migrantes da Ásia Central e do Sudeste Asiático, do Médio
Oriente e de várias zonas de África – muitos deles ilegais e sem documentos.
Na Alemanha, cuja política de asilo era (e continua a ser) de longe a mais
generosa da Europa(22), mas onde era geralmente muito difícil para os
imigrantes obter a plena cidadania, estimava-se que devia haver no final do
século cinco milhões de pessoas nestas condições – contando com famílias e
dependentes. No início do novo século, a maioria dos pedidos de asilo à
Alemanha vinha do Iraque, da Turquia e dos países da antiga Jugoslávia, mas
havia também um número cada vez mais elevado de solicitações do Irão, do
Afeganistão, da Rússia e do Vietname.
O receio de que a Europa Ocidental pudesse vir a ser «invadida» por
«refugiados económicos», imigrantes ilegais, pessoas à procura de asilo e
outras contribuiu para a falta de entusiasmo relativamente ao alargamento da
UE. Já na década de 80, eram muitos os trabalhadores ilegais na construção
civil na Grã-Bretanha e na Alemanha. Mas o problema não era tanto a
Polónia, ou a Hungria, ou qualquer outro dos futuros Estados-Membros da
Europa Central, mas sim as terras a leste. Em 1992, a própria Polónia tinha
290 000 imigrantes em situação irregular, vindos sobretudo da Bulgária, da
Roménia e da ex-URSS; a Hungria, com uma população de apenas 10
milhões, acolhia mais de 100 000 exilados. Embora a vida nestes países –
como na Eslováquia ou na República Checa – fosse difícil, não era
intolerável, e o afastamento entre estas nações e os seus vizinhos ocidentais
começava a diminuir, ainda que lentamente. O fosso que separava a Europa
Central e o resto da Europa pós-comunista era bem mais acentuado.
Assim, enquanto que no final dos anos 90 o salário mensal médio na
Polónia e na República Checa se estava a aproximar dos 400 dólares, na
Bielorrússia, na Ucrânia e na Roménia rondava os 80; na Bulgária situava-se
abaixo dos 70; e na Moldova era apenas 30 – sendo esta uma média pouco
reveladora, uma vez que fora da capital, Chisinau, as remunerações eram
inferiores, com 48% da população a viver ainda da agricultura. E, ao contrário
da Polónia, ou até da Bulgária, a situação nas antigas repúblicas soviéticas
não apresentava melhorias: no ano de 2000, um em cada dois Moldavos tinha
um rendimento inferior a 220 dólares por ano – apenas 19 dólares por mês.
Dadas as circunstâncias, a única esperança para os Moldavos – ou para os
Ucranianos, ou mesmo para muitos Russos fora das maiores áreas urbanas –
era procurar trabalho no Ocidente. Assim, era alarmante o número de pessoas
nestas condições – especialmente mulheres – que acabavam por cair nas mãos
de redes criminosas, sendo enviadas para a UE através da Roménia e dos
Balcãs, para serem empregadas, na melhor das hipóteses, como aprendizes em
oficinas e restaurantes; na pior das hipóteses, e mais frequentemente, como
prostitutas: na Alemanha ou na Itália – ou até na Bósnia, prestando serviços a
uma clientela bem paga de soldados ocidentais, administradores e
«trabalhadores humanitários». Assim, «trabalhadoras-convidadas»
involuntárias da Moldova e da Ucrânia juntavam-se aos Roma (Ciganos) na
base da pirâmide multicultural do continente(23).
As vítimas do comércio sexual eram na maioria dos casos invisíveis – tal
como gerações anteriores de imigrantes brancos dos extremos da Europa,
misturavam-se com relativa facilidade com a população predominante da
região, pelo que a polícia e os serviços sociais tinham bastante dificuldade em
localizá-las. Mas a maioria das pessoas que os sociólogos e críticos franceses
designaram por les exclus («os excluídos») era perfeitamente visível. A nova
subclasse consistia em pessoas excluídas não só do mercado de trabalho, mas
também das «oportunidades da vida»: indivíduos isolados, à margem do
movimento económico dominante, os seus filhos com fracos níveis de
escolaridade, as famílias ao abandono em apartamentos que pouco mais eram
que barracas, em blocos na periferia das cidades, sem acesso a lojas, serviços
ou transportes. Em 2004, um estudo realizado pelo ministério do Interior
concluiu que cerca de dois milhões de pessoas viviam em guetos urbanos,
degradadas pela exclusão social, pela discriminação racial e por níveis
elevados de violência doméstica. Em alguns destes quartiers chauds, o
desemprego entre a população jovem atingira os 50%; os mais afectados eram
os jovens de ascendência argelina ou marroquina.
Frequentemente, esta subclasse distinguia-se não só pela cor mas também
pelo credo, pois para além de ser multicultural, a União Europeia tornava-se
progressivamente multirreligiosa. Os cristãos continuavam a constituir a
esmagadora maioria, embora não praticantes na maior parte dos casos. Os
judeus eram agora uma pequena minoria, em número significativo apenas na
Rússia, na França e, de forma bastante menos expressiva, na Grã-Bretanha e
na Hungria. Todavia, os hindus e principalmente os muçulmanos constituíam
uma presença substancial e visível na Grã-Bretanha, Bélgica, Holanda e
Alemanha, bem como nas principais cidades da Escandinávia, da Itália e da
Europa Central. E – caso único entre as principais religiões do mundo na
Europa – o número de aderentes ao Islão subia rapidamente.
Nos primeiros anos do século XXI havia talvez seis milhões de
muçulmanos em França (na sua maioria de origem norte-africana) e um
número aproximado na Alemanha (sobretudo de proveniência turca ou curda).
Juntamente com os quase dois milhões de muçulmanos residentes na Grã-
Bretanha (vindos principalmente do Paquistão e do Bangladesh) e uma
presença significativa nos países do Benelux e na Itália, estes números
apontavam para um total de cerca de 15 milhões de muçulmanos em toda a
União.
A presença muçulmana em comunidades até então maioritariamente
seculares colocava algumas questões difíceis em termos de política social:
que medidas deviam ser tomadas relativamente ao uso de vestuário ou
símbolos de conotação religiosa nas escolas públicas? Até que ponto devia o
Estado encorajar (ou desencorajar) instituições e equipamentos culturais
separados? Seria boa política apoiar comunidades multiculturais (mantendo
inevitavelmente a sua separação) ou deveriam as autoridades facilitar ou
mesmo promover a integração? A política oficial em França preconizava a
integração cultural e proibiu a exibição de símbolos religiosos nas escolas;
noutros países, nomeadamente na Grã-Bretanha e na Holanda, havia uma
maior tolerância face às diferenças culturais e à afirmação religiosa dos
indivíduos. Contudo, as opiniões dividiam-se em todo o lado (ver capítulo
23).
Se questões como estas se tornaram rapidamente prioritárias em matéria de
governação, sendo cada vez mais abordadas em debates sobre a imigração e o
asilo político, tal devia-se à crescente ansiedade que se fazia sentir um pouco
por todo o continente perante o aparecimento de uma nova geração de
partidos xenófobos. Alguns destes partidos tinham as suas raízes numa época
anterior de política sectária ou nacionalista; outros – como o
surpreendentemente popular Dansk Folkeparti ou a Lista de Pim Fortuyn na
Holanda – tinham uma origem recente. Mas todos eles tinham em comum a
prática de explorar sentimentos «anti-imigrantes».
Quer se opusessem às «minorias étnicas», como o Partido Nacional
Britânico, quer tivessem como alvo os imigrantes – em alemão, os termos
favoritos eram «estrangeiros» ou «forasteiros» –, à semelhança da Frente
Nacional de Jean-Marie Le Pen, os partidos de extrema-direita não tiveram
falta de argumentos neste período. Por um lado, o crescimento mais lento
combinado com a vulnerabilidade das forças económicas globais expunha
muitos trabalhadores a um nível de insegurança económica sem precedentes.
Por outro, os antigos órgãos da esquerda política já não estavam em posição
de mobilizar essa insegurança sob o rótulo da classe: não foi por acaso que a
Frente Nacional obteve frequentemente os melhores resultados em distritos
que em tempos tinham sido bastiões do Partido Comunista Francês.
A presença em número crescente de uma minoria visível e culturalmente
distinta – e a perspectiva da vinda de mais estrangeiros ainda, os quais seriam
mantidos à custa do sistema de segurança social ou ficariam com os «nossos»
empregos, uma vez abertas as fronteiras de Leste – era a cereja no topo do
bolo para a nova direita. Invocando argumentos do estilo «o barco já está
cheio» – ou acusando os respectivos governos de terem abandonado o
controlo das fronteiras em favor de «interesses cosmopolitas» ou para
satisfazer os «burocratas de Bruxelas» –, demagogos populistas prometiam
deter a imigração, repatriar os «estrangeiros» e devolver o Estado aos seus
cidadãos brancos entrincheirados, marginalizados no seu próprio país.
Em comparação ao fascismo de tempos mais recuados, esta nova
manifestação de xenofobia poderia parecer moderada – embora a Alemanha
tenha conhecido uma onda de crimes motivados pelo ódio aos estrangeiros e
às minorias no início dos anos 90 que levou vários observadores a manifestar
preocupação: Günter Grass acusou a indiferença egocêntrica da cultura
política da Alemanha Ocidental e o entusiasmo míope do país relativamente a
uma unidade «não merecida», defendendo que a responsabilidade pela
violência racista (especialmente nas defuntas cidades industrializadas da
antiga RDA, onde a xenofobia era mais intensa) cabia à elite política
complacente e amnésica do país.
No entanto, apesar de o nível de violência ter sido contido, a dimensão do
apoio público à nova direita era um motivo sério de preocupação. Na vizinha
Áustria, com Jörg Haider, o seu líder jovem e telegénico, o Partido da
Liberdade– herdeiro da Liga de Independentes do pós-guerra, mas
aparentemente liberto das associações nazis deste último –, subia
gradualmente nas sondagens, apresentando-se como o defensor das «pessoas
comuns», deixadas para trás pela colaboração reciprocamente benéfica entre
os dois grandes partidos e ameaçada por uma vaga de «criminosos»,
«consumidores de droga» e outra «populaça estrangeira» que agora invadia a
sua terra.
De modo a não violar a lei, Haider era geralmente cuidadoso e evitava
atitudes que pudessem tornar demasiado óbvia a sua nostalgia do nazismo. Na
sua maioria, os Austríacos (tal como Jean-Marie Le Pen) revelavam os seus
preconceitos apenas de forma indirecta – por exemplo, nomeando, a propósito
de o que quer que o ofendesse na vida pública, indivíduos que por acaso eram
judeus. Tanto o líder como o seu público se sentiam mais confortáveis com
alvos novos, como a União Europeia: «Nós, Austríacos, não devemos
responder perante a UE, nem Maastricht, nem perante qualquer outra ideia
internacional, mas perante esta nossa terra natal».
Nas eleições legislativas austríacas de 1986, o Partido da Liberdade de
Haider conseguiu 9,7% dos votos. Quatro anos mais tarde, atingira os 17%.
Nas eleições de Outubro de 1994, fez estremecer a classe política vienense ao
obter 23%, ficando a apenas quatro pontos do Partido Popular que governara
o país durante os 25 anos que se seguiram à guerra e que dominava ainda nas
regiões rurais da Áustria. Mais assustador ainda era o facto de Haider ter ido
buscar um número considerável de votos ao eleitorado tradicionalmente
socialista da classe trabalhadora de Viena. Este resultado não foi
particularmente surpreendente, tendo em conta que (segundo sondagens de
opinião realizadas em 1995) um terço dos Austríacos partilhava da opinião de
Haider de que os «trabalhadores-convidados» e outros estrangeiros tinham
demasiados benefícios e privilégios no país.
A influência de Haider atingiu o seu auge mesmo no final do século,
quando nas eleições de Outubro de 1999 o seu partido obteve o apoio de 27%
dos eleitores austríacos: afastando o Partido Popular para o terceiro lugar e
ficando a apenas 290 000 votos dos vencedores socialistas. Em Fevereiro de
2000, perante as exclamações horrorizadas algo excessivas dos parceiros
europeus da Áustria, o Partido Popular formou um governo de coligação com
o Partido da Liberdade (embora deixando de fora Haider). O novo chanceler
austríaco, Wolfgang Schüssel, encarara a questão de forma perspicaz: o
Partido da Liberdade era um movimento de protesto, um partido anti-«outros»
que apelava ao «povo sacrificado e enganado» (para citar Pierre Poujade, o
protótipo populista epónimo). Uma vez no governo, exposto ao desgaste do
cargo político e obrigado a partilhar a responsabilidade por medidas
impopulares, depressa perderia o seu brilho. Nas eleições de 2002, o Partido
da Liberdade conseguiu apenas 10,1% dos votos (enquanto o Partido Popular
subira para perto dos 43%). Nas eleições europeias de 2004, o partido de
Haider viu-se reduzido a 6,4% dos votos.
A ascensão e queda de Haider (que permaneceu, no entanto, um
governador popular na sua Caríntia natal) foi emblemático da trajectória dos
partidos antiestrangeiros noutros países. Tendo obtido 17% dos votos em
2002, após o assassinato do seu líder, a Lista de Pim Fortuyn ascendeu
brevemente ao governo holandês, vendo em seguida o seu apoio decair para
apenas 5% nas eleições posteriores e a sua representação parlamentar descer
de 42 lugares para 8. Na Itália, a inclusão da Lega Nord no governo liderado
por Berlusconi precipitou uma queda no apoio com que antes contava.
Na Dinamarca, o Dansk Folkeparti emergira da sua obscura formação em
1995 para se tornar em 2001 o terceiro maior grupo parlamentar. Mantendo-se
fora do governo e centrando-se exclusivamente na questão da imigração, o
partido e a sua líder, Pia Kjærsgaard, conseguiram uma influência muito
superior à que se esperaria de um partido com esta dimensão. Os dois partidos
dinamarqueses dominantes – liberal e social-democrata – competiam entre si,
tentando cada um mostrar-se mais «firme» que o outro nas leis que
enquadravam as questões do asilo e dos residentes estrangeiros. «Nós» –
como expôs Kjærsgaard depois de o seu partido ter alcançado 12% dos votos
nas eleições de 2001 – «é que mandamos»(24).
No sentido em que quase não havia agora políticos dominantes de
esquerda ou de direita que se atrevessem a parecer «brandos» em assuntos
como este, Kjærsgaard tinha razão. Até o pequeno e agressivo Partido
Nacional Britânico conseguiu ensombrar as políticas dos governos do Novo
Partido Trabalhista na Grã-Bretanha. Tradicionalmente marginal – o seu
melhor resultado recente consistira em 7% dos votos em 1997 num distrito de
Leste de Londres onde os Bengalis tinham substituído os judeus no papel de
minoria étnica local – o Partido Nacional Britânico obteve 11 643 votos
(14%) quatro anos mais tarde em dois distritos de Oldham, uma antiga cidade
industrial em Lancashire, onde tinham ocorrido confrontos raciais pouco
antes das eleições.
Quando comparados com os acontecimentos no continente, não se tratava,
com efeito, de números significativos e o Partido Nacionalista Britânico não
esteve sequer perto de obter um assento parlamentar. Mas uma vez que
(segundo sondagens de opinião) estas preocupações pareciam reflectir um
desconforto nacional bastante difundido, a extrema-direita pôde exercer
pressão sobre o primeiro-ministro Tony Blair, levando-o a restringir ainda
mais o acolhimento já pouco generoso a futuros imigrantes e refugiados. É
revelador do clima que se vivia na altura o facto de um governo trabalhista,
com uma maioria parlamentar esmagadora e quase 11 milhões de eleitores nas
eleições de 2001, ser levado a reagir desta forma à propaganda de um
pequeno grupo neofascista que contava com o apoio de apenas 48 000
eleitores em todo o país: um quinto de 1% do eleitorado e apenas mais 40 000
votos do que o Monster Raving Loony Party.
Em França, a questão era bem diferente. Aí, a Frente Nacional tinha uma
causa – os imigrantes; apoio em massa – 2,7 milhões de eleitores nas eleições
legislativas de 1986; e um líder carismático que transformava habilmente a
insatisfação pública generalizada em preconceito político e raiva dirigida a
um alvo específico. É certo que a extrema-direita nunca teria obtido
resultados tão favoráveis se Mitterrand não tivesse cinicamente introduzido
em França em 1986 um sistema de representação proporcional concebido para
promover o sucesso parlamentar (logo, a visibilidade nacional) do Front
National – e assim dividindo e enfraquecendo os partidos conservadores
dominantes.
Mas a verdade é que 4,5 milhões de eleitores franceses deram o seu voto a
Le Pen nas eleições presidenciais de 1995: um número que aumentou para 4,8
milhões em Abril de 2002, quando o líder da Frente Nacional obteve um êxito
sem precedentes, conseguindo um segundo lugar nas eleições presidenciais
com 17% dos votos e obrigando o candidato da esquerda, o desafortunado
primeiro-ministro socialista, Lionel Jospin, a abandonar a corrida. Também
em França, a conclusão a que chegaram os políticos dos partidos dominantes
foi a de que deviam de alguma forma apropriar-se das preocupações de Le
Pen e prometer tomar medidas severas relativamente à «segurança» e à
imigração, sem no entanto aceitar explicitamente a linguagem de Le Pen – ou
o seu programa («A França para os Franceses» e repatriação para todos os
outros).
Apesar das ligações de Le Pen a uma tradição mais antiga de política de
extrema-direita – o seu apoio juvenil aos poujadistas, a sua passagem pelas
obscuras organizações da extrema-direita durante a guerra da Argélia, e as
suas palavras cuidadosas em defesa de Vichy e da causa de Pétain –, o seu
movimento, como os seus equivalentes por todo o continente, não podia ser
encarado apenas como uma regurgitação atávica e nostálgica do passado
fascista da Europa. Certamente que Fortuyn ou Kjærsgaard não podiam ser
classificados dessa forma. Com efeito, ambos tinham o cuidado de sublinhar o
seu desejo de preservar a tradicional tolerância dos seus países – ameaçados,
segundo afirmavam, pelo fanatismo religioso e as práticas culturais
retrógradas das novas minorias muçulmanas.
Nem tão pouco o Partido da Liberdade austríaco era um movimento nazi; e
Haider não era Hitler. Pelo contrário, ele fazia questão de acentuar as suas
credenciais pós-guerra. Nascido em 1950, Haider tinha, como repetidamente
lembrava ao seu público, die Gnade der späten Geburt: a sorte de ter nascido
tarde. Parte do sucesso de Haider – como de Christoph Blocher, cujo Partido
Popular Suíço alcançou 28% dos votos em 2003 com uma orientação anti-
imigrante e anti-União Europeia – devia-se à sua habilidade para ocultar um
subtexto racista sob a imagem de um modernizador; um nacional-populista de
inclinação liberal. Esta estratégia revelava-se eficaz junto do eleitorado mais
jovem: em dada altura, o Partido da Liberdade era o mais votado entre a
população austríaca com menos de trinta anos de idade(25).
Na Áustria, como em França, era o receio e o ódio face aos imigrantes (em
França, os do Sul, na Áustria, de Leste, em ambos os casos de terras que em
tempos tinham dominado) que tomavam o lugar das antigas obsessões –
especialmente o anti-semitismo – no papel de manter a extrema-direita unida.
Mas os novos partidos anti-sistema beneficiavam também de uma outra coisa:
mãos limpas. À margem dos cargos políticos, não estavam manchados pela
corrupção que parecia, no início dos anos 90, corroer as bases do sistema
europeu. Não apenas na Roménia, na Polónia ou (principalmente) na Rússia,
onde poderia ser explicada como um efeito colateral da transição para o
capitalismo: mas nas regiões centrais e democráticas do continente.
Na Itália, onde desde a guerra os democratas-cristãos tinham usufruído de
uma relação cómoda e rentável com banqueiros, empresários, construtores
civis, presidentes da câmara, funcionários públicos e – segundo rumores
bastante difundidos – com a máfia, uma nova geração de jovens magistrados
começou corajosamente a desvendar décadas de silêncio público.
Ironicamente, o Partido Socialista foi o primeiro a cair, arrastado pelo
escândalo da tangentopoli («cidade do suborno»), em 1992, na sequência de
uma investigação à sua gestão da cidade de Milão. O partido perdeu toda a
credibilidade e o seu líder, o antigo primeiro-ministro Bettino Craxi, viu-se
obrigado a fugir pelo Mediterrâneo para se exilar na Tunísia.
No entanto, as actividades dos socialistas estavam estreitamente
associadas às dos democratas-cristãos, sendo há muito parceiros de coligação.
Ambos os partidos foram ainda mais desacreditados pela onda de detenções e
acusações que se seguiu, e fizeram cair com eles toda uma teia de arranjos e
esquemas que dominara a política italiana durante duas gerações. Nas eleições
de 1994, todos os partidos políticos de primeiro plano, à excepção dos antigos
comunistas e dos ex-fascistas, foram totalmente arrasados – embora o único
beneficiário a longo prazo deste terramoto político tenha sido um antigo
cantor de bar, magnata dos media sensacionalistas, Silvio Berlusconi, que
entrou na política não tanto para prosseguir com o combate à corrupção como
para se certificar de que os seus negócios não eram afectados.
Em Espanha foi um escândalo de tipo bem distinto que pôs fim à carreira
política de Felipe González, quando foi revelado em meados dos anos 90 (por
uma geração mais nova e entusiasta de jornalistas de investigação nos diários
El Mundo e Diario 16) que o seu governo travara uma «guerra suja» contra o
terrorismo basco durante 1983-87, permitindo e encorajando esquadrões da
morte a praticarem o rapto, a tortura e o assassínio, em Espanha e mesmo do
outro lado da fronteira, nas regiões bascas de França onde a ETA operava
frequentemente (ver capítulo 14).
Tendo em conta a reputação da ETA, este facto poderia não ter bastado
para desacreditar o carismático González – devido ao cínico clima público
dos últimos anos da ditadura de Franco, muitos dos seus contemporâneos
tinham crescido com uma visão profundamente instrumental do Estado e das
suas leis – se não tivessem surgido simultaneamente revelações de suborno e
tráfico de influências por parte de colegas socialistas de González que
ecoavam o exemplo italiano e suscitavam inquietação relativamente ao estado
moral de uma democracia espanhola ainda com pouco tempo de vida.
Em França – como na Alemanha ou na Bélgica – os diversos escândalos
que desfiguraram a vida pública nos anos 90 sugeriam não tanto a fragilidade
das instituições e dos costumes como o crescente custo de exercer a
democracia sob condições modernas. A política – equipas, publicidade,
consultorias – é dispendiosa. O dinheiro público para os partidos políticos foi,
na Europa, sujeito a limitações rígidas, determinadas pela lei e pela tradição e
normalmente disponível apenas para a candidatura às eleições. Quando
precisavam de mais, os políticos voltavam-se, no passado, para os seus
habituais apoiantes: membros do partido, sindicatos (no caso da esquerda),
empresários do sector privado e grandes empresas. No entanto, estes recursos
começavam a esgotar-se: o número de militantes filiados decrescia, os
sindicatos estavam em declínio e, dado o crescente consenso interpartidário
em questões de política económica, as empresas e entidades privadas viam
poucas razões para contribuir generosamente para um qualquer partido em
particular.
Talvez não fosse de admirar (e, para todos os efeitos, era o procedimento
que se começava a generalizar) que os partidos políticos da Europa Ocidental
procurassem formas alternativas de atrair financiamento – precisamente na
altura em que graças à abolição dos mecanismos de controlo e à globalização
do mercado havia muito mais dinheiro disponível. Em França, veio-se a saber
que gaullistas e socialistas – como os democratas-cristãos na Alemanha e os
novos trabalhistas na Grã-Bretanha – tinham obtido dinheiro ao longo das
duas décadas anteriores mediante processos duvidosos: vendendo favores,
traficando influências ou simplesmente recorrendo com maior frequência e de
forma mais insistente do que no passado a contribuintes convencionais.
A situação foi um pouco mais grave na Bélgica: um escândalo entre
muitos outros – que ficou conhecido por caso Dassault/Agusta – pode servir a
título de exemplo. Em finais dos anos 1980, o governo belga assinou um
contrato comprometendo-se a adquirir 46 helicópteros à firma italiana Agusta
e a atribuir à companhia Dessault a tarefa de reequipar os seus caças F-16. As
restantes empresas em concurso foram excluídas. Este incidente não era, em
si mesmo, invulgar, e o facto de estarem envolvidos três países reveste até a
questão de um cariz pan-europeu.
Contudo, veio mais tarde a público que o Partido Socialista belga (então
no governo) ganhara bastante em subornos com ambos os negócios. Pouco
depois, um político socialista proeminente que sabia demasiado, André Cools,
foi morto num parque de estacionamento em Liège, em 1991; um outro,
Etienne Mange, foi preso em 1995; e um terceiro, Willy Claes, que fora em
tempos primeiro-ministro da Bélgica, e durante algum tempo (1994-1995)
secretário-geral da NATO e ministro dos Negócios Estrangeiros na altura em
que decorreram as negociações, foi dado como culpado em Setembro de 1998
de ter aceitado subornos em nome do seu partido. Um quarto suspeito, o
antigo general do exército Jacques Lefebvre, com ligações estreitas a todo o
processo, morreu em circunstâncias pouco claras em Março de 1995.
Se esta é uma história peculiarmente belga («La Belgique», segundo
Baudelaire, «est sans vie, mais non sans corruption»), tal dever-se-á
possivelmente à duplicação e diluição da autoridade constitucional do país
que levou não só à falta de vigilância do governo, mas também ao quase
colapso de grande parte do aparelho de Estado, incluindo o sistema de justiça
penal. Noutros países, à excepção da Itália, como foi referido, eram
surpreendentemente escassos os indícios de corrupção pessoal – a maior parte
dos crimes e delitos eram cometidos literalmente para o bem do partido(26) –
ainda assim, foram várias as figuras proeminentes que se viram obrigadas a
renunciar aos seus cargos políticos.
Esses nomes incluíam não só González, o ex-primeiro-ministro francês
Alain Juppé e os líderes históricos dos democratas-cristãos em Itália, mas
ainda o chanceler alemão Helmut Kohl, o herói da unificação, que manchou a
sua reputação ao recusar divulgar os nomes de doadores secretos que
contribuíam para os fundos do seu partido. Caso não fosse protegido pelo seu
cargo, o presidente francês Jacques Chirac – presidente da Câmara de Paris
numa altura em que a cidade foi inundada em subornos e tráfico de
influências – ter-se-ia certamente juntado ao grupo.
Aquilo que é talvez mais chocante em todos estes incidentes é o facto de
terem sido relativamente escassos os danos causados ao sistema político no
seu todo. O declínio na afluência às urnas aquando das eleições traduz sem
dúvida uma perda de interesse generalizada nos assuntos políticos; mas essa
era uma tendência que se fazia já sentir havia décadas, no aumento das taxas
de abstenção e na fraca intensidade do debate político. A verdadeira surpresa
não é o aparecimento sistemático de um novo conjunto de partidos populistas
de direita, mas o seu fracasso em fazer melhor do que aquilo que
conseguiram, tentando obter vantagens com a ruptura e descontentamento
desde 1989.
Havia uma razão para que tal acontecesse. Os europeus podem ter perdido
a confiança nos seus políticos, mas no seio do sistema governativo europeu há
algo que nem os partidos anti-sistema mais radicais se atreveram a atacar e
que continua a motivar uma lealdade quase universal. Não se trata da União
Europeia, apesar dos seus múltiplos méritos. E não é a democracia:
demasiado abstracta, nebulosa e talvez referida demasiadas vezes para se
destacar como objecto de admiração. Nem será a liberdade ou o primado da
lei – que já há muitas décadas se encontram a salvo de qualquer ameaça séria
e são já dados como garantidos por uma geração mais jovem de europeus em
todos os Estados da UE. O que une os Europeus, mesmo quando tecem
críticas a um ou outro aspecto do seu funcionamento, é aquilo que – num
contraste evidente mas revelador face ao «estilo de vida americano» –
começou a ser convencionalmente designado «o modelo europeu de
sociedade».
-
(8) A 1 de Janeiro de 2002, um total de 600 000 000 000 euros em dinheiro foi distribuído e
introduzido sem interrupções nos países da zona euro, um feito técnico notável.

(9) Se funcionavam ainda tão bem, tal devia-se em parte ao facto de a máquina federal estar tão bem
oleada, e o dinheiro tinha aí um papel decisivo: na década de 90, a Suíça era ainda, segundo a maioria
dos critérios, o país mais rico do mundo.

(10) Citado em Kenneth Harris, Attlee, Londres, 1984, p. 63.

(11) O declínio dos votos na Holanda pode ser especialmente premonitório. Tendo em tempos sido o
foco do entusiasmo europeu e um contribuinte generoso para os fundos da CE e da UE, a Holanda tem
nos últimos anos vindo a fechar-se sobre si própria – um processo que se tornou mais visível e que se
acelerou devido à subida ao poder de Pim Fortuyn e o seu subsequente assassinato.

(12) Talvez valha a pena acrescentar que em Janeiro de 2004 apenas um adulto francês em cada 50
conseguia citar os nomes dos dez Estados-Membros.

(13) Mas não em todo o lado: na Grã-Bretanha – como nos EUA – a diferença de rendimento entre
os mais ricos e os outros cresceu de forma regular a partir de finais dos anos 70.

(14) Não confundir o TJCE com o Tribunal Europeu para os Direitos Humanos, fundado sob os
auspícios do Conselho da Europa para consolidar a Convenção para a Protecção de Direitos do Homem
e das Liberdades Fundamentais.

(15) Na «Constituição para a Europa» de Giscard, o Artigo 3 (I) define os objectivos da União como
sendo os de «promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos.»

(16) Citado por Andrew Moravscik, The Choice for Europe (New York, 1998), p. 265.

(17) Antecipada na altura, de forma mordaz, pelo secretário de Estado americano Lawrence
Eagleburger, que previu o que ia acontecer: «[os Europeus] vão fazer asneira e isso há-de ensinar-lhes
uma lição».

(18) A UE não era a única com a política de subsidiar os seus agricultores em detrimento de
terceiros. Nem era o caso mais flagrante: a Noruega, a Suíça, o Japão e os EUA pagam todos eles mais
em termos per capita. Contudo, a UE parecia de certa forma a mais hipócrita. Enquanto apregoa
virtudes a todo o mundo, Bruxelas é, na prática, muitas vezes selectiva. Os europeus de Leste,
incumbidos de incorporar e adoptar uma verdadeira biblioteca com os regulamentos da UE, não
puderam deixar de reparar na frequência com que os governos da Europa Ocidental se colocam à
margem dessas mesmas regras.

(19) Em 1995, segundo estudo realizado pela UNICEF, uma em cada cinco crianças britânicas vivia
na pobreza, em comparação com uma em cada dez na Alemanha, e uma em cada 20 na Dinamarca.

(20) Utilizando critérios ligeiramente diferentes para chegar a uma mesma conclusão, John Dunn,
teórico político de Cambridge, divide os trabalhadores dos países ricos entre «aqueles que podem muito
bem olhar por si no mercado […], aqueles que conseguem garantir o seu sustento apenas porque
pertencem a unidades sobreviventes de acção colectiva com uma vantagem eminente e desproporcional
sobre o valor do trabalho de membros individuais, e aqueles que não têm qualquer hipótese, porque
ninguém pagaria muito pelo seu trabalho». Dunn, The Cunning of Unreason. Making Sense of Politics
(Londres, 2000), p. 333.

(21) Como convinha a um homem do seu tempo e à política de então, Gorz partia do princípio de
que esta geração alimentaria por sua vez uma nova geração de movimentos sociais radicais. Até à data,
não há muitos indícios de que assim seja.

(22) Só em 1992, a República Federal abriu as suas portas a cerca de um quarto de milhão de
refugiados jugoslavos. A Grã-Bretanha recebeu 4000; a França, apenas 1000.

(23) No final do século XX, calculava-se que viviam na Europa 5 milhões de Ciganos: cerca de 50
000 na Polónia, 60 000 na Albânia, 500 000 na Hungria, cerca de 600 000 na Bulgária, e um número
semelhante na ex-Jugoslávia e na República Checa, e pelo menos 2 milhões na Roménia. O preconceito
e os maus tratos a que estavam sujeitos eram comuns em todos os países onde vivessem Ciganos (isto
para não falar em casos como a Grã-Bretanha, onde lhes era proibida a entrada).

(24) O Dansk Folkeparti teve origem numa divisão do Partido Progressista Dinamarquês, o qual era
um produto dos movimentos anti-impostos do início da década de 70 (ver capítulo 14), mas considerado
por uma nova geração de radicais como sendo demasiado «brando» relativamente à União Europeia e
menos anti-imigração do que seria desejável.

(25) Na Suíça, onde os preconceitos anti-imigrantes estavam especialmente difundidos nos cantões
de expressão alemã, o racismo nem sempre era ocultado: um cartaz eleitoral exibia um conjunto de
rostos negros sobre a legenda «Os Suíços estão a tornar-se negros».

(26) Com uma excepção: Edith Cresson – uma ex-primeiro-ministro socialista francesa que depois
foi comissária da UE – contribuiu para desacreditar toda a Comissão quando foi revelado em 1999 que
ela usara o seu poder em Bruxelas para inventar uma consultoria bem paga para o seu antigo dentista.
XXIII

