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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

LUCIANA NODA

UMA ANÁLISE RETÓRICA DA

FUGA OPUS 87 N° 4 DE DMITRI SHOSTAKOVICH

Dissertação submetida como requisito parcial


para obtenção do grau de Mestre em Música;
área de concentração – Práticas Interpretativas.

Orientação: Profª Dra. Any Raquel Carvalho

Porto Alegre
2006
2

Antônio Gilberto Ortega Hartz Júnior


3

Agradecimentos

Aos meus orientadores, Profª Any Raquel Carvalho, por sua valiosa colaboração,
dedicação e pela harmoniosa convivência, e, Prof. Ney Fialkow, por todo estímulo, confiança
e conhecimento compartilhado.
À Coordenadora deste Programa de Pós-Graduação, Profª Luciana Marta Del Ben,
pelo apoio e incentivo.
À Maria José Carrasqueira, pessoa fundamental no meu desenvolvimento artístico, por
seus ensinamentos, pelo exemplo vivo de artista e de ser humano, por seu amor
incondicional.
Aos meus pais, Yoshio Noda e Clarice Yamada Noda, e a todos aqueles que direta ou
indiretamente contribuíram para a realização e conclusão deste trabalho, especialmente:
Ricardo Ballestero, Ana Isabel Ferreira Rebello, Marília Cauduro Ponte, Humberto Ribeiro
de Almeida, Joana Cunha de Holanda, Bruno Alcalde, Shanda Previdi Olandosky, Fábio
Bezuti, Ilma Cauduro Ponte, Carla Assis, Márcio Martins Soares, Valter Matta, Leonardo
Martinelli, André Carrara, Germano Gastal Mayer, César Funck, Diogo de Haro, Antônio
Ribeiro, Januibe Tejera, Magda Gebhardt, Mário Videira e Graziela de Andrade.
4

Eu sempre achei difícil compor e, por isso, pensando em


facilitar as coisas para mim, talvez eu também tenha que
praticar este tipo de exercício. Mas, a medida em que comecei a
compor essa obra, percebi que estava transcendendo os limites
de um mero exercício técnico. Depois de ter escrito os primeiros
Prelúdios e Fugas, pareceu-me que compor apenas com o
intuito técnico em mente não seria tão interessante... Quando
ouvimos a música de Bach, é impossível não suspeitar que
grande parte da sua obra, incluindo os 48 Prelúdios e Fugas,
foi composta como exercício de sua técnica polifônica refinada.
Eu também queria uma tarefa mais difícil do que apenas
praticar a minha técnica.... Apesar de que essa composição
tenha saído de forma fluída; eu trabalhei muito nela.

Sem dúvida, agora preciso perguntar-me se alcancei meu


objetivo ao escrever prelúdios e fugas que possuam um
conteúdo artístico substancial, e que não constituem um mero
exercício técnico.

Dmitri Shostakovich
(apud BENNETT, 2004)
5

RESUMO

O presente trabalho investiga a retórica da Fuga opus 87 n° 4 de Dmitri


Shostakovich. Para atingir tal objetivo, foram utilizados os trabalhos de Lester (1986, 2001),
Harrison (1990) e Roberts (2004). Neste último, estão os princípios metodológicos utilizados
para a realização desta pesquisa, os quais consistem, basicamente, no reconhecimento dos
elementos identificadores [notable properties], termo utilizado por Roberts para denominar
propriedades distintas de uma fuga. Roberts (2004) aplicou seu método para reconhecer a
natureza, retórica ou literal de quatro fugas de Bach para órgão (BWV 533, 545, 547 e 578).
Na fuga dupla n° 4, em Mi menor, de Shostakovich foram encontrados cinco elementos
identificadores: graus da escala em suspensão, ambigüidade tonal/modal, relação entre
Integrantes, presença do terceiro contra-sujeito para um dos sujeitos e seções paralelas
intensificadas. No discurso, a presença e inter-relações mútuas dos elementos identificadores
estabelecem conflitos, os quais são resolvidos revelando a natureza retórica da composição.

Palavras-chave: fuga dupla, análise retórica, elementos identificadores.


6

ABSTRACT

This study aims to investigate the rhetorical nature of Fugue No. 4, from the
collection of the 24 Preludes and Fugues, Op. 87, by Dmitri Shostakovich. Works by Lester
(1986, 2001), Harrison (1990) and Roberts (2004) form the basis of this research. The latter
contains the methodology utilized in the present study, consisting basically of the recognition
of notable properties in fugues, that is, properties that distinguish one fugue from another.
Roberts (2004) applied this method so as to determine the nature of a fugue – rhetorical or
literal – in four organ fugues by J.S. Bach (BWV 533, 545, 547 and 578). In Fugue No. 4, Op.
87, by Shostakovich, a double fugue in E minor, five notable properties were encountered:
scale degrees in suspension, tonal/modal ambiguity, the relationship between Integrants, the
presence of a third counter-subject for the first subject, and intensified parallel-sections.
Throughout the fugue, these notable properties create conflicts due to their presence and inter-
relationships. However, in the end they are resolved, revealing the rhetorical nature of this
fugue.

Key words: double fugue, rhetorical analysis, notable properties.


7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8
1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 12
2 ANÁLISE 20
2.1 Primeira Seção 22
2.2 Segunda Seção 25
2.3 Terceira Seção 30

3 APLICAÇÃO DO REFERENCIAL TEÓRICO 36


3.1 Primeiro elemento identificador 36
3.2 Segundo elemento identificador 38
3.3 Terceiro elemento identificador 41
3.4 Quarto elemento identificador 45
3.5 Quinto elemento identificador 46
3.6 Resolução dos conflitos: Desfecho Retórico 51

CONCLUSÃO 57
REFERÊNCIAS 60
ANEXO 62
8

INTRODUÇÃO

Os 24 Prelúdios e Fugas op. 87 de Dmitri Shostakovich (1906-1975) compõem uma

parte importante de sua produção musical. Como afirma Moshevich: “o opus 87 de

Shostakovich representa um estilo amadurecido do compositor, refletindo com uma

generosidade sem precedentes o magnificente microcosmo da sua música e seu universo

pianístico” (MOSHEVICH, 2004, p. 131). Mesmo utilizando formas estabelecidas durante os

séculos XVII E XVIII, Shostakovich não perde sua identidade com a música russa

(KHOLOPOV, 1995, p. 75), como no caso da Fuga n° 4 do opus 87, que, conforme descrição

de Moshevich, “faz alusões à música sinfônica e operística de Borodin e Mussorgsky”

(MOSHEVICH, 2004, p. 132). Sob este aspecto, podemos verificar que a Fuga em Mi menor

de Shostakovich também possui características que se assemelham com as fugas para órgão

de J. S. Bach.

O opus 87 (1951) foi inspirado na coleção de 24 Prelúdios e Fugas do Cravo Bem

Temperado, em dois volumes, de Johann Sebastian Bach (MOSHEVICH, 2004, p. 130). Por

ocasião das festividades do bicentenário da morte de Bach, em Leipzig, Shostakovich

presenciou a execução da pianista Tatiana Nicolayeva, a quem dedicou o opus 87, trabalho

que realizou durante o período de outubro de 1950 a fevereiro de 1951 (FANNING e FAY,

2001, p. 294; MOSHEVICH, 2004, p. 131). Todavia, organizando seu ciclo através da

progressão ascendente de quintas1, em modo maior e menor sucessivamente, os 24 Prelúdios e

1
Para a composição dos Prelúdios opus 28, Chopin (1810-1849) utiliza-se desse mesmo tipo de organização
tonal.
9

Fugas de Shostakovich diferem na organização do Cravo Bem Temperado de Bach, que segue

uma progressão cromática.

Dentre as fugas do opus 87, duas são duplas: a Fuga n° 4, em Mi menor, e a n° 24,

em Ré menor. Na Fuga n° 4, os dois sujeitos presentes trazem conteúdos distintos,

conflitantes e que se comportam de maneira rigorosa no que refere à tradição barroca da

técnica fugal. Construída no contexto da linguagem peculiar de Shostakovich, o procedimento

nos remete a uma tentativa de compreender o conteúdo retórico intrínseco ao discurso musical

desta fuga, fato determinante na escolha do objeto desta pesquisa.

A fuga, neste trabalho, é entendida como um procedimento2 composicional imitativo.

La Rue (1970) afirma que:

A fuga representa o desenvolvimento final e mais sofisticado do contraponto


tonal, o fim de uma longa evolução que inclui as etapas de heterofonia, polifonia,
Stimmtausch, contraponto, imitação, cânone e alteração rítmica (...) pode ser mais
esclarecedor como uma cadeia de processos contrapontísticos livremente
selecionados, uma disposição flexível de escolhas dentre um repertório
estereotipado de mecanismos aplicados a uma ou duas idéias iniciais ou sujeitos
(LA RUE, 1970, p. 176-77).

Nos séculos XVII e XVIII, a fuga foi catalogada como uma figura retórico-musical

em diversos tratados. Buelow (2001, p. 262) apresenta uma classificação dessas figuras

retórico-musicais em sete categorias3 no verbete “Rhetoric and Music” do New Grove

Dictionary of Music and Musicians (SADIE, 2001, p. 260). A referida classificação foi

baseada nas figuras mais citadas na literatura musical por teóricos como J. Burmeister (1606),

Lippius (1612), Herbst (1643), Kirsher (1650), Bernhardt (1657), Walther (1708; 1732), Vogt

(1719), Scheibe (1745), Forkel (1788; 1801), entre outros (BUELOW, 2001, p. 263).

