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O impulso criativo

Somerset Maugham

Suponho que só muito poucas pessoas sabem o que levou a Srª. Albert Forrester a escrever
A Estátua de Aquiles; e como a obra foi considerada um dos grandesromances do nosso
tempo, não posso deixar de pensar que um breve relato das circunstâncias que lhe deram
origem deve ter interesse para os estudantes deliteratura; e se, realmente, como os críticos
dizem, se trata de uma obra que vai sobreviver, a narrativa que se segue, pretende ser mais
do que uma simplesmaneira de preencher uma hora de ócio, pode ser considerada pelo
historiador do futuro como uma curiosa nota de rodapé para os anais literários dos
nossosdias.

Claro que todos se lembram do sucesso que foi a publicação de A Estátua de Aquiles. Mês
após mês, os tipógrafos afadigaram-se a imprimir e os encadernadores,a encadernar, edição
após edição; e as editoras, tanto na Inglaterra como na América, dificilmente conseguiam
satisfazer as insistentes encomendas daslivrarias. Foi imediatamente traduzido em todas as
línguas européias, e há pouco foi anunciado que brevemente será possível lê-lo em japonês
e em urdu.
Mas a obra já fora publicada, em forma de folhetim, em revistas de ambos os lados do
Atlântico, e dos editores destas recebera já o agente da Senhora Forresteruma soma que só
pode ser descrita como astronômica. O romance foi também dramatizado, e a peça esteve
em cena durante toda uma temporada em Nova Iorque,e poucas dúvidas haverá de que,
quando for produzida em Londres, irá ter um sucesso semelhante. Os direitos
cinematográficos já foram vendidos por um elevadopreço. Embora o montante que consta
(nos círculos literários) que a Senhora Forrester terá recebido seja exagerado, não pode
haver qualquer dúvida de queela terá ganho, só com este livro, o suficiente para a preservar,
para o resto da vida, de qualquer preocupação de caráter financeiro.

Não é muitas vezes que um livro tem simultaneamente os favores do público e dos críticos,
e o fato de ela, quem diria, ter (se assim se pode dizer) conseguidoa quadratura do círculo
deve ter sido para a Srª. Forrester tanto mais gratificante quanto é certo que, embora os
críticos não lhe tivessem regateado elogios(que, claro, ela considerou como devidos) o
público sempre ficara estranhamente indiferente aos seus méritos. Cada obra que publicava,
fino volume lindamenteimpresso e encadernado em bocaxim branco, era saudado como
uma obra prima, sempre a uma coluna, e nas críticas semanais, que só se encontram nas
bibliotecaspoeirentas de clubes muito antigos, mesmo até a página inteira; e todos os
eruditos a liam e elogiavam. Mas aparentemente os eruditos não compram livros,e ela não
vendia. Era realmente um escândalo que uma autora tão notável, com uma imaginação tão
fina e um estilo tão raro fosse desprezada pelo povo. NaAmérica era quase completamente
desconhecida; e embora o Sr. Carl van Vechten tivesse escrito um artigo admoestando
duramente o público pelo seu embotamento,este continuou indiferente. O seu agente,
caloroso admirador do seu gênio, chantangeou um editor americano para aceitar duas das
suas obras, recusando,caso contrário, ceder-lhe outras (romances baratos, sem dúvida) que
ele muito desejava ter, e os dois livros foram publicados. A aceitação que tiverampor parte
da imprensa foi lisonjeira e mostrou que na América os melhores espíritos eram sensíveis
ao seu talento; mas quando chegou a vez do terceirolivro, o editor americano (com aqueles
modos grosseiros que os editores têm) disse ao agente que preferia gastar todo o seu
dinheiro disponível em ginsintético.

Depois de A Estátua de Aquiles, as obras anteriores da Srª. Albert Forrester foram


reeditadas (e o Sr. Carl van Vechten escreveu outro artigo lembrandotriste, mas firmemente
que tinha chamado a atenção do mundo literário para os méritos desta excepcional escritora
há quinze anos) e têm sido tão largamentepublicados que dificilmente poderão escapar à
atenção do leitor culto. Desnecessária se torna, portanto, qualquer referência da minha
parte, e que maisnão seria do que batatas frias depois daqueles dois sutis artigos do Sr. Carl
van Vechten, a Srª. Albert Forrester começou cedo a escrever. A sua primeiraobra (um livro
de elegias) apareceu quando ela era ainda uma donzela de dezoito anos; e desde então, tem
publicado de dois ou de três em três anos, porquetinha, da sua arte, uma idéia demasiado
elevada para uma produção apressada, um volume ou de poesia ou de prosa. Quando A
Estátua de Aquiles foi escrito,ela tinha atingido a respeitável idade de cinqüenta e quatro
anos, de onde se concluirá prontamente que a quantidade das suas obras era já considerável.
Dera já ao mundo meia dúzia de volumes de poesia, publicados com títulos em latim,
como, Felicitas, Pax Maris e Aes Triplex, todos do gênero mais sério,porque a sua musa,
avessa ao saltitar ligeiro e fantástico, pisava um caminho um tanto mais solene. Continuou
fiel à Elegia, e o Soneto tomava muita dasua atenção; mas o que mais a distinguiu foi o fato
de revivificar a Ode, uma forma de poesia que os poetas de hoje como que esquecem; e
pode afirmar-secom segurança que a sua Ode ao Presidente Fallières irá ter um espaço em
todas as antologias de poesia inglesa. É admirável não só pela sonoridade nobredos seus
ritmos, mas também pela sua feliz descrição das agradáveis terras de França. A Srª. Albert
Forrester escreveu sobre o vale do Loire com as suasreminiscências de du Bellay, sobre
Chartres e as janelas ornamentadas da sua catedral, das cidades soalheiras da Provence,
com uma simpatia tanto maisnotável quanto é certo que ela, em França, nunca foi além de
Bolonha, que visitou, pouco depois de casar, numa excursão de barco de Margate. Mas o
sofrimentofísico provocado por um forte enjoo e a humilhação intelectual de descobrir que
os habitantes daquela popular estância balnear não entendiam o seu francêsfluente e
idiomático fizeram com que resolvesse não se expor por segunda vez a experiências que
eram ao mesmo tempo inconvenientes e desagradáveis; e nuncamais se aventurou naquele
elemento traiçoeiro que ela, contudo, cantou em versos graves, mas também doces (Pax
Maris).

Há também umas belas passagens na Ode a Woodrow Wilson, e eu lamento que, devido a
uma mudança nos seus sentimentos em relação àquele homem, sem dúvida,excelente, a
autora decidisse não a reimprimir. Mas creio que terá de se admitir que a obra mais notável
da Srª. Albert Forrester foi em prosa.

Ela escreveu vários volumes de ensaios curtos, mas bem construídos, sobre assuntos tais
como O Outono no Essex, A Rainha Vitória, A Morte, A Primavera emNorfolk, A
Arquitetura Georgiana, Monsieur Diaghileff e Dante; também escreveu obras, tão eruditas
quanto bizarras sobre a Arquitetura Jesuíta do SéculoXVII e sobre o Aspecto Literário da
Guerra dos Cem Anos. Foi a sua prosa que lhe granjeou aquele corpo de admiradores
dedicados, poucos mas bons, comoela, com o seu dom para as expressões, dizia, que a
proclamaram como o maior mestre da língua inglesa que este século vira. Ela própria
confessava queo seu estilo, sonoro, porém rico, polido, porém eloqüente, é que era o seu
ponto forte; e só na prosa é que ela teve oportunidade de mostrar o humor delicioso,mas
contido que os seus leitores achavam tão irresistível. Não era um humor de idéias, nem
mesmo um humor de palavras; era muito mais sutil do que isso,era um humor de
pontuação: num golpe de inspiração, ela descobrira as potencialidades cômicas do ponto e
vírgula, e usou-o abundante e elegantemente. Elaconseguia colocá-los de tal maneira que se
o leitor era uma pessoa de cultura não se ria propriamente a bandeiras despregadas, mas
dava risadinhas deliciosas,e quanto maior a cultura mais deliciosas as risadinhas. Os seus
amigos diziam que isto tornava todas as outras formas de humor grosseiras e exageradas.
Vários escritores tinham tentado imitá-la; mas em vão: por muito que se dissesse sobre a
Srª. Albert Forrester, tínhamos que admitir que ela conseguiaextrair todo o humor do ponto
e vírgula e ninguém se lhe podia comparar.

A Srª. Albert Forrester vivia num apartamento não muito longe de Marble Arch, o que
reunia as vantagens de uma boa localização e uma renda moderada. Tinhauma sala de
visitas elegante que dava para a rua, e um grande quarto de dormir para a Srª. Albert
Forrester, uma sala de jantar um tanto escura nas traseiras,e um quartinho de dormir
acanhado, pegado à cozinha, para o Sr. Albert Forrester, que pagava a renda. Era na
elegante sala de visitas que a Srª. AlbertForrester recebia, todas as terças-feiras à tarde, os
seus amigos. Era um compartimento austero e recatado. Nas paredes um papel desenhado
pelo próprioWilliam Morris, e sobre este, em molduras lisas pretas, gravuras a mezzotinta
colecionadas antes de as mezzotintas se tornarem caras; a mobília era doperíodo
Chippendale, à exceção da escrivaninha, de características vagamente Luís XVI, e na qual a
Srª. Albert Forrester escrevia as suas obras. Isto erareferido aos visitantes da primeira vez
que vinham visitá-la, e poucos a olhavam sem emoção. O tapete era espesso e a iluminação
discreta. A Srª. AlbertForrester sentava-se em um cadeirão de costas direitas forrado de
damasco vermelho. Não havia nisto nada de ostentetatório, mas como aquela era a
únicacadeira confortável da sala, como que a colocava à parte e acima dos convidados. O
chá era servido por uma mulher de idade indefinida, silenciosa e incolorque nunca era
apresentada a ninguém, mas que considerava um privilégio poupar à Srª. Albert Forrester
aquela fastidiosa tarefa. E a Srª. Albert Forresterficava assim livre para se devotar
inteiramente à conversa, e temos de concordar que a sua conversa era excelente. Não era
animada; e uma vez que é difícilmarcar a pontuação na linguagem oral, pode ter parecido a
alguns sofrer de ligeira falta de humor, mas era de âmbito alargado, sólida, instrutiva e
interessante.
A Srª. Albert Forrester era versada em ciências sociais, jurisprudência e teologia. Tinha lido
muito e a sua memória era fiel. Tinha um razoável dom paraas citações, que são um
prestável substituto da inteligência, e tendo conhecido mais ou menos intimamente, ao
longo de trinta anos, muitíssimas pessoasnotáveis, tinha muitas histórias para contar, o que
fazia com tato, não as repetindo mais do que seria perdoável. A Srª. Albert Forrester tinha o
dom deatrair as mais variadas pessoas e podia acontecer encontrarmos em sua sala de uma
só vez e ao mesmo tempo um ex-Primeiro Ministro, o proprietário de umjornal e o
embaixador de uma grande potência. Sempre imaginei que estes notáveis lá iam porque
pensavam que ali conviviam com a boemia, mas com uma boemiaarrumada e limpa quanto
baste para não correrem o risco de ficarem respingados de qualquer sujidade. A Srª. Albert
Forrester interessava-se muito pelapolítica, e eu próprio ouvi um ministro dizer-lhe
abertamente que ela tinha uma inteligência masculina. Ela já fora contra o direito de voto
das mulheres,mas quando finalmente aquele foi reconhecido oficialmente, logo começou a
brincar com a idéia de ir para o Parlamento. O seu problema era que não sabiaqual dos
partidos escolher.

