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Ivo Coser
_______________________________________
Dr. Jairo Marconi Nicolau (presidente)
_______________________________________
Dr. Marcelo Gantus Jasmin (orientador)
_______________________________________
Dr. Luiz Werneck Vianna
_______________________________________
Dr. José Almino de Alencar
_______________________________________
Dr. José Murilo de Carvalho
Índice
Agradecimentos
Introdução 1
Capítulo 1
A vida do Visconde do Uruguai 15
1.1 Nascimento e origem social: um homem sem armas 15
1.2 O retorno ao Brasil e a faculdade de Direito de São Paulo 18
1.3 A magistratura 21
1.4 O casamento, as ligações com a grande propriedade agrícola e o ingresso na
política 25
1.5 Na presidência da província (1836-1839): a expansão do café 28
1.6 A entrada do Parlamento nacional: a Lei de Interpretação do Ato Adicional 30
1.7 Paulino assume o Ministério da Justiça: o enfrentamento com os liberais do
Sul e os bárbaros do Norte 33
1.8 O rápido ostracismo 37
1.9 O Senado 37
1.9.1 O combate ao tráfico, os problemas da Bacia do Prata e a crítica à
conciliação 39
1.10 O final da vida: longe das apreciações pessoais e voltado para o estudo do
poder 41
Capítulo 2
O debate sobre federação e centralização na Constituinte de 1823 45
2.1 Introdução: os conceitos de centralização e federalismo 45
2.2 Os antecedentes do debate. A Constituinte do Porto: o Reino do Brasil
versus os povos do Brasil 49
2.3 O argumento federalista: a compatibilidade entre monarquia e federação 52
2.4 As províncias são estados 54
2.5 A província como um indivíduo 56
2.6 O interesse provincial 58
2.7 A importância da Assembléia Provincial 63
2.8 O funcionário eleito localmente 66
2.9 Centralizadores: a trajetória histórica do Império brasileiro 69
2.10 A ameaça do rompimento da unidade 70
2.11 O interesse geral contra as rivalidades provinciais 71
2.12 A América hispânica 74
2.13 Conclusão 76
Capítulo 3
O Código do Processo: a disseminação do poder pela sociedade 81
3.1 O Código do Processo: definição 82
3.2 A superação da herança colonial 82
3.3 O Código do Processo: cargos e atribuições 83
3.4 O juiz de paz: os antecedentes coloniais e as inovações produzidas após a 85
Independência
3.5 O Federalismo e o Código do Processo 88
3.6 - O Juiz de Paz: o debate político (1823-1832) 93
3.6.1 Os liberais exaltados 93
3.6.2 Os liberais moderados 95
3.7 A eleição do juiz de paz e o interesse bem compreendido 100
3.8 O júri popular 109
3.9 Código do Processo: o exercício da liberdade política 116
Capítulo 4
Ato Adicional: a afirmação do interesse provincial 118
4.1 O Ato Adicional 120
4.2 A centralização contra a fragmentação: o predomínio das províncias mais
fortes e o interesse provincial auto-referido 124
4.3 A centralização: uma associação entre desiguais 129
4.4 1834: a federação não é formada por estados independentes. A inovação
produzida pela Convenção de 1787 133
4.5 O argumento federalista: a defesa dos interesses provinciais 136
4.6 O Ato Adicional contra o Código do Processo 146
4.7 O Código do Processo: a ilusão norte-americana 154
4.8 O Ato Adicional: a precedência do interesse provincial 162
Capítulo 5
Civilização e Sertão 165
5.1 Civilização e Sertão: partes distintas e separadas 168
5.2 A Civilização e o Sertão: a regularidade do interesse contra as paixões
desencontradas 174
5.3 A violência e os pequenos braços do Estado 188
5.4 O partido político movido por princípios versus o mundo das cabalas e das
facções 192
5.5 O hábito do autogoverno 220
5.6 Heterogeneidade e homogeneidade social: o Brasil e o mundo liberal 226
5.7 A escravidão: a marca de uma nação heterogênea 230
Capítulo 6
A Lei de Interpretação do Ato Adicional: a centralização contra o interesse
provincial 242
6.1 O conteúdo de Lei de Interpretação 242
6.2 O argumento federalista 243
6.2.1 O conceito de federalismo: como centralizar as partes que compõem a
nação 250
6.3 O argumento centralizador: as leis provinciais absurdas 255
6.3.1 O conceito de centralização: a unidade do poder 261
6.3.2 A precedência da vontade nacional 264
6.3.3 Como centralizar uma nação heterogênea: os limites do interesse
provincial 268
6.4 - Conclusão 271
Capítulo 7
A reforma do Código do Processo: recolhendo e concentrando o poder 277
7.1 Hipótese 277
7.2 A Reforma do Código: contexto político e sumário dos pontos alterados no
Código do Processo 279
7.2.1 O juiz de paz 281
7.2.2 O delegado e o subdelegado 295
7.2.3 O júri de acusação 297
7.2.4 O juiz municipal 302
7.2.5 O promotor 306
7.2.6 Os adversários da ordem: os homens pobres livres e os homens de bem 308
7.3 A Reforma do Código: como desmontar o castelo inexpugnável 320
7.3.1 – O argumento centralizador e a Razão Nacional 326
7.4 Conclusão 331
Capítulo 8
O Ensaio 334
8.1 O direito administrativo: o veículo para o interesse geral 334
8.2 Razão de Estado 340
8.2.1 Conclusão: a precedência da comunidade sobre o indivíduo 345
8.2.2 Os direitos e a administração: a separação entre a política e a
administração 348
8.2.3 Rompendo a teia de Penélope 348
8.3 Os direitos civis 356
8.4 A singularidade da descentralização norte-americana e a liberdade 359
8.5 Centralização e civilização: a superação do feudalismo e do fracionamento
do poder 368
8.6 A centralização e interesses comuns 371
8.6.1 Sem centralização, sem Império 376
Conclusão 378
Bibliografia 386
Agradecimentos
mestrado em Ciência Política, pelo clima de constante debate intelectual que estimula
seus alunos à reflexão. Sou grato ao grupo de História dos Conceitos, no qual pude
FAPERJ devo um agradecimento especial, pois através do seu programa Aluno nota 10
pude dedicar-me com mais vagar ao doutorado. Sou especialmente grato ao meu
orientador, Marcelo Jasmin. O orientando sempre pode produzir erros que escapem aos
olhos do orientador, mas perceber que o foi escrito teve uma leitura atenta, e com
Ninguém chega a lugar algum sem o apoio da família; sou grato aos meus avós,
tios e tias, e a meus pais pela ajuda direta ou indireta ao meu trabalho.
1
Koseleck (1990:83-84): “The concept is bound to a word, but is at same time more than a word becomes
a concept when the plenitude of political social context of meanings and experience in and for which is
used can be condensed into one word. […] All concepts escape definition that summarize semiotically an
entire process; only that which has no history is definable”. (Nietzche) A concept binds a variety of
historical experience and a collection of theoretical and practical references into a relation that is, as such,
only given and actually ascertainable through the concept”.
1
compreensão do texto de Uruguai estava fora do texto, isto nos forçou a analisar o
pensamento contra o qual o autor se bateu, qual seja, o federalismo. Neste sentido, a
tese versa sobre o pensamento político do Visconde de Uruguai e o debate entre
centralizadores e federalistas, que está diretamente relacionado à questão da montagem
do Estado Imperial. No debate político brasileiro do século XIX duas vias se
apresentaram: o poder central deveria ser controlado a partir das províncias, que
disporiam de autonomia política, administrativa e econômica, ou o poder central
deveria dispor de autonomia de tal maneira que pudesse impor suas ações aos poderes
provinciais.
Nas ciências sociais brasileiras está presente uma longa tradição de análise
acerca do Estado Imperial brasileiro. Uma parte substancial desta análise está
fundamentada na matriz weberiana estabelecida a partir do texto clássico de Raymundo
Faoro, Os donos do poder.
A entrevista do então presidente Fernando Henrique Cardoso à revista Veja, em
1997, expõe com clareza algumas das idéias centrais dessa matriz. Ao longo da
entrevista, e do livro que se seguiu 2 , são diversas as referências ao Império brasileiro.
Na análise de Fernando Henrique Cardoso são recorrentes as referências à obra de
Sérgio Buarque de Holanda sobre o Império 3 , a Joaquim Nabuco, à escravidão 4 e a
Raymundo Faoro.
A formação histórica brasileira, segundo Fernando Henrique Cardoso, foi
marcada pelo patrimonialismo. Este teria sido a marca da sociedade e do Estado
colonial. Entretanto, esse patrimonialismo, em nível estatal, foi intensificado por um
fato único na história da América: a vinda da família real para o Brasil 5 . Na análise do
ex-presidente, esse caráter patrimonial do Estado esteve presente como um dos fatores
principais que desencadearam a Independência. O processo de Independência
representa, para Cardoso, a reação da sociedade contra um Estado pesado e autoritário
que foge ao seu controle. Os males imperiais: monopólio da terra e burocracia. Nem o
2
O presidente segundo o sociólogo (1998).
3
Do Império à República, Tomo II, 5º Volume. História Geral da Civilização Brasileira.
4
O livro abre com o capítulo “A nódoa da escravidão”.
5
“[...] esse tipo de sociedade, escravocrata e patrimonialística, sofreu no Brasil um reforço com um fato
histórico único no continente: a sede do Império veio para cá. A América espanhola estava submetida à
Coroa espanhola, mas nunca conheceu sua presença física. O Brasil conheceu a presença da Coroa
portuguesa. Então, àquela característica da sociedade, escravocrata e patrimonialística, somou-se
outra: a de uma sociedade burocrática, pois o Império português era altamente burocratizado”
(Cardoso, 1997:14).
2
acesso à terra era democratizado, nem a burocracia era capturada pelos interesses da
sociedade 6 . Entretanto, a Independência teria representado, antes, uma continuidade do
que uma ruptura com o patrimonialismo colonial7 . O Estado Imperial teria sido uma
continuidade do Estado colonial português quando sua sede foi transferida de Lisboa
para o Rio de Janeiro. Nesta visão, o Estado continuou cooptando os movimentos
dinâmicos provenientes da sociedade, engessando seus interesses à sua dinâmica
centrada na expansão do seu aparelho administrativo. O Estado imperial brasileiro teria
sido marcado por este atraso. A elite política imperial brasileira não teria sido, nas suas
várias vertentes, nem conservadora, nem liberal, tampouco progressista. Tais
movimentos ideológicos não teriam passado de simulacros de uma força maior que os
impulsionava: o Estado patrimonial.
A origem deste diagnóstico encontra-se na obra de Raymundo Faoro, Os Donos
do Poder. 8 . Nas palavras de Faoro: “Os países revolvidos pelo feudalismo, só eles, na
Europa e na Ásia expandiram uma economia capitalista, de molde industrial” (Faoro,
vol 1, 1984:22). Na visão o autor, o feudalismo teria permitido que, na passagem para o
mundo moderno, a concentração de poderes no Estado fosse controlada pela sociedade.
Em outras palavras, a existência, na sociedade, de diversos poderes autônomos
(cidades, nobres e Igreja) frente ao poder soberano forçou a constante negociação no
processo de expansão do poder estatal. O caso português caminhou em sentido
6
“[com a vinda da família real portuguesa] Somaram-se, às antigas diferenças sociais, as diferenças
impostas pela Corte, até com certa prepotência. Lembre-se de que mais tarde houve a reação contra os
“portugueses” – “portugueses” entre as aspas –, que se confunde com a luta pela independência. Era
uma reação contra a burocracia portuguesa. A sociedade era muito rígida, e isso perpassa todo o
século XIX. Não se mexeu, ao longo de todo esse tempo, na base dessa sociedade, que era a terra. O
poder da terra e o poder burocrático foram os dois poderes reais no Brasil, ambos extremamente
concentrados” (Cardoso, 1998:14-15).
7
“Uma vez assisti à tese de docência de Paula Beiguelman, professora da USP. [...] Joaquim Nabuco
representava o pensamento progressista, enquanto Bernardo Pereira de Vasconcelos o conservador. Então
Sérgio Buarque de Holanda, que era um sábio, disse: ‘Doutora Paula, a senhora já leu Burke? Burke é o
grande teórico conservador na Inglaterra. A senhora acha que o que aquela gente fazia ou pensava, tinha
algo a ver com Burke? Porque o pensamento conservador é uma coisa séria. Pode-se discordar, mas tem
fundamentos. Aqui, concluía Sérgio Buarque de Holanda, eles eram atrasados’. Em larga medida, nosso
problema é o atraso. O problema não é ser esquerda direita, liberal ou conservador. É ser atrasado” (Veja,
10/9/1997, p. 291).
8
“O Weber da versão hoje hegemônica nas ciências sociais e na opinião pública sobre a interpretação do
Brasil tem sido aquele dos que apontam o nosso atraso como resultante de um vício de origem em razão
do tipo de colonização a que fomos sujeitos, a chamada herança do patrimonialismo ibérico, cujas
estruturas teriam sido ainda mais reforçadas com o transplante, no começo do século XIX, do Estado
português no solo americano. Desse legado, continuamente reiterado ao longo do tempo, adviria a marca
de uma certa forma de Estado duramente autônomo em relação à sociedade civil, que ao abafar o mundo
dos interesses privados e inibir a livre iniciativa, teria comprometido a história das instituições com
concepções organicistas da vida social e levado à afirmação da racionalidade burocrática em detrimento
da racional-legal” ( Werneck Vianna, 1999:35).
3
contrário, pois a precoce centralização do Reino português, aliada à aventura colonial,
teria gerado uma sociedade fraca e um Estado com uma elevada autonomia frente a
essa.
Os países que passaram pelo sistema feudal teriam originado um Estado
assentado na dominação racional-legal adequado às necessidades do capitalismo
moderno 9 . Nos países nos quais predominou o patrimonialismo o resultado foi um
Estado forte e centralizado, sempre pronto a cooptar as iniciativas da sociedade
desejosa de capturar o Estado segundo a lógica dos seus interesses, terminando por
impedir o aparecimento de um capitalismo moderno e de uma democracia estável10 .
Nesta visão, as leis do regresso conservador foram um instrumento através do qual o
Estado patrimonial amarra e bloqueia o movimento proveniente da sociedade 11 .
Essa linha interpretativa presente nas Ciências Sociais encontra eco na
historiografia recente, que não faz uso de Weber, nem de Faoro, mas postula o mesmo
caráter para o Estado Imperial.
Na abordagem de Evaldo Cabral de Mello, para os federalistas pernambucanos a
Independência teria sido uma luta por princípios liberais que implicavam o arranjo
federalista. O que estava em disputa na Independência não era a integridade do Império
português na América, mas o autogoverno e a liberdade provincial (ver Mello,
2004:19).
Os federalistas pernambucanos entenderam a montagem do Estado Imperial
como a formação de um “faustoso exército de burocratas inúteis” – conforme a
expressão do federalista pernambucano Gervásio Pais de Andrade (apud Mello,
2004:79). Para os federalistas pernambucanos, a derrota do federalismo na Constituinte
de 1823 e a Constituição outorgada, em bases unitárias, foram duras derrotas políticas.
Ainda segundo a ótica dos federalistas pernambucanos, o processo de Independência
teria sido a mera troca de Lisboa pelo Rio de Janeiro, com o Estado Imperial abafando
e sugando as energias das províncias do norte em favor da unidade territorial e da
9
Ver Schwartzman (1988:57-61). Veja-se, também, a nota 14 da presente Introdução.
10
“Uma das teses centrais desse livro é que o Brasil herdou um sistema político que não funciona como
representante ou agente de grupos ou classes sociais determinados, mas que tem uma dinâmica própria e
independente, que só pode ser entendida se examinarmos a história da formação do Estado brasileiro”
(Schwartzman, 1988:14)
11
“Para chegar tão longe, entretanto, não bastavam o modelo e a teoria: era necessário estruturar, no país
inorgânico, um país legal, jugulando o ímpeto da soberania popular num mecanismo de controle armado
junto à cúpula do poder. Este o sentido da reação regressista de 1837, lucidamente articulada por
Bernardo Pereira de Vasconcelos, com o auxílio dos futuros chefes conservadores Carneiro Leão
(Paraná), Paulino (Uruguai) e Rodrigues Torres (Itaboraí)” (Faoro, 1984: 292, vol. 1). Veja-se, também,
Faoro (1958, cap. “A reação centralizadora e monárquica”; e 1994:82).
4
expansão do Estado-nação 12 . Segundo Evaldo Cabral de Mello, a compreensão do
debate entre federalistas e centralizadores na história brasileira exige uma revisão
historiográfica, pois esta teria sido fortemente marcada pela “tradição saquarema” 13 .
Essa teria ocultado que a política unitária teria sido a expressão de interesses tão
regionais quanto as demandas dos federalistas. Por outro lado, mas na mesma direção, a
historiografia teria naturalizado a solução unitária, apresentando as demandas
federalistas como antinacionais, sem perceber que, em 1822, a nação ainda não estava
constituída.
A análise weberiana (Faoro e Schwartzman), observando a formação do Estado
brasileiro nos moldes de uma monarquia unitária, aponta para a pouca influência das
idéias contratualistas, fato que seria mais um sinal da autonomia do Estado frente à
sociedade.
O século XIX assiste ao desfecho das lutas entre o soberano absolutista e a
sociedade civil 14 . No campo de teoria política, o contratualismo, principalmente na sua
vertente lockeana, espelha a vitória da sociedade civil sobre o absolutismo (ver
Merquior, 1991:44-45; Laski, 1973:cap. I; Gray, 1995:13-16). Com a emergência do
contratualismo, os problemas da política passavam a ser pensados do ponto de vista do
indivíduo e seus direitos, ocorrendo o que Norberto Bobbio (1992) chamou de
revolução copernicana, isto porque tradicionalmente esses problemas eram pensados do
ponto de vista da sociedade e do Estado. Nas teorias absolutistas os indivíduos
singulares só teriam deveres e não direitos, possuindo, frente ao Estado, apenas direitos
12
Para o período de 1817-1824, veja-se Mello (2004). Com relação à década de 1870, veja-se Mello, “O
Norte Agrário e o Império (1871-1889)”.
13
“Daí as dificuldades de compreensão que elas [as obras políticas de frei Caneca] oferecem ao leitor de
nossos dias, leitor que ainda vive sob o peso da tradição saquarema na historiografia brasileira, isto é, a
historiografia da corte fluminense e dos seus epígonos na República, para quem a história da nossa
emancipação política reduz-se à da construção de um Estado unitário. Nesta perspectiva apologética, a
unidade do Brasil foi concebida e realizada por alguns indivíduos dotados de grande descortínio político,
que tiveram a felicidade de nascer no triângulo Rio-São Paulo-Minas e a quem a pátria ficou devendo o
haverem-na salvo da voracidade dos interesses provinciais, como se estes fossem ilegítimos, e do gosto,
digamos ibero-americano, pela turbulência e pela agitação estéreis, como se Eusébio, Paulino ou
Rodrigues Torres não fossem representantes de reivindicações tão regionais quanto as de Pernambuco ,
do Rio Grande do Sul ou do Pará” (Mello, 2001:16).
14
“O controle do governo tem suas origens, segundo uma velha vertente, no conceito de direito
natural. Contra a burocracia real, grupos, classes e estamentos, centrados nos barões e nas cidades
livres, trataram de assegurar um estatuto que lhes permitisse a autonomia de ação, defendendo-se
do despotismo arbitrário, por meio de esferas separadas de poder. As revoluções inglesa e francesa
revelaram, de modo delimitado e definido, essas tendências. [...] No fundo do desenvolvimento
constitucionalista reside a preocupação de desmascarar o despotismo – todas as formas de autocracia-
pela identificação dos males e riscos do arbítrio. Acentue-se que, nos primeiros golpes contra ele
desferidos, havia o cuidado liberal, também entendido no seu sentido econômico, de proteger a
propriedade, o que resultou, em certos momentos históricos, na degenerescência do princípio” (Faoro,
1985:12)
5
privados. O contratualismo estabelece que o indivíduo possui, face ao Estado, não
apenas direitos privados, mas também direitos públicos (Bobbio, 1994:61). Esse
indivíduo pode requerer frente ao Estado uma esfera perante a qual ele possa dispor
livremente dos seus bens sem sofrer constrangimentos legais, exceto em casos
excepcionais. A partir dessa esfera o indivíduo racionaliza sua participação na esfera
pública e, em conjunto com outros cidadãos, molda o Estado segundo seus interesses.
Para o liberalismo, a proteção dessa esfera torna-se um dos pontos centrais para o
exercício da liberdade. Segundo Benjamin Constant, a liberdade dos modernos, em
oposição à dos antigos, seria marcada pela defesa da independência individual, a qual
teria precedência sobre a liberdade política, característica principal dos antigos15 . A
liberdade dos modernos estaria assentada no direito do indivíduo de ir e vir, de escolher
seu trabalho, liberdade de culto ou de preencher suas horas da maneira que lhe
aprouver 16 . A liberdade dos antigos estava assentada na esfera pública em exercer,
conjuntamente com outros cidadãos, direitos que diziam respeito aos assuntos comuns.
Neste tipo de liberdade, todas as ações privadas estavam sujeitas à vigilância da
coletividade 17 .
Isaiah Berlin retomava a distinção de Constant entre a liberdade dos antigos e
dos modernos 18 , estabelecendo as definições de liberdade negativa e seu contraponto, a
liberdade positiva 19 . A abordagem de Berlin estabelecia que o aumento do poder
15
“L’indépendance individuelle est le premier des besoins modernes. En conséquence, il ne faut jamais
en demander le sacrifice pour établir la liberté politique. Il s’ensuit qu’aucune des institutions
nomebreuses et trop vanteées qui, dans les républiques anciennes, gênaiente la liberté individuelle, n’est
admissible das le temps modernes” (Constant, 1997:608)
16
“C’est pour chacun le droit de n’être soumis qu’aux lois, de ne pouvoir ni être arrêtré, ni détenu, ni mis
à mort, ni maltraité d’aucune manière, par l’effet de la volonté arbitraire d’un ou de plusieurs individus.
C’est pour chacun le droit de dire son opinion, de choisir son industrie et de l’exercer; d’aller, de venir,
sans en obtenir la permisson, et sans rendre, compte de ses motifs ou de ses démarches. C’est, pour
chacun, le droit de se réunir à d´autres individus, soit pour conférer sur ses intérêts, soit pour professer le
culte que lui et ses associés préfèrent, soit simplement pour remplir ses jours et ses heures d´une manière
plus conforme à ses inclinations, à ses fantaisies. (Constant, 1997:593)
17
“Celle-ci consistait à exercer colletivement mais directement, plusieurs parties de la couveraineté tout
entière, à delibére, sur la place publique, de la guerre et de la paix, à conclure avec les étrangers des
traités d´alliance, à voter les lois, à comptes, les actes, la gestions des magistrats, à les mettre en
accusation, à les condamner ou à les absundre : [...] Vous ne trouverez chez eux presque aucune des
jounissances que nous venons de voir faisant partie de la liberté chez les modernes. Toutes les actions
privées sont soumises à une surveilance sévère.” (Constant, 1997:594)
18
“No one saw the conflict between the two types of liberty better, or expressed it more clearly, than
Benjamin Constant. He pointed out that the transference by successful rising of the unlimited authority,
commonly called sovereignty, from one set of hands to another does not increase liberty, but merely shifts
the burden of slavery” (Berlin, 1969:163)
19
“The first of these political senses of freedom or liberty (I shall use both words means the same), which
(following much precedent) I shall call the ´negative´, is involved in the answer to the question ´What is
the area within which the subject – a person or groups of persons – is or should be left to do or to be what
he is able to do or be, without interference by other persons? The second, which I shall call the positive
6
soberano implicava a diminuição da liberdade negativa O campo da liberdade ficava
restrito ao indivíduo e seus interesses. As virtudes cívicas da liberdade positiva, apesar
de nobres, terminavam produzindo um aumento da tirania. A nobre pergunta “por quem
sou governado” gerava uma série de constrangimentos legais que impediam o indivíduo
de se dedicar aos seus interesses.
Ilmar Rohloff de Mattos trouxe para a discussão acerca do Império o tema da
liberdade positiva, sem, no entanto, compartilhar o modelo liberal na abordagem deste
tema. Sua preocupação foi a de assinalar que o Primeiro Reinado e o período regencial
teriam sido marcados pela fusão entre a liberdade e a igualdade, num movimento que
tenderia a apagar as diferenças sociais. Os cidadãos adentravam na esfera pública
movidos pela pergunta “por quem sou governado?”, reivindicando uma distribuição
democrática do poder entre os diversos tipos de cidadãos (Mattos, 1994:127 e
1999:192). Essa compreensão da liberdade teria sido marcante entre os liberais
exaltados; os liberais moderados possuíam uma outra concepção de liberdade. Nesta, os
limites da liberdade não deviam ser confundidos com a igualdade. Segundo o autor: “A
Casa deveria permanecer distinta da Rua e da praça pública, embora nelas pudesse
derramar-se em determinadas circunstâncias como recurso para alcançar seus
objetivos” (Mattos, 1994:134). Na concepção dos liberais moderados, o cidadão ativo e
seus interesses deveriam ser levados para o primeiro plano da organização do Estado e
da sociedade 20 . De acordo com o autor, esse traço era uma “das razões da sua fraqueza”
(ibidem:133). Essa concepção de liberdade propiciava uma igualdade que permitia a
emergência dos setores subalternos da sociedade que ameaçavam romper os limites da
ordem. O regresso conservador efetuou uma requalificação da liberdade, efetuando um
esvaziamento da liberdade positiva. Com a centralização iniciada com a Lei de
Interpretação, a liberdade passava a depender da força do Estado. Os centralizadores
apresentavam como sendo necessário “ampliar a área de controle centralizado e reduzir
o do indivíduo, como condição da apropria preservação deste” (ibidem:138). Os
centralizadores assumiam o governo do Estado requerendo o governo da Casa, tratava-
se de elevar os interesses da Casa dirigindo-os para longe da ameaça da Rua, esfera na
qual predominava a liberdade positiva. Nesse movimento, ocorre um reforço das
sense is involved in the answer to the question ´What, or who, is the source of control or interference that
can determine someone to do, or be, this rather than that” (Berlin, 1969:121-122).
20
Na nossa visão, assinalar essa diferença nos permite chamar a atenção para um aspecto importante: a
liberdade provincial não implicava a liberdade positiva. Conforme veremos no capítulo 4, acerca do Ato
Adicional, a descentralização provincial foi mobilizada contra a liberdade positiva.
7
desigualdades sociais, mas também um enfraquecimento da Casa e o reforço do
Estado 21 . Da perspectiva de Mattos, a centralização esvazia a liberdade dos antigos em
favor das demandas dos cidadãos ativos – tratava-se de proteger a Casa da liberdade da
Rua –, porém tutelando os interesses do cidadão ativo.
A presente tese procura dialogar com as abordagens mencionadas, mas parte de
outras premissas. Na análise de Florestan Fernandes, a vinda da família real e o
processo de Independência desencadearam um processo de mudanças na estrutura
social da sociedade brasileira. A abertura dos Portos, a nacionalização do comércio de
exportação, a formação de zona produtora de gêneros para o abastecimento da Corte 22 ,
conjuntamente com a criação de ocupações qualificadas e o estímulo de profissionais
liberais produzem uma diferenciação social e econômica frente à sociedade senhorial
escravocrata. As pesquisas mais recentes sobre a economia brasileira na primeira
metade do século XIX refutam a análise de que esta se encontrava em crise em razão da
queda dos preços do açúcar. Ao contrário, os preços dos gêneros voltados para o
mercado interno conferiam elasticidade à economia colonial para resistir às oscilações
do mercado internacional (ver Fragoso, 1992:22-23).
O que nos importa reter dessa análise vem a ser o seguinte: para esse setor
destacado da ordem senhorial escravocrata, o liberalismo exerceu um papel-chave (ver
Fernandes, 1975:35; Werneck Vianna, 1999:39-40). O liberalismo não estava fora do
lugar, mas possuía um caráter duplo: moderno quando pensado na sua função de
implementar uma ordem racional legal, mas conservador quando pensado em relação às
classes subalternas e suas demandas por participação.
A organização social continuou a ser marcada pelo patrimonialismo e pelo
escravismo; entretanto a
21
“Por meio da condução dos negócios do Estado, os Saquaremas se apresentam como os preservadores
do monopólio que fundam uma classe; por isso mesmo, não deixam de ser também os preservadores do
monopólio do tráfico. Ora, em que pese o traço defensivo que distingue a ação da Coroa como
decorrência da restauração em curso da moeda colonial, o monopólio não perde sua característica
elementar: o proveito de alguns, a exclusão de muitos; o enfraquecimento da Casa,o reforço do
Estado” (Mattos, 1994:155).
22
O trabalho de Lenharo mostra que a formação de uma zona para o abastecimento da Corte teve
importantes repercussões no processo político. Para este abastecimento formaram-se dois grupos: um, de
nobres e burocratas que receberam terras de D. João VI; o segundo tinha origem local e estava
concentrado principalmente no sul de Minas Gerais. Este primeiro grupo exerceu hegemonia política do
fim do Primeiro Reinado até a Regência de Feijó, quando o segundo grupo dá o troco com o regresso
conservador. Ver Lenharo (1993).
8
apenas de maneira indireta e condicionante (principalmente através de
controles sociais reativos, que se vinculavam às opções feitas pelos
representantes dos estamentos senhoriais no exercício do poder
político)”. (Fernandes, 1974:37).
23
“Para os conservadores liberais como o visconde de Uruguai, a liberdade era ameaçada não só pelo
Estado como também pelos particulares. A experiência da Regência, segundo ele, tinha ensinado essa
lição. O aumento do poder das assembléias provinciais tinha permitido o fortalecimento das facções
locais, germe das revoltas. Isto ameaçava, é certo a unidade do país, que ele prezava. Mas ameaçava
também a liberdade do cidadão. A vitória de uma facção local significava o fim da liberdade dos
partidários da outra, significava o reino do arbítrio, o fim do governo civilizado. ”(Carvalho,1993,p.70).
9
federalistas será distinta daquela formulada pela obra de Evaldo Cabral de Mello
exposta anteriormente, apesar de não ignorarmos os vínculos da centralização
saquarema com os interesses da cafeicultura fluminense. Recusaremos também a idéia
de que a nação brasileira já estivesse formada em 1822, e que o federalismo deva ser
analisado como antinacional. Tampouco iremos desconsiderar as estratégias de retórica
parlamentar utilizadas pelos centralizadores ao associar o federalismo ao separatismo.
Nessa tese, vamos recusar a abordagem que restringe a polêmica entre centralizadores e
federalistas a uma querela entre um grupo federalista, que assume explicitamente seus
interesses regionais, e a corrente centralizadora, que através de um subterfúgio oculta
seus interesses sob o manto da unidade nacional.