2
Como não existe um modelo fixo para fuga, chamamos esta de “procedimento” ou “técnica” de composição , e
não “forma” (CARVALHO, 2002, p. 125).
3
Figuras de repetição melódica, figuras baseadas em imitação de fuga, figuras formadas por silêncio, figuras
formadas por estruturas dissonantes, figuras intervalares, figuras hypotyposis e figuras de sonoridade
(BUELOW, 2001, p. 263).
10

Em um dos tratados mais importantes da época, Der vollkommene Cappelmeister

(1739), Johann Mattheson (1761-1784) transferiu os conceitos da retórica para a música

mediante a divisão dos argumentos do discurso musical em quatro categorias, de acordo com

a sua natureza: inventio, apresentação de uma idéia, argumento; dispositio, arranjo das idéias;

decoratio, figuras retórico-musicais e pronuntiatio, apresentação do discurso para a audiência

(MATTHESON, apud LENNENBERG, 1958, p. 194-5; BUELOW, 2001, p. 262). Com

relação às partes do discurso musical - dispositio -, Mattheson (1739) estabelece as seguintes

correspondências: exordium, introdução ou início de uma melodia que contém a proposição e

a intenção a serem apresentadas, com o intuito de preparar o ouvinte e trazer sua atenção;

narratio, estabelecimento dos fatos; propositio, conteúdo e proposição do discurso;

confutatio, refutação, modulações; confirmatio, afirmação da idéia inicial e peroratio,

conclusão do discurso musical (MATTHESON, apud LENNENBERG, 1958, p. 194-5).

No que tange a compreensão do discurso musical na fuga, através da retórica, podem

ser destacados os artigos de Gregory Butler (1977) e Daniel Harrison (1990). No artigo

“Fugue and Rethoric” (1977), Butler enfatiza a fuga como importante figura retórico-musical

por ser um “procedimento intelectual e de grande capacidade expressiva” (BUTLER, 1977, p

50), e defende uma análise retórica baseada no decoratio em uma estrutura pré-estabelecida

(disposito). Harrison, por sua vez, também aplica os conceitos de retórica na música em seu

artigo “Rhetoric and Fugue: an Analytical Application”, contudo, afirma que o discurso

musical na fuga não possui uma forma pré-estabelecida. Para Harrison (1990), o

procedimento é desenvolvido de acordo com as necessidades e peculiaridades do sujeito para

estabelecer proposição principal (HARRISON, 1990, p. 8).

Seguindo o pensamento de Harrison (1990), este trabalho propõe investigar a

natureza composicional retórica da Fuga opus 87 n° 4 Shostakovich, através da aplicação da

metodologia para análise de fugas proposta por Scott Roberts (2004), em sua tese de
11

doutorado intitulada Toward a Methodology for the Analysis of Fugue: an Examination of

Selected Bach Organ Works. O autor parte da investigação dos elementos identificadores de

uma fuga para demonstrar a sua natureza composicional. O termo elementos identificadores

designa propriedades específicas de uma fuga e os critérios para a identificação desses

elementos serão discutidos no referencial teórico.

Para atingir tal objetivo, o presente trabalho está estruturado em três etapas.

Inicialmente, será exposto o referencial teórico utilizado para aplicar a metodologia. Em

seguida, será realizada uma análise da fuga para identificação dos seus elementos tradicionais

(sujeito, contra-sujeito, episódios, etc.) e suas recorrências dentro da estrutura. Por fim,

proceder-se-á a aplicação da metodologia proposta por Roberts (2004) para detectar os

elementos identificadores, e, conseqüentemente, verificar o desfecho, retórico ou literal, da

Fuga opus 87 n° 4 de Dmitri Shostakovich.


12

1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Esta pesquisa fundamenta-se na proposição metodológica de Scott Roberts (2004)

para a investigação da natureza, retórica ou literal, de uma fuga, apresentada em sua tese de

doutorado intitulada “Toward a Methodology for the Analysis of Fugue: an Examination of

Selected Bach Organ Works”. O autor combina técnicas analíticas tradicionalmente aplicadas

na análise de fugas realizando o cotejo da compreensão do ritmo e polifonia propostos por

Joel Lester (1986; 2003) com a aplicação dos conceitos de retórica na música discutidos por

Daniel Harrison (1990). Dessa maneira, as fontes de Roberts (2004) dão suporte para a

aplicação do referencial teórico desta pesquisa, juntamente com os pressupostos analíticos

discutidos por Lester (1986; 2003) e Harrison (1990).

De Joel Lester são considerados dois estudos nos quais a influência do ritmo é

verificada como elemento atuante na estrutura de uma obra. Tratam-se do capítulo “Rhythm

and Polyphony”, do livro The Rhythms of Tonal Music (1986), e do artigo publicado no

periódico Journal of American Musicological Society, “Heightening Levels of Activity and J.

S. Bach’s Parallel-Section Constructions’ (vol. 54, n°1, 2001).

Na primeira referência, Lester considera o ritmo como elemento organizador de uma

fuga, afirmando que “...um importante componente da individualidade na estrutura de cada

fuga é o ritmo criado por ela” (LESTER, 1986, p. 256). O autor discorre, ainda, sobre a

diferenciação rítmica das vozes, fato que ocorre tanto em obras polifônicas complexas, como

é o caso das fugas, ou em peças menos complexas, como as invenções a duas vozes de Bach

(LESTER, 1986, p. 244-248). Seu trabalho não se limita apenas à identificação do nível de

variação rítmica dos eventos musicais, mas também discute a apropriação deste fenômeno na

divisão estrutural das partes da obra, privilegiando uma coerência na prática composicional.

Lester (1986) afirma que a diferenciação rítmica das vozes, em uma textura

polifônica, tem a função de projetar a independência entre elas. Isso pode ocorrer na relação
13

entre sujeito e contra-sujeito, os quais se complementam em termos de condução de vozes

(LESTER, 1986, p. 245). A interação desses elementos na fuga faz com que o ritmo criado

pela simultaneidade dos eventos venha destacar outros acontecimentos relevantes como

mudanças harmônicas, quebras de textura, mudanças de registros, ou marcos estruturais.

No artigo Heightening Levels of Activity and J. S. Bach’s Parallel-Section

Constructions, Lester (2001) discorre sobre os três princípios que estão presentes na grande

maioria das obras de Bach:

1. “A abertura de uma peça contém a idéia musical central que será desenvolvida ao

longo da composição;

2. A recorrência de material, quase invariavelmente, exibe um nível de maior

atividade em alguns ou todos os elementos musicais;

3. Bach freqüentemente organiza os movimentos de suas obras em seções paralelas4

nas quais as recorrências de maior atividade do material musical estão presentes”

(LESTER, 2001, p. 52-53).

O primeiro princípio diz respeito à unidade temática da idéia musical central

(inventio), enquanto os outros dois referem-se à estrutura (dispositio). Lester (2001)

demonstra que as seções paralelas têm um significado na disposição dos materiais temáticos

que estão de acordo com as idéias retóricas de uma estrutura musical. Através de exemplos

musicais que exibem a ocorrência de seções paralelas em peças de diversos gêneros na obra

de Bach, Lester (2001) comprova como o compositor faz uso dos três princípios para

construir uma estrutura e enfatizar o inventio.

4
Por seções paralelas entendem-se aquelas nas quais a organização do material exposto é equivalente à sua
recorrência em outra seção. Esta recorrência pode ser realizada de diversas maneiras, utilizando técnicas
peculiares de contraponto imitativo em uma estrutura determinada por elas (LESTER, 2001, p. 52-58).
14

O artigo “Rhetoric and Fugue: an Analytical Application” de Daniel Harrison5

(1990) traz uma análise da fuga da Toccata em Mi Bemol Maior (BWV 915) de J. S. Bach,

exibindo a retórica como uma nova proposta para a análise deste tipo de composição.

Contudo, o autor não se refere à retórica das figuras musicais da mesma forma como propôs

Mattheson (1753), Burmeister (1606), e a que Gregory Butler discute em seu artigo “Fugue

and Rethoric” (1975). Ao contrário da tese defendida por Butler, Harrison afirma que retórica

baseada unicamente no decoratio, é uma visão limitada, que padroniza a estrutura da fuga,

tirando dela o seu interesse musical maior, expondo que:

Aplicado à fuga, um tipo de análise pela figura retórica [decoratio] – que Butler
acredita manter a fuga emocionante e enérgica – obscurece a estrutura em ampla
escala e rouba da fuga o seu interesse musical. Esse resultado é exatamente o que a
fuga não necessita; uma análise tradicional já destrói brutalmente a estrutura fugal, e
a fuga tem sido sempre suspeita de ser um veículo artístico favorito de estudantes
eruditos, pedantes e maçantes (HARRISON, 1990, p. 4).

Em seu trabalho, propõe que “retórica é primeiramente o significado da persuasão, e

que a música – e a fuga particularmente – está mais relacionada com a oratória”

(HARRISON, 1990, p. 3). A última proposição fundamenta-se nos conceitos de George

Kennedy (1999), o qual faz uma distinção entre a retórica da persuasão e a retórica de função

literária, denominando-as, respectivamente, de primeira e segunda retórica:

A primeira retórica é a concepção da retórica como esta foi entendida pelos gregos
quando a arte foi, como afirmaram, ‘inventada’ no século V a.C. Retórica era,
fundamentalmente, uma arte de persuasão, inicialmente usada na vida civil, sendo
basicamente oral. A primeira retórica envolve um ato de enunciação numa ocasião
específica; por si só é um ato e não um texto, apesar da enunciação poder ser tratada
como texto posteriormente [...] A segunda retórica, por outro lado, refere-se a
técnicas retóricas como foram encontradas no discurso, literatura e formas de arte
quando estas técnicas não foram usadas com um propósito oral de persuasão. Na
retórica secundária, a oratória não possui uma importância central; este papel é
realizado pelo próprio texto. Manifestações mais freqüentes da retórica secundária

5
Music Theory Spectrum, v. 12, n°1, 1990.
15

incluem clichês e figuras de linguagem em obras escritas. Boa parte das artes
literárias e do discurso informal é decorado com a retórica secundária, que pode ser
um maneirismo do período histórico no qual foi composta. A retórica secundária
contribui para o propósito do orador ou escritor, mas indiretamente ou em um nível
secundário (KENNEDY, 1999, p. 2-3).