— Afinal — dizia ela com um brincalhão encolher dos ombros um tanto maciços — eu não
posso formar um partido de uma só pessoa.

Tal como muitos patriotas sérios, face à sua incapacidade de saber ao certo para que lado
penderia a balança, manteve as suas opiniões políticas em suspenso;mas ultimamente
estava definitivamente inclinada para o Partido Trabalhista, como a melhor esperança para
o país, e se lhe oferecessem um lugar seguroé quase certo que ela não hesitaria em vir para
campo aberto como campeã do proletariado oprimido.

A sua sala de visitas estava sempre aberta aos estrangeiros, checoslovacos, italianos e
franceses, se eram pessoas notáveis, e americanos mesmo que pessoasobscuras. Mas não
eram esnobes, e raramente lá se encontrava um duque, a não ser que se tratasse de pessoa
de caráter especialmente sério, e uma par doreino apenas se, além da sua categoria social,
tivesse o salvo-conduto de qualquer pequena infração social, como ter sido divorciada, ter
escrito um romance,ou falsificado um cheque, que lhe pudesse dar direito à simpatia da Srª.
Albert Forrester. Não gostava muito dos pintores, que eram tímidos e calados;e os músicos
não lhe interessavam; mesmo que se dispusessem a tocar, e se eram dos consagrados eram
quase sempre muito relutantes, a música era um obstáculopara a conversa: se as pessoas
queriam música podiam ir a um concerto; pela sua parte, preferia a música mais subtil da
alma. Mas a sua hospitalidade paracom os escritores, especialmente se eram promissores e
pouco conhecidos, era calorosa e constante. Tinha dedo para os talentos a desabrochar e dos
escritoresfamosos que de vez em quando bebiam uma xícara de chá com ela muito poucos
haveria cujos primeiros esforços ela não tivesse encorajado e cujos primeirospassos ela não
tivesse guiado. A sua própria posição estava já suficientemente assegurada para sentir
inveja, e ouvira já muitas vezes a palavra gênioligada ao seu nome para sentir o mínimo
traço de ciúme por o talento dos outros lhes trazer o sucesso material que lhe era negado a
ela.

A Srª. Albert Forrester, confiante no julgamento da posteridade, podia dar-se ao luxo da


indiferença. Com todos estes elementos, não admira que ela tenhaconseguido criar qualquer
coisa muito próxima de um salão francês do século XVIII, coisa que a nossa bárbara nação
nunca conseguiu. Ser convidado para"comer um bolo e tomar uma xícara de chá na terça-
feira" era um privilégio que poucos deixavam de reconhecer; e quando nos sentávamos na
nossa cadeiraChippendale naquela sala discretamente iluminada, mas austera, não
podíamos deixar de sentir que estávamos a viver história literária. O embaixador
americanodisse uma vez à Srª. Albert Forrester:

— Uma xícara de chá consigo, Srª. Forrester, é um dos maiores prazeres intelectuais que
alguma vez me calharam em sorte.

Às vezes aquilo era, de fato, um pouco opressivo. O gosto da Srª. Albert Forrester era tão
perfeito, ela admirava tão inevitavelmente a coisa certa e faziasobre ela a observação tão
justa, que por vezes uma pessoa quase sufocava. Pela minha parte, achava prudente
fortificar-me com um ou dois cocktails antesde me expor à atmosfera rarefeita da sua
companhia. De fato, eu estive quase a ser afastado para sempre da sua companhia, porque
uma tarde, apresentando-meà porta, em vez de perguntar à criada que a abriu, "A Srª.
Forrester está?", perguntei, "Hoje há serviço religioso?"

Claro que isto foi dito inadvertidamente, mas por pouca sorte a criada deu um risinho
abafado e uma das admiradoras mais devotadas da Srª. Albert Forrester,Ellen Hannaway,
estava, por acaso, no hall, nesse momento, a descalçar as galochas. Contou à minha anfitriã
o que eu tinha dito antes, e quando entreia Srª. Albert Forrester fixou-me com um olhar de
lince.

— Por que é que o Senhor perguntou se hoje havia serviço religioso? — perguntou ela.

Expliquei que estava distraído, mas a Srª. Albert Forrester fixou-me com um olhar que só
posso descrever como constrangedor.

— O Senhor pretende insinuar que as minhas reuniões são... — procurou a palavra —


sacramentais?

Eu não sabia o que é que ela queria dizer, mas não mostrei a minha ignorância diante de
tantas pessoas inteligentes e decidi que a única coisa a fazer erapegar na faca e na manteiga.

As suas reuniões são exatamente como a Senhora, cara Srª. Forrester, perfeitamente belas e
perfeitamente divinas.

Um ligeiro estremecimento percorreu o corpo robusto da Srª. Albert Forrester. Ficou como
uma pessoa que entra subitamente numa sala cheia de jacintos; operfume é tão forte que
quase fica a gaguejar. Mas recompôs-se.

— Se o Senhor estava a tentar gracejar — disse ela — preferia que o fizesse com os meus
convidados e não com as minhas criadas... A Senhorita Warren vaiservi-lhe o chá.

A Srª. Albert Forrester despediu-me com um gesto da mão mas não esqueceu o assunto,
porque nos dois ou três anos seguintes sempre que me apresentava a alguémnunca deixava
de acrescentar:

— Deve aproveitá-lo o mais que puder, que ele só aqui vem em penitência. Quando chega à
porta pergunta sempre: "Hoje há serviço religioso?" Tão engraçado,não é?

Mas a Srª. Albert Forrester não se limitava aos chás semanais: todos os sábados dava um
almoço a oito pessoas; isto de acordo com a sua opinião de que esteé o número ideal de
pessoas para uma conversa generalizada e também porque a sua sala de jantar não
comportava mais. Se de alguma coisa a Srª. Albert Forresterse gabava não era de que o seu
conhecimento da prosódia inglesa era único, mas de que os seus almoços eram famosos.
Ela escolhia os seus convidados comcuidado, e um seu convite para um deles era mais do
que um cumprimento, era uma consagração. À mesa do almoço era possível manter a
conversa num patamarmais elevado do que no grupo heterogêneo de um chá, e poucos
serão os que terão saído da sua sala de jantar sem levarem com eles uma crença ainda
maiornas capacidades da Srª. Albert Forrester e uma fé mais viva na natureza humana. Ela
só convidava homens uma vez que, grande entusiasta do seu sexo comoela era, e satisfeita
com os encontros com mulheres noutras ocasiões, não podia deixar de saber que elas à
mesa se inclinavam para falar exclusivamentedos seus vizinhos e assim impedirem aquela
troca generalizada de idéias que tornavam as suas reuniões um divertimento não só para o
corpo, como tambémpara a alma. Porque tem que ser dito que a Srª. Albert Forrester nos
dava comida invulgarmente boa, excelentes vinhos e charutos de primeira classe. Orapara
qualquer pessoa que já tenha experimentado a hospitalidade literária isto deve parecer
extremamente notável, dado que as pessoas do meio literário,na sua maior parte, pensam
com elevação e vivem com vulgaridade; a sua mente anda ocupada com as coisas do
espírito e não reparam que o cabrito assadoestá mal passado e as batatas, frias: a cerveja
está muito bem, mas o vinho tem um efeito moderador, e não é muito sensato tocar no café.
A Srª. AlbertForrester ficava bastante contente em receber elogios pela comida que
fornecia.

— Se as pessoas me dão a honra de partilhar as minhas refeições — dizia ela — é muito


justo que lhes dê comida tão boa como a que comem em casa.

Mas se o elogio era excessivo, ela desvalorizava-o.

— Os Senhores estão a deixar-me constrangida ao dar-me um galardão que não me é


devido. Devem é felicitar a Srª. Bulfinch.

— Quem é a Srª. Bulfinch?

— A minha cozinheira.

— Então ela é um achado, mas a Senhora não quer certamente que acreditemos que é ela a
responsável pelo vinho.

— É bom? Eu não entendo nada dessas coisas; entrego-me por inteiro nas mãos do meu
fornecedor de vinhos.

Mas se alguém se referisse aos charutos, a Srª. Albert Forrester ficava radiante.

— Ah, sobre isso devem felicitar o Albert. O Albert é que escolhe os charutos e pelo que
me dizem ninguém entende mais de charutos do que o Albert.

Olhava para o marido, sentado no outro extremo da mesa, com os olhos a brilhar de
orgulho, como uma galinha de raça pura (uma Buff Orpington, de preferência)a olhar para
o seu único pintainho. Havia então um ligeiro alvoroço na conversa, com os convidados,
ansiosos por serem corteses para com o seu anfitriãoe aliviados por finalmente terem
ocasião para isso, a exprimirem a sua estima pelo seu particular mérito.

— São muito amáveis — dizia ele — ainda bem que gostam.


Depois ele fazia uma curta dissertação sobre os charutos, explicando a excelência que
procurava e lamentando a deterioração de qualidade que se seguiraà comercialização da
indústria. A Srª. Albert Forrester ouvia-o com um sorriso complacente, e era evidente que
apreciava o pequeno triunfo do marido. Claroque não se pode falar indefinidamente sobre
charutos, e logo que ela percebia que os convidados começavam a ficar impacientes
introduzia um tópico de interessemais geral, e talvez de maior significado. Albert remetia-
se ao silêncio. Mas tivera o seu momento de triunfo.