A Diversidade da Europa
«Seríamos sensatos se conseguíssemos distinguir verdadeiramente os sinais
do nosso próprio tempo; e se, tendo conhecimento das suas falhas e
vantagens, nos ajustássemos sabiamente a ele. Em vez de fixarmos
desvairados o horizonte obscuro, olhemos, pois, calmamente em redor, por
instantes, a cena perplexa de que fazemos parte.»
Thomas Carlyle
«O criador da Europa fê-la pequena e dividiu-a ainda em pequenas partes,
para que os nossos corações se alegrassem, não com a dimensão, mas com a
pluralidade.»
Karel Capek
«Na Europa, éramos asiáticos, enquanto que na Ásia somos, também nós,
europeus.»
Fyodor Dostoievsky
Quando se deu o colapso do comunismo e a União Soviética implodiu, foi
o fim não só de um sistema ideológico, mas das coordenadas políticas e
geográficas de todo um continente. Durante 45 anos – mais do que a maioria
dos europeus podia recordar –, o resultado incómodo da Segunda Guerra
Mundial mantivera-se inalterado. A divisão acidental da Europa, com tudo o
que envolvia, começara a parecer inevitável. E agora desaparecera por
completo. Em retrospectiva, as décadas do pós-guerra revestiam-se de um
significado totalmente diferente. Tendo em tempos sido encaradas como o
início de uma nova era de permanente polarização ideológica, mostravam
agora aquilo que eram na realidade: um epílogo prolongado da guerra civil
europeia que começara em 1914, um interregno de 40 anos entre a derrota de
Adolf Hitler e a resolução final das questões deixadas em aberto pela sua
guerra.
Com o desaparecimento do mundo de 1945-1989, as ilusões que o
caracterizavam tornaram-se mais evidentes. No mundo do comércio e da
produção, o tão proclamado «milagre económico» do pós-guerra recolocara a
Europa Ocidental na posição que esta perdera ao longo dos anos 1914-45,
com as taxas de crescimento económico a recuarem, regra geral, até níveis
comparáveis aos de finais do século XIX. Não era, na verdade, um feito de
somenos, mas também não era exactamente o arranque para a prosperidade de
lucros ilimitados com que as pessoas sonhavam.
Por outro lado, a recuperação fora alcançada, não apesar da Guerra Fria,
mas por causa dela. Tal como a ameaça otomana em tempos anteriores, a
sombra do império soviético diminuía a Europa, mas impunha à parte que
restara os benefícios da unidade. Na ausência dos europeus aprisionados no
Leste, os cidadãos da Europa Ocidental tinham prosperado: livres da
obrigação de lidar com a pobreza e o atraso dos Estados sucessores dos
antigos impérios continentais e protegidos da ameaça do passado recente pelo
guarda-chuva militar dos EUA. De Leste, esta perspectiva era redutora.
Depois do colapso do comunismo e da ruptura do império soviético, essa
imagem idealizada já não tinha como manter-se.
Pelo contrário. O casulo feliz da Europa Ocidental do pós-guerra – com as
suas comunidades económicas e as suas zonas de comércio livre, as suas
tranquilizantes alianças externas e fronteiras internas redundantes – parecia
subitamente vulnerável, chamado a responder às expectativas frustradas dos
futuros «eurocidadãos» do Leste e já sem uma ligação óbvia à grande
potência a oeste do Atlântico. Vendo-se mais uma vez forçados a reconhecer
as extensas fronteiras orientais do seu continente ao traçar um futuro europeu
comum, os europeus de Ocidente viram-se inevitavelmente arrastados para o
passado comum da Europa.
Assim, os anos 1945-1989 ganharam contornos parentéticos. As
hostilidades declaradas entre Estados, que tinham marcado o modo de vida
europeu ao longo de três séculos, atingiram entre 1913 e 1945 níveis
apocalípticos: cerca de 60 milhões de europeus morreram em guerras ou
massacres determinados por autoridades estatais na primeira metade do século
XX. Mas de 1945 a 1989 as guerras entre Estados desapareceram da
Europa(1). Duas gerações de europeus cresceram com a impressão, antes
inconcebível, de que a paz era a ordem natural das coisas. Como extensão da
política, a guerra (e os confrontos ideológicos) pertencia ao chamado
«terceiro mundo».
Posto isto, vale a pena relembrar que, embora em paz com os seus
vizinhos, os Estados comunistas praticavam uma forma distinta de
hostilidades permanentes com as suas próprias sociedades: sobretudo na
forma de uma censura rigorosa, carência forçada e policiamento repressivo,
que ocasionalmente originavam confrontos – nomeadamente em Berlim, em
1953; Budapeste, em 1956; Praga, em 1968; e esporadicamente na Polónia, de
1968 a 1981, e sob a lei marcial a partir de então. Na Europa de Leste, as
décadas do pós-guerra assumem formas bastante diferentes na memória
colectiva (embora não menos parentéticas). Contudo, em comparação com o
passado, também a Europa de Leste viveu uma época de tranquilidade
invulgar, ainda que involuntária.
Se a era do pós-Segunda Guerra Mundial, agora a esmorecer depressa na
memória com o início das novas (des)ordens mundiais, se iria tornar com o
tempo um objecto de nostalgia e remorso, dependia muito do lugar e do
momento em que se nascesse. De ambos os lados da Cortina de Ferro, as
crianças dos anos 60 – i.e. a geração do baby-boom, nascida entre 1946 e
1951– recordavam com afecto a «sua» década e continuavam a cultivar
memórias felizes e uma percepção exagerada do respectivo significado. E no
Ocidente, pelo menos, os seus pais sentiam-se gratos pela estabilidade política
e pela segurança material desse tempo, em comparação com os horrores que o
tinham antecedido.
No entanto, os demasiado jovens para recordar os anos 60 levavam muitas
vezes a mal o enaltecimento solipsista dos saudosistas mais velhos; enquanto
que muitas pessoas idosas que tinham vivido sob o regime comunista
relembravam não só os empregos estáveis, as rendas baixas e as ruas seguras,
mas também, e principalmente, uma paisagem indistinta de talentos perdidos
e esperanças destruídas. E de ambos os lados havia limites relativamente
àquilo que podia ser recuperado dos escombros da história do século XX. A
paz, a prosperidade e a segurança, sem dúvida; mas as convicções optimistas
de um tempo passado tinham desaparecido para sempre.
Antes de se suicidar em 1942, o romancista e crítico vienense Stefan
Zweig escreveu saudosamente acerca do mundo perdido da Europa anterior a
1914, expressando «pena por aqueles que não eram jovens naqueles últimos
anos de confiança». Seis décadas mais tarde, no final do século XX, quase
todo o resto fora recuperado ou reconstruído. Mas a confiança com que a
geração de europeus de Zweig entrou no século nunca poderia ser totalmente
recuperada: tinham acontecido demasiadas coisas. Os europeus de entre-as-
guerras que recordassem a Belle Epoque poderiam murmurar «se pelo
menos…»; mas, depois da Segunda Guerra Mundial, o sentimento de
qualquer pessoa que reflectisse sobre as três décadas catastróficas que se
tinham abatido sobre o continente seria «nunca mais»(2).
Resumindo, não havia como voltar atrás. O comunismo na Europa de
Leste fora a resposta errada a uma questão real. Na Europa Ocidental, a
tentativa de lidar com essa mesma questão – como ultrapassar a catástrofe da
primeira metade do século XX – consistira em pôr de parte a história recente,
recapitulando alguns dos aspectos positivos do século XIX – estabilidade
política interna, intensificação da produtividade económica e uma expansão
regular do comércio externo –, conferindo-lhes o rótulo de «Europa». Depois
de 1989, contudo, a Europa Ocidental próspera e pós-política deparou
novamente com a sua gémea de Leste e a «Europa» teve de ser repensada.
A perspectiva de abandonar o casulo não foi do agrado de todos, como
vimos, e ao escrever para o jornal polaco Polityka, em Março de 1993, Jacek
Kuron não exagerava ao supor que «algumas figuras políticas europeias
lamentam o desaparecimento da antiga ordem mundial e da URSS». Mas essa
«antiga ordem mundial – a familiar stasis das quatro décadas anteriores –
desaparecera para sempre. Os europeus enfrentavam agora não apenas um
futuro incerto, mas também um passado em rápida mudança. O que ainda
pouco tempo antes era simples voltava agora ser complicado. No fim do
século XX, 500 milhões de pessoas no promontório das terras eurasiáticas
sentiam-se cada vez mais confusas relativamente à sua identidade. Quem são
os europeus? Que significa ser europeu? O que é a Europa – e que tipo de
lugar querem os europeus que ela seja?
Não será particularmente útil captar a essência da «Europa». A «Ideia de
Europa» – um tópico sobejamente debatido – tem uma longa história, grande
parte da qual bastante respeitável. Mas embora uma certa «ideia» de Europa –
reiterada em diversas convenções e tratados – enforme a União à qual
pertence agora a maioria dos europeus, fornece apenas uma ideia bastante
limitada da vida que os mesmos aí levam. Numa época de transição e
reorganização demográfica, os europeus de hoje são mais numerosos e
heterogéneos do que nunca. Qualquer descrição da sua condição comum na
alvorada do século XXI tem de partir do reconhecimento dessa diversidade,
traçando o mapa com os contornos por vezes sobrepostos e as fendas da
identidade e da experiência europeias.
A expressão «traçar o mapa» é usada com propriedade. Afinal, a Europa é
um lugar. Mas as suas fronteiras sempre foram algo fluidas. Os limites, no
tempo de Roma Antiga e de Bizâncio, do Sacro Império Romano e da Europa
cristã, correspondem em linhas gerais a divisões políticas posteriores, facto
que sugere alguma continuidade genuína: os difíceis pontos de contacto entre
a Europa germânica e eslava eram tão claros para um escritor do século XI
como Adão de Bremen como são hoje para nós; as fronteiras medievais da
Cristandade católica e ortodoxa, da Polónia à Sérvia, eram bastante
semelhantes às dos nossos dias; e o conceito de uma Europa dividida no Elba
entre leste e oeste teria, no século IX, sido familiar aos administradores do
Império Carolíngio, caso tivessem pensado nesses termos.
Contudo, o facto de estas fronteiras há muito estabelecidas determinarem
ou não a localização da Europa sempre dependeu do lugar onde nos
encontrássemos. Para citar um caso bem conhecido: no século XVIII, os
Húngaros e os Boémios eram, na sua maioria, católicos há vários séculos e
muitos deles falavam alemão. Mas para muitos dos nomes austríacos do
Iluminismo, a «Ásia» começava na Landstrasse, a estrada que partia de Viena
para leste. Quando, em 1787, Mozart deixou Viena seguindo para oeste, a
caminho de Praga, disse estar a atravessar uma fronteira oriental. Leste e
Oeste, a Ásia e a Europa, sempre foram barreiras no espírito, tanto quanto na
terra.
Dado que até recentemente grande parte da Europa não estava dividida em
Estados, mas acomodada em impérios, torna-se mais fácil se pensarmos nos
contornos exteriores do continente não como fronteiras, mas como regiões-
limite indeterminadas – limes, militärgrenze, krajina: zonas de conquista e
povoamento imperial, nem sempre precisas em termos topográficos, mas
correspondendo a uma delimitação política e cultural importante. Do Báltico
aos Balcãs, essas regiões e os seus habitantes são vistos desde há muitos
séculos como o posto avançado da civilização, o ponto sensível e vulnerável
onde termina o mundo familiar e os bárbaros são mantidos de fora.
No entanto, estas zonas fronteiriças são fluidas e mudaram muitas vezes
em função do tempo e das circunstâncias: as suas implicações geográficas são
confusas. Polacos, Lituanos e Ucranianos – todos eles se descreveram na sua
literatura e nos seus mitos políticos como aqueles que guardam os limites da
«Europa» (ou da Cristandade)(3). Mas conforme se depreende através de um
olhar rápido ao mapa, as suas proclamações incompatibilizam-se: não podem
ter todos razão. O mesmo se aplica às narrativas concorrentes da Hungria e da
Roménia, ou à insistência de Croatas e Sérvios de que é a sua fronteira sul
(com os Sérvios e com os Turcos, respectivamente) que constitui a linha
defensiva exterior da Europa civilizada.
O que toda esta confusão mostra é que as fronteiras da Europa são desde
há vários séculos um motivo suficientemente importante para levar as partes
interessadas a competir na afirmação de que a integram. O estar «na» Europa
proporcionava uma certa segurança: uma garantia – ou pelo menos uma
promessa – de refúgio e inclusão. Ao longo dos séculos, esta tornou-se
gradualmente uma fonte de identidade colectiva. Ser um «Estado-fronteira»,
um exemplo e um guardião dos valores fundamentais da civilização europeia,
era motivo de vulnerabilidade mas também de orgulho, e é por isso que a
sensação de terem sido excluídos e esquecidos pela «Europa» tornou a
dominação soviética tão humilhante para muitos dos intelectuais da Europa
Central e de Leste.
Assim, a Europa não tem tanto a ver com uma geografia absoluta – o lugar
onde um país ou um povo de facto se encontram –, mas mais com uma
geografia relativa: onde se encontram em relação aos outros. No final do
século XX, escritores e políticos em lugares como a Moldova, a Ucrânia ou a
Arménia afirmaram a sua identidade europeia não com base em critérios
históricos ou geográficos (o que poderia ou não ser plausível), mas
precisamente como uma defesa simultaneamente contra a história e a
geografia. Sumariamente libertados do império moscovita, estes Estados pós-
imperiais olhavam agora para outra capital «imperial»: Bruxelas(4).
O que estas nações periféricas esperavam ganhar com a perspectiva
distante de inclusão na nova Europa era menos importante do que aquilo que
se arriscavam a perder ao ficar fora dela. As implicações da exclusão eram já
claras até para o mais distraído dos visitantes nos primeiros anos do novo
século. O que quer que tivesse em tempos sido cosmopolita e «europeu» em
cidades como Cernovitz, na Ucrânia, ou Chisinau, na Moldova, há muito que
fora destruído pelos regimes nazi e soviético; e as zonas rurais circundantes
eram ainda agora um «mundo pré-moderno de estradas sujas e carroças
puxadas por cavalos, de poços ao ar livre e botas de feltro, de silêncios vastos
e noites negras»(5). A identificação com a Europa não surgia por via de um
passado comum, agora verdadeiramente destruído. Tinha a ver com a
reivindicação, ainda que frágil e desesperada, de um futuro em comum.
O receio de se ficar de fora da Europa não se cingia ao perímetro exterior
do continente. Do ponto de vista dos Moldavos falantes de romeno, os seus
vizinhos na Roménia, a ocidente, eram abençoados pela história. Ao contrário
da Moldova, a Roménia era, apesar das suas dificuldades, vista pela Europa
como uma legítima aspirante à adesão à UE, o que lhe garantiria um futuro
devidamente europeu. Contudo, do ponto de vista de Bucareste, o cenário
muda, e é a própria Roménia que corre o risco de ficar de fora. Em 1989,
quando os colegas de Nicolae Ceausescu começaram finalmente a voltar-se
contra ele, escreveram uma carta acusando o Conducator de tentar arrancar a
sua nação das suas raízes europeias: «A Roménia é e continuará a ser um país
europeu… [Ceausescu] Começou a mudar a geografia das áreas rurais, mas
não pode deslocar a Roménia para África.» Nesse mesmo ano, o idoso
dramaturgo romeno Eugene Ionesco descreveu o seu país natal como estando
«prestes a abandonar de vez a Europa, o que significaria abandonar a
história». Esta não era uma preocupação nova: em 1972, E.M. Cioran,
reflectindo sobre a história sombria do seu país, ecoou uma insegurança bem
familiar aos Romenos: «O que mais me entristeceu foi um mapa do império
otomano. Olhando-o, compreendi o nosso passado e tudo o resto»(6).
Os Romenos – como os Búlgaros, os Sérvios e outros povos com boas
razões para acreditarem que o «coração» da Europa os considera à parte
(quando não os ignora por completo) – ora afirmam defensivamente a origem
europeia das suas características (na literatura, arquitectura, topografia, etc),
ora se rendem à inutilidade da sua causa e da fuga para ocidente. Depois do
comunismo, ambas as respostas foram postas em evidência. Enquanto o
antigo primeiro-ministro romeno, Adrien Nastase, descrevia aos leitores do Le
Monde em Julho de 2001 por que razão a Roménia era uma mais-valia para a
Europa, os seus concidadãos constituíam cerca de metade do número total de
estrangeiros detidos ao atravessar ilegalmente a fronteira entre a Polónia e a
Alemanha. Numa sondagem realizada logo no início do novo século, 52% dos
Búlgaros (e, de entre estes, uma esmagadora maioria com idade inferior a 30
anos) disseram que, se tivessem possibilidades, emigrariam da Bulgária – de
preferência para a «Europa».
Esta sensação de estar na periferia relativamente a outros que se
encontram no centro, de ser uma espécie de europeu de segunda classe, está
hoje confinada aos antigos países comunistas, quase todos eles na zona de
pequenas nações que Tomás Masaryk previu que se formariam, desde o Cabo
Norte ao Cabo Matapão no Peloponeso. Mas nem sempre foi assim. Em
tempos mais recentes, as restantes franjas do continente eram pelo menos
igualmente periféricas – em termos económicos, linguísticos e culturais. O
poeta Edwin Muir descreveu a sua ida, na infância, das Orkney a Glasgow
como «cento e cinquenta anos cobertos num dia de viagem»; trata-se de uma
sensação que seria adequada meio século mais tarde. Ainda na década de 80,
as regiões montanhosas e as ilhas nos extremos da Europa – Sicília, Irlanda,
Norte da Escócia, Lapland – tinham mais em comum entre si, mesmo
relativamente ao seu passado, do que com as prósperas regiões metropolitanas
do centro.
Ainda agora – e sobretudo agora – as divisões não correspondem de forma
inequívoca às fronteiras nacionais. O Conselho dos Estados do Mar Báltico é
um exemplo disso. Fundado em 1992, compreende elementos escandinavos:
Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia; os três países bálticos da ex-URSS:
Estónia, Letónia, Lituânia; e também a Alemanha, a Polónia e a Rússia (e, a
partir de 1995, contrariando a geografia mediante a insistência escandinava, a
Islândia). Esta reafirmação de antigas afinidades comerciais por parte de
cidades em tempos hanseáticas, como Hamburgo ou Lübeck – é ainda mais
do agrado dos dirigentes das cidades de Talin e Gdansk, ansiosos por se
posicionarem no centro de uma comunidade báltica reinventada (e
declaradamente ocidental), demarcando-se das regiões do interior e do seu
passado recente.
Contudo, em outras regiões de alguns dos países participantes,
nomeadamente a Alemanha e a Polónia, o Báltico tem pouco significado. Pelo
contrário: nos últimos anos, a perspectiva de lucro com o turismo estrangeiro
induziu Cracóvia, por exemplo, a enfatizar a sua orientação para sul e a
comercializar o seu anterior papel de capital da «Galícia» dos Habsburgo.
Munique e Viena, embora competindo pelo investimento industrial do outro
lado das fronteiras, redescobriram uma herança ‘alpina’ comum facilitada
pelo desaparecimento virtual da fronteira entre o Sul da Baviera e Salzburgo e
o Tirol.
As diferenças culturais regionais têm, afinal, uma importância óbvia –
embora as disparidades económicas sejam ainda mais importantes. A Áustria
e a Baviera partilham mais do que o catolicismo do Sul da Alemanha e o
cenário dos Alpes: ao longo das últimas décadas, ambas se têm tornado
economias de serviços bem remuneradas, mais dependentes da tecnologia do
que da mão-de-obra, ultrapassando em produtividade e prosperidade as
antigas regiões industriais a norte. Como a Catalunha, a Lombardia e a
Emilia-Romagna de Itália, a região francesa de Rhône-Alpes e a Île-de-
France, o Sul da Alemanha e a Áustria – juntamente com a Suíça, o
Luxemburgo e algumas partes da Flandres belga – constitui uma zona comum
privilegiada da economia europeia.
Embora a pobreza e a desvantagem económica fossem ainda, em termos
absolutos, mais elevadas no antigo bloco de Leste, os contrastes mais
marcados verificavam-se agora dentro dos países, mais do que entre eles. A
Sicília e o Mezzogiorno, como o Sul da Espanha, estavam tão atrasados face
ao Norte próspero como há várias décadas atrás: em finais dos anos 90, o
desemprego no Sul da Itália era praticamente o triplo do que se registava a
Norte de Florença, enquanto o desfasamento no PIB per capita entre o Norte
e o Sul era, de facto, superior ao da década de 50.
Também no Reino Unido o desfasamento entre as regiões abastadas do
Sudeste e os antigos distritos industriais mais a norte tinha aumentado nos
anos anteriores. Não havia dúvida de que Londres crescera rapidamente.
Embora tendo-se mantido fora da zona euro, a capital britânica era agora o
inquestionável centro financeiro do continente e revestira-se de uma energia
exuberante e ultramoderna que fazia com que as outras cidades europeias
parecessem desleixadas e medievais. Cheia de uma população activa jovem e
muito mais aberta ao fluxo e refluxo de culturas e linguagens cosmopolitas
que outras capitais europeias, em finais do século XX, Londres parecia ter
recuperado o seu esplendor dos Swinging Sixties – corporizado de modo
oportunista pelos blairistas que promoviam a imagem do seu país como Cool
Britannia.
Mas o brilho era superficial. No mercado habitacional inflacionado da
metrópole mais populosa da Europa, os condutores de autocarros, os
enfermeiros, funcionários da limpeza, professores, polícias e empregados de
mesa que serviam os novos Britânicos já não podiam dar-se ao luxo de viver
perto deles, vendo-se obrigados a procurar casa cada vez mais longe,
deslocando-se para o trabalho conforme podiam, utilizando as estradas mais
congestionadas da Europa, ou então a rede ferroviária cara e degradada do
país. Fora dos limites da grande Londres, que agora estendia os seus
tentáculos pelo Sudeste rural adentro, começava a verificar-se um contraste
regional sem precedentes na história inglesa recente.
Em finais do século XX, das dez regiões administrativas da Inglaterra,
apenas três (Londres, o Sudeste e East Anglia) alcançavam ou excediam a
riqueza nacional média per capita. Todo o resto do país era mais pobre, por
vezes consideravelmente mais pobre. O Nordeste da Inglaterra, em tempos o
coração das indústrias mineira e naval do país, tinha um PIB per capita que
correspondia a apenas 60% do de Londres. Depois da Grécia, de Portugal, da
Espanha rural, do Sul de Itália, e dos antigos Länder comunistas da
Alemanha, o Reino Unido era, em 2000, o maior beneficiário dos fundos
estruturais da UE – o que equivale a dizer que algumas zonas da Grã-
Bretanha se encontravam entre as mais carenciadas da União. O nível
moderado de desemprego, em termos gerais, que constituía uma fonte de
orgulho bem publicitada para thatcheritas como para blairistas, era falseado
pela dimensão desproporcionada da capital próspera: o desemprego no Norte
da Inglaterra aproximava-se muito mais dos piores valores da Europa
continental.
As pronunciadas disparidades regionais em termos de riqueza e pobreza na
Grã-Bretanha tinham sido agravadas por políticas públicas mal concebidas;
mas eram também uma consequência previsível do fim da era industrial.
Nesse sentido, tratava-se, por assim dizer, de disparidades orgânicas. Na
Alemanha, porém, disparidades semelhantes eram uma consequência directa,
ainda que involuntária, de uma decisão política. A absorção dos Länder de
Leste numa Alemanha unificada custara à Alemanha Federal mais de um
bilião de euros em transferências e subsídios, entre 1991 e 2004. Ainda assim,
longe de se aproximar do Ocidente, a região mais oriental da Alemanha
começara, em finais da década de 90, a acentuar o seu atraso.
As empresas privadas alemãs não tinham incentivos para se estabelecer no
Leste – na Saxónia ou em Mecklenburgo – quando podiam arranjar
trabalhadores melhores por salários mais baixos (bem como uma infra-
estrutura de transportes e serviços locais de qualidade superior) na Eslováquia
ou na Polónia. Populações envelhecidas, educação deficiente, baixo poder de
compra, a partida para Ocidente de trabalhadores especializados e uma
hostilidade enraizada face aos estrangeiros por parte dos que tinham ficado
para trás, eram factores que tornavam a zona leste da Alemanha pouco
atractiva para investidores externos, que tinham agora melhores opções. Em
2004, o desemprego na antiga Alemanha Ocidental era de 8,5%; no Leste
excedia os 19%. Em Setembro desse ano, o Partido Democrático Nacional
neonazi obteve 9% dos votos e elegeu 12 deputados para o parlamento da
Saxónia.
Os motivos do ressentimento mútuo que afastava Wessies e Ossies na
Alemanha não tinham apenas a ver com emprego e desemprego, ou com
riqueza e pobreza, embora da perspectiva do Leste esse fosse o sintoma mais
óbvio e doloroso. Os Alemães, como todos os que integravam a nova Europa,
encontravam-se cada vez mais divididos por um novo conjunto de distinções
transversais à separação geográfica ou económica convencional. De um lado
havia uma elite sofisticada de europeus: homens e mulheres, na sua maioria
jovens, viajados, cultos, que tinham estudado talvez em duas ou três
universidades diferentes no continente. As suas qualificações e profissões
permitiam-lhes encontrar trabalho em qualquer país da UE: de Copenhaga a
Dublin, de Barcelona a Frankfurt. Ordenados elevados, passagens de avião a
preços baixos, fronteiras abertas e uma boa rede ferroviária (ver em baixo)
favoreciam uma mobilidade frequente. Para efeitos de consumo, lazer e
entretenimento, bem como de trabalho, esta nova classe de europeus viajava
confiante com facilidade pelo continente – comunicando, como eclesiásticos
medievais deambulando entre Bolonha, Salamanca e Oxford, numa lingua
franca cosmopolita: outrora o latim, agora o inglês.
Do outro lado da barreira encontravam-se aqueles – ainda uma
esmagadora maioria – que não podiam fazer parte daquele admirável
continente novo, ou que então não tinham (ainda?) decidido juntar-se-lhe:
milhões de europeus cuja falta de habilitações, educação, experiência,
oportunidade ou meios os mantinham presos ao local onde se encontravam.
Estes homens e mulheres, os villeins(*) na nova paisagem medieval da
Europa, não podiam beneficiar tão prontamente dos produtos, serviços e
trabalho do mercado único da UE. Em vez disso, permaneciam retidos no seu
país ou na sua comunidade local, limitados pela estranheza de possibilidades
distantes e línguas estrangeiras, e muitas vezes bastante mais hostis à
«Europa» que os seus concidadãos cosmopolitas.
Havia duas excepções notáveis nesta nova distinção internacional de
classes que começava a atenuar os velhos contrastes nacionais. Para os
artesãos sem emprego fixo e para os trabalhadores da Europa de Leste, as
novas oportunidades de trabalho em Londres, Hamburgo ou Barcelona
fundiam-se com tradições antigas de trabalho migrante e emprego sazonal no
estrangeiro. Sempre tinha havido homens (e eram, de facto, sobretudo
homens) que viajavam para países distantes à procura de trabalho: sem falar
línguas estrangeiras, encarados com uma desconfiança hostil pelos seus
anfitriões e tencionando regressar a casa com as suas poupanças. Não havia
nada de particularmente europeu nesse procedimento, e os pintores eslovacos
– como os mecânicos turcos, ou os vendedores senegaleses antes deles –
dificilmente seriam vistos a jantar fora em Bruxelas, a passar férias em Itália
ou a fazer compras em Londres. Ainda assim, também eles tinham agora um
estilo de vida distintamente europeu.
A segunda excepção eram os Britânicos – ou melhor, os Ingleses
notoriamente eurocépticos. Impelidos para o estrangeiro pelas desvantagens
meteorológicas da sua terra e com uma geração pós-Thatcher de companhias
aéreas de baixo custo a oferecer-lhes passagens para qualquer lugar da Europa
continental, às vezes por um valor inferior ao de um almoço num pub, uma
nova geração de Britânicos, embora não tendo mais estudos do que os seus
pais, entrou no século XXI como sendo dos europeus mais viajados, se não
mesmo os mais cosmopolitas. A ironia desta justaposição de desdém e
desconfiança face às instituições e ambições da «Europa», e um desejo à
escala nacional de aí gastar o seu dinheiro e passar o seu tempo livre não
passou despercebida aos observadores do continente, perplexos por esta
aparente contradição.
No entanto, a verdade é que os Britânicos – como os Irlandeses – não
precisavam de aprender línguas estrangeiras. O inglês era a sua língua
materna. Noutros pontos da Europa, o conhecimento de línguas (conforme
vimos anteriormente) estava rapidamente a tornar-se o principal rótulo de uma
identidade disjuntiva, uma medida de afirmação social individual e de poder
cultural colectivo. Em países pequenos como a Dinamarca ou a Holanda, há
muito que era um dado assente que o monolinguismo numa língua que quase
mais ninguém falava era uma desvantagem a que o país já não se podia dar ao
luxo. Os estudantes na Universidade de Amsterdão estudavam agora em
inglês, enquanto se partia do princípio que qualquer bancário principiante
numa vila da província dinamarquesa devia lidar sem hesitação com uma
transacção conduzida em inglês. Ajudava o facto de, na Dinamarca e na
Holanda, como em muitos países europeus pequenos, os estudantes e os
empregados bancários serem há muito fluentes, pelo menos de forma passiva,
por verem programas de televisão em inglês não dobrados.
Na Suíça, onde qualquer pessoa que completasse o ensino secundário
dominava por vezes três, ou até quatro línguas locais, considerava-se, todavia,
que seria mais fácil ou mesmo mais diplomático recorrer ao inglês (que
ninguém falava como língua materna) quando se comunicava com uma
pessoa de outra região do país. Também na Bélgica, onde – como vimos – era
bastante menos comum para Valões ou Flamengos sentirem-se à vontade ao
usar a língua uns dos outros, ambos os lados optavam prontamente pelo inglês
como meio de comunicação comum.
Em países onde as línguas regionais – o catalão, por exemplo, ou o basco –
eram agora leccionados a nível oficial, não era invulgar os jovens («Geração
E» – de Europa – como era conhecida) aprenderem, naturalmente, a língua
local, mas passarem o seu tempo livre – numa atitude de revolta adolescente,
snobismo social e motivação esclarecida – a falar inglês. A grande vencida
não era a língua ou dialecto da minoria local – que de qualquer forma tinha
um passado reduzido e nenhum futuro internacional – mas a língua nacional
do Estado circundante. Sendo o inglês a língua sempre escolhida, as línguas
principais dos países em questão viam-se inevitavelmente postas de parte.
Como língua distintivamente europeia, o espanhol, como o português ou o
italiano, já não era muito ensinado fora do seu país de origem; era preservado
como um meio de comunicação do outro lado dos Pirinéus apenas graças ao
seu estatuto de língua oficial da União Europeia(7).
Também o alemão perdia rapidamente o seu lugar na liga das línguas
europeias. A capacidade de ler em alemão fora em tempos uma condição
obrigatória para qualquer pessoa que integrasse uma comunidade científica ou
académica. Juntamente com o francês, o alemão fora também uma língua
universal para os europeus cultos – e até à altura da guerra era a mais utilizada
das duas, uma língua usada quotidianamente de Estrasburgo a Riga(8). No
entanto, com a destruição dos judeus, a expulsão dos Alemães e a chegada
dos Soviéticos, o centro e o Leste da Europa afastaram-se abruptamente da
língua alemã. Uma geração urbana com mais idade continuou a ler e –
raramente – a falar alemão; e nas comunidades alemãs isoladas da
Transilvânia e de outras regiões ficou reduzida a uma língua marginal de uso
prático limitado. Mas toda a gente aprendia – ou a todos era ensinado – o
russo.
A associação da língua russa à ocupação soviética tornava-a bastante
menos apelativa, mesmo em países como a Checoslováquia ou a Polónia onde
a contiguidade linguística a tornava acessível. Embora os cidadãos dos
Estados-satélites fossem obrigados a estudar russo, a maioria das pessoas
esforçava-se pouco para dominar a língua, não a falando senão quando era
absolutamente necessário(9). Alguns anos após a queda do comunismo era já
claro que um dos efeitos paradoxais da ocupação pela Alemanha e pela União
Soviética fora erradicar a familiaridade com as suas línguas. Nas terras que há
tanto tempo se encontravam presas entra a Rússia e a Alemanha, agora só
uma língua estrangeira importava. Após 1989, ser «europeu» na Europa de
Leste, especialmente para os jovens, significava falar inglês.
Para os falantes nativos de alemão na Áustria, na Suíça ou na Alemanha
propriamente dita, o progressivo abandono da sua língua – ao ponto de até
aqueles cuja língua derivava imediatamente do alemão, como o holandês, já
não a compreenderem nem estudarem de forma aprofundada – era um facto, e
não valia a pena chorar a sua perda. Ao longo dos anos 90, as empresas
alemãs mais importantes como a Siemens optaram por estabelecer o inglês
como língua de trabalho. Os políticos e os executivos alemães tornaram-se
conhecidos pela facilidade com que se moviam em círculos anglófonos.
O declínio do francês era uma outra questão. Sendo uma língua de uso
diário comum, o francês não desempenhava um papel importante na Europa
desde o declínio da aristocracia imperial do antigo regime. Fora de França,
apenas alguns milhões de Belgas, Luxemburgueses e Suíços, juntamente com
algumas comunidades isoladas nos Alpes italianos e nos Pirineús espanhóis,
tinham o francês como língua materna – e muitos deles falavam-no em
formas dialectais desprezadas pelos guardiões oficiais da Académie
Française. Em termos puramente estatísticos, quando comparado com o
alemão – ou o russo – há muito que o francês se situava na periferia
linguística da Europa.
Mas desde o declínio do latim, o francês sempre fora a língua das elites
cosmopolitas cultas – logo, a língua europeia par excellence. Quando, nos
primeiros anos do século XX, surgiu a proposta de se introduzir o francês no
plano de estudos das línguas modernas na Universidade de Oxford, vários
professores se opuseram à ideia, baseando-se no argumento plausível de que
qualquer estudante que merecesse ser admitido na universidade seria já
fluente em francês. Em meados do século, este tipo de suposição era ainda
comum – ainda que não formulado de modo tão explícito – nas universidades
e embaixadas pela Europa fora. O autor do presente livro pode testemunhar
tanto a necessidade como a adequação do francês como meio de comunicação
entre os estudantes de Barcelona a Istambul, ainda em 1970.
No espaço de trinta anos tudo mudou. No ano 2000, o francês tinha
deixado de ser uma forma útil de comunicação internacional, mesmo entre as
elites. Só na Grã-Bretanha, na Irlanda e na Roménia é que continuava a ser a
escolha recomendada para as crianças se iniciarem numa primeira língua
estrangeira – de resto, toda a gente aprendia inglês. Em algumas zonas da
antiga Europa dos Habsburgo, o francês já não era sequer a segunda língua
estrangeira nas escolas, tendo sido destituído pelo alemão. A «francofonia» –
a comunidade de falantes de francês em todo o mundo, principalmente nas
antigas colónias – continuava a desempenhar um papel importante à escala
mundial; mas o declínio do francês na Europa era inegável e possivelmente
irreversível.
Até na Comissão Europeia em Bruxelas, onde o francês fora a língua
oficial dominante nos primeiros anos da Comunidade e onde os falantes
nativos na burocracia gozavam, por esse motivo, de considerável vantagem
do ponto de vista prático e a um nível psicológico, as coisas tinham mudado.
Não foi tanto a adesão da Grã-Bretanha que provocou a mudança – os
funcionários públicos destacados eram todos fluentes em francês –, como a
chegada dos escandinavos, que eram fluentes em inglês; a expansão (graças à
unificação da Alemanha e à adesão da Áustria) da comunidade falante de
alemão, que agora se libertava da sua inibição pós-guerra; e a perspectiva de
novos membros do Leste. Apesar de se recorrer a um processo de tradução
simultânea (para cobrir as 420 combinações possíveis das línguas dos 25
membros da UE), a comunicação numa das três línguas nucleares da União
era indispensável para qualquer pessoa que quisesse exercer influência sobre
a política e a sua implementação. E o francês estava agora em minoria.
Contudo, ao contrário dos Alemães, as autoridades francesas não
responderam com uma transição para o inglês por forma a garantir a sua
eficácia comercial e política. Embora cada vez mais jovens franceses
estudassem inglês e viajassem para o estrangeiro, onde o usavam, a posição
oficial tornou-se claramente defensiva: certamente, em parte, devido à
incómoda coincidência entre o declínio do uso do francês e a perda de
importância do papel internacional do país – algo a que a Grã-Bretanha fora
poupada, dado que os Americanos também falavam inglês.
A primeira resposta francesa à intimação de declínio linguístico consistiu
em insistir junto dos outros países para que continuassem a falar a sua língua:
como o presidente Georges Pompidou colocara a questão na década de 70:
«Se o francês alguma vez deixar de ser a primeira língua de trabalho na
Europa, então a própria Europa nunca será verdadeiramente europeia».
Todavia, rapidamente se tornou claro que esta era uma causa perdida, pelo
que os intelectuais e os políticos optaram, então, pelo bloqueio: se o francês já
não era falado para além das fronteiras do país, então deveria pelo menos ter
um monopólio exclusivo dentro delas. Uma petição assinada em Julho de
1992 por 250 personalidades – incluindo os escritores Régis Debray, Alain
Finkielkraut, Jean Dutourd, Max Gallo e Philippe Sollers – exigia que o
governo tornasse obrigatório o uso exclusivo do francês em conferências e
reuniões que tivessem lugar em solo francês, filmes com financiamento
francês, etc. De outra forma, avisavam, «os angloglotas» vão pôr-nos a todos
a falar inglês, «ou melhor, americano».
Os governos franceses de todas as orientações políticas acederam de boa
vontade, nem que fosse só pour la forme. «É indispensável uma batalha pelo
francês», declarou a ministra socialista Catherine Tasca. «Nas organizações
internacionais, nas ciências e até nas paredes das nossas cidades». Dois anos
mais tarde um ministro da Cultura conservador, Jacques Toubon, retomou o
tema, tornando explícito aquilo que Tasca se limitara a sugerir: que o motivo
de preocupação não era apenas o declínio do francês, mas também, e acima de
tudo, a hegemonia do inglês. Seria preferível os Franceses aprenderem outra
língua, qualquer outra língua: «Por que razão», perguntava Toubon, «hão-de
as nossas crianças aprender um inglês empobrecido – algo que serão capazes
de aprender em qualquer idade – quando deviam dedicar-se a adquirir um
conhecimento mais profundo de alemão, espanhol, árabe, japonês, italiano,
português ou russo?»
O alvo de Toubon – aquilo que ele desdenhosamente designava por o
«inglês mercantil» que estava a relegar o francês para segundo plano («o
primeiro capital, o símbolo da dignidade do povo francês») – estava já fora do
seu alcance na altura em que tentava atingi-lo. Alguns intelectuais, como
Michel Serres, podiam lamentar pomposamente o facto de as ruas de Paris
durante a ocupação ostentarem menos nomes em alemão do que tinham agora
em inglês, mas uma geração mais jovem que crescera com filmes, programas
de televisão, vídeojogos, sites da Internet e música pop internacional – e que
falava um calão francês permeável cheio de empréstimos e de palavras e
expressões adaptadas – não se importava minimamente com a questão.
A legislação destinada a obrigar os Franceses a falarem francês uns com os
outros era uma coisa – embora claramente sujeita a muitas infracções. Porém,
a tentativa de fazer com que académicos estrangeiros, empresários,
consultores, advogados, arquitectos e todos os outros se exprimissem em
francês – ou a compreenderem-no quando outros o falassem – sempre que se
reunissem em solo francês só podia ter um resultado: essas pessoas levariam
as suas ideias e os seus negócios para outros lugares. Na viragem para o novo
século, a verdade começara a impor-se e a maioria das figuras públicas e dos
políticos franceses (embora não todos) começara a resignar-se às duras
realidades da Europa do século XXI. As novas elites europeias, quem quer
que fossem, não queriam e não iam falar francês: a «Europa» já não era um
projecto francês.
Por forma a compreender que tipo de lugar era a Europa em finais do
segundo milénio, é tentador identificar, como fizemos, as suas divisões
internas, querelas e rupturas – que reflectem, inevitavelmente, a história
moderna profundamente cismática e a incontestável diversidade das suas
comunidades, identidades e histórias sobrepostas. Mas a noção dos europeus
de quem eram e de como viviam moldava-se tanto em função do que os unia
como daquilo que os separava: e estavam agora mais unidos do que nunca.
A melhor ilustração dessa «união mais estreita do que nunca» na qual os
europeus se tinham envolvido – ou, mais precisamente, na qual tinham sido
envolvidos pelos seus líderes políticos esclarecidos – era a rede cada vez mais
densa de vias de comunicação que dela resultara. A infra-estrutura de
transportes intraeuropeus – pontes, túneis, estradas, comboios e barcos –
tinha-se expandido extraordinariamente ao longo das últimas décadas do
século. Os europeus tinham agora o sistema de vias férreas mais rápido (à
excepção da rede ferroviária britânica, mal reputada, e com razão) e mais
seguro do mundo.
Num continente populoso cujas distâncias relativamente curtas favoreciam
transporte por terra em detrimento das viagens aéreas, os caminhos-de-ferro
eram um objecto incontroverso de investimento público. Os mesmos países
que se tinham reunidos em Schengen cooperavam agora – com apoio
importante dos EUA – para estabelecer uma rede alargada de vias de alta
velocidade, estendendo-se de Madrid e Roma até Amsterdão e Hamburgo,
com posterior extensão para norte, até à Escandinávia, e para leste, através da
Europa Central. Mesmo nas regiões e países que poderiam nunca vir a ser
beneficiados com comboios TGV, ICE ou ES(10), os europeus podiam agora
viajar através do seu continente – não necessariamente muito mais depressa
do que um século antes, mas com muito menos entraves.
Tal como no século XIX, a inovação da rede férrea na Europa tinha
consequências para as cidades e regiões que não servia, as quais corriam o
risco de perder mercados e população face a concorrentes mais afortunadas.
Mas agora existia também uma vasta rede de auto-estradas – e à excepção da
antiga União Soviética, do Sul dos Balcãs e das províncias mais pobres da
Polónia e da Roménia, a maioria dos europeus podia agora comprar um
automóvel. Juntamente com ferry boats e companhias aéreas liberalizadas,
estas mudanças fizeram com que se tornasse possível para as pessoas habitar
numa cidade, trabalhar noutra, e fazer compras ou procurar entretenimento
numa outra – nem sempre a baixos custos, mas com uma facilidade sem
precedente. Tornou-se bastante comum para as famílias europeias encarar a
hipótese de viver em Malmö (Suécia) e trabalhar em Copenhaga (Dinamarca),
por exemplo; ou deslocarem-se de Friburgo (Alemanha) a Estrasburgo
(França), ou até atravessarem o canal de Londres para Roterdão; ou irem de
Bratislava (Eslováquia) a Viena (Áustria), reactivando uma ligação comum no
tempo dos Habsburgo. Uma Europa genuinamente integrada começava a
tomar forma.
Com cada vez mais mobilidade, os europeus conheciam-se agora uns aos
outros melhor do que em qualquer outra época do passado. E podiam viajar e
comunicar numa situação de igualdade. Contudo, alguns europeus
continuavam decididamente mais iguais do que outros. Dois séculos e meio
depois de Voltaire ter traçado um contraste entre a Europa que «conhece» e a
Europa que «espera ser conhecida», essa distinção mantinha em grande parte
a sua pertinência. O poder, a prosperidade e as instituições aglomeravam-se
no lado ocidental do continente. A geografia moral da Europa – a Europa na
ideia dos europeus – consistia num núcleo de Estados «verdadeiramente»
europeus (alguns dos quais, como a Suécia, numa localização geográfica
bastante periférica), cujos valores constitucionais, legais e culturais eram
apresentados como exemplares para os que aspiravam a ser europeus: que
procuravam, na verdade, tornar-se verdadeiramente eles próprios(11).
Esperava-se, então, que os europeus de Leste estivessem informados a
respeito do Ocidente. Quando o conhecimento passava na direcção contrária,
tal não acontecia sempre, contudo, de formas muito lisonjeadoras. Não era
apenas o facto de europeus pobres do Sul e de Leste viajarem para Norte para
vender o seu trabalho e o seu corpo. No final do século, algumas cidades do
Leste europeu, tendo esgotado o seu poder de atracção como entrepostos
redescobertos de uma Europa Central perdida, tinham começado a posicionar-
se num nicho de mercado rentável como locais de férias baratos e sórdidos,
promovendo um turismo económico muito procurado no Ocidente. Talin e
Praga, principalmente, adquiriram a má reputação de destinos dos stag flights
– pacotes de fim-de-semana a preços reduzidos para Ingleses à procura de
álcool em abundância e sexo barato.
Agentes de viagens e operadores turísticos cuja clientela teria em tempos
optado por Blackpool ou (mais recentemente) Benidorm revelavam agora um
tremendo entusiasmo pelos prazeres exóticos oferecidos no Leste europeu.
Todavia, os Ingleses eram também, de certa forma, periféricos – e é por essa
razão que a Europa continuava a ser um objecto exótico para tantos deles. Em
1991, o semanário Kultura, de Sófia, perguntou aos Búlgaros de que cultura
estrangeira se sentiam mais próximos: 18% respondeu «francesa», 11%
«alemã» (e 15% «americana»). Apenas 1,3% reconheceu sentir alguma
proximidade face à «cultura inglesa».
O centro inquestionável da Europa, apesar de todos os seus problemas
pós-unificação, continuava a ser a Alemanha: de longe o maior Estado da UE
em termos de população e produtividade, era o elemento central da «Europa
nuclear», como todos os chanceleres, de Adenauer a Schröder, tinham feito
questão que fosse. A Alemanha era também o único país que conseguira
ultrapassar a anterior divisão. Graças à unificação, à imigração e ao facto de
ser a nova sede do governo federal, a grande Berlim tinha agora seis vezes a
área de Paris – um símbolo das posições relativas dos dois membros
dominantes da União. A Alemanha dominava a economia europeia. Era o
maior parceiro comercial da maioria dos Estados-membros da UE. Dois
terços do rendimento líquido da União vinham exclusivamente da República
Federal. E apesar de serem os que mais pagavam – ou talvez mesmo por essa
razão – os Alemães continuavam a ser dos cidadãos mais empenhados da UE.
Os estadistas alemães propunham periodicamente a criação de uma «via
rápida» de Estados empenhados numa Europa federal completamente
integrada, recuando em seguida, claramente frustrados, perante a tendência
dos seus parceiros para protelar.
Se a Alemanha – ainda na imagem de Voltaire – era o país que «conhecia»
melhor a Europa, não seria de estranhar que no início do século XX outros
dois antigos Estados imperiais procurassem insistentemente ser «conhecidos»
por esta última. À semelhança da Alemanha, a Rússia e a Turquia tinham em
tempos desempenhado um papel de relevo nos assuntos europeus. E muitos
Russos e Turcos tinham partilhado o destino incómodo das comunidades
étnicas alemãs da Europa: herdeiros deslocados de um poder autocrático
agora reduzido a minorias ressentidas e vulneráveis num outro Estado-nação,
a recusa do fim do império. Em finais dos anos 90, estimava-se que mais de
100 milhões de Russos viviam fora da Rússia nos países independentes do
Leste europeu(12).
Mas a semelhança ficava-se por aí. A Rússia pós-soviética era mais um
império eurasiático do que um Estado europeu. Preocupada com as rebeliões
violentas no Cáucaso, era mantida à distância do resto da Europa pelos novos
Estados-tampão da Bielorrússia, Ucrânia e Moldova, bem como pela sua
própria política interna não liberal. Não se colocava a questão de a Rússia
aderir à UE: os novos membros tinham, como vimos, de se enquadrar nos
«valores europeus» – com respeito pelo cumprimento da lei, pelos direitos
cívicos e liberdades, e pela transparência institucional – que a Moscovo de
Vladimir Putin estava muito longe de admitir, muito menos de
implementar(13). De qualquer modo, as autoridades russas estavam mais
interessadas em construir oleodutos e em vender gás à UE do que em fazer
parte desta. Muitos Russos, incluindo os que viviam nas cidades ocidentais,
não pensavam instintivamente em si próprios como sendo europeus: quando
viajavam para ocidente, falavam (como os Ingleses) em ir à «Europa». Ainda
assim, a Rússia fora uma potência europeia empenhada durante três séculos e
essa herança mantinha-se. Os bancos da Letónia eram frequentemente
adquiridos por empresários russos. Um presidente lituano, Rolandas Paksas,
foi obrigado a abandonar as suas funções em 2003 sob suspeita de
envolvimento com a máfia russa. Moscovo manteve o seu enclave báltico em
redor de Kaliningrado e continuou a exigir a circulação sem restrições
(através da Lituânia) para o tráfego militar e de transporte russo, bem como
viagens sem visto para cidadãos russos de visita à UE. Dinheiro branqueado
proveniente das actividades de oligarcas russos era canalizado através do
mercado imobiliário em Londres e na Riviera francesa.
A curto prazo, a Rússia era, assim, uma presença obviamente incómoda na
extremidade da Europa. Mas não era uma ameaça. As forças armadas russas
estavam empenhadas noutras questões e, para todos os efeitos, em estado de
profunda decadência. A saúde da população russa era preocupante – a
esperança média de vida, sobretudo dos homens, caía a pique e havia algum
tempo que as instituições internacionais alertavam para o facto de o país estar
a sofrer um novo surto de tuberculose e à beira de uma epidemia de SIDA –
mas esta era, em primeira instância, uma fonte de preocupação para os
próprios Russos. Para o futuro imediato, a Rússia estava sem dúvida voltada
para os seus problemas internos.
A longo prazo, o simples facto da proximidade da Rússia, a dimensão do
país e as suas reservas sem paralelo de combustíveis fósseis iriam
inevitavelmente ensombrar o futuro de um continente europeu pobre em
fontes de energia. Já em 2004, metade do gás natural da Polónia e 95% do seu
petróleo provinham da Rússia. Mas, entretanto, aquilo que as autoridades
russas e os indivíduos russos queriam da Europa era «respeito». Moscovo
ambicionava implicar-se de forma mais directa nas tomadas de decisão intra-
Europa, quer se tratasse da NATO, da administração dos acordos dos Balcãs
ou de tratados comerciais (tanto bilaterais como através da Organização
Mundial de Comércio): não porque as decisões tomadas na ausência da
Rússia fossem necessariamente prejudiciais para os seus interesses, mas por
uma questão de princípio.
Segundo parecia a muitos observadores, a história europeia repetia-se. No
século XXI, à semelhança do século XVIII: a Rússia estava simultaneamente
na Europa e fora dela, a «nation d’Europe» de Montesquieu e a «imensidão
selvagem cítia» de Gibbon. Para os Russos, a Europa Ocidental continuava a
ser aquilo que era havia séculos: um objecto contraditório de atracção e
repulsa, de admiração e ressentiment. Os dirigentes da Rússia e outras pessoas
em altos cargos continuavam a revelar-se bastante sensíveis às opiniões do
exterior, demonstrando ao mesmo tempo uma profunda desconfiança face a
críticas ou interferências vindas de fora. A história e a geografia tinham
legado aos europeus um vizinho que estes não podiam nem ignorar, nem
acomodar.
O mesmo se aplicara em tempos à Turquia. Durante cerca de 700 anos, os
Turcos otomanos tinham sido os «outros» para a Europa, substituindo os
Árabes, que tinham desempenhado esse papel no meio milénio anterior.
Durante muitos séculos, a «Europa» começava onde acabava o império turco
(sendo essa a razão pela qual Cioran se mostrava tão perturbado ao relembrar
os longos anos em que a Roménia estivera sujeita ao domínio otomano); e era
comum referir-se o facto de a Europa cristã ser periodicamente «salva» – às
portas de Viena ou Budapeste, ou em 1571 na Batalha de Lepanto – das garras
do Islão turco. A partir de meados do século XVIII, quando a Turquia
otomana entrava em declínio, a «Questão do Leste» – como lidar com o
desmoronamento do Império Otomano e que fazer com os territórios que
agora se libertavam do domínio turco – era o desafio mais urgente que se
colocava aos diplomatas europeus.
A derrota da Turquia na Primeira Guerra Mundial, a queda dos Otomanos,
e a sua substituição pelo Estado modernizador e ostensivamente secular de
Kemal Ataturk tinham retirado a questão da agenda europeia. Governados
agora a partir de Ancara, os Turcos tinham problemas internos que lhes
bastassem; e apesar de o seu afastamento dos Balcãs e do Médio Oriente
árabe ter deixado nessas regiões uma complexa teia de conflitos e decisões
com consequências graves a longo prazo para a Europa e o mundo, os Turcos
propriamente ditos já não eram parte do problema. Se a Turquia não estivesse
estrategicamente colocada no caminho da União Soviética para o Mar
Mediterrâneo, o país podia até ter sido apagado da memória europeia.
Em vez disso, Ancara colaborou durante toda a Guerra Fria com a aliança
ocidental, contribuindo para a NATO com um contingente militar
significativo. Os mísseis e bases americanos estabeleceram-se na Turquia
como parte do cordon sanitaire que cobria as fronteiras soviéticas do Báltico
ao Pacífico, e os governos ocidentais retribuíram auxiliando a Turquia com
avultadas quantias, e encarando com complacência os seus instáveis regimes
ditatoriais – muitas vezes resultantes de golpes militares – e a violação, por
parte das autoridades, dos direitos das minorias (nomeadamente dos Curdos,
no extremo leste do país, um quinto da população total). Entretanto, um
elevado número de «trabalhadores convidados» turcos, como o resto da
população rural excedente da bacia do Mediterrâneo, emigrava para a
Alemanha e para outras terras ocidentais, à procura de emprego.
Mas a herança otomana haveria de regressar para atormentar a nova
Europa. Com o fim da Guerra Fria, a localização da Turquia assumia um
significado diferente. O país deixou de ser um entreposto fronteiriço e um
Estado-barreira num confronto geopolítico internacional. Passou, então, a
desempenhar o papel de canal entre a Europa e a Ásia, com ligações e
afinidades estabelecidas em ambos os sentidos. Embora a Turquia fosse
formalmente uma república secular, a maioria dos seus 70 milhões de
habitantes era muçulmana. Muitos dos Turcos mais velhos não eram
especialmente ortodoxos, mas, com o aumento do poder do Islão radical,
havia um crescente receio de que até o Estado secular impiedosamente
imposto por Ataturk se mostrasse vulnerável perante uma nova geração que se
rebelasse contra os seus pais secularizados e fosse procurar as suas raízes na
herança mais antiga do Islão otomano.
No entanto, as elites profissionais e do mundo dos negócios encontravam-
se, de forma desproporcional, localizadas na cidade europeia de Istambul e
identificavam-se entusiasticamente com a moda, a cultura e os costumes
ocidentais. Como outros europeus de Leste ambiciosos, viam a Europa – os
valores, as instituições, os mercados e as carreiras europeias – como o único
futuro possível para si e para o seu país de localização ambivalente. Tinham
um objectivo claro: escapar à História, na direcção da «Europa». Por outro
lado, este era um objectivo que partilhavam com os oficiais do Exército
tradicionalmente mais influentes, os quais se identificavam inteiramente com
o sonho de Ataturk de um Estado secular e expressavam abertamente o seu
descontentamento face à crescente islamização da vida pública turca.
Contudo, a Europa – ou pelo menos Bruxelas – mostrava-se nitidamente
hesitante: a candidatura da Turquia com vista à adesão à União Europeia foi
uma questão posta de parte durante muitos anos. Havia boas razões para a
cautela: as prisões da Turquia, a forma como o país tratava os críticos do
regime, os seus códigos civil e económico inadequados, eram apenas alguns
dos muitos assuntos que precisariam de ser revistos antes de a Turquia poder
aspirar a mais do que uma relação meramente comercial com os seus
parceiros europeus. Figuras proeminentes da Comissão Europeia, como o
austríaco Franz Fischler, deram voz às dúvidas relativamente à estabilidade da
democracia do país. Havia, por outro lado, dificuldades também de natureza
prática: caso aderisse, a Turquia tornar-se-ia o segundo maior Estado-membro
da UE a seguir à Alemanha, sendo todavia o mais pobre – havia um profundo
fosso entre o seu lado ocidental próspero e a vasta região oriental
empobrecida e, assim que tivessem oportunidade, milhões de Turcos
migrariam para o ocidente europeu à procura de melhores salários. As
consequências para as políticas nacionais relativamente à imigração, assim
como para o orçamento da UE, não podiam ser ignoradas.
Porém, os verdadeiros impedimentos eram outros(14). Se a Turquia
entrasse para a UE, a União teria uma fronteira externa adjacente à Geórgia, à
Arménia, ao Irão, ao Iraque e à Síria. Se fazia ou não sentido, em termos
geográficos, estender a «Europa» até cerca de 160 km de Mossul era uma
questão legítima; dadas as circunstâncias da época, implicava inevitavelmente
um risco em matéria de segurança. E quanto mais a Europa estendesse as suas
fronteiras, mais se fazia sentir a pressão exercida por muitos – inclusivamente
os autores do documento constitucional de 2004 – para que a União afirmasse
explicitamente que termos definiam a sua ligação comunitária. Este problema
levou, por sua vez, a que vários políticos da Polónia, Lituânia, Eslováquia e
não só – para além do papa polaco em Roma – tentassem em vão inserir no
preâmbulo de um novo texto constitucional uma alusão ao facto de a Europa
ter em tempos sido a Europa cristã. Pois não tinha Vaclav Havel, falando em
Estrasburgo em 1994, relembrado à sua assistência que a «União Europeia se
baseia num vasto conjunto de valores que tem as suas raízes na antiguidade e
na cristandade?
O que quer que fossem, os Turcos não eram, certamente, cristãos. A ironia
consistia precisamente no facto de – não se podendo definir como cristãos ou
«judeo-cristãos» – os Turcos candidatos à Europa estarem mais interessados
até que os restantes europeus em enfatizar a dimensão secular, tolerante e
liberal da identidade europeia(15). Mostravam-se, além disso, cada vez mais
empenhados em invocar as normas e valores europeus como arma contra as
influências reaccionárias no cenário político turco – um objectivo há muito
encorajado pelos Estados-membros da UE.
No entanto, apesar de o parlamento turco ter removido em 2003, a pedido
dos europeus, muitas restrições de longa data impostas à vida cultural e à
expressão política curda, a prolongada hesitação dos governos e
representantes em Bruxelas começara a ter consequências. A oposição turca à
adesão à UE apontava com insistência a humilhação de uma nação outrora
imperial, agora reduzida ao estatuto de mendigo à porta europeia, pedindo
apoio para a sua candidatura a nações que em tempos tinham estado sob o seu
domínio. Além disso, o crescente peso da religião na Turquia não só
possibilitou a vitória eleitoral do partido islâmico moderado do país, como
também encorajou o parlamento nacional a debater uma moção que pretendia
que o adultério voltasse a ser considerado crime.
Em resposta a avisos explícitos por parte de Bruxelas, indicando que esta
medida poderia comprometer definitivamente a candidatura de Ancara à UE,
a moção foi abandonada e, em Dezembro de 2004, a União concordou
finalmente em iniciar as negociações com vista à adesão. Mas os danos eram
irreversíveis. Os opositores à entrada da Turquia – e havia muitos na
Alemanha(16) e em França, bem como em nações mais próximas, como a
Grécia ou a Bulgária – tinham novos argumentos. Em 2004 o comissário
cessante da UE, Frits Bolkestein, alertou para a iminente «islamização» da
Europa. As probabilidades de as negociações se desenrolarem serenamente
eram cada vez mais reduzidas – Günter Verheugen, o comissário da UE para o
alargamento, admitiu que não esperava que a Turquia se tornasse membro da
União «antes de 2015». Entretanto, os custos da futura rejeição ou de mais
adiamentos – para o orgulho turco e para a estabilidade da fronteira
vulnerável da Europa – acentuaram-se um pouco mais. A Questão de Leste
colocava-se novamente.
Houve alguma ironia na forma decisiva como a História condicionou o
rumo da Europa no início do século XXI, tendo em conta a escassa
responsabilidade que coube aos cidadãos contemporâneos. O problema não se
devia tanto à educação – o ensino ou o ensino incorrecto da História nas
escolas, embora em algumas zonas do Sudeste europeu este fosse também um
factor de preocupação – como aos propósitos que o passado servia, a nível
público. Nas sociedades autoritárias, claro, este era um tema antigo; mas a
Europa, na sua própria autodefinição, era pós-autoritária. Os governos já não
exerciam um monopólio sobre o conhecimento e a História já não podia ser
moldada em função de conveniências políticas.
E não o era, de facto, na maioria dos casos. A ameaça à História, na
Europa, não advinha de uma distorção deliberada do passado para fins
desonestos, mas de algo que poderia a princípio parecer um acessório do
conhecimento histórico: a nostalgia. As últimas décadas do século tinham
conhecido um crescente fascínio do público pelo passado, visto como um
artefacto isolado, encerrando não memórias recentes, mas memórias perdidas:
a História não tanto como fonte de esclarecimento para o presente, mas antes
como uma ilustração de quão diferentes as coisas tinham sido no passado. A
História na televisão – narrada ou representada; a História em parques
temáticos; a História nos museus: tudo contribuía para enfatizar, não o que
ligava as pessoas ao passado, mas tudo o que as separava dele. O presente era
encarado não como o herdeiro da História, mas como seu órfão: privado das
coisas tal como eram e do mundo que perdemos.
No Leste europeu, a nostalgia resultava directamente da perda das certezas
do comunismo, agora purgado do seu lado mais sombrio. Em 2003, o Museu
de Artes Decorativas em Praga apresentou uma exposição de «vestuário pré-
revolucionário»: botas, roupa interior, vestidos e outros artigos do género
pertencentes a um mundo que terminara apenas 14 anos antes, mas que era já
objecto de um fascínio distanciado. A exposição atraiu muitas pessoas de
mais idade para quem a monotonia cinzenta dos artigos de qualidade inferior
seria possivelmente uma memória recente. E, no entanto, a resposta dos
visitantes sugeria um afecto e até um saudosismo que surpreendeu os
organizadores.
A Ostalgie, como se designava na Alemanha, baseava-se num tema
semelhante de recordações deturpadas. Tendo em conta que a RDA – para
adoptar a descrição de Mirabeau da Prússia dos Hohenzollern – era pouco
mais do que um serviço de segurança com um Estado, demonstrava sob o
brilho da retrospectiva uma notável capacidade de despertar afecto e saudade.
Enquanto os Checos admiravam a sua roupa velha, os Alemães reuniam-se
para assistir a Adeus Lenine: um filme que troçava ostensivamente das
limitações, dos dogmas e do absurdo da vida em geral sob o domínio de Erich
Honecker, mas que despertava ao mesmo tempo, intencionalmente, uma certa
simpatia pelo seu protagonista, posicionando-se de forma algo ambivalente
relativamente à sua súbita perda.
Na verdade, Alemães e Checos, como outros povos da Europa Central,
tiveram de recomeçar, enquanto nações, depois de uma experiência súbita e
traumática. A sua nostalgia selectiva por qualquer coisa que pudesse ser
recuperada dos escombros do passado fazia todo o sentido – não foi por acaso
que Heimat: Eine Deutsche Chronik, de Edgar Reitz, teve em média nove
milhões de espectadores na Alemanha Ocidental por episódio, quando foi
transmitido na televisão em 1984. A obsessão nostálgica que percorreu o resto
da Europa Ocidental nos últimos anos do século passado, dando origem a
indústrias de património, memoriais, reconstruções, reconstituições e
renovações, já não é tão fácil de explicar.
O que o historiador Eric Hobsbawm descreveu em 1995 como sendo «a
grande época da mitologia histórica» não era, obviamente, inédito – o próprio
Hobsbawm tinha escrito de modo brilhante acerca da «invenção da tradição»
na Europa do século XIX, na alvorada da era nacional: o tipo de cultura ersatz
que Edwin Muir desprezava (ao escrever acerca de Burns e Scott em Scotland
1941) sob o rótulo de «falsos bardos para uma falsa nação». Mas a reinvenção
criativa do passado nacional na França e na Grã-Bretanha em finais do século
XX era uma questão totalmente distinta.
Não foi por acaso que a história-como-nostalgia foi tão vincada nestes dois
países em particular. Tendo entrado no século XX como orgulhosas potências
imperiais, ambos tinham perdido território e recursos devido à guerra e à
descolonização. A confiança e a segurança do império global deram lugar a
memórias desagradáveis e a perspectivas futuras incertas. O significado de ser
francês, ou britânico, fora anteriormente algo de bastante claro, mas esse
tempo tinha passado. A alternativa, ser entusiasticamente «europeu», era
bastante mais fácil em países pequenos como a Bélgica ou Portugal, ou em
lugares – como a Itália ou a Espanha – onde havia motivos para deixar na
sombra o passado nacional recente(17). Mas para nações que tinham a
memória bem viva de grandeza e glória, a «Europa» seria sempre uma
transição algo difícil: um compromisso, e não uma escolha.
Em termos institucionais, a nostalgia dos Britânicos fez-se notar quase
imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, quando o ministro trabalhista
Hugh Dalton estabeleceu um Fundo do Património Nacional destinado a
adquirir espaços e edifícios de «beleza e história» para a nação, a serem
administrados por um National Trust (Instituto do Património Nacional). Ao
fim de uma geração, estas propriedades – parques, castelos, palácios, e «áreas
de beleza natural invulgar» tinham-se tornado pontos de interesse turístico:
alguns dos quais ainda ocupados pelos seus donos originais, que tinham
legado as propriedades ao Estado em troca de benefícios fiscais consideráveis.
A partir dos anos 50, e ainda ao longo da década de 70, uma versão
reconfortante do passado recente emergiu e reemergiu na forma de filmes de
guerra, peças históricas e vestuário: a reciclagem da moda eduardiana, desde
os teddy boys às patilhas, foi um dos traços desta tendência – que culminou,
em 1977, numa celebração «retrospectiva» e nostálgica do jubileu de prata da
rainha, com festas de rua, exposições de fotografia e uma evocação à escala
nacional de tempos antigos e melhores. Porém, depois da revolução de
Thatcher dos anos 80, até esse elemento de continuidade se perdeu. Ao longo
dessa década, aquela Grã-Bretanha – mais precisamente a Inglaterra – que
podia sentir a emoção reconfortante ao recordar os anos 40, ou mesmo 1913,
desapareceu por completo.
No seu lugar surgiu um país incapaz de se relacionar com o seu passado
imediato, excepto através da ironia involuntária da negação, ou então na
forma de uma «herança» desinfectada e esvaziada do seu conteúdo. A
negação estava bem ilustrada nas inseguranças das antigas universidades de
Oxford e Cambridge, forçadas de modo humilhante, na nova atmosfera
blairista de oportunismo igualitário, a insistir no seu «antielitismo»; ou na
autocensura grotesca de instituições culturais como o Victoria and Albert
Museum, reduzido à condição de se promover como um café com um «museu
simpático em anexo».
Quando ao património da nação, foi de modo bastante explícito convertido
numa proposta de negócios, a «indústria do património»: promovida e
entregue às mãos de um «Departamento do Património Arquitectónico» do
novo governo. Criado em 1992 por um governo conservador, mas em
conformidade com planos originalmente concebidos pelos trabalhistas, o novo
ministério viria mais tarde a ser absorvido pelo governo trabalhista num
«Departamento para a Cultura, os Media e o Desporto», cujo próprio nome
era sugestivo. Os antecedentes politicamente ecuménicos são algo de
importante: o património não era um projecto partidário. O passado não era
maltratado ou explorado; era, antes, alvo de uma purificação, sendo-lhe
conferido um rosto feliz.
Barnsley, no centro da defunta região mineira de South Yorkshire, era um
caso típico. Tendo em tempos sido um importante centro da exploração
mineira de carvão, na era pós-Thatcher Barnsley transformara-se
profundamente. O centro da cidade fora esventrado, o seu núcleo cívico
desactivado e substituído por centros comerciais de gosto duvidoso rodeados
por parques de estacionamento de cimento. Tudo o que restava era a Câmara
Municipal e um punhado de edifícios na sua vizinhança, relíquias
arquitectónicas do século XIX, a época gloriosa do município, para os quais
os visitantes eram encaminhados por indicações em imitação de estilo antigo.
Bancas de livros no mercado local tinham-se especializado na venda da
nostalgia da região aos seus próprios habitantes (Barnsley não era um circuito
turístico estabelecido) – fotografias e cópias a sépia, para além de livros com
títulos como The Golden Years of Barnsley ou Memories of Old Doncaster
(uma cidade vizinha): lembranças de um mundo recentemente perdido e já
quase esquecido.
A poucos quilómetros de Barnsley, perto da aldeia de Orgreave, a «Batalha
de Orgreave» foi reconstituída para a televisão em 2001. O confronto que aí
teve lugar, em Junho de 1984, entre os mineiros em greve e a polícia foi o
mais violento e desesperado dos conflitos entre Margaret Thatcher e o
Sindicato Nacional dos Mineiros nesse ano. Desde então, muitos dos mineiros
estavam desempregados – alguns deles participaram (mediante pagamento)
nas filmagens, vestindo a roupa que caracterizou o referido «período». A
reconstituição de batalhas famosas era um passatempo inglês tradicional.
Contudo, o facto de se atribuir a Orgreave o valor de «património» era
revelador do acelerado processo de historicização que se atravessava. Afinal,
fora só ao fim de 300 anos que os Ingleses tinham decidido reconstituir a
Batalha de Naseby da Guerra Civil; Orgreave foi objecto de um telefilme
apenas 17 anos após os acontecimentos terem tido lugar.
A cidade de Barnsley surgia bem retratada em The Road to Wigan Pier, em
que George Orwell escreveu de forma inesquecível sobre a tragédia do
desemprego que se abateu sobre a classe operária do sector industrial entre as
duas guerras. Passados 70 anos, precisamente em Wigan, havia agora não só
um molhe (é famosa a referência de Orwell à sua ausência), mas também uma
placa de sinalização na auto-estrada próxima apelando às pessoas a visitá-lo.
Junto ao canal já limpo fora construído o museu «The Way We Were» e o pub
moderno «The Orwell at Wigan Pier», que vendia hambúrgueres e batatas
fritas. Os tenebrosos bairros de lata de Orwell tinham, efectivamente, sido
apagados – não apenas da paisagem, mas também da memória dos seus
habitantes: Memories of Wigan 1930-1970, um guia à venda no museu,
oferecia imagens a sépia de lojistas com ar tímido em estabelecimentos
antiquados e esquecidos. No entanto, nem uma palavra acerca das minas e dos
trabalhadores cuja situação levou Orwell ao local e deu a Wigan a sua fama
duvidosa.
Não era apenas o Norte a ser tratado como património. Na região das
cerâmicas no West Midland de Inglaterra, os turistas e as crianças da zona
eram incentivados a aprender como Josiah Wedgwood, o oleiro do século
XVIII, dava forma à suas peças famosas. Mas era em vão que se procurava
indícios de como viviam os trabalhadores da indústria cerâmica ou se tentava
perceber por que motivo se chamava à região País Negro (Orwell descreveu
como até a neve se tornava negra devido ao fumo expelido por uma centena
de chaminés). E eram inúmeros os exemplos deste tipo – em que a forma
como as coisas deviam ter sido substituía o modo como elas eram (ou são).
Assim, as vias férreas britânicas, que eram bem reais, constituíam um
escândalo nacional do conhecimento de todos; mas no ano 2000 a Grã-
Bretanha tinha mais caminhos-de-ferro a vapor e museus de caminhos-de-
ferro a vapor do que todos os outros países europeus juntos: ao todo 120; só
na Inglaterra, 91. A maioria dos comboios não vai a lado nenhum, e aqueles
que vão conseguem aliar a realidade à fantasia com alguma tranquilidade: no
Verão, os visitantes que vêm ao condado de Yorkshire são convidados a viajar
com Thomas, a locomotiva pela linha Keighley-Haworth para visitar o
Presbitério Brontë.
Assim, na Inglaterra contemporânea, a história e a ficção combinam-se
harmoniosamente. A indústria, a pobreza e os conflitos sociais foram
oficialmente esquecidos e abafados. Os contrastes sociais profundos são
negados ou homogeneizados. E até o passado mais recente e contestado está
disponível apenas numa reprodução nostálgica e falseada. Esta censura da
memória à escala nacional foi um feito alcançado pela nova elite política do
país. Na esteira de Margaret Thatcher, os Novos Trabalhistas
desembaraçaram-se facilmente do passado; e a próspera indústria inglesa do
património substituiu-o por «o Passado».
Os Ingleses têm a capacidade única de semear e cuidar de todo um «jardim
do esquecimento», invocando o passado ao mesmo tempo que o negam
energicamente. Em França, a obsessão algo semelhante pela herança da nação
– le patrimoine – assumiu uma forma diferente. Para os Franceses, o fascínio
pela identificação e preservação de objectos e lugares valiosos do passado
nacional teve origem várias décadas antes, tendo começado entre as guerras
com exposições agrárias que revelavam já nostalgia pelo mundo perdido de
pré-1914 e acelerado pelos esforços empreendidos pelo regime de Vichy no
sentido de substituir o inconveniente presente urbano por um passado rural
idealizado.
Depois da guerra, durante a IV e a V Repúblicas, o Estado investiu
quantias significativas na preservação nacional e regional, acumulando um
patrimoine culturel pensado como uma espécie de pedagogia tangível: uma
recordação contemporânea congelada (depois de um século doloroso e
conturbado) do passado singular do país. Todavia, nas últimas décadas do
século, a França – a França dos presidentes Mitterrand e Chirac – estava a
sofrer mudanças profundas. Já não eram as continuidades da glória passada –
ou da tragédia passada – que suscitavam comentários, mas antes as
descontinuidades. O passado – o passado revolucionário, o passado
camponês, o passado linguístico e, acima de tudo, o passado recente, de Vichy
à Argélia – não oferecia directrizes para o futuro. Ultrapassada pela
transformação demográfica e por duas gerações de mobilidade
sociogeográfica, a história em tempos contínua da França parecia condenada a
desaparecer por completo da memória nacional.
A angústia da perda produziu dois efeitos. Um deles consistiu no
alargamento do leque do patrimoine oficial, o conjunto de monumentos e
artefactos com o rótulo de «património» atribuído pela autoridade do Estado.
Em 1988, a pedido de Jack Lang, ministro da Cultura de Mitterrand, a lista de
itens oficialmente protegidos no patrimoine culturel de França –
anteriormente limitada a bens patrimoniais ao estilo da UNESCO, tais como a
Pont du Gard, perto de Nîmes, ou as muralhas de Filipe, o Ousado em
Aigues-Mortes – foi consideravelmente alargada.
Diz muito da abordagem seguida por Lang e os seus sucessores o facto de
entre os novos «sítios patrimoniais» da França constar a fachada em ruínas do
Hôtel du Nord, no Quai de Jemappes, em Paris: uma homenagem claramente
nostálgica ao filme com o mesmo título, assinado por Marcel Carné em 1938.
Mas Carné filmou todo o referido filme em estúdio. Assim, a preservação de
um edifício (ou apenas da sua fachada) que nem sequer apareceu no filme
podia ser encarada – dependendo do gosto – como um subtil exercício francês
de ironia pós-moderna, ou como sintomática da natureza inevitavelmente
artificial de qualquer memória sujeita à taxidermia oficial.
A própria contribuição de Mitterrand para o patrimoine nacional não foi
tanto o preservá-lo ou classificá-lo, como produzi-lo em tempo real. Nenhum
governante francês desde Luís XIV assinalou o seu reinado com uma tal
profusão de edifícios e cerimoniais. Os 14 anos da presidência de Mitterrand
foram marcados não só por uma acumulação progressiva de museus,
memoriais, inaugurações solenes, enterros e reenterros; mas também pelos
esforços hercúleos de garantir o lugar do próprio presidente no património da
nação: do impressionante Grande Arche em La Défense, no oeste de Paris, até
à polémica nova Biblioteca Nacional na margem sul do Sena, passando pela
graciosa Pirâmide no Louvre e pela Ópera agressivamente modernista junto à
Bastilha.
Enquanto Mitterrand se ocupava com a edificação lapidar, inscrevendo-se,
literalmente, na memória física do país, a perturbadora sensação de que o país
estava a perder o contacto com as suas raízes levou um conceituado
historiador parisiense, Pierre Nora, a editar Les Lieux de mémorie, um
trabalho colectivo de 5600 páginas, dividido em três partes e sete volumes,
publicado entre 1984 e 1992. Esta obra procurava identificar e explicar os
locais e regiões da memória francesa outrora partilhada: os nomes e
conceitos, os lugares e pessoas, os projectos e símbolos que são – ou eram – a
França, desde as catedrais à gastronomia, do solo à língua, do planeamento
urbanístico ao mapa da França nas mentes dos Franceses.
Para nenhuma outra nação foi concebida uma publicação equiparável, e é
difícil imaginar como seria possível fazê-lo, já que os Lieux de mémorie de
Nora captam tanto a extraordinária confiança da identidade colectiva francesa
– o pressuposto incontestado de que 800 anos de história nacional legaram à
França uma singularidade e uma herança comum que se prestam, assim, a
uma representação mnemónica – e, como o autor deixa explícito na
introdução, a sensação inquietante de que estes símbolos comuns de um
passado partilhado estavam prestes a perder-se para sempre.
Trata-se, aqui, da nostalgia como Angst: o medo de que um dia – em breve
– os painéis informativos cor de terra que surgem ao longo das autoroutes
francesas, tão bem concebidas e impecavelmente inseridas na paisagem,
deixem de ter qualquer significado para os próprios Franceses. De que
serviria aludir – primeiro através de símbolos, depois através de nomes – à
catedral de Reims; ao anfiteatro de Nîmes; às vinhas de Clos de Vougeot; ao
Mont Sainte-Victoire ou ao campo de batalha de Verdun, se a alusão não
tivesse significado? Que restará da França se um qualquer viajante que
encontre estes nomes tiver perdido a ligação às memórias que supostamente
devem evocar e aos sentimentos que deveriam despertar?
A indústria do património em Inglaterra sugere uma obsessão pelo modo
como as coisas não foram – o culto de uma nostalgia genuína por um falso
passado. Pelo contrário, o fascínio francês pelo seu patrimoine espiritual tem
uma certa autenticidade cultural. A «França» sempre se fez representar de
formas alegóricas: por exemplo, as várias ilustrações e encarnações de
«Marianne», a República. Assim, era inteiramente apropriado que o pesar por
uma identidade francesa perdida se centrasse num conjunto formal de
símbolos, físicos ou intelectuais. Eles «são» a França. Se forem
descontextualizados ou deixarem de ser partilhados, a França não pode ser ela
própria – no mesmo sentido das palavras de Charles de Gaulle quando
declarou que «a França não pode ser a França sem glória».
Estes pressupostos eram partilhados por políticos, intelectuais e pessoas de
todos os quadrantes políticos – razão pela qual Les Lieux de mémoire teve
tanto sucesso, condensando para dezenas de milhares de leitores uma
identidade francesa evanescente que começava já a escapar-lhes no seu
quotidiano. E é, por isso, digno de nota que enquanto a cristandade – as ideias
cristãs, os edifícios cristãos, as suas práticas e símbolos – ocupa um lugar
proeminente nos tomos de Nora, existe apenas um breve capítulo dedicados
aos «judeus» – sobretudo como objectos de assimilação, exclusão ou
perseguição – e nenhuma entrada relativa aos «muçulmanos».
Não se tratou de um esquecimento. Não havia lugar para o Islão no palácio
da memória francês e seria contrário ao propósito da obra criar esse lugar a
posteriori. Contudo, a omissão ilustrava a dificuldade que a França teria,
como os seus vizinhos, em acolher os milhões de europeus que se lhe viriam
juntar. Dos 105 membros da Convenção Europeia encarregues de escrever a
constituição da Europa, nenhum tinha uma origem não europeia. Tal como a
restante elite política, de Portugal à Polónia, eles representavam sobretudo a
Europa branca e cristã.
Ou, mais precisamente, a Europa anteriormente cristã. Embora fossem
ainda muitas as variedades do cristianismo na Europa – dos uniatas
ucranianos aos metodistas do País de Gales, dos católicos gregos
transcarpatianos aos luteranos noruegueses – o números de cristãos
praticantes continuava a diminuir. Em Espanha, onde existiam ainda 900
conventos e mosteiros no final do século XX – 60% do total do mundo – a
prática da fé estava em declínio, visivelmente correlacionada com o
isolamento, a velhice e o atraso rural. Em França, apenas um adulto em cada
sete afirmava sequer ir à igreja e, nesses casos, em média apenas uma vez por
mês. Na Escandinávia e na Grã-Bretanha os números eram ainda mais baixos.
O cristianismo estava em declínio mesmo na Polónia, onde os cidadãos se
mostravam cada vez mais indiferentes às exortações morais da outrora
poderosa hierarquia católica. Na viragem do século, bastante mais de metade
dos Polacos (e uma maioria bastante mais explícita entre as pessoas com
menos de trinta anos) era a favor da legalização do aborto.
O Islão, pelo contrário, conquistava mais apoio – sobretudo entre os
jovens, para quem funcionava cada vez mais como uma fonte de identidade
comum e de orgulho colectivo em países onde os cidadãos de origem árabe,
turca ou africana eram ainda vistos e tratados como «estrangeiros». Enquanto
os seus pais se tinham esforçado por se integrar e por ser assimilados, jovens
de Antuérpia, Marselha ou Leicester identificavam-se agora de forma
ostensiva com a sua terra natal – Bélgica, França, ou Grã-Bretanha – e com a
religião e região onde se encontravam as raízes das suas famílias. As
raparigas, em particular, começaram a usar vestuário tradicional e símbolos
religiosos – por vezes sob pressão exercida pela família, mas frequentemente
num acto de rebeldia contra as cedências de uma geração mais velha.
A reacção das autoridades públicas, como vimos, variou um pouco
consoante a tradição e as circunstâncias: só a Assembleia Nacional Francesa,
num acesso de republicanismo secular, aprovou por 494 votos contra 36 a
proibição do uso de todos os símbolos religiosos nas escolas públicas.
Contudo, esta medida tomada em Fevereiro de 2004, que visava o voile – o
véu das raparigas muçulmanas que perpetuavam a tradição –, deve ser
entendida num contexto mais abrangente e complexo. Em diversos lugares, os
preconceitos raciais estavam a ser usados politicamente pela extrema-direita;
e o anti-semitismo estava a crescer na Europa, pela primeira vez em mais de
40 anos.
Visto do outro lado do Atlântico, onde se tornou um lugar-comum nos
discursos dos políticos eurofóbicos e dos peritos neoconservadores, o anti-
semitismo na França, na Bélgica ou na Alemanha era imediatamente
identificado como um retorno do passado negro do continente. Num artigo
publicado no Washington Post, em Maio de 2002, o influente colunista
George Will foi ao ponto de descrever a recrudescência da hostilidade para
com os judeus na Europa como «a segunda – e última? – fase da luta por uma
‘solução final da questão judaica’». O embaixador americano na UE,
Rockwell Schnabel disse numa reunião extraordinária do Comité Judaico-
Americano em Bruxelas que o anti-semitismo na Europa «está a chegar a um
ponto tão grave como o que se viveu nos anos 30».
Tratava-se de uma retórica inflamada e errónea. O anti-semitismo era raro
na Europa contemporânea – excepto entre os muçulmanos e, especialmente,
entre os europeus de ascendência árabe, numa consequência directa das crises
que se viviam no Médio Oriente. Os canais de televisão árabes, agora
disponíveis via satélite em toda a Europa, transmitiam regularmente
reportagens de Gaza e da Margem Ocidental ocupada. Enfurecidos com o que
viam e ouviam, e encorajados tanto pelas autoridades árabes como israelitas a
identificar os seus vizinhos judeus locais com Israel, jovens (sobretudo) dos
subúrbios de Paris, Lyon ou Estrasburgo voltavam-se contra os judeus:
pintavam graffitis nos edifícios da comunidade judaica, profanavam
cemitérios, punham bombas nas escolas e sinagogas e, em alguns casos,
atacavam adolescentes judeus e as suas famílias.
Os ataques aos judeus e às suas instituições – concentrados nos primeiros
anos do novo século – suscitavam preocupação, não por causa da sua
dimensão ou devido ao seu carácter racista, mas pela sua natureza
implicitamente intercomunitária. Esta não era a velha Europa anti-semita:
para os que procurassem bodes expiatórios para o seu descontentamento, os
judeus já não eram o alvo preferencial. Com efeito, estavam bem longe de o
ser. Uma sondagem realizada em França em Janeiro de 2004 apurou que
enquanto 10% dos inquiridos admitiam não gostar dos judeus, um número
bem mais elevado – 23% – afirmou não gostar de «norte-africanos». Os
ataques de motivação racial a árabes – ou, variando segundo o país, a Turcos,
Indianos, Paquistaneses, Bangladeshis, Senegaleses e outras minorias visíveis
– eram muito mais numerosos do que os ataques a judeus. Em algumas
cidades eram, com efeito, endémicos.
O aspecto mais perturbador do novo anti-semitismo era o facto de os
judeus serem, uma vez mais, as vítimas, enquanto os perpetradores eram
agora árabes (ou muçulmanos). A única excepção a esta regra era a
Alemanha, onde a extrema-direita reemergente não se dava ao incómodo de
fazer distinção entre imigrantes, judeus e outros não alemães. Mas a
Alemanha, por razões óbvias, era um caso especial. Noutros lugares, as
autoridades preocupavam-se mais com a crescente alienação das suas
comunidades árabe e muçulmana do que com qualquer hipotética nova vaga
de fascismo. Provavelmente, tinham razão.
Ao contrário dos EUA, que continuavam a tratar o «Islão» e os
muçulmanos como um desafio distante, estranho e hostil, com o qual era
preferível lidar com reforço de segurança e «guerra preventiva», os governos
europeus tinham boas razões para ver o assunto com outros olhos. Em França,
principalmente, a crise no Médio Oriente já não era uma questão de política
externa: tinha-se tornado um problema interno. A transmigração de paixões e
frustrações dos árabes na Palestina para os seus irmãos zangados e
desiludidos em Paris não devia constituir surpresa – era, afinal, outro legado
do império.
-
(1) Mesmo levando em linha de conta as guerras da Jugoslávia dos anos 90, o número de mortes
causadas pela guerra na Europa, na segunda metade do século, foi inferior a um milhão.