A retórica primária determina a ação persuasiva no discurso, enquanto a retórica

secundária refere-se à maneira como esta ação está expressa textualmente. Nesse sentido,

Harrison afirma que:

Se o objetivo da oratória é persuadir a audiência sobre a validade do ponto de vista


do orador, o objetivo da fuga é convencer a audiência que o material musical
apresentado sustenta uma boa composição e que o compositor possui técnica
suficiente, controle e maestria para criar uma peça musical de interesse, apesar de
todos os obstáculos que a ‘técnica fugal’ impõe em seu caminho (HARRISON,
1990, p. 5).

Harrison (1990) propõe como cerne de sua análise a identificação de um ‘status’ para

o sujeito da fuga. Segundo o autor, “o ‘status’ é um conflito conceitualizado que gera a

necessidade de um discurso persuasivo e que determina seu caráter” (QUINTILIANO, apud

HARRISON, 1990, p. 10). Na música, Harrison considera que esse problema, ou conflito, é

artificial, criado pelo compositor como solução de um processo composicional da fuga. A

relação da fuga com a primeira retórica está na valorização do sujeito como base para o

discurso. As proposições e o caráter definidos pelo ‘status’ do sujeito serão desenvolvidos ao

longo do discurso através de um processo composicional que requer treino, domínio e o uso

consciente da técnica fugal (HARRISON, 1990, p. 6).

Sobre o dispositio, Harrison (1990) defende a idéia de que este não deve ser tratado

como dimensão independente, mas, sim, como expressão do conteúdo do sujeito. Em sintonia

com o pensamento de Lester (1986), Harrison (1990) afirma que o dispositio e a forma estão

combinados pela necessidade do estabelecimento da thesis. O autor afirma que: “Nem toda
16

oratória, nem toda fuga necessitam desenvolver-se de acordo com um plano pré-

estabelecido...” (HARRISON, 1990, p. 8), em referência à análise tradicional, que parte do

pressuposto de uma forma pré-estabelecida, que não contempla a necessidade discursiva da

fuga. Essa necessidade, no entanto, é variável, desenvolvida de acordo com a força do

inventio da composição, exibido no status do sujeito (idem).

Harrison (1990) investiga a natureza dos argumentos retóricos na técnica peculiar de

fuga. Seu olhar vislumbra um pronuntiatio (primeira retórica) eloqüente, persuasivo e de

grande força musical representado pela fuga.

Ao combinar os conceitos de Lester (1986, 2001) e Harrison (1990) como

fundamentação de sua tese, Roberts (2004) propõe uma metodologia que identifica a natureza,

retórica ou literal, de uma fuga. A fuga é retórica quando o compositor estabelece uma idéia

musical que contém os diversos conflitos que serão resolvidos ao longo da composição.

Quando a fuga não possui o intuito de persuadir, ou seja, quando apenas apresenta uma idéia

ou uma informação, a fuga é classificada como literal (ROBERTS, 2004, p. 31).

Através de uma análise estatística preliminar das fugas do Cravo Bem Temperado e

das fugas para órgão de Bach, Roberts (2004) conclui que, apesar da diferença no que diz

respeito à extensão das fugas, todas são resultados de um processo composicional baseado em

uma idéia musical central que complementa sua estrutura formal. A idéia musical central está

baseada nos elementos contidos na fuga: sujeito, resposta, contra-sujeito, episódios, entre

outros, identificados através de análise tradicional. O autor afirma que a estrutura formal está

diretamente relacionada à idéia musical central, e, como resultado, varia de uma fuga para

outra. Essa característica pode ser parte de um ou mais elementos identificadores. Um estudo

desses elementos determina a natureza, retórica ou literal, do processo composicional da fuga

(ROBERTS, 2004, p. 5).


17

Para Roberts (2004) é possível diferenciar as seções de uma fuga pela identificação

de mudanças significativas na textura, densidade ou ritmo. As seções estruturais refletem e

reforçam o material principal apresentado na abertura da fuga, local onde se encontra a

expressão maior dos elementos identificadores, termo que designa as propriedades inerentes e

distintivas de cada fuga (ROBERTS, 2004, p. 5).

Os elementos identificadores têm a função de expressar os conflitos que serão

explorados ao longo da peça. Estes possuem importância definitiva para a identificação do

tipo de fuga.

A fuga tem natureza retórica quando soluciona, ao longo da composição, os conflitos

expressos nos elementos identificadores. De acordo com o estabelecimento dos elementos

identificadores, uma estrutura formal é construída. Por outro lado, quando a fuga é literal, os

elementos identificadores não são considerados conflitos ou desafios, pois, apesar de

expressos no texto, não têm o intuito de persuadir, simplesmente cumprem um procedimento

(ROBERTS, 2001, p. 29).

Roberts (2004) utiliza a Fuga em Dó Menor do Cravo Bem Temperado (BWV 874,

vol. 1) de Bach para descrever seu método (ROBERTS, 2004, p.32-45). Em sua tese, aplicada

em quatro fugas de Bach para órgão, o autor destaca a ocorrência de elementos identificadores

particulares de cada uma das fugas, os quais denomina de:

1. expansão (BWV 578);

2. palíndrome (BWV 533);

3. mudanças inesperadas no ritmo principal (BWV 545), e;

4. forças combinadas6 (BWV 547).

6
Nesta fuga, as forças combinadas referem-se aos seguintes elementos identificadores: aspecto peculiar da
exposição, sujeito modulante e entradas do sujeito de modo obscuro (ROBERTS, 2004, p. 29).
18

Dentre as quatro fugas, Roberts (2004) conclui que apenas uma delas é literal (BWV

533), sendo que as demais possuem proposições composicionais retóricas. A metodologia

apresentada por ele está descrita em seis passos (ROBERTS, 2004, p. 32-46):

1. Identificação dos elementos tradicionais da fuga:

a) motívico/estrutural (sujeito, resposta, contra-sujeito, episódios, coda, entre

outros);

b) harmônico.

2. Investigação dos elementos identificadores na exposição da fuga e detecção de

anomalias ou características específicas no contexto da fuga, as quais evocam curiosidade ao

analista, como, por exemplo:

a) movimentação ascendente/descendente;

b) movimentação ascendente/descendente de acordes;

c) padrões rítmicos e melódicos;

d) graus de escalas em suspensão;

e) material contrastante;

f) unidades estruturais.

3. Identificação de padrões na estrutura da fuga, conforme descrição no passo 1.

Roberts (2004) determina duas categorias de materiais presentes na estrutura de toda fuga e

que são responsáveis pela sua segmentação: o Integrante, considerado elemento primário

(sujeito, contra-sujeito) e a Digressão que se refere aos elementos secundários (episódios e

pontes) que podem se apresentar uma ou mais vezes entre as ocorrências do Integrante.

a) Integrante ou Digressão sucessivos, longos/curtos;

b) Integrante ou Digressão em espelho;

c) correlação entre estas extensões.


19

4. Segmentação da fuga utilizando os fenômenos de significado como elementos

identificadores. Roberts (2004) lista os tipos de fenômeno a serem considerados e que podem

sugerir uma leitura alternada da estrutura formal da fuga:

a) incoerente, inconsistente, ou estrutura não-intuitiva;

b) mudanças significativas nas quais o ritmo prevalece;

c) mudanças significativas na textura e na densidade;

d) combinação das entradas de sujeito/resposta na macro-estrutura, como entidade

coesa;

5. Repetição do passo 3 no caso de os elementos identificadores da fuga ditarem uma

estrutura alternativa;

6. Verificação da reação da fuga no que diz respeito aos conflitos exibidos pelos

elementos identificadores.
20

2 ANÁLISE

A Fuga opus 87 n° 4 de Shostakovich é uma fuga dupla, a quatro vozes, cujos

sujeitos possuem características distintas no que diz respeito à tonalidade, condução melódica,

figurações rítmicas e, principalmente, caráter. Está estruturada em três grandes seções

definidas: exposição/reexposições do sujeito 1 (S1), exposição/reexposições do sujeito 2 (S2)

e, na última seção, sujeitos sobrepostos e em stretti; além da coda. Sobre a distinção entre os

sujeitos, S1 apresenta-se em Adagio, em Mi menor, e imprime um caráter de lamento descrito

num ambiente modal7 (cantus firmus). Por sua vez, S2 possui maior atividade rítmica (Piu

Mosso) apresentando-se em colcheias e partindo do 5° grau da escala de Mi menor,

assumindo o novo centro tonal de Si menor.

Cada um dos sujeitos é acompanhado de dois contra-sujeitos principais (CS1a,

CS1b, CS2a, CS2b8). S1, entretanto, apresenta um terceiro contra-sujeito (CS1c). A Tabela 19

apresenta as ocorrências do material temático (S1, S2, CS1a, CS1b, CS1c, CS2a, CS2b) nas

seções que formam a estrutura da fuga:

7
O âmbito harmônico desta fuga será tratado na aplicação do referencial teórico mais adiante.
8
Os termos CS1a, CS1b e CS2a, CS2b referem-se aos contra-sujeitos de S1 e S2, respectivamente.
9
Os compassos indicados na Tabela 1 representam o âmbito que envolve as ocorrências do material temático,
não se referindo a nenhuma das vozes em particular.
21

2.1 Primeira Seção

Na exposição (c. 1-21), S1 é apresentado, primeiramente, entre as vozes

intermediárias10 (tenor e contralto) e, posteriormente, nas outras duas vozes. Compõe-se

basicamente por graus conjuntos, apresentando apenas dois saltos, ambos ascendentes, sendo

o primeiro uma 3a m e o segundo, uma 4a J11.