Era Albert que tornava os almoços de Forrester um pouco menos atrativos do que os seus
chás, porque Albert era um chato mas, embora plenamente conscientedo fato, sem dúvida,
ela fazia questão que ele fosse aos almoços e tinha até escolhido os sábados (porque nos
outros dias da semana ele estava ocupado)para que ele pudesse estar presente. A Srª. Albert
Forrester sentia que a presença do seu marido nestas ocasiões festivas era uma dívida
inevitável queela pagava ao seu próprio respeito por si mesma. Ela nunca, por um descuido,
admitiria ao mundo que casara com um homem que, espiritualmente, não era umseu par, e
talvez se interrogasse, durante as suas vigílias silenciosas, se de fato se poderia encontrar
um tal homem. Os amigos da Srª. Albert Forresternão se preocupavam com tais dúvidas e
diziam que era horrível que uma mulher como ela tivesse de suportar o fardo de um tal
homem. Perguntavam-se entreeles como é que ela podia ter casado com ele e (sendo a
maioria celibatários) respondiam desesperados que nunca ninguém sabia por que é que uma
qualquerpessoa tinha casado com qualquer uma outra.

Não é que Albert fosse um maçador palavroso e agressivo; não era o gênero de nos agarrar
pelo casaco para nos contar histórias intermináveis ou para nosimportunar com piadas sem
sentido; nem para nos crucificar com frases acacianas ou nos cansar com lugares comuns;
ele era simplesmente tapado. Um zero.
Clifford Boyleston, para quem os românticos franceses não tinham qualquer segredo e que
era, ele próprio, escritor de mérito, já dissera que quando seolhava para uma sala onde
Albert tinha acabado de entrar não se via lá ninguém. Os amigos da Srª. Albert Forrester
consideraram isto muito inteligente,e Rose Waterford, a conhecida romancista e a mais
corajosa das mulheres, aventurara-se a repeti-lo à Srª. Albert Forrester. Embora pretendendo
ter ficadoaborrecida, não conseguira evitar que um sorriso lhe assomasse aos lábios. O seu
comportamento para com Albert não podia deixar de aumentar ainda maisa consideração
em que os seus amigos a tinham. Ela insistia que fosse o que fosse que pensassem dele,
deviam tratá-lo com o decoro que era devido ao seumarido. O seu próprio procedimento era
admirável. Se por acaso ele fazia qualquer observação, ela escutava-o com uma expressão
agradável, e quando elelhe ia buscar um livro que ela queria ou lhe emprestava o lápis para
ela registar uma idéia que lhe ocorrera, agradecia-lhe sempre. E também não permitiaque os
amigos o esquecessem ostensivamente e, embora, pessoa com muito tato como era, ela
visse que seria pedir muito às pessoas ela andar sempre com ele,e saísse muito sozinha, os
seus amigos sabiam, contudo, que ela esperava que eles o convidassem para jantar pelo
menos uma vez por ano. Ele acompanhava-asempre aos banquetes públicos quando ela ia
discursar, e se ela dava uma palestra, tratava sempre de fazer com que ele tivesse lugar no
estrado.

Albert era, parece-me, de estatura mediana, mas talvez por nunca se pensar nele senão em
ligação com a mulher (de estatura avantajada) só se pensava nelecomo um homem
pequenino. Ele era magro e frágil e parecia mais velho do que era de fato. Tinha a mesma
idade da mulher. O cabelo, que ele trazia sempremuito curto, era branco e pouco abundante,
e usava bigode, que era branco e muito espetado; tinha um rosto fino, estriado, sem
qualquer característicaparticular; e os olhos azuis, que outrora deviam ter sido atraentes,
eram agora pálidos e cansados. Andava sempre muito bem vestido, com calças
mescladas,que ele escolhia sempre do mesmo padrão, casaco preto, e gravata cinzenta com
um pequeno alfinete com uma pérola. Era extremamente discreto, e quando seencontrava
na sala de visitas da Srª. Albert Forrester para receber as pessoas que ela convidara para o
almoço, reparava-se tanto nele como na elegantee sóbria mobília. Era um homem de boas
maneiras, e era com um sorriso agradável e cortês que os cumprimentava com um aperto de
mão.

— Como está? Tenho muito prazer em vê-lo — dizia ele se se tratava de amigos de certa
posição. — Continua bem, espero?

Mas se eram desconhecidos notáveis que iam lá a casa pela primeira vez, ele ia até à porta,
quando eles iam a entrar na sala, e dizia:

— Eu sou o marido da Srª. Albert Forrester. Vou apresentá-lo à minha mulher. Conduzia
então o visitante até onde a Srª. Albert Forrester se encontrava decostas para a luz, e ela,
com um gesto de satisfação e ansiedade, avançava para dar as boas vindas ao desconhecido.
Era agradável de ver o recatado orgulhoque ele tinha na reputação literária da mulher e a
discrição com que ele defendia os seus interesses. Estava sempre presente quando era
desejado e nuncaquando o não era. O seu tato, se não deliberado, era instintivo. A Srª.
Albert Forrester era a primeira a reconhecer os seus méritos.

— Não sei realmente o que faria sem ele — disse ela. — É inestimável para mim. Leio-lhe
tudo o que escrevo e as suas críticas são-me por vezes muito úteis.

— Molière e o cozinheiro — disse a Senhorita Waterford.

— Isso é para ter graça, querida Rose? — perguntou a Srª. Forrester um pouco ácida.

Quando a Srª. Albert Forrester não gostava de uma observação, falava de uma maneira que
confundia muitas pessoas, perguntando-lhes se era uma graça densademais para se
perceber. Mas era impossível embaraçar a Senhorita Waterford. Era uma Senhora que no
decurso de uma longa vida tinha tido muitas relações,mas uma só paixão, a tinta de
impressão. A Srª. Albert Forrester, menos do que aceitá-la, tolerava-a.

— Ora, ora, minha querida — respondeu ela — sabe muito bem que ele não existiria sem
si. Não nos conheceria. Deve ser extraordinário para ele poder contactarcom todos as
melhores cabeças e com todas as pessoas mais notáveis do nosso tempo. Talvez a abelha
não vivesse sem o cortiço que a abriga, contudo a abelhatem a sua própria importância.

E como, embora versados em arte e literatura, pouco sabiam sobre história natural, os
amigos da Srª. Albert Forrester não tiveram resposta para esta observação.
E ela continuou.
— Ele não se intromete na minha vida. Ele sabe inconscientemente quando não quero ser
incomodada e, na verdade, quando eu estou a seguir um raciocínio achoa sua presença na
sala reconfortante e não um entrave.

— Como um gato persa — disse a Senhorita Waterford.

— Mas um gato persa muito bem educado, fino e bem treinado — respondeu a Srª.
Forrester severamente, pondo assim a Senhorita Waterford no seu lugar.

Mas a Srª. Albert Forrester ainda não tinha terminado.

— Nós, os intelectuais, — disse ela — estamos aptos a viver num mundo exclusivamente
nosso. Nós estamos interessados no abstrato e não no concreto, e àsvezes penso que
observamos minuciosamente o mundo agitado dos problemas humanos de uma distância
demasiado grande e de uma altura demasiado tranquila.
Não acham que corremos o risco de nos tornarmos um tanto desumanos? Ficarei
eternamente grata ao Albert porque ele me mantém em contacto com o homem darua.

Foi por causa desta observação, a que nenhum dos seus amigos podia negar o raro
discernimento e sutileza que caracterizavam tantas das suas afirmações,que durante um
tempo Albert foi conhecido, naquele seu círculo mais restrito, como O Homem da Rua.
Mas foi só por pouco tempo, e foi logo esquecido. Passoudepois a ser conhecido por O
Filatelista. Foi Clifford Boyleston, com o seu espírito malicioso, que inventou o nome. Um
dia, cansada a sua pobre cabeçado esforço de manter uma conversa com Albert, perguntara-
lhe em desespero:

— O Senhor coleciona selos?

— Não, — respondeu-lhe Albert humildemente. — Não coleciono.

Mas mal acabara de fazer a pergunta, Clifford Boyleston viu as possibilidades que aquilo
continha. Ele escrevera um livro sobre a tia de Baudelaire porafinidade, que atraíra a
atenção de todos os que se interessavam pela literatura francesa, e era bem conhecido pelo
fato de nos seus estudos exaustivosdo espírito francês ter absorvido uma bela porção da
vivacidade e do brilho galeses. Não ligou à negativa de Albert, e na primeira oportunidade
informouos amigos da Srª. Albert Forrester de que tinha finalmente descoberto o segredo de
Albert. Ele colecionava selos. E depois nunca o encontrava que não lheperguntasse:

— Então, o Sr. Forrester, como é que vai a colecção de selos? — Ou — Já comprou alguns
desde a última vez que o vi?

Pouco importava que Albert continuasse a negar que colecionava selos, a invenção era boa
demais para ser desperdiçada; os amigos da Srª. Albert Forrestercontinuavam a dizer que
sim, que ele colecionava selos, e raramente falavam com ele que não lhe perguntassem
como iam as coisas. Mesmo a Srª. Albert Forrester,quando estava particularmente bem
disposta, se referia às vezes ao marido como O Filatelista. O nome parecia de fato assentar-
lhe como uma luva. Por vezesfalavam assim dele mesmo à sua frente, e não podiam deixar
de apreciar a bonomia como que ele aceitava aquilo; sorria sem ressentimento e acabou por
nemsequer lhes retorquir que estavam enganados.

Claro que a Srª. Albert Forrester tinha um sentido social suficientemente apurado para
prejudicar o sucesso dos seus almoços permitindo que os seus maisdistintos convidados se
sentassem ao lado de Albert. Ela tinha o cuidado de providenciar para que esses lugares
fossem ocupados apenas pelos seus amigosmais antigos e mais íntimos e quando as vítimas
designadas chegavam ela dizia-lhes:

— Já sabia que não se importam de ficar ao lado do Albert, não é verdade?

Eles só podiam dizer que ficariam encantados, mas se as suas expressões denunciassem
claramente a sua consternação ela afagava-lhes a mão a brincar e acrescentava:

— Para a próxima ficam ao meu lado. O Albert é tão tímido com pessoas estranhas e os
Senhores sabem tão bem como lidar com ele.