(2) Raymond Aron (nascido em 1905) partilhou algumas das memórias melancólicas, se não
desesperadas, de Zweig: «Desde que, sob um sol de Julho, a Europa burguesa entrou num século de
guerras, os homens perderam o controlo sobre a sua história».

(3) Será de referir que muitos Polacos insistem igualmente no facto de o seu país se encontrar no
centro da Europa – uma confusão reveladora.

(4) O mesmo se aplica aos Albaneses do Kosovo. Tendo sido libertados pela NATO da opressão
sérvia, aspiram a constituir um Estado independente, não tanto por ambição nacionalista como para se
precaverem contra o risco de serem deixados na Sérvia – e fora da Europa.

(5) Anna Reid, Borderland. A Journey through the history of Ukraine (2000), p. 20. Tal era o lugar
da «Europa» nas palavras e esperanças da revolução ucraniana de Dezembro de 2004.

(6) Ver Tony Judt, «Romania: Bottom of the Heap». New York Review, 1 de Novembro de 2001.

(*) Servos medievais que prestavam corveias e trabalhavam terras que pertenciam a um senhor
feudal (N. R.)

(7) Sendo a língua comum de muitas dezenas de milhões de pessoas nas Américas, de Santiago a
São Francisco, a posição internacional do espanhol era, todavia, segura. O mesmo se aplicava ao
português, pelo menos na sua forma brasileira distinta.

(8) À excepção da Roménia, onde a situação se invertia e era o francês a língua mais falada.

(9) A excepção a esta regra era a Bulgária, onde a Rússia e a sua língua sempre tinham sido mais
bem recebidas.

(10) Os comboios de alta velocidade franceses, alemães e italianos, respectivamente.

(11) Em Junho de 2004, o autor do presente livro recebeu a seguinte saudação de um correspondente
no ministério dos Negócios Estrangeiros em Zagreb: «As coisas por aqui vão bem. ACroácia recebeu o
convite para a adesão à UE. Isto vai mudar muitos mapas mentais.»

(12) No século XXI, os Húngaros na Roménia, na Eslováquia e na Sérvia eram outra minoria pós-
imperial: em tempos dominante, agora vulnerável. Na região da Voivodina, no Norte da Sérvia, os
Húngaros que aí tinham vivido durante séculos eram periodicamente atacados e as suas propriedades
vandalizadas por jovens sérvios. A resposta de Belgrado, que aparentemente nada aprendera e nada
esquecera da catástrofe dos anos 90, era terrivelmente previsível: os ataques não eram «sérios» e, de
qualquer modo, «eles» é que tinham começado.

(13) Antes pelo contrário. Numa série de medidas tomadas na Primavera e no Verão de 2004, as
autoridades reduziram tanto os direitos da imprensa como as já escassas oportunidades de protestos
públicos. A breve janela de liberdade da Rússia – que era mais desordem e ausência de repressão do que
uma liberdade protegida constitucionalmente – fechava-se depressa. Em 2004, observadores russos
calculavam que oficiais treinados pelo KGB ocupavam um quarto dos cargos administrativos civis do
país.

(14) Incluindo os cálculos políticos domésticos dos políticos gregos, que durante muitos anos usaram
o seu voto em Bruxelas para bloquear qualquer movimento com vista à candidatura dos Turcos.

(15) Viam, também, como «europeu» um mercado livre idealizado, em contraste com a corrupção e
o nepotismo da economia turca.

(16) A União Democrática Cristã na Alemanha opunha-se oficialmente à adesão da Turquia à UE.

(17) A Espanha democrática desenvolveu, com efeito, uma indústria oficial de «património», a cargo
do seu Patrimonio Nacional, mas este último fez questão de sublinhar a distante idade de ouro do país, e
não a sua história recente.
XXIV