Exemplo 1: Sujeito 1 (tenor, c. 1-5)

A resposta, sempre real, ocorre com imitação à 5a. Notamos a ocorrência de três

contra-sujeitos que acompanham S1. A figuração do CS1a é contrastante com S1 (c. 5-9) e

CS1b é apresentado a partir do c. 11, derivado do material rítmico final do CS1a e do próprio

S1.

10
Para este trabalho será adotada a seguinte denominação para as quatro vozes da fuga: soprano, contralto, tenor
e baixo, da voz aguda à mais grave.
11
No que diz respeito à classificação intervalar , serão adotados para este trabalho as seguintes abreviações: ‘M’
para intervalos maiores; ‘m’ para intervalos menores; ‘J’ para 4as e 5as justas e ‘A’ para intervalos aumentados.
22

Na entrada da última voz na exposição de S1 (Ex. 2), verifica-se o aparecimento do

CS1c que se contrasta ritmicamente com os outros dois contra-sujeitos e marca sua presença

nas duas reexposições de S1 (soprano, c. 26-29; tenor, c. 35-39). O CS1b, derivado do próprio

S1, realiza contraponto junto ao CS1c (c. 15-19) nas vozes inferiores e, apresentando

figuração de maior valor (semibreves, mínimas, mínima pontuada e apenas duas semínimas),

constrói a textura polifônica completa até o início do primeiro episódio da fuga.

Exemplo 2: Sujeito 1, contra-sujeitos 1a, 1b e 1c (c. 15-19)

Ainda na exposição de S1, uma ponte12 é formada pelo material final do CS1a. A

bordadura sobre a nota Mi (c. 8-9) prepara a reexposição de S1 na voz do baixo (c. 9-10).

Esse material melódico formado na voz do contralto será recorrente nos dois episódios

formados entre as reexposições de S1.

No primeiro episódio (c. 19-21), a bordadura sobre Mi apresentada na ponte

reaparece uma oitava acima (soprano), dando continuidade à condução melódica da resposta

apresentada nessa voz. O baixo orienta a movimentação harmônica da próxima entrada de S1,

no tenor, passando por todos os graus, a partir da nota Sol, além de enfatizar a sensível, Fá #,

no âmbito de Sol maior, no terceiro e quarto tempos do compasso (c. 21).

12
Na análise desta fuga, a distinção entre ponte e episódio será exclusivamente determinada por sua extensão,
uma vez que os materiais utilizados em suas construções são semelhantes ou iguais.
23

A primeira reexposição de S1 (c. 22-29) ocorre no âmbito de Sol13 apresentando

resposta no tenor e no contralto. O segundo episódio (Ex. 3) apresenta a bordadura sobre a

nota Sol, porém, sem resolução e em seqüência descendente na voz do tenor (bordadura sobre

a nota Mi). No c. 34, verificamos, ainda, a inversão do início de S1 na voz do soprano que

prepara a entrada da segunda reexposição de S1, desta vez no âmbito de Dó (Ex. 3).

Exemplo 3: Bordaduras em seqüência por terças e inversão de S1 (c. 30-35)

A ponte que realiza a passagem para a apresentação de S2 (Ex. 4) é composta pelo

material final do CS1a em todas as vozes, sendo que a voz do soprano é apresentada pela

inversão desse material. Vale ressaltar a utilização de notas prolongadas, as quais têm a

função de criar dissonâncias entre as vozes através da alternância rítmica. Esse procedimento

cria uma resultante rítmica de colcheias e semínima que enfatizam Si b, equivalente a Lá# por

enarmonia, tornando-se a sensível de Si menor na aumentação do baixo (exclusivamente em

semínimas, c. 46). O novo centro tonal da fuga é alcançado, portanto, através de cromatismo

13
O âmbito harmônico da fuga em questão será tratado na aplicação do referencial teórico.
24

(Ex. 4). O baixo forma dissonância com a voz do soprano que preserva a condução melódica

que inclui Lá natural.

Exemplo 4: Ponte (c. 44-46)

2.2 Segunda Seção

A exposição de S2 (c. 47-66) parte do 5° grau de Mi menor, da voz mais aguda à

mais grave no novo centro tonal, Si menor. Consiste na atividade predominante de colcheias

em torno de Fá# e Dó#. Está escrito predominantemente por graus conjuntos, excetuando os

saltos de 5a J e 3a M, ambos ascendentes, e duas 3as m descendentes.

Exemplo 5: Sujeito 2 (c. 47-50)


25

Na resposta real, verificamos a ocorrência de dois contra-sujeitos (CS2a: c. 51-54,

soprano; CS2b: c. 56-59, soprano). Nas duas exposições da fuga que compreendem S1 e S2,

os contra-sujeitos mantém-se em atividade constante, não havendo uso de material livre.

Exemplo 6: Sujeito 2, contra-sujeitos 2a e 2b (c. 55-59)

Quanto ao ritmo dos sujeitos, consideramos que o contraste entre S1 e S2 está na

configuração singular de cada um, realizada a partir da utilização das seguintes figurações: S1

em semínimas e mínimas, S2 em colcheias, semínimas e semínima pontuada. A segunda

metade de S1 tende a ser mais estática, enquanto em S2 essa parte é mais movida, resultado

de um impulso gerado pelo ritmo da primeira metade desse sujeito (S2, c. 47-48). Notamos,

assim, que a ponte que realiza a ligação entre S1 e S2 (c. 44-46) tem a função de afirmar o Mi

natural (IV grau) no novo centro tonal, anteriormente enfatizado como Mi bemol:
26

Exemplo 7: Ponte para Segunda Seção (c. 44-46) e entrada de S2 (c. 47)

Verifica-se, ainda, que a estrutura da exposição de S1 repete-se em S2 (ver Tabela 1)

e as pontes e episódios são construídos com utilização restrita de materiais já expostos da

mesma maneira como ocorre em S1. O primeiro episódio de S2 (c. 62-6614) apresenta o

material final de S2 por imitação entre as quatro vozes. Caracteriza-se também pela

configuração do ritmo e pela anacruse em colcheias que formam dissonâncias entre as vozes,

as quais se comprimem no registro até a próxima exposição de S2 (contralto, c. 66).

Na primeira reexposição de S2 (c. 66-74), no âmbito de Ré, ocorre o retorno ao

registro inicial desse sujeito, com a resposta em Lá. Nas duas reexposições, S2 é

acompanhado por seus contra-sujeitos, sendo que na primeira reexposição uma das quatro

vozes é ocultada.

As pontes dos c. 54-55 e c. 73-76 são construídas com a utilização do material final

de S2 (Ex. 8b). Nesta última, destacamos a mudança de modo como característica que prepara
14
Os exemplos e tabelas apresentados neste trabalho indicam numeração de compasso determinada pelo
compasso onde inicia a ocorrência do evento referido. Neste caso, indicamos o c. 62, anacruse do c. 63, como
início do 1° episódio da segunda seção.
27

a última reexposição de S2. O primeiro episódio (Ex. 8a) realiza o mesmo procedimento da

ponte precedente (c. 54-55), porém, uma oitava acima e com as quatro vozes envolvidas.

Imitação ocorre a partir do material final do CS2a, em todas as vozes (c. 62-66), as quais se

alternam criando dissonâncias formadas entre as notas prolongadas e as notas de passagem.

Exemplo 8a: Episódio (c. 62-66)

Exemplo 8b: Ponte (c. 73-76)


28

Centrada em Dó, a segunda reexposição de S2 apresenta intensificação da textura e da

harmonia com o aparecimento de terças paralelas nas vozes centrais (c. 76-83). O segundo

episódio de S2 segue o mesmo padrão do episódio anterior: as quatro vozes alternam-se na

utilização do material final de S2, criando novamente uma resultante de colcheias contínuas.

Nos c. 86-87 (Ex. 9), o material rítmico comprime-se em um grupo de duas colcheias e uma

semínima, em seqüência, nas vozes do soprano, do tenor e do baixo. Esta atividade causa uma

aceleração no ritmo harmônico, ampliando o registro e preparando a exposição dos dois

sujeitos sobrepostos que ocorrerá na seção subseqüente.

Exemplo 9: Episódio e início da Terceira Seção (c. 83-88)


Compasso Nº 88 89 90 91 92 93 94 95 96 - 106 107 108
Soprano P E
O P
Contralto N I
T S
Tenor E Ó
D
Baixo I
O
Evento 1ª SOBREPOSIÇÃO 1º Stretto 2º Stretto (Soprano/Te

(baixo/contralto) 2ª Sobreposição

Legenda
SUJEITO
1
SUJEITO 2
109 110 111 112 113 114 115

oprano/Tenor) 3º Stretto (Soprano/Tenor e Contralto/Baixo)


reposição 3ª Sobreposição
29

2.3 Terceira Seção - Sobreposição dos sujeitos e stretti

Nesta seção, S1 e S2 apresentam-se inicialmente sobrepostos no centro tonal original

da fuga, Mi menor, acompanhados pelo CS2a na voz do contralto (Ex. 10). S1 aparece em

dobramento nas vozes do tenor e do baixo. Soprano e baixo apresentam as respostas de S1 e

S2 (c. 92).

Exemplo 10: Sobreposição de S1 e S2

Uma nova entrada de S2, na voz do tenor, origina o primeiro stretto entre essa voz e

a voz do baixo (c. 92-96). A Tabela 2 apresenta as sobreposições e os stretti formados nessa

seção:
30

A movimentação contínua de colcheias perpassa todas as vozes nesta seção, seguido

por um episódio, o maior de toda a fuga (Ex. 11). Este episódio inclui o material inicial do

CS1a na voz do soprano em seqüência ascendente por 2as, sobreposta à citação incompleta de

S2, partindo da nota Dó na voz do baixo (c. 99-102). Enquanto isso, a nota pedal em Sol é

mantida na voz do tenor formando um padrão rítmico que se contrapõe à seqüência.