Realmente sabiam: ignoravam-no simplesmente. Para eles, era como se a cadeira em que
ele se sentava estivesse vazia. E ele não mostrava qualquer sinal deque o aborrecia o fato de
não ter a atenção daquelas pessoas que afinal comiam aquilo que ele pagava, uma vez que
os proventos da Srª. Forrester não chegariampara oferecer salmão e aspargos aos seus
convidados. Ficava quieto e calado e, se abria a boca era apenas para dar uma ordem a uma
das criadas. Se um dosconvidados era novo para ele, ficava a olhar para ele de uma maneira
que seria embaraçosa senão fosse tão infantil. Parecia interrogar-se sobre o que seriaaquela
estranha criatura; mas que resposta aquele plácido escrutinar lhe dava nunca ele revelava.
Quando a conversa ficava animada, olhava de uns paraos outros dos falantes, mas também
nada se poderia saber pelo seu rosto magro e estriado o que ele pensava das fantásticas
idéias que eram lançadas deum lado para o outro da mesa.

Clifford Boyleston dizia que todo o espírito e sabedoria que ele ouvia lhe passava sobre a
cabeça como água pelas costas de um pato. Desistira de tentarcompreender e agora apenas
aparentemente escutava. Mas Harry Oakland, o versátil crítico, dizia que Albert absorvia
tudo; achava tudo maravilhoso, e coma sua pobre cabeça confusa tentava entender as coisas
maravilhosas que ouvia. Claro que na City ele devia gabar-se das pessoas notáveis que
conhecia, talvezele aí fosse um farol dos saber e das letras, uma autoridade sobre o ideal;
seria divino poder saber o que ele fazia de tudo aquilo. Harry Oakland eraum dos mais fiéis
admiradores da Srª. Albert Forrester, e já escrevera um ensaio brilhante e subtil sobre o seu
estilo. Com as suas feições belas e refinadasparecia um S. Sebastião que tivera um acidente
com o seu restaurador de cabelo; porque ele era invulgarmente cabeludo. Era ainda muito
jovem, tinha menosde trinta, mas fora já sucessivamente crítico teatral e crítico literário,
crítico musical e crítico de pintura. Mas estava a ficar cansado da arte e ameaçava,no
futuro, devotar os seus talentos à crítica desportiva.

Devo explicar que Albert trabalhava na City, e era uma pouca sorte que os amigos da Srª.
Forrester achassem que ela sustentava com meritória firmeza queele nem rico era. Seria
uma coisa muito romântica se ele fosse um príncipe mercador que tivesse nas mãos o
destino de nações ou mandasse navios carregadosde especiarias raras para aqueles portos
do Levante cujos nomes deram a tantos poetas um ritmo tão rico e tão raro. Mas Albert era
apenas um simples comerciantede groselha de que não se exigia mais do que proporcionar à
Srª. Albert Forrester uma vida com distinção e até com liberalidade. Como a sua atividade
oprendia no escritório até às seis da tarde, nunca conseguia estar nas Terças-feiras da Srª.
Albert Forrester antes de os convidados mais importantes seterem ido embora. À hora a que
ele chegava raramente havia na sala mais do que três ou quatro dos seus amigos mais
íntimos a falar livremente e a gracejarsobre os convidados que tinham já saído, e quando
ouviam Albert meter a chave na fechadura concluíam unanimemente que já era muito tarde.
Ele abria logoa porta com os seus modos hesitantes e olhava calmamente para dentro. A Srª.
Albert Forrester saudava-o com um sorriso brilhante.

— Entra, Albert, entra. Acho que já conheces toda a gente aqui.

Albert entrava e cumprimentava todos os amigos da mulher com um aperto de mão.

— Vens da City? — perguntava ela ansiosa, sabendo embora que ele não podia ter vindo de
mais parte nenhuma. — Queres um chá?

— Não, obrigado, querida. Já tomei chá no escritório.

A Srª. Albert Forrester sorria-lhe ainda com mais brilho nos olhos, e o resto da companhia
achava que ela era perfeitamente maravilhosa para com ele.

— Ah, mas eu sei que tu gostas de uma segunda xícara. Vou eu mesmo servir-te.

Dirigia-se para a mesinha do chá e, esquecendo-se de que o chá tinha sido feito há uma
hora e meia e estava já completamente frio, enchia-lhe uma xícarae juntava o leite e o
açúcar. Albert pegava na xícara com uma palavra de agradecimento e mexia-o docilmente,
mas quando a Srª. Forrester retomava a conversaque a sua chegada interrompera, pousava
calmamente o chá sem o provar. A sua chegada era o sinal para pôr fim à reunião e, um a
um, os restantes convidadosiam saindo. Certa vez, porém, a conversa era tão absorvente e o
ponto em discussão tão importante que a Srª. Albert Forrester nem queria ouvir falar dese
irem embora.

— Isto tem de ser resolvido de uma vez por todas — observou ela de uma maneira quase
maliciosa — é um assunto em que o Albert deve ter uma palavra a dizer.
Ouçamos a sua opinião.

Isto passou-se na altura em que as mulheres começaram a usar o cabelo curto e o assunto
em discussão era se a Srª. Albert Forrester deveria ou não cortaro cabelo. A Srª. Albert
Forrester era uma mulher cuja presença se impunha. Ela era larga de ossos, que estavam
bem guarnecidos; se não fosse tão alta eforte poderia dar a impressão de corpulência. Mas
ela transportava o seu peso com elegância. As suas feições eram um pouco maiores do que
o natural, eera isto que, sem dúvida, lhe dava ao rosto aquele ar de intelectualidade viril que
certamente tinha. A pele era escura e poder-se-ia pensar que ela tinhaalguns vestígios de
sangue levantino nas veias: ela confessava que não podia deixar de pensar que devia haver
nela uma ascendência cigana e que isso, sentiaela, justificava aquela paixão selvagem e sem
lei que caracterizava a sua poesia. Os olhos eram grandes, pretos e brilhantes, o nariz como
o do grandeDuque de Wellington, mas mais carnudo, e o queixo, quadrado e determinado.
Tinha uma boca grande, com lábios vermelhos cheios que não deviam nada aos
cosméticos,pois a Srª. Albert Forrester nunca condescendera a usar tal coisa; e o cabelo,
espesso, forte e grisalho, era puxado para o alto da cabeça de tal maneiraque aumentava a
sua já dominante estatura. Era uma mulher com um ar imponente, para não dizer alarmante.

Andava sempre vestida adequadamente, com tecidos ricos, de tonalidade escura e tinha
todo o aspecto de uma mulher de letras; mas à sua discreta maneira(afinal era humana e
sensível à vaidade) seguia as modas e os seus vestidos estavam na moda. Parece-me que,
durante um tempo, ela andou ansiosa por cortaro cabelo, mas achava que ficaria melhor
fazê-lo à solicitação dos amigos do que de sua própria iniciativa.

— Oh, corte, corte — dizia Harry Oakland, com os seus modos ansiosos e infantis. —
Ficava-lhe bem mais bem.

Clifford Boyleston, que andava agora a escrever um livro sobre Madame de Maintenon,
tinha dúvidas. Achava que era uma experiência perigosa.

— Eu acho — disse ele limpando os óculos com um lenço de cambraia — eu acho que
quando uma pessoa cria uma certa imagem deve conservá-la. Como é que LuísXIV ficaria
sem a sua cabeleira?

— Eu estou muito hesitante — disse a Srª. Forrester. — Afinal, nós devemos acompanhar
os tempos. Eu sou do meu tempo e não quero ficar para trás. A América,como disse
Wilhelm Meister, é aqui e agora. — Voltou-se vivamente para Albert. — O que é que o meu
mestre e senhor tem a dizer a isto? Qual é a tua opinião,Albert? Cortar ou não cortar: Eis a
questão.

— Eu acho que a minha opinião não é muito importante, querida — respondeu ele
mansamente.

— Para mim é da maior importância — respondeu a Srª. Albert Forrester, lisonjeira.

Ela não podia deixar de ver a maneira maravilhosa como os seus amigos achavam que ela
tratava O Filatelista.

— Insisto, — continuou ela, — insisto. Ninguém me conhece melhor do que tu, Albert.
Vai-me ficar bem?

— Talvez, — continuou ele. — Só receio que com o teu aspecto de estátua, o cabelo curto
possa fazer lembrar... bem, digamos, a ilha grega onde a ardenteSafo amou e cantou.

Houve uma breve pausa de embaraço. Rose Waterford abafou um risinho, mas os outros
mantiveram um silêncio de pedra. O sorriso da Srª. Forrester gelou-senos lábios. Albert
deixara cair uma bomba.
— Sempre achei Byron um poeta medíocre. — disse a Srª. Albert Forrester por fim.

A reunião acabou. A Srª. Albert Forrester não cortou o cabelo e nunca mais se tocou no
assunto.

Foi já quase no fim de mais uma das terças-feiras da Srª. Albert Forrester que se deu o
acontecimento que tão grande importância teve na sua carreira literária.

Fora um dos seus chás mais bem sucedidos. Tinha lá estado o lider do Partido Trabalhista e
a Srª. Albert Forrester tinha ido tão longe quanto podia, semse comprometer
definitivamente com uma confidência, de que estava decidida a tentar a sua sorte com o
Partido. A altura era propícia e se ela queria lançar-senuma carreira política tinha de chegar
a uma decisão. Clifford Boyleston trouxera com ele um membro da Academia Francesa e,
embora ela soubesse que elenão tinha qualquer domínio do inglês, ficara muito grata ao
receber dele um amável elogio pelo seu estilo floreado, mas cristalino.

Tinham lá estado o Embaixador Americano e um jovem príncipe russo que pareceria um


gigolô, não fora o seu sangue genuinamente Romanoff. Uma duquesa, quese tinha
divorciado recentemente do seu duque e casado com um jockey, tinha sido muito amável; e
as suas folhas de morangueiro, embora secas e amarelas,emprestaram um certo tom à
reunião. Houvera uma perfeita galáxia de luzes literárias. Mas agora já todos tinham ido
embora à exceção de Clifford Boyleston,Harry Oakland, Rose Waterford, Oscar Charles e
Simmons.