A Europa como Estilo de Vida


«Um Serviço de Saúde gratuito é um exemplo triunfante da superioridade
da acção colectiva e da iniciativa pública aplicadas a um segmento da
sociedade onde os princípios comerciais se manifestam no seu pior.»
Aneurin Bevan
«Queremos que as pessoas da Nokia sintam que somos todos colegas, não
patrões e empregados. Talvez seja uma forma de trabalho europeia, mas para
nós funciona.»
Jorma Ollila (presidente da Nokia)(1)
«Os europeus querem ter a certeza de que o futuro não lhes reserva
qualquer aventura. Disso, já tiveram que chegue no passado.»
Alfons Verplaetse (governador do Banco Nacional Belga), 1996
«A América é o sítio para onde se vai quando se é jovem e solteiro. Mas
quando chega a altura de crescer, é melhor regressar para a Europa.»
(Empresário húngaro numa sondagem de opinião pública, 2004)
«A sociedade moderna… é uma sociedade democrática a ser observada
sem acessos de entusiasmo ou indignação.»
Raymond Aron
A extraordinária multiplicidade da Europa no final do século XXI: a
geometria mutável das suas regiões, dos seus países e da União; o
desenvolvimento antagónico das disposições do Cristianismo e do Islão, as
duas principais religiões do continente; a velocidade inédita das
comunicações e das trocas dentro e fora das fronteiras da Europa; a
multiplicidade de linhas de divisão sobrepondo-se aos limites sociais e
nacionais antes evidentes; as incertezas quer em relação ao passado, quer no
que respeita ao futuro; todos estes factores tornam mais difícil a interpretação
da experiência colectiva. O fim do século XX na Europa não apresenta a
homogeneidade implícita nas descrições confiantes do fin-de-siècle anterior.
Ainda assim, estava a surgir uma identidade caracteristicamente europeia,
e era possível discerni-la em vários modos de vida. Na cultura erudita – nas
artes performativas, em particular – o Estado mantivera o seu papel de
financiador, pelo menos na Europa Ocidental. Museus, galerias de arte,
companhias de ópera, orquestras e companhias de bailado dependiam em
larga medida, em alguns países mesmo exclusivamente, de subsídios anuais
generosos provenientes de fundos públicos. A flagrante excepção da Grã-
Bretanha pós-Thatcher, onde a lotaria nacional livrara o Tesouro de parte do
fardo dos apoios à cultura, era ilusória. As lotarias são um mero instrumento
para a obtenção de mais contribuições públicas, embora menos agressivo do
ponto de vista social que as entidades de cobrança de impostos(2).
Os custos elevados deste financiamento público tinham suscitado dúvidas
quanto à capacidade de suportar indefinidamente os subsídios avultados
atribuídos, sobretudo na Alemanha, onde ao longo dos anos 90 alguns dos
governos dos Länder tinham começado a questionar a generosidade do
investimento na cultura. Os subsídios públicos na Alemanha cobriam em
média 80% do custo inerente ao funcionamento de um teatro ou ópera. Mas a
cultura, a este nível, estava estreitamente ligada ao estatuto e à identidade
regional. A cidade de Berlim, apesar do crescente défice e da estagnação das
receitas, suportava três instituições a tempo inteiro: a Deutsche Oper (a antiga
ópera de Berlim Ocidental); a Staatsoper (a anterior ópera de Berlim Leste); e
a Komische Oper, à qual se deveria acrescentar a Orquestra de Câmara de
Berlim e a Orquestra Filarmónica. Tudo isto dependia de um considerável
apoio público. Frankfurt, Munique, Estugarda, Hamburgo, Düsseldorf,
Dresden, Friburgo, Wurzburgo e muitas outras cidades alemãs continuavam a
apoiar companhias de bailado ou ópera internacionais de primeira categoria,
pagando salários anuais com todos os benefícios e pensões do Estado a
músicos, artistas e técnicos. Em 2003, havia na Alemanha 615 000 pessoas
oficialmente classificadas como «trabalhadores artísticos» a tempo inteiro.
Também em França, as artes (principalmente o teatro) prosperavam
mesmo em cidades de província – no caso da França, graças a subsídios
directamente distribuídos a partir de fundos centrais, geridos por um único
ministério da Cultura. Para além de construir a sua biblioteca epónima, o
presidente Mitterrand disponibilizou quantias comparáveis apenas às da época
de Luís XIV, não só para o Louvre, a Opéra de Paris e a Comédie Française,
mas também para museus regionais, centros de artes regionais, companhias de
teatro da província, bem como para toda uma rede nacional de cinématheques
para armazenar e exibir filmes clássicos e modernos.
Enquanto na Alemanha as artes eruditas eram orgulhosamente
cosmopolitas (Vladimir Derevianko, o director russo da Opera-Ballet de
Dresden, encomendava trabalhos a William Forsythe, um coreógrafo
americano, para um público alemão entusiasta), grande parte dos subsídios
destinados às artes em França tinha como objectivo preservar e exibir a
riqueza do próprio património do país – a exception culturelle da França. A
cultura erudita francesa tinha uma função pedagógica assumida, e o cânone
do teatro francês em particular encontrava-se ainda fortemente inculcado no
curriculum nacional. Jane Brown, a directora de uma escola londrina que em
1993 proibiu uma ida dos alunos ao teatro para ver Romeu e Julieta – sob
pretexto de se tratar de uma peça politicamente incorrecta («notoriamente
heterossexual», segundo as suas palavras) – não teria feito carreira do outro
lado do Canal.
A França e a Alemanha eram talvez os países em que o financiamento
público assumia proporções mais surpreendentes, mas o Estado constituía a
principal – e em muitos casos a única – fonte de financiamento das artes em
toda a Europa. Com efeito, a cultura era a última área importante da vida
pública em que o Estado nacional, mais do que a União Europeia ou a
iniciativa privada, detinha o quase monopólio do financiamento. Até na
Europa de Leste, onde a geração mais velha tinha boas razões para estremecer
ao recordar as implicações de deixar nas mãos do Estado as decisões relativas
à vida cultural, o tesouro público empobrecido era a única alternativa ao
impacto terrível das forças do mercado.
Durante o regime comunista, as artes cénicas evidenciavam-se mais pelo
seu mérito do que pelo entusiasmo que despertavam: caracterizando-se
geralmente pelo rigor técnico e por um registo cauteloso e conservador –
qualquer pessoa que visse uma representação de Die Zauberflöte [A Flauta
Mágica] em Viena, por exemplo, e em Budapeste, não podia deixar de notar a
diferença. Mas depois do comunismo, quando surgiram várias iniciativas de
orçamento reduzido – Sófia, em particular, tornou-se um campo fértil para
experiências pós-modernas ao nível da coreografia e encenação –, os recursos
eram escassos e muitos dos melhores músicos, bailarinos e actores partiram
para ocidente. A adesão à Europa podia também significar tornar-se
provinciano.
Outra razão para que tal acontecesse tinha a ver com o facto de o público
das artes eruditas ser agora europeu: as companhias nacionais nas cidades
mais importantes tinham plateias cada vez mais internacionais. A nova casta
transnacional de clercs que comunicava livremente através de fronteiras e
para quem a língua não constituía impedimento possuía meios e tempo para
viajar livremente à procura de entretenimento e conhecimento, como de roupa
e carreiras. As críticas a uma exposição, peça de teatro ou ópera surgiam na
imprensa de muitos países diferentes. Um espectáculo com sucesso numa
cidade – Londres, por exemplo, ou Amsterdão – podia atrair público de Paris,
Zurique ou Milão.
Se as novas plateias cosmopolitas eram genuinamente sofisticadas – por
oposição ao público meramente endinheirado – era uma questão em que os
pontos de vista divergiam. Eventos culturais há muito estabelecidos, como o
Festival de Salzburgo ou o ciclo do Anel dos Nibelungos em Bayreuth atraíam
ainda um público com mais idade, familiarizado tanto com os conteúdos
executados nos espectáculos como com os rituais sociais que os
enquadravam. Mas a tendência era agora popularizar material tradicional para
um público mais jovem nem sempre conhecedor dos clássicos (e da língua
original) – ou então produzir trabalhos novos e acessíveis para uma nova
geração.
Para aqueles que os apreciavam, as produções de ópera actualizadas, as
companhias de dança «de vanguarda» e os espectáculos de arte «pós-
moderna» ilustravam a transformação da cena cultural europeia: jovem,
inovadora, insolente e, principalmente, popular – como convinha a uma
indústria que dependia largamente do orçamento público e que se via na
obrigação de agradar a um eleitorado vasto. Para os que criticavam iniciativas
deste tipo, contudo, o novo panorama artístico em Londres («Brit Art»), assim
como os polémicos ballets de William Forsythe em Frankfurt, ou as
‘adaptações’ excêntricas de óperas que ocasionalmente subiam ao palco em
Paris, apenas confirmavam as suas suspeitas de que o mundo artístico ia de
mal a pior.
Por este prisma, a cultura «erudita» europeia – que em tempos obedecera a
um cânone familiar aos seus patronos – explorava agora a fragilidade cultural
de um público neófito incapaz de distinguir com segurança o bom do mau
(mas que respondia entusiasticamente aos ditames da moda). Esta não era,
todavia, uma situação inédita, como queriam fazer crer os pessimistas da
cultura – a exploração das ansiedades de nouveaux riches era um tema de
troça na literatura e no teatro pelo menos desde Molière. O que era realmente
novo era a escala continental desta mudança nas tendências culturais. A
composição das plateias de Barcelona a Budapeste era agora
surpreendentemente uniforme, tal como o material que se lhes oferecia. Para
os críticos, este facto era apenas a confirmação do óbvio, ou seja, que as artes
e a sua clientela se prejudicavam reciprocamente: EuroCult para Eurolixo.
Se a União cada vez mais próxima de europeus tornava os seus
beneficiários mais cosmopolitas ou se simplesmente unia os seus horizontes
paroquiais era uma questão que se impunha, e não só nas páginas dedicadas
às artes do Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ) ou do Financial Times (FT).
O FAZ, o FT, Le Monde e, de forma menos evidente, o italiano La Repubblica
eram agora jornais genuinamente europeus, disponíveis e lidos em todo o
continente. O formato tablóide de grande circulação permaneceu, pelo
contrário, circunscrito às línguas e fronteiras nacionais, embora o número dos
seus leitores tenha decrescido por toda a parte – o mais elevado registava-se
na Grã-Bretanha, o mais baixo em Espanha –, de tal modo as tradições
nacionais do jornalismo popular perderam importância: excepto, uma vez
mais, em Inglaterra, onde a referida imprensa difundia e explorava
preconceitos eurofóbicos. No Leste europeu e na Península Ibérica, a
prolongada ausência de uma imprensa livre fizera com que muitas pessoas,
sobretudo fora das grandes cidades, tivessem perdido por completo a era dos
jornais – transitando directamente da pré-literacia para os media electrónicos.
Estes últimos – especialmente a televisão – eram agora a principal fonte de
informação, ideias e cultura (erudita e popular) para a maior parte dos
europeus. Tal como se verificava com os jornais, também no que se referia à
televisão eram os Britânicos o seu público mais entusiasta, geralmente no
topo das audiências da Europa, seguidos de perto por Portugal, Espanha, Itália
e – embora algo desfasados – os países de Leste. As estações de televisão
tradicionais, pertencentes ao Estado, tinham de competir tanto com estações
privadas nacionais como com canais por satélite, embora mantendo uma
audiência surpreendente. Tinham também, na sua maior parte, seguido os
passos da imprensa diária e reduzido substancialmente a cobertura de notícias
estrangeiras.
Como consequência, a televisão europeia em finais do século XX
apresentava um paradoxo curioso. O entretenimento oferecido variava pouco
de um país para o outro: filmes importados e séries, reality shows, concursos
e outros programas estavam disponíveis de um extremo ao outro do
continente, variando apenas o facto de serem dobrados (como em Itália),
legendados ou deixados na língua original (que era o que acontecia cada vez
mais em Estados pequenos ou multilingues). O estilo de apresentação – nos
noticiários, por exemplo – era muito similar, imitando em muitos casos o
modelo americano(3).
Por outro lado, a televisão continuava a ser um meio de comunicação
caracteristicamente nacional e até insular. A televisão italiana era, assim,
inequivocamente italiana – dos seus espectáculos de variedades curiosamente
datados e das suas entrevistas encenadas aos atractivos físicos dos seus
apresentadores e aos ângulos de câmara escolhidos quando se tratava de
filmar jovens com pouca roupa. Na vizinha Áustria, os talk shows de
produção local regiam-se por uma fervorosa seriedade moral que contrastava
com um quase monopólio alemão na restante programação. Na Suíça (e
também na Bélgica), cada região do país tinha os seus próprios canais de
televisão, usando diferentes línguas, cobrindo acontecimentos distintos e
funcionando segundo moldes que pouco tinham em comum.
A BBC, como os seus críticos faziam questão de apontar, abandonara a
estética e os ideais que a tinham colocado no papel de árbitro moral e
pedagogo benevolente da nação, para agora competir com a concorrência.
Contudo, apesar de ter reduzido o seu nível intelectual (ou talvez mesmo por
essa razão), era agora mais britânica do que nunca. A quem tivesse dúvidas
bastava comparar uma reportagem, um debate ou um programa de variedades
da BBC com programas idênticos franceses da Antenne 2 ou da TF1: o que
mudara de cada um dos lados do Canal causava menos espanto do que aquilo
que se mantinha inalterável. As preocupações de cariz intelectual ou político,
as atitudes face à autoridade e ao poder eram tão específicas e diferentes
como meio século antes. Numa época em que a maioria das actividades
colectivas e das organizações comunitárias estavam em declínio, a televisão
era aquilo que as massas dos vários países tinham em comum. E revelava-se
bastante eficaz a reforçar as características nacionais e um elevado nível de
ignorância mútua.
Na verdade, excepto em momentos mais importantes de crise, os canais de
televisão apresentavam poucas notícias relativas a países vizinhos – bastante
menos que nos primeiros anos da televisão, quando o fascínio pela tecnologia
e a curiosidade pelo estrangeiro motivaram numerosos documentários e
reportagens sobre cidades e costas exóticas. Mas como a Europa era agora um
dado adquirido, e – à excepção do Sudeste pobre e problemático – nada tinha
de exótico para a maioria dos espectadores, os programas de viagens (e não
só) na televisão europeia há muito que se tinham «globalizado», voltando a
sua atenção para horizontes mais vastos e pondo o resto da Europa de parte:
território supostamente familiar mas, na prática, desconhecido.
Os espectáculos públicos de maior importância – funerais públicos ao
estilo imperial em França; casamentos reais e mortes na Grã-Bretanha,
Bélgica, Espanha ou Noruega; trasladações, comemorações e pedidos de
desculpa presidenciais em vários países pós-comunistas – eram assuntos
estritamente locais, transmitidos em abundância para um público interno mas
visto nos outros países apenas por minorias inexpressivas(4). Os resultados
eleitorais noutros pontos da Europa eram objecto de notícia nos mass media
nacionais apenas quando eram chocantes ou tinham implicações
transcontinentais. Na sua maioria, os europeus tinham um conhecimento
escasso do que se estava a passar nos países vizinhos. A manifesta falta de
interesse nas eleições europeias não resultava apenas de sentimentos de
desconfiança ou tédio face às deliberações de Bruxelas; para a grande
maioria, era uma consequência natural de um universo mental não-europeu.
Havia, contudo, uma excepção ubíqua: o desporto. Um canal de televisão
por satélite – o Eurosport – transmitia um vasto leque de acontecimentos
desportivos em várias línguas europeias. Todas as estações de televisão
nacionais, da Estónia a Portugal, dedicavam um considerável tempo de antena
às competições desportivas, muitas das quais intereuropeias, e apesar de
muitas vezes não envolverem a equipa local ou nacional. O gosto pelos
desportos de massas crescera consideravelmente nas últimas décadas do
século, apesar de o número de pessoas que assistia pessoalmente aos mesmos
ter diminuído, e em três países mediterrânicos a procura justificava a
existência de um jornal diário conceituado de grande circulação inteiramente
dedicado ao desporto (L’Equipe em França, Marca em Espanha, Gazzetta
dello Sport em Itália).
Embora muitos países tivessem ainda desportos nacionais e
acontecimentos desportivos característicos – hóquei no gelo na República
Checa, o basquetebol (curiosamente) na Lituânia e na Croácia, a Volta à
França e o torneio anual de ténis de Wimbledon –, à escala do continente
tratava-se de acontecimentos de importância menor, embora ocasionalmente
capazes de atrair milhões de espectadores (a Volta à França era o único
acontecimento desportivo em que o número de espectadores ao vivo tinha
efectivamente aumentado ao longo do tempo). Em Espanha, as touradas
despertavam pouco interesse por parte dos jovens, apesar de terem sido alvo
de recuperação nos anos 90 por parte de uma «indústria do património» em
busca de lucros. Até o críquete, o emblemático desporto de Verão dos
Ingleses, perdera toda a sua visibilidade no panorama do entretenimento,
apesar dos esforços empreendidos para o tornar mais colorido e interessante –
e para pôr fim aos jogos de cinco dias, agradáveis como forma de lazer mas
desastrosos em termos comerciais. O que realmente unia a Europa era o
futebol.
Nem sempre fora assim. O futebol era jogado em todos os países da
Europa, mas nas primeiras décadas do pós-guerra os jogadores mantinham-se
perto da sua terra natal. Os espectadores assistiam aos jogos de equipas do seu
país; os jogos internacionais, relativamente pouco frequentes, eram vistos em
alguns lugares como reconstituições da história militar. Entre os que
assistiram naqueles anos a jogos entre a Inglaterra e a Alemanha, por
exemplo, ou entre a Alemanha e a Holanda (ou, pior ainda, entre a Polónia e
Rússia), possivelmente ninguém teve ilusões relativamente ao Tratado de
Roma e à «união cada vez mais estreita». A referência histórica relevante era,
de modo bastante explícito, a Segunda Guerra Mundial.
Nas primeiras décadas do pós-guerra, os jogadores dos diferentes países
europeus estavam muito pouco familiarizados uns com os outros e, salvo
raras excepções, só se encontravam em campo: quando, em 1957, o avançado
galês John Charles fez história ao deixar o Leeds United para se juntar à
Juventus de Turim pela inaudita quantia de 67 000 libras, o acontecimento foi
notícia de primeira página em ambos os países. Até finais da década de 60,
era muitíssimo invulgar um clube integrar um jogador de outra nacionalidade,
excepto em Itália, onde direcções inovadoras estavam a começar a contratar
talentos estrangeiros. A gloriosa equipa do Real Madrid dos anos 50 podia
efectivamente gabar-se de ter Ferenc Puskas, um extraordinário jogador
húngaro, mas Puskas era um caso invulgar. O capitão da selecção húngara
fugira de Budapeste na sequência da invasão soviética, tendo adquirido a
nacionalidade espanhola. Até então, como qualquer outro futebolista húngaro,
era praticamente desconhecido fora do seu país – de tal forma que, quando
Puskas conduziu a Hungria até ao relvado do Estádio de Wembley em
Londres, em Novembro de 1953, houve quem ouvisse um dos jogadores
ingleses dizer: «Olhem-me só para aquele tipo gorducho. Vamos dar cabo
deles». (A Hungria acabou por vencer por 6-3, a primeira vez que a Inglaterra
foi vencida em casa).
Uma geração mais tarde, a Juventus, o Leeds, o Real Madrid e quase todos
os clubes de futebol europeus de primeiro plano tinham um plantel de
jogadores de diversas nacionalidades. Um jogador jovem e talentoso da
Eslováquia ou da Noruega, até então condenado a desperdiçar a sua carreira
em Kosice ou Trondheim, e que jogaria ocasionalmente na selecção do seu
país, podia agora aspirar a jogar nas grandes ligas: ganhando visibilidade,
experiência e um excelente salário em Newcastle, Amsterdão ou Barcelona.
Em 2005, o seleccionador da Inglaterra era sueco. O Arsenal, uma das
principais equipas de futebol em Inglaterra no início do século XXI, era
orientado por um francês. O plantel da primeira equipa do clube do Norte de
Londres compreendia jogadores da França, Alemanha, Suécia, Dinamarca,
Islândia, Irlanda, Holanda, Espanha, Suíça, Brasil, Costa do Marfim e EUA –
bem como alguns ingleses. O futebol tornara-se um desporto sem fronteiras,
tanto para jogadores, como para treinadores e espectadores. Clubes na moda
como o Manchester United apostavam numa «imagem» que podia ser (e era)
comercializada com igual sucesso de Lancashire à Letónia.
Um punhado de estrelas do futebol – não necessariamente os jogadores
mais talentosos, mas os que se evidenciavam pelo seu aspecto físico, pelas
mulheres bonitas com quem casavam e por uma vida privada animada –
desempenhava um papel na vida pública e nos jornais populares até então
reservados a actrizes em ascensão ou à realeza de segundo plano. Quando
David Beckham (um jogador inglês de medianos dotes técnicos, mas com um
talento inigualável para a autopromoção) trocou o Manchester United pelo
Real Madrid em 2003, foi notícia de abertura nos noticiários de todos os
Estados-membros da União Europeia. No ano seguinte, nem o embaraçoso
desempenho de Beckham no Campeonato Europeu de Futebol em Portugal –
o capitão inglês falhou duas grandes penaltidades, antecipando a humilhante
eliminação do seu país – fez esmorecer o entusiasmo dos seus fãs.
Digno de nota é também o facto de a eliminação da equipa de Inglaterra
não ter tido um impacto significativo nas audiências televisivas no Reino
Unido para os restantes jogos do campeonato; o público britânico continuou a
seguir os encontros entre equipas de países pequenos (Portugal, Holanda,
Grécia e República Checa), jogos que supostamente não teriam interesse para
os fãs. Apesar do fervor com que eram seguidos os jogos internacionais, com
bandeiras desfraldadas, ânimos exaltados e hinos cantados ao desafio, a
obsessão colectiva de assistir ao jogo – qualquer jogo – sobrepunha-se quase
sempre à lealdade para com a equipa(5). No seu auge, as transmissões da BBC
dos jogos realizados em Portugal nesse mesmo Verão tiveram 25 milhões de
espectadores só no Reino Unido. O website da competição, «Euro.com»,
recebeu 40 milhões de visitas e foi consultado 500 milhões de vezes ao longo
do campeonato.
O futebol adaptava-se bem à sua nova popularidade. Era inequivocamente
um passatempo igualitário. Não exigindo qualquer equipamento para além de
uma bola, o futebol podia ser praticado por qualquer pessoa e em qualquer
lugar – ao contrário do ténis, da natação ou do atletismo, desportos mais
dispendiosos ou dependentes de instalações públicas nem sempre disponíveis
em muitos países europeus. Não havia vantagem em ser-se particularmente
alto ou musculoso – antes pelo contrário – e não podia ser considerado um
desporto especialmente perigoso. Enquanto profissão, o futebol fora durante
muito tempo uma alternativa mal paga para rapazes de cidades industriais;
agora, tornara-se um caminho para os patamares mais altos da prosperidade
suburbana, com muitas outras possibilidades.
Por outro lado, por muito talentosos e populares que fossem, os jogadores
de futebol eram sempre parte da sua equipa. Não podiam ser prontamente
convertidos em símbolos de esforço nacional não recompensado, como o
ciclista francês Raymond Poulidor, sempre a um passo da vitória. O futebol
era demasiado simples para se prestar aos usos metafóricos e quasi-
metafísicos por vezes atribuídos ao baseball nos EUA. E o jogo era acessível
ao homem comum (e, cada vez mais, também à mulher), de uma forma que
não se aplicava já aos desportos colectivos profissionais praticados na
América do Norte, por exemplo. Em suma, o futebol era um desporto muito
europeu.
Havia quem sugerisse que o futebol, enquanto objecto da atenção das
massas, substituía não só a guerra, mas também a política. Não havia dúvida
de que ocupava bastante mais espaço nos jornais; e em todo o lado os
políticos tinham o cuidado de homenagear os heróis do desporto e de se
mostrar devidamente conhecedores dos seus feitos. Mas, na verdade, a
política na Europa perdera a sua vertente competitiva: o desaparecimento das
antigas dicotomias (socialismo vs capitalismo; proletários vs patrões;
imperialistas vs revolucionários) não significava que questões específicas de
política pública já não mobilizassem ou dividissem as opiniões. Contudo,
tornava mais difícil descrever as escolhas e lealdades políticas em termos
partidários.
Os tradicionais extremos políticos – extrema-esquerda, extrema-direita –
encontravam-se agora frequentemente unidos: quase sempre na sua oposição
aos estrangeiros e no receio partilhado da integração europeia. O
anticapitalismo – inesperadamente reconfigurado como antiglobalização,
como se o capitalismo estritamente interno fosse de algum modo diferente e
menos ofensivo – atraía simultaneamente reaccionários locais e radicais
internacionalistas. Quanto à corrente política dominante, as antigas diferenças
entre partidos de centro-direita e de centro-esquerda tinham-se extinguido em
larga medida. Num vasto conjunto de questões contemporâneas, os sociais-
democratas suecos e os franceses neogaullistas, por exemplo, teriam
possivelmente bastante mais em comum uns com os outros do que com os
seus antepassados ideológicos. A topografia política da Europa sofrera
profundas alterações nas duas décadas anteriores. Embora a distinção entre
«esquerda» e «direita» se mantivesse em termos convencionais, os pontos que
as diferençavam eram agora pouco claros.
O partido político ao estilo antigo foi, como vimos, uma das vítima destas
mudanças, perdendo militantes e vendo aumentar o nível de abstenção nos
actos eleitorais. Outra instituição igualmente venerável a sofrer consequências
foi o intelectual público. O anterior fin-de-siècle assistira ao início do
envolvimento dos intelectuais na política – em Viena, Berlim, Budapeste, mas
sobretudo em Paris: homens como Theodor Herzl, Karl Kraus ou Léon Blum.
Na cena europeia, um século mais tarde, os seus futuros sucessores eram, se
não inexistentes, cada vez mais marginais.
Várias razões contribuíram para o desaparecimento do intelectual no
continente (a espécie fora sempre rara na Grã-Bretanha, surgindo quase
sempre como efeito secundário do exílio, como foi caso de Arthur Koestler ou
Isaiah Berlin). Na Europa Central e de Leste, os temas que tinham
anteriormente mobilizado a elite intelectual política – marxismo,
totalitarismo, direitos humanos ou a economia de transição – suscitavam
agora apenas uma resposta entediada e indiferente por parte das gerações mais
jovens. Moralistas idosos como Havel – ou heróis políticos de outros tempos
como Michnik – estavam inevitavelmente associados a um passado que
poucos tinham interesse em recordar. Aquilo que Czeslaw Milosz descrevera
em tempos como a «irritação dos intelectuais da Europa de Leste» perante a
obsessão americana por produtos puramente materiais aplicava-se agora cada
vez mais aos seus concidadãos.
Na Europa Ocidental, o papel de exortação do intelectual não desaparecera
por completo – os leitores da imprensa de qualidade na Alemanha ou na
França estavam ainda regularmente sujeitos a sermões políticos
incandescentes de Günter Grass ou Régis Debray –, mas o seu objecto
perdera-se. Havia muitos males particulares contra os quais se podiam
insurgir os moralistas públicos; o que deixara de existir era um objectivo ou
uma ideia geral com que mobilizar os seus seguidores. O fascismo, o
comunismo e a guerra tinha sido erradicados do continente, juntamente com a
censura e a pena de morte. O aborto e a contracepção eram recursos
praticamente generalizados, a homossexualidade era permitida e explícita. A
depredação do capitalismo selvagem, a nível global como a nível local,
continuava na mira do discurso intelectual, mas, dada a ausência de um
projecto alternativo sólido, este era um debate mais adequado para
consultores políticos do que para filósofos.
A única área onde os intelectuais podiam ainda combinar o fulgor
moralista com prescrições de política universal era na política externa, um
domínio livre dos compromissos problemáticos da política interna onde as
questões do que está correcto e do que é condenável, da vida e da morte
estavam ainda em jogo. Durante as guerras da Jugoslávia, tanto os intelectuais
do Ocidente como do Leste europeu assumiram energicamente as suas
posições. Uns, como Alain Finkielkraut, em Paris, identificaram-se de corpo e
alma com a causa croata. Outros, nomeadamente em França e na Áustria –
condenaram a intervenção ocidental, considerando que se tratava de uma
afronta de iniciativa americana à autonomia sérvia, baseada (segundo
afirmavam) em relatórios exagerados ou até falsificados de crimes não
existentes. A maioria pressionou a favor da intervenção na Bósnia ou no
Kosovo, desenvolvendo argumentos baseados nos direitos humanos utilizados
duas décadas antes e enfatizando as práticas de genocídio das forças sérvias.
Mas nem mesmo a questão da Jugoslávia, apesar de toda a sua premência,
podia recolocar os intelectuais no centro da vida pública. Em Paris, Bernard-
Henri Lévy podia ser ocasionalmente convidado a ir ao Palácio do Eliseu para
reunir com o Presidente da República, tal como Tony Blair consultava por
vezes jornalistas britânicos conceituados. No entanto, estes exercícios
cuidadosamente planeados na construção da imagem política não tinham
impacto nas tomadas de decisão: nem a França nem a Grã-Bretanha, nem
nenhum dos seus aliados, deixavam que fosse a pressão intelectual a
condicionar as suas estratégias. Nem os intelectuais implicados nas questões
públicas podiam, como noutros tempos, mobilizar a opinião em larga escala,
como se tornou claro aquando da cisão transatlântica em 2003.
Na sua esmagadora maioria, o público europeu (ao contrário de alguns
estadistas europeus) opôs-se tanto à invasão do Iraque nesse mesmo ano como
à orientação da política externa dos EUA sob a presidência de George W.
Bush. Mas a manifestação de ansiedade e raiva a que esta oposição deu
origem, embora partilhada e exprimida por muitos intelectuais europeus, não
dependeu destes últimos em termos de articulação e organização. Alguns
escritores franceses – Lévy, mais uma vez, ou Pascal Bruckner – recusaram-se
a condenar Washington, em parte por recearem parecer irreflectidamente
antiamericanos, e em parte por simpatizarem com a sua postura contra o
«Islão radical». Quase ninguém os escutou.
Figuras outrora influentes como Michnik e Glucksmann incitaram os seus
leitores a apoiar a política de Washington face ao Iraque, argumentando, na
linha dos seus escritos de outros tempos a respeito do comunismo, que uma
política de «intervencionismo liberal» em defesa dos direitos humanos se
justificava através de princípios gerais e que a América se encontrava agora,
como antes, na vanguarda da luta contra o mal político e o relativismo moral.
Tendo-se deste modo convencido de que o presidente americano conduzia a
sua política externa pelas razões que eles apresentavam, ficaram
genuinamente surpreendidos quando se viram isolados e ignorados pelo seu
público tradicional.
Todavia, a irrelevância de Michnik ou Glucksmann nada tinha a ver com a
natureza das suas opiniões. O mesmo destino aguardava os intelectuais que
defendiam a posição contrária. A 31 de Maio de 2003, Jürgen Habermas e
Jacques Derrida – dois dos escritores/filósofos/intelectuais mais conhecidos
da Europa – publicaram no Frankfurter Allgemeine Zeitung um artigo
intitulado «Unsere Erneuerung. Nach dem Krieg: Die Wiedergeburt Europas»
(«A Nossa Renovação. Depois da Guerra: O Renascer da Europa») em que
defendiam que o novo caminho seguido pelos EUA, sendo perigoso, era uma
chamada de atenção urgente para a Europa: uma ocasião para os europeus
repensarem a sua identidade comum, invocarem os seus valores partilhados
do Século das Luzes e assumirem uma posição distintiva nas questões
mundiais.
O ensaio que publicaram foi programado para coincidir com o
aparecimento em toda a Europa Central de ensaios similares escritos por
outras figuras públicas de renome: Umberto Eco em La Republlica; o seu
colega italiano, o filósofo Gianni Vattimo, em La Stampa; o presidente suíço
da Academia das Artes alemã, Adolf Muschg, no Neue Zürcher Zeitung; o
filósofo espanhol Fernando Savater no jornal El País; e um único americano,
o filósofo Richard Rorty, no Süddeutsche Zeitung. Em qualquer momento do
século passado, uma iniciativa intelectual desta dimensão, em jornais tão
conceituados e por figuras de um tal destaque, teria sido um acontecimento
público de importância maior: um manifesto e uma chamada às fileiras que
teria feito estremecer a comunidade política e intelectual.
No entanto, embora articulasse sentimentos partilhados por muitos
europeus, a iniciativa Derrida-Habermas passou completamente despercebida.
Não foi mencionada nos noticiários, nem citada por simpatizantes. Ninguém
implorou aos seus autores que empunhassem a pena e indicassem qual o
caminho a seguir. Os governos de um número significativo de Estados
europeus, incluindo a França, a Alemanha, a Bélgica e, mais tarde, a Espanha,
concordavam sem dúvida em termos gerais com os pontos de vista expressos
nos artigos em questão; mas não ocorreu a nenhum deles chamar os
professores Derrida e Eco para lhes pedir conselho. O projecto desintegrou-
se. Cem anos após o caso Dreyfus, meio século depois da apoteose de Jean-
Paul Sartre, os intelectuais mais prestigiados da Europa tinham lançado um
apelo – e ninguém os seguira.
Seis décadas depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a Aliança
Atlântica entre a Europa e os EUA atravessava um período confuso. Este era,
em parte, uma consequência previsível do final da Guerra Fria – poucas
pessoas gostariam de ver a NATO desmantelada ou abandonada, mas a
verdade é que a Aliança fazia pouco sentido na sua presente forma e os seus
objectivos futuros não eram claros. As guerras da Jugoslávia foram também
prejudiciais à NATO: muitos generais americanos sentiram-se constrangidos
ao partilhar o poder de decisão com os seus homólogos europeus, os quais se
mostraram relutantes em tomar a iniciativa, dando escasso apoio no terreno.
Acima de tudo, a NATO foi sujeita a uma pressão inédita pela reacção de
Washington aos ataques de 11 de Setembro de 2001. A posição unilateral,
inflexível e pouco diplomática do presidente Bush («connosco ou contra
nós»), o desprezo pelo auxílio oferecido pelos seus aliados, e a marcha dos
EUA para a guerra no Iraque apesar da esmagadora oposição internacional e
da inexistência de qualquer mandato da ONU, levaram a que a América – tal
como o «terror» ao qual tinha declarado guerra – passasse então a ser
encarada como uma séria ameaça para a paz e para a segurança mundial.
A distinção entre «Europa Antiga» e «Nova Europa» que o secretário
americano da Defesa, Donald Rumsfeld, afirmava ter identificado na
Primavera de 2003, com o objectivo de separar os aliados europeus de
Washington, não esclarecia muito acerca das divisões intra-europeias e
interpretava de forma incorrecta o seu objecto. Era só na Polónia que os EUA
podiam contar com respeito e um apoio popular firme. Por toda a Europa,
tanto na antiga como na nova, a política americana face ao Iraque e a muitas
outras questões era alvo de críticas severas(6). Mas o facto de uma figura
proeminente da cena política americana tentar dividir os europeus desta
forma, apenas alguns anos depois de uma aproximação tão difícil, levou muita
gente a concluir que os EUA eram, na verdade, o problema mais grave com
que se deparava a Europa.
A NATO formara-se para compensar a incapacidade da Europa Ocidental
de se defender sem a ajuda americana. Era o reiterado fracasso por parte dos
governos europeus em constituir a sua própria força militar que justificava a
existência da Aliança. Com o Tratado de Maastricht de 1993, a União
Europeia foi pelo menos ao ponto de reconhecer a necessidade de uma
Política Externa e de Segurança Comum, embora não estivesse claro que
política seria essa, nem como se procederia para a determinar e implementar.
Mas dez anos mais tarde, a UE estava prestes a estabelecer uma Força de
Resposta Rápida constituída por 60 000 elementos, e destinada à intervenção
e à manutenção da paz. Encorajados pela França e perante o evidente
desagrado de Washington, os governos europeus estavam também a chegar a
acordo relativamente a uma força de defesa autónoma capaz de actuar
independentemente da NATO e fora da sua área.
Contudo, o afastamento entre os dois lados do Atlântico não resultava
apenas de um desentendimento relativamente às forças armadas. Nem se
devia a um conflito de ordem económica, apesar de a União Europeia ter
agora o peso necessário para exercer uma pressão decisiva sobre o Congresso
dos EUA e sobre os produtores americanos a nível individual, levando-os a
sujeitarem-se às suas normas e regulamentos sob pena de se verem excluídos
dos mercados europeus: uma mudança que apanhou de surpresa muitos
congressistas e empresários americanos. Não só a Europa deixara de estar na
sombra da América, como os papéis pareciam ter-se invertido. O investimento
europeu directo nos EUA no ano 2000 atingira os 900 mil milhões de dólares
(contra menos de 650 mil milhões de investimento americano directo na
Europa); quase 70% de todo o investimento estrangeiro nos EUA provinha da
Europa; e as multinacionais europeias detinham agora um elevado número de
produtos emblemáticos da economia americana, incluindo a Brooks Brothers,
Random House, Kent Cigarettes, Pennzoil, Bird’s Eye e a equipa de baseball
Los Angeles Dodgers.
A competição económica, ainda que renhida, era todavia uma forma de
proximidade. Aquilo que realmente provocava o afastamento dos dois
continentes era uma crescente divergência relativamente aos «valores». Para
citar o Le Monde, «a comunidade de valores transatlântica está a desmoronar-
se». Vista da Europa, a América – que se tornara superficialmente familiar ao
longo da Guerra Fria – começava a parecer muito estranha. A intensa
religiosidade de um número crescente de Americanos – reflectida no seu mais
recente presidente, um cristão «renascido» – era incompreensível para a
maioria dos europeus cristãos (mas não para os seus devotos vizinhos
muçulmanos). O gosto dos Americanos por armas de fogo, incluindo
espingardas semiautomáticas completamente apetrechadas, fazia com que a
vida nos EUA parecesse perigosa e anárquica, enquanto que para a
esmagadora maioria dos observadores europeus a aplicação frequente e
impiedosa da pena de morte colocava a América à margem da civilização(7).
A estes factores aliava-se o crescente desprezo de Washington pelos
tratados internacionais, o seu ponto de vista singular a respeito de tudo, desde
o aquecimento global ao direito internacional e, principalmente, a sua posição
tendenciosa face ao conflito israelo-palestiniano. A política americana não
mudou de rumo em nenhuma destas questões desde a eleição do presidente
George W. Bush no ano 2000. O afastamento entre os dois lados do Atlântico
verificava-se havia bastante tempo, mas o registo inflexível da nova
administração veio confirmar as suspeitas de muitos observadores europeus:
que não se tratava de meras divergências relativamente a questões políticas
pontuais. Os indícios apontavam cada vez mais para um antagonismo cultural
fundamental.
A ideia de que a América era culturalmente diferente – ou inferior, ou uma
ameaça – não era exactamente original. Em 1983, o ministro da Cultura
francês Jack Lang alertou para o facto de a série televisiva Dallas, com as
suas elevadas audiências, constituir uma ameaça grave à identidade francesa e
europeia. Nove anos mais tarde, quando o filme Parque Jurássico estreou nos
cinemas franceses, o mesmo receio foi expressado por um dos seus sucessores
conservadores. Quando a EuroDisney foi inaugurada na Primavera de 1992, a
directora de teatro parisiense Ariane Mnouchkine, de tendência radical, foi
um pouco mais longe ao afirmar que o parque de diversão seria «uma
Chernobyl cultural». Mas tratava-se aqui da pequena troca típica de snobismo
intelectual e insegurança cultural, misturadas – no caso da França e não só –
com alguma nostalgia chauvinista. No 50.o aniversário do Dia D, Gianfranco
Fini, líder do ex-fascista Partido da Aliança Nacional italiano, disse ao jornal
La Stampa: «Espero que não julguem que estou a justificar o fascismo quando
me pergunto se com a chegada dos Americanos a Europa não terá perdido
parte da sua identidade cultural».
A novidade da situação no início do século XXI residia no facto de este
tipo de sentimento começar a tornar-se comum, não se cingindo já às franjas
intelectuais ou políticas, mas fazendo parte da vida europeia. A intensidade e
a amplitude de um sentimento antiamericano na Europa contemporânea
excediam claramente qualquer atitude deste tipo que se tivesse verificado
durante a Guerra do Vietname ou no auge dos movimentos pacifistas em
princípios da década de 80. Embora, na maioria dos países, muitas pessoas
acreditassem ainda que a relação entre as duas margens do Atlântico podia ser
preservada, três em cada cinco europeus em 2004 (e um número bastante mais
expressivo em alguns países, nomeadamente na Espanha, na Eslováquia e,
surpreendentemente, na Turquia) acreditavam que uma liderança americana
forte no mundo era «indesejável».
Esta percepção podia, em parte, ser atribuída a um descontentamento
generalizado face às políticas e à própria pessoa do presidente George W.
Bush, por oposição à imagem positiva que deixara o seu antecessor, Bill
Clinton. Mas muitos europeus tinham igualmente criticado o presidente
Lyndon Johnson em finais dos anos 60; no entanto, a atitude da Europa
relativamente à guerra no Sudeste Asiático não se convertera em ódio face à
América ou aos Americanos em geral. Quatro décadas mais tarde,
generalizara-se no continente europeu (incluindo entre os Britânicos, que se
opuseram frontalmente à identificação entusiástica do seu primeiro-ministro
com o presidente americano) a sensação de que algo estava mal com aquilo
em que a América se estava a tornar – ou, como muitos agora afirmavam,
aquilo que sempre fora.
Com efeito, as supostas qualidades «não americanas» da Europa estavam
rapidamente a tornar-se no factor comum preponderante da auto-identificação
europeia. Os valores europeus definiam-se por contraste com os valores
americanos. A Europa era – ou devia esforçar-se por ser – tudo o que a
América não era. Em Novembro de 1998, Jérôme Clément, o presidente do
Arte, um canal de televisão franco-alemão dedicado à cultura e às artes,
defendeu que a «criatividade europeia» era a única amurada contra as sereias
do materialismo americano, referindo como exemplo a Praga pós-comunista,
uma cidade em perigo de sucumbir a «une utopie libérale mortelle» («uma
utopia liberal mortal»): à mercê dos mercados liberalizados e da tentação do
lucro.
Nos primeiros anos do pós-comunismo, Praga, como toda Europa de
Leste, ansiava nitidamente por todas as coisas americanas, desde a liberdade
individual à abundância material. E qualquer pessoa de visita às capitais do
Leste europeu, de Talin a Ljubljana, notaria certamente a nova elite agressiva
de jovens bem vestidos, homens e mulheres, em permanente actividade,
deslocando-se entre reuniões e compras nos centros comerciais nos seus
automóveis caros, desfrutando da utopia liberal mortal dos pesadelos de
Clément. Todavia, até os europeus de Leste começavam a distanciar-se do
modelo americano: em parte para honrar sua nova associação à União
Europeia; em parte devido a uma crescente aversão relativamente a alguns
aspectos da política externa americana; mas cada vez mais porque, enquanto
sistema económico e modelo de sociedade, os EUA já não eram o exemplo
óbvio a seguir no futuro(8).
O antiamericanismo extremo no Leste da Europa ficou circunscrito a uma
minoria. Em países como a Bulgária ou a Hungria tornou-se numa forma
indirecta e politicamente aceite de expressar a nostalgia pelo comunismo
nacional – e, como tantas vezes no passado, um substituto útil para o anti-
semitismo. Contudo, mesmo entre os principais comentadores e políticos, já
não era comum utilizar as instituições ou práticas americanas como fonte de
inspiração ou exemplo a seguir. Durante muito tempo, a América fora um
outro tempo – o futuro da Europa. Agora era apenas um outro lugar. Sem
dúvida que muitos jovens sonhavam ainda em ir para a América. No entanto,
como um húngaro que trabalhou alguns anos na Califórnia explicou a um
entrevistador: «A América é o tipo de sítio para onde se vai quando se é
jovem e solteiro. Mas quando chega a altura de crescer, é melhor regressar
para a Europa».
A imagem da América como a terra perpétua da juventude e da aventura –
sendo a Europa do século XXI vista como um paraíso complacente para as
pessoas de meia-idade e avessas ao risco – estava amplamente difundida,
especialmente na própria América. E, com efeito, a Europa estava a
envelhecer. Em 2004, dos 20 países do mundo com a percentagem mais
elevada de pessoas com idades superiores a 60 anos, só um não pertencia à
Europa (a excepção era o Japão). A taxa de natalidade em muitos países
europeus situava-se bem abaixo dos níveis de reposição. Na Espanha, Grécia,
Polónia, Alemanha e Suécia, as taxas de fertilidade estavam abaixo de 1,4
crianças por mulher. Em algumas partes da Europa de Leste (na Bulgária e na
Letónia, por exemplo, ou na Eslovénia) estavam mais próximas do valor de
1,1 – o mais baixo do mundo. Partindo deste dados, as previsões para 2040
sugeriam que muitos países europeus teriam um decréscimo populacional de
cerca de um quinto.
Nenhuma das explicações tradicionais para o declínio das taxas de
fertilidade parecia justificar de forma satisfatória a incipiente crise
demográfica da Europa. Países pobres como a Moldova e países ricos como a
Dinamarca deparavam com o mesmo desafio. Em países católicos como a
Itália ou a Espanha era frequente os jovens (casados e solteiros) continuarem
a viver em casa dos pais até bem depois dos 30 anos, enquanto que na Suécia
luterana tinham as suas próprias casas e acesso a subsídios generosos de apoio
à família e licença de maternidade pagos pelo Estado. Mas embora os
escandinavos estivessem a ter mais filhos do que os europeus mediterrânicos,
as semelhanças eram mais expressivas do que as diferenças. Além disso, num
e noutro caso, os números seriam ainda mais baixos se não fossem os
imigrantes vindos de outros continentes, os quais representavam um
considerável acréscimo em termos populacionais e revelavam uma propensão
bastante mais acentuada para procriar. Na Alemanha, em 1960, o número de
crianças com pai ou mãe estrangeiros era de apenas 1,3% do total anual de
nascimentos. Quatro décadas mais tarde, esse número aumentara para uma
criança em cada cinco.
O panorama demográfico na Europa não era, na verdade, muito diferente
daquele que se verificava do outro lado do Atlântico – no início do novo
milénio, a taxa de natalidade dos que haviam nascido na América encontrava-
se também abaixo do nível de reposição. Contudo, o número de imigrantes
que continuava a entrar nos EUA era bastante mais elevado – e tratava-se
sobretudo de adultos jovens –, pelo que a fertilidade nos EUA, em termos
gerais, apresentava uma distância confortável relativamente aos valores da
Europa num futuro próximo. E embora as depressões demográficas
significassem que tanto a Europa como a América poderiam ter dificuldades
em gerir as pensões do Estado e outros compromissos nas décadas seguintes,
os sistemas de segurança social na Europa eram incomparavelmente mais
generosos, pelo que enfrentavam problemas mais sérios.
Os europeus estavam perante um dilema aparentemente claro: o que
aconteceria se (quando?) não houvesse população em idade activa suficiente
para cobrir os custos de uma comunidade cada vez mais alargada de cidadãos
reformados, com uma esperança de vida muito superior à do passado, sem
pagar impostos e exercendo uma pressão crescente sobre o sistema de
saúde(9)? Uma resposta seria reduzir as reformas. Outra seria adiar o seu
pagamento – isto é, fazer com que as pessoas trabalhassem até mais tarde.
Uma terceira alternativa seria cobrar mais impostos à população activa. Uma
quarta opção, considerada apenas na Grã-Bretanha (e sem grande convicção),
era imitar os EUA e encorajar ou até obrigar as pessoas a recorrerem ao sector
privado para efeitos de segurança social. Todas as hipóteses que se
apresentavam prometiam revelar-se explosivas em termos políticos.
Para muitos críticos do mercado livre dos Estados-providência europeus, o
problema fundamental que se colocava à Europa não era a queda
demográfica, mas a rigidez económica. Não se podia dizer que houvesse, ou
viesse a haver, falta de trabalhadores – simplesmente, havia demasiadas leis a
proteger os seus salários e empregos, ou a garantir subsídios de desemprego e
pensões de tal forma elevados que reduziam, logo à partida, o incentivo ao
trabalho. Se se pusesse fim a esta «inflexibilidade do mercado de trabalho» e
os custos com a segurança social fossem reduzidos ou remetidos ao sector
privado, registar-se-ia um aumento da população activa, o fardo que recaía
sobre o patronato e os contribuintes seria aliviado e tornar-se-ia possível
ultrapassar a «eurosclerose».
Este diagnóstico era simultaneamente verdadeiro e falso. Não havia dúvida
de que alguns dos benefícios do Estado-providência, negociados e fixados no
pico do crescimento pós-guerra, eram agora uma sobrecarga excessiva.
Qualquer trabalhador alemão que perdesse o emprego tinha direito a 60% da
sua anterior remuneração durante os 32 meses seguintes (67% no caso de ter
um filho). A partir dessa altura os pagamentos mensais eram reduzidos para
53% (ou 57%) do mesmo valor – por tempo indeterminado. Não é certo que
esta rede de segurança desencorajasse as pessoas a procurar emprego. O que é
certo é que tinha custos elevados. Toda uma série de leis destinadas a proteger
os trabalhadores criava dificuldades ao patronato na maioria dos países da UE
(nomeadamente em França) quando se tratava de despedir trabalhadores a
tempo inteiro: a sua consequente relutância em contratar funcionários
contribuía para taxas invariavelmente elevadas de desemprego entre os
jovens.
Por outro lado, o facto de serem consideravelmente regulamentadas e
inflexíveis para os padrões americanos não significava necessariamente que
as economias europeias fossem ineficazes ou improdutivas. Em 2003, quando
a produtividade foi avaliada em termos de trabalho realizado por hora, as
economias da Suíça, Dinamarca, Áustria e Itália equiparavam-se às dos EUA.
Segundo o mesmo critério, a Irlanda, Bélgica, Noruega, Holanda e França
(sic) superavam a produtividade dos EUA. Se a América era, ainda assim,
mais produtiva em termos globais – se os Americanos produziam mais bens,
serviços e dinheiro – era porque tinham, numa maior percentagem, empregos
remunerados; trabalhavam mais horas do que os europeus (cerca de trezentas
horas a mais por ano, em média, no ano 2000); e tinham muito menos férias e
mais curtas.
Enquanto os Britânicos tinham direito a 23 dias de férias pagas por ano, os
Franceses a 25 e os Suecos a 30 ou mais, muitos Americanos tinham de se
contentar com menos de metade das férias pagas, dependendo do sítio onde
viviam. Os europeus tinham deliberadamente escolhido trabalhar menos,
ganhar menos – e viver melhor. Em compensação pelos seus impostos
excepcionalmente elevados (outro impedimento ao crescimento e à inovação,
aos olhos dos críticos anglo-americanos), os europeus tinham direito a
assistência médica gratuita ou quase gratuita, reformavam-se cedo e
usufruíam de um prodigioso leque de serviços sociais e públicos. No ensino
secundário, recebiam uma educação melhor que os Americanos. Viviam com
mais segurança e – também por essa razão – mais tempo, gozavam de melhor
saúde (embora gastando bastante menos)(10) e tinham um menor índice de
pobreza.
Este era, então, o «Modelo Social Europeu». Sem dúvida que era caro.
Mas, para a maioria dos europeus, a promessa de empregos seguros, taxas de
impostos progressivas e transferências sociais traduziam um contrato
implícito entre o governo e os seus cidadãos, bem como entre um cidadão e
outro. Segundo as sondagens anuais do Eurobarómetro, uma esmagadora
maioria de europeus era da opinião de que a pobreza se devia a circunstâncias
sociais e não a inadequação individual. Mostravam-se também dispostos a
pagar impostos mais elevados se esses aumentos se destinassem a reduzir a
pobreza.
Seria de prever que estes sentimentos estivessem bastante difundidos na
Escandinávia, mas prevaleciam também na Grã-Bretanha, e na Itália ou na
Espanha. Havia um consenso generalizado a uma escala internacional e entre
as diferentes classes de que era dever do Estado proteger os cidadãos dos
acasos da sorte ou do mercado: nem as empresas nem o Estado deviam
encarar os empregados como unidades de produção dispensáveis. A
responsabilidade social e a vantagem económica não deviam excluir-se
mutuamente – o «crescimento» era o objectivo, mas não a qualquer preço.
Este modelo europeu assumia formas diferentes: a «nórdica», a «centro-
europeia» e a «católica», dentro das quais se verificavam ainda algumas
variações. Aquilo que tinham em comum não era um conjunto distinto de
serviços ou práticas económicas, nem um nível específico de envolvimento do
Estado. Era, antes, uma noção – por vezes explícita nos documentos e leis,
mas nem sempre – de equilíbrio dos direitos sociais, de solidariedade cívica e
responsabilidade colectiva que era adequada e possível no Estado moderno.
Os resultados alcançados podiam ser bastante diferentes, por exemplo, na
Itália e na Suécia. Porém, o consenso social que os abrangia era visto por
muitos cidadãos como uma obrigação formal – quando, em 2004, o chanceler
social-democrata da Alemanha introduziu mudanças nos pagamentos da
segurança social no país, foi alvo de intensos protestos, tal como acontecera
com um governo gaullista dez anos antes, ao propor reformas semelhantes em
França.
Desde a década de 80 que se verificavam tentativas para interferir na
escolha entre a solidariedade social europeia e a flexibilidade económica ao
estilo americano. Uma geração mais jovem de economistas e empresários,
alguns dos quais tinham estudado gestão ou trabalhado em firmas americanas
e se sentiam frustrados perante aquilo que consideravam ser a inflexibilidade
do mundo dos negócios na Europa, começara a fazer sentir aos governos a
necessidade de «simplificar» os processos e estimular a competição. A
justamente chamada gauche américaine em França decidiu libertar a esquerda
do seu complexo anticapitalista, embora retendo a sua consciência social; na
Escandinávia, o efeito inibidor dos impostos elevados foi discutido (ainda que
nem sempre admitido) até nos círculos sociais-democratas. A direita tivera de
aceitar o Estado-providência; era agora a vez de a esquerda reconhecer as
virtudes do lucro.
O esforço de combinar o melhor de ambos os lados coincidia, não por
acaso, com a tentativa de delinear um projecto que substituísse o defunto
debate entre capitalismo e socialismo que centralizara a política ocidental
durante mais de um século. O resultado, por um breve momento em finais dos
anos 90, foi a chamada «Terceira Via», em que o entusiasmo pela produção
capitalista desenfreada se aliava à devida consideração pelas consequências
sociais e pelo interesse colectivo. Não era, com efeito, uma ideia original: em
termos de conteúdo, acrescentava pouco à teoria de Ludwig Erhard da
«Economia Social de Mercado» formulada nos anos 50. Contudo, a política,
especialmente a política pós-ideológica, tem a ver com forma; e era a forma
da Terceira Via, definida com base na «triangulação» bem-sucedida da
esquerda e da direita preconizada por Bill Clinton e articulada sobretudo pelo
Novo Partido Trabalhista de Tony Blair, que seduzia os observadores.
Blair tinha, obviamente, algumas vantagens únicas em termos de tempo e
lugar. No Reino Unido, Margaret Thatcher balizara os objectivos políticos
demasiado à direita, enquanto os antecessores de Blair na liderança trabalhista
se tinham encarregado de destruir a antiga esquerda do Partido. Numa
atmosfera pós-Thatcher, Blair podia, assim, construir uma imagem credível
como progressista e «europeu», limitando-se a afirmar o interesse em serviços
públicos bem distribuídos; entretanto, a sua conhecida admiração pelo sector
privado e o ambiente favorável aos negócios proporcionado pelas suas
políticas posicionavam-no firmemente no campo «americano». Falava
entusiasticamente em trazer a Grã-Bretanha para o lado europeu, mas insistia
em manter o seu país livre das protecções sociais da legislação europeia e da
harmonização fiscal implícita no «mercado único» da União.
A Terceira Via foi apresentada simultaneamente como uma solução
pragmática para os dilemas económicos e sociais e como um avanço
conceptual importante depois de décadas de estagnação teórica. Os seus
admiradores no continente, ignorando as «terceiras vias» abortadas nos
passados dos seus próprios países – nomeadamente a popular «terceira via»
fascista dos anos 30 –, seguiram-no de boa vontade. Sob a liderança de
Jacques Delors (1985-1995), a Comissão Europeia parecera ligeiramente
preocupada em conceber e impor normas e regras – substituindo a «Europa» à
herança perdida do socialismo burocrático ao estilo da Fabian Society.
Também Bruxelas parecia estar a precisar de uma Terceira Via: uma versão
melhorada de si mesma que pudesse situar a União algures entre a
invisibilidade institucional e o excesso de regulação(11).
O novo aspecto da política de Blair não sobreviveria muito tempo à
decisão desastrosa de implicar o seu país e a sua reputação na invasão do
Iraque, em 2003 – um passo que apenas relembrou aos observadores
estrangeiros que a Terceira Via trabalhista estava indissociavelmente ligada à
relutância do Reino Unido em escolher entre a Europa e os Estados Unidos. E
o facto de a Grã-Bretanha, à semelhança dos EUA, estar a sofrer um aumento
dramático da pobreza – ao contrário do que se verificava no resto da UE, onde
a pobreza aumentava moderadamente, se é que aumentava – fez com que o
modelo britânico se tornasse menos apelativo. No entanto, a Terceira Via
estava condenada a uma existência efémera. O seu próprio nome implicava a
presença de dois extremos – o ultracapitalismo de mercado e o socialismo
estatal –, quando já nenhum dos dois existia (e, no caso do primeiro, fora
sempre um produto de imaginações doutrinais). A necessidade de um avanço
teórico (ou retórico) dramático tinha passado.
Assim, a privatização no início da década de 80 fora controversa, tendo
dado origem a uma discussão alargada relativamente ao alcance e
legitimidade do sector público e questionando a viabilidade dos objectivos
sociais-democratas, bem como a legitimidade moral da procura de lucro na
disponibilização de bens públicos. No entanto, em 2004, a privatização era
um processo estritamente pragmático. No Leste europeu, era uma condição
necessária para a adesão à UE, em conformidade com as imposições de
Bruxelas contra os subsídios públicos responsáveis pela distorção do
mercado. Na França ou na Itália, a venda de bens públicos tornara-se um
recurso com efeitos a curto prazo para reduzir o défice anual e respeitar as
regras da zona euro.
Até os projectos da Terceira Via de Tony Blair – para a semiprivatização
do Metro de Londres por exemplo, ou para a introdução de um esquema
«competitivo» nos serviços hospitalares – eram ponderados em termos de
custos e eficiência, com vista a um saldo positivo para o orçamento nacional.
Na medida em que estavam ligados a uma questão de princípio social, esta
política foi seguida como se se tratasse de uma segunda ideia pouco
convincente. E a popularidade de Blair diminuía com o passar do tempo
(como a sua terceira vitória eleitoral, bastante menos explícita, haveria de
demonstrar em Maio de 2005). Apesar de cortar a despesa pública, de optar
por se manter de fora da carta social europeia, de reduzir a carga fiscal das
empresas e de favorecer o investimento externo no país com todos os meios
ao seu alcance, o Reino Unido continuou teimosamente improdutivo.
Avaliado em termos de produtividade por hora, ficava sistematicamente
aquém dos seus parceiros «esclerosados» vinculados às regulamentações da
UE.
Por outro lado, um plano do Novo Partido Trabalhista destinado a prevenir
a crise iminente dos planos de pensões subfinanciados da Europa – passando
a responsabilidade para o sector privado – estava já condenado a fracassar
menos de uma década após a sua orgulhosa implementação. Na Grã-Bretanha,
como nos EUA, as empresas que investiam os seus fundos de pensões numa
bolsa de valores instável tinham poucas condições para cumprir os
compromissos a longo prazo assumidos para com os seus funcionários,
sobretudo porque esses funcionários – tal como os pensionistas do sector
público – tinham uma esperança de vida muito superior à do passado. A
maioria destas pessoas, conforme se tornava claro, nunca receberia o valor
total da sua pensão… a não ser que o Estado voltasse a assumir a
responsabilidade e compensasse a diferença. A Terceira Via começava a
parecer-se muito com um truque de três cartas, a Vermelhinha.
No início do século XXI, o dilema que se colocava aos europeus não tinha
a ver com socialismo ou capitalismo, com a oposição entre a esquerda e a
direita, ou com a Terceira Via. Nem sequer se tratava da Europa versus a
América. Era, antes, uma questão – a questão – que a história colocara na
agenda em 1945 e que se sobrepusera ou sobrevivera, discreta mas
insistentemente, a todas as outras dúvidas que suscitavam a atenção da
Europa. Que futuro aguardava os Estados-nações individuais? Teriam algum
futuro?
Não poderia haver retorno ao mundo do Estado-nação autónomo e
independente que não partilhava com o seu vizinho mais do que uma fronteira
comum. Polacos, Italianos, Eslovenos, Dinamarqueses – até os Britânicos –
eram agora europeus. Como também o eram milhões de sikhs, Bengalis,
Turcos, árabes, Indianos, Senegaleses e outros. Nas suas rotinas económicas,
qualquer indivíduo cujo país fizesse parte da União Europeia – ou que
quisesse fazer – era agora irreversivelmente europeu. A UE era o maior
mercado interno do mundo, o maior fornecedor de serviços a nível mundial, e
os seus Estados-Membros uma autoridade singular em matéria de regulação
económica e códigos legais.
Num mundo em que a vantagem relativa em factores de produção fixos –
energia, minérios, terras agrícolas, e até a localização – tinha bastante menos
peso do que as políticas destinadas a promover a educação, a investigação e o
investimento, tornava-se essencial que a União tivesse cada vez mais
iniciativa nesta áreas. Tal como os Estados sempre tinham sido de uma
importância vital na constituição de mercados – definindo regras que
enquadrassem as trocas, o emprego e a circulação –, era agora a UE que fazia
estas regras; graças à sua moeda única, exercia também nos mercados um
quase monopólio no capital propriamente dito. A única actividade económica
vital deixada ao critério dos governos nacionais e não à UE era a percentagem
de impostos a cobrar – e só porque o Reino Unido fazia questão de que assim
fosse.
No entanto, as pessoas não viviam em mercados, mas em comunidades.
Ao longo dos séculos anteriores, essas comunidades tinham-se agrupado, de
forma voluntária ou (mais frequentemente) coerciva, em Estados. Depois das
experiências de 1914-45, todos os europeus sentiam a necessidade premente
do Estado: a política e as agendas sociais dos anos 40 reflectem esta
ansiedade, mais do que qualquer outra coisa. Com a prosperidade económica,
a paz social e a estabilidade internacional, essa necessidade foi
progressivamente desaparecendo. No seu lugar surgiu a desconfiança face à
autoridade pública abusiva, a par do desejo de autonomia individual e da
remoção dos obstáculos à iniciativa privada. Por outro lado, na era das
superpotências o destino da Europa tinha aparentemente escapado ao seu
controlo. Os Estados-nações europeus pareciam, assim, cada vez mais
redundantes. Contudo: desde 1990 – e a fortiori desde 2001 – esses Estados
pareciam ter recuperado muita da sua importância.
No seu início, o Estado moderno tinha duas funções intimamente
relacionadas: cobrar impostos e fazer a guerra. A Europa – a União Europeia
– não é um Estado. Não institui impostos e não tem capacidade para fazer a
guerra. Como vimos anteriormente, demorou, com efeito, muito tempo até
que a UE reunisse sequer os rudimentos de uma capacidade militar, quanto
mais uma política externa. Durante grande parte do meio século após o fim da
Segunda Guerra Mundial, tal não foi uma desvantagem: a perspectiva de uma
outra guerra europeia era abominável para a quase generalidade da população
europeia, e a defesa contra o único inimigo possível fora subcontratada no
outro lado do Atlântico.
Porém, após o 11 de Setembro de 2001, as limitações de uma receita pós-
nacional para um futuro europeu melhor tornaram-se claras. Afinal, o Estado
europeu tradicional não só fazia a guerra no estrangeiro como reforçava a paz
a nível interno. É isto, como concluiu Hobbes há muito tempo, que confere ao
Estado a sua legitimidade distintiva e insubstituível. Em países onde a
violenta guerra política contra civis desarmados tem sido endémica em anos
recentes (Espanha, Reino Unido, Itália e Alemanha), a importância do Estado
– as suas forças policiais, o exército, os serviços de informações e o aparato
judicial – nunca foi esquecida. Numa era de «terrorismo», o monopólio do
poder armado por parte do Estado é motivo de tranquilidade para a maioria
dos seus cidadãos.
Manter a população segura é a função dos Estados. E não havia sinal de
que Bruxelas (a União Europeia) estivesse disposta ou pudesse assumir essa
responsabilidade num futuro próximo. Neste aspecto vital, o Estado continuou
a ser o representante legítimo dos seus cidadãos, de uma forma que a união
transnacional de europeus, com todos os seus passaportes e parlamentos, não
podia acompanhar. Os cidadãos podiam usufruir da liberdade de recorrer a
juízes europeus, sobrepondo-se aos seus próprios governos, e não deixava de
causar surpresa o facto de os tribunais nacionais na Alemanha ou na Grã-
Bretanha acederem tão prontamente aos veredictos emitidos de Estrasburgo
ou do Luxemburgo. Mas quando se tratava de manter atiradores e
bombardeiros à distância, a responsabilidade e, logo, o poder mantinham-se
nas mãos firmes de Berlim ou Londres. Afinal, que havia de fazer um cidadão
da Europa se a sua casa fosse bombardeada? Chamar um burocrata?
A legitimidade é uma função da capacidade: é, em parte, por o Estado
desarticulado, ultrafederal da Bélgica ter por vezes parecido incapaz de
garantir a segurança dos seus cidadãos que a sua legitimidade foi posta em
causa. E embora a capacidade do Estado comece nas armas, não é aí que
termina, nem mesmo hoje. Enquanto for o Estado – e não uma entidade supra-
estatal – a pagar as pensões, os subsídios de desemprego e a garantir a
educação, o seu monopólio de uma determinada forma de legitimidade
política continuará a ser inquestionável. Ao longo do século XX, o Estado-
nação europeu assumiu consideráveis responsabilidades pela assistência
social, segurança e bem-estar dos seus cidadãos. Nos últimos anos, abdicou
da sua vigilância abusiva da moral privada e de parte – mas não da totalidade
– da sua iniciativa económica. O resto mantém-se inalterável.
A legitimidade é também uma função do território. A União Europeia,
como muitos observadores sublinharam, é um animal completamente original:
define-se em termos territoriais sem ser uma entidade territorial consistente.
As suas leis e regulamentos aplicam-se a todo o seu território, mas os seus
eleitores não podem votar nas eleições nacionais uns dos outros (embora
sendo livres de votar nas eleições autárquicas e europeias). O alcance
geográfico da União é de certa forma camuflado pela sua importância
relativamente reduzida na vida quotidiana dos europeus, em comparação com
a do país onde nasceram ou residem. Não restam dúvidas quanto ao papel
decisivo da UE ao nível económico e no fornecimento de outros serviços.
Mas esse papel define os seus cidadãos enquanto consumidores, não como
participantes – «uma comunidade de cidadãos passivos… governada por
estranhos» –, pelo que pode suscitar comparações pouco lisonjeiras com a
Espanha pré-democrática ou com a Polónia, ou com a cultura política passiva
da Alemanha Ocidental de Adenauer: precedentes nada auspiciosos para um
projecto de tal modo ambicioso.
Cidadania, democracia, direitos e deveres encontram-se intimamente
ligados ao Estado – sobretudo em países com tradição de uma participação
activa dos cidadãos nos assuntos públicos. A proximidade física é importante:
para participarmos no Estado precisamos de sentir que fazemos parte dele.
Mesmo numa era de comboios de alta velocidade e de comunicação
electrónica em tempo real, não é ainda claro como pode alguém em Coimbra,
por exemplo, ou Rzeszow, ser um cidadão activo da Europa. Para que o
conceito retenha o seu significado – e para que os europeus mantenham a sua
participação política de forma útil – a sua referência continuará a ser Lisboa,
ou Varsóvia: não Bruxelas. Não é por acaso que os Estados-gigantes da era
moderna – China, Rússia, EUA – ou têm sido governados por um poder
autoritário, ou se têm mantido resolutamente centrífugos, com os seus
cidadãos algo receosos da capital federal e de todo o seu funcionamento.
As aparências eram, então, ilusórias. Em 2005, a União Europeia não tinha
suplantado as unidades territoriais convencionais e não se previa que o fizesse
num futuro próximo. Seis décadas após a derrota de Hitler, os múltiplos
territórios, identidades e soberanias que, no seu conjunto, definiam a Europa e
a sua história sobrepunham-se inevitavelmente e comunicavam mais do que
em qualquer outro momento do passado. O que era novo e, por isso, difícil de
apreender por parte dos observadores externos, era a possibilidade de se ser
francês e europeu, ou catalão e europeu – ou árabe e europeu.
A separação entre as várias nações e Estados não desaparecera. Tal como o
mundo não estava a convergir para uma só norma «americana» – as
sociedades capitalistas desenvolvidas exibiam um vasto leque de formas
sociais e posturas muito diferentes relativamente ao mercado e ao Estado –,
também a Europa compreendia um conjunto de povos e tradições distintos. A
ilusão de que vivemos num mundo pós-nacional ou pós-Estado advém do
facto de prestarmos demasiada atenção aos processos económicos
«globalizados»… e de julgarmos que outros processos igualmente
transnacionais poderão estar a decorrer em todas as outras esferas da vida
humana.
Vista unicamente sob o prisma da produção e das trocas comerciais, a
Europa tornara-se efectivamente um fluxograma de ondas transnacionais. Mas
vista como um espaço de poder, legitimidade política ou afinidades culturais,
a Europa continuava a ser aquilo que há muito era: uma acumulação familiar
de partículas estatais distintas. Em traços gerais, o nacionalismo surgira e
desaparecera(12); mas as nações e os Estados tinham perdurado.
Tendo em conta o que os europeus tinham feito uns aos outros na primeira
metade do século XX, só esse facto era algo de notável. Certamente que
ninguém o poderia ter previsto da destruição de 1945. Efectivamente, o
ressurgimento dos povos castigados da Europa, bem como das suas culturas e
instituições nacionais distintas, dos escombros da guerra de 30 anos que
grassara no continente poderia ser considerado um feito de maior alcance
ainda do que o seu sucesso colectivo na constituição de uma União
transnacional. Afinal, esta última constava de vários dos desígnios europeus
já antes da Segunda Guerra Mundial e fora, talvez, até impulsionada pela
devastação causada pelo conflito. Mas a ressurreição da Alemanha, da
Polónia ou da França, já para não mencionar a da Hungria ou da Lituânia,
parecera bastante menos provável.
Mais inesperada ainda – na verdade, inimaginável apenas algumas décadas
antes – era a emergência da Europa, na alvorada do século XXI, como modelo
das virtudes internacionais: uma comunidade de valores e um sistema de
relações interestatais exibidos por europeus e por não europeus como um
exemplo a seguir por todos. Este era, em parte, o resultado da crescente
desilusão perante a alternativa americana; mas a reputação era merecida, e
apresentava uma oportunidade sem precedentes. Se a nova imagem polida da
Europa, purgada dos pecados e vicissitudes do seu passado, sobreviveria aos
desafios do novo século, era algo que dependeria em larga medida da resposta
dada pelos europeus aos não europeus que se encontravam entre eles e junto
às suas fronteiras. Nos primeiros anos confusos do século XXI, esta
continuava a ser uma questão em aberto.
No começo da era nacionalista, 170 anos antes, o poeta alemão Heinrich
Heine esboçou uma distinção esclarecedora entre dois tipos de sentimento
colectivo: «A nós [Alemães]», escreveu,
«ordenaram-nos que fôssemos patriotas e tornámo-nos patriotas, pois
fazemos tudo o que os nossos dirigentes nos dizem para fazer. Este
patriotismo não deve, porém, ser entendido como a mesma emoção que
este termo traduz em França. O patriotismo de um francês significa que o
seu coração emana calor, e que esse calor se estende e expande, de tal
forma que o seu amor já não abarca apenas o seu parente mais próximo,
mas toda a França, todo o mundo civilizado. O patriotismo de um alemão
significa que o seu coração se contrai e encolhe como a pele no frio, e
então o alemão odeia tudo o que é estrangeiro, já não querendo ser um
cidadão do mundo, não querendo ser europeu, mas apenas um alemão
provincial».
A França e a Alemanha já não eram, evidentemente, as referências críticas.
No entanto, a escolha, proposta por Heine, entre duas formas diferentes de
patriotismo ilustra de modo bastante directo a condição europeia
contemporânea. Se a emergência da Europa assumisse uma orientação
«germânica», contraindo-se como «a pele no frio» e tendendo para um
provincialismo defensivo – uma possibilidade sugerida pelos referendos
realizados em França e na Holanda na Primavera de 2005, quando maiorias
explícitas rejeitaram a «Constituição» Europeia proposta –, então a
oportunidade passaria e a União Europeia nunca iria além das suas origens
funcionais. Continuaria a ser apenas a soma e o máximo denominador comum
dos interesses individuais dos seus membros.
No entanto, se o patriotismo da Europa conseguisse ultrapassar-se a si
próprio, captar o espírito da França idealizada por Heine, «estendendo-se e
expandindo-se para abarcar todo o mundo civilizado», então algo mais seria
agora possível. O século XX – o século da América – vira a Europa
mergulhar no abismo. A recuperação do velho continente fora um processo
lento e incerto. Em certos aspectos, nunca seria concluído: a América teria o
maior exército e a China produziria bens mais baratos e em maior quantidade.
Mas nem a América nem a China tinham um modelo viável a propor ao
mundo. Apesar dos horrores do seu passado recente – e em larga medida por
causa dos mesmos –, eram os europeus que se encontravam agora numa
posição única para dar ao mundo alguns conselhos modestos sobre como
evitar repetir os seus próprios erros. Poucos o teriam previsto 60 anos antes,
mas o século XXI poderia ainda pertencer à Europa.
-
(1) T. R. Reid, The United States of Europe. The New Superpower and the End of American
Supremacy (NY, 2004), p. 31.