Exemplo 11: Episódio (c. 99-107)

Na segunda metade deste episódio (c. 103-107), ocorre uma nova seqüência

ascendente, dessa vez por 3as m envolvendo as vozes do soprano e do contralto, realizada a

partir do material inicial de S2, formando imitação entre essas duas vozes. O baixo orienta-se

descendentemente pelo cromatismo das notas [Sol]-Fá#-Fá natural-Mi, preparando o segundo

stretto que se inicia no c. 107, com S1 e S2 sobre a nota Lá. Interessante notar que a citação

incompleta de S2 na voz do baixo (Ex. 12a) é concluída pelas colcheias em seqüência


31

descendente por 2as , na mesma voz (Ex. 12 b), cumprindo a continuidade rítmica dessa

figuração, característica de S2.

Exemplo 12a: S1 incompleto no baixo (c. 99-102)

Exemplo 12b: Resolução do baixo (c. 105-107)

Com a entrada de S1, a partir de Lá na voz do baixo, o segundo stretto ocorre

envolvendo as vozes do soprano e do tenor, reexpondo S2 (c. 107-111). Acompanhado do

CS2a na voz do contralto, a movimentação contínua de colcheias mantém-se, culminando no

terceiro e último stretto, desta vez duplo, envolvendo as quatro vozes da fuga e os dois

sujeitos: S1, no contralto e no baixo e S2 no soprano e no tenor (Ex. 13).


32

Exemplo 13: Stretti (c. 111-115)

Mais uma vez, partindo do material final de S2, a princípio em seqüências

descendentes por 2as (c. 115-116), seguida de outra seqüência ascendente por 2as na voz do

soprano (Ex. 14), constata-se a formação de uma nova ponte estrutural para a coda. O baixo

conduz o desaceleramento rítmico da ponte e prepara a última apresentação de S1. Este, já

estruturado no seu ritmo característico (semínimas), forma movimento contrário com o

soprano, ampliando o registro para a resolução final da fuga.


33

As seqüências, que permeiam os episódios e pontes desta fuga, são construídas pelo

mesmo tipo de material. Em sua maioria, são formadas a partir do fragmento final da voz em

que se encontra, colaborando com a fluência do discurso musical.

Exemplo 14: Ponte (c. 115-118, soprano), seqüências pelo material final de CS2a

A coda (Ex. 15) inicia-se com a exposição completa de S1 sobre a nota Si, na voz do

baixo, V grau da tonalidade original, enquanto as outras vozes apresentam-se numa

configuração triádica, típica de Shostakovich15. A entrada de S2 (c. 125) é precedida pelo

fragmento inicial de S2 (c. 123) em stretto entre soprano, contralto e tenor. A última citação

de S2 ocorre no baixo e é reafirmada pelo soprano, quando esta voz apresenta fragmento

inicial de S2 por aumentação na cadência final da fuga. O baixo reexpõe S2 e conduz-se

descendentemente, abarcando o registro mais amplo de toda obra, incluindo a nota Mi mais

grave do piano na cadência final.

15
Hussey (2003, p. 3).
34

Exemplo 15: Coda (c. 119-128)

A dinâmica presente na Fuga opus 87 n° 4 de D. Shostakovich apenas enfatiza os

elementos principais, apresentando recuo nas pontes e episódios, caracterizando uma

retomada do discurso para atingir, na última seção, seu ponto culminante. Logo, a dinâmica

revela-se como um elemento que se relaciona à escrita pianística, uma vez que apresenta

indicações de maior intensidade nas ocorrências de aumento de densidade e textura, e ainda,

na ampliação de registro realizada pelas vozes da extremidade.


35

3 APLICAÇÃO DO REFERENCIAL TEÓRICO

Os conceitos discutidos por Lester (1986, 2001), Harrison (1990) e Roberts (2004)

serão utilizados para a investigação e estabelecimento dos elementos identificadores da Fuga

opus 87 n° 4 de D. Shostakovich. Conforme exposto, Roberts descreve seis passos em sua

metodologia, ressaltando que não é obrigatória a aplicação integral de todos, uma vez que a

necessidade de sua utilização varia de uma fuga para outra (ROBERTS, 2004, p. 31). Os

elementos representam conflitos que geram a necessidade de um discurso musical por

resolver. A resolução, ou não, deste discurso formará a estrutura da fuga e exibirá sua

natureza, retórica ou literal.

Partindo da investigação dos status dos sujeitos de uma fuga (HARRISON, 1990;

ROBERTS, 2004), pretende-se detectar os elementos identificadores da fuga em comento. A

busca desses será aplicada apenas na exposição e reexposição dos sujeitos e dos contra-

sujeitos. Como os eventos explorados nas pontes e episódios são derivados do material

contido nas exposições, esses serão contemplados apenas nos aspectos que reforçam os

elementos identificadores nessas partes da fuga. A única exceção refere-se ao quinto elemento

identificador.

3.1 Primeiro elemento identificador: IV e V graus em suspensão

Através da redução do material melódico16 empregado na construção de S1,

detectamos a movimentação ascendente do I para o V grau da escala de Mi menor, logo na

primeira metade de S1 (c. 1-2). Na segunda metade de S1 (c. 3-5), a movimentação

descendente (Ré-Dó-Si), gerada a partir da ocorrência do único salto da construção melódica,

destaca uma 7a m prolongada concluindo S1 descendentemente, também no V grau da escala,

16
Redução de S1 realizada a partir da configuração rítmica onde as figuras de maior duração são mais
relevantes. Nas reduções de S1 e S2, consideramos as repetições das notas enfatizadas pelas bordaduras e
notas de passagem inseridas nessa configuração.
36

sem alcançar a tônica. Assim, o primeiro elemento identificador da fuga é caracterizado pelo

V grau em suspensão na formação melódica de S1 (Ex. 16).

Exemplo 16: Redução de S1


1° elemento identificador: Graus da escala em suspensão

A partir da segmentação de S2 (c. 47-50), também em duas frases (Ex. 17), nota-se

que este apresenta duas movimentações descendentes: a primeira afirma a tonalidade

assumida em S2, Si menor, direcionando o sujeito do III para o I grau da nova tonalidade (Ré-

Dó# -Si), e a segunda metade enfatiza o caminho melódico do VII para o IV grau (Lá-Sol-Fá-

Mi). Nessa movimentação, o I grau não é alcançado, colocando, desta forma, S2 sob

suspensão do seu IV grau (Ex. 17).


37

Exemplo 17: Redução de S2 (soprano, c. 47-50)


1° elemento identificador: Graus da escala em suspensão

Portanto, através das sucessivas entradas dos sujeitos e da ausência de cadência, a

condução das vozes direciona-se para diversos pólos harmônicos, porém, sempre mantendo o

conteúdo intervalar estabelecido nos sujeitos, aumentando a tensão do discurso musical,

mediante a expectativa de uma cadência ou resolução.

3.2 Segundo elemento identificador: Ambigüidade tonal/modal

A presença do intervalo de 7a m melódico (Mi-Ré natural) em S1, ao mesmo tempo

que o mantém sob tensão do V grau, cria uma ambigüidade tonal/modal no âmbito original da

fuga, Mi menor (Ex. 18). Esse fato indica o segundo elemento identificador da fuga.

Consideramos este evento justamente porque a 7a é menor, e não maior, como seria de se

esperar em uma escala tonal, especialmente por manifestar-se no Integrante17. Na resposta

(contralto, c. 5-9), sobre Si, a 7a m é mantida com a presença do Lá natural (Ex. 18). Além

disso, ainda no início da fuga, a ponte (c. 9-10) reafirma a ambigüidade através da bordadura

Mi-Ré-Mi no contralto, seguida pelas notas Dó-Ré-Mi, sendo Ré uma nota de passagem.

17
Vincent (1974) relata a predileção de Shostakovich pela 7a m no contexto diatônico (VINCENT, 1974, p. 369).
38

Exemplo 18: S1 e resposta (c. 1-10)


2° elemento identificador: Ambiguidade tonal/modal

O status de S2 (Ex. 19) está estabelecido pelo circulatio18 em torno de Fá# e Dó#.

Indica-se essa figura retórica, pois, ao mesmo tempo em que enfatiza esses graus assumidos

pelo novo centro tonal estabelecido em S2, reforça novamente a ambigüidade tonal/modal

com ênfase na nota Lá natural (7a m) como a nota mais aguda da construção melódica de S2,

anunciada e reiterada no acompanhamento da mão esquerda.

A ambigüidade tonal/modal é reforçada, ainda, na ponte que precede S2 e que

realiza o caminho harmônico para Si maior por enarmonia do Mib com Ré#, 3a M de Si.

Inesperadamente, nova mudança de modo ocorre no último tempo do compasso da entrada de

S2, anunciada pelo Ré natural na voz do tenor(c. 47, Ex. 9). A formação melódica de S2 no

soprano assume o Ré natural, reforçando-o e repetindo-o três vezes no compasso seguinte (c.

48).

18
Figura retórica caracterizada pela movimentação melódica por graus conjuntos em torno de determinadas
notas (BUELOW, 2001, p. 267).
39

Exemplo 19: Entrada de S2 (c. 47-50)

A Terceira Seção da fuga é representativa em exibir a ambigüidade tonal/modal

como elemento potencializado através da sobreposição de S1 e S2, e dos stretti (Ex. 20). Na

primeira sobreposição dos sujeitos, ambos apresentam-se sobre Mi modal19 com respostas

reais, ao intervalo de 5a (Si modal) em vozes alternadas. Porém, com a ocorrência do primeiro

stretto, uma sobreposição tonal/modal ocorre entre a resposta na voz do baixo, e a entrada

subseqüente de S2 na voz do contralto em Ré maior20.