Oscar Charles era uma criatura pequenina, como um gnomo, jovem ainda, mas com a cara
engelhada de um macaco astuto, de óculos dourados, e que ganhava avida num
departamento governamental mas passava o seu tempo livre em busca de literatura.
Escrevia pequenos artigos para os semanários baratos e nutriaum intrépido desprezo pelo
mundo em geral. A Srª. Albert Forrester gostava dele, considerando que tinha talento, mas,
embora ele sempre exprimisse a maioradmiração pelo seu estilo (fora ele, aliás, que lhe
dera o nome de mestra do ponto e vírgula), o seu azedume era tão generalizado que ela
também como queo temia. Simmons era o seu agente; um homem de rosto redondo que
usava lentes tão fortes que os olhos por detrás delas pareciam estranhos e deformados.
Faziam lembrar os olhos de um qualquer crustáceo bizarro que tivéssemos visto num
aquário. Ele vinha regularmente aos chás da Srª. Albert Forrester, emparte porque tinha a
maior admiração pelo seu gênio, e em parte, também, porque, para ele, era de toda a
vantagem conhecer ali possíveis clientes.

A Srª. Albert Forrester, para quem ele já trabalhava há longo tempo a troco de uma
recompensa insignificante, não se arrependia de lhe proporcionar um pequenoganho
honesto, e tinha o cuidado de o apresentar, com calorosas expressões de gratidão, a quem
quer que fosse que pudesse ter matéria literária para vender.
Era com orgulho que ela recordava que as reputadas e muito lucrativas memórias de Lady
St.Swithin tinham sido pela primeira vez discutidos na sua salade visitas.
Estavam todos sentados formando um círculo de que a Srª. Albert Forrester era o centro e
discutiam brilhantemente e, deve confessar-se, algo maliciosamente,sobre as várias pessoas
que lá tinham estado naquele dia. A Senhorita Warren, a pálida mulher que durante duas
horas servira o chá, andava silenciosamenteà volta da sala a recolher as xícaras deixadas
aqui e ali. Ela tinha um emprego indefinido, mas estava sempre pronta a presidir aos chás
da Srª. Albert,e à noite datilografava-lhe os manuscritos. A Srª. Albert Forrester não lhe
pagava este serviço, considerando, e muito bem, que ela é que fazia muito poraquela pobre
criatura; mas dava-lhe os bilhetes para o cinema que lhe eram oferecidos e presenteava-a
muitas vezes com peças de vestuário que ela própriajá não usava.

A Srª. Albert Forrester estava a falar fluentemente, na sua voz cheia e bastante profunda, e
os restantes escutavam-na com atenção. Estava em boa formae as palavras que lhe saíam da
boca em torrentes podiam ser passadas a escrito sem alteração. De repente, ouviu-se um
grande barulho no corredor como seuma coisa muito pesada tivesse caído, e depois o som
de uma discussão.

A Srª. Albert Forrester calou-se e um ligeiro franzir do sobrolho ensombrou-lhe a fronte


verdadeiramente nobre.

— Acho que já era tempo de saberem que eu não quero estas algazarras devastadoras cá em
casa. Importa-se de tocar a campainha, a Senhorita Warren, e perguntara razão deste
tumulto?

A Senhorita Warren tocou a campainha e imediatamente apareceu a criada. A Senhorita


Warren, para não interromper a Srª. Albert Forrester, falou com ela,à porta, em voz baixa.
Mas a Srª. Albert Forrester, algo irritada, interrompeu-se ela mesmo.

— Então, Carter, o que foi que aconteceu? A casa está a cair ou finalmente rebentou a
revolução vermelha?

— Desculpe, Senhora, foi a mala da nova cozinheira. — respondeu a criada. — O


carregador deixou-a cair quando vinha para dentro e a cozinheira ficou aborrecida.

— O que é que queres dizer com "a nova cozinheira"?

— A Srª. Bulfinch foi-se embora hoje à tarde, Senhora, — disse a criada.

— A Srª. Albert Forrester ficou a olhar para ela.

— É a primeira vez que ouço falar disso. A Srª. Bulfinch despediu-se? Logo que o Sr.
Forrester chegue diz-lhe que quero falar com ele.

— Sim, Senhora.

A criada saiu e a Senhorita Warren voltou para a mesa do chá. Mecanicamente, embora já
ninguém o quisesse, serviu várias xícaras de chá.
— Isso é uma catástrofe! — exclamou a Senhorita Waterford.

— A Senhora tem de fazer com que ela volte — disse Clifford Boyleston. — É um tesouro,
essa mulher, uma cozinheira notável, e cada dia que passa fica aindamelhor.

Mas nesse momento, a criada entrou de novo com uma carta numa pequena salva e
entregou-a à patroa.

— O que é isto? — perguntou a Srª. Albert Forrester.

— O Sr. Forrester mandou-me entregar-lhe esta carta quando a Senhora perguntasse por
ele, — disse a criada.

— Então onde é que está o Sr. Forrester?

— O Sr. Forrester saiu, Senhora, — respondeu a criada como se a pergunta a


surpreendesse.

— Saiu? Está bem. Pode ir.

A criada saiu da sala e a Srª. Albert Forrester, com uma expressão de perplexidade no rosto
largo, abriu a carta. Rose Waterford disse-me que o seu primeiropensamento foi que Albert,
com receio do descontentamento da mulher em relação à saída da Srª. Bulfinch, se tivesse
atirado ao Tâmisa. A Srª. Albert Forresterleu a carta e um ar de consternação passou-lhe
pelo rosto.

— Oh, isto é incrível! Incrível! Incrível!

— O que foi, a Srª. Forrester?

— A Srª. Albert Forrester arranhava o tapete com o pé, como um cavalo impaciente e bem
disposto a escavar o chão, e, cruzando os braços com um gesto queé indescritível (mas que
às vezes se vê numa peixeira prestes a fazer uma cena) baixou o olhar para os seus amigos
curiosos e extremamente alarmados.

— O Albert fugiu com a cozinheira.

Houve um suspiro de consternação. E então aconteceu qualquer coisa de terrível. A


Senhorita Warren, que estava junto da mesa de chá, de repente sufocou.
A Senhorita Warren, que nunca abria a boca e a quem ninguém dirigia a palavra, a
Senhorita Warren, que nenhum deles, embora vendo-a todas as semanas hátrês anos, teria
reconhecido na rua, a Senhorita Warren de repente desatou descontroladamente à
gargalhada. Num gesto unânime, toda a gente, aterrada,se voltou e ficou a olhar para ela.
Sentiam-se como Balaam deve ter se sentido quando o seu burro começou a falar. Ela,
positivamente, guinchava a rir.
Havia um inominável horror naquela cena, como se, subitamente, num fenômeno natural
qualquer coisa tivesse falhado, e as pessoas estavam tão espantadascomo se as cadeiras e as
mesas, sem avisar, começassem a saltitar pela sala numa dança grotesca. A Senhorita
Warren tentou conter-se, mas quanto mais tentavamais impiedosamente o riso a sacudia, e
pegando num lenço, enfiou-o na boca e correu para fora da sala. A porta bateu atrás dela.

— Histeria. — disse Clifford Boyleston.

— Pura histeria, claro. — disse Harry Oakland.

Mas a Srª. Albert Forrester não disse nada.

A carta estava caída aos seus pés e Simmons, o agente, apanhou-a e entregou-lha. Ela não
queria pegar-lhe.

— Leia-a, — disse ela. — Leia-a alto.

O Sr.Simmons empurrou os óculos para a testa e segurando a carta muito perto dos olhos
leu o que se segue:

Querida,

A Srª. Bulfinch sente necessidade de mudar e decidiu ir-se embora, e, como eu não me sinto
inclinado a continuar aqui sem ela, também vou. Já tomei todaa literatura que consigo
agüentar, e estou farto da arte.

A Srª. Bulfinch não se preocupa muito com o casamento, mas se tu quiseres divorciar-te ela
está disposta a casar comigo. Espero que aches a nova cozinheirasatisfatória. Tem
excelentes referências. Para te poupar possíveis problemas, informo-te de que a Srª.
Bulfinch e eu estamos a viver em Kensington Road,nº 411 S.E.

Albert

Ninguém falou. O Sr.Simmons deixou escorregar os óculo de novo para o nariz. O fato era
que nenhum deles, brilhantes como eram e habituados como estavama encontrar tópicos de
conversa adequados a cada situação, conseguia pensar numa observação apropriada. A Srª.
Albert Forrester não era o tipo de pessoaa quem se dessem condolências e cada um receava
demasiado o ridículo do outro para se aventurar ao óbvio. Por fim, Clifford Boyleston
corajosamente veioem socorro.

— Uma pessoa fica sem saber o que há-de dizer — observou ele.

Seguiu-se outro momento de silêncio e depois falou Rose Waterford.

— Que aspecto tem a Srª. Bulfinch? — perguntou.

— Como é que eu hei-de saber? — respondeu a Srª. Albert Forrester um tanto aborrecida.
— Nunca olhei para ela. O Albert é que contratava sempre os empregados.
Ela só aqui entrou por uns momentos para eu ver se a sua aura era satisfatória.
— Mas com certeza que a via todas as manhãs quando tratava dos assuntos domésticos.

— O Albert é que tratava dos assuntos domésticos. Ele queria assim, para que eu ficasse
livre para me devotar ao meu trabalho. Nesta vida, a pessoa temde estabelecer limites.

— O Albert é que destinava os almoços? — Perguntou Clifford Boyleston.

— Claro. Era a sua área.

Clifford Boyleston ergueu ligeiramente as sobrancelhas. Que idiota tinha sido em nunca ter
adivinhado. Albert é que era o responsável pela maravilhosa comidada Srª. Albert Forrester!
E claro que era a ele que se devia o fato do excelente Chablis estar sempre suficientemente
arrefecido, passar tão fresco naboca, mas nunca frio ao ponto de perder aquele seu aroma e
paladar.

— É evidente que ele sabia o que era a boa comida e o bom vinho.

— Eu sempre vos disse que ele tinha os seus pontos fortes — respondeu a Srª. Albert
Forrester, como se Clifford estivesse a criticá-la. — Todos vocês seriam dele. Ninguém
queria acreditar quando eu dizia que lhe devia muito.

Não houve uma resposta para isto, e uma vez mais fez-se um silêncio pesado e ominoso. De
repente o Sr.Simmons lançou uma bomba.

— Tem de o fazer voltar.

A surpresa foi tal que se não estivesse encostada à lareira a Srª. Albert Forrester teria sem
dúvida cambaleado dois passos atrás.

— Que diabo quer o Senhor dizer com isso? — exclamou ela. — Nunca mais o quero ver,
enquanto for viva. Recebê-lo de novo? Nunca. Nem que ele viesse pedir-mede joelhos.