(2) A Grã-Bretanha não era um caso único. Numa semana em Setembro de 2004, a lotaria espanhola,
El Gordo, arrecadou 5 920 293 euros.

(3) Embora não seguindo ainda a estrutura rígida das equipas americanas que reuniam um homem
branco (apresentador principal), um homem negro (notícias de desporto), uma mulher branca (notícias
de sociedade, entrevistas e reportagens) e um apresentador do boletim meteorológico (sexo e cor
opcionais).

(4) A morte da princesa Diana e o prolongamento mórbido do acontecimento poderá parecer uma
excepção a esta regra. No entanto, apesar de terem sido muitos os europeus a assistir ao funeral na
televisão, a verdade é que depressa perderam o interesse. A excessiva manifestação pública de dor foi
uma ocorrência circunscrita à Grã-Bretanha.

(5) A lastimável excepção era um grupo pequeno, mas radical, de fãs alemães e (sobretudo) ingleses
que viajavam para assistir a jogos internacionais com o propósito específico de causar desordem,
perante o espanto geral.
(6) Em Janeiro de 2003, por iniciativa dos primeiros-ministros da Espanha e da Grã-Bretanha, oito
governos europeus (Grã-Bretanha, Espanha, Portugal, Dinamarca, Itália, Polónia, Hungria e República
Checa) assinaram uma declaração de solidariedade pró-americana. Ao fim de poucos meses, Húngaros e
Checos lamentavam em privado e mostravam-se descontentes por terem sido «intimados» a assinar pelo
primeiro-ministro espanhol, José María Aznar. Um ano mais tarde, o próprio Aznar foi afastado do
poder pelos eleitores espanhóis, em larga medida por ter levado a Espanha a integrar a «coligação» que
invadiu o Iraque – algo a que a nação se opunha declaradamente.

(7) «Sim, os Americanos erguem cartazes onde se lê ‘Ama o Teu Próximo’, mas assassinam e violam
os seus próximos a um nível que chocaria qualquer nação europeia.» T. R. Reid, The United States of
Europe (NY, 2004), p. 218.

(8) Será de referir que a nova classe executiva do Leste da Europa comia, vestia-se, telefonava e
conduzia marcas europeias. Para ser moderno já não era preciso imitar os Americanos. Muito pelo
contrário: os bens de consumos americanos eram frequentemente postos de parte, considerados «de mau
gosto» ou «superficiais».

(9) Em França, em 1960, havia apenas quatro trabalhadores para cada pensionista. Em 2000, havia
dois. A confirmar-se a tendência, em 2020 será apenas um.

(10) Em 2004, as despesas de saúde absorviam 8% do PIB na Suécia, mas 14% nos EUA. Quatro
quintos do custo eram suportados pelo governo sueco, enquanto o governo federal dos EUA suportava
menos de 45%. O restante recaía directamente sobre os empresários americanos e os seus empregados.
Quarenta e cinco milhões de Americanos não tinham seguro de saúde.

(11) Com os sucessores de Delors, a tendência alterou-se: a Comissão continua tão activa como
sempre, mas os seus esforços foram direccionados para a desregulamentação dos mercados.

(12) Na Europa, mas não na América. Nas sondagens internacionais realizadas no final do século
XX, o número de Americanos que afirmavam estar «muito orgulhosos» do seu país excedia os 75%. Na
Europa, só os Irlandeses e os Polacos exibiam semelhante entusiasmo patriótico; nas restantes partes, o
número de pessoas «muito orgulhosas» situava-se entre os 49% (Letões) e os 17% (antiga Alemanha
Ocidental).
Epílogo