Na nossa interpretação, trata-se de considerar como centralizadores e
federalistas pensaram o tema do interesse provincial e a sua relação para com a
construção do Estado-nação. E, como veremos ao longo da tese, esse tema se desdobra
em um segundo assunto: como o pensamento centralizador abordou o problema dos
interesses particulares e o do interesse geral. A chave de leitura para entendermos o
pensamento político do Visconde do Uruguai e o debate entre centralizadores e
federalistas reside na maneira pela qual estas correntes pensam a questão do interesse
provincial e dos interesses particulares, de um lado, e, de outro, a vontade nacional e o
interesse geral.
No debate entre centralizadores e federalistas vamos nos deter no problema da
montagem do aparelho judiciário. Ao longo da tese, quando estivermos nos referindo
ao tema da descentralização do poder ou da sua concentração, teremos em mente,
principalmente, o poder judiciário.
Ao analisarmos este aspecto pretendemos apontar para a presença forte da
questão dos direitos do cidadão frente ao aparelho judiciário, numa perspectiva distinta
daquela presente na abordagem de Faoro. Na nossa interpretação, o pensamento
centralizador buscou implementar um aparelho judiciário capaz de assegurar a paz
interna, fato que implicava submeter os cargos do Judiciário ao princípio da
impessoalidade e ao vínculo para com o Estado (Weber, 1984) e não aos grupos locais,
envolvidos na luta política. Expandir a capacidade reguladora do Estado implicava
garantir direitos e deveres ao cidadão. Desfaz-se, assim, a oposição entre a
centralização e os direitos do indivíduo. O pensamento centralizador não será marcado
pelo contratualismo, nem pela precedência da liberdade negativa. O que implica, na
nossa visão, fugir da dicotomia estabelecida por Berlin.
10
Em 1843, no seu relatório de ministro da Justiça, Uruguai caracterizava os
grupos que haviam se revoltado contra a Lei de Interpretação e a Reforma do Código
como portadores de “interesses meramente provinciais” frente à “vontade nacional”.
Em outro trecho, esses grupos são caracterizados como a expressão de “interesses
particulares” em oposição à “razão nacional”. Os capítulos 2, 3 e 4 desta tese buscam
compreender e analisar como federalistas e centralizadores abordaram o tema do
interesse provincial e sua relação para com o poder central.
No Capítulo 1 sustento que a trajetória da vida pessoal de Paulino deve ser
pensada como ascensional. Sua origem social não provém nem da grande propriedade
agrícola, nem da alta burocracia de Estado. A intensa floração mercantil (Fernandes,
1975) desencadeada com a vinda da família real portuguesa estimulou o aparecimento
de profissionais liberais. O ingresso de Paulino na Magistratura e seu posterior
envolvimento na política correspondem a uma escolha sua frente às pressões de sua
mãe francesa para retornar ao seu país de origem (Paulino nasceu em Paris). A
formação de Paulino e sua inserção no mundo da política apontaram para um homem
vinculado às idéias liberais provenientes da Europa, em especial da França, e, ao
mesmo tempo, aplicando-as no ritmo de uma sociedade ainda marcada pela grande
propriedade escravocrata.
No Capítulo 2 analiso o debate entre centralizadores e federalistas na
constituinte de 1823. Apresento como a idéia de federação era ainda pensada a partir do
conceito de confederação. Analiso o argumento federalista e a sua articulação com o
conceito de Casa, a projeção de uma dimensão da esfera privada como chave para a
organização do aparelho público. Exponho a idéia de interesse presente no pensamento
político brasileiro do século XIX e a articulo com o interesse provincial defendido
pelos federalistas. Exponho e interpreto no sentido de que para os federalistas, o bem
público é o resultado de uma soma de interesses provinciais auto-referidos, que na sua
lógica interna não estão referidos à idéia de todo ou de nação. A partir dessa
perspectiva exponho a discussão sobre o funcionário público. Esse, segundo os
federalistas, deveria ser o veículo pelo qual o interesse provincial iria ganhar forma.
Sustento que o pensamento centralizador reconhecia a compatibilidade entre forma de
governo monárquica e federalismo, mas defendia a monarquia como o veículo através
do qual seria assegurada a unidade interna. A possibilidade do retorno da aprovação do
pacto federativo às províncias emergia como a abertura de uma série ininterrupta de
conflitos. Enfatizo que o pensamento centralizador estabelecia que o pacto federativo
11
não deveria ser pensado como o espaço pacífico para a competição entre os interesses
provinciais, mas o lugar a partir do qual se impõe a “prosperidade geral”.
No Capítulo 3 analiso o debate político em torno do Código do Processo. A
partir da análise de jornais favoráveis ao Código apontamos na seguinte direção: o
federalismo não foi pensado apenas como um mecanismo que descentralizava o poder
em favor das províncias, mas que o colocava mais próximo aos cidadãos. Para essa
corrente, expressa principalmente nos jornais, o bem público não seria introduzido a
partir de um poder externo ao cidadão; ao contrário, o cidadão ativo, em conjunto com
outros cidadãos ativos, educa seus interesses em prol do bem comum. Nessa chave de
leitura, o federalismo não é pensado apenas como o espaço para a competição entre os
interesses provinciais, mas é o veículo através do qual a liberdade nasce no município.
No Capítulo 4 analiso como foi pensado o recuo da corrente federalista frente à
experiência do Código do Processo. O tema do interesse provincial ganha precedência
sobre o tema da liberdade. No começo dos anos 1830, o pensamento federalista enfatiza
e desloca para o primeiro plano a compreensão do pacto federativo como o espaço para
a competição entre os interesses provinciais. Enfatizamos a compreensão desses
interesses como referidos às necessidade locais, o espírito de rivalidade ganha uma
conotação positiva como a alavanca que move o progresso da nação. O pensamento
federalista deslocava a descentralização do município, os mecanismos presentes no
Código do Processo passavam a ser controlados pelo legislativo provincial. As elites
provinciais situadas no Legislativo passavam a controlar o exercício da liberdade tendo
em vista os interesses provinciais. Os federalistas passavam a apontar a necessidade de,
ao se estender a descentralização, levar em conta o nível de civilização existente.
Apontamos que neste período histórico foi percebida a diferença entre o conceito de
confederação e o de federação.
O Capítulo 5 consiste na análise do conceito de civilização/sertão presente no
argumento de federalistas e centralizadores. Construímos um par conceitual a partir da
reunião de diversos sentidos presentes nesses dois termos (civilização e sertão).
Apontamos a mudança de conteúdo ocorrida no uso do termo civilidade para o termo
civilização. Destacamos a presença fundamental do tema dos interesses na elaboração
da idéia de civilização. O conceito de civilização/sertão esteve presente ao longo do
debate político do século XIX em diversos temas – opinião pública, partidos, educação,
júri, juiz de paz – e foi fundamental para compreendermos a aparição de dois
personagens-chave no argumento centralizador: os homens pobres livres e os grandes
12
proprietários. O conceito de civilização/sertão nos permitiu compreender, no argumento
centralizador, a idéia de um Império formado por partes heterogêneas. Por outro lado,
esse conceito nos deu uma via de acesso para a idéia de províncias civilizadas, presente
no argumento federalista.
A partir do Capítulo 6, deslocamos a discussão anterior para dentro do
argumento de Uruguai, abordando o tema de Lei de Interpretação do Ato Adicional. A
partir do debate em torno dessa lei apresento o argumento federalista centrado na
defesa do interesses das províncias mais civilizadas, aquelas nas quais o funcionamento
do Ato Adicional não havia produzido ameaças à civilização. Discuto a idéia
fundamental de Uruguai de que o Império, uma reunião de partes heterogêneas, não
poderia ser pensado a partir do tema do interesse, seja ele provincial ou particular. A
montagem do pacto federativo deveria ser pensada a partir da nação. O pensamento de
Uruguai retomava a idéia, presente no debate de 1823, da prosperidade geral em
oposição aos interesses provinciais. Destacamos a ênfase de Uruguai no caráter da ação
do Poder central pensada como um movimento intencional em direção a um
determinado fim. Tal sentido era oposto àquele presente no pensamento federalista,
para o qual o bem público é o resultado de um conflito de interesses. Acentuamos, na
reflexão, a idéia de que o poder central intencionalmente busca a construção de um
resultado que não está dado no plano dos interesses.
No Capítulo 7 trouxemos o debate em torno da Reforma do Código do Processo.
Pusemos em destaque a contraposição entre as características do funcionário vinculado
ao poder central e o funcionário eleito localmente. O argumento federalista recuava da
defesa do Código do Processo, mas permanecia fiel à defesa do controle pelo
Legislativo provincial dos funcionários nomeados pelo poder central. A defesa de
Uruguai do funcionário vinculado ao poder central estava ligada aos adversários que a
aplicação de lei encontrava. Nesse sentido, tornava-se fundamental entender o tema da
civilização e do sertão.
No Capítulo 8 nossa análise foi centrada no Ensaio, nas Bases e nos Estudos
Práticos. Procuramos apontar a passagem, no argumento de Uruguai, do tema da
vontade nacional para o interesse geral. Destacamos a ênfase na separação entre
política e administração e a relação deste tema com o interesse geral. Enfatizamos a
compreensão de Uruguai acerca da singularidade da experiência norte-americana e a
sua relação com o tema da liberdade. Apontamos para a recusa desse autor em
transformar o interesse geral numa agregação de interesses particulares auto-referidos.
13
Consideramos que o Ensaio marcou uma continuidade e, ao mesmo tempo, um
aprofundamento dos temas discutidos nos anos 30 e 40. A reflexão de Uruguai
apontava para a impossibilidade de o Estado de ser o veículo não apenas das províncias
mais civilizadas, mas também do interesse particular de grupos sociais. O Estado,
especialmente o poder central, deve ser o meio pelo qual o interesse social se impõe
perante os interesses particulares. Na análise dessa questão, apontamos para a
impossibilidade de analisar a reflexão de Uruguai a partir da dicotomia liberdade
positiva/liberdade negativa, destacando, na sua reflexão, a ausência da sociedade como
sujeito da liberdade.
14
Capítulo 1
1
O guarda-mor era encarregado dos arquivos e de supervisionar os empregados menores.
15
ligado a uma pequena função na máquina do Estado. Pelo lado materno, Paulino
provém de uma família atingida pela Revolução Francesa, fato que deve ter levado a
comentários negativos sobre o furor revolucionário.
É importante que assinalemos o seguinte: Paulino possuía consciência da sua
origem social, sabia que esta não provinha de altos funcionários do Estado, nem de
grandes proprietários de terras. Posteriormente, quando lhe foram pedidas suas armas,
para que estas fossem pintadas na Capela do Palácio de Fredericsburgo, Paulino
respondeu:
“Quanto ao pedido das minhas armas devo dizer a V.S. que não as tenho.
Sou de família decente, mas não sou nobre. Meu pai era doutor em
Medicina. Nunca me passou pela cabeça adquiri-las pelos modos pelos
quais muita gente tanto ou talvez menos nobres do que eu as tem”. (apud
Souza, 1944:58)
2
Segundo Hobsbawm, o exército francês pós revolução era distinto dos modelos europeus então vigentes:
“Ele (o exército) sempre permaneceu como algo semelhante a uma leva improvisada de soldados, no qual
recrutas mal treinados adquiriam treinamento e moral através de velhos e cansativos exercícios, em que a
disciplina formal de caserna era desprezível, em que os soldados eram tratados como homens e a regra
absoluta de promoção por méritos ( que significavam distinção em batalha) produziu uma hierarquia de
simples coragem” (Hobsbawn, 1996:49).
16
sua mãe durante sua estada em Coimbra são repletas de críticas ao Brasil e de
descrições elogiosas à França 3 .
Paulino seguiu os passos de uma série de brasileiros que estudaram na Europa, e
que quando tiveram a oportunidade de escolher entre permanecer no Velho Continente
ou construir um novo país, preferiram a segunda opção 4 . Paulino nunca cogitou de
retornar para o país no qual viveu seus primeiros anos. Podemos considerar que a
construção de um país novo lhe afigurava mais propícia aos seus desejos do que uma
carreira de bacharel em Portugal, ou na França. O lado paterno, com sua busca de
ascensão, foi mais forte do que o apelo da estabilidade européia. Paulino, como outros,
antes dele e depois, foi formado intelectualmente na Europa, mas a chave para que
possamos compreender sua personalidade social está no seu envolvimento com o apelo
que a possibilidade da construção de uma nação no Novo Continente possuía sobre ele.
Paulino ingressou na Universidade em 1825. A Universidade de Coimbra que
Paulino conheceu era bem distante daquela cogitada por Pombal. A ação de Pombal, em
Portugal, visava a modernizar o país. Pombal reconhecia a dependência de Portugal para
com a Inglaterra e a situação desfavorável do país no cenário mundial. Sem poder sair
da esfera de influência da Inglaterra, Pombal pretendia modernizar a sociedade lusitana
para os novos padrões de desenvolvimento vigentes no século XVIII. No que diz
respeito à Universidade de Coimbra, a ênfase do ensino passou a recair nas ciências
físicas e naturais (Carvalho, 1988:52-53 e Barboza Filho, 2000:378-380).
Com a morte de D. José I, em 1777, Pombal deixou o governo e este fato não
deixou de ter conseqüências na Universidade de Coimbra. Após o afastamento de
Pombal, o Santo Ofício processou e expulsou vários professores e alunos. Segundo José
Murilo de Carvalho a maior parte dos políticos brasileiros da primeira metade do século
XIX estudou em Coimbra após a reação contra a reforma de Pombal (Carvalho,
1988:55).
Paulino iniciou seus estudos numa Universidade de Coimbra marcada pela
reação às reforma pombalinas. A visão dos estudantes brasileiros desta Universidade era
3
Em uma das cartas de Antoniette escreveu que sua única felicidade era manter o coração de Paulino
francês: “Si je conserve en toi un coeur toujours français.” Sua mãe também deplorava ter de conduzir
uma casa com escravos. Nas cartas, D. Antoinette sempre lembrava a Paulino o país no qual ele havia
nascido. Ver Souza (1944).
4
Estamos pensando principalmente em José Bonifácio. Este quando retornou ao Brasil para participar do
processo político que levaria à Independência já possuía uma sólida carreira européia. No momento que
Paulino fez a sua opção em participar do processo político brasileiro, ele não dispunha de uma carreira
européia. Mas este fato não tira a conotação de que Paulino realizou uma escolha entre o Velho e o Novo
Continente.
17
bastante negativa. Bernardo Pereira de Vasconcelos, futuro aliado de Paulino, deplorou,
em diversas ocasiões, o isolamento em que a Universidade havia sido deixada depois da
reação. Em nenhuma ocasião Uruguai fez qualquer elogio a sua estada em Coimbra, o
que nos leva a crer que sua opinião não fosse muito diversa da dos seus companheiros
de geração.
Em 1828, arrebentou no Porto uma rebelião favorável a D. Maria, na qual vários
estudantes tomaram parte. Paulino foi preso com quatro outros jovens brasileiros.
Entretanto, a polícia os soltou após verificar que não haviam tomado parte na revolta.
Após ser solto, Paulino esperou que as aulas recomeçassem. Como tal fato não ocorria,
em dezembro do mesmo ano resolveu retornar ao Brasil.
Em que pese a pouca referência aos seus estudos em Coimbra, nesta
Universidade ocorreu um fato de extrema importância para a carreira política de
Paulino: o jovem estudante se liga a Honório Hermeto Carneiro Leão.
Podemos considerar que, embora Paulino não tenha concluído seu curso em
Coimbra, sua passagem por esta universidade lhe forneceu um elemento em comum
com toda a geração que atuou durante o Primeiro Reinado e na Regência 5 . Segundo o
estudo de José Murilo de Carvalho, entre 1822-1831 a maior parte dos ministros (71%)
que dispunha de ensino superior havia cursado Coimbra. Para o período de 1831-1840,
esse número (66%) continua superior aos demais centros universitários. Esses números
nos fazem considerar que no momento político durante o qual Paulino estava entrando
para a atividade política, qual seja, na década de 1830, a maior parte da elite política
havia passado por Coimbra. Neste sentido, a socialização efetivada em Coimbra foi
importante para a carreira de Paulino no Brasil.
O retorno de Paulino para São Luís do Maranhão, cidade na qual ainda residia
sua família, foi breve. Tendo chegado em 17 de janeiro de 1829, partiu em 6 de maio do
mesmo ano, para nunca mais retornar àquela cidade. Inicialmente, Paulino partia para a
cidade de Olinda. Nesta cidade, demorou-se três semanas, recebendo do diretor da
faculdade, Lourenço José Ribeiro, que fora seu colega de estudo em Coimbra, uma carta
dirigida a José Clemente Pereira, então ministro do Império, pedindo-lhe a sua
5
Sobre o papel unificador do ensino universitário em Coimbra sobre a elite política brasileira, veja-se
Carvalho (1988).
18
nomeação para o cargo de professor na faculdade. Posteriormente, quando Paulino se
encontrou com o ministro, recusou o convite, preferindo terminar seus estudos em São
Paulo.
Em setembro, Paulino chega à cidade do Rio de Janeiro. A chegada na Corte lhe
oferece a oportunidade de adquirir diversos livros, alguns dos quais irá mencionar em
várias ocasiões – inclusive no Ensaio... (1860). Dentre os livros adquiridos destacam-se
os de Benjamin Constant, Tracy e Os Federalistas.
Em 1830, Paulino chega a São Paulo, onde retoma o seu curso de Direito, tendo
sido aceito para cursar o terceiro ano. Estava, então, com 22 anos.
A faculdade de Direito de São Paulo havia sido criada em 1827, juntamente com
a faculdade de Olinda. Nos Estatutos da Universidade, escritos pelo Visconde de
Cachoeira, eram colocados os objetivos do novo curso jurídico:
6
Sobre estes pontos veja-se Venâncio Filho, p.30.
19
É fundamental que compreendamos essa preeminência da formação de quadros
para o Estado em detrimento da representação de interesses da sociedade civil. O curso
de Direito enfatizava a formação de juristas-políticos empenhados na construção de um
país. Este seria uma obra a ser levada a cabo por um Estado, que por sua vez estava
inscrito nos padrões de uma modernidade que não encontrava respaldo na sociedade
civil 7 . Desloquemos esta análise para dentro da vida de Paulino.
Observemos que Paulino era um homem nascido na França e que viveu na
Europa (Portugal e França) até os 11 anos. Vem para o Brasil e aos 16 retorna para
Portugal. Possuía, portanto, uma formação que o moldava nas idéias da civilização
européia. Em um dado momento de sua vida (1828), opta por buscar uma carreira na
nascente sociedade brasileira pós-independência, em vez de permanecer no Velho
Continente. Provém de um lado paterno que buscava uma trajetória ascencional na
sociedade brasileira: um avô, que havia sido um pequeno funcionário público, seu pai
formou-se em Medicina e ele entrava para uma escola que formava a elite do Estado
brasileiro.
Em São Paulo, a vida de Paulino ganhou forma e conteúdo. Entra para uma
escola que iria lhe permitir ingressar na elite política Imperial e que estava inserida em
idéias provenientes da civilização européia, nas quais ele transitava naturalmente.
Entretanto, a inserção de Paulino no Brasil não seria através da sociedade civil atrasada,
da qual sua mãe tanto havia lhe chamado a atenção, mas do Estado. A sociedade
brasileira continuava sendo um lugar de atraso, mas agora era também uma massa a ser
moldada, e não um lugar do qual se foge procurando o abrigo no Velho Continente.
A trajetória de sua família paterna no Brasil era nitidamente ascencional.
Paulino, não dispondo de terras, mas de uma sólida formação intelectual, ingressa numa
Universidade que irá lhe permitir participar da elite política Imperial. Nesta
Universidade, Paulino adquire o treinamento no qual é enfatizada a política como uma
construção de um Estado-nação. Esta construção é exercida sobre uma sociedade
atrasada, a que com seus constrangimentos imprime o ritmo da obra.
7
“Os juristas serão os quadros do Estado emergente, a política como derivação da norma e da regra
jurídica, e não como expressão de interesses, admitindo-se o atraso da sociedade como um dado de
realidade que era preciso mudar. A sociedade seria a obra arte deles, conduzindo-a prudente e
progressivamente no sentido de elevá-la ao padrão de modernidade inscrito na forma estatal” (Werneck
Vianna, 1986:85).
20
1.3 – A magistratura
Em fins de 1831, Paulino se formou. Sua turma era composta por seis alunos,
todos transferidos de Coimbra 8 - entre os quais estavam Manoel Vieira Tosta (futuro
Marquês de Muritiba) e Antonio Simões de Souza (que mais tarde veio a ocupar o cargo
de Ministro do Supremo Tribunal de Justiça).
Em seguida, foi para o Rio de Janeiro. Nesta cidade mobiliza suas amizades
forjadas em São Paulo para obter um cargo público. Em 1831, Feijó, ministro da Justiça,
o nomeia para o cargo de juiz do foro da cidade de São Paulo. Dessa maneira retorna a
São Paulo. No cargo de juiz do foro, Paulino mantém uma intensa correspondência
principalmente com Costa Carvalho (regente) e Antonio Carlos Andrada. O tema das
cartas, como não poderia deixar de ser, era a política e os conflitos desencadeados após
a renúncia de D. Pedro I. Nas cartas endereçadas a Paulino transparece a visão dos
liberais moderados preocupados com a possibilidade de que os conflitos desencadeados
com a renúncia do Imperador levem o país a um conflito mais intenso (Souza, 1944:40-
41). Na carta de Costa Carvalho: “Temos tido aqui rusgas de todas as cores, em duas
semanas sucessivas. Os anarquistas e os caramurus se apresentarão cada por sua vez, e
ambos com os Andradas à frente; mas foram bem batidos;” (ibidem:40) 9
Podemos observar que a possibilidade do agravamento da crise decorria da cisão
entre liberais exaltados e moderados. Os liberais exaltados consideravam que a renúncia
de D. Pedro I abria a possibilidade de que o tema da federação fosse introduzido na
agenda de reformas; para alguns dos grupos exaltados o momento seria propício não
apenas para a federação, mas também para a discussão acerca da república (ver Basile,
2001). Os liberais moderados não compartilhavam desta visão, pois para estes a questão
principal era assegurar que a relação entre o Executivo e o Legislativo fosse de uma
maneira distinta daquela levada por D. Pedro I. Para os moderados, o Executivo deveria
buscar a colaboração do Legislativo na condução das suas políticas.
A agenda política dos liberais moderados residia fundamentalmente em reforçar
o poder Legislativo frente ao Executivo e permitir que as províncias dispusessem de
8
Em 1832 formou-se a primeira turma treinada integralmente no Brasil. Ver Venâncio (1982:52).
9
Posteriormente será dito que a habilidade política de Paulino era imensa Segundo um comentário do
barão de Cotegipe, ele era capaz de bailar em cima de uma mesa sem quebrar nenhum cristal. Tal
habilidade já estava sendo desenvolvida neste período. Pois Paulino se correspondia com Costa Carvalho,
que criticava os Andradas, e com Antonio Carlos Andrada ao mesmo tempo, sem criar qualquer atrito.
21
maior autonomia na gestão dos seus negócios internos, sem que fosse introduzido o
tema da monarquia confederada.
Os temas da federação e da república deslocavam a discussão para além de um
acordo entre os poderes Executivo e Legislativo, e colocavam em discussão a maneira
pela qual o poder estava distribuído na sociedade brasileira. Para aqueles que defendiam
a federação, o poder deveria ser construído a partir das províncias e municípios. O tema
da federação envolvia colocar o poder mais próximo da sociedade.
Foi no cargo de juiz de foro que Paulino acompanhou os eventos dos anos de
1831 e 1832. Em 1843, Paulino realizou um discurso no qual relembrou este momento
político.
“Durante a menoridade, e principalmente em certa época dela, creio que
verdadeiramente somente houve um poder no Império. Este poder,
senhores, era o da câmara dos deputados. [...] O Senado mesmo, em
alguns tempos, não exerceu na política do país e nos negócios públicos
aquela importantíssima influencia que, pela constituição, é chamada a
exercer. Toda a influencia estava, todo poder [...] estava na câmara dos
deputados”. (Sessão de 7 de fevereiro de 1843, pp. 560-561)
22
Brasil seria uma associação política dos cidadãos brasileiros de todas as suas
províncias, federadas por esta Constituição.
Além da monarquia federativa, a comissão propõe a separação entre rendas
provinciais e gerais, o que será mantido no Ato Adicional. O Senado deixaria de ser
vitalício,escolhido pelo Imperador a partir de uma lista tríplice, e passaria a ser eleito
pela Assembléia Provincial. Esta também ficaria encarregada da eleição do vice-
presidente e, por último, o projeto propõe a supressão do Poder Moderador e do
Conselho de Estado. 10
O Senado reconheceu a constitucionalidade da reforma, entretanto transferiu sua
realização para representantes eleitos para tal, ou seja, para a próxima legislatura, e
negou a possibilidade de reforma dos artigos que tornavam a monarquia federativa e o
Senado temporário e eleito a partir das Assembléias Provinciais 11 .
A derrubada destes dois pontos, monarquia federativa e Senado temporário e
eleito pelas Assembléias, colocou em marcha a tentativa de aprovar as reformas sem a
participação do Senado. Um dos principais artífices deste movimento foi o ministro da
Justiça, Diogo Feijó. A Constituição de Pouso Alegre, principal documento político
deste movimento, incorporava os pontos do projeto apresentado pela Comissão 12 .
Em 30 julho de 1832, a Câmara se reúne para tentar votar um parecer segundo o
qual ela se converteria em Assembléia Nacional para empreender a reforma, mesmo
sem a anuência do Senado. Durante os debates na Câmara dos Deputados, Honório
Hermeto, amigo de Paulino desde Coimbra, agrupou uma maioria capaz de derrotar
esse movimento.
A derrota aponta para um reconhecimento, por parte dos descentralizadores, dos
limites impostos pelo Senado. Neste sentido, forma-se na Câmara uma nova comissão
formada por Bernardo Pereira de Vasconcelos, Limpo de Abreu e Paula de Araújo. As
linhas centrais do projeto elaborado por esta comissão formarão a base do Ato
Adicional aprovado em 1834.
Com a queda de Feijó, em decorrência do malogro do movimento, sobe, em 13
de setembro de 1832, um novo gabinete, cuja pasta da Justiça era ocupada por Honório
Hermeto Carneiro Leão, o qual Paulino havia conhecido em Coimbra. Na pasta da
Justiça, Honório nomeou Paulino para a Vara de Juiz do bairro de São José, em seguida
10
Ver Parecer sobre a Reforma da Constituição, p. 449-470 apud Pinto (1983).
11
Ver Emendas aprovadas pelo Senado ao Projeto da Câmara dos Deputados, p. 476 e 477 apud Pinto
(1983).
12
O projeto da chamada Constituição de Pouso Alegre encontra-se em Tarquínio Souza (1988d).
23
para a Intendência Geral de Polícia, no ano seguinte para Juiz Conservador da Nação
inglesa, lugar até então sempre ocupado por um desembargador, e para Juiz da 2ª Vara
Cível do Rio de Janeiro (ver Souza, 1944:42).
Podemos observar que Paulino é deslocado rapidamente entre os cargos em
razão do suas relações com o ministro da Justiça. Posteriormente, Paulino buscará
reduzir essa margem de ação do ministro da Justiça, apoiando uma lei que estabelecia
para cada cargo da magistratura um tempo mínimo antes que houvesse uma promoção
do seu ocupante.
É no posto de Juiz da 2ª Vara que Paulino tomou contato com o Código do
Processo. O ano de 1831 foi marcado não apenas pelo projeto Miranda Ribeiro, mas
também pela rápida tramitação de uma das leis mais importantes do Império: o Código
do Processo. Em 1829, Lúcio Teixeira Mendes, ministro da Justiça, apresentava a
proposta do Código. Durante o ano de 1830 foi formada uma comissão composta pelos
deputados Silva Maia, Alves Branco e Veiga e os senadores Marquês de Queluz,
Patrício Almeida e Nuno Lossio. O relator da comissão escolhido foi o deputado, e
futuro ministro da Justiça, Alves Branco. É este quem apresenta à Câmara o projeto
elaborado pela comissão e que foi aprovado em 27 de setembro de 1831, subindo
posteriormente para a sanção imperial 13 . A experiência política pela qual o país passou,
a partir do Código do Processo, apesar de curta, foi das mais importantes de todo o
século XIX, com repercussões profundas no debate político do período republicano.
Uma das idéias centrais do Código foi a de reforçar os poderes dos cargos
eletivos (juiz de paz, promotor, juiz municipal e júri de acusação) da estrutura judiciária.
Durante toda a sua carreira política, Paulino criticou o Código do Processo nos moldes
em que este havia sido elaborado, em 1832. Segundo Paulino, as eleições e as cabalas
eleitorais determinavam o funcionamento da Justiça. Em um discurso proferido em
1841, Paulino deplorava a submissão do judiciário aos grupos que controlavam as
eleições:
13
Ver Organização e Programas Ministeriais, p.48-49.
24
1.4 – O casamento, as ligações com a grande propriedade agrícola e o ingresso na
política
Em 1833, Paulino deu mais um passo importante para o seu ingresso na elite
política do país. Neste ano, casou-se com Ana Maria Álvares de Azevedo, cuja irmã
havia se casado com Rodrigues Torres, naquele momento, ministro da Marinha.
Posteriormente, Rodrigues Torres formaria, com Paulino e Eusébio de Queiroz, a
famosa trindade saquarema do partido conservador.
O casamento com Ana Maria permitiu a Paulino estabelecer contatos com
importantes famílias da elite agrícola. O pai de Ana Maria possuía fazenda em Itaboraí,
enquanto seus irmãos possuíam fazendas na região dos lagos da província do Rio de
Janeiro (ver Carvalho, 2002:14). Segundo José Murilo de Carvalho:
14
Paulino era proprietário da fazenda Val de Palmas (Lenharo, 1993:116). O autor não indica se a
propriedade de Paulino era de grande porte, quando adquiriu, qual o número de escravos e se
desempenhava algum papel de destaque na economia. Apenas assinala o vínculo entre os líderes
conservadores e a propriedade cafeeira. Pelo tratamento do autor deduzimos que a propriedade de Paulino
não teve um papel importante na economia cafeicultora, pois, em outros momentos, o autor assinala
quando a propriedade e o político desempenham um papel importante.
25
nobreza e a alta burocracia de estado. Sua criação foi fruto principalmente de uma
política generosa de D. João VI e D. Pedro I. Estes distribuíram vastas extensões de
terras nas proximidades do Rio de Janeiro. Posteriormente, este grupo adquiriu terras no
Vale do Paraíba.
Em 1831, com a abdicação do Imperador, o primeiro grupo passa a controlar o
processo político. O segundo grupo, com os recursos do setor de subsistência, financiou
a colonização e a expansão da economia cafeeira no Vale do Paraíba.