— Eu não disse recebê-lo de novo; o que eu disse foi, fazê-lo voltar.

Mas a Srª. Albert Forrester não deu qualquer atenção àquele interrupção deslocada.

— Fiz tudo por ele. Que seria dele sem mim, pergunto-vos eu? Ofereci-lhe uma posição a
que nem em sonhos ele poderia alguma vez aspirar.

Ninguém podia negar que havia qualquer coisa de majestoso na indignação da Srª. Albert
Forrester, mas isto não pareceu ter qualquer efeito sobre o Sr.Simmons.

— De que é que a Senhora vai viver?

— A Srª. Albert Forrester atirou-lhe um olhar totalmente despido de amabilidade.


— Deus há-de ajudar-me — respondeu ela friamente.

— Não acho muito provável — retorquiu ele.

— A Srª. Albert Forrester encolheu os ombros. Estava com uma expressão ofendida. Mas o
Sr.Simmons acomodou-se o melhor que pôde na cadeira e acendeu umcigarro.

— A Senhora sabe que não há admirador da sua arte mais caloroso que eu — disse ele.

— Do que eu — corrigiu Clifford Boyleston.

— Ou que o Senhor — continuou o Sr.Simmons maliciosamente. — Todos concordamos


que não há ninguém agora a escrever cuja comparação a Senhora possa temer.
Tanto em prosa como em verso a Senhora é absolutamente de primeira classe. E o seu
estilo... bem, toda a gente conhece o seu estilo.

— A opulência de Sir Thomas Browne com a limpidez de Cardinal Newman — disse


Clifford Boyleston. — A vivacidade de John Dryden com a precisão de JonathanSwift.

O único sinal de que a Srª. Albert Forrester ouvira foi o sorriso que hesitou por momentos
nos cantos da sua boca trágica.

— E tem graça.

— Há alguém no mundo — exclamou a Senhorita Waterford — que consiga pôr tal riqueza
de espírito e de sátira e de observação cômica num ponto e vírgula?

Mas o fato é que a Senhora não vende — insistiu o Sr.Simmons imperturbável. — Há vinte
anos que eu lido com a sua obra e digo-lhe francamente que não teriaenriquecido com a
minha comissão, mas tratei dela porque de vez em quando gosto de fazer o que posso pelas
boas obras. Sempre acreditei em si e sempretive a esperança de que mais cedo ou mais
tarde conseguiríamos que o público a reconhecesse. Mas se pensa que pode viver
escrevendo o tipo de materialque escreve, devo dizer-lhe que não tem hipótese.

— Eu vim ao mundo tarde demais — disse a Srª. Albert Forrester. — Eu devia ter vivido no
século dezoito, quando o patrono rico recompensava uma dedicaçãocom cem guinéus.

— Quanto é que pensa que o negócio da groselha dá?

— A Srª. Albert Forrester deu um suspiro.

— Uma ninharia. O Albert sempre me disse que fazia cerca de mil e duzentos por ano.

— Deve ser um bom gerente. Mas não pode estar à espera que, com esse rendimento, ele
lhe venha a dar muito de pensão. Acredite-me, só tem uma coisa a fazere que é convencê-lo
a voltar para si.
— Preferia viver numas águas-furtadas. O Senhor acha que eu me vou submeter à afronta
que ele me fez? Quer que eu me bata pelo seu afeto com a minha cozinheira?Não se
esqueça de que há uma coisa que, para uma mulher como eu, é mais valiosa do que a sua
tranquilidade e que é a sua dignidade.

— Eu já lá ia — disse o Sr.Simmons friamente.

Olhou para os outros, e aqueles seus estranhos olhos tortos mais do que nunca pareciam
monstruosos e de peixe.

— Não tenho qualquer dúvida — continuou ele — de que a Senhora desfruta de uma
posição notável, quase única, no mundo das letras. A Senhora representa qualquercoisa de
completamente diferente. Nunca prostituiu o seu gênio ao lucro sujo e ergueu bem alto a
bandeira da arte pura. Está a pensar ir para o Parlamento.
Eu, por mim, não tenho a política em muito apreço, mas não se pode negar que isso seria
uma boa publicidade, e se entrar atrevo-me a dizer que podemosarranjar-lhe uma série de
conferências na América com base nisso. A Senhora tem ideais, e o que eu posso assegurar-
lhe é que mesmo as pessoas que nuncaleram uma linha sua a respeitam. Mas há uma coisa
que, na sua posição, a Senhora não pode mesmo permitir-se e que é ser uma anedota.

A Srª. Albert Forrester estremeceu.

— Que diabo quer o Senhor dizer com isso?

— Eu não sei nada sobre a Srª. Bulfinch e pelo que sei ela é uma mulher muito respeitável,
mas o que é fato é que um homem não foge com a sua cozinheirasem pôr a sua mulher a
ridículo. Se se tratasse de uma dançarina ou de uma Senhora da nobreza com certeza que o
caso não a afetaria em nada, mas uma cozinheiraseria o seu fim. Numa semana Londres
inteira se riria de si, e se há coisa que destrua um autor ou um político é o ridículo. A
Senhora tem de fazer comque o seu marido volte para si muito rapidamente.

Um rubor escuro fixou-se na cara de a Srª. Albert Forrester, mas ela não respondeu logo.
Nos ouvidos soou-lhe, de repente, o riso ultrajante e inexplicávelque obrigara a Senhorita
Warren sair da sala a correr.

— Nós aqui somos todos amigos, e a Senhora pode contar com a nossa discrição.

A Srª. Forrester olhou para os amigos e pareceu-lhe já ver nos olhos da Senhorita Waterford
um brilho malicioso. No rosto mirrado de Oscar Charles haviauma expressão bizarra.
Estava arrependida de, num momento de distração, ter traído o seu segredo. O Sr.Simmons,
contudo, conhecia o mundo literário e podiadirigir-se ao resto da companhia.

— Aliás, a Senhora é o centro e a cabeça do mundo deles. O seu marido fugiu, não só de si,
mas deles todos, também. Isto também não é nada bom para eles.
O fato é que Albert Forrester fez de todos vós parvos.
— De todos — disse Clifford Boyleston. — Estamos todos no mesmo barco. Ele tem toda a
razão, a Srª. Forrester, O Filatelista tem de voltar.

— Et tu, Brute.

O Sr.Simmons não sabia latim e se soubesse provavelmente não se deixaria levar pela
exclamação da Srª. Albert Forrester. Pigarreou.

— A minha sugestão é que a Srª. Albert Forrester devia ir falar com ele amanhã, felizmente
temos o endereço, e pedir-lhe que reconsidere a sua decisão.
Eu não sei que tipo de coisas é que uma mulher diz nestas circunstâncias, mas a Srª.
Forrester tem tato e imaginação e tem de dizê-las. Se o Sr. Forresterpuser algumas
condições, deve aceitá-las. Tem de tentar todos os meios.

— Se jogar bem todas as suas cartas não vejo razão para que não consiga trazê-lo de volta
consigo amanhã à noite — disse a Senhorita Rose Waterford agilmente.

— É capaz de fazer isso, Srª. Forrester?

Durante pelo menos dois minutos, voltada de costas para eles, ela olhou fixamente a lareira
vazia; depois, empertigando-se, encarou-os.

— Pela minha arte, não por mim. Não permitirei que o riso obsceno dos filisteus
conspurque tudo aquilo que eu tenho por bom, verdadeiro e belo.

— timo — disse o Sr.Simmons, erguendo-se. Amanhã, quando for para casa, passo por aqui
e espero encontrar-vos, a si e ao Sr. Forrester a arrulharem ladoa lado como um par de
pombinhos.

Despediu-se, e os outros, na ânsia de não ficarem sós com a Srª. Albert Forrester e a sua
perturbação, seguiram-lhe o exemplo.

No dia seguinte, já à tardinha, a Srª. Albert Forrester, majestosa num vestido de seda preto,
e de chapéu de veludo, saiu do seu apartamento para apanharum ônibus em Marble Arch
que a levaria até à Estação de Vitória. O Sr.Simmons tinha-lhe explicado pelo telefone
como ir para Kensington Road rápida e economicamente.
Ela não se sentia, nem estava com ar de Dalila. Em Vitória tomou o bonde que desce a
Vauxhall Bridge Road. Quando atravessou o rio encontrou-se numa partede Londres mais
barulhenta, mais sórdida e mais movimentada do que aquilo a que estava habituada, mas
estava demasiado ocupada com os seus pensamentospara reparar na variedade da paisagem.
Ficou aliviada ao verificar que o bonde seguia ao longo de Kensington Road e pediu ao
cobrador que a deixasse algunsnúmeros antes da casa que procurava. Quando o bonde
parou e depois, aos solavancos, se afastou ruidosamente, deixando-a só naquela rua
movimentada, sentiu-seestranhamente perdida, como um viajante de um conto oriental
abandonado numa cidade desconhecida. Caminhou vagarosamente, olhando à esquerda e à
direitae, apesar dos sentimentos de indignação e constrangimento que lutavam pela posse
do seu peito algo opulento, não pôde deixar de refletir que estava alimatéria para um belo
pedaço de prosa. As pequenas casas mantinham em seu redor o ar de uma época já passada,
quando aqui ainda era quase campo, e a Srª.
Albert Forrester registou na sua infalível memória uma anotação no sentido de que tinha de
se debruçar sobre as associações literárias de Kensington Road.
O número quatrocentos e onze era uma de um renque de casas degradadas que ficavam um
pouco recuadas em relação à rua; em frente havia uma estreita tirade relva maltratada e um
caminho pavimentado que levava até um alpendre gradeado a precisar muito de pintura.
Isto e a trepadeira rara e enfezada que cresciasobre a fachada da casa dava-lhe um ar
falsamente rural que era estranho e até sinistro naquela rua por onde passava, atroando, um
trânsito tumultuoso.
Havia na casa qualquer coisa de duvidoso e que dava a idéia de que ali vivessem mulheres
a quem uma vida de prazer atribuíra uma recompensa inadequada.
A porta foi aberta por uma garota esquelética, de quinze anos, de longas pernas e cabeça
desgrenhada.

— Sabe-me dizer se a Srª. Bulfinch vive aqui?

— A Senhora bateu na porta errada. Segundo andar. A garota apontou as escadas e ao


mesmo tempo gritou estridente:

— Srª. Bulfinch, uma pessoa para falar consigo, Srª. Bulfinch.