Da Casa dos Mortos


UM ENSAIO SOBRE A MEMÓRIA EUROPEIA
CONTEMPORÂNEA

«O problema do mal será o problema central da vida intelectual do pós-guerra


na Europa – tal como a morte se tornou o problema central depois da última
guerra.»
Hannah Arendt (1945)
«O esquecer, eu iria mesmo ao ponto de dizer, o erro da História, é um factor
crucial na criação de uma nação; assim, o progresso dos estudos históricos é
muitas vezes perigoso para a identidade nacional… A essência de uma nação
reside no facto de todos os indivíduos terem muitas coisas em comum, e
também no facto de terem esquecido muitas coisas.»
Ernest Renan
«Todo o trabalho histórico sobre os acontecimentos deste período terá de ser
seguido ou analisado em função dos acontecimentos de Auschwitz… Aí, toda
a historicização atinge os seus limites.»
Saul Friedlander
Para os judeus, concluiu Heinrich Heine, o baptismo é o «bilhete de
entrada para a Europa». Mas isso era em 1825, quando o preço da admissão
ao mundo moderno consistia em abdicar de uma herança opressiva de
diferença e isolamento dos judeus. Hoje, o preço de entrada na Europa
mudou. Numa viragem irónica que Heine – com os seus avisos proféticos de
«tempos sombrios e perigosos retumbando na nossa direcção» – teria
apreciado como ninguém, aqueles que pretendem tornar-se verdadeiramente
europeus na alvorada do século XXI devem primeiro assumir uma herança
nova e bastante mais opressiva. Hoje, a referência pertinente para a Europa
não é o baptismo. É o extermínio.
O bilhete de acesso à Europa contemporânea é o reconhecimento do
Holocausto. Em 2004, o presidente Kwasniewski da Polónia – ao tentar
encerrar um doloroso capítulo na história do seu país e alinhar a Polónia com
os seus parceiros europeus – reconheceu oficialmente o sofrimento dos judeus
polacos durante a guerra, incluindo a vitimização sofrida às mãos dos seus
próprios compatriotas. Até o presidente cessante da Roménia, Iliescu, numa
cedência face à ambição do seu país de entrar na União Europeia, foi no ano
seguinte pressionado a admitir aquilo que, juntamente com outras
personalidades, negara durante tanto tempo e de forma tão veemente: que a
Roménia desempenhou também um papel no extermínio dos judeus da
Europa…
Sem dúvida que existem outros critérios para a plena adesão à família
europeia. A recusa sistemática por parte da Turquia em reconhecer o
«genocídio» da sua população arménia em 1915 será um impedimento à sua
candidatura à União Europeia, assim como a Sérvia continuará ignorada à
porta da Europa enquanto a sua classe política não assumir a responsabilidade
pelos massacres e outros crimes das guerras na Jugoslávia. Mas a razão pela
qual crimes desta natureza encerram agora uma tal responsabilidade política –
e o motivo que levou a «Europa» a assumir ela própria a responsabilidade de
garantir que lhes é prestada a devida atenção e de definir os «europeus» como
pessoas que realmente lhes prestam atenção – tem a ver com o facto de eles
serem exemplos parciais (respectivamente, antes e depois) do crime: a
tentativa por parte de um grupo de cidadãos europeus de exterminar todos os
membros de um outro grupo de cidadãos, em solo europeu, num passado não
muito distante.
Hitler e a sua «solução final para o problema dos judeus na Europa» não é
apenas a fonte de áreas cruciais da jurisprudência internacional do pós-guerra
– «genocídio» ou «crimes contra a humanidade». Também se presta a avaliar
a posição moral (e legal, em determinados países europeus) daqueles que se
pronunciam acerca desta. Negar ou minimizar a Shoah – o Holocausto – é
colocar-se à margem da opinião pública civilizada. É por essa razão que os
políticos de partidos dominantes evitam, na medida do possível, ser
associados a demagogos como Jean-Marie Le Pen. O Holocausto é hoje muito
mais do que apenas mais um facto inegável a respeito de um passado que os
europeus já não podem ignorar. Enquanto a Europa se prepara para deixar a
Segunda Guerra Mundial para trás – com a inauguração dos últimos
memoriais e a homenagem aos últimos combatentes e vítimas sobreviventes
–, a memória recuperada dos judeus europeus mortos tornou-se a própria
definição e a garantia da restauração da humanidade no continente. Nem
sempre foi assim.
O destino dos judeus europeus nunca constituiu mistério. O facto de cerca
de seis milhões deles terem sido mortos no decorrer da Segunda Guerra
Mundial era já um dado aceite passados poucos meses do final da guerra. O
escasso número de sobreviventes, em campos de concentração afastados ou
nos seus países de origem, testemunhava implicitamente o número de mortos.
Dos 126 000 judeus forçados a deixar a Áustria, 4500 regressaram depois da
guerra. Na Holanda, onde viviam 140 000 judeus antes da guerra, 110 000
foram deportados – e desses foram menos de 5000 os que regressaram. Em
França, dos 76 000 judeus (na sua maioria de origem estrangeira) que foram
deportados entre 1940-1944, sobreviveram menos de 3%. Avançando para
leste, os números eram ainda mais impressionantes: dos mais de três milhões
de pessoas que constituíam a população judaica na Polónia antes da guerra,
97,5% foram exterminados. Na própria Alemanha, em Maio de 1945,
restavam no país apenas 21 450 dos 600 000 judeus do país.
Os sobreviventes que regressaram não foram particularmente bem-vindos.
Após anos de propaganda anti-semita, as populações locais estavam
predispostas a culpar os judeus pelo seu próprio sofrimento mas, por outro
lado, lamentavam o regresso de homens e mulheres cujos empregos, bens e
casas tinham usurpado. No quatrième arrondissement de Paris, a 19 de Abril
de 1945, centenas de pessoas organizaram um protesto quando um judeu
regressou e tentou recuperar o apartamento que lhe pertencia, então ocupado.
A manifestação esteve perto de se transformar num motim, com a multidão
gritando La France aux Français! O respeitado filósofo católico francês
Gabriel Marcel não adoptaria, certamente, este tipo de linguagem, mas não se
acanhou ao escrever alguns meses mais tarde, no jornal Témoignage Chrétien,
sobre a «presunção arrogante» dos «judeus» e a sua insistência em «apoderar-
se de tudo».
Não admira, pois, que a futura ministra do governo francês Simone Weil
tenha escrito, a respeito do seu regresso de Bergen-Belsen: «Tínhamos a
sensação de que as nossas vidas não tinham qualquer valor; e, no entanto,
éramos tão poucos». Em França (como na Bélgica) os resistentes deportados
que tinham sobrevivido eram, ao regressar, tratados como heróis: os
salvadores da honra da nação. Mas os judeus, deportados não pelas suas
opções políticas mas em consequência da sua raça, não serviam um propósito
tão útil. De qualquer modo, De Gaulle (tal como Churchill) curiosamente
fechou os olhos à especificidade racial das vítimas de Hitler, encarando o
nazismo no contexto do militarismo prussiano. Em Nuremberga, o procurador
francês François de Menthon mostrou-se pouco à vontade com o próprio
conceito de «crimes contra a humanidade» – preferia a designação de «crimes
contra a paz» – e ao longo do julgamento não fez qualquer referência à
deportação e ao assassínio de judeus(1).
Quase três anos mais tarde, um artigo publicado no jornal Le Monde a 11
de Janeiro de 1948, intitulado «Os sobreviventes dos campos de morte»,
conseguiu referir-se de forma comovente aos «280 000 deportados, 25 000
sobreviventes» sem mencionar uma única vez a palavra «judeu». À luz da
legislação aprovada em 1948, o termo déportés podia apenas ser aplicado a
cidadãos franceses ou residentes deportados por razões políticas ou em
virtude da resistência às forças ocupantes. Não era feita qualquer distinção
relativamente ao campo para onde uma pessoa fora enviada ou ao destino que
aí encontrara. Assim, as crianças judias que eram fechadas em vagões e
enviadas para Auschwitz, terminando nas câmaras de gás, eram referenciadas
nos documentos oficiais como «deportados políticos». Ironicamente, essas
crianças, na sua maioria filhos e filhas de judeus de origem estrangeira,
separadas dos seus pais por polícias franceses, foram homenageadas em
documentos e placas comemorativas como tendo «morrido pela França»(2).
Na Bélgica, os partidos católicos do primeiro parlamento pós-guerra
opuseram-se ao pagamento de qualquer indemnização aos «judeus detidos
apenas por uma questão racial» – que estariam, na sua maioria, segundo foi
sugerido, implicados no mercado negro. Com efeito, na Bélgica, a exclusão
dos judeus de qualquer benefício pós-guerra foi ainda mais longe. Dado que
95% dos judeus deportados da Bélgica eram de origem estrangeira ou
apátridas, uma lei aprovada no pós-guerra decretou que – salvo aqueles que
tivessem lutado nos movimentos organizados de resistência – os judeus
sobreviventes que regressassem à Bélgica depois da guerra não beneficiariam
de auxílio por parte do Estado. Em Outubro de 1944, as autoridades belgas
atribuíram automaticamente a nacionalidade «alemã» a todos os judeus
sobreviventes que não conseguissem provar a sua cidadania belga. Em teoria,
esta decisão acabaria com todas as distinções «raciais» do tempo da guerra –
mas na prática transformou os judeus sobreviventes em inimigos estrangeiros
de facto que podiam ser presos e cujas propriedades foram confiscadas (só
sendo devolvidas em Janeiro de 1947). Estas regras tinham como objectivo
levar os judeus a regressar à Alemanha, agora que já não eram ameaçados
pela perseguição nazi.
Na Holanda, onde, segundo o jornal da resistência holandês Vrij
Nederland, os nazis tinham ficado surpreendidos em face da prontidão com
que os cidadãos locais e líderes civis cooperaram na sua própria humilhação,
os poucos judeus que regressaram foram certamente mal recebidos. Uma
mulher judia, Rita Koopman, lembra-se de ser saudada, aquando do seu
regresso, da seguinte forma: «Muitos de vocês regressaram. Dêem graças por
não terem cá estado – o que nós sofremos com a fome!» De facto, os
Holandeses sofreram bastante com o que ficou conhecido como o «Inverno da
Fome» de 1944-45, e as muitas casas abandonadas, pertencentes aos judeus
deportados, especialmente em Amsterdão, foram uma preciosa fonte de
madeira e outros bens. Mas apesar da cooperação entusiástica dos oficiais
holandeses, durante a guerra, na identificação e detenção dos judeus do país,
as autoridades do pós-guerra – com a consciência tranquila – não se sentiram
na obrigação de corrigir os erros cometidos. Em vez disso, recusaram-se
orgulhosamente a fazer distinção entre os cidadãos holandeses com base em
motivos raciais ou outros, remetendo assim os judeus mortos à invisibilidade
e ao anonimato. Nos anos 50, os primeiros-ministros católicos da Holanda
recusaram-se até a contribuir para um monumento internacional em
Auschwitz, alegando que se tratava de «propaganda comunista».
Na Europa de Leste nunca se fez, obviamente, muita questão de
reconhecer o sofrimento dos judeus, muito menos de o compensar de alguma
maneira. Nos anos imediatamente a seguir ao fim da guerra, os judeus desta
região tinham como única preocupação manter-se vivos. Witold Kula, um
polaco não judeu, escreveu em Agosto de 1946 a respeito de uma viagem de
comboio entre Lodz e Wroclaw onde testemunhou o anti-semitismo sarcástico
face a uma família judaica: «O Polaco de nível intelectual médio não se
apercebe que um judeu na Polónia, hoje, não pode conduzir um automóvel,
não arrisca uma viagem de comboio, não se atreve a deixar os seus filhos irem
a uma visita de estudo; não se pode deslocar até zonas mais remotas, prefere
as grandes cidades às de dimensão média e sabe que é arriscado andar pela
rua depois de anoitecer. Só um herói consegue continuar a viver neste clima
depois de seis anos de tormento.»
Após a derrota da Alemanha, muitos judeus da Europa de Leste
mantiveram a sua estratégia de sobrevivência do tempo da guerra: escondiam
a sua identidade judia dos colegas, vizinhos e até dos filhos, procurando ser
tão assimilados quanto possível no mundo do pós-guerra e tentando aparentar
uma vida normal. E não foi apenas na Europa de Leste. Em França, embora
existissem leis novas que proibiam a retórica anti-semita da vida pública
anterior à guerra, o legado de Vichy persistia. Os tabus ainda não tinham sido
ultrapassados pela nova geração, e comportamentos que viriam mais tarde a
ser condenados eram ainda aceites. Tal como nos anos 30, a esquerda não
estava imune. Em 1948, o deputado comunista Arthur Ramette chamou a
atenção para alguns políticos judeus proeminentes – Léon Blum, Jules Moch,
René Mayer –, confrontando-os com os deputados do seu próprio partido:
«Nós, comunistas, temos apenas nomes franceses» (uma referência tão
inadequada quanto falsa).
Dadas as circunstâncias, a maioria dos judeus europeus escolheu uma de
duas opções: a partida (para Israel, depois da sua formação, ou para a
América, quando voltou a abrir as portas à imigração nos anos 50), ou o
silêncio, procurando tornar-se invisível. Sem dúvida que muitos judeus
sentiam uma necessidade irresistível de falar e dar a conhecer o seu
testemunho. Segundo as suas próprias palavras, Primo Levi sentiu-se
impelido por uma «força narrativa absoluta e patológica» a escrever sobre a
sua própria experiência. Mas o caso de Levi é elucidativo. Quando, em 1946,
submeteu Se Isto É um Homem, a história da sua encarceração em Auschwitz,
à apreciação de Einaudi, um editor italiano de esquerda, a obra foi
imediatamente rejeitada: a narrativa da perseguição e da sobrevivência de
Levi, iniciando-se com a sua deportação por ser judeu e não por ser um
resistente, não estava em conformidade com a Itália e os seus propósitos
superiores de resistência antifascista.
Se Isto É um Homem foi publicado através de uma pequena editora, com
uma tiragem de apenas 2500 exemplares – a maioria dos quais ficou guardada
num armazém em Florença, sendo destruída na grande inundação vinte anos
mais tarde. A história de Levi foi publicada em Inglaterra apenas em 1959,
onde If This Is a Man vendeu apenas algumas centenas de exemplares (a
edição americana, com o título Survival in Auschwitz, teve a mesma sorte,
começando a vender bem apenas vinte anos mais tarde). A Gallimard, a mais
prestigiada das editoras francesas, resistiu durante muito tempo a comprar
qualquer obra de Levi; foi só depois da sua morte em 1987 que o seu trabalho,
e o seu significado, começaram a ser reconhecidos em França. Tal como o seu
tema, Primo Levi continuou praticamente inaudível durante muitos anos:
ninguém o escutava. Em 1955, o autor comentou que se tornara «indelicado»
falar dos campos: «Arriscamo-nos a ser acusados de nos armarmos em
vítimas ou de nos expormos de modo indecente.» Giuliana Tedeschi, outra
italiana sobrevivente de Auschwitz, tinha a mesma opinião: «Encontrei
pessoas que não queriam saber de nada, porque os Italianos, afinal, também
tinham sofrido, mesmo aqueles que não tinham ido para os campos…
Costumavam dizer: ‘Por amor de Deus, tudo isso pertence ao passado’ e, por
isso, calei-me durante muito tempo»(3).
Mesmo na Grã-Bretanha o Holocausto não era discutido em público. Tal
como o campo de concentração emblemático para os Franceses era
Buchenwald, com os seus comités bem organizados de presos políticos
comunistas, também para a Inglaterra do pós-guerra o ícone de um campo
nazi não era Auschwitz, mas Bergen-Belsen (libertado por tropas britânicas);
e os sobreviventes esqueléticos filmados e exibidos em documentários no
final da guerra não foram identificados como sendo caracteristicamente
judeus(4). Também na Grã-Bretanha do pós-guerra os judeus preferiram
manter uma atitude discreta e guardar as suas memórias para si mesmos. Ao
escrever em 1996 sobre a sua infância em Inglaterra como filho de
sobreviventes dos campos, Jeremy Adler recorda que, embora em casa se
falasse abertamente a respeito do Holocausto, o assunto não era abordado em
nenhuma outra circunstância: «Os meus amigos podiam gabar-se de como os
pais tinham combatido com Monty [o marechal Montgomery] no deserto, mas
as experiências do meu próprio pai não podiam ser mencionadas. Não havia
lugar para elas até há muito pouco tempo. Na Grã-Bretanha, o ciclo público
da repressão à obsessão durou cerca de 50 anos»(5).
Em retrospectiva, o carácter universal da negligência é o mais chocante. O
Holocausto dos judeus foi removido da memória não só em países onde
existiam efectivamente boas razões para não se pensar no assunto – como a
Áustria, por exemplo (que tinha apenas um décimo da população da
Alemanha de antes da guerra mas forneceu um em cada dois guardas na
totalidade dos campos), ou a Polónia; mas também na Itália – onde a maior
parte da população não tinha de que se envergonhar – ou na Grã-Bretanha,
onde os anos de guerra foram, sob os restantes aspectos, encarados com
orgulho e até uma certa nostalgia. O rápido começo da Guerra Fria contribuiu,
sem dúvida, para este facto(6). Mas também existiam outras razões. Para a
maior parte dos europeus, a Segunda Guerra Mundial não tivera a ver com os
judeus (excepto quando eram considerados responsáveis pela guerra) e
qualquer sugestão de que o sofrimento judaico pudesse ser alvo de orgulho
nacional suscitava ressentimentos.
O Holocausto era apenas uma das muitas coisas que as pessoas queriam
esquecer: «Nos anos de abundância após a guerra… os europeus refugiaram-
se numa amnésia colectiva» (Hans-Magnus Enzensberger). Entre as
concessões feitas aos administradores fascistas e às forças ocupantes, a sua
colaboração com organizações e dirigentes do tempo da guerra, e as suas
próprias humilhações privadas, dificuldades materiais e tragédias pessoais,
milhões de europeus tinham bons motivos para virar as costas ao passado
recente, ou então recordá-lo numa forma distorcida. Aquilo que o historiador
francês Henry Rousso designaria mais tarde por «síndroma de Vichy» – a
dificuldade, sentida durante várias décadas, em reconhecer o que acontecera
realmente durante a guerra e o desejo de bloquear a memória ou então de lhe
conferir uma outra forma que não corroesse os elos frágeis da sociedade do
pós-guerra – não se verificava apenas em França.
Todos os países europeus ocupados desenvolveram o seu próprio
«síndroma de Vichy». As privações sofridas pelos Italianos durante a guerra,
por exemplo, quer no país, quer em campos de prisioneiros, desviaram a
atenção da opinião pública, alheando-a do sofrimento que os Italianos
causaram a outros – nos Balcãs, por exemplo, ou nas colónias italianas em
África. As histórias que os Holandeses e os Polacos contavam uns aos outros
sobre a guerra serviriam para sustentar a sua auto-imagem nacional durante
décadas – os Holandeses, em particular, criaram uma imagem grandiosa de
um país que resistiu, esforçando-se por esquecer os 23 000 Holandeses que
aderiram voluntariamente às Waffen SS: o maior contigente da Europa
Ocidental. Até a Noruega conseguiu, de algum modo, digerir o facto de mais
de um quinto dos seus oficiais militares terem sido voluntários do neo-nazi
Nasjonal Samling («União Nacional») de Vidkun Quisling, antes ou depois de
Abril de 1940. Mas enquanto a libertação, a resistência e a deportação –
mesmo com derrotas heróicas como Dunquerque ou a revolta de Varsóvia de
1944 – podem ser postas ao serviço de um mito nacional de compensação, o
Holocausto não era «utilizável» para este fim(7).
Sob certos aspectos, foi mais fácil aos Alemães assumir a responsabilidade
e reconhecer a dimensão do seu crime. Não a princípio, claro: já foi referido
como a desnazificação falhou. O ensino da História na antiga República
Federal terminava no império de Guilherme II. Salvo a rara excepção de um
estadista como Kurt Schumacher – que avisou logo em Junho de 1947 os seus
compatriotas de que fariam melhor em aprender «de uma vez por todas a falar
dos judeus na Alemanha e no mundo» – figuras públicas alemãs dos anos 40 e
50 conseguiram evitar qualquer referência à Solução Final. O escritor
americano Alfred Kazin chamou a atenção para a atitude dos seus estudantes
em Colónia, em 1952: para eles, «a guerra tinha terminado. Não devia ser
mencionada. Nem uma palavra foi dita pelos meus alunos a respeito da
guerra». Quando os Alemães da RFA olhavam para trás, era nas memórias do
seu próprio sofrimento que se concentravam: em sondagens realizadas no
final da década de 50, uma maioria esmagadora identificou a ocupação do
pós-guerra por parte dos Aliados como «a pior época das suas vidas».
Como alguns observadores tinham já previsto em 1946, os Alemães
conseguiram distanciar-se com sucesso de Hitler: evitando simultaneamente o
castigo e a responsabilidade moral ao entregar o Führer ao mundo como bode
expiatório. Existia, efectivamente, algum ressentimento relativamente ao que
Hitler tinha feito – mas mais devido ao peso que colocara sobre os ombros
dos Alemães do que propriamente pelo sofrimento causado a terceiros. Na
opinião de muitos Alemães, naqueles anos, o ter escolhido os judeus como
alvos não fora o maior crime de Hitler, mas o seu maior erro: um inquérito
realizado em 1952 mostrou que aproximadamente dois em cada cinco
Alemães da RFA não hesitaram em responder que consideravam que seria
«melhor» para a Alemanha não ter judeus no seu território.
Atitudes deste tipo eram favorecidas pela relativa ausência de referências
próximas que lembrassem as atrocidades nazis; os nazis tinham
cuidadosamente estabelecido os seus principais campos de morte longe do
«Antigo Reich». Não que a proximidade por si só fosse uma garantia de
sensatez. O facto de Dachau ser um subúrbio de Munique, a uma viagem de
eléctrico do centro da cidade, não contribuiu muito para o reconhecimento por
parte da população local do que ali acontecera: em Janeiro de 1948, o
parlamento da Baviera aprovou por unanimidade a conversão do campo nazi
num Arbeitslager, um campo de trabalhos forçados para «elementos anti-
sociais, à margem do mercado de trabalho». Como observou Hannah Arendt
na sua visita à Alemanha em 1950: «Não se verifica em parte alguma reacção
ao que aconteceu, mas é difícil dizer se é devido a uma recusa emocional do
luto ou se se trata da expressão de uma genuína incapacidade emocional.» Em
1955, um tribunal de Frankfurt absolveu um tal Dr. Peters, o director-geral de
uma empresa que fornecia o gás Zyklon-B às SS, declarando que havia
«provas insuficientes» de que o gás tivesse sido utilizado para assassinar
deportados.
Mas, ao mesmo tempo, os Alemães – os únicos na Europa – não podiam
negar o que tinham feito aos judeus. Podiam evitar mencionar o assunto;
podiam insistir no seu próprio sofrimento; podiam transferir a sua culpa para
um «punhado» de nazis. Mas não podiam rejeitar a responsabilidade pela
situação atribuindo o crime de genocídio a outros. O próprio Adenauer,
embora publicamente se limitasse a expressões de solidariedade para com as
«vítimas» do povo judeu, sem nunca mencionar os responsáveis por tais
actos, vira-se forçado a assinar um tratado de indemnizações com Israel. E
embora as memórias de Primo Levi não despertassem qualquer interesse a
Britânicos, Franceses, nem sequer aos seus compatriotas Italianos, O Diário
de Anne Frank (de leitura declaradamente mais acessível) tornou-se a obra
mais vendida da história da Alemanha, com mais de 700 000 livros vendidos
até 1960.
O que desencadeou esta auto-interrogação por parte da Alemanha foi,
como vimos, uma série de julgamentos motivados por investigações tardias
dos crimes alemães na Frente Leste. Iniciando-se em Ulm, em 1958, com
processos contra membros dos «Grupos de Intervenção» do tempo da guerra,
prosseguindo com a detenção e condenação de Adolf Eichmann, e
culminando nos Julgamentos de Frankfurt realizados entre Dezembro de 1963
e Agosto de 1965 de guardas do campo de Auschwitz, estes processos
constituíram a primeira oportunidade, desde o final da guerra, para os
sobreviventes dos campos de concentração falarem publicamente sobre as
suas experiências. Ao mesmo tempo, o Estatuto de Prescrição para os
assassínios na República Federal, fixado em 20 anos, foi alargado (embora
não abolido).
Esta mudança de abordagem foi, em larga medida, determinada por uma
onda de vandalismo anti-semita que ocorreu em finais dos anos 50 e pela
constatação de que os jovens alemães ignoravam por completo tudo o que se
referia ao III Reich: os pais não falavam sobre o assunto e os professores
evitavam-no. No princípio de 1962, dez dos Länder da Alemanha Ocidental
anunciaram que a partir de então a história do período 1933-45 – incluindo o
extermínio dos judeus – seria leccionada em todas as escolas. Assim, a
posição inicial de Konrad Adenauer no que respeitava ao pós-guerra inverteu-
se: a saúde da democracia alemã exigia que o nazismo fosse lembrado, e não
esquecido. E cada vez era dada mais ênfase ao genocídio e aos «crimes contra
a humanidade», em vez dos «crimes de guerra» aos quais o nacional-
socialismo fora inicialmente associado. A nova geração seria posta ao
corrente da natureza – e da escala – das atrocidades nazis. Revistas populares
como a Stern e a Quick não poderiam continuar a minimizar o significado dos
campos, como tinham feito nos anos 50 ou a divulgar os feitos dos nazis
«bons». Começava a impor-se uma certa consciência pública para a qual o
passado recente alemão era simplesmente inaceitável e indecente.
Esta mudança não deve ser exagerada. Durante os anos 60, tanto um
chanceler da Alemanha Ocidental (Kiesinger) como o presidente da
República Federal (Hans Lübke) eram antigos nazis – uma contradição
gritante da auto-imagem promovida pela república de Bona que alguns jovens
comentadores salientaram, como vimos no capítulo 12. E uma coisa era
divulgar a verdade sobre os nazis; outra, substancialmente diferente, era
reconhecer a responsabilidade colectiva do povo alemão, um assunto sobre o
qual a maior parte da classe política permanecia silenciosa. Além disso,
apesar de a percentagem de Alemães da RFA que acreditavam que Hitler teria
sido um dos maiores estadistas da Alemanha «se não fosse a guerra» ter caído
dos 48% em 1955 para 32% em 1967, não se podia dizer que este último
número (ainda que composto sobretudo por inquiridos de mais idade) fosse
tranquilizador.
A verdadeira transformação ocorreu na década seguinte. Uma série de
acontecimentos – a Guerra dos Seis Dias israelo-árabe em 1967, o chanceler
Brandt ajoelhando-se junto ao memorial ao Gueto de Varsóvia, o assassínio
de atletas israelitas nos Jogos Olímpicos de Munique de 1972 e, finalmente, a
exibição da série «O Holocausto» pela televisão alemã em Janeiro de 1979 –
contribuiu para colocar os judeus e o seu sofrimento na agenda pública alemã.
Destes acontecimentos, a série televisiva foi de longe o mais importante. Um
produto típico da televisão comercial americana – uma história simples,
personagens lineares, a narrativa estruturada para causar o máximo impacto
emocional –, a série «O Holocausto» (como foi referido no capítulo 14) foi
abominada pelos cineastas europeus, desde Edgar Reitz a Claude Lanzmann,
que a acusaram de transformar a história alemã numa telenovela americana e
de tornar acessível e compreensível algo que deveria permanecer para sempre
insondável e indizível.
Mas estas limitações contribuíram para o impacto da série. Passou durante
quatro noites consecutivas na televisão nacional da Alemanha Ocidental,
tendo sido vista por aproximadamente 20 milhões de pessoas – mais de
metade da população adulta. A exibição coincidiu com um outro julgamento
de antigos guardas do campo da morte de Majdanek: uma forma de recordar
aos telespectadores que o assunto não estava ainda encerrado. O impacto no
público foi tremendo. Cinco meses mais tarde, o parlamento da RFA aboliu o
Estatuto de Prescrição para o assassínio (convém, todavia, não esquecer que o
futuro chanceler Helmut Kohl se encontrava entre os que votaram contra).
Doravante, os Alemães estariam entre os europeus mais bem informados
sobre a Shoah, fazendo questão de manter bem vivo na memória colectiva o
crime singular cometido pelo seu país. Até 1968 tinham-se registado apenas
471 visitas de estudo a Dachau; no final dos anos 70, este número tinha
excedido, em muito, as cinco mil por ano.
Reconhecer – e assumir publicamente – aquilo que os Alemães tinham
feito aos judeus quatro décadas antes foi um avanço considerável; mas situá-
lo na história da Alemanha e da Europa continuava a ser um dilema difícil
ainda por resolver, como o «conflito dos historiadores» na década de 80 veio
demonstrar. Alguns académicos conservadores, entre os quais o até então
conceituado historiador Ernst Nolte, mostraram algum desconforto perante o
facto de Hitler, o seu movimento e os seus crimes serem tratados como únicos
e sui generis. Para se compreender o nazismo, insistiam, temos de situá-lo no
seu tempo e lugar. Para Nolte, a ascensão do nacional-socialismo e algumas
das suas práticas mais grotescas foram, principalmente, uma resposta ao
bolchevismo: seguiram e, em certa medida, imitaram o exemplo e a ameaça
que representavam Lenine e os seus herdeiros. Esse facto não minimiza os
crimes do nazismo, argumentou Nolte num famoso artigo publicado no
Frankfurter Allgemeine Zeitung em Junho de 1986; mas sem o precedente
bolchevique os referidos crimes não podem ser explicados totalmente. Era
tempo de reconsiderar a era nazi, situando o Holocausto num padrão global de
genocídios modernos.
A reacção a Nolte veio sobretudo de Jürgen Habermas que – como
Enzensberger, Günter Grass e outros elementos da «geração céptica» – tinha
idade para recordar o nazismo e para suspeitar de qualquer tentativa no
sentido de «limitar» as responsabilidade da Alemanha. Argumento absurdo,
responde Habermas a Nolte: não importa «situar» ou «historicizar» o nazismo
– essa é precisamente a tentação a que nenhum alemão poderá voltar a ceder.
O crime nazi – o crime alemão – foi único: único na sua escala, na sua
ambição, na sua maldade desmesurada. A contextualização reclamada por
Nolte, com a sua implícita relativização da responsabilidade alemã, foi
simplesmente proscrita.
No entanto, a postura inflexível de Habermas fixou um padrão a que
poucos dos seus contemporâneos (incluindo os historiadores, que vêem na
comparação e no contexto a alma da sua disciplina) estariam em condições de
aderir por muito tempo. A nova importância do Holocausto no debate público
na Alemanha – culminando nos anos 90 em abundantes demonstrações
oficiais de remorso pelos erros do passado, com os Alemães a entregaram-se
àquilo que o escritor Peter Schneider designou como uma «espécie de ódio
hipócrita de si mesmos» – não poderia durar para sempre. Pedir aos Alemães
de cada nova geração que vivessem para sempre sob a sombra de Hitler, que
assumissem a responsabilidade pela memória da culpa da Alemanha, fazendo
dela a medida da sua identidade nacional, era o mínimo que se podia pedir –
mas era também esperar demasiado.
No resto da Europa Ocidental, o processo de recordação e reconhecimento
teve primeiro de ultrapassar ilusões locais convenientes – um processo que
durou, em regra, duas gerações e muitas décadas. Na Áustria – onde a série
«O Holocausto» foi transmitida apenas dois meses depois de ter passado na
televisão alemã, mas sem o mesmo impacto – foi só quando, em meados dos
anos 80, se tornou público que o presidente Kurt Waldheim estivera implicado
na ocupação brutal da Jugoslávia por parte da Wehrmacht durante a guerra,
que alguns Austríacos começaram a questionar-se de forma séria, embora
ainda pouco sistemática, acerca do passado nazi do seu país. Na verdade, o
facto de Waldheim ter desempenhado anteriormente as funções de Secretário-
Geral das Nações Unidas, sem que ninguém na comunidade internacional se
tivesse incomodado com a sua folha de serviço militar, apenas contribuiu para
alimentar a auto-estima dos Austríacos, seguros dos seus elevados padrões
morais. Afinal, a Áustria já tivera um chanceler de origem judaica (o
socialista Bruno Kreisky), mais do que se podia dizer dos Alemães.
Mas ninguém esperava muito dos Austríacos. A relação tranquila que
mantinham com a sua história recente – na década de 90, aproximadamente
dois em cada cinco austríacos acreditavam que o seu país fora vítima de Hitler
e não seu cúmplice, e 43% afirmavam que o nazismo englobava «aspectos
positivos e negativos» – confirmava os seus próprios preconceitos, bem como
os dos outros(8). A vizinha alpina da Áustria, a Suíça, era outro caso. Durante
os quarenta anos que se seguiram a 1945, a Suíça manteve-se livre do estigma
que lhe valeria o seu papel ao longo da guerra. Não só foi esquecido o enorme
esforço que os Suíços empreenderam para evitar a entrada de judeus no seu
território; pelo contrário, na ficção popular e em filmes um pouco por toda a
parte, o país era representado como um porto seguro e acolhedor para
qualquer pessoa perseguida que chegasse às suas fronteiras. Os Suíços
deleitaram-se na sua consciência tranquila e na admiração invejosa do mundo.
Com efeito, em 1945 havia 28 000 judeus na Suíça – 7000 dos quais já lá
residiam antes de a guerra começar. Os refugiados de guerra viram as suas
licenças de trabalho recusadas – eram sustentados por contribuições de judeus
residentes abastados. Foi só em Junho de 1994 que as autoridades de Berna
reconheceram oficialmente que o pedido da Suíça (dirigido a Berlim em
Outubro de 1938) de que a letra «J» fosse impressa nos passaportes de todos
os Alemães judeus fora um acto de «discriminação racial intolerável». Se este
fosse o único acto a condenar à Suíça, a questão teria passado despercebida –
até porque se Londres e Washington nunca exigiram tal identificação nos
passaportes dos judeus, no que tocou a salvar refugiados judeus, os
procedimentos dos Britânicos e dos Americanos não constituíram motivo de
orgulho. Todavia, os Suíços foram bastante mais longe.
Conforme se tornou lamentavelmente claro no decorrer das investigações
oficiais levadas a cabo ao longo dos anos 90, a Suíça não só traficou ouro
roubado, contribuindo substancialmente para o esforço de guerra da
Alemanha (ver capítulo 3), como as seguradoras e os bancos suíços se
apropriaram, com conhecimento, de quantias obscenas de dinheiro
pertencente a titulares de contas judeus ou aos beneficiários de seguros de
parentes assassinados. Num acordo secreto pós-guerra com a Polónia
comunista – tornado público em 1996 –, Berna ofereceu-se inclusivamente
para entregar as contas bancárias de judeus polacos mortos às novas
autoridades de Varsóvia, em troca de indemnizações pagas a bancos suíços e
empresas expropriadas após a instauração do regime comunista(9). À medida
que este tipo de provas começou a vir a público, a reputação envernizada da
Suíça estalou, e as indemnizações, subsídios e «fundos das vítimas»
(concedidos com relutância) não conseguirão repará-la tão cedo. Um artigo
publicado a 13 de Setembro de 1996 no jornal alemão Die Zeit – dizendo que
a Suíça fora finalmente apanhada pela «longa sombra do Holocausto» – foi
um considerável embate para a Schadenfreude, mas era a pura verdade.
A camada de verniz da Holanda do tempo da guerra – o país onde se
supunha que quase toda a gente «resistira» e fizera o seu melhor para impedir
os planos dos Alemães – foi abalada e desacreditada um pouco mais cedo, e
por iniciativa local. Em meados da década de 60, vários volumes de histórias
oficiais da Segunda Guerra Mundial forneceram informação em abundância
acerca da experiência vivida pela Holanda ao longo da guerra, referindo-se
inclusivamente à deportação, mas evitando deliberadamente responder às
questões de quem, como e porquê relativamente à questão dos judeus em
particular. De qualquer modo, poucas pessoas os leram. No entanto, em Abril
de 1965, um historiador holandês – Jacob Presser – publicou Ondergang, a
primeira história completa do extermínio dos judeus holandeses; vendeu 100
000 exemplares só nesse ano e causou um enorme interesse público no
tema(10). Pouco depois, seguiu-se-lhe uma avalanche de documentários
televisivos e outros programas sobre a ocupação em tempo de guerra – um
dos quais, De bezetting («A Ocupação») seria transmitido durante mais de
duas décadas – e por uma mudança da tendência oficial. Foi em 1965 que um
governo holandês se ofereceu, pela primeira vez, para contribuir para o
memorial em Auschwitz – embora tenham sido necessários mais sete anos
para a Holanda concordar finalmente em pagar aos judeus deportados
sobreviventes a pensão que fora atribuída a resistentes e outras vítimas nazis
desde 1947.
Tal como sucedeu na Alemanha, o interesse dos Holandeses pelo seu
passado oculto foi desencadeado pelos julgamentos israelitas e alemães da
década de 60. E na Holanda, à semelhança do que aconteceu noutros países, a
geração do baby boom do pós-guerra mostrava-se curiosa a respeito do
passado histórico recente, e céptica relativamente à história contada – ou
melhor, não contada – pela «geração silenciosa» dos seus pais. As mudanças
sociais da década de 60 ajudaram a abrir fendas no muro do silêncio oficial
acerca da ocupação: o derrube de tabus sociais e sexuais – que em algumas
regiões da Holanda, nomeadamente Amsterdão, teve consequências
profundamente desestabilizadoras para uma sociedade até então conservadora
– trouxe consigo a suspeita face a outras práticas e truísmos herdados. Para
um novo conjunto de leitores, o texto central do Holocausto holandês – O
Diário de Anne Frank – era agora lido sob uma luz bem diferente: afinal,
Anne e a sua família foram traídos e entregues aos Alemães pelos seus
vizinhos holandeses.
Em finais do século, os anos 1940-45 tinham-se tornado o período mais
estudado da história holandesa. Todavia, embora a verdade acerca da
colaboração dos Holandeses na identificação, detenção, deportação e morte
dos seus concidadãos judeus tenha vindo a público nos anos 60, demorou
muito até que todas as suas implicações fossem assumidas: foi só em 1995
que um chefe de Estado em funções – a rainha Beatriz – reconheceu
publicamente a tragédia dos judeus holandeses, durante uma visita a Israel.
Foi talvez só em meados da década de 90, com a imagem dos soldados
armados da ONU mantendo-se placidamente à parte e permitindo o assassínio
de 7000 muçulmanos às mãos da milícia sérvia em Srebrenica, que a lição
finalmente ficou clara ao país. Um debate nacional há muito adiado acerca do
preço pago pelos Holandeses em troca da sua herança de ordem, cooperação e
obediência podia finalmente ter início.
Em sua defesa, os Holandeses – como os Belgas, os Noruegueses, os
Italianos (depois de Setembro de 1943) e a maior parte do Leste europeu
ocupado – podiam argumentar que, por muito vergonhosa que tivesse sido a
cooperação individual de burocratas, polícias e outros com as autoridades
ocupantes, a iniciativa veio sempre de instância superiores: dos Alemães. Este
argumento não é tão válido como em tempos se julgou e, em alguns lugares –
nomeadamente em territórios como a Eslováquia ou a Croácia (ou a Hungria,
nos últimos meses da guerra) onde governos-fantoches locais puseram em
prática os seus próprios projectos criminosos – nunca passou de uma meia-
verdade. Mas na Europa Ocidental ocupada, com uma única excepção
impressionante, não havia regimes locais acreditados pelo povo, não havia
governos nacionais incontestavelmente legítimos para exercer a autoridade e,
assim, inteiramente responsáveis pelas suas acções. Os Alemães não
poderiam ter feito aquilo que fizeram na Noruega, na Bélgica ou da Holanda
ocupadas sem a colaboração das populações locais (no único país – a
Dinamarca – onde a colaboração foi negada, os judeus sobreviveram). Mas
em todos estes casos eram os Alemães que davam as ordens.
A excepção é, claro, a França. E é a memória incompleta, há muito negada
e torturada da memória da guerra da França – do regime de Vichy e do seu
papel cúmplice e pró-activo nos projectos nazis, sobretudo na Solução Final –
que corroeu os esforços de toda a Europa no sentido de enfrentar a Segunda
Guerra Mundial e o Holocausto. Não é que a França se tenha portado pior.
Simplesmente, era a França que tinha mais importância. Até 1989, Paris – por
razões apresentadas neste livro – era ainda a capital intelectual e cultural da
Europa: talvez mais do que em qualquer outro momento depois do Segundo
Império. A França era também, de longe, o Estado mais influente da Europa
Ocidental continental, graças ao feito notável de Charles De Gaulle, que
estabeleceu o seu país nos corredores do poder internacional. E foi a França –
os estadistas franceses, as instituições francesas e os interesses franceses –
que levaram por diante, sob as suas próprias condições, o projecto para um
continente unido. Até a França poder olhar o seu passado de frente, uma
sombra continuaria a pairar sobre a nova Europa – a sombra de uma mentira.
O problema de Vichy pode ser colocado em termos simples. O regime do
marechal Pétain assumira o poder em Julho de 1940 mediante a votação do
último parlamento da III República; tornou-se, assim, o único regime em
tempo de guerra a poder reclamar uma certa forma de continuidade, ainda que
artificial, das instituições democráticas pré-guerra. Pelo menos até ao fim de
1942, uma esmagadora maioria da população francesa encarava Vichy e as
suas instituições como a autoridade legítima em França. E para os Alemães,
Vichy era tremendamente conveniente – poupou-lhes a dificuldade de instalar
o seu próprio regime de ocupação, com os elevados custos inerentes, num
país com a dimensão da França, ao mesmo tempo que lhes fornecia tudo
aquilo de que precisavam para um tal regime: aceitação passiva da derrota,
«indemnizações de guerra», matérias-primas, mão-de-obra barata… e muito
mais.
Vichy fez mais do que acomodar-se a si e aos seus súbditos à derrota da
França e governar o seu país em função da conveniência dos Alemães. Com
Pétain e o seu primeiro-ministro, Pierre Laval, no poder, a França deu início
aos seus próprios projectos colaboracionistas: nomeadamente a introdução em
1940 e 1941 do Decreto Anti-Semita, sem qualquer pressão por parte
Alemanha, e o esquema segundo o qual seriam as próprias autoridades
francesas a deter a população judaica do país (começando pelos judeus de
origem estrangeira residentes no país), de forma a perfazer os números
exigidos pelas autoridades nazis à medida que a Solução Final era preparada.
Graças a esta afirmação bem-sucedida da autonomia administrativa francesa,
a maioria dos judeus deportados de França nunca chegou sequer a ver um
uniforme estrangeiro até ser entregue aos Alemães nos campos de trânsito de
Drancy (a norte de Paris) para um último percurso até Auschwitz. Até aí, o
esquema estava apenas em mãos francesas.
Depois da Libertação, apesar de todas as acusações públicas lançadas
sobre Pétain e os seus colaboradores, a contribuição do seu regime para o
Holocausto praticamente não foi mencionada, e em circunstância alguma
pelas autoridades francesas propriamente ditas. Não é só o facto de os
Franceses terem conseguido abafar «Vichy» num qualquer canto da memória
nacional depois desactivado; é também o não terem estabelecido uma ligação
entre Vichy e Auschwitz. Vichy traíra a França. Os colaboradores tinham
cometido traição e crimes de guerra. Mas «crimes contra a humanidade» era
algo que não fazia parte do léxico jurídico francês. Era uma questão exclusiva
dos Alemães.
Esta situação mantinha-se ainda passadas duas décadas. Quando o autor do
presente livro estudou história francesa no Reino Unido em finais dos anos
60, a bibliografia académica sobre a França de Vichy quase não considerava o
problema dos judeus. Os «estudos de Vichy» em França e não só
debruçavam-se sobre a questão de o regime de Pétain ser «fascista» ou
reaccionário, e discutiam até que ponto o mesmo representava uma
continuidade ou uma ruptura com o passado republicano do país. Havia ainda
uma escola respeitável de historiadores franceses que defendiam que o
«escudo» de Pétain protegera a França da «polonização» – como se Hitler
tencionasse tratar as suas conquistas ocidentais com a ferocidade bárbara que
vitimou o Leste. E todo e qualquer questionamento do mito de uma
resistência heróica à escala nacional estava fora de causa – na historiografia
como na vida nacional.
Nesse período, a única concessão por parte das autoridades francesas à
mudança de perspectiva que se fazia sentir no exterior surgiu em 1964,
quando a Assembleia Nacional incorporou, tardiamente, a categoria de
«crimes contra a humanidade» (definida pela primeira vez nos acordos de
Londres a 8 de Agosto de 1945) na lei francesa, declarando-os
imprescritíveis. Mas também nada disto tinha a ver com Vichy. Foi uma
resposta ao Julgamento de Auschwitz que então tinha lugar em Frankfurt, e
destinava-se a facilitar qualquer acção judicial em solo francês contra
indivíduos (alemães ou franceses) pelo seu envolvimento directo no
extermínio levado a cabo pelos nazis. Até que ponto estas medidas estavam
longe da decisão oficial de reabrir a questão da responsabilidade colectiva da
França foi algo que se tornou claro em 1969, quando o governo proibiu a
televisão francesa de transmitir Le Chagrin et la Pitié de Marcel Ophuls.
O filme de Ophuls, um documentário acerca da ocupação de Clermont-
Ferrand no centro de França, baseava-se em entrevistas feitas a indivíduos
franceses, britânicos e alemães. Quase não abordava a questão do Holocausto
e pouco se detinha no regime de Vichy: o tema abordado era a venalidade
instalada e o colaboracionismo diário dos anos da guerra – Ophuls estava a
afastar o véu da história de resistência que tão útil se tornara no pós-guerra.
Mas até isto era demais para as autoridades do último ano da presidência de
De Gaulle. E não só para as autoridades: quando o filme foi exibido
finalmente dois anos mais tarde, não na televisão nacional mas num pequeno
cinema do Quartier Latin em Paris, houve quem ouvisse uma mulher de meia-
idade comentar, à saída do cinema: «Uma vergonha… Mas o que é que se
havia de esperar? Ophuls é judeu, não é?»
É um facto digno de nota que, em França, e apenas em França, os passos
no sentido de um compromisso mais sério com a história do tempo da guerra
foram dados por historiadores estrangeiros, dois dos quais – Eberhard Jäckel
na Alemanha e Robert Paxton nos EUA, cujos trabalhos foram publicados
entre finais dos anos 60 e meados dos anos 70 – foram os primeiros a utilizar
fontes alemãs para demonstrar até que ponto os crimes de Vichy couberam à
iniciativa francesa. Este não era um assunto com o qual um académico de
origem francesa se sentisse à vontade para lidar: 30 anos depois da Libertação
da França, os sentimentos nacionais estavam ainda profundamente sensíveis.
Ainda em 1976, ao tomar conhecimento dos detalhes de uma exposição
planeada em memória das vítimas francesas em Auschwitz, o Ministère des
Anciens Combattants (Ministério dos Antigos Combatentes) exigiu que se
procedesse a algumas alterações – os nomes da lista «careciam de uma
ressonância devidamente francesa»(11).
Como tantas vezes se verificou na França nesses anos, sentimentos deste
tipo tinham mais a ver com orgulho ferido do que com que puro racismo. Em
1939, a França ainda era uma potência internacional de primeiro plano.
Contudo, em apenas três décadas sofrera uma devastadora derrota militar,
uma ocupação humilhante, dois processos de descolonização sangrentos e
(em 1958) uma mudança de regime na forma de um quase golpe de Estado.
La Grande Nation acumulara tantas perdas e humilhações desde 1914 que a
tendência, como uma espécie de compensação, para afirmar a honra nacional
na primeira ocasião possível estava já profundamente enraizada. Episódios
vergonhosos – ou pior – eram prontamente afastados da memória. Afinal,
Vichy não era a única coisas que os Franceses tinham pressa de esquecer –
ninguém queria falar das «guerras sujas» da Indochina e da Argélia, muito
menos da tortura aí praticada pelo exército.
A partida de De Gaulle mudou pouco a este respeito, embora uma geração
mais nova de Franceses e Francesas mostrasse pouco interesse pela glória
nacional e não aderisse pessoalmente aos mitos da história francesa recente.
Nos anos seguintes, é certo que a França tomou uma progressiva consciência
do Holocausto, mostrando-se mais sensível ao sofrimento dos judeus em geral
– em parte graças ao ultraje que resultou da famosa conferência de imprensa
de De Gaulle em 27 de Novembro de 1967, na sequência da vitória de Israel
na Guerra dos Seis Dias, quando o presidente francês se referiu aos judeus
como sendo «um povo seguro de si e tirânico». E o documentário de 1985,
Shoah, assinado pelo realizador francês Claude Lanzmann, teve um impacto
dramático no público francês, apesar de se centrar quase exclusivamente no
extermínio dos judeus no Leste (ou talvez por isso mesmo).
No entanto, e embora os historiadores franceses – na esteira dos seus
colegas estrangeiros – estivessem agora a colocar acima de quaisquer dúvidas
a esmagadora responsabilidade dos dirigentes franceses do tempo da guerra
pelo destino dos judeus deportados de solo francês, a posição oficial da
França permaneceu inalterável. De Georges Pompidou (presidente de 1969 a
1974), passando por Valéry Giscard d’Estaing (1974-1981), até François
Mitterrand (1981-1995), o mote manteve-se: o que quer que tivesse sido feito
no tempo do governo de Vichy ou pelo governo de Vichy, só a Vichy dizia
respeito. Vichy podia ter ocorrido em França e sido obra de alguns Franceses,
mas era um parêntesis autoritário na história da República Francesa. Por
outras palavras, Vichy não era a «França», pelo que a consciência pública da
França estava tranquila.
O presidente Mitterrand, o último chefe de Estado francês a ter vivido a
experiência da Segunda Guerra Mundial em idade adulta (nasceu em 1916),
tinha razões particulares para manter a sua distinção jesuítica. Sendo um
antigo funcionário público de Vichy, Mitterrand construiu a sua subsequente
carreira política ocultando, em larga medida, as cedências e ambiguidades da
sua própria biografia e projectando essas ambiguidades no país como um
todo. O presidente evitava qualquer referência a Vichy em cerimónias
públicas; e embora nunca se mostrasse relutante em falar do Holocausto em
termos gerais – quer em Jerusalém, em 1982, quer em França, no 50.o
aniversário da rusga de 1942 em que foram detidos 12 884 judeus parisienses
–, nunca aludiu ao facto de este ser um assunto em que a França tivesse
dívidas a saldar.
O tabu que Mitterrand consolidou, personificou e teria certamente levado
consigo para o túmulo foi finalmente quebrado (como tantas vezes neste
assunto) por uma série de julgamentos. Em 1994, ao fim de quase 50 anos a
esconder-se, Paul Touvier – um activista na Milícia de Vichy no tempo da
guerra – foi preso e levado a julgamento pelo assassínio de sete judeus
franceses em Junho de 1944, perto de Lyon. Em si mesmo, Touvier não era
particularmente importante: uma peça na máquina de Vichy, um colaborador
de Klaus Barbie, o responsável da Gestapo em Lyon que fora capturado e
julgado em 1987. Mas o julgamento de Touvier – e as provas que surgiram a
respeito da colaboração das autoridades de Vichy com a Gestapo e o seu papel
na deportação e no assassínio de judeus – serviram como uma espécie de
substituição para outros julgamentos que nunca se realizaram: nomeadamente
o de René Bousquet, o administrador da polícia de Vichy. O processo movido
contra Bousquet, que em 1942 negociou pessoalmente com as autoridades
alemãs a entrega de judeus, poderia ter dado à França a oportunidade de
confrontar a verdade acerca de Vichy. E não apenas Vichy, já que Bousquet,
depois da guerra, vivera impunemente durante muitas décadas em França,
protegido por amigos em altos cargos – incluindo o próprio Mitterrand.
Contudo, antes de ser levado a julgamento, Bousquet foi convenientemente
assassinado (por um «doido») em Junho de 1993.
Na sequência da condenação de Touvier, e na ausência de Bousquet, a
magistratura francesa reuniu finalmente a coragem (depois da morte de
Mitterrand) para acusar, prender e levar a julgamento outra figura importante,
Maurice Papon. Tendo sido durante algum tempo ministro e comandante da
polícia de Paris durante a presidência de De Gaulle, Papon tinha assumido o
cargo de secretário-geral da região administrativa de Bordéus durante a
guerra. Tratava-se de um posto puramente burocrático, e o facto de ter
passado por Bordéus ao serviço de Pétain não se revelara impedimento para a
carreira bem-sucedida de Papon, após a guerra, como funcionário público. No
entanto, no tempo em que estivera em Bordéus, Papon fora directamente
responsável pela autorização da prisão e envio dos judeus da região para
Paris, de onde tinham em seguida sido deportados. Foi por este acto – agora
definido na lei francesa como crime contra a humanidade – que Papon foi
levado a tribunal em 1997.
O julgamento de Papon, que durou seis meses, não revelou dados novos –
excepto, talvez, no que se referia ao próprio homem, que demonstrou uma
impressionante falta de piedade ou remorso. E é claro que o julgamento
aconteceu 50 anos mais tarde do que deveria: demasiado tarde para castigar
Papon, já octogenário, pelos seus crimes; demasiado tarde para vingar as suas
vítimas; e demasiado tarde para salvar a honra do seu país. Foram vários os
historiadores franceses chamados a testemunhar que declinaram aparecer. A
sua tarefa, declararam, era contar e explicar o que acontecera em França 50
anos antes, não fazer valer esse conhecimento num processo criminal(12). Mas
o julgamento foi, ainda assim, esclarecedor. Demonstrou de forma conclusiva
que a distinção entre «Vichy» e «França», tão cuidadosamente traçada por
todos desde De Gaulle a Mitterrand, nunca existira de facto. Papon era um
francês que servira o regime de Vichy e a subsequente República Francesa:
num e noutro caso, as suas actividades na prefeitura de Bordéus eram
conhecidas, e em nenhum dos dois lhes foi atribuída qualquer importância.
Por outro lado, Papon não era o único – na verdade, tanto o homem como
os seus actos eram bastante comuns. Como tantos outros, tudo o que ele fizera
fora assinar as sentenças de morte de pessoas que nunca conhecera e a cujo
destino era indiferente. O mais interessante no caso de Papon (como no de
Bousquet) era o facto de ter sido preciso meio século para a função pública
francesa o localizar nos seus meandros – e o motivo de, já bem perto do final
do século, a crosta de silêncio ter sido finalmente aberta. Existem muitas
explicações possíveis, mas nem todas elas honram a classe política francesa e
os meios de comunicação social do país. Contudo, o passar do tempo,
juntamente com o significado psicológico do final de uma era, foi talvez o
mais decisivo.
Enquanto esteve no poder, François Mitterrand encarnou a incapacidade
nacional de falar abertamente a respeito da vergonha da ocupação. Com a
partida de Mitterrand, tudo mudou. O seu sucessor, Jacques Chirac, tinha
apenas 11 anos de idade quando a França foi libertada em 1944. Poucas
semanas depois de ter ocupado o cargo, no 53.o aniversário da mesma
detenção de judeus parisienses relativamente à qual Mitterrand sempre se
mostrara tão circunspecto, o presidente Chirac quebrou um tabu de 50 anos e
reconheceu formalmente, pela primeira vez, o papel do seu país no extermínio
dos judeus europeus. Dez anos mais tarde, a 15 de Março de 2005, no Museu
do Holocausto em Jerusalém, inaugurado pouco antes, o primeiro-ministro de
Chirac, Jean-Pierre Raffarin, declarou solenemente: «La France a parfois été
le complice de cette infamie. Elle a contracté une dette imprescriptible qui
l’oblige». «A França foi por vezes cúmplice desta infâmia. Contraiu uma
dívida que nunca poderá saldar».
Em finais do século XX, o Holocausto era uma questão central na
identidade da Europa Ocidental e a memória parecia a salvo. Sem dúvida que,
ocasionalmente, determinados indivíduos e organizações – «revisionistas» –
insistiam na tentativa de mostrar que o extermínio em massa dos judeus não
poderia ter acontecido (embora esta posição fosse mais comum na América
do Norte que na Europa propriamente dita). Todavia, estas pessoas estavam
circunscritas a franjas políticas extremas – e a sua insistência na
impossibilidade técnica do genocídio prestava, involuntariamente,
homenagem à enormidade do crime nazi. No entanto, a forma generalizada
como os europeus agora reconheciam, ensinavam e assinalavam a perda dos
seus judeus colocava outros riscos.
Em primeiro lugar, havia o perigo do aparecimento de uma tendência
oposta. Em momentos pontuais, até os políticos alemães de partidos
dominantes expressavam frustração perante o fardo da culpa nacional – já em
1969, o líder da União Social-Cristã da Baviera, Franz-Josef Strauss
desabafou em público, dizendo que «um povo que alcançou um tal sucesso
económico tem o direito de não continuar a ouvir falar em ‘Auschwitz’». Os
políticos, claro, têm as suas razões(13). Mas o que deixou, talvez, transparecer
de modo mais evidente a iminência de uma mudança na postura cultural foi a
necessidade que se fez sentir no início do século XXI de recuperar a questão
do sofrimento dos Alemães, depois de anos de atenção pública dedicada aos
judeus vitimados.
Artistas e críticos – entre os quais se destaca Martin Walser,
contemporâneo de Habermas e uma voz influente na República Federal do
pós-guerra – começavam agora a discutir um outro passado com o qual
faltava lidar: não o extermínio dos judeus, mas a outra vertente subestimada
da história recente da Alemanha. Por que razão, perguntavam, não deveremos,
ao fim de tantos anos, falar das cidades alemãs que foram incendiadas, ou até
da verdade incómoda de que a vida na Alemanha de Hitler (para os Alemães)
estava longe de ser desagradável, pelo menos até aos últimos anos da Segunda
Guerra Mundial? Porque devemos, em vez disso, falar daquilo que a
Alemanha fez aos judeus? Esse assunto já foi debatido durante décadas;
tornou-se uma rotina, um hábito. A República Federal é uma das nações mais
assumidamente filo-semitas do mundo; durante quanto tempo mais teremos
nós (Alemães) de nos sentir incomodados? Livros novos acerca dos «crimes
dos Aliados» – o bombardeamento de Dresden, o incêndio provocado em
Hamburgo e o afundamento, durante a guerra, de navios com refugiados
alemães (o tema de Im Krebsbang, um romance de 2002 de Günter Grass) –
foram um sucesso de vendas.
Em segundo lugar, o novo relevo dado ao Holocausto nos registos oficiais
do passado europeu encerrava ainda o perigo de um tipo de distorção
diferente. Com efeito, a verdade realmente dura acerca da Segunda Guerra
Mundial é que aquilo que aconteceu aos judeus entre 1939 e 1945 não foi de
modo algum tão importante para a maioria dos protagonistas como as
sensibilidades mais recentes gostariam de fazer crer. Se muitos europeus
tinham conseguido ignorar durante décadas o destino dos seus vizinhos
judeus, tal não se deveu a facto de estarem consumidos pela culpa ou a tentar
reprimir memórias insuportáveis, mas porque – excepto nas mentes de um
punhado de nazis em cargos elevados – a Segunda Guerra Mundial não tinha
a ver com os judeus. Mesmo para os nazis, o extermínio de judeus era parte
de um projecto mais ambicioso de purificação e organização racial.
A tentação compreensível de descortinar nos anos 40 o conhecimento e as
emoções que se generalizaram meio século mais tarde convida a reescrever o
relato histórico: colocando o anti-semitismo no centro da história europeia.
De que outra forma, afinal, poderemos explicar o que se passou na Europa ao
longo daqueles anos? Mas este procedimento é demasiado fácil – e, de certa
forma, demasiado reconfortante. Vichy foi aceitável para a maioria dos
Franceses depois da derrota de 1940, não porque lhes agradasse viver sob um
regime que perseguia os judeus, mas porque o governo de Pétain lhes permitia
continuar com as suas vidas numa ilusão de segurança e normalidade, com
um mínimo de perturbação. O modo como o regime tratava os judeus era
indiferente: os judeus não tinham assim tanta importância. E o mesmo se
aplicava à maior parte dos restantes territórios ocupados.
Hoje podemos considerar esta indiferença chocante – um sintoma de uma
falha grave no estado moral da Europa na primeira metade do século XX. E
devemos recordar que houve, também, em todos os países europeus, quem
efectivamente tivesse visto o que estava a acontecer aos judeus e tivesse feito
tudo ao seu alcance para ultrapassar essa indiferença face aos seus
concidadãos. Mas se ignorarmos a referida indiferença e supusermos em vez
disso, que a maioria dos restantes europeus viveu a experiência da Segunda
Guerra Mundial da mesma forma que os judeus – como uma
Vernichtungskrieg, uma guerra de extermínio –, então estamos a deturpar a
memória. Olhando para trás, «Auschwitz» é o dado mais importante que
temos relativamente à Segunda Guerra Mundial. Mas a perspectiva da época
era diferente.
A perspectiva do Leste europeu era também diferente. Para os europeus de
Leste, tardiamente libertados, em 1989, das interpretações oficiais comunistas
da Segunda Guerra Mundial, a preocupação fin-de-siècle do Ocidente face ao
Holocausto dos judeus encerra implicações algo inquietantes. Por um lado,
depois de 1945, o Leste europeu tinha, para além da Europa Ocidental, muito
mais a recordar – e a esquecer. Os judeus eram em número bem mais elevado
na metade oriental da Europa, e aí morreram também em maior número; o
extermínio decorreu, sobretudo, nesta região e a população local esteve
bastante mais implicada no processo. Contudo, por outro lado, verificou-se
por parte das autoridades pós-guerra um cuidado bastante mais sistemático no
apagar da memória pública do Holocausto. Não é que os horrores e crimes da
guerra no Leste tenham sido minimizados – pelo contrário, foram
repetidamente recitados pela retórica oficial e sacralizados em memoriais e
manuais em todo o lado. Simplesmente, os judeus não faziam parte da
história.
Na Alemanha de Leste, onde o fardo da responsabilidade pelo nazismo foi
exclusivamente imputado aos herdeiros de Hitler da Alemanha Ocidental, o
novo regime indemnizou, não os judeus, mas a União Soviética. Nos manuais
escolares da RDA, Hitler era apresentado como um instrumento do
monopólio dos capitalistas que se apropriavam de territórios e começavam
guerras com objectivos comerciais. O «Dia da Memória» instituído por
Walter Ulbricht em 1950 destinava-se a homenagear não as vítimas de Hitler,
mas 11 milhões de pessoas que tinham morrido a «combater contra o
fascismo de Hitler». Antigos campos de concentração em solo da RDA –
nomeadamente Buchenwald e Sachsenhausen – foram durante algum tempo
convertidos em «campos de isolamento especial» para prisioneiros políticos.
Muitos anos mais tarde, depois de Buchenwald ter sido transformado num
memorial, o guia do local descrevia os objectivos do «fascismo alemão»
como sendo os de «destruição do marxismo, vingança pela guerra perdida e
terror brutal contra todos os resistentes». Na mesma brochura, fotografias da
rampa de selecção em Auschwitz tinham na legenda uma citação do
comunista alemão Ernst Thälmann: «A burguesia está determinada em
aniquilar o partido e toda a vanguarda da classe operária»(14). Este texto
manteve-se até à queda do comunismo.
A mesma versão dos acontecimentos corria por toda a Europa comunista.
Na Polónia, não era possível negar ou minimizar o que acontecera nos
campos de extermínio em Treblinka, Majdanek ou Sobibor. Porém, alguns
destes lugares já não existiam – os Alemães tinham-se esforçado ao máximo
para apagá-los da paisagem antes de fugirem ao Exército Vermelho, que
avançava. E onde as provas sobreviveram – como em Auschwitz, a apenas
alguns quilómetros de Cracóvia, a segunda cidade da Polónia – foi-lhe
posteriormente atribuído um significado diferente. Embora 93% dos cerca de
1,5 milhões de pessoas assassinadas em Auschwitz fossem de raça judia, o
museu criado no local sob o regime comunista pós-guerra registou as vítimas
apenas por nacionalidade: polaca, húngara, alemã, etc. As crianças polacas,
em visitas de estudo, contemplavam de facto as fotografias chocantes;
mostravam-lhes os amontoados de sapatos, cabelos e óculos. Mas ninguém
lhes dizia que a maioria deles pertenciam a judeus.
Sem dúvida que havia o Gueto de Varsóvia, cuja vida e morte foi de facto
assinalada no local onde o gueto existira. Mas a revolta dos judeus de 1943
foi afastada da memória da Polónia pelo motim dos próprios Polacos em
Varsóvia um ano mais tarde. Na Polónia comunista, ninguém negava o que os
Alemães tinham feito aos judeus, mas o assunto não era muito debatido. O
«reaprisionamento» da Polónia por parte dos Soviéticos, juntamente com a
convicção largamente difundida de que os judeus tinham visto com satisfação
e até facilitado o estabelecimento do comunismo, turvou a recordação que o
povo guardava da ocupação alemã. Em qualquer dos casos, o sofrimento dos
próprios Polacos durante a guerra desviou a atenção do Holocausto dos
judeus, e de certa forma opôs-se-lhe: o problema da «vitimização
comparativa» iria inquinar as relações entre Polacos e judeus durante muitas
décadas. A justaposição era sempre inadequada. Três milhões de Polacos (não
judeus) morreram na Segunda Guerra Mundial; um número
proporcionalmente mais baixo do que a taxa de mortalidade em algumas
partes da Ucrânia ou entre os judeus, mas ainda assim impressionante. No
entanto, havia uma diferença. Para os Polacos, era difícil sobreviver sob a
ocupação alemã, mas, em princípio, era possível. Para os judeus, era possível
sobreviver sob a ocupação alemã – mas, em princípio, não conseguiam.
Onde um regime-fantoche local tinha colaborado com os seus senhores, as
suas vítimas recebiam a devida homenagem. Mas pouca atenção se prestava
ao facto de se tratar, na sua esmagadora maioria, de judeus. Havia categorias
nacionais («Húngaros») e, acima de tudo, categorias sociais
(«trabalhadores»), mas rótulos de natureza étnica ou religiosa eram
cuidadosamente evitados. A Segunda Guerra Mundial (como vimos no
capítulo 6) foi caracterizada e encarada como uma guerra antifascista; a sua
dimensão racista foi ignorada. Depois de 1968, o governo da Checoslováquia
foi ao ponto de mandar pintar as paredes da sinagoga Pinkus em Praga para
encobrir as inscrições dos nomes dos judeus checos mortos na Shoah.
Ao tentar distorcer a história recente nesta região, as autoridades
comunistas pós-guerra puderam, sem dúvida, contar com um persistente
sentimento antisemita – uma das razões pelas quais se deram ao trabalho de
suprimir provas do mesmo (durante os anos 70, a censura polaca proibia
sistematicamente alusões ao anti-semitismo do país no período entre as
guerras). Contudo, se os europeus de Leste, em retrospectiva, prestavam
menos atenção à tragédia dos judeus, não foi porque fossem indiferentes na
altura, ou estivessem preocupados com a sua própria sobrevivência. Foi, sim,
porque os comunistas eram causa de sofrimento e injustiça que bastasse, pelo
que não era necessário constituir uma outra camada de ressentimentos e
memórias.
Entre 1945 e 1989, a acumulação de deportações, detenções, julgamentos
encenados e «normalizações» fizeram com que quase toda a gente no bloco
soviético perdesse alguém ou fosse cúmplice na perda de alguém.
Apartamentos, lojas e outras propriedades obtidas devido à morte de judeus
ou à expulsão de Alemães foram, com demasiada frequência, expropriadas
alguns anos mais tarde em nome do socialismo – pelo que, após 1989, a
questão da compensação por perdas do passado tornou-se irremediavelmente
confusa em termos de datas. Deveriam as pessoas ser recompensadas por
aquilo que tinham perdido quando os comunistas assumiram o poder? E, caso
a restituição tivesse lugar, quem seriam os beneficiários? Aqueles que tinham
ficado na posse dos bens em 1945, apenas para os perderem poucos anos mais
tarde? Ou deveria a restituição ser feita aos herdeiros daqueles cujos negócios
e apartamentos tinham sido confiscados ou roubados algures entre 1938 e
1945? Mas quando, exactamente? 1938? 1939? 1941? Havia, relativamente a
cada data, definições sensíveis em termos de legitimidade étnica, bem como
de precedência moral(15).
Verificavam-se, além disso, dilemas peculiares à história interna do
comunismo propriamente dito. Deveriam os responsáveis pela vinda dos
tanques russos que tinham esmagado a revolução húngara ou posto fim à
Primavera de Praga de 1968 ser julgados por isso? Imediatamente a seguir às
revoluções de 1989, muitos eram desta opinião. Mas algumas das suas vítimas
eram antigos líderes comunistas. Quem merecia a atenção da posteridade?
Camponeses eslovacos ou húngaros anónimos privados da sua propriedade,
ou apparatchiks comunistas que os tinham expulsado para acabarem como
vítimas alguns anos mais tarde? Que vítimas – que memórias – deveriam ter
prioridade? A quem cabia decidir?
A queda do comunismo trouxe, assim, na sua esteira uma torrente de
memórias amargas. Debates acesos sobre o que fazer com os ficheiros
secretos da polícia eram apenas uma dimensão do problema (ver capítulo 21).
O verdadeiro problema era a tentação de ultrapassar a memória do
comunismo invertendo-o. O que em tempos fora a verdade oficial estava
completamente desacreditado – e tornava-se, para todos os efeitos,
oficialmente falso. No entanto, o romper dos tabus tem os seus próprios
riscos. Antes de 1989, todos os anticomunistas tinham sido rotulados de
«fascistas». Mas se o «antifascismo» fora apenas outra mentira comunista, era
agora tentador encarar com simpatia ou até predilecção todos os
anticomunistas até então desacreditados, incluindo os fascistas. Escritores
nacionalistas dos anos 30 voltaram a estar na moda. Parlamentos pós-
comunistas em diversos países aprovaram moções homenageando o marechal
Antonescu da Roménia e os seus homólogos nos Balcãs e na Europa Central.
Odiados ainda pouco antes como sendo nacionalistas, fascistas e
colaboradores dos nazis, iriam agora ter estátuas erguidas em nome do seu
heroísmo aquando da guerra (o parlamento romeno foi ao ponto de conceder a
Antonescu um minuto de silêncio).
Outros tabus caíram por terra juntamente com a retórica desacreditada do
antifascismo. O papel do Exército Vermelho e da União Soviética podia agora
ser discutido a uma outra luz. Os Estados bálticos recém-libertados exigiam
que Moscovo reconhecesse a ilegalidade do Pacto Molotov-Ribbentrop e a
destruição unilateral da sua independência. Tendo finalmente (em Abril de
1995) conseguido que os Russos reconhecessem que os 23 000 oficiais
polacos assassinados na floresta de Katyn tinham na verdade sido mortos pela
NKVD e não pela Wehrmacht, a Polónia exigiu o acesso total dos seus
investigadores aos arquivos russos. Em Maio de 2005, nenhum dos pedidos
parece estar em vias de ser concedido pelas autoridades russas e as memórias
continuam a gerar inquietação (16).
Os Russos, por sua vez, tinham também as suas memórias. Sob a
perspectiva dos países-satélites, a versão soviética da história recente era
palpavelmente falsa; mas para muitos Russos encerrava alguma verdade. A
Segunda Guerra Mundial foi uma «Grande Guerra Patriótica»; os soldados e
civis soviéticos foram, em números absolutos, as suas maiores vítimas; o
Exército Vermelho libertou realmente uma grande parte do Leste europeu dos
horrores do domínio alemão; e a derrota de Hitler foi uma fonte de pura
satisfação e alívio para a maioria dos cidadãos soviéticos – e não só. Depois
de 1989, muitos Russos ficaram genuinamente surpreendidos perante a
aparente ingratidão de nações anteriormente amigáveis, que tinham sido
libertadas em 1945 do jugo alemão graças aos sacrifícios de soldados
soviéticos.
Ainda assim, a memória russa estava dividida. Na verdade, essa divisão
assumiu uma forma institucional, com a constituição de duas organizações
civis que viriam a propor relatos críticos mas diametralmente opostos do
passado comunista do país. Memorial foi fundada em 1987 por dissidentes
liberais com o objectivo de apurar e publicar a verdade a respeito da história
soviética. As preocupações específicas dos seus membros eram a violação dos
direitos humanos e a importância de reconhecer o que fora feito no passado
por forma a evitar a sua recorrência no futuro. Pamiat’, constituída dois anos
antes, pretendia também recuperar e honrar o passado (o seu nome significa
«memória» em russo), mas essa é a única semelhança que une as duas
organizações. Os fundadores de Pamiat’, dissidentes anticomunistas mas
longe de serem liberais, queriam apresentar uma versão melhorada do passado
russo: purificado das «mentiras» soviéticas, mas igualmente livre de outras
influências estranhas à herança russa, sobretudo a dos «sionistas». Passados
poucos anos, Pamiat’ estendera-se à política nacionalista, utilizando a história
negligenciada e «maltratada» da Rússia como arma contra os desafios e os
intrusos «cosmopolitas».
A política das memórias oprimidas – ainda que estas diferissem em termos
de pormenor ou fossem até contraditórias – constituía o último laço existente
entre o antigo centro soviético e os seus territórios imperiais. Havia um
ressentimento partilhado face à forma como a comunidade internacional
subestimava os seus sofrimentos e perdas do passado. Que dizer das vítimas
do Gulag? Por que razão não tinham sido compensadas e homenageadas
como as vítimas e os sobreviventes da opressão nazi? E os milhões de pessoas
para quem a opressão nazi da guerra se tornara logo em seguida na opressão
comunista pós-guerra? Por que motivo o Ocidente se alheara da situação?
O desejo de nivelar o passado comunista e de o acusar em bloco – de
interpretar tudo, de Lenine a Gorbachev, como uma história linear de ditadura
e crime, uma narrativa linear de regimes e repressões impostas por agentes
externos ou perpetradas em nome do povo por autoridades não representativas
– acarretava outros riscos. Em primeiro lugar, eliminar os entusiasmos e os
compromissos genuínos de décadas anteriores não era verdadeira história. Em
segundo, a nova ortodoxia tinha implicações políticas contemporâneas. Se os
Checos – ou os Croatas, ou os Húngaros, ou quaisquer outros – não tinham
desempenhado papel activo no lado sombrio do seu passado recente; se a
história europeia de Leste desde 1939 – ou, no caso da Rússia, de 1917 a 1991
– era exclusivamente obra de terceiros, então todo esse período se tornava
uma espécie de parêntesis na história nacional: comparável ao papel atribuído
a Vichy na consciência da França do pós-guerra, mas cobrindo um período de
tempo consideravelmente mais extenso e um arquivo ainda mais terrível de
más memórias. E as consequências seriam semelhantes: em 1992, as
autoridades checoslovacas proibiram um documentário acerca do assassínio
de Reinhard Heydrich em Praga, do festival de cinema Karlovy Vary, por
considerarem que o filme mostrava imagens inaceitáveis dos Checos
demonstrando apoio ao regime nazi do tempo da guerra.
Com a redefinição da memória pós-comunista no leste da Europa, o tabu
de estabelecer a comparação entre comunismo e nazismo começou a perder o
sentido. Na verdade, políticos e académicos começaram a insistir nessas
comparações. No Ocidente, esta justaposição permanecia controversa. Não
estava em questão a comparação directa entre Hitler e Estaline: poucos
discutiam a monstruosidade de ambos os ditadores. Mas a sugestão de que o
próprio comunismo – antes e depois de Estaline – devia ser colocado na
mesma categoria do fascismo ou do nazismo trazia implicações perturbadoras
ao passado ocidental, e não apenas na Alemanha. Para muitos intelectuais
europeus do ocidente europeu, o comunismo era uma variante falhada de uma
herança progressista comum. Contudo, para a elite intelectual da Europa
Central e de Leste, era uma aplicação local bem-sucedida das patologias
criminosas do autoritarismo do século XX e devia ser lembrado dessa forma.
A Europa podia estar unida, mas a memória europeia continuava
profundamente assimétrica.
A solução do Ocidente para as memórias difíceis da Europa foi gravá-las,
literalmente, na pedra. Nos primeiros anos do século XXI, tinham surgido um
pouco por toda a Europa, de Estocolmo a Bruxelas placas, memoriais e
museus em homenagem às vítimas do nazismo. Em alguns casos, como
vimos, eram versões melhoradas ou «corrigidas» de referências existentes;
mas muitas delas eram novas. Algumas aspiravam a uma função
assumidamente pedagógica: o Monumento ao Holocausto inaugurado em
Paris em Janeiro de 2005 combinava duas referências existentes, o «Memorial
ao Mártir Judeu Desconhecido» e um «Centro de Documentação Judaica
Contemporânea». Acrescido de um muro de pedra onde se encontram
gravados os nomes de 76 000 judeus deportados de França para campos de
morte nazis, o local ecoava simultaneamente o Memorial do Vietname nos
EUA e – em menor escala – as ambições do Museu do Memorial ao
Holocausto em Washington, ou o Yad Vashem em Jerusalém. A grande
maioria de instalações deste tipo era de facto dedicada – em parte ou
inteiramente – à memória do Holocausto: a mais impressionante de todas foi
inaugurada em Berlim, a 10 de Maio de 2005.
A mensagem explícita da última série de memoriais contrasta fortemente
com a ambiguidade e a falsidade de uma geração anterior de comemorações
lapidares. O memorial de Berlim, ocupando uma imponente área de 19 000
metros quadrados adjacente à Porta de Bradenburgo, é o mais explícito de
todos eles: longe de comemorar ecumenicamente as «vítimas do nazismo», é
assumidamente um «Memorial aos Judeus assassinados da Europa»(17). Na
Áustria, jovens objectores de consciência podiam agora escolher substituir o
serviço militar por um período no Gedenkdienst («Serviço Comemorativo»,
estabelecido em 1991), um programa financiado pelo Estado, trabalhando nas
principais instituições relativas ao Holocausto como estagiários e guias. Não
há dúvida de que os europeus do Ocidente – principalmente os Alemães – têm
agora muitas oportunidades de confrontar o horror do seu passado recente em
toda a sua dimensão. Como o chanceler alemão Gerhard Schroeder relembrou
ao seu auditório no 60.o aniversário da libertação de Auschwitz, «a memória
da guerra e o genocídio fazem parte da nossa vida. Nada mudará esse facto:
estas memórias são parte da nossa identidade».
Noutros lugares, contudo, pairam ainda sombras. Na Polónia, onde um
Instituto da Memória Nacional recentemente estabelecido se esforçou por
incentivar a investigação académica séria de temas históricos controversos, a
contrição oficial pela forma como a Polónia tratou a minoria de judeus na sua
população levantou sérias objecções. Estas foram tristemente exemplificadas
na reacção do Prémio Nobel da Paz e herói do Solidariedade, Lech Walesa, à
publicação em 2000 do livro de Jan Tomasz Gross, intitulado Vizinhos, o
estudo influente realizado por um historiador americano de um massacre,
durante a guerra, de judeus pelos seus vizinhos polacos: «Gross», queixou-se
Walesa numa entrevista na rádio, estava a tentar semear a discórdia entre
Polacos e judeus. Era um «escritor medíocre… um judeu a tentar fazer
dinheiro».
A dificuldade de incorporar a destruição dos judeus na memória
contemporânea da Europa pós-comunista tem uma ilustração elucidativa na
experiência da Hungria. Em 2001, o governo de Viktor Orban dedicou um dia
à memória do Holocausto, a ser comemorado anualmente a 16 de Abril (o
aniversário do estabelecimento em 1944 de um gueto em Budapeste). Três
anos mais tarde, o sucessor de Orban no cargo de primeiro-ministro, Peter
Medgyessy, inaugurou um memorial erguido às vítimas do holocausto (numa
casa de Budapeste onde em tempos estiveram detidos judeus). Todavia, este
centro está quase vazio na maior parte do tempo; as suas exposições e
descrições são vistas por escassos visitantes – muitos dos quais estrangeiros.
Entretanto, do outro lado da cidade, os Húngaros concentram-se na
Terrorhaza.
A Terrorhaza («Casa do Terror»), como o seu nome sugere, é um museu
de horrores. Conta a história da violência, tortura repressão e ditadura do
Estado na Hungria de 1944 a 1989. As datas são significativas. Tal como é
apresentada às crianças e a outros visitantes que percorrem as suas sombrias
reproduções ao estilo Tussaud das celas de prisão, equipamentos de tortura e
câmaras de interrogatório que em tempos aí tiveram lugar, a versão
Terrorhaza da história húngara não faz distinção entre os criminosos do
partido Cruzes-Flechas de Ferenc Szálasi, que esteve no poder entre Outubro
de 1944 a Abril de 1945, e o regime comunista instalado depois da guerra.
Contudo, os homens da Cruzes-Flechas – e o extermínio de 600 000 judeus
húngaros para o qual contribuíram activamente – são representados por
apenas três salas. O resto do edifício, de tamanho considerável, é dedicado a
um catálogo copiosamente ilustrado e claramente tendencioso dos crimes do
comunismo.
A mensagem transmitida, e não propriamente de forma subliminar, é a de
que comunismo e fascismo são equivalentes. Mas, na verdade, não é o que se
verifica: a apresentação e o conteúdo da Terrorhaza de Budapeste deixa
bastante claro que, aos olhos dos responsáveis pelo museu, o comunismo não
só durou mais, como foi muito mais nocivo do que o seu antecessor nazi. Para
muitos Húngaros de uma geração mais velha, esta noção torna-se ainda mais
plausível por ser concordante com a sua própria experiência. E a mensagem
foi confirmada pela legislação pós-comunista na Hungria que proibia a
apresentação pública de todas as representações do passado não democrático
do país: não só o símbolo da cruz suástica ou da Cruzes-Flechas, mas também
a até então ubíqua estrela vermelha, acompanhada da foice e do martelo. Em
vez de analisar as diferenças entre os regimes representados por estes
símbolos, a Hungria – nas palavras do primeiroministro Orban, na
inauguração da Casa do Terror de Budapeste a 24 de Fevereiro de 2002 –
simplesmente «bateu com a porta na cara do enfermo século XX».
Mas não é assim tão fácil fechar essa porta. A Hungria, como o resto da
Europa Central e de Leste, está ainda presa aos acontecimentos(18). Os
mesmos Estados bálticos que forçaram Moscovo a reconhecer a forma
incorrecta como os tinha tratado demoraram bastante a questionar-se sobre as
suas próprias responsabilidades: desde que alcançaram a sua independência,
nem a Estónia, nem a Letónia ou a Lituânia moveram um único processo
contra os criminosos de guerra sobreviventes. Na Roménia – apesar do
reconhecimento do antigo presidente Iliescu da participação do seu país no
Holocausto – o «Memorial das Vítimas do Comunismo e da Resistência
Anticomunista» inaugurado em Sighet em 1997 (e patrocinado pelo Conselho
Europeu) prestou homenagem a activistas da Guarda de Ferro do período
entre as guerras e do tempo da guerra e a outros fascistas e anti-semitas
romenos, agora reciclados como mártires da perseguição comunista.
Em defesa da sua insistência na «equivalência», os comentadores na
Europa de Leste podem recorrer ao culto da «vítima» na cultura política
ocidental contemporânea. Estamos a transitar da história dos vencedores para
a história das vítimas, segundo observam. Pois bem, sejamos então coerentes.
Mesmo que o nazismo e o comunismo sejam totalmente distintos nos seus
objectivos – mesmo que, na formulação de Raymond Aron, «haja uma
diferença entre uma filosofia cuja lógica é monstruosa e outra à qual possa ser
dada uma interpretação monstruosa» –, essa diferença dificilmente servirá de
consolação às suas vítimas. O sofrimento humano não deve ser calibrado
segundo os objectivos dos perpetradores. Nesta perspectiva, para aqueles que
aí são castigados ou mortos, um campo comunista não é melhor nem pior que
um campo nazi.
Do mesmo modo, a ênfase nos «direitos» (e na compensação pela sua
violação) na jurisprudência e na retórica política internacional da actualidade
forneceu um argumento para aqueles que sentem que o seu sofrimento e as
suas perdas não foram reconhecidos – nem compensados. Na Alemanha,
alguns conservadores, seguindo a deixa da condenação internacional da
«limpeza étnica», retomaram as reivindicações das comunidades alemãs
expulsas das suas terras no final da Segunda Guerra Mundial. Por que razão,
perguntam, deveriam ser considerados menos vítimas que os outros?
Certamente, o que Estaline fez aos Polacos – ou, mais recentemente, o que
Milosevic fez aos Alabaneses – não foi diferente, na sua essência, daquilo que
o presidente Benes da Checoslováquia fez aos Alemães dos Sudetas depois da
Segunda Guerra Mundial…? Nos primeiros anos do novo século, falava-se,
em círculos respeitáveis, em criar em Berlim ainda outro memorial: um
«Centro Contra as Expulsões», um museu dedicado a todas as vítimas de
limpeza étnica.
Esta última nota, sugerindo que todas as formas de vitimação colectiva são
essencialmente comparáveis, até permutáveis, devendo por esse motivo
receber igual homenagem, desencadeou uma refutação enérgica por parte de
Marek Edelman, o último comandante sobrevivente da revolta do Gueto de
Varsóvia, quando assinou uma petição em 2003 opondo-se ao centro
proposto. «Que homenagem! Será que eles sofreram assim tanto? Porque
perderam as suas casas? Claro que é triste uma pessoa ser forçada a
abandonar a sua casa e a sua terra. Mas os judeus perderam as suas casas e
todos os seus parentes. As expulsões implicam sofrimento, mas há tanto
sofrimento neste mundo. As pessoas doentes sofrem, e ninguém constrói
monumentos em sua honra» (Tygodnik Powszechny, 17 de Agosto de 2003).
A reacção de Edelman é um exemplo oportuno dos riscos que corremos ao
entregarmo-nos demasiado ao culto da comemoração – e a confundirmos
perpetradores com vítimas no objecto da nossa atenção. Por um lado, não
existe limite, em princípio, para as memórias e experiências que merecem ser
recordadas. Por outro, prestar homenagem ao passado erguendo edifícios e
museus é também uma forma de o restringir e até de o negligenciar –
deixando a responsabilidade da memória a outros. Enquanto existissem
homens e mulheres que realmente se lembrassem, por experiência pessoal,
talvez isso não importasse. Mas agora, como relembrou Jorge Semprún, de 81
anos de idade, aos outros sobreviventes no 60.o aniversário da libertação de
Buchenwald a 10 de Abril de 2005, «o ciclo da memória activa está a fechar-
se».
Ainda que a Europa pudesse de alguma forma agarrar-se indefinidamente
à memória viva de crimes do passado – e é esse o propósito, todavia
inadequado, dos memoriais e museus – não haveria grande interesse nisso. A
memória é intrinsecamente conflituosa e tendenciosa: aquilo que um homem
reconhece é o que outro omite. E não serve como guia para o passado. A
primeira Europa do pós-guerra foi construída sobre uma falha de memória
deliberada – elegendo o esquecimento como modo de vida. Desde 1989, a
Europa ergueu-se, como forma de compensação, sobre um excesso de
memória: a rememoração pública institucionalizada tornou-se a própria
fundação da identidade colectiva. A primeira Europa não poderia resistir – tal
como não poderá a segunda. Uma certa medida de negligência e até
esquecimento é condição necessária para a saúde cívica.
Não se trata aqui de advogar a amnésia. Uma nação precisa de lembrar
algo antes de poder começar a esquecê-lo. Até entenderem Vichy como aquilo
que de facto foi – e não como tinham escolhido encará-lo –, os Franceses não
podiam ultrapassar a questão e seguir em frente. O mesmo se aplica aos
Polacos na sua recordação distorcida dos judeus que em tempos viveram entre
eles. O mesmo se poderá dizer também da Espanha, que nos 20 anos que se
seguiram à sua transição para a democracia ocultou sob um véu a memória
dolorosa da guerra civil. A discussão pública sobre essa guerra e o seu
resultado só agora começam a surgir(19). Foi só depois de os Alemães terem
analisado e digerido a enormidade do seu passado nazi – um ciclo de 60 anos
de negação, educação, debate e consenso – que puderam começar a viver com
ele: i.e., deixá-lo para trás.
O instrumento do processo de relembrar não foi, em nenhum destes casos,
a memória propriamente dita. Foi a História, em ambas as suas acepções:
enquanto passagem do tempo e enquanto estudo profissional do passado –
este último, principalmente. O mal, sobretudo o mal à escala praticada pela
Alemanha nazi, nunca poderá ser suficientemente relembrado. A própria
monstruosidade do crime torna incompleta a sua assimilação pela
memória(20). O facto de ser intrinsecamente implausível – a própria
dificuldade de o conceber em retrospectiva – abre a porta para a diminuição e
para a negação. Sendo impossível de recordar como foi realmente, fica
automaticamente sujeito a ser relembrado sob uma forma falsa. Contra este
desafio, a memória revela-se impotente: «Só o historiador, com a sua austera
paixão pelos factos, provas e indícios imprescindíveis à sua disciplina, pode
efectivamente manter-se vigilante»(21).
Ao contrário da memória, que se confirma e consolida, a história contribui
para o desencantamento do mundo. A maior parte daquilo que tem para
oferecer é desagradável, podendo até causar perturbação – razão pela qual
nem sempre é prudente em termos políticos usar o passado como um bastão
moral destinado a punir um povo pelos seus erros dos passado. Mas a história
precisa, efectivamente, de ser conhecida – e periodicamente reconhecida.
Numa anedota popular da era soviética, um ouvinte liga para a «Rádio
Arménia» colocando uma pergunta: «Será possível», pergunta, «prever o
futuro?» Resposta: «Sim, não há problema. Sabemos exactamente como vai
ser o futuro. O nosso problema é o passado, que está sempre a mudar».
Assim é – e não apenas nas sociedades totalitárias. De qualquer modo, a
investigação e o questionamento acerca das diversas versões do passado
europeu – e o lugar ocupado por cada uma delas na percepção que os
europeus têm de si mesmos – foi uma das fontes e dos feitos não celebrados
da unidade europeia das últimas décadas. Trata-se, contudo, de um feito que
incorrerá em erro se não for constantemente renovado. A história bárbara
recente da Europa, o sombrio «outro» contra o qual a Europa do pós-guerra
foi cuidadosamente construída, foi profundamente alterada para os europeus
mais jovens. No espaço de uma geração, os memoriais e museus estarão
cobertos de pó – visitados, como os campos de batalha da Frente Ocidental
hoje em dia, apenas por simpatizantes.
Se no futuro tivermos de recordar por que pareceu tão importante construir
um determinado tipo de Europa a partir do crematório de Auschwitz, só a
História nos poderá ajudar. A nova Europa, unida pelos sinais e símbolos do
seu terrível passado, é uma vitória notável; mas permanece hipotecada nesse
passado. Se os europeus estão determinados a manter este vínculo
fundamental – se o passado da Europa continuar a projectar no futuro um
significado admonitório e um propósito moral – então terá de ser ensinado do
princípio a cada nova geração. A «União Europeia» será, talvez, uma resposta
à História, mas nunca poderá substituí-la.
-
(1) O procurador americano Telford Taylor sentiu-se chocado com este facto, considerando-o em
retrospectiva, mas reconhece que nem se apercebeu do mesmo na altura – uma confissão reveladora.
Ver Telford Taylor, The Anatomy of the Nuremberg Trials (NY, 1992), p. 296.