O acerto de contas viria com o regresso conservador, na década de 1840. Neste
momento, o segundo grupo, ao qual Paulino estava ligado, assume a hegemonia do
processo político. O casamento de Paulino reforçou seu vínculo com este grupo.
Para D. Antoinette, o casamento com uma brasileira foi mais uma decepção. Seu
pai escreve para lhe desejar felicidades, entretanto, de sua mãe não recebe nenhuma
carta. Sua mãe somente lhe irá escrever meses depois, para comunicar o casamento de
sua irmã com um suíço de origem francesa. Em outra carta, sua mãe demonstrava saber
dos importantes parentescos de sua nova esposa (ver Souza, 1944:45). Ficava claro, aos
olhos da sua mãe, que, com este casamento, Paulino ingressava mais firmemente na
vida política brasileira.
Paulino havia se casado com a idade de 26 anos e aos 27 seria convidado para
ocupar a importante pasta da Justiça. O casamento e as relações que este trouxe haviam
contribuído para que mais portas se abrissem ao seu talento.
O ministério de 13 de setembro de 1832 caiu em 16 de janeiro de 1835. O
encarregado de organizar o novo ministério, Castro e Silva, recomendou à Regência o
nome de Paulino para a pasta da Justiça. Entretanto, Paulino reusaria o convite. Na carta
enviada para justificar a recusa, escreveria: “[...] não me acho com forças suficientes
para exercer um cargo tão importante que as atuais circunstâncias tornam ainda mais
difícil.”(apud Souza, 1944:47).
Segundo seu biógrafo e bisneto, José Antonio Soares de Souza, Paulino teria
revelado nesta recusa uma ausência de vaidade pouco comum para esta idade,
reconhecendo que não estava à altura do cargo. Podemos tomar um caminho um pouco
diverso, sem que recusemos este traço do seu caráter. Caso observemos o final da frase,
podemos perceber que Paulino adiciona às dificuldades naturais de um cargo tão
importante os problemas decorrentes das atuais circunstâncias. De que circunstâncias
Paulino estaria falando? Por que as circunstâncias tornavam o cargo ainda mais difícil?
26
Ao longo de todo o debate político acerca do Código do Processo (1832), seus
defensores alertavam para o boicote que este sofreria dos juízes de direito. O
funcionamento do Código do Processo revelou, desde o seu início, conflitos entre a
magistratura eleita (juiz de paz) e magistratura nomeada (juiz de direito). Lembremos
que Paulino ocupava um cargo de juiz de direito e que, desde da sua entrada na carreira
parlamentar, sempre se manifestou criticamente para com o júri de acusação, promotor
e juiz de paz eleitos na localidade. Portanto, podemos considerar que Paulino, em 1833,
já se posicionava contra o Código do Processo, sem compartilhar das esperanças de
alguns liberais moderados, como por exemplo, Evaristo da Veiga.
Não desconsideramos a importância dos traços da personalidade na composição
de um personagem histórico. Entretanto, preferimos seguir uma outra idéia: Paulino não
pretendeu entrar na carreira política, propriamente dita, num momento tão desfavorável
às suas convicções. A formação profissional e a posição ocupada no aparelho de Estado
por Paulino o predispunham a uma posição contrária às reformas introduzidas pelo
Código do Processo. Certamente, aos olhos de Paulino, a pasta da Justiça era um cargo
extremamente importante. Porém, acreditamos que ele tenha preferido ocupá-lo num
momento político no qual as forças políticas contrárias às leis descentralizadoras
tivessem chances de reverter as idéias dominantes.
Ainda no ano de 1835, Paulino faria seu ingresso definitivo na arena política
parlamentar. Evaristo da Veiga, um dos liberais moderados mais importantes, incluiu
seu nome na lista dos candidatos à deputação provincial do Rio de Janeiro.
No ano seguinte, Paulino já faria parte da importante comissão da Justiça. Nesta,
seria o relator da análise do Ato Adicional e indaga à Assembléia Geral sobre pontos
obscuros do Ato. Neste relatório já estão presentes os germes da Lei de Interpretação do
Ato Adicional, ponto de partida do regresso conservador.
Em 1835, Paulino recusa o ministério da Justiça em razão do Código do
Processo; em 1836, levanta dúvidas sobre o funcionamento do Ato Adicional. Quando
observamos este comportamento político, colocamos em dúvida a idéia de que o recuo
para com as leis descentralizadoras tenha sido repentino e suspendemos a noção de que
as revoltas regenciais bruscamente deslocaram os liberais moderados para um novo
campo político. O comportamento de Paulino revela que dentro do bloco dos liberais
moderados sempre houve algumas vozes, não a maioria, contra a legislação
descentralizadora. Estas vozes ganharam força com a persistência das revoltas
regenciais.
27
A ascensão de Paulino na política continua ininterruptamente: em 1836, o
regente Feijó o nomeou para a presidência da importante província do Rio de Janeiro,
em substituição a Rodrigues Torres. Paulino chegaria a presidente da província do Rio
de Janeiro aos 28 anos. Acreditamos que com a chegada a este posto se confirmava a
correção da sua escolha de voltar para o Brasil, em vez de permanecer na Europa,
conforme os desejos de sua mãe. O neto de um pequeno livreiro francês e de um
modesto guarda-mor chegava à presidência de uma das mais importantes províncias do
Império brasileiro.
28
que assinalava este fato, constatava que tais intervenções ficavam muito aquém das
necessidades da província. E escrevia que, apesar de estar convencido de que
“[...] convém muito mais confiar à indústria dos particulares a execução e
propriedade de estradas e canais, por meio de empresas [...] porém [...] a
carência de capitais, o fácil, mais seguro e talvez lucroso emprego dos
que existem e a falta de exemplo e do espírito de empresa não permitir
que a ação isolada da Administração seja substituída [...]”. (Relatório de
Presidente de Província de 1838, pp.51-52).
29
a ordem nas povoações. Os únicos meios à disposição do poder central para evitar os
distúrbios eram as autoridades eleitas, as quais, nas palavras de Paulino eram “[...]
aqueles mesmos que os cometerão ou ajudarão a cometer” (Relatório de 1839, p. 1).O
Relatório de Presidente de Província de 1839, apesar de diversas informações sobre a
realidade regional, é marcado pela crítica às leis descentralizadoras.
A permanência de Paulino na presidência somente foi interrompida em 1837.
Em 15 de setembro de 1837, Paulino é exonerado da presidência da província do Rio de
Janeiro. O regente Diogo Feijó o demitiu em razão do seu apoio a Vasconcelos, na luta
deste contra aquele. Com a queda de Feijó no mesmo ano, Paulino é reconduzido ao
cargo.
Em 1836, Paulino era eleito para a Assembléia Geral. Em maio de 1837, apoiou
o grupo de Vasconcelos, Rodrigues Torres e Honório Hermeto contra Feijó e Evaristo.
Os dois últimos haviam sido os responsáveis pela sua nomeação para presidente de
província e deputado provincial. Em setembro de 1837, Feijó renunciava ao cargo de
regente único. A renúncia de Feijó representava a vitória do grupo de Vasconcelos. Caía
por terra o padre e seu grupo político.
Em julho de 1837, era formada uma comissão encarregada de elaborar uma
interpretação do Ato Adicional. Sua tarefa consistia em aclarar as dúvidas decorrentes
da sua aplicação. A comissão era formada por Miguel Calmon du Pin, Honório Hermeto
Leão e Paulino. Calmon du Pin era um político que desde a constituinte possuía
importância, tendo se oposto – como veremos mais adiante – à democratização
excessiva das funções do juiz de paz. Honório Hermeto, por sua vez, havia sido a
principal voz a se opor ao golpe intentado por Feijó. No seu segundo ano na legislatura
geral, Paulino participava, ao lado de importantes figuras da política nacional, de uma
importante comissão.
A Lei de Interpretação será o ponto de partida do regresso conservador. Com a
Lei de Interpretação as Assembléias Provinciais perdiam os poderes para controlar as
30
nomeações para o judiciário e realizar alterações no Código do Processo. Em 10 de
julho de 1837, uma comissão de deputados, formada por Paulino José Soares de Sousa,
Miguel Calmon du Pin e Honório Hermeto Leão, apresentou um projeto de Lei que
interpretava o Ato Adicional de 1834. A maneira pela qual esta comissão interpretou o
Ato implicou a completa redefinição do conteúdo da Lei de 1834. Essa interpretação foi
o marco de dois fatos históricos importantes: em primeiro lugar, foi o início da divisão
entre liberais e conservadores; em segundo, foi o primeiro passo do programa daquilo
que se convencionou chamar regresso conservador. A Lei de Interpretação do Ato
Adicional (1839), a Reforma do Código do Processo (1840) e a Lei do Conselho de
Estado (1841) formam o núcleo do regresso conservador.
A Lei de Interpretação era constituída por seis artigos. Os liberais centraram suas
críticas principalmente nos artigos 2 e 3, que atingiam o parágrafo sétimo do artigo 10
do Ato Adicional.
No artigo 10 do Ato Adicional ficavam estabelecidas quais as atribuições que
competiam às Assembléias Provinciais. Dentre estas atribuições constava, no parágrafo
sétimo, que caberia às Assembléias Provinciais legislar sobre a criação e supressão dos
empregos provinciais e municipais, sendo estes todos que existirem nestes locais,
excetuados os que diziam respeito à administração e arrecadação da fazenda nacional.
Com o Ato Adicional as Assembléias Provinciais passaram a exercer um controle sobre
funcionários nomeados pelo poder central, ou seja, os cargos, e as suas atribuições,
criados pelo poder central poderiam ser alterados pelas Assembléias Provinciais; os
cargos de juiz de direito, de paz, de órfãos, municipal, promotor etc. poderiam ser
alterados pelo poder provincial.
A Lei de Interpretação, através dos artigos 2 e 3, retirava tal atribuição das
Assembléias Provinciais, e a conferia exclusivamente ao poder central. Segundo a
comissão que a elaborou, este procedimento evitava o absurdo 15 criado pela aplicação
do Ato Adicional. Este absurdo consistia no seguinte: o poder central elaborava os
Códigos válidos para todo o território nacional. Para a sua aplicação, eram previstos
cargos e atribuições; entretanto, o Ato os tornou passíveis de serem alterados pelo poder
provincial. Como conseqüência as Leis nacionais para a sua execução passaram a ficar
na dependência das Assembléias Provinciais 16 .
15
O termo é utilizado diversas vezes no parecer desta comissão lido na sessão de 10 de julho de 1837.
16
Ver Sessão do dia 10 de julho de 1837, p. 71.
31
A partir da Lei de Interpretação formaram-se os partidos liberal e conservador.
Conforme assinala José Murilo de Carvalho:
“[...] o grosso do Partido Conservador se compunha de uma coalizão de
burocratas e donos de terras, ao passo que o grosso do Partido Liberal se
compunha de uma coalizão de profissionais liberais e de donos de terra”.
(Carvalho, 1980:165).
32
1.7 - Paulino assume o Ministério da Justiça: o enfrentamento com os liberais do Sul e
os bárbaros do Norte
33
Paulino enxergou a possibilidade de enfrentar a corrente descentralizadora e de derrotá-
la. Em 1841, Paulino aceitou o Ministério da Justiça.
Os projetos de Reforma do Código do Processo, que se encontrava parado no
Senado, e de restauração do Conselho de Estado foram postos em discussão. A
tramitação das duas leis foi mais rápida do que esperavam os liberais. Para tanto, o
governo mobilizou sua força política, a tramitação rápida dos dois projetos exigiu a
substituição do presidente da Câmara (ver Castro, 1985:66). Para reforçar a pressão
sobre a Câmara, Paulino apresentou o projeto de Reforma do Código do Processo e
ameaçou renunciar caso o projeto não fosse aprovado 17 . A pressão do governo deu
resultados e ambos os projetos foram aprovados: a restauração do Conselho de Estado
foi aprovada em novembro, enquanto a Reforma do Código foi aprovada em dezembro.
Com a aprovação destas Leis, os liberais passaram a depositar grandes
esperanças na posse da legislatura de 1842, na qual contavam deter uma maioria capaz
de rever as medidas do regresso conservador. Em 1842, a Câmara, quando ainda estava
no processo de verificação dos seus membros, foi dissolvida.
A impossibilidade de rever as medidas tomadas pelos conservadores
desencadeou a Revolta Liberal de 1842. A eclosão desta revolta e o seu motivo já
estavam no cenário político desde, pelo menos, agosto de 1841. Em 4 de agosto de
1841, Teófilo Ottoni anunciava o motivo pelo qual poderia vir a eclodir uma revolta no
país.
17
“Declaro mesmo que estou resolvido a retirar-me da administração se esta augusta câmara não o
aprovar.” (21 de Julho de 1839, pág. 281).
18
“Senhores falemos claro. O governo sabia que um movimento se preparava em São Paulo.”(Paulino,
sessão da câmara dos deputados em 7 de fevereiro de 1843, p. 575)
34
sim, forçar o Imperador a rever as medidas tomadas. A sua principal bandeira foi a de
reverter a política centralizadora e de retomar o sentido federalista, presente no Ato
Adicional.
A revolta liberal de 1842 foi um movimento essencialmente liderado pelas elites
imperiais (a fina flor da sociedade 19 ). Nas palavras José Murilo de Carvalho:
A ação repressora do governo foi dura, deportou líderes para Lisboa, entre eles o
ex-ministro da Justiça Limpo de Abreu; prendeu, suspendeu garantias, manteve
senadores envolvidos em prisão domiciliar 20 . Para os liberais, o centro político de onde
partiram estas medidas havia sido o ministro da Justiça. Em diversas ocasiões, Paulino
respondeu às críticas dos liberais a estas medidas, confirmando sua autoria e
defendendo sua necessidade.
19
Francisco Salles Torres Homem, “O Libelo do Povo” apud Mattos, 1994:104).
20
Feijó, Paula Souza e Nicolau Campos Vergueiro.
35
politicamente. [...] Aqui não se dão atos judiciários, há um juízo ou
julgamento político” (idem, p.563)
No Ministério da Justiça, Paulino enfrentou as revoltas que emergiram no Norte
do país. Na visão de Paulino, estas revoltas mobilizaram e foram lideradas por setores
sociais que se encontravam distantes da sociedade civilizada:
“Ora, perguntarei, qual teria sido a sorte do país se, na posição em que
aqui se achou o governo imperial nos fins de Junho 21 , tivesse chegado a
esta corte a notícia do movimento em alguma das províncias do
norte? Não lhe poderia mandar daqui auxílio. Não poderia tirar de
outras províncias nas quais também se manifestassem receios. Havia
dizer àquela província que lhe pedisse auxílio: - Não vos posso valer,
porque eu mesmo luto com grandes dificuldades. O resultado infalível
de uma semelhante declaração seria a perda de toda a força moral.
Perdida esta, outras desordens apareceriam e a rebelião ganharia
força imensa.”(sessão de 7 de fevereiro de 1843, P.567).
21
A revolta liberal irrompe em São Paulo em 17 de maio e em Minas em 10 de junho.
36
próximos, mas sem vínculos políticos. O que assustava Paulino era a possibilidade de
que estes movimentos tivessem ocorrido de tal maneira que o poder central não tivesse
forças para enfrentá-los, fato que abriria caminho para que outros movimentos armados
espocassem pelo país, de tal sorte que a unidade nacional soçobrasse.
1.9 - O Senado
37
província do Maranhão, tendo sido novamente o mais votado, entretanto de novo foi
preterido, desta vez em favor de Joaquim Francisco de Sá. Finalmente, em 1849,
Paulino é eleito senador pela província do Rio de Janeiro, aos 40 anos de idade.
Como observou Ilmar Rohloff de Mattos, a entrada de Paulino no Senado
apontava para um predomínio dos conservadores neste âmbito do poder. Paulino
encontraria nessa Casa outros aliados das lutas do regresso conservador: Vasconcelos,
Carneiro Leão, Clemente Pereira, Costa Carvalho e Rodrigues Torres (ver Mattos,
1994:255), homens que, como ele, haviam lutado pelo princípio da centralização. A
chegada de Paulino ao Senado também coincide com a derrocada dos liberais do poder.
A queda dos liberais, segundo Francisco Iglésias, deveu-se à diversidade de
pontos de vistas dentro do partido e aos choques decorrentes deste fato. Um dos pontos
sobre os quais havia menor unidade no partido era a maneira pela qual deveriam ser
reformadas as leis do regresso conservador (ver Iglésias, 1985:11). Nas palavras de
Nabuco:
38
1.9.1 - O combate ao tráfico, os problemas da Bacia do Prata e a crítica à conciliação
22
Ver Relatório de Ministro dos Negócios Estrangeiros, e Cervo e Bueno (1992, cap. 5).
39
popular (ver Mattos, 1994:213-216). Nessa operação, o comprador tendia a ser
absolvido, enquanto o traficante sofria o rigor do funcionário vinculado ao poder
central.
Em 1853, Paulino abandonava o gabinete. O afastamento do gabinete estava
ligado a uma discordância maior: a política de conciliação empreendida por Paraná. Tal
política terminou por dividir o partido conservador em puros e moderados. Os
moderados apoiaram a conciliação. Paulino, Eusébio e Rodrigues Torres (a Trindade
Saquarema) permaneceram fiéis à ortodoxia conservadora (ver Iglésias, 1985:41).
Em 28 de maio de 1858, Uruguai ponderava os motivos pelos quais não havia
aderido à conciliação.
40
1.10 - O final da vida: longe das apreciações pessoais e voltado para o estudo do poder
41
“C’est necessites auxquelles l’initiative privée ne peut répondre, et qui
sont vitales pour la communauté tout entière et chacun de ses membres,
constituent le domaine propre de l’administration ; c’est sphère de
l’intérêt public. [...] Le motor de l’action administrative, au contraire, est
essentiellment désintéressé: c’est la poursuite de l’intérêt general, ou
encore de l’utilité publique, ou, dans une perspective plus philosophique,
du bien commun”. (Rivero, 190:12-13)
42
organizar o ministério em 1858, volta a fazê-lo em 1859, porém concordou em auxiliar
o Marquês de Olinda em 1857 e, a pedido deste, Uruguai redigiu um pequeno texto
denominado Bases para uma melhor administração provincial.
Uma das preocupações do Marquês era com a instabilidade da administração
provincial, pois o tempo de permanência de um presidente na província era
extremamente curto. Além deste fato, outro elemento dificultava a administração
provincial: a concentração de atribuições no Executivo. O Marquês de Olinda nomeou
Nicolau Tolentino, um funcionário do segundo escalão, para presidência da província
do Rio de Janeiro. Tal nomeação era inédita na vida política imperial: usualmente,
enquanto o presidente não assumia as funções, o vice-presidente, escolhido pelo
Legislativo provincial dentre os deputados, governava a província. Nicolau Tolentino,
certamente com o apoio do Marquês de Olinda, tentou conferir estabilidade à
administração provincial. Seu plano era o de estabelecer entre as secretarias um
funcionamento que independesse do presidente. Em outras palavras, certos assuntos
comuns seria resolvidos internamente, sem a necessidade de recorrer ao presidente. No
mesmo sentido caminhava a sugestão de Uruguai: estabelecer um conselho provincial
encarregado de analisar o contencioso provincial. Esse conselho, dotado de
continuidade frente às oscilações partidárias do Executivo, seria um depositário das
informações da administração, auxiliando o presidente na tomada de decisões relativas
aos litígios entre a administração e os particulares. Diversos trechos das Bases... serão
transcritos no Ensaio...
Em 1859, o Visconde de Uruguai manifesta em carta o desejo de se voltar
exclusivamente para os livros (ver Souza, 1944:599). Seu envolvimento com a escrita
não o afasta da política, mas a põe em outra dimensão: a do trabalho escrito voltado
para a publicação. Agora, seu esforço intelectual não estará voltado para a tribuna e para
os relatórios, mas para um trabalho escrito. Tal trabalho, segundo o autor, não estaria
voltado a considerações pessoais, e, sim, ao conhecimento e compreensão dos
mecanismos políticos.
“A história de tais acontecimentos escrita por quem por quem foi neles,
há pouco tempo, também ator, e teve nas mãos o fio dos segredos da
época, pode fazer algum mal, quando os fatos não manifestavam ainda
todas as conseqüências que os pejam. Repugnava-me além disso, entrar
em considerações apreciações, as quais poderiam talvez molestar
pessoas. [...] Propuz-me a coligir, coordenar, classificar e analisar a nossa
legislação administrativa, de modo a poder formar um juízo claro sobre o
43
seu todo, sobre cada uma de suas partes, sobre a ligação e jogo, sobre
seus efeitos, imperfeições e lacunas.” (Uruguai, Ensaio.., pp. 6-7)
44
Capítulo 2
1
Ver Plano e Greenberg (1965), Riker (1973), Elliot (1974), Levi (1986), Bulpitt (1996) e Grant (1996).
2
Sobre o processo histórico norte-americano que leva dos Artigos até a Convenção da Filadélfia, veja-se
Kramnick (1993) e Storing (1981).
45
extending to the individual citizens of America. The consequence of this
is, that thought in theory their resolutions concerning those objects are
laws, constitutionally binding on the members of the Union, yet in
practice they are mere recommendations, which the States observe or
disregard at their option”. (Hamilton, n° 15, p. 70, in Madison, 1982; os
destaques são do autor)
46
tanto, Hamilton argumentava que seria necessário que a União tivesse os poderes
necessários para chegar até o cidadão.
Na nossa compreensão do conceito de federalismo, podemos assinalar que
Hamilton já estava mencionando um dos seus elementos distintivos, qual seja, a
capacidade do governo central chegar até os cidadãos das unidades que compõem o
Estado sem passar pelo crivo destas unidades. Ocorre que Hamilton faz uso da palavra
governo confederativo, distinguindo esse novo arranjo político de uma mera liga, e não
fazendo a distinção entre federação e confederação, como seria mais usual na nossa
contemporaneidade. Revela, dessa forma, que sob uma palavra antiga se manifestava
um novo conteúdo. O uso do termo confederação de estados para se referir aos Estados
Unidos da América foi comum até a Guerra Civil (1861-1865) 3 .
Este descompasso entre o novo conteúdo histórico, gerado a partir da
experiência norte-americana, e a persistência no de velhas palavras foi claramente
percebido por Tocqueville:
3
“The replacement of the term ‘confederated states’ by ‘federal state’ in descriptions of the American
constitution following the Civil War reflects both the negative connotations of the term ´confederacy´
following its appropriation in the war by the secessionist states of the South, and the growing power of
the federal government” (Wyn Grant, 1996).
4
As citações foram retiradas do Tomo I, que foi publicado em 1832. A inovação norte-americana ainda
não estava inteiramente clara para o debate político francês. O dicionário da Academia Francesa, na sua
edição de 1832-1835, ainda definia federal utilizando a referência da confederação. Féderal qui rapport à
une conféderation. Por sua vez, o termo federativo estava ainda mais associado a confederação, Fédératif.
De l´association politique de plusieurs États, unis entre eux para une aliance général, et soumis en
certains cas à des déliberations communes, mais dont chacun est regi par ses lois particulières.
47
Podemos observar que Tocqueville compreendia o descompasso entre o novo
conteúdo e o uso de uma antiga palavra para se referir a este.
Neste autor está presente a percepção da inovação da Convenção da Filadélfia
para com as experiências européias de confederação, qual seja, a União atuava
diretamente sobre os cidadãos sem a necessidade de recorrer às unidades da federação.
Entretanto, essa centralidade da União não era semelhante àquela dos estados unitários,
pois as unidades que compunham o Estado dispunham de uma autonomia e de
liberdades que inexistiam nos estados unitários. Nestes, as partes que compunham o
Estado eram meramente unidades administrativas, sem dispor de autonomia e liberdade
para a escolha de funcionários, organização da Justiça e recolhimento de impostos.
Aspectos que ocorriam no caso norte-americano.
Porém, o autor francês lamentava que não houvesse um termo novo capaz de
designar o arranjo norte-americano. Neste sentido, Tocqueville assinalava o
descompasso entre as palavras disponíveis (federação e confederação) e a novidade
histórica. Ao longo do debate político anterior, federação havia sido um sinônimo de
confederação. Quando, posteriormente, o termo foi associado exclusivamente à
novidade introduzida pelo caso norte-americano, o que ocorreu foi meramente a
reutilização de um antigo termo para um novo conteúdo.
Portanto, podemos observar os seguintes pontos: 1) o uso dos termos federação e
confederação para se referir ao caso norte-americano era um procedimento comum. Isto
porque a palavra federação estava associada a confederação. 2) a inovação produzida
pela experiência norte-americana consistiu no seguinte conteúdo: as unidades que
compõem a União iriam dispor de autonomia política e administrativa, entretanto isto
não implicava que o poder central fosse fraco ou nulo; os estados não seriam entendidos
como um poder soberano tal qual a União. As resoluções da União teriam caráter
impositivo para os estados, e não mais meras recomendações. Ao mesmo tempo em que
o poder central era reforçado, os estados disporiam de autonomia decisória em aspectos
importantes. Neste sentido, a idéia de federação era uma novidade política, como bem
escreveu Tocqueville - não era uma repetição das confederações, pois o poder central
era forte, nem os estados desempenhavam o mesmo papel que num Estado unitário.
O conceito de centralização não sofreu alterações comparáveis àquelas
experimentadas pelo conceito de federalismo. O conceito de centralização
modernamente está associado a uma concentração de atribuições que confere maior
unidade do Estado (ver Duhamel, 1992 e De Grazia, 1986). Podemos considerar que a
48
definição do século XIX não apresenta praticamente nenhuma diferença 5 quando
comparada com o conteúdo do século XX. O Dicionário Moraes, na sua edição de 1844,
apresentava as seguintes definições: Centralisação, s. f. Acção de centralisar, de chamar
a um centro; v. g. a – da justiça; das forças militares, etc. á capital, ou um ponto
central. Centralisar, ou - zar, e deriv. v. a. Ajuntar em um centro, conchegar a elle; v. g.
centralizar as forças, as potencias, as nações. §. Repor, restituir ao centro physico, ou
moral as partes activas, ponderantes, afastadas, e alongadas; v. g. centralizar os
Estados.
A menção ao Dicionário Moraes cumpre o papel de chamar a atenção do leitor
para a presença da idéia de que centralizar significava unir as partes ativas e as partes
afastadas que formam um Estado. Podemos perceber que a maneira pela qual essas
partes seriam unidas ficava em aberto, poderia ocorrer através de um arranjo federativo
ou unitário.
5
No Dicionário da Academia Francesa na sua edição 1832-1835 podemos encontrar a seguinte definição
Centralization – Action de reunir dans un même centre. Centraliser l’administration.
49
status do Brasil, alçando-o ao patamar de província do Reino, como eram as províncias
situadas no continente europeu.
O uso que D. Rodrigo faz do termo federativo revelava uma ruptura com o
conteúdo deste. O conceito de federação apresentava um sentido histórico preciso, qual
seja: estados autônomos que firmavam um pacto de unidade. D. Rodrigo defendia a
aplicação de um sistema federativo ao Império português, sendo que este não era
formado por estados independentes, mas por colônias submetidas a um centro. D.
Rodrigo buscava no uso do termo federativo um arranjo institucional que permitisse à
colônia mais rica do Império uma autonomia e um desenvolvimento econômico maior,
sem que este fato implicasse a ruptura com a metrópole.
A transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, implicou mudanças
significativas para a parte americana do Império. A liberdade de comércio e a
transferência da Justiça para a colônia foram aspectos centrais desse processo. Com a
abertura dos portos, a colônia passava a negociar com as principais praças comerciais
européias. O deslocamento da Justiça representou um acesso mais rápido aos pedidos de
revista de processos. A colônia passou a usufruir de prerrogativas idênticas àquelas da
parte européia do Império.
Em 1821, nos debates parlamentares da Constituinte de Lisboa, o termo
federalismo/confederação reaparece nas propostas para o reordenamento constitucional
do Império português. Em fevereiro, estava em discussão o projeto acerca da suspensão
dos magistrados. Para uma corrente política, tal poder caberia exclusivamente ao rei e,
para outra corrente, existiam no Brasil autoridades locais capazes de realizar tal ato. O
primeiro grupo político era chamado de integracionistas, e considerava que não deveria
haver distinções entre as partes do Império português, este seria uma única nação. As
partes que comporiam o Império Português deveriam estar submetidas ao mesmo centro
político.
O deputado Antonio Carlos, eleito pela província de São Paulo, era um defensor
da autonomia das autoridades locais para a suspensão dos magistrados. Segundo o
deputado, o Império britânico, os Estados Unidos da América e o reino da Suíça
permitiam que autoridades locais suspendessem os magistrados. Observemos que a
Suíça era designada, na época, como Confederação Helvética. A discussão envolvia
outro aspecto extremamente importante: essa atribuição garantiria a igualdade entre os
povos do Brasil e de Portugal. Com esta afirmação, Antonio Carlos deixava claro que o
50
reino era formado por dois povos, e que o arranjo político institucional a ser adotado
deveria respeitar essa especificidade.
O deputado Trigoso, eleito em Portugal, opos-se à essa interpretação e aos
exemplos mencionados pelo deputado paulista nos seguintes termos: “Os países citados
tinham pactos antes de serem unidos; confederaram-se para fazer um Estado” (apud
Berbel, 1999:128). Para o deputado Trigoso, o Império Português não era formado por
povos autônomos que deliberaram formar um pacto de união, mas uma nação formada
por cidadãos portugueses situados em continentes diferentes. Observe-se o uso do termo
pacto que está na definição latina da palavra foedus, que vem a ser a origem de
federalismo.
A idéia da Antonio de Carlos, acerca do Império português, provinha de um
conjunto de propostas conhecidas como Lembranças e Apontamentos, cuja autoria é
atribuída a José Bonifácio. O documento pretendia oferecer um projeto de organização
política para o Império de Portugal. Logo no início deste documento, define-se a nação
portuguesa como constituída pelos Reinos de Portugal e do Brasil (cap. I, art. 4). Dentre
os itens que compõem o projeto estavam: o estabelecimento de um governo-executivo
para o reino do Brasil, ao qual estariam submetidos os governos provinciais (cap. II, art.
2); a elaboração de um Código Civil que respeitasse a diversidade de circunstâncias
entre a população do Brasil e a de Portugal (cap. II, art. 5); a igualdade de Direitos
Políticos e Civis, de acordo com a diversidade dos costumes existentes nos dois reinos
(cap. I, art. 2); e leis que regulassem o comércio sem que fosse tolhida a liberdade de
ambos os reinos (cap. I, art. 4).
O projeto paulista estava inserido numa concepção que entendia o Império
Português como sendo formado por partes autônomas que, dotadas de certas
características peculiares, deveriam ser respeitadas no arranjo político institucional. O
projeto e as propostas paulistas não mencionavam os termos federalismo e confederação
e, em suma, não apresentavam explicitamente um projeto de um Império Federativo.