A Srª. Albert Forrester subiu as escadas sombrias. Estavam cobertas de uma passadeira já
muito rota. Subiu devagar porque não queria ficar ofegante. Umaporta abriu-se quando ela
chegou ao segundo andar e ela reconheceu a cozinheira.

— Boa tarde, Bulfinch — disse a Srª. Albert Forrester com dignidade. Eu queria falar com
o seu patrão.

— A Srª. Bulfinch hesitou por uma fração de segundo e depois abriu-lhe completamente a
porta.

— Faça favor de entrar, Senhora. Voltou-se para dentro. — Albert, está aqui a Srª. Forrester
para falar contigo.

A Srª. Forrester entrou rapidamente e lá estava Albert sentado junto à lareira, num sofá de
couro, já esfarrapado, de chinelos, e em mangas de camisa. Estavaa ler o jornal da tarde e a
fumar um charuto. Levantou-se quando a Srª. Albert Forrester entrou. A Srª. Bulfinch
acompanhou a sua visita à sala e fechoua porta.

— Como estás, querida? — disse Albert alegremente. — Espero que continues bem.

— Era melhor vestires o casaco, Albert — disse a Srª. Bulfinch. — O que é que a Srª.
Forrester irá pensar encontrando-te nesse preparo? Parece impossível.
Pegou no casaco, que estava pendurado num cabide, e ajudou-o a vesti-lo; e como mulher
familiarizada com as particularidades do vestuário masculino puxou-lheo colete para baixo,
para que ele não ficasse sobre o colarinho.

— Recebi a tua carta, Albert — disse Forrester.

— Já calculava, porque se assim não fosse, não saberias o meu endereço, não é?

— Não se quer sentar, Senhora? — disse a Srª. Bulfinch, limpando com destreza o pó de
uma cadeira, parte de um conjunto coberto de veludo cor de ameixa,e empurrando-a para a
frente.

— A Srª. Albert Forrester, com uma ligeira vênia, sentou-se.

— Eu preferia falar contigo a sós, Albert — disse ela.

Os olhos dele cintilaram.

— Como seja o que for que tenhas a dizer diz respeito tanto à Srª. Bulfinch como a mim,
acho melhor que ela esteja presente.

— Como queiras.

A Srª. Bulfinch puxou uma cadeira e sentou-se. A Srª. Albert Forrester nunca a tinha visto
senão com um grande avental por cima de um vestido estampado.
Agora trazia uma blusa de seda branca rendada, saia preta e sapatos de couro de salto alto,
com fivelas prateadas. Era uma mulher de cerca de quarentae cinco anos, de cabelo
arruivado e rosto avermelhado, não muito bonita, mas com um ar bondoso e alegre. Fazia-
lhe lembrar uma criada de lavoura, já umpouco madura, num alegre quadro de um velho
mestre holandês.

— Bem, minha querida, o que é que tens para me dizer? — perguntou Albert.

A Srª. Albert Forrester olhou-o com o mais brilhante e o mais amável dos seus sorrisos. Os
seus olhos negros brilharam com um bom humor tolerante.

— Claro que tu sabes que isto é perfeitamente absurdo, Albert. Acho que não deves estar no
teu juízo perfeito.

— Achas que sim, querida? Imaginem!

— Eu não estou zangada contigo, apenas acho graça, mas uma graça é só uma graça e não
deve ser levada longe demais. Vim para te levar de volta para casa.

— A minha carta não era bastante clara?


— Perfeitamente. Não vou fazer perguntas e não te vou fazer acusações. Vamos olhar isto
como uma aberração passageira e não se fala mais nisso.

— Nada me levará jamais a viver contigo outra vez, querida — disse Albert, mas de
maneira perfeitamente amigável.

— Não estás a falar a sério?

— Completamente.

Tu amas esta mulher?

— A Srª. Albert Forrester ainda sorria com um brilho de ansiedade e algo metálico. Estava
decidida a levar a questão serenamente. Com o seu pessoal sentidode valores, compreendeu
que a cena era cómica. Albert olhou para a Srª. Bulfinch e um sorriso assomou-lhe ao rosto
engelhado.

— Damo-nos muito bem, não é verdade, minha velha?

— Nada mal — disse a Srª. Bulfinch.

A Srª. Albert Forrester ergueu o sobrolho; o marido nunca, em toda a sua vida de casados, a
tinha chamado de "minha velha"; nem ela, aliás, o teria desejado.

— Se Bulfinch tem alguma consideração ou respeito por ti, deves saber que a coisa é
impossível. Depois da vida que levaste e da sociedade em que te movias,dificilmente
poderá esperar fazer-te permanentemente feliz numa miserável casa mobiliada.

— Não é uma casa mobilada, Senhora — disse a Srª. Bulfinch. — A mobília é toda minha.
Veja a Senhora, eu sou muito independente e sempre gostei der teruma casa mesmo minha.
Portanto, vou conservando isto quer esteja empregada quer não esteja, e assim tenho
sempre um lugar para onde voltar.

— E um lugarzinho muito acolhedor, é verdade — disse Albert.

A Srª. Albert Forrester olhou à sua volta. Na lareira havia um fogão sobre o qual estava uma
chaleira a ferver, e na prateleira um relógio de mármore preto,ladeado por candelabros
também de mármore preto. Havia ainda uma mesa coberta com um tecido vermelho, um
guarda-louça e uma máquina de costura. Nas paredesviam-se fotografias e gravuras
emolduradas tiradas de suplementos do Natal. Atrás, uma porta, coberta com um portière de
pelúcia vermelho, que dava paraaquilo que, considerando o tamanho da casa, a Srª. Albert
Forrester (que nas horas vagas fizera um estudo intensivo de arquitetura) não podia senão
concluirque era o único quarto. A Srª. Bulfinch e Albert viviam numa proximidade que não
deixava dúvidas quanto à sua relação.

— Não foste feliz comigo? — perguntou a Srª. Forrester num tom mais grave.
— Estivemos casados trinta e cinco anos, querida. É muito tempo. É tempo demais. À tua
maneira, és uma excelente mulher, mas não serves para mim. Tu ésdas letras, e eu não. Tu
és das artes, e eu não.

— Sempre tive a preocupação de partilhar contigo os meus interesses. Esforcei-me para que
o meu sucesso não te ofuscasse. Não podes queixar-te de que tedeixei de fora.

— Tu és uma ótima escritora, não o nego nem por um momento, mas a verdade é que eu
não gosto dos livros que escreves.

— Isso, se me permites, apenas revela o teu mau gosto. Todos os críticos concordam que
eles têm força e encanto.

— E não gosto dos teus amigos. Deixa que te revele um segredo. Muitas vezes, nos teus
chás, apetecia-me irresistivelmente tirar a roupa toda para ver oque aconteceria.

— Não aconteceria nada — disse a Srª. Albert Forrester com um leve franzir de
sobrancelhas. — Eu apenas trataria de mandar chamar o médico. Além disso,tu não tens
corpo para tal.

O Sr.Simmons tinha-lhe sugerido que, se preciso fosse, ela não devia hesitar em fazer uso
das seduções do seu sexo para trazer o seu marido errante de voltaao tecto conjugal, mas
ela não sabia minimamente como fazer isso. Não podia deixar de pensar que teria sido mais
fácil se estivesse de vestido de noite.

— Será que uma fidelidade de trinta e cinco anos não conta para nada? Nunca olhei para
outro homem, Albert. Estou habituada a ti. Sem ti vou sentir-me perdida.

— Deixei todos os meus menus à nova cozinheira, Senhora. A Senhora só terá de dizer-lhe
quantas pessoas tem para o almoço e ela trata do resto — disse aSrª. Bulfinch. — Ela é de
inteira confiança, e tem uma mão para bolos como nunca vi.

A Srª. Albert Forrester começou a ficar desanimada. Aquela observação da Srª. Bulfinch,
sem dúvida, bem intencionada, tornava muito difícil a condução daconversa para um plano
em que a emoção pudesse ser natural.

— Parece-me que estás a perder o teu tempo, querida — disse Albert. — A minha decisão é
irrevogável. Já não sou muito novo e queria alguém que tratassede mim. Claro que te vou
estabelecer uma pensão tão generosa quanto as minhas possibilidades. A Corinne quer que
me reforme.

— Quem é a Corinne? — perguntou a Srª. Forrester muito surpreendida.

— É esse o meu nome — disse a Srª. Bulfinch. — A minha mãe era meio francesa.
— Isso explica muita coisa — respondeu a Srª. Forrester, apertando os lábios, porque,
embora fosse uma admiradora da literatura dos nossos vizinhos, elatambém sabia que a sua
moral deixava muito a desejar.

— O que eu digo é que o Albert já trabalhou o suficiente, e é altura de começar a gozar a


vida. Eu tenho uma pequena propriedade em Clacton-on-Sea. É umaregião muito saudável,
e o ar é óptimo. Podemos viver lá muito confortavelmente. E então com a praia e o pontão
há sempre alguma coisa para fazer. A gentede lá é muito boa. Se uma pessoa não se meter
com ninguém, ninguém se mete conosco.

Falei hoje com os meus sócios sobre o assunto e eles estão dispostos a comprar a minha
parte. Isto representa um certo sacrifício. Quando tudo estiver resolvido,fico com um
rendimento de novecentas libras por ano. Como nós somos três, isto dá precisamente
trezentas para cada um.

— Como é que eu vou viver com isso? — exclamou a Srª. Albert Forrester. — Eu tenho
uma posição a manter.

— Tu tens uma pena fluente, fértil e reconhecida, querida.

— A Srª. Albert Forrester encolheu os ombros impacientemente.

— Sabes muito bem que os meus livros não me dão nada a não ser reputação. Os editores
dizem sempre que perdem dinheiro com eles, e, de fato, só os publicamporque eles lhes dão
certo prestígio.

Foi então que a Srª. Bulfinch teve uma idéia que havia de vir a ter consequências de uma
enorme magnitude.

— Por que é que a Senhora não escreve um bom, um excitante romance policial? —
perguntou ela.

— Eu? — exclamou a Srª. Albert Forrester, esquecendo pela primeira vez na vida a
gramática.

— Não é má idéia — disse Albert. — Não é nada má idéia.

— Caíam-me os críticos todos em cima.