(2) Na cidade de Pithiviers, perto de Orleães, onde crianças judias detidas em Paris aguardavam para
ser enviadas para leste, foi erigido um monumento em 1957 com a inscrição A nos déportés morts pour
la France («Aos nossos deportados que morreram pela França»). Foi só em 1992 que a Câmara
Municipal colocou uma nova placa, mais precisa, ainda que menos tranquilizante: «Em memória das
2300 crianças judias detidas no campo de Pithiviers de 19 de Julho a 6 de Setembro de 1942, antes de
serem deportadas e assassinadas em Auschwitz».

(3) Giuliana Tedeschi é citada por Nicola Caracciolo em Uncertain Refuge: Italy and the Jews
During the Holocaust (University of Illinois Press, 1995), p. 121.

(4) Na Grã-Bretanha do pós-guerra, era frequente dizer-se de uma pessoa invulgarmente magra ou
com ar doente que parecia «ter saído de Belsen». Em França, algumas «casas do terror» em parques de
diversões tinham o nome de «Buchenwalds», para incitar ao voyeurismo e atrair clientela.

(5) Ver The Times Literary Supplement de Outubro de 1996. No que se referia ao Holocausto, os
judeus não foram o primeiro povo na Grã-Bretanha a optar pela discrição. O governo de Churchill do
tempo da guerra decidiu não utilizar informação acerca dos campos de morte na sua propaganda contra
a Alemanha com receio de acentuar sentimentos anti-semitas – já bem perceptíveis em algumas zonas
de Londres, conforme apuraram os Serviços de Informações.

(6) Especialmente na América. Em 1950, a Comissão para as Pessoas Deslocadas do Congresso


Americano declarou que «As unidades Waffen SS do Báltico devem ser consideradas separadamente,
dado terem um objectivo, uma ideologia, actividades e qualificações distintas das SS alemãs. Assim, a
Comissão não as considera como sendo um movimento hostil ao governo dos EUA». As Waffen SS do
Báltico estiveram entre as unidades mais entusiastas e brutais quando se tratou de torturar e matar
judeus na Frente Leste; no entanto, nas novas circunstâncias da Guerra Fria, tratava-se dos «nossos»
nazis. Agradeço ao Professor Daniel Cohen da Universidade de Rice esta informação.

(7) Excepto em Israel, naturalmente.

(8) Em Outubro de 1991, na sequência da profanação de túmulos do cemitério judeu de Viena, uma
sondagem inquiriu os Austríacos relativamente à sua atitude face aos judeus: 20% consideravam que os
«cargos de autoridade» deviam ser vedados aos judeus; 31% declararam que não queriam ter um judeu
como vizinho; 50% mostraram-se prontos a concordar com a afirmação: «Os judeus são responsáveis
pela perseguição de que foram alvo no passado».

(9) Os Polacos acederam de boa vontade – para este efeito, Varsóvia não viu impedimento em definir
os judeus como Polacos…

(10) Ondergang foi publicado em inglês em 1968, com o título de The Destruction of the Dutch
Jews.

(11) Ver Sonia Combe, Archives interdites: Les peurs françaises face à l’histoire contemporaine
(Paris: Albin Michel, 1994), p. 14.

(12) O Professor Paxton da Universidade de Columbia, que iniciara a sua investigação histórica dos
crimes de Vichy quase um quarto de século antes (quando a maioria dos seus colegas se dedicava a
outros temas), adoptou uma visão menos monástica da sua vocação profissional e prestou um
importante depoimento.

(13) Quando o presidente dos EUA, Ronald Reagan, numa visita à Alemanha Ocidental em 1985, foi
aconselhado a evitar uma visita ao cemitério militar em Bitburg (local onde se encontram numerosas
sepulturas das SS) e, em vez disso, a prestar homenagem a um campo de concentração, o chanceler
Kohl escreveu a avisá-lo de que esse gesto «teria consequências psicológicas sérias nos sentimentos
amistosos do povo alemão pelos Estados Unidos». Os Americanos capitularam; Reagan visitou Belsen e
Bitburg…

(14) Citado por Ian Buruma em «Buchenwald», Granta 42, 1992.

(15) Quando o parlamento checoslovaco votou, em 1991, para restituir a propriedade confiscada
após a guerra, limitou explicitamente os benefícios aos expropriados após 1948 – de forma a excluir os
Alemães dos Sudetas expulsos em 1945-46, antes de os comunistas terem chegado ao poder.

(16) Com o presidente Putin no poder, a Rússia continua a insistir que os Estados bálticos foram
libertados pelo Exército Vermelho, após o que se juntaram voluntariamente às Repúblicas Socialistas
Soviéticas.

(17) O memorial foi algo polémico: para além dos que não apreciaram a sua concepção abstracta,
houve quem, incluindo o presidente da câmara democrata-cristão, Eberhard Diepgen, o criticasse por
ajudar a tornar Berlim na «capital do arrependimento».

(18) Em Março de 2004, 84 escritores húngaros, incluindo Péter Esterházy e György Konrád,
abandonaram o Sindicato dos Escritores em protesto contra a tolerância da organização face ao anti-
semitismo. A situação foi desencadeada pelos comentários do poeta Kornel Döbrentei na sequência da
atribuição do Prémio Nobel da Literatura ao sobrevivente do Holocausto Imre Kertész. Segundo
Döbrentei, o prémio destinava-se a «comprar o alívio da consciência» face a um escritor que estava
apenas a ceder ao «gosto pelo terror» da sua «minoria».

(19) A última estátua de Franco em Madrid foi discretamente retirada de madrugada, perante cerca
de uma centena de espectadores, a 17 de Março de 2005.

(20) «Nós, os sobreviventes, não somos as verdadeiras testemunhas… Somos… uma minoria
anómala: somos aqueles que, pelos seus enganos, os seus atributos ou a sua boa sorte não tocaram no
fundo. Aqueles que o fizeram, aqueles que viram a Górgona, não regressaram para contar, ou
regressaram mudos.» Primo Levi, The Drowned and the Saved (NY, 1988), pp. 83-84.
(21) Yosef HayimYerushalmi, Zakhor: Jewish History and Jewish Memory (Seattle, 1982), p.116.
Créditos das Fotografias
Extratexto I
Página 1, em cima (cadáveres de Bergen-Belsen): George Rodger/ Time
Life/Getty Images; em baixo (vingança soviética, 1946): AKG Images.
Página 2, em cima (julgamento de Mihailovic, 1946): John Philiips/Time
Life/Getty Images; em baixo (vingança francesa, 1944): Bettmann/Corbis.
Página 3, em cima (escassez de carvão, Londres, 1947): Harry Todd/Fox
Photos/Getty Images; em baixo (balcões da Previdência, Londres, 1946):
Topical Press Agency/Getty Images.
Página 4, em cima (chegada do açúcar da Ajuda Marshall); Edward
Miller/Keystone/Getty Images; ao meio (Ajuda Marshall, Grécia):
Bettmann/Corbis; em baixo (cartoon, a URSS a recusar a Ajuda Marshall):
Alain Gesgon/CIRIP.
Página 5, em cima (golpe de Estado checo, 1948): Bettmann/Corbis; ao meio
(a Jugoslávia de Tito), 1948): Walter Sanders/Time Life/Getty Images; em
baixo (o bloqueio de Berlim, 1948): AKG Images.
Página 6, em cima (Schuman, Bevin e Acheson): Keystone/Getty Images; em
baixo (Estaline com uma criança): Wostok Press.
Página 7, em cima (revolta de Berlim, 1953): AKG Images, ao meio
(julgamento de Rajk, 1949): Bettmann/Corbis; em baixo (trabalhadores no
Gulag, 1949-53): Wostok Press.
Página 8, em cima (Sartre em Leninegrado, 1954): AFP/Getty Images; em
baixo (Aron na Rádio Europa Livre, 1952): Archives familiales, Raymond
Aron, Radio Free Europe.
Extratexto II
Página 1, em cima (Krushchev na URSS): Wostok Press, ao meio (Nagy,
Tildy e Maleter): AFP/Getty Images; em baixo (a construir o Muro de Berlim,
1961): AKG Images.
Página 2, em cima (cartaz de Fassbinder): Ronald Grant Archive; em baixo
(Adenauer e o Muro de Berlim, 1961): AKG Images.
Página 3, em cima (os Holandeses a saírem da Indonésia, 1949):
Magnum/Henri Cartier Bresson; em baixo (prisioneiros franceses, Indochina,
1954): Gamma (J.C. Labbe Collection/Katz Pictures.
Página 4, em cima (protesto sobre o Suez, 1956): ECPAD; ao meio (De
Gaulle ao poder, 1958): Loomis Dean/Time Life/Getty Images; em baixo
(cartaz da OAS): Alain Gesgon/CIRIP.
Página 5, em cima (Belgas a saírem do Congo, 1960): Gamma/Keystone/Katz
Pictures; em baixo (o Império Britânico por Vicky, 1962): Vicky/Evening
Standard 6.12.1962/Centre for the Study of Cartoons & Caricature,
University of Kent.
Página 6, em cima (carro na Checoslováquia, 1959): Bettmann/Corbis; ao
meio (mulheres a verem um carro na Grã-Bretanha, 1960); Magnum/Bruce
Davidson; em baixo (Bardot à beira-mar): George W. Hales/Getty Images.
Página 7, em cima (planeamento urbano em Glasgow, 1953): Haywood
Magee/Getty Images: ao meio (Teddy Boys, 1955): Popperfoto; em baixo
(Beatles, 1964): John Leongard/Time Life/Getty Images.
Página 8, em cima (greve dos estudantes franceses, 1968): Magnum/Bruno
Barbey; ao meio (trabalhadoras italianas em greve, 1969): Bettman/Corbis;
em baixo (Primavera de Praga, 1968): Bettman/Corbis.
Extratexto III
Página 1, em cima (cartaz do Baader-Meinhof): AKG Images; em baixo
(terroristas das Brigadas Vermelhas) Bettman/corbis.
Página 2, em cima (terroristas da ETA, 1982): Magnum/Harry Gruyaert; em
baixo (crianças em Belfast, 1976): David Factor/Corbis.
Página 3, em cima (emigrante português, França, 1970): J. Pavlosky/Rapho;
em baixo (protesto de mulheres italianas por causa do divórcio, 1974):
Contrasto/Katz Pictures.
Página 4, em cima (Juan Carlos e Franco, 1971): Bettman/Corbis; em baixo
(mulher lisboeta a vender jornais): Magnum/Jean Gaumy.
Página 5, em cima (Brandt em Erfurt, 1970): AKG Images; em baixo
(Mitterrand e Thatcher, 1984): Bryn Colton/Assignments
Photographers/Corbis.
Página 6, em cima (João Paulo II na Polónia, 1970); Topham Picture Library;
ao meio (Michnik em Gdansk, 1984): Wostok Press; em baixo (Gorbachev em
Praga, 1987): Peter Turnley/ Corbis.
Página 7, em cima (comboio com refugiados da Alemanha de Leste): Marc
Deville/Gamma/Katz Pictures; ao meio (protesto estudantil em Praga, 1989):
Lubomir Kotek/AFP/Getty Images; em baixo (Havel e Dubcek, 1989): Chris
Niedenthal/Time Life/Getty Images.
Página 8 (estátua de Lenine, Hungria, 1990): Wostok Press.
Extratexto IV
Página 1, em cima (Yeltsin e Gorbachev, 1991): Wostok Press; em baixo
(McDonald’s em Moscovo, 1990): Sergei Guneyev/Time Life/Getty Images.
Página 2, em cima (os efeitos de Chernobyl, Bielorússia): Magnum/Paul
Fusco; ao meio (o desastre do Mar de Aral, 1997): Magnum/Francesco
Zizola; em baixo (manifestação na Ucrânia, 1991): Alain
Nogues/Sygma/Corbis.
Página 3, em cima (ciganos pobres, Bucareste, 1996): Wostok Press: ao meio
(tráfico sexual de mulheres da Europa de Leste, 2002): Sasha
Bezzubov/Corbis; em baixo (a NATO numa feira na Hungria, 1997): Wostok
Press.
Página 4, em cima (comemorações sérvias de 1389-1989, 1989): Wostok
Press; ao meio (vala comum do massacre de Srebrenica): Danilo
Krstanovic/Reuters; em baixo (refugiados albaneses, 1999): David
Brauchli/Getty Images.
Página 5, em cima (a Turquia e a UE, 2004): European Press Photo
Agency/Kerim Okten; em baixo (cartaz francês contra a UE): Alternative
Libertaire.
Página 6, em cima (Haider, 1995): Viennareport/Sygma/Corbis; ao meio
(Kjaersgaard, 1998): Dean Francis/Sugma/Corbis; em baixo (Blair e a
reforma do Serviço Nacional de Saúde, 2004): David Bebber/Reuters/Corbis.
Página 7, em cima (Marroquinos em Espanha, 2000): J.M.
Bendich/Sygma/Corbis; em baixo (imigrantes somalis em Itália, 1997):
Magnum/John Vink.
Página 8, em cima (Chirac nas comemorações): Jacques
Langevin/Sygma/Corbis; em baixo (Schröder nas comemorações): Arnd
Wiegmann/Reuters.
Índice remissivo
A
Abbas, Ferhat
Abetz, Otto
Abono de família
Abordagem big bang à transição do comunismo para o capitalismo
Aborto
Acheson, Dean
Acordo das percentagens
Acordos de Blum-Byrnes
Acordos de Evian
Acordos de Helsínquia
Acordos de Londres
Acordos pós-guerra
Acto da Neutralidade
Acto final de Helsínquia
Acto Único Europeu (AUE)
Adamec, Ladislas
Adams, Gerry
Adenauer, Konrad
Adler, Jeremy
Adolescentes
Adorno, Teodor
Afeganistão, invasão soviética do. Ver União Soviética
Agência de Informação dos Estados Unidos. Ver EFTA
Agência Nacional de Hidrocarbonos (ENI)
Agricultores/Agricultura
como percentagem do PIB
condições do pós-guerra
declínio de
em França
percentagem da população a trabalhar na
Política Agrícola Comum (PAC)
proprietário
Akaev, Askar
Akhmatova, Anna
Akhromeyev, Sergei
Albânia
como substituta europeia da China
discriminação e repressão na
estalinismo nacional
estatísticas demográficas
massacres de Albaneses por Milosevic
reformas económicas
Albright, Madeleine
Aldermaston, Instalações de Armas Atómicas em
Alemanha
acordo entre os Aliados Ocidentais relativamente ao tratamento da
Alemanha Ocidental. Ver Alemanha Ocidental
anti-semitismo
Zona Dupla
castigos aplicados aos criminosos de guerra
como chave para o futuro da Europa
como centro da Europa
Comunismo no pós-guerra
Conselho Económico da Zona Dupla
contribuição para a Nato
crimes de ódio
culpa pelo Holocausto
decisões pós-guerra sobre a
destruição física
devoção à construção da prosperidade
disparidades económicas regionais
divisão da
estatísticas referentes à imigração
estratégia anglo-americana para a
excesso de representação das mulheres no pós-guerra
força depois da Primeira Guerra Mundial
indemnizações de guerra
intelectuais
Jogos Olímpicos de Munique, Setembro Negro
assassínio de judeus
judeus da
membro da NATO
Memorial ao Holocausto
Manufactura
mercado negro
milagre económico
Muçulmanos na
necessidade de reconhecer o sofrimento de
nostalgia
obediência hábil
ostalgie
Partido Católico do Centro
Partido Nazi. Ver Alemanha Nazi programa de reeducação e
desnazificação
rearmamento da
reconhecimento do Holocausto
recuperação da
Regulamento Final em Relação à Alemanha
República Democrática Alemã. Ver Alemanha de Leste
República Federal Alemã. Ver Alemanha Ocidental
ressentimento contra Hitler
reunificação
sentimento de ser duplamente deserdada
subsídios públicos para as artes
terrorismo revolucionário
tratado de fronteiras do pós-guerra
Tratado de Unificação
tratados para pôr fim à ocupação
União Democrática Cristã (CDU)
Alemanha de Leste
abertura do Muro de Berlim
acesso à Alemanha Ocidental
adesão às Nações Unidas
Aliança pela Alemanha
atracção para jovens radicais
Bausoldaten
burocracia de segurança
colaboracionistas
demissão do governo
deportação de dissidentes
estabelecimento de
exclusão dos registos oficiais
financiamento dos movimentos estudantis da Alemanha Ocidental
financiamento por parte da Alemanha
golpe de Estado
informadores
infra-estrutura
intelectuais
jovens radicais
lei de circulação
libertação de
manifestações de Leipzig
manifestantes a favor da mudança
manipulação dos resultados eleitorais
Mark
movimento dissidente
movimento pacifista
Neues Forum
Partido de Dresden
Partido do Socialismo Democrático
Partido Socialista Unitário
perestroika
procedimentos com vista à reunificação
programa soviético de reeducação e desnazificação
queda do comunismo na
reconhecimento do Holocausto
refugiados
refugiados na Checoslováquia
refugiados na Hungria
revolução de 1989
subsídios para a antiga
visita de Gorbachev à
Alemanha, Julgamentos dos crimes de guerra da. Ver Julgamentos de
Nuremberga
Alemanha, Lei Básica da
Alemanha nazi
bombardeamentos
como fonte de milagre económico
contribuições das terras ocupadas/conquistadas
Holocausto. Ver Holocausto países ocupados pela
prisioneiro dos campos de guerra
procedimento para com as nações ocupadas
procedimento para com os europeus de Leste
procedimento para com os europeus do Ocidente
programa de reeducação e desnazificação
resistência contra
solução final. Ver Holocausto
Alemanha Ocidental
acordos diplomáticos com o Leste
Acto de Reforma da Segurança Social de 1957
admissão à ONU
adolescentes radicais
Alemães étnicos na
americanização
armas nucleares
assuntos internos
Bloco dos expulsos e não-cidadãos
Bundesrat
Bundestag
Caso Spiegel
censura no cinema
cinema Heimat
comércio internacional
compra de prisioneiros políticos
consequências das relações com a Alemanha de Leste
corporativismo
descentralização do poder
desempenho económico em comparação com a Grã-Bretanha
esquerda extraparlamentar
estabilização política
estatística populacional
Estatuto de Prescrição para o assassínio
estrutura parlamentar
filmes nostálgicos
financiamento de movimentos estudantis pela Alemanha de Leste
Fracção do Exército Vermelho (RAF)
geração de 60 preocupada com o Holocausto
grupos religiosos
identificação com a América
ilusões do Partido Social-Democrata (SPD)
imprensa literária e política
incorporação na NATO
iniciativas artísticas e culturais
integração de exilados na
intelectuais
intelectuais radicais
Kommune
Länder
Lei dos Estrangeiros de 1965
liberdade sexual e política
manifestação em Berlim contra o Xá do Irão
maoístas
Marco alemão
membro da NATO
movimentos estudantis
Nova Esquerda
oposição à Guerra do Vietname
organizações estudantis sociais democratas
Partido Democrático Livre
Partido Ecologista
Partido Social-Democrata (SPD)
partidos políticos
patrocínio da Alemanha de Leste
perspectiva da adesão à CEE
perspectiva do nazismo
planeamento governamental
política ambientalista
política externa Ostpolitik
privatizações na
produtividade industrial
programa de reeducação e desnazificação dos Aliados Ocidentais
promiscuidade adolescente
protecção ao consumidor
rearmamento de
reconhecimento da Alemanha de Leste
refugiados da Alemanha de Leste
República de Bona
restituição aos judeus
taxa de desemprego
terrorismo revolucionário na
trabalhadores convidados
trabalhadores estrangeiros
União Democrática Cristã (CDU)
União Social Cristã (CSU)
Vertriebene
violência retórica comunista contra
Wirtschaftswunder
Alexander I, czar
Aliados Ocidentais
assistência humanitária
bombardeamentos
desconfiança da União Soviética relativamente aos
desconfiança relativamente à União Soviética
desconforto entre
programa de reeducação e desnazificação
rearmamento
repatriamento de cidadãos soviéticos pelos
Aliança dos Três Grandes
Aliev, Gaidar
Alimentos, racionamento de
Allende, Salvador
Almodóvar, Pedro
Althusser, Louis
Amalrik, Andrei
Amendola, Giorgio
América, Casas da
Amnésia colectiva
Andreotti, Giulio
Andreyeva, Nina
Andropov, Yuri
morte de
Andrzejewski, Jerzy
Angola
Annan, Noel
Antall, József
Antiamericanismo
Anti-semitismo
Alemanha
Leste europeu
Polónia
Anticomunistas
Velha esquerda
Antonescu, Ion
Antonioni, Michaelangelo
Aparelhos de rádio
Apartheid
Apátridas
Apelo Krefeld
Aragon, Louis
Arbour, Louise
Arendt, Hannah
Argélia
Armas balísticas
Armas nucleares
Alemanha Ocidental
atitude da Europa Ocidental face ao posicionamento estratégico de
balística
Britânicas. Ver Grã-Bretanha
Campanha para o Desarmamento Nuclear (CDN)
Estados Unidos da América. Ver Estados Unidos da América
Francesas
Instalações de Armas Atómicas em Aldermaston
negociações Gorbachev/Reagan
nuclearização da Europa
União Soviética. Ver União Soviética
Arménia
Aron, Raymond
Arquitectura pública dos anos 1950 e 1960
Arsenal
Artes cénicas
Artesãos
Arzhak, Nikolay
Ataques terroristas de 11 de Setembro
Ataturk, Kemal
Atlântico, afastamento entre os dois lados
Attali, Jacques
Attlee, Clement
AUE. Ver Acto Único Europeu
Auschwitz
julgamentos
Austrália
Áustria
adesão à União Europeia
como democracia
como primeira vítima de Hitler
corrupção em
Grande Coligação
Mapa da Alemanha e da Áustria do pós-guerra
Proporz
reacção aos imigrantes
reconhecimento do Holocausto
sociais-democratas
tratamento dos nazis no pós-guerra
tratamento pós-guerra da
Autocarros
Automóveis
alemães
britânicos
franceses
Autores de sátiras políticas
Avignon, Festival de
Ayer, A.J.
Azerbaijão
B
Baader, Andreas
Baby boom, 404
Bacilek, Karol
Badoglio, Pietro
Bahr, Egon
Bahro, Rudolf
Baixas civis, Segunda Guerra Mundial
Baixas militares, Segunda Guerra Mundial
Baker, James
Balcerowicz, Leszek
Balladur, Edouard
Banco Central Europeu (BCE)
Banco Nacional de Investimento e Fundo de Garantia Industrial
Banco Europeu de Investimento
Banco Internacional de Pagamentos
Banco Mundial
adesão da Roménia ao
Espanha como membro do
Banham, Rayner
Barre, Raymond
Batalha das Ardenas
Batalha de Argel
Batalha do Livro
Bauer, Támás
BBC. Ver British Broadcasting Corporation BCE. Ver Banco Central Europeu
Beauvoir, Simone de
Bech, Joseph
Beckett, Samuel
Beckham, David
Bell, Daniel
Bélgica
castigos aos colaboracionistas
Católicos na
comunidades linguísticas
Escândalo Dassault/Agusta
guerra da língua
judeus da
muçulmanos na
nacionalizações no pós-guerra
Nacionalistas flamengos
Partido Social-Cristão
Partidos Comunistas
pilares na
produção de carvão
razões para a sobrevivência da
reacção ao alargamento da União Europeia
Região da Flandres
regiões
separatismo nacional
Sociais-democratas
Société Nationale d’Investissement
Valões
Belloc, Hilaire
Belohradsky, Vaclav
Bender, Peter
Benelux, acordo do
Benelux, países do
Ver também Estado-nação específico
Partidos Católicos
pilares no
Benes, Edvard
Benjamim, Walter
Bergen-Belsen
Béria, Lavrenti
Berlim
como centro de espionagem
como cidade aberta
destruição de
Berlim, bloqueio de
Berlim, ponte aérea de
Berlim, revolta de
Berlin, Isaiah
Berlinguer, Enrico
Berlusconi, Silvio
Beveridge, William
Bevin, Ernest
Bibo, Istvan
Bichelonne, Jean
Bidault, Georges
Bielorússia
Biermann, Wolf
Bierut, Boleslaw
Bil’ak, Vasil
BL. Ver British Leyland
Blair, Tony
Blanco, Luis Carrero
Blocher, Christoph
Bloco de partidos antifascistas
Blum, Léon
BMC. Ver British Motor Corporation (BMC)
Bodes expiatórios
Bodnaras, Emil
Boémia, manifestações em Plzen
Bohlen, Charles
Bohley, Bärbel
Bolchevismo
Bolkenstein, Frits
Böll, Heinrich
Bomba atómica
Ver também Armas nucleares
Programa soviético para
Bombardeamentos, campanhas de
Bonner, Yelena
Borowski, Tadeusz
Bósnia-Herzegovina
Acção das Nações Unidas na
Alto Representante
consequências da guerra na
Croatas e Muçulmanos de
economia depois de 1995
etnias na
guerra civil
Intervenção da Europa Ocidental na
Intervenção dos EUA na
limpeza étnica na
Sérvios da
Bossi, Umberto
Boulier, Abbé
Bourdet, Claude
Bourdieu, Pierre
Bousquet, René
Boutros-Ghali, Boutros
Brandt, Willy
Prémio Nobel da Paz
Brasillach, Robert
Braudel, Fernand
Brecht, Berthold
Bretton Woods, conferência de
fim do sistema monetário promulgado na
Brejnev, doutrina de
Brejnev, Leonid, 204
morte de
Briand, Aristide
Brigada Enraivecida
Brigadas Vermelhas (BR) grupo terrorista
British Broadcasting Corporation (BBC)
programação satírica
responsabilidade moral
serviço mundial de rádio
British Leyland (BL)
British Motor Corporation (BMC)
Brokway, Fenner
Brook, Peter
Brooke, Alan
Bruckner, Pascal
Brusati, Franco
Bruxelas, Tratado de 1948
Buback, Siegfried
Buber-Neumann, Margarete
Buchenwald
Bukarine, Nikolai
Bukovsky, Vladimir
Bulgária
colaboracionistas
colectivização rural
considerados à parte
Frente da Pátria
influência soviética na
libertação da
minoria turca na
queda do comunismo na
salários
Tratado de Paz para a
Burke, Edmund
Bush, George H. W.
primeiro encontro com Yeltsin
Bush, George W.
Butlin, Billy
Byrnes, James
C
Cabral, Amílcar
Caetano, Marcello
Cagol, Mara
Calfa, Marían
Callaghan, James
Caminhos-de-ferro, estações dos
Campanha para a cerveja autêntica (CAMRA)
Campanha para o Desarmamento Nuclear (CND)
Campismo
Campos de concentração
Ver também campo(s) específico(s)
prisioneiros
sobreviventes de
visitas de cidadãos alemães a
CAMRA. Ver Campanha para a cerveja autêntica Camus, Albert
Canadá, aceitação de deslocados de guerra
Capital de investimento, fluxo livre de
Capitalismo
abordagem big bang à transição do
comunismo para
planos para
transição do comunismo para
Capitalismo europeu
Capitalismo social
Carlos, Juan
Carlyle, Thomas
Carnogursky, Jan
Carrillo, Santiago
Carta 77. Ver Checoslováquia
Carter, Jimmy
Carvão, falta de
Casamento de Maria Braun, O
Cassola, Carlo
Catalunha
Cáucaso
CCA. Ver Conselhos de Controlo Aliados
CDN. Ver Campanha para o Desarmamento Nuclear
CDU. Ver União Democrática Cristã
Ceausescu, Nicolae
epítetos aprovados por
execução de
política económica
política populacional
CECA. Ver Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
CED, Tratado da. Ver Tratado da Comunidade Europeia de Defesa
CEE. Ver Comunidade Económica Europeia
CEI. Ver Comunidade de Estados Independentes
Censura
aligeiramento na União Soviética
Checoslováquia. Ver Checoslováquia cinema na Alemanha Ocidental
Europa de Leste
Grã-Bretanha
na Europa Ocidental
Central Intelligence Agency (CIA)
Cernik, Oldrich
Certificados Persil
Charles, John
Checoslováquia
abordagem da transição do comunismo para o capitalismo
aceitação da influência soviética
Carta 77
censura na
clima liberal do início dos anos 60
Clube de Paz John Lennon
colaboracionistas
Comité de Defesa das Pessoas
Injustamente Perseguidas (VONS)
Conferência dos Escritores Eslovacos
destalinização na
direitos e liberdades em
divisão da
divórcio de veludo
exclusão do Plano Marshall
Fórum Cívico
golpe de Praga. Ver Golpe de Praga Incidentes de Strahov
invasão soviética da
lei relativa à ilegalidade do Partido Comunista e à resistência ao mesmo
libertação da
movimento dissidente
movimento reformista
movimentos estudantis
movimentos pró-democracia
Partido Democrático Cívico
partido do Público contra a Violência (PCV)
partidos comunistas
polícia secreta
Primavera de Praga. Ver Primavera de Praga prisioneiros políticos
protesto Mães de Praga
queda do comunismo na
reformas económicas
região checa
região eslovaca
revolução de veludo
socialismo com um rosto humano
transição do Estalinismo nacional para o comunismo reformista
Tribunais Extraordinários de Júri
Chernenko, Konstantin
Chernobyl, desastre nuclear
Chernomyrdin, Viktor
Chesterton, G.K.
Chetnik, partidários de
Chiaromonte, Nicola
China
Albânia como substituta europeia
Competição com a União Soviética
Manifestação na Praça de Tiananmen
Utopia pós-revolucionária de Mao
Chipre
Chirac, Jacques
reconhecimento do Holocausto
Christopher, Warren
Churchill, Winston
como democrata-cristão
como membros dos Três Grandes
defensor da assembleia europeia
discurso da cortina de ferro
CIA. Ver Central Intelligence Agency
Cidades agrícolas
Cimeira de Genebra (1955)
Cinema
efeitos da televisão no
efeitos do americano
frequência nas nações pós-comunistas
idade dourada do
qualidade do europeu
Cinismo
Cioran. E.M.
Claes, Willy
Classe média
consequências da recessão económica dos anos 70
organizações políticas com um único objectivo
Clay, Lucius
Clayton, William
CLC. Ver Congresso para a Liberdade da Cultura
Clément, Jérôme
Clementis, Vlado
Clinton, Bill
bombardeamentos contra os Sérvios
Coca-Cola, Companhia
Cohn-Bendit, Daniel
Colaboracionistas
castigos para
condenação de
definição
exoneração pós-guerra de
tratamento após a queda do comunismo
Colectivização
Collaboration horizontale
Colonialismo
Ver também Estado-nação específico
colapso do
descolonização
importância do
Comecon (Conselho de Assistência Mútua)
Comércio Internacional, desenvolvimento do
Cominform
ataques à Jugoslávia
dissolução de
estabelecimento de
Comintern (Internacional comunista)
Comissão de Controlo dos EUA
Comité Judaico-Americano
Comité Lublin
Comité para uma União Aduaneira Europeia
Comité Permanente do Congresso Mundial dos Partidários da Paz
Commíssariat Général du Plan (França)
Companhia do Canal do Suez
Comunidade de Estados Independentes (CEI)
Comunidade Económica Europeia (CEE)
adesão da Grécia à,
comércio internacional
êxitos da
Política Agrícola Comum (PAC)
problemas da
projectos de financiamento regional
término das negociações com a junta provisória grega
Comunidade Europeia (CE)
Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA)
a França e a
os britânicos e a
Comunidade Europeia da Energia Atómica
Comunismo
A Europa como oposto do
abordagem big bang à transição para o capitalismo
apelo do
apropriação de propriedade sob o
artes cénicas sob
aspecto controlador de
atitude dos intelectuais face ao
características das revoluções que levaram à queda do
colapso do
declínio do
desgoverno do
entusiasmo inicial pelo
entusiasmo relativamente ao futuro de
estratégia da pressão camuflada
estratégias de confrontação do
fim da ilusão do consentimento popular ao
fracasso das economias sob o
implosão do
ineficácia do
legado económico do
na Alemanha do pós-guerra
objectivo declarado do
papel de Gorbachev na queda do
papel dos meios de comunicação social na queda do
perspectiva do passado nazi/fascista
Planos Quinquenais
política em 1948
poluição sob o
proletariado como classe revolucionária
proposta para uma alternativa ao
queda do
razões para o colapso do
responsabilidade pelos crimes cometidos sob o
resultados do
saída do
sistema económico sob o
transição do nazismo para
transição para o capitalismo do
tratamento dos colaboracionistas depois da queda do
união com o socialismo
Comunistas
decisão de se tornarem
Eslovacos
intelectuais e
Judeus
julgamentos dos
lisonja dos intelectuais
reciclados
Concílio Vaticano I
Concílio Vaticano II
Conferência de Moscovo
Conferência de Potsdam
Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa
Conflitos laborais/greves
franceses
italianos
polacos
portugueses
espanhóis
Europa Ocidental
Congresso do Movimento Europa Unida
Congresso Mundial de Intelectuais
Congresso Liberdade Cultural (CLC)
Conhecimento, o poder do monopólio do
Connolly, Cyril
Conselho das Regiões Europeias
Conselho dos Estados do Mar Báltico
Conselho Económico da Zona Dupla
Conselho Europeu
Conselhos de Controle Aliados (CCA)
Conspiração dos Médicos
Contraceptivos
Contra-Reforma
Convenção Europeia
Convenção Europeia dos Direitos do Homem
Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos
Cools, André
Corrida às armas
Cortina de Ferro
Corvalán, Luis
Coty, René
Craxi, Bettino
Crichton, Charles
Crimes de Guerra, julgamentos.
Ver também Julgamentos de Nuremberga
Criminosos de guerra, castigo de Alemães
Cripps, Stafford
Crise de 1947
Crise do dólar
Crise dos mísseis cubanos
Crise Económica
Cristianismo na Europa
Croácia
Croce, Benedetto
Cultura erudita
Cunhal, Álvaro
Curcio, Renato
D
d’Argenlieu, Thierry
Dachau
Dalton, Hugh
Daniel, Larissa
Daniel, Yuli
Danos materiais, Segunda Guerra Mundial
Dayton, acordos de
DC. Ver Democratas-cristãos
Debray, Régis
Declaração sobre a Europa Libertada
Declaração de Potsdam
Declaração Tripartida
Delors, Jacques
Democratas-cristãos
Deneuve, Catherine
Deportações
Depressão dos anos 70
Demografia
Ver também Taxa de natalidade
no século XXI
pós-guerra
Derrida, Jacques
Desemprego, subsídios
Desemprego, taxa
Desnazificação
Desporto
Détente
Deutschland im Herbst
Dewey, John
Dia da Memória (RDA)
Diário de Anne Frank, O
Dimitrov, Georgy
Dinamarca
Direitos civis
Direitos Humanos
Djilas, Milovan,
Doenças, pós-guerra
Doutrina Truman
Dubcek, Alexander
Duclos, Jaques
Dulles, Allen
Dulles, John Foster
Durafour, Michel
Dutourd, Jean
Dutschke, Rudi
tentativa de assassínio
Duverger, Maurice
E
Eagleburger, Lawrence
Eco, Umberto
Economistas reformistas
Ecu.
Ver Unidade Monetária Europeia Edelman, Marek
Eden, Anthony
demissão de
Educação superior
EFTA
Egipto
Eichmann, Adolf
Einaudi, Luigi
Eisenhower, doutrina
Eisenhower, Dwight D.
política New Look
Eliade, Mircea
Eliot, T.S.
Eluard, Paul
Embargo ao petróleo árabe
Emigração
Engholm, Björn
Ensino Superior
Ensslin, Gudrun
Enzensberger, Hans Magnus
Erhard, Ludwig
Erlander, Tage
Escândalos
Escandinávia
Escócia, movimento nacionalista
Eslováquia
Eslovénia
Espanha
separatismos
Igreja Católica
ETA. Ver ETA
história política recente
identidades regionais
Esquerda intelectual, influência da
Estados-nações
Ver também Estado-nação específico futuro dos
Estado(s)-providência
Ver também Sociais-democratas; Estado-nação específico
Estados Unidos
acção na Bósnia
acolhimento de pessoas desalojadas
campanha de bombardeamentos contra os Sérvios
como polícia
Europa; guerra cultural; guerra fria
Guerra do Vietname
influência na Europa dos anos 1950 e 1960
Iniciativa de Defesa Estratégica (Guerra das Estrelas)
política relativamente à Europa de Leste
pós-guerra; Alemanha
procedimentos conducentes à Guerra Fria
quanto à reunificação da Alemanha
relações com a Europa
relações com a França
Estagflação
Estaline, José
admiradores de
morte de
divisão da Europa por
ataque de Krushchev a
Estalinismo
Estatísticas Populacionais, pós-guerra
Esterilização, programas de
Estónia
declaração de independência
movimentos independentistas
Estruturalismo
ETA
Eugenia
Euro
Euro.com website
Eurocomunismo
EuroDisney
Europa
americanização da
capitalismo na
colónias da. Ver Colonialismo consequências da globalização na
Cristianismo
diferenças regionais
Estados-providência. Ver Estados-providência
Europa Central. Ver Europa Central Europa de Leste.
Ver Europa de Leste Europa Ocidental.
Ver Europa Ocidental fronteiras
futuro dos Estados-nações na
Islão na
muçulmanos na
nostalgia da
planeamento urbanístico
reacção à invasão do Iraque pelos EUA
reacção aos imigrantes
religião no pós-guerra
vida no pós-guerra
xenofobia
Europa Central
aceitação de nações na União Europeia (UE)
Europa de Leste admissão de nações à União Europeia (UE)
anti-semitismo
desconfiança do Kremlin face à
determinação em «regressar» à Europa
direitos e liberdades na
distinta da Europa Ocidental
efeitos da globalização
formação e divisão da nações ao longo da década de 90
história económica da
judeus da
nostalgia
perspectiva dos EUA
poluição
revisionistas
sentimentos pelos EUA
sovietização e russificação
transformação ao longo dos anos 90
Europa Mediterrânica
Ver também Grécia; Portugal; Espanha Programas Mediterrânicos
Integrados
transição democrática da
Europa Ocidental
antipatia pela União Europeia
atitude face ao comunismo
censura
comunismo
conflitos laborais/greves
desaparecimento da indústria de transformação
desemprego
direitos e liberdades na
disparidades económicas regionais
estatística populacional pós-guerra
gastos sociais
imigração. Ver imigração movimento pacifista
movimentos nacionalistas e movimentos separatistas regionais
mudanças políticas ao longo dos anos 1950
mudanças políticas ao longo dos anos 1960
mudanças políticas ao longo dos anos 1970
mulheres no mercado de trabalho
perspectiva do comunismo ou do fascismo na
planeamento governamental. Ver Planeamento governamental política
ambientalista
potências coloniais.
Ver Colonialismo recuperação económica.
Ver Recuperação económica reforma agrária
reformas liberalizadoras
sistemas de segurança social
taxa de mortalidade infantil
Eurosport, canal de televisão
Eurovisão, Festival
Euskadi Ta Askatasuna. Ver ETA
Exército Republicano Irlandês (IRA)
Exército Vermelho
execuções por cobardia
libertação de Auschwitz
ocupações pós-guerra pelo
papel da derrota de Hitler
poder pós-guerra do
Exonerações antifascistas
Extermínio em massa
F
Fabius, Laurent
Falangistas
Fascismo
benefícios para o Ocidente
Italiano
protecção do Governo Militar Aliado
renúncia ao
resistência a
retribuição contra
Fassbinder, Rainer
FDE. Ver Força de Defesa Europeia (FDE)
FEDER. Ver Fundo Europeu de
Desenvolvimento Regional
Fejtö, François
Fellini, Federico
Feminismo
Ferry, Luc
Fim da Era Ideológica, O
Fini, Gianfranco
Finkielkraut, Alain
Finlândia
adesão à União Europeia
Tratado de Amizade com a União Soviética
Fischer, Joschka
Fischler, Franz
Fish, Hamilton
Flanner, Janet
Flick, Frederich
FMI. Ver Fundo Monetário Internacional
Foot, Michael
Força de Defesa Europeia
Forsythe, William
Fórum Cívico. Ver Checoslováquia
Fourastié, Jean
Foucault, Michael
Fracção do Exército Vermelho (RAF)
França
agricultura pós-guerra
anticomunistas
capacidade nuclear
castigos aplicados aos colaboradores
cinema
como a Grande Potência Europeia
como iniciadora da Nova Europa
Conselho de Segurança da ONU
consequências da filosofia alemã na
críticas ao Plano Marshall
cumplicidade no Holocausto
formação da Europa à imagem da
Front National
guetos urbanos
Igreja Católica no pós-guerra
imigrantes em
inclusão nas decisões do pós-guerra
intelectuais
judeus de. Ver judeus muçulmanos na
nacionalizações pós-guerra
patrimoine culturel
perspectiva de adesão à CEE
plano Schuman
política gauche américaine
posição pós-guerra
preocupações relativamente à Alemanha
problema alemão
regime de Vichy. Ver Regime de Vichy relação com a União Soviética
resposta ao declínio da importância da língua francesa
Riviera
teatro
Franco, Francisco
milagre económico
morte
Frank, Josef
Franks, Oliver
Friedman, Milton
Frigoríficos
Fundação Ford
Fundo Agrícola Europeu
Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER)
Fundo Monetário Internacional (FMI)
empréstimo à Grã-Bretanha
entrada da Roménia na
Espanha como membro do
Furet, François
Futebol
G
Gahrton, Per
Gaillard, Felix
Gaitskell, Hugh
Gáli, József
Gallo, Max
GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio)
adesão da Espanha ao
entrada da Roménia no
Gasperi, Alcide de
gauche américaine
Gauck, Joachim
Gaulle, Charles
Gerações, diferenças entre
Genocídio. Ver Holocausto
Genscher, Hans-Dietrich
Geórgia
declaração de independência
movimento de independência
Geração de 60, capítulo XII
Geração de 70, capítulo XIV
Geremek, Bronislaw
Gerhardsen, Einar
Gerö, Ernö
Gheorghiu-Dej, Gheorghe
Giannini, Gugliemo
Gide, André
Gide, Charles
Gierek, Edward
Gimes, Miklós
Ginzburg, Evgenia
Giolitti, Giovanni
Giscard d’Estaing, Valéry
atitude face ao regime de Vichy
Tratado Constitucional da UE
Glasnost
Glistrup, Morgens
Globalização
Globke, Hans
Glucksmann, André
Godard, Jean-Luc
Golpe de Praga
Goma, Paul
Gomulka, Wladyslaw
anti-semitismo
reacção aos movimentos estudantis
Göncz, Arpád
González, Felipe
escândalo
Gorbachev, Mikhail
Gorbanevskaya, Natalya
Gorz, André
Gosplan
Gottwald, Klement
Governo Militar Aliado
esforços de reconstrução por
protecção dos fascistas por
Grã-Bretanha
abandono da Palestina
British Broadcasting Corporation (BBC).
Ver British Broadcasting
Corporation (BBC)
British Leyland (BL). Ver British Leyland (BL)
censura na
colonialismo da
Commonwealth
Comunidade Económica Europeia (CEE)
conflitos laborais/greves
declínio
dependência dos EUA
desmantelamento do sector público
Estado-providência
estatísticas referentes à imigração
imigrantes não-europeus na
intelectuais
IRA. Ver Exército Republicano Irlandês (IRA)
Irlanda do Norte
judeus na
muçulmanos na
nostalgia
Novo Partido Trabalhista
partidos
planeamento governamental
política interna no pós-guerra
preocupações relativamente à União Soviética
privatização de bens geridos pelo Estado
reacção aos imigrantes
reformas com vista à liberalização
regiões autónomas
relutância em unir-se à Europa continental
retirada das colónias
separatismo
taxa de pobreza
thatcherismo
Ulster
vida no pós-guerra
Graham, Billy
Gramsci, Antonio
Grass, Günter
Grechko, Andrei
Grécia
adesão à Comunidade Europeia (CE)
Comunistas
como beneficiária do Plano Marshall
exoneração pós-guerra de colaboradores