Entretanto, a reação do grupo integracionista atacava as iniciativas paulistas como
sendo as de transformar o Império Português numa confederação.
Os deputados eleitos nas províncias na América portuguesa não tiveram uma
atuação homogênea. Podemos concentrar as divergências confrontando duas idéias.
Enquanto os deputados paulistas e fluminenses falavam nos Reinos do Brasil e de
Portugal, o deputado baiano Lino Coutinho discursava nos seguintes termos: “O Brasil
não se deve olhar como um só país, são tantos países diferentes quantas as províncias do
51
Brasil [...]. As províncias do Brasil podem chamar-se de reinos” (apud Berbel, 1999:
131)
Os deputados das províncias da Bahia e de Pernambuco se opuseram ao
fortalecimento do governo do Rio de Janeiro, presente na proposta paulista. Para estes
deputados, não haveria o Reino do Brasil, mas as províncias portuguesas na América.
Neste sentido, para esta corrente política a proposta paulista, centrada na autonomia do
governo situado no Rio de Janeiro, ao qual estariam submetidos os governos
provinciais, soava como um novo pacto colonial.
É fundamental assinalar os sentidos políticos distintos entre o federalismo
paulista/fluminense e o baiano/pernambucano. Para o primeiro grupo, tratava-se de
assegurar a autonomia para o Reino do Brasil, tomado como uma unidade, enquanto
para o segundo grupo se buscava obter a autonomia para as províncias que formavam o
Império Português na América.
A Independência do Brasil de Portugal reabriu o debate de maneira muito mais
dramática e radical. O grupo federalista sustentou, desde a abertura dos debates na
Constituinte, que a ruptura com o Império Português havia deixado as antigas
províncias livres para deliberarem sobre a natureza do pacto federativo.
6
Sempre que for utilizado o termo federal/federativo estará implícita a idéia de confederação.
7
Manoel José de Souza França, advogado eleito pelo Rio de Janeiro.
52
Para os federalistas, não existiria tal incompatibilidade; os deputados Carneiro
da Cunha 8 e Montezuma 9 chamavam a atenção para a compatibilidade entre a
monarquia e a federação/confederação:
“Já em outra sessão se decidiu (e a meu ver mui bem) que o império do
Brasil é um e indivisível; isto bastava para qualquer deputado se coibir
de avançar proposições contraditórias, mas a palavra federativamente
não vai de encontro ao artigo vencido sobre a indivisibilidade; [...]
federação não se opõe à monarquia constitucional, como há
exemplos, tanto na história antiga, como na moderna, e mesmo na
Europa, [...];” (Carneiro Cunha, Assembléia Constituinte, 17 de setembro
de 1823, pp. 152-153)
8
Joaquim Carneiro da Cunha, eleito pela Paraíba do Norte.
9
Francisco Gé Acaiaba de Montezuma eleito por São Paulo, posteriormente veio a ser Senador e
Visconde de Jequitinhonha.
10
No Dicionário Moraes de 1823, Monarquia é definida da seguinte maneira: “O Estado governado por
um só chefe ou soberano. O governo de um chefe, oposto a Democracia, Aristocracia e Oligarquia”.
Enquanto Democracia e República são definidas em termos idênticos. Em ambas, o poder Soberano está
nas mãos de muitos ou do Povo. Democracia: “Forma de governo na qual o Summo Império ou Direito
Majestático residem atualmente no Povo e são por ele exercidos.” República: “O que pertence e respeita
ao público. [...] Estado que é governado por todo o povo, ou por certas pessoas.”
53
unitária ou confederativa/federativa: na primeira as divisões territoriais, nas quais o
Estado está dividido, são unidades administrativas e, na segunda, possuem autonomia
para sua organização e gestão. A forma de governo monárquica pode ser compatível
com o modelo unitário ou com o federativo.
A adoção do modelo federativo implicaria conceder às províncias maior
autonomia. Portanto, não seria um traço exclusivo da forma de governo republicana o
arranjo federativo, a monarquia também poderia conviver com uma maior autonomia
provincial 11 .
Vista essa questão, podemos nos deter nas inovações que, para os federalistas,
seriam introduzidas no pacto constitucional brasileiro. Observemos o tema da soberania
das províncias.
“[...] ninguém ignora que o direito natural e público não podendo ter
como válido o pacto em pura perda de um pactuante; e reconhecendo
livre aos membros de uma sociedade, que se constitue, o direito de
aceitar e sancionar ou não, o código fundamental, que deve regular
sua situação civil e política, quando este envolve condições contrárias e
opostas no seu bene esse e princípios eternos de geral prosperidade;
dá a faculdade a cada uma das províncias do império para sancionar
ou deixar de sancionar a constituição que lhe for apresentada;”
(Montezuma, sessão de 17 de setembro de 1823, pág. 155)
11
É claro que existiam correntes política federativas que consideravam que somente a forma de governo
republicana poderia realizar plenamente os ideais federalistas. Sobre esse corrente veja-se Leite (2000).
12
Nestas duas províncias as lutas pela independência ainda estavam ocorrendo.
54
Na Constituinte de 1823, o conceito de federalismo, seja para seus críticos, seja
para seus defensores, envolvia a idéia de que as províncias poderiam sufragar ou não o
pacto firmado na Assembléia Constituinte; após a assembléia nacional ter deliberado
sobre as leis fundamentais, a soberania retornava às províncias. Neste sentido, o ponto
de partida do pacto constitucional são as províncias – nós as províncias, como
desejavam os adversários dos federalistas no contexto norte-americano 13 . Os defensores
do arranjo federal comungavam da importância da unidade nacional, mas não lhes era
possível fugir do conteúdo presente na idéia de federação/confederação de que a
soberania reside nas províncias.
Esta idéia acarretava uma conseqüência extremamente relevante para o debate
político, qual seja, com o rompimento das províncias americanas, a soberania retornou
às partes que as compunham. Vejamos as palavras de Frei Caneca:
O contexto político no qual Caneca escreveu estas palavras era distinto daquele
existente na Constituinte. D. Pedro I havia dissolvido a Constituinte e outorgado uma
Constituição. Após este ato arbitrário do Imperador, os federalistas pernambucanos
iniciam a preparação da revolta armada que ficou conhecida como A Confederação do
Equador 14 . Era, portanto, um contexto político mais radicalizado.
Devemos destacar que Caneca definia com clareza alguns aspectos da idéia de
federação. Vejamos estes aspectos: para Caneca, com a separação de Portugal, a
soberania retornou às partes que compunham o Império, quais sejam, as províncias.
Compreender o processo de independência desta maneira implicava o seguinte aspecto:
13
É esclarecedor para compreender esta maneira de entender o pacto social entre as partes que compõem
o Estado a seguinte objeção presente no debate da Convenção da Filadélfia: segundo um crítico do
argumento federalista, Patrick Henry, o erro começava no Preâmbulo à Constituição com a frase “We, the
people..”, pois a frase correta deveria começar com “We, the States..”. Ver Storing (1981:12).
14
Sobre esta, veja-se Mello (2004).
55
as províncias passavam a dispor do poder de mando em última instância (ultima ratio)
15
nos assuntos que lhes dizem respeito. No que diz respeito à elaboração de uma
Constituição, as províncias ficavam livres para ter a última palavra acerca do pacto
constitucional que lhes seria oferecido.
Podemos assinalar que em contextos políticos distintos, na Constituinte e após a
sua dissolução, emergia com clareza a idéia de que as províncias deveriam ser
consideradas como soberanas. Neste sentido, o pacto constitucional deveria
legitimamente voltar para as províncias.
Tendo em vista este conteúdo, gostaríamos de assinalar um aspecto fundamental:
para os federalistas, o pacto constitucional deveria retornar para as províncias porque
era um princípio do direito natural público, conforme as palavras de Montezuma. Neste
sentido, a província somente entraria no pacto se este estivesse de acordo com os seus
interesses e se este fosse elaborado de acordo com a maneira pela qual a província
entendesse o que seria a sua felicidade. Não existiria, legitimamente, nenhum poder
capaz de definir o conteúdo desta felicidade a não ser a província.
Observemos este aspecto-chave do conceito de federação a seguir.
56
qual a entende. Este é um limite legitimamente reconhecido pelas partes quando
realizam o pacto.
Observemos essa mesma idéia através de outro membro da corrente federalista:
57
como um dos instrumentos fundamentais para a interpretação das idéias dos liberais
moderados no Império (Mattos, 1994:109-123). Segundo este autor, a dimensão da casa
envolvia a esfera privada; o responsável pela casa era o encarregado de regular a
economia e a sua administração, cuidando da família, dos agregados e dos escravos. Os
liberais moderados projetavam para o Estado essa dimensão. Nesta projeção ganhava
proeminência o chefe da casa, que desempenhava o papel ativo na sua administração.
No argumento federalista, a província desempenharia o mesmo papel do
indivíduo com relação à sua casa; o indivíduo tem interesse em buscar a prosperidade e
a felicidade da sua casa. Neste sentido, a província deve controlar as atividades que
dizem respeito à realização dos seus interesses. Os federalistas transpõem uma idéia
proveniente da esfera privada para esfera pública: administrar o Estado da mesma
maneira pela qual o cidadão ativo vela pela sua casa.
Portanto, podemos delinear o seguinte conteúdo na idéia de federação: o Estado
é melhor administrado quando os interesses provinciais estão em primeiro plano. Para a
corrente federalista, as províncias deveriam dispor do controle sobre a segurança,
administração e a prosperidade material. A dimensão privada se projeta sobre a esfera
pública não na sua dimensão patrimonial, mas como a precedência do interesse
provincial como a mola fundamental na montagem do Estado.
Entretanto, para nós torna-se necessário elucidar a idéia de interesse provincial.
Observemos que Ferreira França mencionava que os representantes provinciais se
reuniriam para marcar o que seria de interesse geral (prol geral), cabendo a cada
província cuidar do seu interesse. Neste sentido, se para os federalistas o interesse
provincial deve ter precedência, podemos formular as seguintes perguntas: qual o
conteúdo do interesse geral, como ele é formado e como podemos definir o termo
interesse?
58
“Rejeitando pois toda espécie de federação que se refira a estados
independentes não quisera que excluíssem uma outra espécie de
federalismo, que podemos chamar de interno ou doméstico, o qual
dando uma certa independência às diferentes secções, conserve
todavia a unidade do todo. Cada cidadão é independente para tratar
dos seus interesses, salvas as relações que o unem com à sociedade. E
porque não havemos de conceder a mesma independência aos municípios
e províncias? Assim como cada um é independente para prover em seus
interesses, sem oposição ao interesse geral, muitos reunidos devem ter a
mesma independência circunscrita do mesmo modo e sempre
subordinada à inspeção geral do governo, a quem compete vigiar
sobre os interesses particulares, porque da sua soma resulta o
interesse geral, que lhe toca promover. Os negócios que pertencem a
todos serão dirigidos por todos, mas os que pertencem a parte serão
dirigidos por essa parte, e assim a província dirija os seus, do mesmo
modo o município, a povoação, cada família e cada indivíduo. É neste
sentido que eu admitiria a palavra federalmente [...]”. (Vergueiro, sessão
em 18 de setembro de 1823, p.130)
59
federação/confederação. Na nossa interpretação, Vergueiro, ao lidar com a idéia de
federação/confederação, transita bem próximo às inovações realizadas pelos federalistas
norte-americanos – o reforço do poder central – sem, contudo, demonstrar que
conhecesse tais inovações.
Logo após destacar que no federalismo as províncias e os municípios são livres
para tratar dos seus interesses, Vergueiro revela um componente central do seu
argumento: cada província deve cuidar do seu interesse e o interesse geral emerge da
soma destes interesses particulares. Em outras palavras, cada província, buscando
livremente aperfeiçoar sua situação, contribui para o interesse geral, que nada mais é do
que a soma de diversos interesses particulares.
E logo, em seguida, Vergueiro efetua um outro passo fundamental, estende esta
liberdade típica do seu federalismo doméstico aos municípios. O federalismo, no
entendimento do deputado paulista, não era restrito às províncias, mas também aos
municípios. A liberdade de cuidar dos seus interesses deve atingir a esfera municipal.
Na nossa interpretação, o conceito de federalismo no debate político brasileiro envolve
não apenas a relação entre poder central e províncias, mas envolve os municípios.
Retomemos o conceito de casa formulado por Ilmar Rohloff, que remete à
precedência da esfera privada. Na leitura que efetuamos deste conceito, formulamos a
seguinte aplicação ao tema tratado: para os federalistas, tratava-se de moldar a ação do
Estado a partir dos interesses particulares. Não é por acaso que o argumento federalista,
em 1823, recorre com freqüência ao exemplo do direito natural, colocando as províncias
no papel do indivíduo natural. Os indivíduos abrem mão da sua soberania ilimitada,
situação característica do estado de natureza, para ingressarem na sociedade política.
Entretanto, os indivíduos concordam em renunciar a esta soberania ilimitada tendo em
vista seus interesses individuais; o Estado não é mais pensado a partir da precedência do
todo, da coletividade, mas do indivíduo tomado isoladamente 16 . Na transposição desta
lógica para o pacto entre as províncias e o poder central, os federalista acentuam a
seguinte idéia: cada província irá considerar o pacto constitucional útil porque neste lhes
será dada toda a liberdade para buscarem seus interesses particulares/provinciais e a
16
Noberto Bobbio designa esse mecanismo do jusnaturalismo como a revolução copernicana na teoria
política. O tema do Estado usualmente abordado do ponto de vista dos governantes, com o jusnaturalismo
o fim do Estado passa a ser pensado a partir dos direitos do indivíduo considerado abstratamente. O
indivíduo adentra no pacto tendo em vista os seus interesse e direitos naturais. O seu cálculo em
incorporar outros indivíduos deriva da necessidade de que este pacto seja impositivo aos demais, pois
somente assim estarão plenamente assegurados seus interesses e direitos. Veja-se Bobbio (1987, esp. p.
64) ou Bobbio (1992:58ss). Esse mesmo problema pode ser considerado de uma perspectiva distinta por
Leo Strauss, Natural Right and History, esp. o cap. V, “Modern Natural Right”).
60
nação e o Estado nação correspondente irá emergir do livre jogo destes interesses. Neste
sentido, pode Ferreira França mencionar que cada casa (província) ao participar do todo
não abre mão de cuidar da sua segurança, administração e prosperidade.
Esta perspectiva se torna mais clara se observarmos que os federalistas
operavam a partir da idéia de interesse. Acreditamos que podemos reforçar esta
interpretação caso analisemos um trecho no qual o termo interesse é definido.
Em 14 de novembro de 1828, escrevendo no seu jornal Aurora Fluminense, o
deputado Evaristo da Veiga discorre sobre sua visão do papel da propriedade e do
interesse na sociedade.
61
interesse, o homem se assemelha ao selvagem. É este vício (o interesse, o egoísmo, o
amor próprio) que o leva ao aperfeiçoamento e ao desenvolvimento material. Em
última instância, somos levados a concluir que é o aparecimento do interesse que move
a sociedade rumo ao progresso. Em segundo lugar, essa divisão é remediada pela
comunicação de bens e serviços. Essa idéia nos remete à idéia de mercado como um
espaço de troca. Para Evaristo, este espaço de comunicação está dotado de uma lógica
que, ao final, institui uma paz entre os homens e sua luta pela posse exclusiva de um
bem, pois é da lógica desta comunicação funcionar segundo as necessidades de
reprodução da sociedade 17 .
Observemos que o sentido discutido acima reforça a nossa interpretação acerca
do interesse provincial em adentrar no pacto constitucional, segundo a idéia de
federação presente no debate de 1823.
Inicialmente, assinalamos a presença no argumento federalista de uma analogia
entre a província e o indivíduo natural. A província é uma parte soberana e nenhum
poder pode legitimamente lhe obrigar a fazer parte do pacto. A província entra para o
pacto a partir do momento em que este serve aos seus propósitos. O pacto constitucional
irá servir aos seus propósitos caso permita à província dispor de liberdade para a
manifestação dos seus interesses. Nos termos de Ferreira França, para cuidar da sua
casa. E velar pela casa implicava cuidar da segurança, justiça e prosperidade. Neste
sentido, cada província iria cuidar dos seus interesses da mesma maneira que o
indivíduo vela pelos seus. A idéia de interesse mobilizada pelos federalistas, em 1823,
era semelhante ao uso feito por Evaristo da Veiga. Cada província busca a sua
prosperidade movida pelo seu interesse. Cada província irá cuidar de aperfeiçoar sua
17
Podemos perguntar: de onde Evaristo retirou tais idéias? Muito provavelmente de Adam Smith, se
não diretamente, através de algumas das passagens difundidas por um contemporâneo seu, José da Silva
Lisboa. O ponto que, a meu ver, deve ser destacado na passagem anterior e que justifica que se utilize
como referência o pensamento de Adam Smith, reside na relação entre um aparente vício e o
desenvolvimento da sociedade. Albert Hirschman destaca em seu trabalho o fato de que uma das
principais contribuições de Adam Smith, no campo das idéias, foi o de tornar paixões que eram
anteriormente consideradas como vício em qualidades que levam à melhora das condições sociais. E o
fez, em primeiro lugar, substituindo a expressão vícios privados, usados por Bernard Mandeville em The
Fable of the Bees, por expressões quase neutras como vantagem ou interesse. Em segundo, através de sua
obra mais importante A Riqueza das Nações, Adam Smith apresenta os homens agindo exclusivamente
no “desejo de melhorar suas condições”; é o interesse, ou seja, uma motivação econômica que alimenta a
sociedade. Nas palavras de Hirschman: “[...] os impulsos não econômicos, por mais poderosos que
sejam, se alimentem dos impulsos econômicos e só façam reforçá-los, estando eles assim privados de sua
existência independente anterior” (Hirschman, 1979:103). Não se trata de imputar a Evaristo uma teoria
complexa sobre os sentimentos morais, como está presente em Adam Smitih, mas de apontar a presença
da idéia de que são os interesses egoístas do indivíduo pelo seu bem-estar material que move a sociedade
em direção ao progresso.
62
casa. Este esforço é movido pelo seu egoísmo, usando em seu proveito os benefícios
gerados por esse empenho. O interesse geral nasce de um conflito entre esses interesses.
Nesta perspectiva, o interesse geral é apenas uma agregação de interesses particulares,
dos quais se tira uma média, sem que esses em nenhum momento alterem o seu caráter
egoísta.
Estabelecido que os interesses das províncias devam estar auto-referidos e que a
unidade nacional/o Estado-nação nasce da soma destes interesses, logicamente os
representantes destes, ao marcarem o grau de ação do poder central, não devem permitir
que este disponha de forças para alterar a sua dinâmica natural. Neste sentido, o grau de
força do poder central deve ser necessariamente baixo. Nos termos da idéia de
confederação/federação, o poder central deve ser fraco ou nulo.
Tendo esta conclusão em mente, podemos retornar a uma passagem de Ferreira
França. Segundo este, os procuradores das províncias devem se reunir para estipular o
interesse geral (“as regras da prol geral”). Devemos enfatizar que a natureza do vínculo
que une as diversas partes da União é estipulada pelos representantes destas partes,
tendo em vista seus interesses provinciais. Em nenhum momento Ferreira França
mencionava que este interesse provincial tivesse como referência algum valor externo à
dinâmica provincial.
Este é um aspecto central da idéia de federalismo na Constituinte de 1823, e que
irá persistir ao longo do debate político imperial, qual seja, o interesse geral é produzido
pelos interesses provinciais auto-referidos. Neste sentido, para os federalistas, introduzir
valores referentes para além da província significa a porta de entrada do absolutismo e
do arbítrio.
Com esta perspectiva em mente podemos compreender a importância, para o
argumento federalista, do fato de que a província escolha seus funcionários e do papel
que desempenha a Assembléia Provincial. Vejamos, inicialmente, o tema da Assembléia
Provincial.
63
meios através do qual esses interesses provinciais iriam se manifestar seria a
Assembléia Provincial, o outro seria o funcionário escolhido na localidade. Vejamos
como Carneiro Cunha apresentava o tema da Assembléia Provincial.
64
para os federalistas, da maior proximidade da Assembléia Provincial da realidade local.
Observemos a mesma idéia em Frei Caneca, expoente do federalismo pernambucano.
Em junho de 1824, frei Caneca foi convidado a apresentar seu voto acerca da
Constituição outorgada por D. Pedro I. No trecho abaixo, frei Caneca emitia sua opinião
sobre os Conselhos provinciais previstos pela Constituição outorgada 18 .
“Os conselhos provinciais são uns meros fantasmas para iludir os povos;
porque, devendo levar suas decisões à Assembléia Geral e ao executivo
conjuntamente, isto bem nenhum bem pode produzir às províncias; pois
que o arranjo, atribuições e manejo da Assembléia Geral faz tudo em
último resultado depender da vontade e arbítrio do imperador, que
artreiramente evoca tudo a si, e de tudo dispõe a seu contendo e pode
oprimir a nação do modo mais prejudicial, debaixo das formas da lei.
Depois, tira-se aos conselhos o poder de projetar sobre a execução
das leis, atribuição esta que parece uma necessidade ao conselho,
pois que este, mais do que nenhum outro, deve de estar ao fato das
circunstâncias do tempo, lugar etc., da sua província, conhecimentos
indispensáveis para a cômoda e frutuosa aplicação das leis”. (Caneca,
2001:563, Voto sobre o juramento do projeto de constituição oferecido
por D. Pedro I, 6 de junho de 1824)
18
Na Constituição de 1824, a província era governada por um presidente escolhido pelo governo central e
por um conselho eleito. Este conselho era composto por 21 membros nas províncias mais populosas e 13
e nas menos. As resoluções eram enviadas para a Assembléia Geral para aprovação ou não. Dessa decisão
não era permitido nenhum recurso. Os Conselhos não tinham nenhuma autoridade em matérias tributárias.
Cabia à Assembléia Geral aprovar o orçamento e eventualmente criar tributos. Ver Constituição de 1824,
cap. V.
65
Assembléia Provincial possui um conhecimento maior da realidade local e está mais
próxima das necessidades locais. A maneira pela qual interpretamos esta idéia vem a ser
a seguinte: para os federalistas, o Estado deve ser organizado a partir das províncias, de
maneira a que seus interesses conformem a ação estatal. Somente tendo este valor em
vista podemos compreender a importância das Assembléias Provinciais na idéia de
federação presente na Constituinte de 1823.
De acordo com o que mencionamos no início deste item, um dos veículos
através dos quais se manifestava o interesse provincial era a Assembléia Provincial,
enquanto o outro seria o funcionário escolhido localmente. Vejamos, em seguida, este
tema.
66
funcionários públicos encarregados de velar pela busca da prosperidade de cada
província seriam escolhidos na própria localidade.
Inicialmente, vamos assinalar que o discurso de Montezuma buscava mostrar
por que as províncias deveriam aceitar pacificamente o pacto constitucional. Na visão
de Montezuma, a maneira de obter o assentimento das províncias ao pacto – lembremos
que o deputado é um federalista, para quem a Constituição retorna para as partes que
compõem o Estado – seria o de efetuar um arranjo que lhes fosse favorável. Se o arranjo
constitucional fosse favorável às províncias, a aceitação da forma de governo
monárquica seria pacífica (“[...] com ele mostramos à nação que serão respeitados os
inalienáveis direitos [...]) e é importante perceber que a introdução do elemento
federalista na Constituição enfraqueceria as correntes republicanas nas províncias. Na
nossa interpretação, a corrente federalista no Parlamento colocava a forma de governo
como um elemento secundário em relação ao arranjo político federativo.
Destaquemos que Montezuma mencionava uma liberdade bem entendida. Esse
tipo de liberdade consistiria no vínculo de cada província para com a monarquia; para a
manutenção desta forma de governo as províncias estariam unidas. No conceito de
confederação presente nos debates parlamentares existe a idéia de que neste modelo
cada parte do Estado contribui para a manutenção da União; esta é dependente destas
contribuições para o seu funcionamento. Enfatizemos que, para esta corrente, o poder
central não possui autonomia frente às partes que o compõem; a sua ação, em razão da
sua carência de recursos, fica na dependência da aprovação das províncias. Na nossa
interpretação, essa dependência da União para com as províncias assegura que as ações
do poder central serão aquelas desejadas pelas elites políticas provinciais; não haverá a
possibilidade de que o poder central fuja ao seu controle, introduzindo outros valores
que não sejam aqueles pretendidos provincialmente.
Continuemos seguindo a lógica apresentada por Montezuma: as províncias,
dispondo de uma bem entendida liberdade, restringindo a ação do poder central aos seus
objetivos, poderão buscar a sua prosperidade. Observemos que no Dicionário Moraes
de 1823, prosperidade possui um sentido de bens materiais e espirituais. Sem dúvida
que os dois sentidos estão presentes no argumento de Montezuma. Contudo, em razão
da referência, logo em seguida, a planos financeiros, o termo prosperidade ganha uma
ênfase maior no desenvolvimento material. Além desta referência, o argumento de
Montezuma ainda reforçava a dimensão material em outro momento: o poder central
67
não poderia impor planos financeiros que retardassem o desenvolvimento material da
província.
Para a nossa hipótese acerca do argumento federalista é fundamental enfatizar
este último ponto. Lembremos que a idéia de confederação/federação na Constituinte
de 1823 estabelecia que cada província entrava no pacto sem abrir mão da sua liberdade
de buscar a sua prosperidade.
É importante que, para a compreensão e análise deste aspecto, observemos a
seguinte idéia: a Assembléia Provincial era um poder eleito localmente e que estava
mais próximo da realidade local e conhecia melhor as necessidades e os interesses desta
região. Conforme vimos anteriormente, são estes valores que conferem, para os
federalistas, a precedência da Assembléia Provincial.
Na nossa interpretação da lógica política presente no argumento
federal/confederal, a única maneira da busca de a prosperidade resultar em progresso
material consiste em que esta passasse pelo crivo da Assembléia Provincial e de
funcionários escolhidos localmente.
O mesmo valor político que na corrente federalista orienta a precedência da
assembléia provincial, podemos encontrar no tema do empregado público. Para os
federalistas, o funcionário público deveria ser escolhido dos cidadãos residentes na
província. Tal procedimento encontrava justificativa nos móveis do comportamento do
funcionário oriundo da província: vínculos para com a localidade. Esses funcionários
estariam diretamente ligados em contribuir para a prosperidade local. Podemos assinalar
no argumento federalista acerca do funcionário a presença da idéia de interesse, qual
seja, velar pelo que é seu. O funcionário local seria mais eficiente do que um
funcionário sem vínculos nomeado pelo poder central. Para os federalistas o bom
desempenho do funcionário não provém do seu treinamento, nem do seu vínculo para o
poder central, mas a sua ligação com a localidade. Na medida em que através deste
funcionário estão presentes os objetivos da província, este é superior a um funcionário
mais treinado e vinculado a interesses que não estão referidos a dinâmica provincial.
Portanto, tendo delineado aqueles que acreditamos serem os aspectos principais
do argumento federalista na constituinte, podemos deslocar nossa atenção para a
corrente adversária, qual seja, os centralizadores.
68
2.9 - Centralizadores: a trajetória histórica do Império brasileiro
69
na figura na permanência do príncipe regente na colônia portuguesa e o seu papel no
processo de Independência. Esses fatos teriam fornecido às diversas partes que
compunham o Império Português na América um centro comum.
Neste aspecto, Vergueiro retomava o ponto de vista paulista na polêmica
ocorrida durante a Constituinte do Porto contra alguns representantes dos estados do
norte e nordeste do país. As colônias inglesas, acostumadas a se relacionar diretamente
com a metrópole, já estavam prontas para, ao longo do processo de independência,
verem a si mesmas como estados independentes.
A proposta federal não aparece aos seus olhos como incompatível com a forma
monárquica. O que causa receio em Vergueiro é a divisão do Império em estados
independentes, enfraquecendo o centro comum. É fundamental para a nossa
interpretação da polêmica entre as idéias de federação e centralização assinalar o
seguinte: no argumento de Vergueiro, a forma de governo monárquica é o meio pelo
qual o poder central (centro comum) exerce sua função de manter as províncias unidas.
Essa tarefa do Imperador de manter as províncias unidas encontra respaldo nos fatos
históricos e, ao mesmo tempo, invalida a opção confederativa.
Conforme assinalamos, o elemento federativo envolvia considerar as províncias
como um poder soberano. Nas palavras de Vergueiro, com a adoção do princípio
federativo o Império seria “[...] dividido em estados independentes”. Observemos como
este receio se manifestava no argumento centralizador.
70
lhes aprouver, façam como quiserem a sua federação”. (Carvalho
Melo, 17 de setembro de 1823, p. 152)
Não menos consta, que neste império (Brasil) alguns mal intencionados
pretenderão inculcar nas províncias a mania de tais confederações.
Nestes tempos de mudança de governo, cada um dos ambiciosos
afetando de igualdade, não quer ser sicut unus ex illis 20 , mas só
aspira a ser o principal de sua província e por isso dá falsas
esperanças de liberdade e fortuna ao vulgo crédulo [...]”. (Silva Lisboa,
sessão de 17 de Setembro de 1823 pág. 157)
19
Ver sessão do dia 17 de setembro de 1823, p. 158.
20
“Ainda que um deles”.
71
diminuindo os meios de concentrar nas mãos do monarca
constitucional os meios de defesa do Império e da prosperidade
geral, conforme as maiores exigências de algumas das províncias ?
Não poderá um natural do Rio servir ao Império na Bahia, Pernambuco
ou vice-versa ? É de esperar que o governo paternal dê a este respeito
atenção às localidades: mas a política não menos dicta que não deixem
crescer os prejuízos e os aferros locais contra a liberdade generosa,
com que se provém os empregos considerando-se mais os méritos e
interesses do estado do que os mesquinhos projetos de espíritos
estreitos que tendem a desunir e desconciliar os cidadãos do império,
criando antipatia e rivalidades provinciais”. (Silva Lisboa, sessão de 17
de setembro de 1823, p. 158)
72
interesses provinciais dispõem neste modelo. Para os centralizadores, a construção do
Estado-nação exige que estes interesses sejam superados em favor de uma política mais
ampla.
Apontemos o centro nervoso desta idéia: para os centralizadores o que irá
emergir da livre manifestação dos interesses provinciais vem a ser as exigências das
províncias mais poderosas (“[...] as maiores exigências de algumas províncias [...]”), e
não uma saudável rivalidade. A política mais ampla preconizada pelos centralizadores
requer uma intervenção deliberada e intencional com vistas à construção do interesse
geral que não siga a dinâmica dos interesses provinciais, mas, sim, os interesses do
Estado-nação. Nesta perspectiva, a construção do Estado-nação não deve ser entregue a
uma competição entre os interesses provinciais.