Exemplo 20: Ré maior sobreposto a Si modal (c. 92-96)

19
Referimos ‘Mi modal’ à escala de Mi maior com a 7a m, termo que será utilizado sempre que houver
ambigüidade tonal/modal, podendo incluir uma 3a M ou m na construção escalar do pólo referido.
20
Vincent (1974) relata esse tipo de utilização de pólos tonais/modais sobrepostos na música de Shostakovich. O
autor demonstra esse evento em exemplos que incluem a cadência final da 7a Sinfonia e um trecho do segundo
movimento desta mesma obra (VINCENT, 1974, p. 370).
40

O segundo stretto (c. 107-115), entre soprano (Lá modal) e contralto (Sol modal),

sustenta a ocorrência de pólos tonais/modais sobrepostos. Nessa reexposição, além da

presença de stretto, há utilização de relações intervalares importantes entre as entradas

sucessivas dos sujeitos. S1 (baixo, c. 107) tem sua resposta na voz do contralto (c. 111), em

uma distância intervalar de uma 5a J, ou seja, característica recorrente de resposta real. Ao

mesmo tempo, S2 estabelece relações intervalares simultâneas de terças entre as vozes do

tenor (c. 107) e soprano (c. 111) - Sol/Mi - , e entre soprano (c. 107) e tenor (c. 112) - Lá/Dó.

No que se refere à harmonia, a relação de terças é característica da música russa, que

apresenta peculiaridades na construção de escalas que formam pólos envolvendo os sistemas

tonal e modal21 (CARPENTER, 1995). Essas conduções, sob o ponto de vista da música

ocidental, denotam uma instabilidade tonal e, retoricamente, confundem a percepção do

ouvinte, que tem a expectativa uma resolução neste contexto harmônico.

3.3 Terceiro elemento identificador: Relação entre Integrantes

Reconhecemos como terceiro elemento identificador a relação entre todos os

Integrantes, devido à presença do alto número de materiais principais contidos na construção

da Fuga opus 87 n° 4 de Shostakovich – sete ao todo – S1, S2, CS1a, CS1b, CS1c, Cs2a,

CS2b. Mesmo sendo uma fuga dupla, a ocorrência desse número de elementos principais

configura um evento incomum, especialmente porque estes, na sua íntegra, estão relacionados

21
Os modos russos apresentam características diferenciadas das estabelecidas na música ocidental
(CARPENTER, 1995, p. 76-77). Carpenter (1995) apresenta uma revisão bibliográfica dos teóricos russos
que discutiram o modalismo na música de Shostakovich, dentre os quais cita Dolzhansky, que, por sua vez,
identifica três maneiras de utilização dos modos medievais e do sistema tonal (Maior e Menor) por
Shostakovich, quais sejam, “a primeira maneira é realizada a partir da utilização fragmentada dos modos
(por omissão de determinadas notas), com intervalos predominantes que realçam o sistema tonal. A segunda
é a utilização dos modos de forma independente e completa. A terceira maneira caracteriza-se pelo uso de
modos de forma independente, enriquecida por novos intervalos criados predominantemente através de
graus abaixados” (CARPENTER, 1995, p. 97), sendo certo que a Fuga opus 87 n° 4 é caracterizada pela
primeira.
41

entre si. Lester enfatiza a relação entre esses elementos no que diz respeito à condução

melódica, fluência do discurso e, principalmente, na complementação rítmica (1986, p. 245).

Nesta fuga, verifica-se o tratamento rigoroso do contraponto, explícito através da

utilização restrita dos sete materiais (Ex. 21a e 21b) os quais se reforçam, ao mesmo tempo

em que se contrapõem no discurso da fuga. A ausência de material livre, especialmente nas

pontes e episódios22, denota o rigor e a importância das relações entre os Integrantes.

Exemplo 21a: Relação entre Integrantes de S1 (c. 36-40)


3° elemento identificador

Exemplo 21b: Relação entre Integrantes de S2 (c. 55-59)


3° elemento identificador

A relação entre S1 e S2 é marcada pelas bordaduras presentes ainda na primeira

metade de ambos sujeitos (Ex. 22). A formação da bordadura (Si-Dó-Si, para S1; e Fá#-Sol-

22
Reconhecemos o material da ponte (c. 9-10) como sendo derivado do CS1a.
42

Fá#, para S2) enfatiza um semitom formado pelo V e VI graus dos pólos assumidos em S1 e

S2, Mi e Si, respectivamente.

Foi verificada a presença da 4a J e sua inversão na construção melódica de ambos

(Ex. 22). Em S1, o intervalo vem expresso após uma sucessão de graus conjuntos, e realça a

presença do intervalo de 7a m, conforme descrito no primeiro elemento identificador (Ex. 16).

Em S2, o intervalo de 4a J invertido ocorre logo no primeiro intervalo de sua

formação melódica, reiterada pela bordadura superior. Este intervalo representa, ainda, a

movimentação do I para o V grau, conflito presente em S1. Ainda, na primeira parte de S2, a

movimentação é concluída no I grau, porém, impulsionada por um salto de 3a M, que parte de

Ré (III), gera o primeiro conflito de S2: a suspensão no IV grau23 que forma o mesmo

intervalo de 4a J (Si-Mi). A familiaridade na construção melódica dos sujeitos demonstra uma

preocupação composicional onde o conflito de S1 é reiterado, da mesma forma que pode ser

visto como conflito isolado de S2.

Exemplo 22: Relação de S1 e S2


3° elemento identificador

23
Ver Exemplo 17, p. 38.
43

Apesar de relacionarem-se melodicamente, é claro o contraste dos status dos sujeitos.

Enquanto S1 apresenta-se de maneira estática, S2 revela-se mais movido, opondo-se a S1, e,

contraria a função tonal de Mi no âmbito geral da fuga principalmente ao deixar o IV grau em

suspensão.

Todos os contra-sujeitos da Fuga opus 87 n° 4 de Shostakovich possuem

similaridades na construção melódica, exibindo íntima relação entre os mesmos. Com exceção

da última reexposição de S2 (c. 76-83), o conteúdo intervalar desses elementos é preservado,

característica que expressa variação apenas no ritmo, e no ambiente harmônico em que se

encontram. Os saltos de 4a J e sua inversão, ascendente ou descendente, encontram-se

presentes em ambos os sujeitos e em todos os contra-sujeitos.

CS1a e CS1c aparecem sempre simultaneamente, já que ambos se complementam

ritmicamente, enfatizando graus importantes do ambiente harmônico. CS1b expressa a

intensificação do ritmo do CS1a, partindo do material de S1. Os contra-sujeitos de S2

apresentam relações motívicas que se alternam com S2 e que se complementam no ritmo e na

melodia, preenchendo os espaços e criando verticalidades que enfatizam a ambigüidade

tonal/modal da fuga (2° elemento identificador).

É interessante notar que, somente nas duas últimas recorrências de CS1a com CS1c

(c. 26-29, c. 36-39), o intervalo utilizado na construção melódica desses elementos é a 3a M, e

não a 3a m nos pólos onde se encontram. Nesse sentido, a alteração de modo determinado pela

3a, sugere uma mudança de caráter influenciada principalmente por conduções harmônicas

pouco usuais no sistema tonal. A orientação para os novos pólos estabelecidos na formação

nessa Primeira Seção da fuga exibe relação de terças entre o final da exposição de S1 (c. 15-

19) e sua primeira reexposição(c. 22-26), ocorrendo no âmbito de Si e Sol, respectivamente.

Porém, apesar dessa peculiaridade no tratamento harmônico da fuga, a Primeira Seção revela-

se estática, encarregando-se, retoricamente, de apresentar a idéia principal da fuga (inventio),


44

deixando que o acúmulo das sucessivas entradas crie a necessidade da resolução dos conflitos

decorrentes da ambigüidade tonal/modal.

A relação entre os Integrantes demonstra oposição quando estes, isoladamente,

enfatizam conflitos próprios na condução das vozes em que se encontram. Dessa forma, a

textura contrapontística da fuga encarrega-se de exibir esse elemento identificador, de acordo

com as relações estabelecidas ao longo da composição, já que os Integrantes estão em

constante movimento.

3.4 Quarto elemento identificador: terceiro contra-sujeito de S1

A presença de um terceiro contra-sujeito, somente para S1, compõe o quarto

elemento identificador da Fuga opus 87 n° 4 de Shostakovich. Esse fato é relevante, pois, o

mesmo não ocorre na Segunda Seção, onde S2 realiza o contraponto apenas com dois contra-

sujeitos, preferindo repetir CS2b em outra voz, quando todas estão em atividade na fuga24.

Contrastando ritmicamente com os outros dois contra-sujeitos de S1, o CS1c equilibra a

textura contrapontística com sua formação baseada em figuração mais ampla (Ex. 21a).

O salto melódico de 4a J presente no CS1c (Ex. 23) revela a insistência do conflito

apresentado nos outros elementos identificadores dessa fuga. A ênfase nesse intervalo é

amenizada pela movimentação dos outros dois contra-sujeitos, porém, não oculta o conflito

maior expresso por esse elemento isolado.

24
Ver Tabela 1, p. 21.
45

Exemplo 23: CS1c ( c. 15-19)

Nas duas últimas ocorrências simultâneas com CS1a, o CS1c inclui, ainda, a

alteração do salto melódico do intervalo de 4a J para 4a A, quando este apresenta-se

descendentemente (c. 26-29, c. 36-39). O evento influencia a condução harmônica pois

anuncia notas importantes (Dó natural, c. 29; Sib, c. 38) que fazem parte da construção escalar

dos novos pólos que virão a seguir, até o final da Primeira Seção.

3.5 Quinto elemento identificador: Intensificação na recorrência de material musical em

seções paralelas

A ocorrência de Integrantes e Digressões, nas duas primeiras seções da fuga,

demonstra o estabelecimento de seções paralelas. A utilização do material musical encontra-

se intensificada na sua recorrência da seção anterior correspondente. Nesta fuga, a

intensificação ocorre pela atividade maior das vozes, pela aceleração da movimentação

harmônica e pela intensificação da densidade e da textura.