— Não tenho tanta certeza disso. Se dermos aos altivos a oportunidade de serem humildes
sem se rebaixarem, eles ficarão tão agradecidos que nem saberãoo que fazer.

— Muito obrigado por esse alívio — murmurou a Srª. Albert Forrester pensativa.

— Minha querida, os críticos vão devorá-lo. E escrito no teu belo inglês não recearão
chamar-lhe uma obra prima.
— A idéia é absurda. É absolutamente estranha ao meu gênio. Nunca poderia esperar
agradar às massas.

— Por que não? As massas querem ler bom material, mas detestam aborrecer-se. Todos
conhecem o teu nome, mas não te lêem porque tu os aborreces. A questão,minha querida, é
que tu és uma maçadora.

— Não compreendo como podes dizer uma coisa dessas, Albert — respondeu a Srª. Albert
Forrester com tão pouco ressentimento como aquele que o Equador provavelmentesentiria
se lhe dissessem que era fresco. — Toda a gente sabe e reconhece que eu tenho um raro
sentido de humor e que não há ninguém que consiga extrairtanta graça de um ponto e
vírgula como eu.

— Se conseguires dar às massas uma história interessante e excitante e que ao mesmo


tempo lhes permita pensar que estão a desenvolver o espírito, podesfazer uma fortuna.

— Eu nunca li um romance policial na minha vida — disse a Srª. Albert Forrester. — Uma
vez ouvi falar de um tal Sr. Barnes de Nova Iorque e disseram-meque ele tinha escrito um
livro chamado O Mistério do Cabriolé. Mas nunca o li.

— Claro que é preciso ter o dom — disse a Srª. Bulfinch. — A primeira coisa a ter em
mente é que as pessoas não querem questões de amor, isso está deslocadonum romance
policial, o que as pessoas querem é assassínios e detetives, e não serem capazes de
descobrir quem foi, antes da última página.

— Mas tens de ser honesta com o leitor, minha querida — disse Albert. — Fico sempre
muito irritado quando as suspeitas recaem sobre a secretária ou sobrea dama da nobreza e
ao fim acaba por ser o criado, que nunca fez mais do que dizer "A carruagem está à porta."
Intriga o teu leitor quanto puderes, masnão faças dele um bobo.

— Eu adoro um bom romance policial — disse a Srª. Bulfinch. — Dêem-me uma dama de
vestido de noite, coberta de diamantes, estendida no chão da bibliotecacom um punhal no
coração e já sei que vou gostar.

— Gostos não se discutem — disse Albert. — Por mim, prefiro um respeitável advogado de
família, com polainas, corrente de relógio de ouro e ar bondoso,jazendo morto no Hyde
Park.

— Com a garganta cortada? — perguntou a Srª. Bulfinch ansiosa?

— Não, apunhalado nas costas. Há qualquer coisa de especialmente atraente para o leitor
no assassínio de um cavalheiro de meia idade de reputação imaculada.
É agradável pensar que aqueles de nós aparentemente mais inocentes têm um mistério na
vida.

— Percebo o que queres dizer, Albert — Disse a Srª. Bulfinch. — Ele era o depositário de
um segredo fatal.
— Podemos dar-te todas as dicas, minha querida — disse Albert a sorrir calmamente. — Eu
já li centenas de histórias policiais.

— Tu!

— Foi isso que nos uniu, à Corinne e a mim. Eu os passava depois de ler.

— Muitas vezes o ouvi apagar a luz quando a aurora começava já a entrar pela janela, e não
podia deixar de sorrir, dizendo para mim mesma: "Acabou, finalmente,agora já pode dormir
um bom sono."

— A Srª. Albert Forrester levantou-se. Empertigou-se.

— Agora vejo o abismo que nos separa — disse ela, e a sua bela voz de contralto tremeu
um pouco. — Durante trinta anos viveste rodeado do melhor que haviana literatura inglesa
e leste centenas de livros policiais.

— Centenas e centenas — interrompeu Albert com um sorriso de satisfação.

— Eu vim aqui disposta a fazer qualquer concessão razoável para que voltasses para casa,
mas agora isso já não me interessa. Tu mostraste-me que nós nãotemos, nem nunca
tivemos, nada em comum. Há um abismo entre nós.

— Muito bem, querida — disse Albert devagar — aceito a tua decisão. Mas pensa bem na
questão do romance policial.

— Agora vou-me embora — murmurou ela — e vou para Innisfree.

— Acompanho-a até lá baixo — disse a Srª. Bulfinch. Tem de se ter cuidado com a
passadeira quando não se sabe exatamente onde estão os buracos.

Dignamente, mas não sem alguma circunspecção, a Srª. Albert Forrester desceu as escadas,
e quando a Srª. Bulfinch lhe abriu a porta e perguntou se ela queriaque chamasse um taxi,
ela abanou a cabeça.

— Vou apanhar o bonde.

— Não tem que recear pelo bem estar do Sr. Forrester, Senhora — disse a Srª. Bulfinch
amavelmente. — Ele vai ter todo o conforto. Tratei do Sr. Bulfinchdurante os três anos da
sua última doença e pouca coisa haverá sobre inválidos que eu não saiba. Isto não quer
dizer que o Sr. Forrester não seja muitoforte e ativo para a idade que tem. E claro que ele
vai arranjar um hobby. Sempre pensei que um homem deve ter um hobby. Ele vai começar
a colecionar selosde correio.

A Srª. Albert Forrester estremeceu de surpresa. Mas justamente nessa altura apareceu um
bonde à vista, e, como qualquer mulher (mesmo as maiores delas)correu, com risco da
própria vida, para o meio da rua a acenar freneticamente. O bonde parou e ela subiu. Não
sabia como é que iria enfrentar o Sr. Simmons.
Ele estaria à sua espera quando ela chegasse a casa. Clifford Boyleston também lá devia
estar. Deviam lá estar todos e ela teria de lhes contar como tinhafalhado miseravelmente.
Naquele momento não experimentava qualquer sentimento de amizade pelo seu pequeno
grupo de dedicados admiradores. Interrogando-sesobre que horas seriam, levantou os olhos
para o homem sentado à sua frente para ver se ele seria o tipo de pessoa a quem ela pudesse
perguntar modestamente,e subitamente estremeceu; porque ali estava um homem de meia
idade, de aspecto muito respeitável, com patilhas, ar bondoso, e corrente de relógio de ouro.
Era exatamente o homem que Albert descrevera jazendo morto em Hyde Park e ela teve de
concluir que ele era um advogado de família. A coincidência era extraordinária,e, de fato,
parecia que a mão do destino lhe estava a acenar. Ele trazia um chapéu de seda, casaco
preto e calças mescla, era algo corpulento, de constituiçãosólida, e a seu lado estava uma
pasta. Quando o bonde ia a meio da Vauxhall Bridge Road ele pediu ao cobrador para parar
e ela viu-o a descer uma ruela.
Porquê? Porquê? Quando o bonde chegou a Vitória, de tão profundamente mergulhada nos
seus pensamentos, só quando o cobrador lhe disse um tanto bruscamenteonde estava é que
ela se levantou. Edgar Allan Poe escreveu contos policiais. Apanhou um ônibus. Sentou-se
e mergulhou em reflexão, mas quando chegou aoHyde Park Corner, decidiu subitamente
descer. Já não agüentava mais estar sentada. Sentia que precisava de caminhar. Passou os
portões a caminhar devagare olhar à sua volta com um ar que era ao mesmo tempo
intencional e abstrato. Sim, havia o Edgar Allan Poe; ninguém o podia negar. Aliás, foi ele
que inventouo gênero, e toda a gente sabia a influência que ele tivera nos Parnasianos. Ou
seria nos Simbolistas? Não interessa. Baudelaire e tudo isso. Ao passarpela Estátua de
Aquiles parou por momentos e olhou de sobrolho erguido.

Por fim chegou a casa, e ao abrir a porta viu vários chapéus no hall. Entrou na sala.

— Aqui está ela, finalmente — exclamou a Senhorita Waterford.

A Srª. Albert Forrester avançou, sorrindo animada, e apertou as mãos que se estendiam. Lá
estavam o Sr. Simmons e Clifford Boyleston, Harry Oakland e OscarCharles.

— Oh, meus pobres amigos, não tomaram chá? — exclamou ela com vivacidade. — Não
faço idéia de que horas serão, mas sei que estou muitíssimo atrasada.

— Então? — disseram eles. — Então?

— Meus queridos, tenho uma coisa maravilhosa para vos contar. Tive uma inspiração. Por
que é que o diabo há-de ter a melhor parte?

— O que é que quer dizer?

Ela fez uma pausa para dar mais efeito à surpresa que lhes ia provocar. Atirou-lhes a notícia
sem mais preâmbulos.

— ... Vou escrever... um romance... policial!


Ficaram de boca aberta a olhar para ela. Ela levantou a mão para evitar que a
interrompessem, mas, de fato, ninguém tinha a menor intenção de o fazer.

— Vou dar ao romance policial a dignidade da Arte. A idéia surgiu-me subitamente no


Hyde Park. É uma história de assassínio e eu só apresento a soluçãomesmo na última
página. Vou escrevê-la num inglês impecável, e uma vez que me ocorreu que ultimamente
eu talvez tenha esgotado as possibilidades do pontoe vírgula, vou-me dedicar à vírgula.
Ninguém ainda explorou as suas potencialidades. Humor e mistério são o meu objetivo.
Vou chamar-lhe A Estátua de Aquiles.

— Que título! Exclamou o Sr.Simmons, recompondo-se antes de qualquer dos outros. —


Eu posso vender os direitos do título e o seu nome.

— Mas, então e o Albert? — perguntou Clifford Boyleston.

— O Albert? — repetiu a Srª. Forrester. — O Albert?

Ela olhou para ele como se não fizesse a mínima idéia daquilo que ele estava a falar. Depois
deu um gritinho como se de repente se tivesse lembrado.

— O Albert! Eu sabia que tinha saído para fazer qualquer coisa e varreu-se-me
completamente da memória. Eu ia a passar no Hyde Park e tive aquela inspiração.
Que parva vocês não devem pensar que eu sou!

— Então não falou com o Albert?

— Esqueci-o completamente, meu caro — Deu uma gargalhada divertida. — O Albert que
fique com a sua cozinheira. Agora não me posso preocupar com o Albert.
O Albert pertence ao período do ponto e vírgula. Agora vou escrever um romance policial.

— A Senhora é realmente extraordinária, minha querida — disse Harry Oakland.

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