Neste sentido podemos entender a polêmica acerca dos funcionários. Para os
centralizadores, o preenchimento dos cargos deve ser feito a partir dos méritos e dos
interesses do estado. O uso da palavra mérito 21 como um requisito para a ocupação de
um cargo público remete à idéia de que quem o ocupa o faz em razão de um fato
anterior, que naquele contexto histórico poderia ser tanto um diploma quanto um
conhecimento e indicações que tornassem o pretendente digno perante aos olhos do
Estado.
O outro elemento que justificava o preenchimento dos cargos era o interesse do
estado. No Dicionário Moraes de 1823, no termo Estado uma das definições vem a ser:
Razão de Estado: motivos políticos22 . Podemos interpretar os interesses de Estado como
sendo os motivos que dizem respeito exclusivamente ao Estado. Para os centralizadores,
esses motivos dizem respeito ao Estado entendido como portador de interesses que não
são necessariamente aqueles presentes na dinâmica provincial, mas que envolvem a
nação, o conjunto das províncias que formam o Brasil.
Observemos que, para os centralizadores, esses interesses de Estado requerem
um tipo de funcionário que ponha acima dos vínculos para com a localidade, o seu
vínculo para com o Estado nação. Neste sentido, a idéia de centralização requer um
funcionário que possa servir em diversos pontos do país ([...] um natural do Rio servir
ao Império na Bahia [...]); através deste funcionário manifesta-se o Estado-nação e não
21
Mérito, segundo o Dicionário Moraes de 1823, significa Merecimento de bens ou de males, segundo as
obras.
22
Hipólito da Costa expressava a idéia de razão de estado com o mesmo significado mencionado acima:
“A salvação do Estado deve ser sempre a lei suprema, a que devem submeter-se todas as outras
considerações”. Maio de 1820, p. 268.
73
os interesses provinciais referidos unicamente aos seus valores locais. A capacidade de
deslocar um funcionário através do país indica que este chega às localidades não como o
portador de valores presentes naquele espaço social, mas como meio através do qual são
introduzidos valores distintos daqueles.
Torna-se latente que, para os centralizadores, dos interesses locais não emerge o
Estado-nação, seja porque estes interesses busquem apenas monopolizar os cargos de
maneira despótica, seja porque a necessidade da construção do Estado-nação envolva
uma dimensão que lhes escapa. Para esta corrente política, o interesse provincial
referido exclusivamente à dinâmica local não era capaz de abarcar a necessidade de
construir um Estado-nação, que deve envolver regiões com interesses distintos.
74
defendiam que os empregos públicos deveriam ser preenchidos pelos cidadãos ativos da
localidade, pois os interesses da província estariam mais bem representados.
Para os centralizadores, o arranjo federalista, ao enfraquecer o poder central,
permitia que emergissem chefes políticos clânicos 23 que se utilizavam dos cargos
públicos apenas para serem déspotas locais. Como se tratava de uma luta pela
sobrevivência física e política, a disputa do poder tornava-se uma luta sem limites
legais. Esse tipo de luta forçava os chefes políticos clânicos a mobilizar e armar as
massas de excluídos (“dá falsas esperanças de liberdade e fortuna ao vulgo”) 24 .
Como dirá José Bonifácio, a experiência política desenvolvida na América
espanhola era anárquica e violenta 25 . Para Bonifácio, introduzir o modelo federalista
no arranjo constitucional brasileiro permitiria a emergência de grupos políticos locais,
que dispondo de autonomia provincial terminariam por instaurar uma ordem política
instável e violenta. No mesmo sentido, em 1822, José Teixeira da Fonseca Vasconcelos
discursava em defesa da permanência do príncipe regente no Brasil, alegando que esta
permanência afastaria “[...] o quadro de horrores da anarquia e dos desastrosos males
que nos esperam, a exemplo da América espanhola” (apud Torres, 1961:92).
Para os centralizadores, o modelo federalista era anárquico porque ao
enfraquecer o poder central, retirava deste qualquer possibilidade de conter chefes
políticos clânicos. E violento porque os líderes políticos mobilizavam as massas de
excluídos com a intenção de controlarem exclusivamente os cargos púbicos.
O exemplo da América hispânica ganhava mais força quando observamos o
final do trecho, já mencionado anteriormente. Nele, Silva Lisboa enunciava o resultado
final da introdução do federalismo no Brasil: criando antipatia e rivalidades
provinciais. Para os centralizadores, o Estado-nação não emerge da soma aleatória dos
interesses provinciais. E daí a importância da experiência vivida no mundo hispano-
americano. O exemplo da América hispânica revelava que da dinâmica livre entre as
províncias advém a rivalidade armada. Neste sentido, podemos interpretar o argumento
de Silva Lisboa, acrescentando uma dimensão: os conflitos armados desencadeados, na
América espanhola, após a guerra de Independência, iriam se espalhar pelo restante do
23
Utilizamos a expressão de Oliveira Vianna.
24
José Murilo de Carvalho chama a atenção para que o processo político na América espanhola envolvia
a figura de caudilhos recrutados nas camadas populares. Ver Carvalho (1981:37).
25
Ver Bonifácio (1988:203): “O império constitucional era o mais análogo aos seus costumes; e com a
liberdade que este firmava e garantia todos ficavam contentes, sem que fosse preciso recorrer com
amargos sacrifícios ao ideal republicano, que a experiência de seus vizinhos lhes apresentava anárquico e
violento.”
75
continente sul-americano. Nesta lógica iria se abrir um longo período de guerras sem
que houvesse uma força de dentro do continente sul-americano capaz de impor a paz.
2.13 - Conclusão
76
desde que fosse assegurada às províncias autonomia para estabelecer seus fins e os
meios necessários para a realização destes.
O pacto constitucional deveria ser elaborado de modo a atrair as províncias para
tomar parte deste novo Estado. Para os federalistas, após o rompimento com Portugal,
as províncias se encontravam na mesma situação original do indivíduo na teoria do
direito natural. De acordo com Souza França: cada indivíduo, ao entrar no pacto social
não abre mão da tarefa de cuidar da sua casa; o poder soberano cuidaria para esta não
sofresse violências, mas a administração desta continuaria a cargo do indivíduo.
E por que somente ao indivíduo/província caberia a administração da sua casa ?
Estabeleçamos como ponto de partida a afirmação de Vergueiro: cada um é
independente para prover em seus interesses. No argumento de Vergueiro, quando é
mencionado cada um, a referência é a cada província. Cada província é a mais indicada
a administrar os seus negócios porque possui o interesse na sua prosperidade. Como o
indivíduo que, segundo Ferreira França, após entrar no pacto social não irá entregar a
administração da casa – a expressão é dele – a estranhos. Ainda segundo Souza França,
a prosperidade da casa/província deverá ficar sob a indagação mais perspicaz e
interessada dos seus filhos.
Neste sentido, o conceito de interesse torna-se fundamental para que possamos
entender os motivos pelos quais os federalistas atribuem à província um papel de
destaque.
Segundo Evaristo da Veiga, interesse diz respeito à posse exclusiva de uma
propriedade. Esse sentimento empurra os indivíduos em direção ao progresso. Para os
federalistas, somente a província possui o interesse necessário para promover a justiça e
o desenvolvimento no seu território, porque é este sentimento de posse exclusiva que a
move. Neste sentido, defendem os federalistas que os funcionários públicos somente
sejam escolhidos na esfera provincial, pois estarão movidos pelos interesses provinciais
em justiça e desenvolvimento. Da mesma maneira, a importância que as Assembléias
Provinciais adaptem as leis gerais aos interesses locais.
Entretanto, na nossa interpretação, a idéia de interesse também tem um papel
fundamental em outro aspecto do conceito de federalismo. Os seus defensores
percebem que a idéia de uma competição de interesses auto-referidos possa conter um
perigo –que aliás seus adversários irão mobilizar no debate – qual seja, o de transbordar
para um conflito armado que ponha em risco a unidade nacional.
77
Observemos as palavras de Evaristo da Veiga discutindo o interesse na esfera
econômica. Segundo este, se o interesse é, por um lado, o motivo do progresso, por
outro é a principal causa da discórdia entre os homens. Entretanto, escreve Evaristo,
apenas aparentemente o interesse é um mal, porque esta discórdia é sanada pela
comunicação de bens e serviços. O resultado final é que a sociedade funciona
pacificamente e progride. Segundo Evaristo, o interesse da sociedade, o qual ele
identifica com a sua reprodução, é o resultado da luta destes interesses. É importante
assinalar que Evaristo em nenhum momento menciona que esta ação, que estabelece a
paz, resulta de uma intervenção externa aos interesses particulares e sua dinâmica.
A mesma lógica de funcionamento está presente em Vergueiro: cada província
cuida dos seus interesses e da soma dos seus interesses nasce o interesse geral (“da sua
soma [dos interesses provinciais] resulta o interesse geral [...]”). Se nós identificarmos
como do interesse geral a manutenção da paz interna, podemos formular a seguinte
afirmação: a paz interna resulta da ação dos interesses provinciais, voltados para a
realização dos seus objetivos. Nesta acepção, estes interesses nunca serão bélicos
porque é do seu interesse que vigore a paz. No mesmo sentido, a unidade nacional
nasce da compreensão que estes interesses provinciais possuem da sua utilidade para os
seus fins.
Observemos que no conceito de confederação a idéia de interesses provinciais
está intrinsecamente ligada à idéia de governo central e ao papel que este deve
desempenhar. Anotemos que na definição de confederação, o papel do governo
restringe-se a proteger os seus membros contra agressões externas e manter a paz
interna. Nos debates analisados, a corrente federalista enfatizava essa dimensão: as
províncias se submetiam ao Império cabendo a este a manutenção da defesa externa e
interna. O conceito de federação requer - em razão da maneira pela qual é entendido o
interesse provincial - que o papel do governo central seja fraco, ou melhor, dizendo que
a sua ação esteja submetida à dinâmica das províncias. Em nenhum momento o
governo central pode agir sem que esteja autorizado pelas províncias. Por estes
motivos, o tema de forma de governo pode ser visto como secundário pelos federalistas,
pois o fundamental é que esteja marcada a liberdade provincial.
O argumento centralizador reconhece a compatibilidade entre monarquia e
confederação. Entretanto, considerava que a trajetória histórica brasileira configurava
um primeiro obstáculo à adoção da confederação. O processo de Independência
brasileiro fora marcado pela presença de um centro comum às várias partes do Império
78
Português na América. O rompimento com a metrópole européia não implicava o
deslocamento da soberania para os vários centros provinciais, mas para um único
centro. A forma monárquica era o veículo através do qual a política de centralização
ligava as várias regiões do antigo Império Português.
Acreditamos que o sentido mencionado acima – ligar as diversas partes do
antigo Império Português – possa ser esclarecido se partirmos da definição de
centralização. O Dicionário Moraes, na sua edição de 1823, define centralização como
repor, restituir ao centro físico ou moral as partes ativas ponderantes, afastadas e
alongadas. Observemos que centralização é definida a partir de um verbo repor,
restituir e requer que para que tal processo (centralização) se desencadeie uma ação
seja executada. A centralização é o resultado de um processo intencionalmente
deflagrado com este fim; não é o resultado de ações aleatórias autocentradas que
convergem casualmente para um mesmo fim.
Silva Lisboa está movido por esta compreensão do processo de formação do
Estado-nação. Observemos que o político baiano reage com indignação quando percebe
que os federalistas desejam retirar das mãos do poder central os meios para a
consecução do interesse geral 26 . Para que possamos compreender o argumento
centralizador e sua polêmica com os federalistas é importante que interpretamos este
ponto: para os centralizadores a construção do Estado-nação exige uma ação
intencional. A política de centralização requer que os interesses provinciais sejam
superados em favor de um objetivo que se impõe de fora. Apenas se tivermos em mente
esta lógica podemos compreender a polêmica acerca da nomeação dos funcionários
públicos. Para os centralizadores, o funcionário deveria estar ligado ao poder central.
Caberia a este poder deslocar o funcionário pelo território nacional segundo os
interesses do Estado-nação que nem sempre serão os mesmos da província. Tendo em
vista esta lógica podemos compreender plenamente o uso do termo aferros locais
utilizados por Silva Lisboa para designar os interesses provinciais. No Dicionário
Moraes, na sua edição de 1823, aferro significava apego tenaz à opinião. Para
centralizadores, os interesses provinciais estão voltados para sua dinâmica interna. E
estariam tão fortemente apegados a esta que não se deslocam para o centro de maneira a
vislumbrar realidades que não estão presentes na sua localidade. Para os
26
Trecho, já citado anteriormente: “Por ventura pretende deste modo monopolizar cada província os
empregos respectivos e dispor de seus reditos a bom prazer, diminuindo os meios de concentrar nas
mãos do monarca constitucional os meios de defesa e da prosperidade nacional geral, conforme as
exigências de algumas províncias ?”
79
centralizadores, construir um Estado nação que abarque realidades distintas requer
observar e considerar outras dimensões para além do interesse provincial.
Somente se tivermos em consideração esta perspectiva, poderemos compreender
a visão dos centralizadores de que com o federalismo iria emergir rivalidades
provinciais 27 . Para os centralizadores, o resultado da liberdade concedida aos
interesses provinciais no sentido de buscar os seus fins seria ou uma ameaça a unidade
nacional ou o predomínio das províncias mais poderosas.
Na nossa interpretação, no argumento centralizador existiria ainda uma outra
conseqüência negativa do federalismo: o caudilhismo, cujo exemplo estaria na América
espanhola. Neste caso, o interesse provincial estaria referido unicamente ao controle
político dos cargos públicos com o fito de oprimir adversários e tornar-se um déspota
da localidade.
As pretensões federalistas foram derrotadas na Constituinte de 1823. Mas a
dissolução da Constituinte e a imposição da Constituição outorgada com fortes traços
unitários não conseguiu abafar a idéia de federação. Este continuará atuando no debate
político brasileiro, principalmente quando da discussão do Código do Processo (1832) e
do Ato Adicional (1834). Nestes dois momentos os sentidos que esta idéia incorporou
nos levam a dedicar-lhes uma análise mais acurada. Tarefa que iremos empreender nos
dois próximos capítulos.
27
O trecho, já citado, é o seguinte: “[...] projetos de espíritos estreitos que tendem a desunir e desconciliar
os cidadãos do Império criando antipatias e rivalidades provinciais”.
80
Capítulo 3
1
No título do capítulo utilizo-me da idéia de Tocqueville contida no seguinte trecho: “Voyez vec que art,
dans la commune américaine, on a eu soin, si je puis m’exprimer ainsi, d’éparpiler la puissance, afin
d’interesser plus de moude à la chose publique” (Tocqueville, Liv. I, Ch. 4, “De l’espirit communal dans
la nouvelle-anglaterre; o itálico é do autor). A referência a Tocqueville para nós é fundamental, pois foi
este autor quem melhor compreendeu que a idéia de federalismo nos Estados Unidos não dizia respeito
somente a uma divisão de atribuições entre União e estados, mas estava ligado à disseminação do poder
pela sociedade, pondo-o ao alcance do homem comum. De maneira mais clara, é a partir dessa
disseminação do poder que o interesse pode se tornar bem compreendido. O Código do Processo
representa na nossa interpretação a tentativa de combinar interesse e liberdade nos moldes norte-
americanos.
2
Não iremos no deter na análise dos municípios e da suas atribuições; nossa atenção estará voltada para o
tema da Justiça.
81
pelos liberais moderados nos anos 30 somente pode ser plenamente compreendido caso
tenhamos em mente esta associação entre a idéia de federalismo e o Código do
Processo.
O direito penal ocupa-se em definir os atos aos quais a lei impõe a pena
criminal. O direito processual é distinto deste, pois regulamenta a maneira pela qual o
crime é investigado; como a verdade criminal é demonstrada e como a decisão judicial
deverá resolver o conflito entre a punição e a liberdade. É fundamental que a prisão de
qualquer indivíduo encontre amparo nas regras do direito processual penal. O direito
processual determina por que, quando e de que maneira um indivíduo pode ser preso
(Bajer, 2002).
A palavra processo, neste ramo do Direito, indica o conjunto dos atos praticados
em direção à decisão. Neste sentido, forma-se o caderno (ou os autos do processo) com
os documentos gerados durante a pesquisa dos fatos criminais. É a partir deste caderno
que o juiz emite a sentença de acordo a lei (Almeida Junior, 1920; Bajer 2000).
82
processo não fosse ferida a igualdade entre as partes (o ofendido e o acusado), desta
maneira marcando diversas formalidades que deveriam ser respeitadas para que a
sentença fosse proferida.
Segundo Lenine Nequete, o Código do Processo Criminal substitui a
organização judiciária que herdarmos de Portugal “... por outra completamente nova, na
qual predominava o princípio do julgamento do acusado pelos seus pares reunidos em
conselho e formado o júri” (Nequete, 1973:51).
83
1920:7), e formava a culpa 4 ; então esta era entregue ao juiz de direito e o júri de
acusação deliberassem se existia a necessidade de se instaurar um processo 5 . Em caso
positivo iniciava-se o julgamento a partir das provas recolhidas anteriormente.
Para que o juiz de direito declare a responsabilidade criminal e imponha a
sanção é necessário que tenha certeza de que um ilícito penal foi praticado e de que se
possa identificar o seu autor (cf. Almeida Junior, 1920). No Estado moderno, a única
maneira pela qual um juiz pode ser convencido a emitir um julgamento é por meio das
provas, que deverão ser obtidas mediante certas formalidades marcadas
constitucionalmente.
Além deste importante papel no processo criminal, o juiz de paz julgava
pequenos delitos e concedia o passaporte para o deslocamento interno 6 .
No Código do Processo, além do juiz de paz, havia três importantes figuras que
eram escolhidas dentre os cidadãos da localidade: o promotor, o juiz municipal e o júri
popular.
Segundo este Código, o promotor ficava encarregado da denúncia de crimes
públicos e policiais perante o júri. O promotor era escolhido pelo presidente de
província a partir de uma lista tríplice elaborada pela Câmara Municipal dentre os
eleitores locais. Qualquer eleitor com bom senso e probidade reconhecidos poderiam
compor a lista; a lei, além disto, mandava que se desse preferência aos que fossem
instruídos nas leis 7 .
O juiz municipal ficava encarregado de substituir eventualmente o juiz de direito
e exercer cumulativamente a jurisdição criminal, sendo escolhido da mesma forma e
com os mesmos pré-requisitos que o promotor 8 .
A lei do júri popular foi promulgada em setembro de 1830 em meio ao processo
de dissídio entre o Imperador, D. Pedro I, e a elite política brasileira, nesse momento
ainda toda unida contra as ações deste. No seu artigo 15º, a lei determinava que o júri
fosse escolhido pelos eleitores da municipalidade e pelos vereadores. Com a
promulgação do Código do Processo Criminal, em 1832, esta escolha passava a ser feita
pelo juiz de paz, pelo capelão e pelo presidente da Câmara Municipal 9 . Podiam ser
4
Ver Código do Processo, art. 12, parágrafo 4.
5
Ver Código do Processo, art. 228.
6
Ver Código do Processo art. 12, parágrafos 1, 2,3,4,5,6 e 7.
7
Ver Código do Processo art. 36.
8
Ver Código do Processo art. 33.
9
Ver Lei da Eleição dos Jurados e promotores do Júri artigo 15 e Código do Processo Criminal de 1832,
artigo 24.
84
jurados todos aqueles que fossem eleitores de segundo grau e para aferir se havia algo
contra eles, seus nomes eram publicados. Findas as contestações, se porventura
houvesse, as urnas com os nomes eram lacradas para que fossem sorteados na época dos
julgamentos.
A lei atentava para a discrepância entre as capitais e demais cidades: fixava o
número de doze jurados para as capitais e dez para as outras. Como observa Lenine
Nequete (1973:44), o modelo de júri adotado era diretamente inspirado no modelo
inglês. Na lei brasileira o júri se fazia presente da seguinte maneira: o juiz de direito,
após ouvir o promotor, o denunciante, o réu, as testemunhas e provas, entregava o
processo ao presidente do júri. Os jurados reunidos numa sala deliberavam por maioria
dos votos. Caso a resolução fosse negativa, o juiz lavrava a sentença, julgando sem
nenhum efeito a denúncia; se afirmativa, ordenava que se fizesse a acusação.
Convocava-se o júri de julgamento e após a leitura das peças processuais eram ouvidas
as testemunhas e abertos os debates. Terminados estes, o juiz fazia um resumo do
processo e formulava as questões para o júri. Este, após reunião em sessão secreta, por
maioria dos votos, decidiam 10 .
O Código do Processo estabelecia duas figuras nomeadas pelo poder central: o
juiz de direito e o chefe de polícia. O primeiro seria nomeado entre os bacharéis
formados que tivessem um ano de prática. Caberia ao juiz de direito presidir o processo,
instruindo o júri fornecendo-lhe explicações sobre o processo e suas obrigações 11 . Aos
jurados caberia a pronúncia sobre o fato enquanto que ao juiz a aplicação da lei 12 .
Os juizes de direito poderiam ser mudados de um lugar para o outro conforme a
“utilidade pública assim o determinasse” 13 . O Imperador poderia suspendê-los por
queixas contra eles, após audiência como os juízes e ouvido o Conselho de Estado. A
figura do chefe de polícia existia somente nas capitais e cidades mais populosas, sendo
escolhido pelo poder central dentre os juízes de direito.
No item seguinte faremos uma descrição mais detalhada da figura mais
importante do Código do Processo: o juiz de paz.
10
Ver Código do Processo, Título IV Do Processo Ordinário Cap. I Seção primeira, Seção segunda,
Seção terceira e Seção quarta, artigos 228-253, e Nequete (1973:44).
11
Ver Código, Cap. IV.
12
Art. 152.
13
Art. 45.
85
3.4 - O juiz de paz: os antecedentes coloniais e as inovações produzidas após a
Independência
14
Ver Actos do Poder Legislativo de 1827, Parte I, p. 67.
86
se formar em Direito era necessário estudar em Portugal, fato que exigia um certo
capital 15 .
Outro traço da lei de 1827 bastante destacado no debate político da época eram
as atribuições do juiz de paz, que o tornavam um conciliador de pequenas causas. No
artigo 5º, nos parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º são delimitadas as atribuições do juiz de paz,
quais sejam, conciliar as partes envolvidas em litígio. Caso a conciliação não desse
resultado, o juiz poderia julgar as causas nas quais os valores não excedessem 16 mil
réis, separar os ajuntamentos que trouxessem desordens e fazer com que não houvesse
no município nem prostitutas, nem mendigos 16 .
Portanto se, por um lado, o cargo de juiz de paz, criado após a Independência,
insere-se na tradição colonial que produziu o juiz de vintena e o juiz ordinário, por outro
lado, àquele foram acrescentados elementos que o tornavam substancialmente diferente
quando comparado com seus congêneres coloniais. O juiz de paz passou, então, a ser
eleito diretamente pelos cidadãos; deu-se também uma ampliação dos valores
monetários que pertenciam à sua alçada e, em 1832, com a promulgação do Código do
Processo, foram-lhe dados poderes penais. Essa ampliação dos poderes do juiz de paz
foi motivada pelo conflito entre a elite política nacional e D. Pedro I, que proporcionou
um contexto favorável às idéias de controle do poder através da eleição e participação
dos cidadãos na administração da justiça.
No aspecto formal, o juiz de paz, ao incorporar a autoridade penal, com o
Código do Processo e com a elevação dos valores monetários, supera os poderes do juiz
ordinário. Ocorre que a alteração não foi apenas no plano formal, mas também no
funcionamento da Justiça.
O professor Ivan Vellasco estudou detidamente o funcionamento da Justiça,
cobrindo um período que vai de 1800 até 1890, na comarca de Rio das Mortes, em
Minas Gerais. Seu trabalho destacou um aspecto extremamente importante para a
compreensão da função do juiz de paz: nos livros de lançamento de culpa (livros de rol),
nos quais os juízes de fora lançavam os culpados, ocorre um aumento do volume de
lançamentos nos anos que se seguem à eleição do juiz de paz. A atividade do juiz de
paz, num período de quatro anos, supera os lançamentos de toda a década anterior
(Vellasco, 2002:102).
15
As faculdades de Direito de Olinda e São Paulo somente começaram a funcionar em 1828. A Lei do
juiz de paz foi regulamentada em 1827.
16
Ver Actos do Poder Legislativo de 1827, Parte I, p. 67-68.
87
A conclusão de Ivan de Vellasco aponta na seguinte direção: em primeiro lugar,
com o juiz de paz ocorre uma expansão da ação da estrutura da Justiça sobre o território.
Por outro lado, esse aumento aponta para o fato de que o juiz de paz não estava
simplesmente assumindo poderes antes dispersos entre outros postos, mas efetivamente
implantando-os (ibidem:111-112).
Entretanto, o exercício da função de juiz de paz não será uniforme em todo país.
Seu funcionamento estará associado às dinâmicas social e política locais. O conflito entre
as autoridades eleitas e as autoridades nomeadas influía no funcionamento da Justiça
criminal. Seu funcionamento estava fortemente dependente dos arranjos prévios entre as
elites locais e era necessário que houvesse grupos locais hegemônicos interessados no
bom funcionamento da Justiça (ibidem:120-123).
Entretanto, essa ampliação dos poderes do juiz de paz não foi plenamente
satisfatória. Segundo a pesquisa de Ivan Velasco, grande parte dos processos não era
sequer instaurada devido a problemas decorrentes dos autos do processo. Em outras
palavras, o recolhimento dos fatos que iriam guiar o processo era precário o bastante
para invalidar seu uso no julgamento. Por outro lado, o tempo gasto entre o início e o
fim do processo era longo a ponto de dissuadir os cidadãos a procurarem a Justiça. Os
dados, obtidos na pesquisa feita na comarca de Rio das Mortes, comparando o tempo de
duração de um processo antes de 1840 e depois da reforma centralizadora revelam que
esse andamento foi diminuído enormemente. Essa demora, bastante citada nos relatórios
ministeriais, tinha entre as suas causas a lentidão na elaboração do auto do processo
(ibidem:129-139).
Observemos, no item seguinte, como se dava a articulação entre a idéia de
federalismo e a justiça eletiva preconizada pelo Código do Processo.
“Se todos os Estados do nosso Brasil não fossem tão separados uns dos
outros, se a sua população fosse compacta como é na maior parte da
88
Europa; [...]. Mas no Brasil, cujas povoações são todas destacadas, no
Brasil onde há Estados que mais facilmente poderiam estabelecer
relações com alguns povos da Europa do que com a capital do Império, o
regime unitário bem longe de lhe dar vantagens, serve-lhe de prejuízo e
estorva-lhe as posses de sua prosperidade.
Certamente uma das principais garantias dos cidadãos é a
responsabilidade dos delegados do poder; porque sem esta todas as
garantias são improcedentes e quiméricas. As autoridades despachadas
pela corte para os diferentes Estados mui facilmente podem
bigodear o clamor dos povos a respeito das suas prepotências e
malversações; por isso a grande distância que estão os queixosos da
fonte de recursos, as delongas de idas e visitas [...] tornam ilusória e sem
nenhum efeito a responsabilidade dos empregados da Nação. Por
melhor que seja um delegado ou um serventuário, a experiência, que
a distância dá azo a inumeráveis danos. Digam o quanto v.g. (por
nos servirem de exemplos familiares) morando aqui possuem uma
fazenda de gado nos Sertões, e que está entregue a administradores:
ausência de proprietário é pior que uma seca; as crias não medrão,
tudo vai finando [...]. Suponhamos um presidente estouvado e
despótico fazendo quanto lhe vem a cabeça. Que lhe importam os
impotentes latidos dos Periódicos? São cães que ladram a lua. [...]
Finalmente pode-se estabelecer como regra, apesar de uma ou outra
exceção, que todo poder, cuja responsabilidade está longe do foco
das suas ações, é infalivelmente mais, ou menos, arbitrário e por
conseqüência sempre pesado aos Povos.
Não será assim com o regime federativo. As autoridades escolhidas
pelo mesmo Estado onde tem de exercer as suas funções vem a
responsabilidade iminente, como Dâmocles, tinha a espada que o devia
punir pendente por um fio sobre a sua cabeça”. (Do Federalista,
publicado em O Astro de Minas Gerais, 28/6/1832)
O Astro de Minas era um jornal ligado aos liberais moderados. Adotava como
postura um caminho intermediário entre os exaltados e os caramurus. Sua linha política
repudiava aqueles que pretendiam efetuar reformas em direção a uma república
federativa, sem deixar de criticar aqueles que recusavam qualquer tipo de
aperfeiçoamento no modelo unitário da constituição brasileira: “[...] não admitimos
como útil ao Brasil uma reforma no pacto fundamental tão ampla que desligue as
províncias inteiramente [...] e nem tão pouco anuímos a esses estacionários , que não
admitem reformas algumas, como se a atual constituição fosse perfeita” (O Astro de
Minas, 28/6/1832). O jornal recomendava aos seus leitores o voto em deputados
moderados como Evaristo da Veiga e Bernardo Pereira Vasconcelos. Foi neste jornal
que apareceram, em 1832, diversos artigos assinados com o nome “Do Federalista”.
Façamos, inicialmente, um levantamento dos pontos mencionados no trecho
acima.
89
Comecemos pela última idéia, que irá nos fornecer a base para entender todo o
restante ([com o regime federativo] As autoridades escolhidas pelo mesmo Estado, onde
tem de exercer as suas funções vem a responsabilidade iminente [...]) . Para o articulista
mineiro, o valor central da idéia federalista reside na responsabilidade que o funcionário
possui frente aos cidadãos da localidade; tal encargo decorre do vínculo que liga o
funcionário à localidade. Este vínculo é formado por dois aspectos: em primeiro lugar, o
funcionário é escolhido na localidade dentre os cidadãos locais, e em segundo, por ser
eleito por estes, é para com eles que deve prestar contas do seu desempenho.
Sigamos os elementos na ordem pela qual o autor as cita. Observemos, em
segundo lugar, que o articulista menciona o problema acarretado pela dispersão da
população. Como as povoações estão distantes uma das outras, o contato com a Corte
torna-se difícil. Alguns Estados poderiam empreender um contato mais fácil com a
Europa do que com a Corte – observemos que o articulista, seguindo a tradição
federalista norte-americana, designa as províncias como Estados.
Em terceiro lugar, o articulista mineiro menciona que a principal garantia dos
cidadãos para com o Estado reside na responsabilidade do funcionário público para com
a localidade ([...] uma das principais garantias dos cidadãos é a responsabilidade dos
delegados do poder). O autor enfatizava que todas as garantias estão na dependência
desta primeira condição ([...] porque sem esta todas as garantias são improcedentes e
quiméricas [...]);de nada valeriam os demais direitos serem formalmente declarados, se
esta responsabilidade não estivesse firmada em bases seguras. Em quarto lugar,
observemos que as autoridades despachadas pela Corte estão imunes às vontades locais
(“As autoridades despachadas pela corte para os diferentes Estados mui facilmente
podem bigodear o clamor dos povos”). Dois aspectos estão presentes nesta crítica: o
primeiro, já mencionado – os funcionários são nomeados em vez de serem eleitos; o
segundo aspecto revela-se aqui: os funcionários são deslocados entre os diversos pontos
do país.