Greene, Graham
Gromyko, Andrei
Gross, Tomasz
Grossman, Vassily
Grosz, Karoly
Grupo Baader-Meinhof
Grusa, Jirí
Guala, Filiberto
Guerra da Coreia
Guerra das Estrelas (Iniciativa de Defesa Estratégica)
Guerra do Yom Kippur
Guerra dos Seis Dias
Guerra dos Trinta Anos
Guerra Fria
começo da
competição cultural
experiências regionais da
no Médio Oriente e em África
nova
percepções
Segunda
Guerras civis
Gysi, Gregor
H
Habermas, Jürgen
Habitação, carência
Haider, Jörg
Hajek, Jirí
Halimi, Gisèle
Hall, Stuart
Hallstein, doutrina
Hammerskjöld, Dag
Hands across the Baltic
Haraszati, Miklós
Harich, Wolfgang
Harriman, Averell
Hartmann, Detlef
Hauser, Wilhelm
Havel, Vaclav
Havemann, Robert
Hayek, Friedrich
Healey, Dennis
Heath, Edward
Heidegger, Martin
Heine, Heinrich
Hermlin, Stephan
Herri Batasuna
Herriot, Edouard
Herzen, Alexander
Herzl, Theodor
Heuss, Theodore
Heydrich, Reinhard
Heym, Stefan
Higiene Rracial
Hindus
Hippies
História
como nostalgia
distinção entre memória e
incerteza relativamente à
História e Ciências Sociais, Teoria da revolução e
Hitler, Adolf
Ver também Alemanha Nazi
Áustria como primeira vítima de
deportações
divisão da Europa por
Holocausto. Ver Holocausto invasão da Polónia
na perspectiva da Alemanha Ocidental da década de 1960
na perspectiva da Alemanha pós-guerra
papel do Exército Vermelho na derrota de
políticas como fonte de milagre económico
ressentimento dos Alemães em relação a
Solução Final. Ver Holocausto unificação da Europa sob
Ho Chi Minh
Hobsbawm, Eric
Hochhuth, Rolf
Hoggart, Richard
Holanda
Banco de Investimento Nacional e Fundo de Garantia Industrial
castigos para os colaboracionistas
colónias da
estatísticas populacionais
Igreja Católica no pós-guerra
perspectiva de adesão à CEE
planeamento governamental
Holbrooke, Richard
Holocausto
Homens, número reduzido no pós-guerra
Homogeneidade, pós-guerra
Honecker, Erich
golpe de Estado contra
Hook, Sidney
Hoover, Herbert
Horkheimer, Max
Horn, Gyula
Hoxha, Enver
Hume, David
Hungria
censura
colaboracionistas
como beneficiária do Plano Marshall
economistas reformistas
empréstimos monetários à
judeus na
Memorial ao Holocausto
movimento dissidente
partidos comunistas
perseguição de cidadãos
revolução contra a União Soviética
Terrorhaza
Hurd, Douglas
Husak, Gustav
Hussein, Saddam
I
Ialta, Conferência de
Idade da Teoria
Ideia da Europa
Igreja Católica
ataque de Tito à
na Europa do pós-guerra
Polónia. Ver Polónia
Igrejas protestantes
Iliescu, Ion
reconhecimento da participação no
Holocausto
Imigração
não-europeus na Grã-Bretanha
restrições colocadas pela Europa ocidental à
Índia
Indústria do aço, desaparecimento da
Inflação
riscos inerentes à
taxas para as diferentes nações
Informadores
Inglês como língua dominante
Ingrao, Pietro
Iniciativa de Defesa Estratégica
Iniciativas artísticas e culturais
INPS. Ver Instituto Nacional para a Segurança Social
Instituto Nacional para a Segurança Social (INSS)
Instituto Nacional Italiano para os Órfãos de Guerra
Instituto para a Reconstrução Industrial (IRI)
Intelectuais
Ver também Movimento Dissidente declínio dos
franceses
demissão
Intelectuais liberais
Inverno da Fome, Holanda
Inverno de 1947
Ionescu, Eugène
IRA Provisório
Irlanda
Domingo Sangrento
IRA. Ver Exército Republicano Irlandês movimento nacionalista
Ulster
IRI. Ver Instituto para a Reconstrução Industrial
Iribarne, Manuel Fraga
Irlanda do Norte
Islão na Europa
Israel
Guerra dos Seis Dias. Ver Guerra dos Seis Dias
Guerra do Yom Kippur
invasão do Egipto pela junta militar
Itália
cinema
corrupção na
democratas-cristãos
disparidades económicas regionais
emigração
empresas do sector público
estatística populacional
exoneração e saneamento de colaboracionistas pós-guerra
exoneração de fascistas na
Fascismo na
grupo terrorista Brigadas Vermelhas (BR). Ver Brigadas Vermelhas (BR)
guerra civil na
Igreja Católica no pós-guerra
intelectuais
leis referentes ao aborto
Liga do Norte
Liga Lombarda
Máfia
Mezzogiorno
Muçulmanos na
nacionalizações pós-guerra
Partido da Acção
Partido Socialista
partidos comunistas
partidos políticos da década de 1960
planeamento governamental
privatizações na
procedimento para com colaboracionistas «com ligações»
produção de frigoríficos
reacção ao alargamento da União Europeia
reformas nas terras
regiões autónomas
separatismo regional
sistema universitário
transição de potência do Eixo para aliado democrático
Izetbegovic, Aliza
J
Jäckel, Eberhard
Jakes, Milos
Japão, ocupação de colónias europeias pelo
Jaruzelski, Wojciech
Jaspers, Karl
Jendretsky, Hans
Jenkins, Roy
Jennings, Humphrey
Jeune Europe
Jirinovsky, Vladimir
João Paulo II, Papa
João XXIII, Papa
Jobert, Michael
Jogos Olímpicos de Munique, Setembro Negro: assassínio de Judeus
Johnson, Lyndon
Joliot-Curie, Frédéric
Jornais
Jospin, Lionel
Journey into the Whirlwind (Ginzburg)
Judeus
anti-semitismo. Ver Anti-semitismo argelinos
assassínios dos Jogos Olímpicos de Munique
ataques muçulmanos aos
atitude de Estaline face aos
como desalojados
compensações por parte da Alemanha Ocidental
comunistasconsequências do extermínio de Judeus por parte dos nazis de
Viena
estatística sobre os Judeus libertados
Holocausto. Ver Holocausto
Israel. Ver Israel na Europa de leste do pós-guerra
na opinião da Alemanha pós-guerra
pogroms contra os
polacos
sob ocupação alemã
total de mortos
Jugoslávia
desmembramento da
julgamentos de crimes de guerra
partidos comunistas
reformas económicas
relação com a União Soviética
Juízos/crenças, independência de
Julgamento de Lüneberg
Julgamentos encenados
Julgamentos de Nuremberga
K
Kadar, Janos
Kadarism
Kafka, Franz
Karadzic, Radovan
Karamanlis, Constantine
Kardelj, Edvard
Kazin, Alfred
Kefauver, Estes
Kennan, George
Kennedy, Jacqueline
Kennedy, John F.
Kethly, Ann
Keynes, Maynard
Kiesinger, Kurt-Georg
Kis, Janos
Kissinger, Henry
Kiszczak, Czeslaw
Kjaersgaard, Pia
Klaus, Vaclav
Klíma, Ivan
Koestler, Arthur
Kohout, Pavel
Kolakowski, Leszec
Komarov, Vladimir
Konrad, George
Koopman, Rita
Kornai, Janos
Kosovo
Kosovo, Exército de Libertação do (UCK)
Kostov, Traicho
Kostunica, Vojislav
Kovács, Béla
Kovaly, Heda
KPD. Ver Partido Comunista Alemão
Kraus, Karl
Kravchenco, Victor
Kravchuk, Leonid
Kreisky, Bruno (chanceler, Áustria)
Krenze, Egon
Krivine, Alain
Krushchev, Nikita
Kryuchkov, Vladimir
Kuchma, Leonid
Kula, Witold
Kun, Béla
Kundera, Milan
Kuron, Jacek
L
Lacan, Jacques
Lafontaine, Oskar
Legitimidade
como função da capacidade
como função do território
Laker, Freddie
Lambrakis, Grigoris
Lang, Jack
Lange, Anders
Langer, Oskar
Lanzmann, Claude
Lasky, Melvin
Laurent, Jacques
Laval, Pierre
Lawrence, D.H.
Le Pen, Jean-Marie
Leclerc, Annie
Lei de Ajuda de Emergência à Jugoslávia
Lefebvre, Jacques
Leonhard, Wolfgang
Leopoldo III, rei
Lepper, Andrzej
Letónia
colaboracionistas
declaração de independência
movimentos independentistas
opiniões na era pós-comunista
Levi, Carlo
Levi, Primo
Lévi-Strauss, Claude
Lévy, Bernard-Henri
Lewis, Norman
Liebknecht, Karl
Liga dos Estudantes Húngaros
Ligachev, Yegor
Limpeza étnica
de judeus. Ver Holocausto
dos Sérvios
pelos Sérvios
Língua alemã, provincialização da
Língua francesa, provincialização da
Linha Curzon
Linha telefónica entre Washington e Moscovo
Lippman, Walter
Lituânia
Litvinov, Pavel
Litynski, Jan
Lloyd, Selwyn
Löbl, Eugen
Loebl, Fritz
London, Artur
Longo Telegrama
Lotarias
Lozonczy, Géza
Lübke, Hans
Luca, Vasile
Lukacs, György
Luta pela paz
Luxemburgo, Rosa
Lyotard, Jean François
M
Maastricht, Tratado de
consequências na NATO
impacto do
Macciocchi, Maria-Antonieta
Macedónia
declaração de independência
independência da
sensibilidade regional da
Macmillan, Howard
Máfia. Ver Itália
Mahler, Horst
Maisky, Ivan
Maizière, Lothar de
Major, John
Makarios, Arcebispo
Malenkov, Georgy
Maleter, Pal
Malia, Martin
Malraux, André
Man, Hendrik de
Manchester United
Mange, Etienne
Manifestações de Nanterre
Manifestações de Plzen
Manifesto do Conceito de Guerrilha Urbana
Mann, Klaus
Mão-de-obra importada
Maoísmo
fascínio da Itália pelo
Mapas
Alemanha e Áustria Pós-Guerra
Bélgica
Europa 1942
Europa de Leste Pós-Segunda Guerra Mundial
Jugoslávia 1973
União Europeia (1957-2004)
União Europeia (pós-2004)
Máquinas de lavar roupa
Marcel, Gabriel
Marchais, Georges
Marcuse, Herbert
Margolius, Rudolf
Maritain, Jacques
Marshall, George C.
Marx, Karl
Marxismo
Ver também Comunismo fracasso do
Masaryk, Jan
Masaryk, Tomás
Massa, Meios de comunicação em, mass media
Massas, turismo de massa
Massacres
Mastroianni, Marcello
Mauriac, François
Mauroy, Pierre
Maurras, Charles
Mayer, René
Mazowiecki, Tadeusz
Mazzini, Giusepp
McCloy, John J.
Meciar, Vladimír
Medgyessy, Péter
Medvedev, Zhores
Meinhof, Ulrike
Meir, Golda
Memória
Memoriais ao Holocausto
Memórias difíceis. Ver Memória
Mendès-France, Pierre
Menthon, François
Mercado negro alemão
Merker, Paul
Merleau-Ponty, Maurice
Mickiewicz, Adam
Mielke, Erich
Mihajlovic, Draza
Mikhoels, Solomon
Mikolajczyk, Stanislaw
Mikoyan, Anastas
Milans del Bosch, Jaime
Milices Patriotiques
Mill, John Stuart
Millett, Kate
Milosevic, Slobodan (presidente, Sérvia)
Milosz, Czeslaw
Minas, desaparecimento dos empregos nas
Minorias étnicas
Mitscherlich, Alexander
Mitscherlich, Margaret
Mitterrand, François
Mladic, Ratko
massacre de muçulmanos
Mladenov, Petar
Mlynar, Zdenek
Mnacko, Ladislas
Mnouckine, Ariane
Moch, Jules
Moczar, Mieczyslaw
Moda, tendências da
Modelo Europeu
Modelo Social Europeu
Modrow, Hans
Modzelewski, Karel
Moldova
Mollet, Guy
Molotov, Vyacheslav
recusa dos planos franceses para a Alemanha
Monnet, Plano de
Monnet, Jean
Montand, Yves
Monty Python
Moravia, Alberto
Moreau, Jeanne
Morgenthau, estratégia de
Moro, Aldo
Morrison, Herbert
Moscovo, Declaração de 1943
Moscovo, Julgamentos de
Mosley, Oswald
Mounier, Emmanuel
Movimento das Mulheres
Movimentos de resistência
Movimento dissidente
Movimento Nacional para a Independência da Letónia
Movimento pacifista
Movimento para a Reorganização da Lituânia
Movimento pelos direitos de Helsínquia
Movimentos estudantis
Movimentos Separatistas, Europa Ocidental
Muçulmanos
ataques ao judeus
como parte substancial da população da Europa Ocidental
da Bósnia-Herzegovina
em França. Ver França na União Soviética
Muir, Edwin
Mulheres
Muro de Berlim
Muschg, Adolf
Música pop
Punk rock
tolerância de Gorbachev face
Mussolini, Benito
N
Nacionalistas
Nacionalização
Nagy, Imre
Nasser, Gamal Abdul
Nastase, Adrien
NATO. Ver Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO)
Navarro, Carlos Arias
Nazarbaev, Nursultan
Nazismo
na opinião alemã
reconhecimento dos Alemães do
transição para o comunismo
Negri, Toni
Nemeth, Miklos
Nenni, Pietro
Nimier, Roger
Nível de vida
Nixon, Richard
Nizan, Paul
Nolte, Ernst
Nora, Pierre
Norte, Liga do
Noruega
castigos aplicados aos colaboracionistas
como Estado de primeiro plano na Guerra Fria
como Estado-providência
Comunidade Europeia (CE) e
consequências da Segunda Guerra Mundial na
constituição
Nostalgia
Nova Esquerda
Nova Ordem de Hitler
Novo Brutalismo
Novomesky, Adislav
Novotny, Antonin
reacção ao movimento dos estudantes
Número de mortos, Segunda Guerra Mundial
Nyers, Rezso
O
O Amante de Lady Chatterley (Lawrence)
OAS. (Organization de l’Armée SecrèteOrganization de l’Armée Secrète
O Arquipélago de Gulag (Soljenitsin)
Obersovsky, Gyula
OCDE. Ver Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos
Ocupações
danos materiais causados pela ocupação alemã da União Soviética
ocupação do Kosovo pela NATO
ocupação japonesa de colónias europeias
ocupações pós-guerra pelo Exército Vermelho
protestos do bloco soviético à ocupação da Checoslováquia pela União
Soviética
resistência às. Ver Movimentos de resistência
tratados para pôr fim à ocupação da Alemanha
OECE. Ver Organização Europeia de Cooperação Económica
Ohnesorg, Benno
OIR. Ver Organização Internacional para os Refugiados
OPEP. Ver Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP)
Operação Danúbio
Ophuls, Marcel
Orbán, Viktor
Órfãos
Organização das Nações Unidas
acção na Bósnia
admissão da Alemanha Ocidental e de Leste
Assembleia Geral
Conselho de Segurança
Força de Protecção na Croácia
procedimentos face à limpeza étnica por parte dos Sérvios
Organização Europeia de Coordenação Económica (OECE)
Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE)
Organização do Comércio Mundial
Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO)
acções na Jugoslávia
admissão da Grécia à
Alemanha como membro da
como bluff
consequências do Tratado de Maastricht de 1992 na
contributo da Alemanha para a
desprezo dos EUA pelos Aliados no seio da
futuro papel da
incorporação da Alemanha Ocidental na
nuclearização da
objectivo prioritário da
percepções da
Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP)
Organização Internacional para os Refugiados (IRO)
Orwell, George
Osborne, John
Ostpolitik
Outubro Polaco
P
PAC / Política Agrícola Comum
Pacelli, Eugene. Ver Pio XII, Papa
Pachman, Ludek
Pacto Molotov-Ribbentrop
Pacto do Aço
Padover, Saul K.
País de Gales, movimento nacionalista
Palach, Jan
Palestina
independência da Grã-Bretanha
Setembro Negro: assassínio de atletas judeus nas Olimpíadas de Munique

Papadopoulos, George
Perigo Vermelho
Papagos, Marshal Alexander
Papandreou, Andreas
Papandreou, George
Papon, Maurice
Paquistão
Paris, intelectuais de
Parlamento Europeu, eleições para
Parri, Ferrucio
Partakhov, Krastyn
Partido Comunista Alemão (KPD)
Partido Comunista de Boémia-Morávia
Partido Comunista Espanhol (PCE)
Partido Comunista Francês (PCF)
Partido de Pequenos proprietários
Partido de Resistência
Partido Democrático Cristão
eleitorado tradicional do
Partido do Progresso dinamarquês
Partido dos Trabalhadores Romenos
Partido para uma Drástica Redução dos Impostos, das Taxas e da Intervenção
do Estado
Partido Progressista norueguês
Partido Rural
Partido Social-Democrata (SPD). Ver Alemanha Ocidental
Partido Socialista da Bulgária
Partido Socialista dos Trabalhadores húngaro
Partido Socialista Espanhol (PSOE)
Partido Socialista Francês
Partidos Agrários
Partidos Comunistas
Ver também Estado-nação específico aparato repressivo
eleitorado tradicional do
Partidos Conservadores
eleitorado tradicional dos
perspectiva dos Estados Unidos
Partidos e movimentos de objectivo único
Partidos ecologistas
Partidos liberais
Partidos socialistas
eleitorado tradicional do
Partito Communista Italiano (PSI)
Pasolini, Pier Paolo
Patocka, Jan
Patrascanu, Lucretius
julgamento-espectáculo de
Pauker, Ana
Pavelic, Ante
Paxton, Robert
PCF. Ver Partido Comunista Francês (PCF) Péju, Marcel
Pelikán, Jirí
Perestroika
Alemanha de Leste
União Soviética
Pessoas desalojadas
aceitação de
judeus como
refugiados como distintos de
Pétain, Philippe
Petkov, Nicola
Petróleo
aumento acelerado de preços
crises
Embargo ao petróleo árabe
preços históricos
russo
Pfimlin, Pierre
Philip, André
Pinchuk, Viktor
Pineau, Christian
Pinter, Harold
Pio IX, Papa
Pio XII, Papa
Pisier, Marie-France
Pithart, Petr
Planeamento Governamental
capitalismo
consequências políticas do
definido
do ocidente europeu
economia do
fé no
objectivo do
Plano de Cinco Anos do Comunismo. Ver Comunismo
recuperação económica no pós-guerra
Planeamento social. Ver Estado(s)-providência Planeamento urbanístico
Plano Balcerowicz
Plano Marshall
Alemanha Ocidental
aplicação da ajuda sob o
beneficiários do
benefícios do
campanhas comunistas contra o
como barreira à expansão soviética
consequências do
críticas da França ao
custos totais do
missões de produtividade
União Europeia de Pagamentos
Plano Pleven
Pleven, René
Plumb, J.H.
Pobreza
Política
efeito da televisão na
futebol como substituto da
papel das mulheres na
Política Agrícola Comum (PAC)
Política ambiental
Política de contra-cultura
Política educativa
Política externa czarista
Polónia
abordagem à transição do comunismo para o capitalismo
acordos sobre as fronteiras
anti-semitismo
apoio à política dos EUA
Carta dos Direitos dos Trabalhadores
Caso Kuron-Modzelewski
colaboracionistas
Comité para a Defesa dos Direito Civis Humanos (ROPCiO)
Comité para a Defesa dos Trabalhadores (KOR)
como excepção aos planos económicos pós-guerra da União Soviética
direitos e liberdades na
estatísticas referentes à imigração
greves de trabalhadores
Igreja Católica
influência soviética na
Instituto da Memória Nacional
intelectuais
invasão de Hitler da
judeus na. Ver Judeus lei marcial
liberdade de expressão na Universidade de Varsóvia
libertação da
movimento dissidente
movimento Solidariedade
movimentos estudantis
Partido dos Trabalhadores Unidos
Partidos Comunistas
privatização
queda do comunismo na
reacção à destalinização
reacção ao alargamento da União Europeia
reconhecimento do Holocausto
reformas económicas
reorganização geográfica da
resistência à ocupação
revisionistas
revolução de 1980-81
salários
Socialismo na
Universidade de Varsóvia
Poluição
Pompidou, Georges
atitude face ao regime de Vichy
resposta aos «Incidentes» Maio
Ponto, Jürgen
Poos, Jacques
Popieluszko, Jerzy
Popper, Karl
Portugal
Colónias Africanas
colónias de
forças armadas de
golpe de Estado
governo democrático
greves de trabalhadores
história política recente
Lei da Reforma Agrária
Movimento das Forças Armadas (MFA)
nível de vida
Partido Comunista leninista
Partido Socialista
Partidos comunistas
perda da colónia de Goa
privatizações em
Revolta angolana
Poujade, Pierre
Poulidor, Raymond
Powers, Gary
Pozsgay, Imre
PRE. Ver Programa de Recuperação Europeia Presser, Jacob
Priestley, J.B.
Primavera de Praga
Primeira Guerra Mundial, problemas por resolver
Prisioneiros de guerra
Privatizações
bens da Grã-Bretanha geridos pelo Estado
como condição para a adesão à União Europeia
nos Estados do antigo bloco soviético
sector público da Europa Ocidental
sector público francês
Problema alemão
Produtividade no trabalho
Mão-de-obra importada
movimento da população
Programa de Acção do Conselho Nacional da Resistência Francesa
Programa de Recuperação Europeia (PRE) Ver também Plano Marshall
Programa Fulbright
Programas Integrados Mediterrânicos
Projecto Europeu
PSI. Ver Partido Socialista Italiano (PSI)
PSOE. Ver Partido Socialista Espanhol (PSOE)
Publicidade
Pucheu, Pierre
Pugo, Boris
Punk rock
Puskás, Ferenc
Putin, Vladimir
Q
Quarta Internacional (dos trabalhadores)
Questão alemã
Questões linguísticas
Quirguistão
Quisling, Vidkun
R
Racionamento
política britânica
Radice, Lucio Lombardo
Rádio Europa Livre
Rádios
RAF. Ver Fracção do Exército Vermelho (RAF)
Raffarin, Jean-Pierre
Rais, Stephan
Rajk, Laszlo
Rakosi, Mátyás
Ramette, Arthur,
Ratzinger, Cardeal Joseph
Raznatovic, Zeljko
RDA. Ver República Democrática Alemã (RDA)
Reagan, Ronald (presidente, EUA)
Real Madrid
Rearmamento dos Aliados Ocidentais
Recessão
consequências na classe média dos anos 70
papel do(s) Estado(s)-Providência na redução das dificuldades dos anos
70
Recuperação económica
ao longo da década de 50
comércio internacional.
Ver comércio internacional nível de vida.
Ver Nível de vida papel do planeamento governamental
produtividade no trabalho
Redes criminosas
Redistribuição de propriedade
Reforma
custos inerentes às reformas
redução da idade da
Reforma Agrária
Reformas políticas
Refugiados
distinção entre deslocados de guerra e políticos
repatriação
Regulamento final em relação à Alemanha
Rehn, Elizabeth
Reino Unido. Ver Grã-Bretanha
Reitz, Edgar
Relações no mercado de trabalho
condições dos trabalhadores da indústria
condições dos trabalhadores
especializados e da área dos serviços
conflitos laborais/greves. Ver conflitos laborais/greves
Renault, Alain
Renault, Louis
Rendimento líquido
Renner, Karl
Renoir, Jean
Reorganização geográfica
Repatriações forçadas
República Checa
criação da
privatização na
questões históricas
reacção ao alargamento da União Europeia
salários
República de Saló como colaboradora
República Democrática Alemã (RDA). Ver Alemanha de Leste
Repúblicas do Báltico
Ver também Estado-nação específico concessão do direito de secessão
pela União Soviética
Hands across the Baltic
intervenção militar soviética
movimentos independentistas
populações das
República Federal da Alemanha. Ver Alemanha Ocidental
República Húngara
República Socialista da Checoslováquia
Resnais, Alain
Retórica antifascista
Retribuição
exemplos de
necessidade de
Revisionismo
Revoluções
Ver também Golpe de Estado características das revoluções comunistas de
1989
Checoslováquia
da Alemanha de Leste
dos camponeses
episódios violentos da revolução comunista de 1989
Papel dos EUA nas revoluções comunista de 1989
revolução da Teoria
revolução de veludo da Checoslováquia
revolução francesa sem vítimas
revolução húngara contra a União Soviética
revolução húngara de 1989
revolução polaca de 1980-81
revolução sexual dos anos 60
Reynaud, Paul
Rips, Ilia
Rivette, Jacques
Rocard, Michel
Rohmer, Eric
Rokossowski, Konstanty
Roménia
abordagem à transição do comunismo ao capitalismo
anti-semitismo
cidades agrícolas
colaboracionistas
colectivização agrária
colectivização rural
como país europeu
Estalinismo Nacional
fraude da Caritas
Frente de Salvação Nacional (FSN)
golpe de Estado
greves de trabalhadores
influência soviética na
leis referentes ao aborto
libertação da,
massacre em Timisoara
movimento dissidente
Partido Comunista
perseguição de cidadãos
políticas económicas
prisões experimentais
privatização na
programa de racionamento
projecto de sistematização rural
queda do comunismo na
reconhecimento da Alemanha Ocidental
reconhecimento do sofrimento dos Judeus
reforma agrária
reformas económicas
relações com o Ocidente
salários
Securitate
taxa de mortalidade infantil
vista como à parte
Roosevelt, Franklin Delano
como membro dos Três Grandes
opinião de De Gaulle
Rossellini, Roberto
Roudy, Yvette
Rousset, David
Rousso, Henry
Roy, Claude
Rugova, Ibrahim
Rumsfeld, Donald
Rusk, Dean, 298
Russell, Bertrand
Rússia
abordagem à transição do comunismo para o capitalismo
bilionários na
como império eurasiático
como produtora/fornecedora de energia
legado para a Europa
memórias amargas da
nacionalistas
nepotismo na
oligarcas na
privatização na
reformas económicas
saúde do Estado na viragem do século
S
S. Tropez
Sagan, Françoise
Sakharov, Andrei
Salários inflacionados
Salazar, António
Sante, Luc
Sartre, Jean-Paul
Sátiras políticas, autores de
Savater, Fernando
Scargill, Arthur
Schabowski, Günter
Scheel, Walter
Schengen, Acordo de
Schleyer, Martin
Schmidt, Helmut
proposta do Sistema Monetário Europeu (SME)
Schmitt, Carl
Schnabel, Rockwell
Schneider, Peter
Schroeder, Gerhard
Schumacher, Kurt
Schuman, Plano de
Schuman, Robert
Schumann, Maurice
Schüssel, Wolfgang
Se questo è un uomo/Se Isto é um Homem (Levi)
Segunda Guerra Fria
Segunda Guerra Mundial
bombardeamentos. Ver Bombardeamentos como experiência para os civis
como experiência universal como revolução social
danos causados pela
impacto económico da
recuperação depois da
Segundo Mundo
Segurança social
Seguros
Seifert, Jaroslav
Sem-abrigo, 829. Ver também Desalojados Semprún, Jorge
Separatistas bascos
Sereni, Emílio
Serge, Victor
Serres, Michel
Sérvia-Montenegro
acções no Kosovo
bombardeamento de Sarajevo
bombardeamentos aéreos da NATO
contra posições sérvias
campanha de bombardeamentos dos EUA contra a
consequências das guerras da Croácia e da Bósnia para a
discriminação e repressão dos Albaneses na
limpeza étnica dos Sérvios
limpeza étnica levada a cabo pelos Sérvios
Milosevic como presidente da
ódio aos Albaneses
privatização na
vista como à parte
Sexual, comércio
Sexual, realização
Sexual, revolução dos anos 60
Seydoux, Jacques
Sharett, Moshe
Shelest, Petro
Shevardnadze, Edvard
Shtern, Lina
Shuchkevich, Stanislav
Schultz, George
Sica, Vittorio de
Siegfried, André
Sik, Ota
Silone, Ignazio
Silva, Aníbal Cavaco
Simecka, Milan
Simone, André
Sindicato dos Mineiros de Durham
Sindicatos de trabalhadores socialistas, conflitos com sindicatos comunistas
Sinyavsky, Andrei
Sistema de quatro classes
Sistema Monetário Europeu
consequências na privatização do sector público
Sistemas sociais, imposição de
Skvorecky, Josef
Slansky, Julgamento de
Slansky, Rudolf
Sling, Otto
SME. Ver Sistema Monetário Europeu (SME) Smith, Adam
Smith, Walter Bedell
Soares, Mário
Sociais-cristãos
Sociais-democratas
Ver também Estado-nação específico;
Estados(s)-providência convicções dos
transformações
tarefa dos
Socialismo
ataque à fé no
como uma fraude
crença na superioridade do
Checoslováquia
desvantagem do sistema económico
disfunção do
Hungria
identificação com o trabalho urbano
Polónia
poluição sob o
união ao comunismo
Sociedade das Nações
Sociologia do conhecimento
Sokolovski, Vassily
Solana, Javier
Solidariedade, Movimento. Ver Polónia Soljenitsin, Alexandre
Sollers, Philippe
Solução Final. Ver Holocausto
Sontag, Susan
Sotelo, Calvo
Souvarine, Boris
Sovietização e russificação da Europa de Leste
Spaak, Paul-Henri
Speer, Albert
Spínola, António de
Sputnik
Spychalski, Marian
Srebrenica, Massacre de
Staudte, Wolfgang
Stepinac, cardeal Alois
Stikker, Dirk
Strang, William
Strauss, Franz Josef
Stresemann, Gustav
Suárez, Adolfo
Subnutrição
Subclasse
Subsídio para situação de desemprego compulsivo
Subsídios públicos para as artes
Suchocka, Hanna
Sudetas
Suez, crise do
lições da
Suécia
adesão à União Europeia
como Estado-providência
como simpatizante da causa nazi
constituição
estatística populacional
propriedade privada na actividade comercial
riqueza da
Suíça
como simpatizante da causa nazi
Jjudeus da
Lei Federal sobre o seguro da terceira idade
tráfico de bens pertencentes aos Judeus
Supermercados
Svoboda, Ludvík
Syberberg, Hans-Jürgen
Szalasi, Ferenc
Szasz, Bela
Szelenyi, Ivan
Szilagy, Jozsef
Szlaijfer, Henryk
Sztojay, Dome
T
Tajiquistão
Tarchiani, Alberto
Tasca, Catherine
Taxa de mortalidade infantil
Taxa de mortalidade, Segunda Guerra Mundial
Taxa de natalidade
depois dos êxitos do movimento feminista
Estados Unidos
Europa de leste
planos para um aumento
pós-guerra
Taxas de câmbio fixas, abandono das
Taylor, A.J.P.
Taylor, Telford
Teatro, idade de ouro do modernismo do
Tedeschi, Giuliana
TEJ. Ver Tribunal Europeu de Justiça (TEJ)
Tejero Molina, António
Televisão
Televisão comercial
Teoria, revolução da
Terceira Via, modelo económico da
Terceiro Mundo
Terrorismo
Alemão
anos 70
assassínio de Judeus nos Jogos
Olímpicos de Munique, Setembro Negro
ataques de 11 de Setembro aos EUA
Brigadas Vermelhas (BR). Ver Brigadas Vermelhas (BR) grupo terrorista
consequências do
Exército Republicano Irlandês (IRA). Ver Exército Republicano Irlandês
(IRA) financiamento por parte da União Soviética
Fracção do Exército Vermelho (RAF)
Grego
Italiano
Palestino
Revolucionário
separatistas bascos
Terrorismo Revolucionário
Tertz, Abram
Thälmann, Ernst
Thatcher, Margaret
como radical
consequência das políticas no Partido Conservador
êxitos de
informação biográfica
políticas económicas
políticas sociais
privatização das redes férreas
quanto à reunificação da Alemanha
relativamente à admissão de nações da Europa central e de leste na União
Europeia
tentativa de assassínio por parte do IRA
Thatcherismo
Thompson, E.P.
Thorez, Maurice
Timoshenko, Yulia
Tiso, Father Józef
Tito, Josep Broz
ataque à Igreja Católica
como humilhação para a União Soviética
reformas económicas
ruptura com o Estalinismo
Titoísmo
Tocqueville, Alexis de
Togliatti, Palmiro
Tökes, Lazslo
Torunczyk, Barbara
Toubon, Jacques
Touvier, Paul
Trabalhadores convidados
Trabalhadores estrangeiros, atitude face aos
Trabalho forçado
Transferências de população. Ver Emigração Transformação social
Trânsito, congestionamentos de
Transnístria, independência da
Transporte, sistemas de
automóveis. Ver Automóveis danos causados aos
vias férreas. Ver Vias férreas
Tratado da Comunidade Europeia de Defesa (CED)
Tratado das Quatro Potências
Tratado de Amsterdão
Tratado de Brest-Litovsk
Tratado de Dunquerque
Tratado de Estado da Áustria de 1955
Tratado de Forças Nucleares de Médio Alcance
Tratado de Moscovo de 1970
Tratado de Não-Proliferação Nuclear
Tratado de Paris
Tratado de Proibição Limitada de Testes
Tratado de Roma. Ver Comunidade Económica Europeia (CEE)
Tratado de Versalhes
Tratado Franco-Russo
Tratados de paz
Tratado de Paz Italiano
Tratado de Paz para a Alemanha
Tratado de Paz para a Bulgária
Tratados de Paz de Paris
Tribunal de Justiça das Comnidades Europeias (TJCE)
Tribunal Internacional para Crimes de Guerra em Haia
Tribunal Militar Internacional de Nuremberga. Ver Julgamentos de
Nuremberga
Trieste, Acordos de
Triolet, Elsa
Trocas de população forçadas
Trotsky, Leon
Trotsquistas, partidos
Truffaut, François
Truman, Harry
encomenda da bomba de hidrogénio
Tudjman, Franjo
Tudor, Corneliu Vadim
Turismo
comércio de sexo
indústria espanhola
Turquia
relações com a Grécia
situação do Chipre
U
UCK. Ver Exército de Libertação do Kosovo (UCK)
Ucrânia
abordagem à transição do comunismo ao capitalismo
declaração de independência
declaração de soberania
reformas económicas
trabalhadores convidados
importância para a União Soviética
movimento independentista
salários
nepotismo na
Movimento do Povo para a Perestroika
população da
RUKH
UE. Ver União Europeia
UEO. Ver União Europeia Ocidental (UEO) Ugresic, Dubravka
Ulbricht, Walter
Ulster
União da Europa Ocidental (UEO)
União Democrática Cristã (CDU)
Alemanha Ocidental. Ver Alemanha Ocidental
União Europeia
Acordo de Schengen
acordos iniciais
adesão da Áustria à
admissão dos países da Europa central e de leste à
alargamento da
antipatia pela
benefícios da
benefícios económicos
capacidade de aumento das receitas
como o maior mercado único interno do mundo
como resposta à história
competição económica com os EUA
conflitos armados entre membros da
Conselho de Ministros
consequências do fim da Guerra Fria na
controlo de passaportes
controlo económico exercido pela
Convenção de Giscard
Convenção Europeia
custos da adesão dos países da Europa central e de leste
défice democrático
desafios que se colocam à
direito de participação na
divergência de valores face aos EUA
esforços pré-Primeira Guerra Mundial
Euro
Força de Resposta Rápida
forças armadas
impotência perante as guerras da Jugoslávia
interesses de segurança
mapa (1957-2004)
mapa (pós-2004)
negociações bilaterais de acesso
negociações de Nice
nível de abstenção
orçamento
Política Agrícola Comum
política externa
políticas comerciais preço da admissão à
preocupações em meados dos anos 90
privatização como condição para a adesão à
problemas económicos
proposta para a moeda única
reconhecimento dos crimes do passado por parte dos Estados-nação
relação com as unidades territoriais convencionais
responsabilidade pela segurança dos cidadãos
sistema de governação
sistema governamental/burocrático
subsídios à agricultura
subsídios de apoio à agricultura
território
Tratado Constitucional
Tratado de Amsterdão
Tratado de Maastricht de 1992. Ver Tratado de Maastricht de 1992
vantagens da
União Europeia das Alfândegas
atitude da França face à
atitude da Grã-Bretanha face à
União Soviética
abolição da
absorção dos Estados bálticos
acções conducentes à Guerra Fria
acções conducentes ao império
acordo relativo às fronteiras da Polónia
aligeiramento da censura
apoio do Sionismo. Ver Sionismo, apoio soviético ao aspirações
territoriais
autopublicações subversivas
baixas militares
bodes expiatórios
boicote aos Jogos Olímpicos de 1984
bomba atómica
campos de prisioneiros de guerra
castigos infligidos aos cidadãos
cientistas
Clube Perestroika
colapso da
colectivização agrária
colectivização rural
como império multinacional
competição com a China
condições económicas do pós-guerra
contraste com o Ocidente
contribuinte para o Fundo Monetário Internacional
corrida ao armamento
Crise dos Mísseis Cubanos
danos materiais causados pela ocupação alemã
debate aberto na
denúncia do Tratado de União de 1922
desastre nuclear de Chernobyl
desastres ambientais
desconfiança face ao Ocidente
desconfiança face aos
destalinização controlada
desvantagem do sistema económico
devolução por parte dos Aliados
Ocidentais de cidadãos à
dilema militar
direitos e liberdades na
economia paralela
eleições de 1989
empréstimos à
era pós-Estaline
Estados declarando a independência da
Estados-satélites
Ver também Estado-nação específico estagnação económica
excepções aos planos económicos pós-guerra
exigência de indemnizações
explorações agrícolas minúsculas privadas
financiamento do terrorismo
fracasso da agricultura comum
gastos com o exército
geração de 60
glasnost
golpe de Estado
golpe do Kremlin de Outubro de 1964
Gosplan
governos da Frente
governos de coligação
guerra não oficial contra os seus próprios cidadãos
igrejas na
importações
importância da República da Rússia para a
imposição da ditadura militar na Checoslováquia
incorporação dos Estados da Europa de leste na
indemnizações à Hungria
indemnizações à Roménia
indemnizações alemãs
independência dos Estados-satélites
invasão da Checoslováquia
invasão do Afeganistão
Julgamento Sinyavsky-Daniel
Julgamentos encenados. Ver Julgamentos encenados lealdade dos vizinhos
libertação dos Estados-satélites
Ver também Estado-nação específico máquina de guerra
medidas severas contra a elite intelectual
monopólio das decisões económicas
movimento dissidente
movimento pelos Direitos de Helsínquia
mudança de rumo na política externa
ocupação da Hungria
Operação Danúbio
oportunidades no pós-guerra
oposição da Polónia à,
papel na derrota de Hitler
Partido Comunista da União Soviética (PCUS)
perestroika
perseguições na Polónia e na Alemanha de Leste
plano para as operações militares na Checoslováquia
planos para a indústria
Planos Quinquenais. Ver Comunismo poderio nuclear
política externa
população muçulmana
posição durante a Guerra dos Seis Dias
posição pós-guerra
posicionamento de arma nuclear na Ucrânia
posse da televisão
preço da vitória
procedimento para com a Ucrânia
programa de reeducação e desnazificação
queda do comunismo nos Estados-satélites
razão para o colapso da
reconhecimento do movimento Solidariedade
reformas culturais dos anos 50 e 60
reformas económicas
reformas monetárias
regulamento para o comércio entre os Estados comunistas
religião na
repatriação de nacionais
repressão das reformas de Praga
repúblicas do Báltico
resposta Americana à expansão
resposta de Gorbachev às reivindicações de autonomia por parte dos
Estados-satélites
revolução húngara
ruptura com a Jugoslávia
saque da vitória
Sionismo. Ver Sionismo, apoio soviético ao tirania e terror
Tito como uma humilhação para a
traição e julgamentos políticos pós-guerra
transformação ao longo da década de 90
Tratado de Amizade com a Finlândia
Tratado de Não-Proliferação Nuclear
violações praticadas pelo Exército Vermelho
Unidade Monetária Europeia ( ecu)
United Nations Relief and Rehabilitation Administration (UNRRA)
ajuda à Jugoslávia
assistência à repatriação e ao restabelecimento
fornecimento de alimentos
Universidades
movimentos estudantis. Ver Movimentos estudantis
UNRRA. Ver United States Relief and Rehabilitation Administration
Uri, Pierre
URSS. Ver União Soviética
Usbequistão
Ustase, regime
crimes do
V
Vaculik, Ludvik
Vadim, Roger
Vajda, Mihaly
Valletta, Vittorio
Valões
Varda, Agnés
Varsóvia, Pacto de
comunicação de manobras na fronteira checa
poder militar do
renúncia da Hungria ao
Varsóvia, revolta do gueto de
Vattimo, Gianni
Verheugen, Günter
Versalhes, tratado de
Viagens recreativas
Vias férreas
privatização de Thatcher das
Vichy, regime de
cumplicidade no Holocausto
posição francesa no
tratamento dos judeus
Vichy, síndroma de
Viena
refugiados croatas e bósnios na
judeus em
em 1989
posição pós-guerra
Viena, Congresso de 1815
Vietname
independência da França
divisão do
apoio dos EUA às forças francesas no
Vietname, Guerra
consequências para as decisões
económicas dos EUA
oposição da Alemanha Ocidental à
Vilar, Jean
Vittorini, Elio
Vlaams Blok
Vogel, Hans-Jochen
Volkswagen
von Weizsacker, Richard
Voz da América
W
Wajda, Andrej
Waldheim, Kurt
Walesa, Lech
Wallace, Henry
Walser, Martin
Watson, Sam
Waugh, Evelyn
Webb, W.L.
Wehler, Hans-Ulrich
Wehrmacht
dissolução do
extermínio em massa por
Weil, Simone
Weiss, Peter
Wells, H.G.
Will, George
Williams, Raymond
Wilson, Harold
Wilson, Woodrow
Wirtschaftswunder
Wojtyla, Karol. Ver João Paulo II, Papa
Wolf, Christ
Wolf, Markus
Xenofobia
Xoxe, Koci
Y
Yakovlev, Aleksandr
Yanaev, Gennady
Yeltsin, Boris
eleito presidente
encontro inicial com Bush
Younger, KennethZ
Zantovsky, Michael
Zdanov, Andrei
Teoria dos dois campos
Zhivkov, Todor
Zionismo, apoio Soviético a
Zona privilegiada da Europa
Zona euro
Zweig, Stefan
Índice
Cover
Frontispício
Ficha Técnica
Índice
Prefácio e agradecimentos
Pós-Guerra
Introdução
I Parte Pós-Guerra (1945-1953)
I O Legado da Guerra
II A Retribuição
III A Reabilitação da Europa
IV O Acordo Impossível
V O Começo da Guerra Fria
VI No Turbilhão
VII Guerras Culturais
CODA O Fim da Velha Europa
II Parte A Prosperidade e os Seus Descontentes (1953-1971)
VIII A Política de Estabilidade
IX Ilusões Perdidas
X A Era da Abundância
Postscriptum: Uma História de Duas Economias
XI A Hora da Social-Democracia
XII O Espectro da Revolução
XIII O Fim da Aventura
III Parte Cântico Final: 1971-1989
XIV Expectativas Diminuídas
XV Política com um Novo Registo
XVI Uma Época de Transição
XVII O Novo Realismo
XVIII O Poder dos Sem Poder
XIX O Fim da Velha Ordem
IV Parte Depois da Queda: 1989-2005
XX Um Continente Físsil
XXI O Balanço
XXII A Europa Antiga - e a Nova
XXIII ADiversidade da Europa
XXIV A Europa como Estilo de Vida
Epílogo
Créditos das Fotografias
Índice remissivo

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