As seções paralelas estão presentes em dois momentos da fuga da Segunda Seção,

sendo que os c. 76-83 correspondem aos c. 55-62; e, os c. 83-87 correspondem aos c. 63-66.

Na primeira seção paralela, a intensificação ocorre na textura, expressa pelas terças paralelas

das vozes intermediárias (Ex. 9). As vozes se apresentam conforme o esperado numa fuga,
46

com a resposta real de S2 na voz do baixo, completando a exposição de S2 (c. 59). Assim, a

combinação de S2, CS2a e CS2b está intensificada, na seção correspondente, pela

movimentação simultânea das quatro vozes (c. 76-83), com as vozes intermediárias em

movimento paralelo através do dobramento de terças.

Exemplo 24: 1a seção paralela (c. 55-62/76-83)

A segunda seção paralela consiste do episódio que antecede a última seção da fuga

(c. 83-87). Esse evento colabora com a necessidade da resolução do conflito de S2, já que este

trecho é construído por imitação do fragmento final deste Integrante e expressa-se em

movimentação ascendente em todas as vozes até o c. 85. Além disso, a expectativa da


47

resolução é aumentada pela aceleração do ritmo harmônico e pela condução descendente do

baixo iniciada no c. 86.

Nos c. 63-66, as vozes alternadas criam verticalidades que trazem novamente o

ambiente tonal da fuga através da formação de 7as M entre as vozes das extremidades (Ex. 25).

Porém, as vozes intermediárias se encarregam de trazer novamente o ambiente modal

conduzindo a reexposição de S2 para novos pólos. A recorrência do material em sua seção

paralela é apresentada inicialmente na voz do baixo em imitação com soprano, em uma

movimentação ascendente que intensifica a expectativa e resolução desse conflito através de

quatro procedimentos:

1. movimentação das vozes intermediárias que se apresentam em terças

paralelas até o c. 85, preservando a configuração estabelecida no

acompanhamento da ocorrência anterior do Integrante;

2. ampliação do registro;

3. acréscimo de um compasso no 2° episódio de S2, necessário para promover a

aceleração do ritmo harmônico; e,

4. dinâmica.
48

Exemplo 25: 2a seção paralela (c. 62-66/83-87)

Nas duas ocorrências, as seções paralelas colaboram para a manifestação clara do

crescimento dramático da composição. O parâmetro da dinâmica acompanha a intensificação,

visto que ambas as seções apresentam a indicação de cresc, sendo que a segunda seção

paralela já se encontra em f desde o c. 79.

Dessa maneira, o quinto elemento identificador contribui para a urgência da

resolução dos conflitos acumulados pelos outros quatro elementos. Representa, ainda, uma

importante função na estrutura da fuga, delimitando seções como marco estrutural.


1ª SEÇÃO
COMPASSOS 1-9 9 - 10 11 - 19 19 - 21 22 - 30 30 - 35 36 - 44 44 - 46
I/D I D I D I D I D
VOZ t/c b/s t/c b/c

2ª SEÇÃO
COMPASSOS 47 - 54 54 - 55 55 - 62 62 - 66 66 - 73 73 - 75 76 - 83 83 - 87
I/D I D I D I D I D
VOZ s/c t/b c/s b/s

3ª SEÇÃO CODA
COMPASSOS 88 - 96 96 - 98 99 - 106 107 - 115 115 - 118 119 - 128
I/D I D D I D I
VOZ s/c/t/b s/c/t/b b
49

A Tabela 3, a seguir, apresenta a estrutura da Fuga opus 87 n° 4 de Shostakovich,

conforme a metodologia de Roberts (2004), demonstrando a simetria entre as partes e o

cumprimento do padrão - I D I D - I D I D - em todas as seções que a fuga abarca:

A Terceira Seção distingue-se das demais pela disposição dos Integrantes. Nessa

seção, os Integrantes manifestam-se em stretti pela primeira vez na fuga25, e a sucessão das

duas Digressões contribui para a construção do clímax da composição, no último stretto.

25
Ver Tabela 2, p. 31.
50

3.6 Resolução dos Conflitos: Desfecho Retórico

A investigação dos elementos identificadores apresentou os conflitos presentes na

obra analisada. Faz-se necessário revelar a forma como se dá a resolução dos conflitos, que

caracterizará o desfecho retórico da Fuga opus 87 n° 4, em Mi menor de Shostakovich. É

importante salientar que a resolução do conflito de um elemento identificador está

diretamente relacionada à resolução dos demais. Esse fato ocorre porque cada elemento

reforça características próprias e de outros elementos, estabelecendo-os como argumentos que

persuadem o ouvinte da idéia musical principal da fuga.

O primeiro elemento identificador, graus da escala em suspensão, encontrados no

sujeitos da fuga, revela a necessidade de alcançar o I grau do âmbito harmônico do qual fazem

parte. A resolução de S2 é relativa, uma vez que este termina em Mi, pólo de S1. Portanto, a

resolução de S1 torna-se mais urgente e necessária.

A resolução no I grau da escala para S1 ocorre na coda. O V grau em suspensão de S1

(nota Si, Ex. 16) alcança Mi na condução do soprano nos c. 123-125 (Ex. 26). Partindo da

bordadura do fragmento inicial de S2, Lá-Si-Lá (c. 123), a voz do soprano conduz-se em

semínimas, figuração típica de S1, para a resolução descendente até Mi, enfatizada pela figura

da mínima pontuada (c. 125) compondo a tríade menor da tônica.

Conforme exibido no Ex. 17, S2 termina com seu IV grau suspenso (nota Si, Ex. 26).

A resolução de S2 ocorre a partir da resolução de S1 (c. 125-126), em condução melódica

descendente, ainda da voz do soprano ([Mi]-Ré-Dó-Si).


51

Exemplo 26: Resolução descendente S1, Resolução descendenteS2]

Ao assumir uma organização baseada na tonalidade para a composição dos 24

Prelúdios e Fugas opus 87, Shostakovich imprime sua característica composicional na escrita

contrapontística da Fuga n° 4, revelando o tratamento ambíguo, tonal/modal. Trata-se do

segundo elemento identificador que influencia todos os outros descritos neste trabalho.

Criada primeiramente pela construção melódica dos Integrantes, e pela condução

harmônica pouco usual nas entradas sucessivas dos sujeitos, comparada às fugas

exclusivamente tonais, a Fuga opus 87 n° 4 revela um desenvolvimento contrapontístico que

contrasta o caráter estático de S1 com o caráter movido de S2. Essa característica está aliada à

persistência e ao acúmulo dos conflitos próprios apresentados em cada um dos sujeitos.

Expondo e reexpondo os sujeitos em diversos ambientes tonais/modais, a fuga possui um

desfecho típico da fuga tonal: o uso da picardia no último compasso. Conduzida pela voz do

tenor, Sol# é alcançado por cromatismo na primeira e única cadência de toda fuga. Tal
52

característica confere à essa fuga uma resolução retórica convincente da tonalidade, a partir da

coda, onde quatro dos cinco elementos identificadores são solucionados.

Ainda na coda (Ex. 27), notamos que as relações de terças, típicas da música de

Shostakovich, apresentam-se de maneira condensada26. A reexposição de S1, sobre Si modal

(c. 119) é seguida de stretto construído a partir do fragmento inicial de S2 no soprano, em Ré

modal, contralto em Fá# modal e, novamente, Ré modal, no tenor (c. 123-124). Essas entradas

(Si-Ré-Fa#) relacionam-se pela distância do intervalo de terça e combinam-se com a função

harmônica posterior do baixo, que transita entre Mi menor, Sol maior (c. 125), Sol maior com

7a M (c. 125) e Si menor (c. 127). Essas verticalidades têm função na condução harmônica,

concluindo a fuga na tonalidade de Mi maior. Dessa maneira, as relações de terças são

preservadas, ao mesmo tempo em que a fuga é concluída tonalmente27.

26
Ver nota 11, p. .23.
27
Na análise da Passacaglia do Trio opus 67, Hussey (2003) constata novas conduções por cromatismo linear
que equivalem à resolução tonal na música de Shostakovich. O autor qualifica esse tipo de resolução como
sendo um “novo sinônimo contemporâneo da progressão de dominante para tônica”. Nesse sentido,
consideramos o desfecho retórico da Fuga opus 87 n° 4 como outra manifestação dessa equivalência tonal,
pela força e imposição da cadência que descrevemos como resolução do segundo elemento identificador.
53

Exemplo 27: Coda (119-128)

A relação entre os sete Integrantes da fuga (terceiro elemento identificador) e a

presença do CS1c (quarto elemento), revela conflitos relacionados mais diretamente ao

segundo elemento identificador (ambigüidade tonal/modal). A mudança de modo apresentada

nas simultaneidades de CS1a e CS1c sugere novas manifestações dos Integrantes, no que diz

respeito ao registro, à alternância de vozes de maneira independente, e, ao reforço dos pólos

onde ocorrem. Assim, a resolução deste elemento está relacionada à condução harmônica para

a cadência final da fuga, descrita na resolução do segundo elemento identificador.

As seções paralelas, quinto e último elemento identificador, conforme a descrição de

Lester “referem-se a um significado na organização de idéias que influencia o dispositio da

composição” (LESTER, 2001, p. 53). Na Fuga opus 87 n° 4, as seções paralelas enfatizam a

necessidade da resolução, devido à sua localização na peça. Em termos retóricos, criam a

necessidade de serem resolvidas como conflito isolado, bem como enfatizam a necessidade de

resolução dos demais conflitos.


54

A presença das terças, na primeira seção paralela, modifica a textura, trazendo maior

dramaticidade à seção. O conflito, contudo, é levado adiante até a próxima seção paralela,

constituída pelo trecho do episódio que antecede a última seção da fuga (c. 83-87).