Em quinto lugar, O Federalista mineiro aborda como exemplos dos funcionários
sobre os quais os cidadãos não possuem controle três figuras, quais sejam, o presidente
de província, o delegado e o serventuário. O primeiro está situado no topo da esfera
provincial, enquanto os outros dois são figuras situadas no plano municipal. O delegado
era a figura que representava o chefe de polícia no município, cargo que foi extinto no
Código do Processo e fato que certamente o federalista mineiro saudou. Estamos
portanto, diante de um programa federalista que não está restrito ao reforço dos poderes
90
provinciais – assembléia provincial e de um presidente provincial eleito –, mas que
chega até ao município.
Em sexto lugar, anotemos o exemplo mobilizado pelo articulista: a fazenda. O
federalista projeta para a esfera estatal um exemplo retirado da esfera privada. O
cidadão deve cuidar da máquina pública com o mesmo zelo com qual vela pela sua
posse privada. Para que esse sentimento se manifeste é fundamental que os cidadãos da
localidade cuidem da administração da Justiça.
Como nosso objetivo, neste item, é o de assinalar a presença, na idéia federalista,
da importância da dimensão municipal, iremos nos ater neste aspecto. Na nossa visão, o
articulista do jornal mineiro define o modelo federativo a partir da responsabilidade dos
funcionários do Estado para com os cidadãos. Esta responsabilidade se manifesta na
eleição e na escolha destes funcionários a partir dos próprios cidadãos. Este princípio é
aplicado desde o presidente da província, situado no topo do poder provincial, até o
delegado, situado no município. Em outras palavras, inclui uma figura “administrativa”
(o presidente), bem como um agente do judiciário (o delegado).
Tendo em vista esta marca da idéia de federalismo presente num jornal
moderado, desloquemos nosso olhar para um periódico de orientação política distinta,
qual seja, A Nova Luz Brasileira. Vejamos dois trechos publicados no ano de 1831.
O jornal A Nova Luz Brasileira foi dirigido por Ezequiel Corrêa dos Santos. As
idéias do seu diretor e principal redator sempre foram pautadas pelas ideais
democráticos, indo muito além do liberalismo constitucional dos liberais moderados.
Suas idéias, quando comparadas com as dos liberais moderados, eram distintas no plano
91
político e social. No plano político, Ezequiel sempre enfatizou a necessidade da
ampliação da participação da população livre. E no plano social, Ezequiel buscou
construir mecanismos que acelerassem a incorporação dos escravos e ex-escravos à
sociedade brasileira. Ezequiel Corrêa dos Santos chegou mesmo a defender, em 1831,
uma lei que libertasse os filhos de escravos. Muito antes, portanto, da lei Áurea. Sua
preocupação para com os homens de cor livres o levou a denunciar o preconceito que
estes estariam sofrendo no preenchimento dos cargos públicos (cf. Basile, 2001). Foi,
talvez, o mais brilhante dentre os liberais exaltados do período compreendido entre
1822-1840.
Para o federalista mineiro, analisado anteriormente, a idéia federalista era
caracterizada como a dependência dos funcionários públicos – do presidente ao
delegado – aos eleitores provinciais. O jornalista carioca segue a mesma a idéia. Para
Ezequiel dos Santos, o programa federalista era indissociável da elegibilidade da
magistratura. Quando, no artigo publicado em 4 de janeiro, Ezequiel escreve sobre as
conseqüências da introdução da federação, imediatamente fica estabelecido que as
províncias controlariam a eleição do presidente, do comandante de armas e dos
magistrados. Para Ezequiel Corrêa, a autonomia permitida pelo federalismo não diz
respeito somente à eleição do presidente da província, mas é estendida para a
magistratura, qual seja, juiz de direito, juiz de paz e juiz municipal.
No segundo trecho, retirado de um artigo publicado três dias depois do primeiro,
Ezequiel Corrêa novamente identificava a eleição da magistratura como um ponto
central da aplicação do princípio federativo no Brasil. A idéia de uma federação está
associada à submissão do funcionário da magistratura ao cidadão, através da eleição e
da escolha realizada dentre estes. Observemos que a atuação dos funcionários dentro
das suas atribuições constitucionais é decorrente deste traço da federação, qual seja, a
eleição e escolha dos funcionários a partir dos eleitores locais (“Se todas estas
autoridades em uma monarquia federada fossem todas de eleição popular, veríamos [...]
que as nossas autoridades [...] andarão dentro das suas atribuições”)
Portanto, a idéia de federação envolve meta de que os funcionários devam ser
responsáveis perante os cidadãos. Conforme observamos no Capítulo II, no debate
constituinte de 1823 a idéia de federação estava associada à liberdade provincial em
cuidar dos seus negócios. Esta autonomia significava que os poderes locais teriam
autonomia tanto na formulação das suas políticas internas, quanto na escolha dos seus
funcionários. Podemos observar, nos trechos analisados, que na idéia de federação este
92
conteúdo estava diretamente associado ao controle dos eleitores provinciais dos
principais cargos públicos: do presidente da província, chegando até a magistratura
situada nas localidades. Outro ponto importante residia na associação entre direitos e
federalismo. Para os federalistas, a garantia dos direitos dos cidadãos tinha como pré-
requisito a implantação do modelo federativo. Esta vinculação era decorrente do traço
que estamos assinalando: no federalismo, os funcionários são mantidos dentro dos seus
limites constitucionais devido à sua responsabilidade para com os cidadãos locais.
A idéia de federação chega ao Brasil enfatizando a necessidade de que as
atribuições do poder central sejam deslocadas para a província. Porém, esse movimento
de retirar as atribuições do poder central não fica restrito a uma transferência destas para
as assembléias provinciais, mas chega até aos municípios. No debate político brasileiro,
a idéia de federalismo esteve diretamente associada a um movimento no qual o
exercício do poder público é espalhado na sociedade. Em outras palavras, é colocado ao
alcance do cidadão ativo.
Uma vez identificado esse movimento de aproximar o exercício do poder
público até os municípios, devemos, agora, deslocar nossa atenção para a maneira pela
qual federalistas e centralizadores debateram uma das principais figuras presentes na
esfera municipal, qual seja, o juiz de paz.
93
interesses. No conceito de federação essas duas idéias – submeter os funcionários ao
controle dos eleitores e permitir a busca dos interesses – atingem a esfera provincial
propriamente dita, presidente e assembléia provincial, e a esfera local – juiz de paz, juiz
municipal, promotor e júri.
O juiz de paz foi, sem dúvida, o personagem central na polêmica entre
centralizadores e federalistas. Observemos como os liberais exaltados abordam essa
figura a partir da análise de dois trechos retirados do jornal A Malagueta.
94
obviamente sem o conhecimento prévio das leis, a possibilidade de conhecê-las. May
cita um autor francês – que não foi possível identificar: Dumont – para apontar essa
conseqüência dos julgamentos de portas abertas: “[...] las esperanzas de los lugares a un
numero maior de asistentes y personas pontuales que adquieran con el habito un
conocimiento de la actuación de procesos”. (A Malagueta, 13/2/1829).
A idéia de que a Justiça eletiva, ao oferecer ao cidadão exercício do poder
público educa-o, era extremamente forte não apenas entre os exaltados, mas também
entre alguns dos liberais moderados. Evaristo da Veiga, um liberal moderado, também
enxerga na publicidade um dos meios de educar o cidadão para a vida pública. Para
Evaristo, a eleição do juiz de paz e do júri, aliados a uma distribuição para todos os
cidadãos de um exemplar do Código do Processo (1823), facilitariam o funcionamento
do sistema Judiciário (cf. Flory, 1986:95-96).
Temos, portanto, dois elementos extremamente importantes associados ao
funcionamento do juiz de paz, quais sejam, a transparência nas decisões e a educação
política dos cidadãos. Na nossa interpretação, para os liberais exaltados a ênfase na
importância da publicidade do funcionamento da Justiça remete à idéia de que os
eventos públicos devem ser acessíveis a todos os cidadãos. Os assuntos que dizem
respeitos a todos impõem a participação de todos. Com este procedimento é afastada a
idéia de que a Justiça seja um instrumento do Estado, tomado como um órgão distante,
em favor da idéia de que a Justiça seja o espaço do exercício ativo da cidadania. Neste
exercício, o cidadão protege seus interesses ao mesmo tempo em que internaliza e
respeita as leis.
17
Bernardo Pereira de Vasconcelos, que mais tarde seria um dos arautos do regresso conservador,
escreveu um livro dedicado à instrução dos novos juízes de paz. Ver Carvalho, Introdução, in Bernardo
Pereira de Vasconcelos (1999, p. 19).
95
“Deve-se atender à grande distância em que se acham os juízes de
direito, e a dificuldade da convocação dos jurados, e ao pouco tempo que
devem existir unidos, por causa dos prejuízos que resultam; portanto
nestes casos de pequenas contendas deve necessariamente pertencer aos
juízes de paz.” (Sessão da Câmara dos Deputados, em 19 de maio de
1827, p. 138).
18
Presente no projeto de constituição abortado, o decreto que regula o juiz de paz entra em discussão em
julho de 1827 e é sancionado em 15 de outubro de 1827. Não houve um debate sobre se a necessidade ou
não da criação do juiz de paz . Como ele constava na constituição outorgada, a câmara quando se reuniu
em 1827 discutiu a sua regulamentação.
19
Vasconcelos, como é sabido, será um dos aliados de Uruguai no regresso. E Calmon, junto com
Carneiro Leão e Uruguai, irá formular a Lei de Interpretação de 1837.
96
Na sua Carta aos eleitores, publicada em 1828, Vasconcelos praticamente
reproduziu os trechos acima 20 , enfatizando a sua preocupação com relação a quem seria
nomeado para aquele cargo. A resposta de Vasconcelos era a de que deveríamos imitar
a Inglaterra, conduzindo para tal cargo a elite. O juiz de paz somente funcionaria se,
para a sua nomeação, esta parte da sociedade ocupasse o cargo.
“Mas esta lei não será tão profícua se não for bem executada, e a parte
em que mais deveis cuidar é a da nomeação das pessoas que tão
importantes funções dignamente exerçam.” (Vasconcelos, Carta aos
eleitores, Cap. XIII, in Carvalho,1999:112)
20
O trecho da Carta na qual Vasconcelos praticamente reproduz as passagens dos seus discursos é a
seguinte: “Os juízes de paz [...] procurarão conciliar as partes que intentarem ir a juízo, [...]. Os pleitos
insignificantes e os delitos de pequena quantidade serão julgados perante estes escolhidos do povo. [...] é
esta uma das mais belas atribuições destas novas autoridades constitucionais. Mas esta lei não será tão
profícua se não for bem executada, e a parte em que mais deveis cuidar é a da nomeação das pessoas que
tão importantes funções dignamente exerçam. Na Inglaterra é tão apreciada esta importante magistratura,
que é procurada pelos pares, pelo chanceler pelos príncipes de sangue, [...]. Imitemos a Inglaterra e
gozaremos dos mesmos benefícios. (Vasconcelos, Carta aos eleitores, Cap. XIII, in Carvalho, 1999:
112). Observe-se que para Vasconcelos tão importante quanto a legislação que será dada ao juiz de paz é
quem será selecionado .
21
Utilizo o conceito de Elite na seguinte acepção : “Elites which have exceptional access to ‘key
positions’ in the society, or which appear to wield control over crucial policies disproportionate to their
numbers can understandably seem to be living contradictions of the notion of government by the people”
(Parry, 1970:13). O conceito de elite, quando aplicado aos argumentos de Vasconcelos, aponta para os
setores sociais que controlam os principais recursos na sociedade imperial. Diferentemente dos liberais
exaltados e de Evaristo, que pensavam no cargo como um instrumento para o aprendizado “democrático”
da sociedade, Vasconcelos pensa que o cargo seja ocupado pelos mais bem preparados socialmente.
97
“O que é pois um juiz de paz inglês ? É um magistrado que tem muita
autoridade sobre um condado da Inglaterra; [...] todos os cidadãos
notáveis de um condado, notáveis porque têm certas qualificações, de
que logo tratarei, fazem-se inscrever na lista dos hábeis para manter a
paz do rei – nesta lista os inscritos são os tais membros da comissão de
que falo. [Calmon mencionava anteriormente que desta comissão saia o
juiz de paz]”. (Sessão de 22 de maio de 1827, p. 150)
“Não foi igualmente feliz a mesma instituição, na sua segunda
emigração, quero dizer quando passou para a França em 1799. Com
efeito pelo decreto de 24 de agosto daquele ano, ordenou que em cada
cantão houvesse um juiz de paz, eleito pelos cidadãos activos. A só
qualificação que exigiu foi a idade de trinta anos. (...) Qual foi o
resultado dessa alteração? A planta murchou [...]”. (Sessão de 22 de
maio de 1827, p. 151).
98
exigido nenhum pré-requisito, o tempo de duração no cargo revelava-se insuficiente
para que o eleito obtivesse o conhecimento necessário para manejar com segurança as
leis. Para aqueles que fossem estranhos à lei, o manuseio desta se revelaria um labirinto;
a falta de um conhecimento prévio lhes retira qualquer possibilidade de dispor de um fio
neste labirinto 22 .
Acreditamos que o sentido desta idéia possa ser percebido na sua totalidade,
caso trouxermos alguns pontos mencionados anteriormente.
Assinalamos que, para os federalistas, tornar o poder público responsável
perante os cidadãos implicava delegar certos cargos para a eleição ou controle nas
esferas provincial e municipal. Neste sentido, os federalistas irão apoiar o Código do
Processo Criminal. Para os federalistas, na medida em que os cidadãos se faziam
presentes no Judiciário, seus direitos civis estariam não apenas formalmente
assegurados, mas também de fato implementados.
O argumento de Vasconcelos e Calmon du Pin seguem em direção contrária. O
que iria assegurar o bom desempenho no cargo não era o pertencimento à localidade,
mas certos pré-requisitos de conhecimento, os quais somente os homens bons poderiam
dispor.
Efetuamos essa análise para que pudéssemos chamar a atenção do leitor para a
presença, no argumento acima, dos mesmos valores presentes no argumento
centralizador analisado no Capítulo II. Assinalemos o elemento de continuidade. Na
Constituinte de 1823, os federalistas defendiam que com a federação/confederação os
interesses provinciais poderiam moldar a máquina do Estado. Para que estes interesses
desempenhassem seu papel, tornava-se necessário que os funcionários fossem
escolhidos pelos poderes provinciais dentre os cidadãos daquela província. O elemento
que iria assegurar o bom desempenho no cargo e o respeito aos direitos dos cidadãos
seria o pertencimento à província.
A corrente centralizadora enfatizava valores distintos. Para Silva Lisboa, os
funcionários deveriam ser escolhidos tendo em vista o seu mérito e os interesses do
Estado. Na análise que empreendemos no Capítulo II, assinalamos que Silva Lisboa
marcava a necessidade de que o vínculo do funcionário fosse para com o Estado-nação,
e não para com interesses provinciais auto-referidos, e que o funcionário deveria ser
escolhido em razão do seu treinamento prévio.
22
Adriadne deu a Teseu um novelo para que ele o desenrolasse no labirinto e conseguisse sair dele após
matar o Minotauro.
99
Na nossa interpretação, Vasconcelos e Calmon du Pin retomam algumas das
idéias presentes na corrente centralizadora, em 1823. Segundo os dois políticos, a
simples eleição pelos cidadãos não iria conferir ao juiz de paz um bom desempenho, era
necessário que o eleito dispusesse de uma familiaridade prévia com a lei. Entretanto,
Vasconcelos e Calmon du Pin estão se movendo dentro dos marcos da idéia de
federalismo: a elite, que dispunha de conhecimentos jurídicos e preparação intelectual
deveria ocupar os cargos de juiz de paz e a presença dos seus interesses nesta função iria
assegurar que o Estado agiria dentro dos limites legais, permitindo a prosperidade local.
100
O jornal Aurora Fluminense era de propriedade de Evaristo da Veiga 23 , um
importante líder dos liberais moderados durante todo o período regencial.
23
Evaristo da Veiga foi, ao longo de toda a sua carreira política, proprietário de uma livraria, fato que era
usado por seus adversários como sinal de uma situação social modesta. Por sua vez, ele sempre declarou
que entrou na vida política com a mesma propriedade que deteve ao longo da sua carreira política. Esta
livraria havia sido herdada do seu pai. Evaristo não freqüentou nenhum curso superior. Sobre a vida de
Evaristo da Veiga, veja-se Tarquínio (1988c).
101
eram plenamente capazes de enxergar por detrás de certos candidatos a presença de
cabalas.
Na nossa interpretação, podemos compreender o “porquê” deste eleitor ainda
seria manipulado pelas cabalas. Vejamos um trecho sobre a eleição de juiz de paz
publicado alguns meses depois. Neste trecho, Evaristo cria a figura de um eleitor que,
conversando consigo, rememora seu comportamento político nos últimos tempos, os
eventos históricos e as transformações que ocorreram na sua personalidade social.
“O dia das eleições se avizinha, e tenho de contribuir com meu voto para
a nomeação dos juízes de paz do meu distrito. N'outro tempo, eu nada
entendia da influencia que podia ter hum bom ou mau juiz de paz;
deixava a escolha ao acaso, persuadido que de todo modo as coisas
hirião bem [...]. Mas depois de 7 de abril, quando começarão a correr
pelas ruas magotes de gente armados de facas, grande número de
ociosos, de vagabundos [...] que assustavam o povo, ameaçando os bens
e a vida de cada um. [...]. Duraram os sustos alguns meses: mas homens
de bem exerciam o cargo de juiz de paz, eles animaram os cidadãos e
reprimiram os perturbadores [...]. Aprendi então a conhecer a
importância daquele emprego e prometi ter grande escrúpulo no meu
voto toda vez que se tratasse de eleger juízes de paz. [...] Contaram-me
huma vez que se trabalhava para nomear eleitores a certos sujeitos que
não mereciam conceito, que para este fim havia um ajuste, ou como eles
dizem – huma cabala; e me convidarão a ligar-me com outros cidadãos
que pretendiam votar em pessoas de mais estimação e confiança.
Imbuído como estava da minhas idéias respondi que não entrava em
conluios. Outros foram da mesma opinião, e a cabala que eu receava
triunfou completamente. Então eu reconheci que em eleições é
necessário ceder do próprio juízo, de particulares afeições, de relações de
comércio ou de família, e encostar-se o votante aquele circulo que
melhor lhe agrada, que está mais de acordo com seus desejos e
esperanças”. (Aurora Fluminense, 15/2/1833, ênfases do autor)
102
Entretanto, o eleitor recorda os eventos que se seguiram ao 7 de abril. O
contexto político ao qual Evaristo estava fazendo referência dizia respeito à abdicação
de D. Pedro I e aos tumultos que agitaram a cidade nos dias que se seguiram a este fato.
Foi nesse momento que emergiu a ação repressora de Feijó, fortemente apoiada por
Evaristo 24 . Neste momento, o eleitor relembrava a importância de um juiz de paz apto a
agir tendo em vista a manutenção da paz social.
Observemos que este eleitor, voltado para a sua esfera privada sente-se
amedrontado por aqueles que ameaçam a sua propriedade (“[...] começarão a correr [...]
grande número de ociosos, de vagabundos [...] que assustavam o povo, ameaçando os
bens e a vida de cada um”). Após estes eventos, o eleitor percebe que a eleição de juiz
de paz tinha reflexos na sua esfera privada; que um juiz de paz capaz de preservar a
ordem pública, assegurando ao cidadão a tranqüilidade era essencial para a sua
felicidade. O eleitor, armado desta conclusão, resolve tomar parte nas eleições.
Entretanto, é importante que assinalemos que Evaristo considera essa
participação como um impulso que ainda não encontrou sua forma correta. Vale a pena
descrever como Evaristo apresenta esse primeiro arroubo participativo: o cidadão decide
participar da eleição de juiz de paz; ao se envolver fica sabendo que uma cabala estava
em ação. Contudo, recusa-se a tomar parte de uma ação coletiva. Nesta, cidadãos
movidos pelo bem público,como ele, buscavam a vitória eleitoral. Outros cidadãos,
também recusaram participar desta ação pública virtuosa e esta recusa terminou por
permitir a vitória da cabala (“Imbuído como estava das minhas idéias respondi que não
entrava em conluios. Outros foram da mesma opinião, e a cabala que eu receava
triunfou completamente”).
Evaristo deixava claro que, neste primeiro impulso participativo, o eleitor ainda
não compreendia a natureza pública da política. Sua decisão de participar da política
não envolve uma ação com outros cidadãos.Com a vitória da cabala, o cidadão descobre
a importância de que na política a ação deva envolver outros cidadãos.
A ação na política o obriga a interagir com outros cidadãos, e também a
mobilizar outros valores. O cidadão, para convencer a outros cidadãos, dever mobilizar
valores distintos daqueles presentes na esfera privada (“[...] eu reconheci que em
24
Os eventos que se seguiram ao 7 de abril sacudiram a Corte de tal maneira que pensou-se em retirar D.
Pedro II da cidade. Nesta conjuntura política, o Exército tomou parte em diversas revoltas, fato que levou
à criação da Guarda Nacional. Para uma descrição deste momento vejam-se as biografias de Feijó e
Evaristo escritas por Otávio Tarquínio de Souza.
103
eleições é necessário ceder do próprio juízo, de particulares afeições, de relações de
comércio ou de família [...]”).
Antes de empreender uma análise dos aspectos destacados acima, gostaríamos
de citar outro trecho do jornal O Astro de Minas assinado pelo Federalista, já
mencionado anteriormente. Acreditamos que essa passagem nos irá permitir construir
uma análise mais consistente. Vejamos o trecho:
104
federalismo no Brasil encontraria obstáculos para o seu bom funcionamento; os
eleitores ainda seriam manipulados pelas cabalas. Porém, este engano não seria
duradouro, pois o federalismo coloca ao eleitor a possibilidade de controlar o
desempenho do funcionário eleito (“[...] hão de se fazer cabalas, mas uma vez que a
responsabilidade não se possa iludir tão facilmente como no sistema unitário do Brasil,
aquele mal será comparativamente menor”) Tendo em vista a nossa hipótese
mencionada anteriormente, marquemos que, para o articulista, federalismo significava
responsabilidade do funcionário perante o cidadão. Essa característica levaria
lentamente o cidadão esclarecimento acerca da eleição.
Os eleitores, inicialmente, cederiam o seu voto ao favor e à intriga. Estes
eleitores iriam, pelo exercício do voto, procurar candidatos virtuosos e capazes. O
eleitorado do sertão não possui vínculos estáveis com a localidade e com o trabalho, se
deslocando com facilidade. Esse fato social, no argumento do autor, contribui para um
voto pouco esclarecido. O voto deste eleitorado termina recaindo sobre juízes que fazem
um uso privativo do poder público; protegem ou são eles mesmos facínoras.
Contudo, o federalista não possui uma visão simplista do aperfeiçoamento do
cidadão, não seria apenas a ação lenta do tempo que iria educar a prática do voto. Como
estamos trabalhando com um trecho de um artigo já analisado anteriormente, torna-se
necessário trazer uma idéia já mencionada. O federalista mineiro mencionava que no
sistema federativo o eleitor iria cuidar do que é seu. No federalismo, o cidadão estaria
cotidianamente em contato com os assuntos públicos, pois caberia aos cidadãos a
responsabilidade, através da eleição e do exercício dos cargos, pelo bom funcionamento
da máquina pública. Nos termos do trecho anteriormente mencionado, da mesma
maneira que o cidadão cuida da sua fazenda, ele cuidaria dos assuntos públicos. No
federalismo, o cidadão, ao cuidar dos seus interesses, estaria velando pelos interesses
públicos.
Retomemos o trecho presentemente citado. Em certo momento, o federalista
mineiro junta as duas dimensões da idéia de federação presentes no debate político
brasileiro: a primeira mencionada no início, a dimensão da eleição dos poderes locais, a
segunda a liberdade que as províncias devem dispor para administrarem seus recursos.
Cada província possui realidades e interesses próprios e somente ela própria poderia
efetuar as políticas necessárias para dar conta destes (“[...] a federação de estados
fazendo as suas leis próprias e peculiares [...]”).
105
Ao final, o federalista mineiro volta a associar a idéia de federação com a
responsabilidade que as autoridades possuem para com os cidadãos mediante e eleição e
escolha na esfera municipal (“[...] as autoridades sempre vigiadas e prestes a responder
pelos seus abusos estarão em contato com os povos que as elegerão”).
Portanto, podemos considerar quais os motivos que conferem otimismo ao
federalismo mineiro. Em primeiro lugar, o arranjo constitucional federalista é definido a
partir de dois pontos: o mecanismo de responsabilidade que os funcionários possuem
para com os cidadãos – seja na esfera provincial, seja na esfera municipal – e a
liberdade que as províncias devem dispor para administrarem seus recursos e legislar
tendo em vista suas realidades singulares. Em segundo lugar, e diretamente associado
ao primeiro, esse modelo constitucional permite que o cidadão olhe para o que é público
como algo que lhe diz respeito, e não como algo que somente diz respeito a um
funcionário nomeado por um poder distante. O cidadão exerce seu interesse individual
junto ao interesse público.
Após termos destacado esses elementos podemos analisar como um todo
articulado as duas passagens como a expressão de um conjunto de idéias que está
presente na corrente federalista.
Para realizar essa análise, vamos nos valer do conceito de interesse bem
compreendido formulado a partir da leitura da obra de Tocqueville. Na análise que este
autor efetuava da experiência norte-americana, estava presente a idéia de que nos
Estados Unidos o interesse individual, longe de colocar o cidadão numa prisão isolado
dos demais, era capaz de ligá-lo a outros. Para Tocqueville, o cidadão norte-americano,
ao efetuar uma ação tendo como móvel seu interesse privado, terminava produzindo
uma ação dotada de virtudes públicas. Vejamos as palavras de Tocqueville:
106
Tocqueville, seguindo as lições de Montesquieu, considerava que às instituições
deve corresponder um espírito que as anime. Neste sentido, Tocqueville enxergou na
experiência norte-americana cidadãos comuns, movidos pelos seus interesses
individuais, envolvidos nas soluções de problemas coletivos; unindo a sua liberdade
com a liberdade pública. O interesse, o apego do indivíduo pela suas coisas, consegue se
tornar uma virtude. A dispersão do poder na sociedade norte-americana leva o
indivíduo, na defesa do seu interesse, a sair do seu isolamento e a buscar a cooperação
de outros na procura de soluções (cf. Jasmin, 2002:77).
O “patriotismo municipal” (expressão de Tocqueville apud Jasmin, 2002) norte-
americano é o espaço institucional primordial para a manifestação do interesse bem
compreendido. Sem este, os cidadãos jamais irão obter o aprendizado prático para a
resolução dos assuntos públicos, tampouco poderão associar corretamente a sua
liberdade individual à liberdade pública. Os Estados centralizados equivocadamente,
somente chamam seus cidadãos a decidir os assuntos gerais, abstratos, sem uma ligação
direta e imediata com a vida dos cidadãos.
É importante assinalar que, para Tocqueville, o interesse bem compreendido se
manifesta sem nenhuma referência a uma virtude heróica, externa aos interesses dos
indivíduos. Mas apenas ao empenho do indivíduo em resolver seus problemas. Mas a
partir desta paixão pouco nobre, o cidadão supera seu isolamento, constrói uma esfera
pública baseada na liberdade e internaliza a lei como expressão do bem público
(Werneck Vianna, 1997:109).
Retomemos o tema da eleição do juiz de paz.
Notemos que Evaristo e o federalista mineiro descrevem a eleição a partir de
espaços sociais distintos, quais sejam, o mundo urbano e o mundo rural. Porém, em
ambos o eleitor é movido a partir do seu interesse individual. Para Evaristo, o eleitor é
despertado para a importância da eleição de juiz de paz quando desordeiros ameaçaram
sua propriedade. O federalista mineiro argumentava, num trecho já citado, que o
proprietário de uma fazenda de gado, caso queira que sua propriedade prospere, não
deve entregá-la a um administrador, mas que deve ele mesmo administrá-la. O cidadão
movido pelo interesse de que a lei garanta a sua esfera privada não deve permitir que
um funcionário nomeado por um poder distante tenha influência sobre seus assuntos.
Portanto, tanto Evaristo, como o federalista mineiro estão mobilizando o cidadão a
partir dos seus interesses individuais: seja a fazenda de gado, seja sua propriedade
urbana.
107
Quando ocorrem as primeiras eleições, estes cidadãos, pouco habituados ao
exercício do poder na sua esfera mais próxima, não se envolvem. Séculos de uma
legislação colonial opressiva não lhes ensinou a se envolver com os assuntos públicos.
Porém, quando fatos ocorrem que põem em risco seus interesses, estes eleitores
decidem participar. Mas os dois articulistas não são ingênuos, reconhecem que não será
imediatamente que os cidadão ativos irão sair do seu isolamento. Tanto Evaristo como o
federalista mineiro escrevem que, nestas primeiras eleições, as cabalas vencem. E o
motivo reside no fato de que os cidadãos ainda não saíram da sua esfera privada 25 . Para
ambos, lentamente, mediante o exercício da participação, o cidadão ativo irá escolhendo
melhor o juiz da paz. O cidadão vai ligar os seus interesses individuais – a proteção da
sua propriedade – à escolha de funcionários públicos que respeitem seus direitos. O
cidadão ativo irá reconhecer que para que esta escolha recaia sobre um candidato
correto deve ocorrer um envolvimento com outros eleitores.
Essa ação coletiva somente pode ocorrer, dizem ambos, quando existe a
liberdade de escolha – a eleição de um magistrado – na qual diversos candidatos
participam; e que muitos destes candidatos são homens que se impõem, não pelo seu
cabedal pessoal – estudos e propriedades –, mas em razão da alta estima dos seus
concidadãos. Essa participação somente pode ocorrer porque o funcionário eleito
responde perante aos demais cidadãos ativos.
Na nossa interpretação, torna-se fundamental compreender que os federalistas
descrevem a eleição do juiz de paz como um espaço no qual os cidadãos, movidos pelos
seus interesses, criam um vínculo positivo com Estado e com a liberdade pública.
Somente no modelo institucional no qual o poder público esteja sujeito aos interesses
dos cidadãos podem estes internalizar a Lei. O exemplo maior ocorre quando o
federalista escreve que, com tempo, os cidadãos, vão compreender que para proteger
suas fazendas não devem escolher juízes que melhor estariam atrás das grades. Essa
descoberta somente pode ocorrer se lhes for dado o espaço público para que os seus
interesses individuais estejam ligados aos de outros cidadãos de forma que, juntos,
transportem suas vontades para dentro do Estado.
Os federalistas brasileiros não tiveram a preocupação de compatibilizar esse
interesse com uma virtude heróica, proveniente de uma nobreza que de maneira
25
Enfaticamente Evaristo escreve: “Então eu reconheci que em eleições é necessário ceder do próprio
juízo, de particulares afeições, de relações de comércio ou de famílias, e encostar-se o votante aquele
círculo que melhor lhe agrada [...].”
108
desinteressada velaria pela res publica. Seu mundo de origem e sua referência eram os
homens comuns que, dispondo de propriedade e interesses individuais, deveriam
controlar um Estado. Este, em razão da experiência colonial e, do reinado de D. Pedro I,
lhes surgia como uma ameaça aos seus interesses. Porém, para os federalistas, controlar
o Estado a partir dos interesses era indissociável da descentralização do Poder, de
colocar o poder sob a influência dos cidadãos ativos e da esfera pública na qual estes
tomavam parte e de tornar o poder sujeito à influência da opinião pública, dos pasquins,
das sociedades etc.
Notemos como o júri popular era visto pelo jornal A Nova Luz Brasileira:
109
funcionário correto (“A faculdade de se ajuntarem os cidadãos desarmados; para
combinarem os meios de promover alguém de bem”) e participar do júri. Neste sentido,
o cidadão ativo movido pelo interesse de proteger sua esfera privada participa das
eleições do juiz de paz e do júri.
Na sessão de 22 de outubro de 1823, o então deputado Vergueiro defende o júri
popular:
110
decentes etc.; apenas o convívio cotidiano na esfera municipal pode permitir tal
processo de escolha. A justiça correta nasce nesta esfera, na qual se pode conhecer os
eleitos que, por sua vez, voltarão para a vida local após o término do mandato, devendo,
portanto, desempenhar suas funções de forma justa. Em resumo, a vida local fornece a
chave para a eleição dos cargos. É a partir da esfera municipal que os cidadãos
acompanham e participam da montagem do poder.
Por último, observe-se que o que impulsiona essa ocupação da esfera pública é
um movimento de proteção da esfera privada do cidadão – tratava-se de proteger a
segurança e a propriedade: o primeiro diz respeito ao direito que todo cidadão tem de
não ser preso injustamente e ter um julgamento justo, enquanto o segundo remete à
faculdade que o indivíduo tem de gozar livremente dos objetos que licitamente adquiriu,
se esse gozo não vier a ferir os direitos de outros (ver Bueno, 1978:420).
Uma outra formulação para a defesa do júri, que, no entanto, não altera o
conteúdo exposto por Vergueiro, vem do deputado José Martiniano Alencar.
111
criaturas do governo e, portanto, sujeitos às pressões deste. Observe-se, inicialmente,
em dois discursos a idéia acima.
26
Por fortuna entenda-se propriedade, aquilo que é de alguém [...] bens de raiz. Veja-se Moraes (1823).
112
de um pensamento político que, frente ao Estado, o considera sempre capaz do arbítrio,
despotismo etc. Para esta corrente política, quando o poder central não é confrontado
com um poder proveniente da eleição dos cidadãos, exercido por indivíduos controlados
pelo voto, que retornam à sociedade civil após o término do mandato, tende à violação
dos direitos dos cidadãos.
Voltemos ao debate sobre o júri. Neste momento, os adversários do júri
mobilizavam argumentos muito próximos aos dos conservadores nos anos 40. Os
adversários do júri propõem como alternativa a elaboração de novos códigos, criminal e
civil, antes de pensar em estabelecer um júri e um juiz de paz eleitos. Ou seja, uma ação
que pretendia resolver os problemas deixados pela herança colonial através de um
aperfeiçoamento dos Códigos, aumentando as garantias dos cidadãos, impondo um
controle sobre as ações dos magistrados de maneira a impedir o abuso; em síntese – e
como sua diferença principal –, uma ação que parte do Estado, do poder central, através
dos seus agentes, não envolvendo a participação da sociedade por meio da eleição de
juízes, júri, promotores etc. Seus defensores não chegaram a formular, com ênfase, uma
proposta alternativa; antes, apresentaram obstáculos e estratégias protelatórias ao
avanço das correntes que defendiam uma representação maior da sociedade no aparelho
de Estado.
Na verdade, como este debate sobre os códigos seria fatalmente extenso – o
Código do Processo só seria feito em 1832 e o civil só na República –, o resultado seria
o adiamento do debate sobre o júri e o juiz de paz eleitos para um dia longínquo. Ao
mesmo tempo, os adversários do júri e do juiz de paz eleitos criticam a desconfiança
para com a magistratura de carreira, deplorando os efeitos que tais críticas poderiam ter
no respeito da população pelas suas decisões. Num certo sentido, aproximavam-se dos
conservadores nos anos 40, sinalizando que o problema não estava no poder, ou na
concentração de poderes nas mãos destes, mas nas leis e nas circunstâncias sociais do
país.
Durante a Constituinte, em 1823, José da Silva Lisboa 27 externa com clareza a
corrente descrita acima.
“Nos debates que têm havido nesta assembléia, se tem cumulado, com
acrimônia declamatória, tantas investidas contra o corpo da magistratura,
que parece que as instâncias para a introdução do juizo dos jurados não
se funda tanto na excelência desta instituição quanto no rancoroso ódio
27
Futuro Visconde de Cairu, eleito pela Bahia, funcionário público.
113
contra o estabelecido poder judiciário. A indistinta censura dos
magistrados é certamente injusta, e só pode ter fito de indispor estimular
o povo contra os juízes ainda da mais ilibada reputação; o que afrouxa
todos os vínculos da subordinação. [...]. Concluo que, quando entre nós
houverem, melhores códigos, não tenho dúvida que terá cabimento a
instituição dos jurados [...]. Eu só contestei e contesto, a imediata
introdução antes da reforma das leis e dos costumes”. (Sessão de 21 de
outubro de 1823, pp. 153 e 157)
114
“[...] não diria que só poderemos ter [o júri] quando chegarmos à
civilização atual dos ingleses, pois seguramente estamos mais adiantados
do que eles estavam no tempo em que estabelecerão entre si o juizo dos
jurados”. (Vergueiro, Sessão de 22 de outubro de 1823, p. 161)
115
fortemente centralizada. Apenas aparentemente, o intuito desta corrente era o de
aplicar, no momento certo, a Justiça eletiva. Sua estratégia no imediato era a de
postergar tal implementação, mas os valores que suas idéias carregavam apontam,
antes, para um objetivo de reforço do Estado e dos seus agentes nomeados. O destaque
dado ao caso francês parece querer lembrar que outras maneiras de se organizar o
Estado eram possíveis, sem que o debate ficasse restrito a uma escolha entre herança
colonial, com seu estigma de atraso, versus o modelo anglo-saxão, apresentado como a
modernidade. Poder-se-ia escolher um caminho de reforma, que buscasse valores
modernos, sem que fosse imprescindível adotar o modelo inglês.
Nas palavras de José da Silva Lisboa:
28
Em outro capítulo discutiremos a relevância de se pensar numa outra tradição liberal, além da norte-
americana e inglesa, no caso a francesa, a partir do trabalho de Sidentop (1979).
116
número de cidadãos pelos assuntos públicos. As instituições comunais seriam a fonte
do espírito de liberdade. Para que o poder público não fosse um elemento estranho à
vida do cidadão era fundamental que as instituições comunais estivessem abertas a sua
participação. Sem esta dimensão comunal a nação torna-se, para o cidadão, uma
palavra vazia. O espírito municipal leva o cidadão a desenvolver um orgulho pela coisa
pública, como se esta fosse uma obra sua.
Os governos unitários e centralizados nunca conseguem obter esse sentimento
da parte do cidadão. A ação do poder central se faz presente pelos funcionários
nomeados que podem ser deslocados nacionalmente. A preservação da coisa pública
passa a ser uma tarefa deste funcionário, e não um dever cívico do cidadão.
Para Tocqueville, uma das benéficas conseqüências do modelo norte-americano
estava nos seus efeitos políticos. Neste modelo, o cidadão aprende a associar a busca do
seu interesse individual a uma ação pública, que requer a participação de outros
cidadãos. O cidadão é forçado a romper o isolamento e a apatia política e buscar a
cooperação de outros cidadãos. Nesta ação o cidadão descobre a importância da busca
do bem comum, a sua felicidade individual estaria associada à felicidade coletiva. O
seu interesse individual não seria estranho à produção de um bem público.
Na reflexão de Toqueville, o interesse bem compreendido somente pode ocorrer
se as instituições comunais estiverem abertas à participação do cidadão; sem este
espaço político a liberdade não possui raízes fortes e duradouras. Neste sentido,
Tocqueville analisava o federalismo norte-americano não apenas como uma
descentralização do poder entre a União e os estados, mas como uma disseminação do
poder até as comunas. O conceito de federalismo, para Tocqueville, é inseparável do
exercício do poder público a partir das instituições comunais. Somente neste sentido
podemos entender a frase do autor de que nos Estados Unidos o poder encontra-se
disseminado na sociedade 29 .
Na nossa interpretação, o Código do Processo foi um momento culminante das
idéias de federalismo no Brasil. O debate político sobre o Código do Processo revela
que em torno deste foram mobilizados temas como direitos civis, interesses, justiça e,
principalmente, o federalismo. Conforme pudemos observar, o Código do Processo foi
entendido como um ponto central do programa federalista. A eleição do juiz de paz e o
processo de escolha do júri, do juiz municipal e do promotor deveriam colocar o poder
próximo aos cidadãos ativos.
29
Ver Livro I, cap. III Do espírito comunal na Nova Inglaterra.
117
118
Capítulo 4
118
“Mas o americanismo como uma reforma política vinda de cima se
apresentava como uma contradição em seus próprios termos. A via
americana dependia de dois fatores elementares: terra e mercado de
trabalho livres. No entanto, os dois valores que queriam conservar a
unidade nacional e o controle social das classes subalternas, eram
sustentadas pelo iberismo a partir de instituições como o exclusivo
agrário e o trabalho escravo. A partir dos anos 40, o Império inicia o
silenciamento do Brasil profundo, abolindo as circunstâncias que, na
década anterior, permitiriam o encontro das elites locais com a massa
do povo sem direitos. O americanismo, depois do grande medo das
revoltas do período da Regência, abdica de qualquer intenção de
revolver o país profundo, constituindo-se numa ideologia especial de
liberalismo de Estado”. (Werneck Vianna, 1991:158)
119
instrumentos e objetivos, bastante diferente daquele que será levado a cabo pelos
centralizadores. A intenção dos federalistas com o Ato Adicional era conter os conflitos
armados que apareciam no país. Entretanto, para os federalistas, essa tarefa de
contenção deveria ser conduzida pelo Legislativo Provincial e não pelo poder central,
conforme os centralizadores pensavam – diferença significativa se pensamos no papel
do interesse provincial em cada corrente de pensamento.
1
Vejamos a crítica feita por Uruguai ao Ato Adicional. O conteúdo desta crítica
não foi alterado ao longo de toda a sua carreira política.
Numa sessão da Câmara dos Deputados, em agosto de 1838, na qual se discutia
a Lei de Interpretação do Ato Adicional, Uruguai apresentava a seguinte apreciação do
Ato Adicional:
1
Um histórico do Ato Adicional está no Capítulo 1, “A Vida de Uruguai”.
120
seus ordenados. Seriam empregos provinciais e municipais todos aqueles que existiam
nestes dois níveis, exceto os que diziam respeito à arrecadação e despesas gerais, à
guerra, correios, presidente de província, bispos, membros da relação e tribunais
superiores 2 . Este era o centro da crítica dos centralizadores ao Ato Adicional. Vamos
expor mais detidamente o Ato Adicional para que possamos compreender esta crítica.
O Ato respondia a uma demanda presente desde os debates da Constituinte. Já
observamos, no Capítulo 2, que frei Caneca demandava que os Conselhos Provinciais 3
fossem transformados em Assembléias Provinciais. E efetivamente, com o Ato
Adicional, tal transformação se deu. Ocorre que a maneira pela qual o Legislativo
Provincial era montado não seguia a idéia de que este deveria ser um mero reflexo da
sociedade.
O Legislativo Provincial era montado de maneira tal que os chefes políticos
municipais tivessem sua influência atenuada, ou mesmo anulada.
2
O ataque dos conservadores e de Uruguai será centrado neste parágrafo. A interpretação de Uruguai
recaiu sobre três pontos: 1) retirava das Assembléias Provinciais a atribuição de definir os encargos dos
agentes previstos no Código do Processo (juiz de paz, juiz de direito, órfãos); 2) os cargos criados por lei
geral e sob a guarda do Tesouro da União eram retirados da área de influência das Assembléias
Provinciais; e 3) distinguia-se a polícia administrativa da judiciária2 e passava esta última para o controle
do Ministro da Justiça.
3
O órgão legislativo provincial era denominado, na constituição de 1824, de Conselhos Gerais, de
maneira a não confundir o leitor com a Assembléia Geral. Irei utilizar a denominação comum na época
em chamá-lo de Conselho Provincial.
121
Na Constituição de 1824, os Conselhos Provinciais estavam encarregados de
elaborar projetos, os quais, para serem executados, deveriam ser aprovados pela
Assembléia Geral. Isto significava que até a criação de uma escola numa pequena
aldeia deveria ser aprovada pela Assembléia (ver Uruguai, 1960:369-370). A partir do
Ato Adicional, às Assembléias Provinciais era permitido legislar sobre diversos
assuntos. Para os federalistas, com o Ato Adicional finalmente as Assembléias
Provinciais poderiam legislar sobre os assuntos do seu interesse. Antes de observarmos
quais eram os assuntos que recaíam na esfera provincial, vamos observar com se dava a
aprovação destas.
As leis votadas pela Assembléia Provincial dependiam da aprovação do
presidente da província. Se a lei fosse aprovada, esta entrava imediatamente em vigor.
Caso o presidente vetasse a lei, o veto poderia ser derrubado por 2/3 dos deputados da
Assembléia Provincial. A lei, então, retornava para o presidente. Este poderia sancionar
ou não a lei, conforme as objeções dos deputados. Se o presidente se recusasse a
conceder a sanção, a lei subia para a Assembléia Geral para que esta emitisse a palavra
final 4 .
O presidente provincial não podia encaminhar projetos de lei à Assembléia
Provincial. No que diz respeito à elaboração de leis, o presidente provincial apenas
reagia à iniciativa do Legislativo Provincial. Este surgia como o principal canal de
produção de leis na esfera provincial.
Outra atribuição que reforçava o poder político da Assembléia Provincial era a
escolha do vice-presidente da província A Assembléia Provincial elegia seis deputados
que deveriam exercer o cargo; a lista subia para o Ministério, que designava a ordem
que deveria ser seguida. O cargo de vice-presidente era importante, pois
constantemente, o presidente de província era convocado para assumir sua cadeira no
Legislativo, em votações importantes e, nestes momentos de vacância, cabia ao vice-
presidente assumir as funções. O vice-presidente também ocupava a presidência
enquanto o Ministério não nomeava um novo presidente (ver Dolhnikoff, 2005:103).
Portanto, estamos perante uma Assembléia Legislativa provincial que dispunha
de poderes legislativos e que controlava o importante cargo de vice-presidente. Com o
Ato Adicional, a Assembléia Provincial recebeu importantes poderes que lhe permitiam
4
Ver Artigos. 14, 15, 16 e 19.
122
desempenhar um papel fundamental na elaboração de leis para a província. Vejamos
agora, os assuntos sobre os quais a Assembléia Provincial podia legislar.
A nossa análise sempre irá recortar os temas que foram objeto da polêmica entre
centralizadores e federalistas. Dentre os diversos assuntos que eram da competência da
Assembléia Provincial legislar, vamos destacar dois: o controle sobre o município e os
cargos do Judiciário.
A Assembléia Provincial poderia legislar sobre a divisão civil e judiciária da
província. Como diversos cargos na magistratura (juiz de paz, juiz de direito e juiz
municipal) eram nomeados para um distrito, a atribuição mencionada anteriormente
permitia que a Assembléia controlasse esses cargos; poderia criar um distrito
requerendo do poder central a nomeação dos funcionários para este, ou poderia fundir
dois distritos, disponibilizando os funcionários excedentes. O controle da Assembléia
Provincial sobre os cargos da magistratura se manifestava, principalmente, no parágrafo
7º.
De acordo com este, são empregos provinciais todos aqueles que existirem na
província, exceto aqueles que dizem respeito à arrecadação, igreja, guerra e tribunais
superiores. Ainda segundo este parágrafo, a Assembléia Provincial poderia criar,
suprimir e estabelecer os ordenados dos empregos provinciais.
É importante que chamemos a atenção do leitor para a conseqüência deste
parágrafo 7º. Segundo o Código do Processo, os cargos de juiz de paz, júri popular, juiz
municipal e promotor eram escolhidos no município. Os eleitores e a câmara dos
vereadores escolhiam seus membros. Com o Ato Adicional, estes cargos passavam a
serem controlados pela Assembléia Provincial. Esta poderia fundir, alterar ou suprimir
as atribuições destes cargos. E, como veremos, mais adiante, com o Ato Adicional as
Assembléias Provinciais esvaziariam as atribuições destes cargos eletivos em favor
principalmente do juiz de direito, agora sob o seu controle.
A Assembléia Provincial também teve seus poderes políticos reforçados em
outro aspecto, igualmente debatido pelos centralizadores. Segundo o Visconde de
Uruguai, a crítica dos federalistas sobre os mecanismos centralizadores, de que estes
teriam sufocado a vida política e administrativa dos municípios, era injusta. Uruguai
dizia tal esvaziamento teria começado com o Ato Adicional. Vejamos este ponto.
Segundo o Ato Adicional, a Assembléia Provincial poderia fixar as despesas
municipais, as contribuições do município para a província e estabelecer os impostos
que iriam incidir sobre o município.
123
Segundo Orlando Carvalho:
Em maio de 1831 iniciava-se o debate do que mais tarde viria ser conhecido
como o Ato Adicional. Os defensores da centralização retomam algumas das idéias
presentes no debate de 1823. Notemos inicialmente um trecho de Carneiro Cunha:
124
Essa idéia nos remete ao que foi discutido na Introdução desta tese. Conforme
observamos, segundo Hamilton, as partes que compunham a liga se encontravam
alternativamente em paz ou em guerra, dependendo da situação.
O segundo ponto que chama a nossa atenção é a referência à América espanhola.
A sugestão de Carneiro Cunha segue a mesma lógica presente no argumento de Silva
Lisboa, exposto no capítulo anterior, qual seja, o perigo da deflagração de conflitos
armados pelos antigos territórios do Império português. Contudo, na nossa
interpretação, manifesta-se um elemento importante: Carneiro Cunha não vislumbra a
possibilidade de que uma província mais forte possa introduzir a paz; as alianças iriam
se suceder sem que emergisse uma paz comum a todo o território.
O terceiro ponto que merece nosso destaque manifesta-se no início da
argumentação do parlamentar. Segundo Carneiro Cunha, na idéia de federação cada
província cuida das suas necessidades segundo o seu interesse; as localidades que
compõem a província determinam o conteúdo do interesse provincial. É fundamental
que o leitor perceba que, para Carneiro Cunha, o interesse provincial, na idéia de
federação, é construído a partir da dinâmica interna da província.
O argumento de Carneiro Cunha parte do princípio de que no federalismo as
províncias terão liberdade para cuidar dos seus “negócios particulares”. A liberdade de
vigiar seus assuntos particulares significava que estes seriam determinados segundo “a
conveniência das suas localidades”. Como conseqüência destes princípios, com a
ausência de “centro comum”, as províncias mais fortes iriam dominar as mais fracas,
estabelecendo-se um jogo de alianças entre as partes que resultaria na guerra civil. No
argumento centralizador, o pacto entre as unidades que compõem a União deve estar
organizado a partir de valores que neguem a dinâmica da competição entre as
províncias. Para os centralizadores, o “centro comum” deve agir movido por uma idéia
de nação formada por partes harmônicas.
Somente se tivermos clareza com relação a este ponto é que poderemos
compreender a idéia de federação no período e o debate político a seu respeito.
Conforme destacamos no capítulo anterior, para os federalistas a idéia do interesse
nacional era o resultado da soma dos interesses provinciais. Na idéia de federação, cada
província deveria dispor de liberdade para determinar seus fins e os meios necessários
para alcançá-los; afora a forma de governo monárquico-representativa e a defesa
externa, o restante cairia na órbita provincial. Para os federalistas, o equilíbrio entre as
125
partes emergiria da dinâmica destes interesses provinciais. Qualquer valor externo a
estes seria a manifestação de um arbítrio ilegítimo.
Como podemos observar no argumento de Carneiro Cunha, a idéia exposta
acima era um aspecto reconhecido tanto por centralizadores, como por federalistas. A
polêmica reside nas conseqüências que esta idéia acarretava para ambos.
Segundo Carneiro Cunha, do federalismo, e dos interesses provinciais auto-
referidos, iria emergir o predomínio das províncias mais fortes e a guerra civil. Neste
sentido, para os centralizadores, a construção do Estado-nação iria exigir que os atores
políticos transcendessem o interesse provincial, introduzissem valores que não estão
estavam presentes na esfera provincial. Sem que isto ocorresse, estes interesses
provinciais não chegariam a alcançar uma situação de paz entre as províncias. Para os
centralizadores, do egoísmo auto-referido das províncias emergiria a competição, e esta,
de maneira alguma, vem a ser uma baliza segura para a construção do Estado-nação.
Para Carneiro Cunha, a situação da América espanhola iria se repetir no Brasil,
as províncias mais fortes iram buscar controlar as menores. Estas, para fugir deste
domínio, fariam alianças com outras províncias. Como não existe um centro comum
(um poder central) com força para impor a paz, a conseqüência seria a eclosão de uma
guerra civil. Esta associação entre a fraqueza de um poder central e uma situação de
conflito entre as partes pode ser inferida do argumento de Hamilton. No contexto sul-
americano, o argumento de Carneiro Cunha dispunha de uma grande força, pois a
possibilidade de guerra não era um exemplo abstrato retirado da História, mas de uma
realidade próxima: a América espanhola.
É fundamental que percebamos um aspecto no argumento de Carneiro Cunha. O
conflito que se espalhava na América espanhola iria ganhar corpo por todo o continente
sul-americano sem que houvesse uma província com força suficiente para impor a paz.
Em nenhum momento Carneiro Cunha menciona a possibilidade de que uma das
províncias mais fortes possa dispor da força necessária para sustar a deflagração dos
conflitos. Podemos considerar que seu argumento projeta uma situação de uma série de
guerras intermináveis, sem que haja a previsão de paz no horizonte temporal.
Desloquemos a nossa atenção para outro aspecto, que na nossa tese ocupa o
lugar a partir do qual organizamos e analisamos o debate entre centralizadores e
federalistas, e que justifica nosso esforço. No conceito de federalismo, para federalistas
e centralizadores, a província deve dispor de liberdade para estabelecer seus fins e
meios necessários para a realização dos seus objetivos. O estabelecimento destes fins e
126
meios será melhor realizado quanto mais for feito por cidadãos que tenham interesse
pelos assuntos provinciais. Da mesma maneira que um indivíduo tem interesse pelos
assuntos da sua casa, os cidadãos provinciais vão velar pelos negócios públicos. Outro
aspecto que temos assinalado, desde o Capítulo 2, remete à passagem citada: os
interesses provinciais são forjados dentro da própria província sem que tenham como
referência fins externos à sua realidade. Neste sentido, assinalemos que Carneiro Cunha
estabelece que as grandes províncias irão desejar dominar as pequenas segundo “as
conveniências das suas localidades”. O interesse provincial é formado pela soma dos
interesses das suas localidades aos quais estão referidas as suas necessidades, sem
nenhuma alusão às necessidades de outras regiões do país. O interesse provincial é
formado tendo por referência a sua realidade.
A polêmica entre federalistas e centralizadores acerca da idéia de federação
começa a partir das possíveis conseqüências destes traços.
Para os centralizadores, a ausência de um poder central abre a possibilidade de
que as províncias mais fortes controlem as mais fracas. A análise sobre essa
preocupação ganha toda a sua dimensão histórico-política quando observamos uma
outra dimensão da idéia de federação, qual seja, a rivalidade entre as províncias. Para a
corrente federalista, a rivalidade entre as províncias revela-se como um aspecto
positivo. Neste sentido, queremos assinalar que a partir do debate entre federalistas e
centralizadores podemos compreender a maneira pela qual estas correntes entendem à
formação do interesse nacional. Os centralizadores rejeitam a noção de que o interesse
da nação seja formado a partir do conflito entre os interesses provinciais; da soma
aleatória dos interesses provinciais buscando se afirmar emerge o conflito. Na nossa
interpretação, os centralizadores recuam e temem a idéia de que o Estado-nação seja o
resultado do conflito de interesses provinciais, centrados na sua dinâmica local e
provincial. A construção do Estado-nação requer, para os centralizadores, que este não
seja o resultado de um conflito, mas de uma ação intencional levada a cabo por um
centro comum.
Acreditamos que a partir desta perspectiva possamos analisar e compreender
historicamente a idéia de um centro comum presente no argumento centralizador. À
ênfase dos federalistas na idéia de um interesse geral formados pelas rivalidades entre
os interesses provinciais, os centralizadores respondem com a idéia de um centro
comum situado longe destes interesses. Para os centralizadores, o centro comum deve,
necessariamente, girar em torno de outros valores que não sejam os interesses
127
provinciais. O centro comum deve dispor de atribuições que permitam a ele agir sem
depender destes interesses provinciais que, como vimos, são formados pela soma das
necessidades locais auto-referidas. Se, para os federalistas, o poder da União não deve
dispor de atribuições que alterem a dinâmica dos interesses provinciais, porque são estas
que forjam, numa rivalidade saudável, o interesse nacional, para os centralizadores, o
poder central deve estar armado de poderes que permitam que sua ação prescinda da
anuência do interesse provincial, que sua ação vele por aquele valor que transcende a
província, isto é, a nação.
Para que o poder central possa velar pelo interesse nacional, suas atribuições não
podem ser fracas ou nulas. Para os centralizadores, o poder central deve dispor de meios
capazes de agir nas províncias, uma vez que o interesse da nação não emerge como uma
soma de interesses provinciais voltados para as suas necessidades, mas de uma ação
intencional do poder central. Este tema, já assinalado nos Capítulos 1 e 2, retorna no
debate acerca dos impostos.
Na sessão de 3 de julho de 1834 estava em discussão a seguinte proposta: as
Assembléias Provinciais ficavam encarregadas de todos os impostos, cabendo repassar
um percentual à nação, como maneira de sustentar a União. Para realizar tal
contribuição, as províncias teriam ampla liberdade na criação de impostos; o poder
central não poderia coibir a criação de impostos pela província, já que esta tinha para
com a nação apenas a obrigação de contribuir com um percentual fixo para as suas
despesas. Observemos a objeção formulada pelo deputado Rezende 5 :
5
Venâncio Henriques de Rezende, padre, eleito por Pernambuco.
128
também concordam em caracterizar os interesses provinciais desta maneira. O conflito
nasce quando os centralizadores não concordam em definir o interesse da nação como a
soma destes interesses provinciais. Isto porque, para os centralizadores, dos interesses
provinciais livremente organizados nasce “o ciúme e a rivalidade”, utilizando as
palavras de Henriques de Rezende.
O argumento centralizador está orientado por valores distantes daqueles
existentes na corrente federalista. Lembremos ao leitor a idéia exposta nos Capítulos 2 e
3: para os federalistas, as províncias são como indivíduos que prosperam quanto mais
são movidos pelos seus interesses egoístas.
Na nossa hipótese, esse aspecto emerge como central. Para nós, não se trata de
considerar que não existam interesses regionais no pensamento centralizador, ou que os
centralizadores não reconhecessem estes interesses como válidos, mas que para esta
corrente os interesses provinciais devessem ser controlados a partir de uma dinâmica
que não está dada na província. Neste sentido, torna-se fundamental que o poder central
disponha de poderes capazes de frear o interesse provincial. Na nossa interpretação, por
esta via o argumento centralizador será sempre propício a considerar a ação do poder
central como eminentemente civilizatória, pois tratava-se de domar os interesses auto-
referidos, movidos pelo egoísmo da busca desenfreada do progresso material (ver
Werneck Vianna e Carvalho, M. A., 2002 e 2004; e Carvalho, 1993 e 2002). Da mesma
maneira, na nossa interpretação, está firmemente presente no pensamento centralizador
a idéia da nação como uma comunidade harmônica, e não uma comunidade formada por
indivíduos que estão em permanente competição dentro de limites pacíficos (ver
Werneck Vianna e Carvalho, M.A., 2002 e 2004). O tema da comunidade nos leva a um
ponto que somente poderá ser plenamente desenvolvido ao final da tese, mas que neste
momento devemos abordar: a centralização pressupõe a idéia de uma comunidade
harmônica regida por um Estado.
129
nova, o que é contrário ao que diz o artigo 1º da Constituição, de
que o império do Brasil é a associação política dos cidadãos
brasileiros, e não a associação das províncias”. (Cairu, sessão do
Senado de 30 de julho de 1832 apud Dolhnikoff, 2005:95)
6
Este debate estava relacionado à emenda Miranda Cardoso, que foi a origem do Ato Adicional. Sobre
um histórico dos eventos políticos relacionados, veja-se o Capítulo I da presente tese.
7
Na constituinte de 1823 o debate acerca da definição de cidadãos brasileiros envolveu o tema dos
escravos nascidos no Brasil e dos libertos. Como bem observou Grinberg (2002): “Se a grande maioria
(dos constituintes) concordava que escravos africanos não deveriam ter direitos de cidadania brasileira,
posto que não tinham nascido no Brasil – poucos levavam em consideração o fato de que não tinham
vindo da África por livre e espontânea vontade – teoricamente não era fácil argumentar a favor da
exclusão da cidadania a escravos brasileiros, já que ninguém ousava dizer que não eram indivíduos, e não
havia invalidar o nascimento em território brasileiro. Segundo este raciocínio, seria quase impossível
negar direitos cidadania a libertos, principalmente aos brasileiros, como ficou claro a partir do parágrafo 6
do mesmo artigo, que definia que ‘os escravos que obtiveram carta de alforria’ poderiam ser cidadãos”
(Grinberg, 2002:111). “Quando falavam em extensão da cidadania para libertos – e nisso todos
concordavam – os representantes da Assembléia Constituinte referiam-se a direitos civis, nunca a direitos
políticos, aqueles que, para eles, tornariam possível a intervenção efetiva nos destinos do Império. E isto
acontecia mesmo quando estavam decididamente do lado dos libertos, como Silva Lisboa, que dizia:
‘Para que se farão distinções arbitrárias dos libertos, pelo lugar de nascimento e pelo préstimo e ofício ?