A resolução desse elemento identificador, ocorre na primeira sobreposição dos

sujeitos (c. 88-96). O poder persuasivo da intensificação das seções paralelas é acompanhado

pelas indicações de dinâmica, que, partindo de mf na primeira seção paralela, alcançam f e ff

na Terceira Seção da fuga.No âmbito geral da fuga, trata-se de uma “resolução antecipada”,

visto que, a partir da primeira sobreposição de S1 e S2, a fuga encaminha-se para a sua

resolução final, na coda.

Harrison relata esse fenômeno como responsável pela manutenção do interesse

retórico em uma fuga, na medida em que prepara o ouvinte para a condução rumo ao apogeu

(HARRISON, 1990, p. 33). O autor, ainda, descreve em sua análise da Fuga em Mi bemol

Maior de Bach (BWV 915), dois elementos se equilibram no fenômeno de ‘antecipação’ da

resolução final da fuga:

O primeiro elemento está no senso de proximidade do fechamento a ser criado; o


ouvinte deve ser levado à antecipação do final da fuga. A antecipação é uma força
poderosa no discurso retórico. [...] O segundo elemento neste equilíbrio é a
incerteza, derivada dos argumentos cujas manifestações estão ainda duvidosas. [...]
Estes dois elementos sinalizam ao ouvinte que a fuga está chegando ao seu final sem
comunicar exatamente como este será conduzido (HARRISON, 1990, p. 33).

A resolução da segunda seção paralela (c. 88-96) é representativa, pois contém S1,

S2 e o primeiro stretto, porém este trecho ainda não é contemplado com uma resolução

harmônica. O trecho segue expandido, na ponte, por mais três compassos (c. 96-98) até o

início do último episódio, onde fragmentos de S2 e CS1a realizam procedimentos imitativos

de fuga, que se enquadram na descrição de Harrison (1990, p. 33). Assim, as seções paralelas
55

revelam sua função na estrutura da fuga por demarcarem um caminho para a reafirmação de

todos os argumentos convencendo o ouvinte da sua proposição inicial (confirmatio).

A estrutura da Fuga opus 87 n° 4 de D. Shostakovich não é determinada por

cadências como na maioria das fugas tonais. A ambigüidade tonal/modal está relacionada com

as conduções harmônicas determinadas pelos status de S1 e S2 (Mi e Si), que inclui pólos

modais que se relacionam tonalmente na macro-estrutura da composição:

Seções Primeira Seção Segunda Seção] Terceira Seção Coda


(c. 1-46) (c. 47-87) (c. 88-118) (c. 119-128)
Pólo Mi [Modal} Si [Modal] Lá [Modal] Si menor
Mi maior
Função do I V IV V-I
pólo na
macro-
estrutura

Tabela 4: Relações tonais na macro-estrutura da Fuga opus 87 n° 4 de Shostakovich


56

CONCLUSÃO

A aplicação da metodologia proposta por Roberts (2004) revelou-se pertinente na

identificação das características inerentes ao discurso retórico-musical da Fuga opus 87 n° 4.

Através do reconhecimento dos elementos identificadores – propriedades distintas da fuga que

representam conflitos composicionais que interagem no discurso – tornou-se possível

descobrir o desfecho da obra.

Efetivamente, foi possível constatar que, invariavelmente interligados, os elementos

identificadores persuadem a proposição musical da peça (inventio) e, através de diversas

manifestações e reiterações geram a necessidade de resolução dos conflitos criados ao longo

do discurso musical, determinando a estrutura da fuga.

Os sujeitos da Fuga opus 87 n° 4 de Shostakovich estabelecem um padrão na

estrutura interna das partes da fuga, padrão este que é exibido logo na Primeira seção e

repetido na seção subseqüente, variando apenas a extensão das Digressões. Assim, constata-se

a simetria entre as duas primeiras seções da fuga28. Na Terceira Seção, quando ocorre

compressão da estrutura interna com a manifestação dos sujeitos em stretti, o padrão

estabelecido nas seções anteriores também é preservado (I D I D)29. Na última seção, ainda, a

Digressão expandida colabora na construção do clímax da fuga, que ocorre no último

stretto30, intensificando a textura contrapontística e, conseqüentemente, a dinâmica.

28
Ver Tabela 1, p. 21
29
Ver Tabela 3, p. 50.
30
Ver Exemplo 11, p. 31, e Exemplo 13, p. 33.
57

Mesmo trilhando caminhos harmônicos diferenciados das fugas tonais, a Fuga em Mi

menor de Shostakovich mantém a argumentação da proposição principal expressa nas

sucessivas entradas dos dois sujeitos. em suas sucessivas entradas. As relações harmônicas de

terças, característica da música russa, apesar de se afastarem do contexto de fuga tonal, não

excluem a necessidade discursiva dos sujeitos no trânsito harmônico da composição. Os pólos

tonais/modais das seções (segundo elemento identificador) apresentam conduções que se

relacionam tonalmente na macro-estrutura da Fuga opus 87 n° 4 de Shostakovich,

comprovando a natureza retórica tonal da peça31.

A relação entre Integrantes e a presença do terceiro contra-sujeito de S1, terceiro e

quarto elementos identificadores, reforçam aspectos de outros elementos. A presença do

intervalo de 4a J, ou sua inversão, na construção melódica dos Integrantes colabora na

manutenção do conflito existente no primeiro elemento identificador, IV e V graus da escala

em suspensão, já que o intervalo melódico está expresso ascendentemente em todos os

Integrantes, exceto no CS1b, que possui o intervalo em movimentação descendente em sua

construção.

Por sua vez, as seções paralelas intensificadas, quinto elemento identificador,

direcionam o rumo do discurso musical aumentando a necessidade da resolução dos conflitos

explorados ao longo da fuga. A segunda seção paralela, episódio que antecede a Terceira

Seção, expressa uma significativa expansão de registro e dimensão, marco estrutural da obra,

rumo à resolução dos conflitos apresentados por este e pelos outros quatro elementos

identificadores.

Ainda, no que diz respeito à estrutura, a obra analisada aproxima-se da estrutura

apresentada nas fugas exclusivamente tonais. As seções são estabelecidas pela apresentação

31
Ver Tabela 4, p. 56.
58

dos Integrantes e pelo caráter imprimido por eles, sendo nitidamente identificáveis na

estrutura.

O estabelecimento dos conflitos e resoluções dos elementos identificadores tem a

contribuição do parâmetro da dinâmica, visto que as indicações de maior intensidade ocorrem

a partir do episódio que antecede a Terceira Seção. Retoricamente, as marcações de f e ff têm

função persuasiva e são apresentadas como reforço da proposição principal da fuga, não como

relações de conflito.

A resolução dos conflitos expressos pelos cinco elementos identificadores

constatados ocorre em dois momentos da composição: na Terceira Seção, com a primeira

sobreposição dos sujeitos; e, na coda, com a condução descendente da voz do soprano à

tonalidade original, Mi menor. O discurso musical, portanto, é mantido com fluência e

diversidade, apesar da utilização restrita de materiais temáticos. Referida resolução leva à

classificação da fuga como retórica.

Ante a validade da metodologia empregada, o levantamento dos elementos

identificadores de todas as fugas do opus 87 de Shostakovich pode revelar desfechos,

retóricos ou literais. Da mesma forma, o padrão de fuga dupla na obra de Shostakovich pode

ser realizada através da investigação dos elementos identificadores presentes na Fuga n° 24,

em Ré menor, do ciclo.

É importante salientar que cada elemento identificador da fuga analisada apresenta

sua resolução no texto musical, cabendo ao executante a valorização desses elementos através

da interpretação do que está expresso textualmente como segunda retórica (KENNEDY, 1999,

p. 3-4; HARRISON, 1990, p. 3). Este tipo de análise beneficia a compreensão da escrita, o

ouvido interno no que cerne à distinção das vozes, a condução melódica e harmônica, assim

como sublinha características idiomáticas do piano, representadas nesta fuga através da

dinâmica e registro. A identificação da organização do material temático em Integrantes e


59

Digressões contribui para a compreensão da composição como um todo, tornando possível

uma execução com autoridade. Contudo, é possível atingir a primeira retórica através de um

ato eloqüente de enunciação realizado com a consciência dos elementos identificadores

apresentados neste trabalho, ou por outras pesquisas.

Por fim, identificada a natureza retórica da composição, a comunicação do texto

retórico-musical envolve ainda outros aspectos que dizem respeito a maneira de interpretação

da segunda retórica. Esses aspectos referem-se a questões de execução instrumental – como,

por exemplo, articulação e agógica - que poderão ser discutidos em trabalhos específicos

futuros. Independentemente, uma vez atingida a primeira retórica, esta será única e distinta a

cada pronuntiatio, dependendo da incorporação do conhecimento teórico, musical e artístico

do intérprete.
60

REFERÊNCIAS

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Fugues’, Op. 87. Tese de Doutorado, Princeton University, 2004. Disponível em:
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Acessado em 23 de janeiro de 2006.

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MOSHEVICH, Sofia. Dmitri Shostakovich, Pianist. London: McGill Queen’s University


Press, 2004.

ROBERTS, Scott. Toward a Methodology for the Analysis of Fugue: an Examination of


Selected Bach Organ Works. Tese de Doutorado, The Florida State University School of
Music, 2004.

VINCENT, John. The Diatonic Modes in Modern Music. Hollywood, CA: Curlew Music
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Partituras:

BACH, Johann Sebastian. Das WohltemperierteKlavier Band I, Band II. München: G. Henle
Verlag, 1978

SHOSTAKOVICH, Dmitri. 24 Preludes and Fugues für Klavier Op. 87 Band 1, Band 2.
Partitura para piano. Hamburg: Sikorski Musikverlage, 1957.
62

ANEXO
Fotocópia da Fuga opus 87 n° 4, em Mi menor
de Dmitri Shostakovich

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