Uma vez que adquiram a qualidade de cidadão brasileiro é, sim, ter uma denominação honorífica, mas
que só dá direito cívicos e não direitos políticos’” (ibidem:112).
130
Visto este ponto, podemos ressaltar um segundo aspecto presente no trecho
citado: para Cairu, existiria uma oposição entre o Império considerado como uma
associação de cidadãos versus o Império considerado como uma associação das
províncias.
Conforme pudemos observar no Capítulo 2, para a corrente federalista, em 1823,
com a dissolução do Império português, a soberania retornou para as províncias. Estas
livremente deliberaram realizar uma Constituição na qual sua autonomia ficasse
assegurada. A forma de governo, para os federalistas, não era o ponto central. A
monarquia poderia ser a forma de governo adotada, desde que a autonomia provincial
fosse preservada.
O argumento centralizador – e lembremos que Cairu foi constituinte em 1823 –
compreendia o processo de independência de maneira distinta. Para os centralizadores,
o caminho tomado pelo Brasil foi diametralmente oposto daquele seguido pelos Estados
Unidos. Na América portuguesa, o rompimento com a metrópole não gerou uma
situação na qual a soberania retornasse às províncias. Nas palavras de Vergueiro:
131
Imperador? Em outras palavras, a existência prévia de um centro comum foi quem deu
forma e conteúdo a esta associação, ou foram os cidadãos brasileiros quem escolheram
o Imperador?
Acreditamos que, no argumento centralizador, os dois pontos estão presentes. Na
constituinte de 1823, Antonio Carlos dizia o seguinte: “A nação, Sr. Presidente, elegeu
um imperador, deu-lhe o poder executivo e o declarou chefe hereditário; nisto não
podemos bulir” (Sessão de 6 de maio de 1823, p. 52). O termo “nação” está se referindo
aos habitantes de um país dotado de leis e uma língua em comum. Na nossa
compreensão, para Antonio Carlos a escolha do Imperador teria sido feita pelos
cidadãos ativos, e não pela totalidade dos cidadãos brasileiros. Certamente, para
Antonio Carlos o processo político que culminou no Dia do Fico (1822) foi o sinal de
que a nação teria optado pelo Imperador. A intensa mobilização da sociedade pode ser
notada na grande quantidade de Câmaras Municipais, principalmente das províncias do
Rio, Minas e São Paulo, que enviaram apoio ao Príncipe Regente. Neste sentido, a
Constituinte, quando começa seus trabalhos, deve se adequar a este fato anterior.
Ao mesmo tempo em que a nação escolheu o Imperador, este impediu que o
conjunto de cidadãos dispersos fosse tragado pelo ciúme e pelas rivalidades que iriam
surgir com a sua ausência. Para os centralizadores, o perigo sempre latente no Império
era a reprodução dos conflitos que apareciam na América hispânica.
Como bem observou o Ilmar Rohlof de Mattos, a análise do pensamento político
da elite nos revela que o Império era constituído por três mundos distintos: o mundo do
trabalho, o mundo do governo e o mundo da desordem (Mattos, 1994:cap. II). Ainda
segundo este autor, as imagens produzidas por esta elite para descrever esta sociedade
apresentam-na como tendendo à desagregação e à anomia. Neste sentido, tornava-se
urgente a adoção de medidas que objetivassem a coesão da ordem e do território
(ibidem:120).
Na nossa interpretação, o pensamento centralizador encontrou-se perante duas
tarefas: controlar e derrotar a irrupção dos sertões, com sua massa de homens pobres
livres e, ocasionalmente, escravos, e dominar a dinâmica desagregadora dos interesses
provinciais. Se o Império seria uma associação de cidadãos brasileiros, unidos por leis e
língua em comum, esta associação não poderia ser corroída por indivíduos que
pleiteassem direitos para os quais não estavam capacitados, nem por interesses
provinciais egoístas. Na reflexão centralizadora, na medida em que a unidade nacional
não nasce da sociedade, a sua construção é uma tarefa que exige uma política que
132
transcenda os interesses societais 8 . A idéia de interesse provincial, no argumento
centralizador, remete a um movimento exclusivamente autocentrado, ligado a fins e
meios que dizem respeito exclusivamente ao agende. Tal definição não distorce a
definição de interesse e da compreensão dos federalistas da província como um
indivíduo/casa. A polêmica política se inicia a partir das conseqüências que este
interesse acarreta no plano da ação. Para os centralizadores, o interesse provincial
introduz uma competição entre as províncias que põe em risco a paz interna. O interesse
de uma província mais civilizada não possui elementos em comum com o interesse de
uma província menos civilizada. Para os centralizadores, a construção de uma
associação de cidadãos pressupõe um poder capaz de impor a lei e a harmonia.
Como muito apropriadamente observou José Murilo de Carvalho, esta visão
comunitária, fundada na harmonia entre as partes constitutivas da nação, apresenta uma
conta alta no plano da participação política. O cidadão deve conter sua participação em
prol de uma unidade nacional, que, caso contrário, sofre o risco de se romper (ver
Carvalho, 1995:39 e 1988b).
Vejamos agora como os federalistas entendem o interesse provincial. Na
definição de federação vamos observar as mudanças que foram operadas: a percepção
da inovação trazida pelo caso norte-americano e suas conseqüências e o tema do
interesse provincial nos debates políticos em torno do Ato Adicional.
4.4 – 1834: a federação não é formada por estados independentes. A inovação produzida
pela Convenção de 1787
8
“Somos uma federação porque fomos uma unidade construída no plano do pensamento e imposta pela
política” (Werneck Vianna, 2006:81).
133
código para os diversos estados da União; eles vão se
aproximando à centralização quanto é possível”. (Paula Araújo,
Sessão da Câmara dos Deputados de 25 de junho de 1834, p. 173)
134
uniformizar as leis, reforçando os laços comuns entre as partes. Nos Estados Unidos,
federalistas eram aqueles que defendiam uma soma maior de poderes para o poder
central. Fato novo, se pensarmos que na idéia de confederação o poder central não
dispunha de atribuições para agir diretamente sobre os cidadãos.
Afinal, o que estava ocorrendo nos Estados Unidos?
Para responder definitivamente a essa questão, vejamos um trecho de Bernardo
Pereira de Vasconcelos:
135
Os Artigos da Confederação não forneciam esses meios para o governo central.
Retomemos a análise de Vasconcelos.
No caso citado por ele, o governo da União não tinha poderes para exigir que a
província arcasse com a parte da despesa que lhe era devida. Em linhas gerais, o poder
central, para agir, necessitava da concordância das províncias. Segundo Vasconcelos, a
convenção de 1787 assinalou uma ruptura com esse modelo. A partir de então, o poder
central iria dispor de poderes que lhe permitiriam agir diretamente sobre os cidadãos
sem necessitar da anuência das províncias. Estas deixavam de ser entidades soberanas
para serem partes de um todo, do qual o poder central era o porta-voz.
Portanto, na nossa análise do debate político brasileiro, podemos assinalar que a
partir de 1834 ficava claro para a elite política imperial que nos Estados Unidos havia
ocorrido um movimento que visava a permitir ao poder central agir diretamente sobre os
cidadãos sem lidar com as províncias como se estas fossem estados independentes.
Neste sentido, o conceito de federação ficava limpo dos elementos confederativos. O
problema, sempre espinhoso, de que as reformas deveriam retornar às províncias para
sua aprovação ou recusa, se não desaparecia de todo, ficava em segundo plano; já não
aparecia como um traço necessário do conceito de federação. Com isto, as correntes
federalistas passavam a centrar a sua argumentação na defesa dos interesses provinciais.
9
Ver Sessão da Câmara dos Deputados de 17 de maio de 1831, p. 47.
136
províncias” eram distintos dos interesses “gerais do Império” (ibidem:47). Quando
Alves Branco foi confrontado com a acusação de que esta doutrina implicava o
federalismo, sua resposta foi a de declarar que ignorava tal fato, apenas procurava
seguir a Constituição (ibidem:48).
A suposição, por parte dos centralizadores, de que a defesa de Alves Branco
envolvia a idéia de federação faz todo sentido. Afinal, conforme estamos observando, a
idéia de que a província deveria dispor de meios para cuidar dos seus interesses
provinciais e de que estes diziam respeito exclusivamente à província está diretamente
associada ao argumento federalista.
Na nossa interpretação, é importante assinalar que, em 1831, ainda não estava
claro no debate político brasileiro a idéia de federação como distinta da idéia de
confederação. No conceito de federação ainda estava presente a idéia de que os estados
eram independentes. Alves Branco recusava a denominação de federalismo em razão
desta característica; entretanto, na sua reflexão, o tema dos “interesses particulares da
província” desempenhava um papel fundamental. As províncias possuíam interesses em
determinados assuntos dos quais somente elas poderiam cuidar.
Conforme assinalamos nos capítulos anteriores, a idéia de interesse implicava
velar com zelo por algo. Aqueles que residem na província teriam um interesse maior
em que os assuntos provinciais se desenvolvessem, pois isto lhes dizia respeito
diretamente. Para o argumento federalista, os legisladores provinciais teriam um zelo
maior nos assuntos provinciais do que funcionários ou deputados gerais; estes estariam
movidos por interesses estranhos à dinâmica provincial.
Em 1832, Evaristo da Veiga trazia à tona o tema dos interesses provinciais:
“Deixemos que as províncias falem por si mesmas. Não estão invadidas pela barbárie e
devem conhecer seus próprios interesses muito melhor que os teóricos da Corte” (apud
Flory, 1986:43). Podemos perceber que a idéia dos interesses provinciais emergia com
um conjunto de assuntos distintos dos interesses gerais. Os interesses provinciais
requeriam uma preocupação que somente aqueles que olham exclusivamente a
dinâmica provincial possuem.
Se, para Alves Branco, o atributo de federalista causava embaraços, tal fato não
importava para Lino Coutinho:
137
oprimido. Todos querem que as suas províncias tenham certos
meios administrativos, certa governança que tenda a promover o
bem particular da província, no que vai igualmente
compreendido o bem geral do império”. (Lino Coutinho, Sessão da
Câmara dos Deputados, sessão de 17 de maio de 1831, p.48)
138
lentamente abandonam este aspecto e concentram seus argumentos apenas na defesa
dos interesses provinciais. O fato que merece nossa atenção é que a defesa da idéia de
federação começava a ser feita sem a referência às províncias como estados
independentes. A idéia de Vergueiro, exposta em 1823, de que o mal da idéia de
federalismo residia no fato de que no Brasil as províncias não deveriam ser
consideradas como estados independentes, ganhava força. Este componente era limado
e as correntes federalistas vão se fixar no que é realmente essencial: o interesse
provincial; a defesa de que a província possa determinar os fins da sua ação e os meios
para atingir tal fim; a ênfase em que apenas a província movida pelo interesse pode
determinar quais são estes fins e os meios necessários. A ação do poder central movida
por valores distintos daqueles presentes na esfera provincial seria um obstáculo à
realização dos interesses provinciais.
Esse movimento da corrente federalista é percebido pelos centralizadores.
Vejamos Calmon:
10
Nesta mesma sessão Calmon deplorava a imperfeição do poder central norte-americano no que diz
respeito à administração geral, a sua incapacidade em obrigar os estados-membros a adotarem certas
medidas recomendadas pelo governo. Ver Sessão de 3 de setembro de 1832, p. 235.
139
nacionais devem ser submetidas ao seu crivo. A questão, agora, passa a ser ampliar a
margem de ação das províncias para que estas possam determinar os meios e os fins do
seu interesse.
Em 4 de julho de 1834, Souza Martins realizava um importante discurso na
Câmara dos Deputados.
140
Na nossa interpretação, trata-se de assinalar a presença da idéia de que existem
“interesses particulares da província” – conforme a expressão de Alves Branco. Para a
gestão adequada destes interesses provinciais, somente o Poder Legislativo provincial é
o meio mais adequado. O poder central, neste caso, está distante destes interesses, não
possui o mesmo zelo que a Assembléia Provincial. Conforme observamos no Capítulo
3, para os federalistas o funcionário nomeado pelo poder central é movido por
interesses distintos daqueles presentes na localidade.
O argumento do deputado Souza Martins apontava nesta direção: a Assembléia
Provincial é um poder interessado exclusivamente no progresso da província; seu
móvel não é a nação, o todo, mas os interesses particulares da província.
Estes interesses particulares da província podem contribuir para o
desenvolvimento da nação. Vejamos como este ponto emerge no debate político acerca
do Ato Adicional. Na sessão de 26 de junho de 1834 estava em discussão a emenda que
permitia às Assembléias Provinciais fixarem o número de seus deputados.
141
Evaristo da Veiga, um defensor do Ato Adicional, discute o grau de liberdade
que será dado às províncias tendo em vista que a “rivalidade, este desejo de primarem
umas sobre as outras, sendo razoável, pode vir a ser um princípio de progresso”. Na
idéia de federalismo está presente uma atribuição de valor positivo para a rivalidade
provincial, a perspectiva de que a competição motiva as províncias a buscarem um
desenvolvimento maior. Cada província irá buscar se afirmar sobre a outra, dispor de
bens que a outra não dispõe, incitando, dessa maneira, nas demais, o desejo de
superarem o patamar alcançado pela mais desenvolvida.
Observemos que no conceito de federação estava presente a idéia de um
desenvolvimento desigual entre as províncias, e que tal conseqüência era inevitável. O
mal de um desenvolvimento desigual era preço a ser pago por um bem maior, qual seja,
o progresso advindo da competição. Na nossa visão, este aspecto, já presente no trecho
analisado, pode ser reforçado a partir da passagem abaixo.
142
Gostaríamos de chamar a atenção do leitor para transposição para o nível
provincial da dimensão do indivíduo e do seu interesse. Retomamos a nossa linha
interpretativa formulada no Capítulo 2. Neste, assinalamos afinidade entre o conceito
de interesse individual 11 e o conceito de federalismo. Buscamos enfatizar que para os
federalistas, o Legislativo Provincial e os funcionários escolhidos na localidade
velariam pela província como um indivíduo cuida da sua casa. O indivíduo estaria
movido pelo busca de bens que lhe pertenceriam exclusivamente. Tal sentimento
provocaria conflitos e disputas com outros, mas apenas superficialmente tais eventos
seriam nocivos, pois a livre circulação destes bens restabeleceria a paz, além do que
essa disputa levaria o indivíduo ao constante aperfeiçoamento. Os efeitos nocivos que
por ventura surgissem, seria o preço pequeno frente ao progresso decorrente da
competição.
No argumento de Lino Coutinho transparece com clareza e ênfase neste aspecto,
presente no conceito de federalismo: a competição obrigaria as províncias ao progresso,
tal como na esfera do mercado alguns cidadãos (províncias) ficariam mais ricos e
outros mais pobres, porém o resultado final seria um progresso maior. Gostaríamos de
chamar a atenção do leitor para o fato de que, no argumento de Lino Coutinho, o bem
geral, ou a justiça, que ao final iria se estabelecer entre as províncias, seria fruto de uma
ação de um agente (a província) voltada à consecução dos seus objetivos egoístas. Em
nenhum momento Lino Coutinho remete à busca da realização dos interesses
provinciais, a alguma referência externa à província.
O argumento federalista recorre com freqüência à idéia de que a província deve
ser vista como o indivíduo. Enfatizamos, anteriormente, a idéia de que a província
estaria como o indivíduo, quando da montagem do pacto social. Observemos a mesma
idéia, a província como o indivíduo, mas em outro momento.
11
Para uma antologia esclarecedora do conceito de interesse, veja-se Ornaghi (1984). Nesta, o
organizador apresenta uma coletânea de trechos de diversos autores acerca deste conceito. Para esta tese
nos concentramos nos autores do século XIX e na Introdução do autor. Sobre o conceito de interesse,
veja-se, também, Eisenberg (2003, cap. II).
143
e tal imposto; porque ele pode ser muito bom em uma província e
não em outra; e ninguém melhor que as mesmas assembléias pode
conhecer disto”. (Cornélio França, Sessão da Câmara dos Deputados
de 2 de julho de 1834, p. 15)
12
Eleito por Minas Gerais e Magistrado.
144
Portanto, podemos considerar os seguintes aspectos do conceito de federalismo
presentes no debate político brasileiro realizado no início da década de 1830. O conceito
de federalismo passa a ser pensado sem referência à idéia de que a província seria um
estado soberano. Em outras palavras, o aspecto confederativo é afastado. No
pensamento político brasileiro ocorreu, entre 1831-1834, a percepção de que a
experiência norte-americana havia trazido uma dimensão nova ao conceito de
federalismo. Para federalistas e centralizadores, a idéia de federação não estava mais
associada à confederação ou liga, mas à defesa dos interesses provinciais. Os defensores
da idéia de federalismo argumentavam que o interesse provincial tinha como referência
a sua dinâmica interna, os interesses das suas localidades. Segundo estes, cada província
deveria buscar realizar este interesse, sendo o interesse nacional a soma destes. Na
nossa interpretação emerge, neste momento, um tema central no debate entre
federalistas e centralizadores, qual seja, a rivalidade provincial. Para os federalistas, a
idéia de rivalidade envolve uma dimensão positiva: as províncias, movidas pela
competição, vão buscar suplantar uma às outras produzindo um desenvolvimento para
toda a nação. Esta idéia produz nos centralizadores um movimento contrário. Para estes,
a competição entre as províncias não se constituiria numa base segura para a construção
do Estado-nação. O tema da rivalidade provincial força os federalistas a reconhecerem
que desta competição emerge uma situação semelhante àquela existente na sociedade:
alguns indivíduos são bem-sucedidos, enquanto outros não obtêm o mesmo
desempenho. O pensamento federalista recorre, de novo, à idéia de colocar a província
como o indivíduo em busca da realização dos seus interesses.
O pensamento federalista brasileiro, tendo abandonado os aspectos relacionados
à idéia de confederação, passa a centrar seu argumento no tema do interesse provincial.
O argumento federalista empreende um esforço em favor do Legislativo Provincial. Este
órgão deveria ganhar atribuições que o pusessem como o centro político da vida
provincial. Para os federalistas, o Legislativo Provincial deveria ser a expressão dos
interesses provinciais. Esse movimento dentro do argumento federalista implicou uma
redefinição fundamental. Conforme observamos no Código do Processo, a idéia de
descentralização implicava colocar o poder acessível ao cidadão ativo na sua esfera
mais próxima, qual seja, o município. Na idéia presente no Código estava presente a
relevância de que as funções eleitas ou escolhidas a partir dos cidadãos ativos do
município fossem centrais no aparelho do Judiciário. A partir do Ato Adicional essa
idéia é criticada em favor da precedência do legislativo provincial e o Código do
145
Processo deveria ser reformado, podando a sua excessiva descentralização do poder.
Vejamos este ponto no item a seguir.
13
O primeiro relatório de ministro da justiça (1833) já contém críticas ao Código do Processo. Entretanto
como seu autor, Aureliano Coutinho, não se alinhou com os liberais contra o regresso conservador
iniciado em 1837, não incluímos suas críticas.
14
O relatório de ministro da Justiça versava sobre os eventos do ano anterior ao qual ele foi publicado. Os
eventos narrados no relatório de Alves Branco dizem respeito ao ano de 1834, mas o relatório foi
publicado em 1835.
146
“A formação da culpa ficou pertencendo exclusivamente aos juizes
de paz, e o julgamento de quase todas as causas aos jurados [...]. A
instituição dos juízes de paz mereceu ao princípio os maiores
aplausos e elogios; depois a veio a época da sua decadência, em
parte, porque se lhes acumularam sucessivamente obrigações
superiores às suas forças [...]. Senhores, a formação da culpa está
encarregada aos juizes de paz sem conhecimentos profissionais, sem
a prática indispensável dos negócios forenses: entretanto a formação
da culpa é a base essencial do processo criminal”. (Limpo de Abreu,
Relatório de ministro da Justiça de 1836, pp. 30-31)
15
Ver Relatório de 1836, pp. 20-38.
147
destas reformas era o de fazer recuar “esses pequenos Chefes de discolos sediciosos” 16 .
A linguagem destes atores políticos favoráveis às idéias de descentralização é muito
próxima daquela que Oliveira Vianna utilizará, mais tarde, para descrever os caudilhos
que emergem no período regencial: controlar os chefes dos clãs parentais, fazê-los
recuar para dentro da grande propriedade. A diferença é que para Alves Branco e
Limpo de Abreu esta tarefa poderia ser realizada dentro dos marcos de uma política
descentralizadora.
Vejamos duas importantes propostas contidas neste relatório, para a reforma do
juiz de paz.
Em primeiro lugar, Limpo de Abreu propunha que o governo deveria nomear
magistrados formados que iriam exercer cumulativamente, com o juiz de paz, a
jurisdição criminal 17 . Observemos que, a partir do Ato Adicional, a maior parte das
Assembléias Provinciais interpretou que os magistrados eram funcionários provinciais
e, portanto, estavam sujeitos ao seu controle. Neste sentido, o poder central poderia
nomear um magistrado, mas a Assembléia Provincial dispunha de importantes poderes
sobre este, conforme veremos mais adiante. A proposta de Limpo de Abreu implicava
que os poderes que pelo Código do Processo eram exclusivamente controlados pelo juiz
de paz passariam a ser compartilhados com um magistrado com diploma e escolhido
unicamente pelo Estado. O controle sobre esse magistrado seria realizado pelo
Legislativo Provincial e pelo poder central.
Em segundo lugar, Limpo de Abreu escrevia: “[que] Em cada freguezia haja um
só Juiz de Paz eleito pela maneira e tempo, que determina o Código do Processo” 18 . A
proposta de Limpo de Abreu é sutil, mas atinge um ponto importante: restringe o
número de juízes de paz. Pelo Código do Processo, em cada distrito de paz existiria um
juiz de paz; os distritos eram marcados pela Câmara Municipal e deveriam ter no
mínimo 65 casas (artigos 1, 2 e 4). A constituição de uma freguesia 19 exigia um número
16
Ver Relatório do Ministro da Justiça de 1835, p. 32.
17
Ver Relatório de 1836, pp. 33-34.
18
Idem, p. 34.
19
No Brasil colônia, as autoridades portuguesas estabeleceram três tipos de freguesia: a freguesia urbana,
que possuía densidade populacional superior a 500 h/km quadrados, ou que integrassem um lugar com
uma população residente superior a 5.000 habitantes; as freguesias semi-urbanas, que possuíam a
densidade populacional superior a 100h/km quadrados e inferior a 500 h/km quadrados, ou que
integrassem um lugar com população residente superior ou igual a 2.000 habitantes e inferior a 5.000
habitantes e, por último, as freguesias rurais, que seriam as restantes. Durante o Brasil Império o termo é
utilizado nas ordenações eleitorais para a Constituinte de 1823 e, posteriormente, sem que tenha sido
possível perceber alguma modificação no seu uso. Sou grato ao historiador Antonio Marcelo Jackson por
esta informação.
148
maior de eleitores do que aqueles existentes no distrito de paz. Na medida em que a
freguesia era uma divisão que reunia diversos distritos de paz, a proposta de Limpo de
Abreu implicava uma redução do número de juízes de paz eleitos. Neste sentido, sua
proposta, ao diminuir o número de juízes de paz, permitia um controle maior do
governo.
A iniciativa de rever a descentralização do poder presente no Código do
Processo não ficou restrita ao juiz de paz, mas atingiu também o júri. Vejamos, agora,
outro mecanismo da engrenagem do Código do Processo que foi abordado, qual seja, o
júri. Segundo Alves Branco:
149
daquela proposta pelos centralizadores: é o poder central que educa os cidadãos para a
liberdade 20 .
Porém, conforme observaremos mais adiante, Alves Branco não está
defendendo que o exercício deste direito se dê indistintamente, mas que esteja restrito a
certas regiões com determinadas características sociais. O valor presente no Código do
Processo, de que a descentralização do poder iria lentamente educando os cidadãos
ativos, agora sofre uma importante inflexão. Para que o exercício deste direito esteja de
acordo com a Justiça, torna-se necessário restringi-lo. Para os federalistas, caberia ao
Legislativo Provincial decidir sobre o grau de restrição a ser adotado.
Retomemos a análise do trecho. Ao final, Alves Branco mencionava que, ao
lado das vantagens que o exercício deste direito traz, acumulam-se inconvenientes que
contribuem para a desmoralização da Justiça. Nos termos do debate entre federalistas e
centralizadores, o trecho final de Alves Branco pode ser lido da seguinte maneira: a
descentralização de poderes do Estado para a sociedade precisa ser alterada. A idéia de
que o poder central não deva concentrar em suas mãos o “direito de punir” continua
sendo um valor importante, mas trata-se de dosar sua disseminação pela sociedade.
O pensamento federalista não ignorava os problemas decorrentes da aplicação
das suas idéias. No que diz respeito ao júri como resolvê-los?
Antes de nos determos na análise do conteúdo das duas passagens, façamos uma
observação de natureza contextual. Uma das críticas mais costumeiras ao júri era a
seguinte: como este era formado por particulares, sua disponibilidade em ficar reunido
vários dias era pequena. Outro problema para reuniões mais longas era a inexistência de
locais públicos para a acomodação do júri. Desse modo, as sessões eram feitas
20
“Uruguai achava que o Estado poderia exercer o papel de pedagogo da liberdade, de educador do povo
para o autogoverno, de instrumento de civilização” (Carvalho, 1993:71).
150
espaçadamente e de maneira rápida. A solução de Alves Branco não residia na
supressão do júri ou no seu esvaziamento, mas em manter o que o Código previa
apenas nas capitais e maiores cidades. Nestes locais, vistos pelo ministro como os mais
civilizados, o júri teria o funcionamento tal qual o Código previa.
Desloquemos nossa atenção para uma análise dos dois trechos. Podemos
observar em ambos a presença da idéia de que a para a execução do júri conforme
previsto no Código do Processo seria necessária a existência de certa população. Na
nossa análise, a presença desta idéia é extremamente importante. Podemos destacar dois
pontos: em primeiro lugar, a idéia de que o júri de acusação somente deveria funcionar
na Corte, nas capitais e em algumas cidades mais populosas deslocava este mecanismo
da fábrica social do país. Conforme já foi observado em diversas passagens nesta tese, a
primeira onda de revoltas deu-se nos centros urbanos envolvendo tropa e povo,
enquanto a segunda ocorreu nas regiões rurais envolvendo fazendeiros, povo e, em
algumas ocasiões, escravos. A segunda onda de revoltas representou uma ameaça muito
mais séria à unidade nacional e à grande propriedade agrária.
Retomemos a idéia exposta por Evaristo da Veiga, analisada no Capítulo 3: na
eleição de juiz de paz, o cidadão que dispõe de propriedade, de vínculos estáveis para
com a sociedade, percebe a importância da eleição deste juiz. Em oposição a este
cidadão estavam os indivíduos sem propriedade, sem vínculos estáveis para com o
trabalho, aqueles que João Francisco Lisboa chamava de patuléia.
Alves Branco e Limpo de Abreu pretendiam controlar a aplicação do júri de
acusação. Para ambos, não havia nada de errado no mecanismo do júri presente no
Código do Processo, isto é, transferir ao cidadão ativo o exercício do direito de julgar.
Entretanto, a sua disseminação pelo mundo rural pôs em movimento chefes políticos e
seus clãs, uma massa de homens que antes vivia à margem do Estado 21 .
Chamemos a atenção do leitor para outro elemento extremamente importante
para a uma compreensão plena do argumento de ambos: a aplicação do júri somente se
daria em cidades populosas.
No pensamento da época, a presença de uma população expressiva remetia a
idéia de um nível maior de civilização. Nos discursos e relatórios de ministros era
constantemente mencionado que a dificuldade da ação do Estado devia-se à dispersão
da população por um grande território. Por outro lado, para o pensamento político da
21
A análise do funcionamento do júri e seu aspecto mobilizador para com a sociedade da época foram
analisados por José Murilo de Carvalho (1996).
151
época, a existência de grandes cidades remetia a idéia de um desenvolvimento
econômico e da difusão da ilustração entre os cidadãos. Quando os ministros
demandavam que a aplicação do júri somente ocorra em regiões com uma determinada
população, está presente a idéia de que nestas é mais presente uma população
civilizada. Em outras palavras, para Alves Branco e Limpo de Abreu, nas regiões mais
civilizadas é menor a força das classes subalternas, nas quais não está presente a
ilustração e são mais fracos os vínculos para com o mercado. Estes aspectos serão
analisados mais detidamente no próximo capítulo.
Portanto podemos formular uma síntese de alguns dos para a reforma do Código
do Processo. O juiz de paz passaria a ser supervisionado por magistrado nomeado
exclusivamente pelo Estado e com um treinamento prévio. Por outro lado, deveria
ocorrer uma diminuição no número de juizes de paz, sua eleição ficaria concentrada nas
regiões mais populosas e com um número maior de eleitores. O funcionamento do júri
de acusação não seria esvaziado, mas apenas seria controlada a sua disseminação pela
sociedade. Apenas nas cidades mais populosas o júri teria o funcionamento tal qual
previsto no Código do Processo.
Portanto, em ambas as análises, sobre o juiz de paz e o júri, aparece a idéia de
que para a aplicação plena dos mecanismos descentralizadores previstos no Código do
Processo seria necessário um determinado nível de civilização. O pensamento
federalista procura deslocar a primazia política para o Legislativo Provincial como um
meio pelo qual seriam podados os excessos descentralizadores presentes no Código do
Processo. A partir dos mecanismos presentes no Ato Adicional os diversos legislativos
provinciais iniciaram a reforma do Código do Processo.
Em 1836, a Assembléia Provincial de Pernambuco retirou as atribuições
policiais do juiz de paz, passando-as para os prefeitos e subprefeitos, nomeados pelo
presidente provincial (ver Bastos, 1937:169 e Uruguai, 1960). Em 1838, o Legislativo
Provincial de Alagoas atribuiu cumulativamente aos juízes municipais o exercício das
atribuições criminais do juiz de paz (Bastos, 1937:169-170). A Assembléia Provincial
de Alagoas determinou a elevação do censo para a seleção do júri e criou a figura dos
prefeitos, nomeados pelo presidente provincial. A concessão de fianças seria uma
atribuição delegada principalmente ao juiz de direito, e não ao juiz de paz. Em 1835, a
Assembléia Provincial de São Paulo criou a figura do prefeito nomeado pelo presidente
de província. Este ficaria encarregado de fiscalizar os empregados municipais,
comandar a Guarda Policial, prender os delinqüentes e vigiar as pessoas que entrassem
152
no município (ibidem:169). Ou seja, incorporava diversas das tarefas que cabiam ao juiz
de paz.
Gostaríamos de chamar a atenção do leitor para o seguinte: esse conjunto de atos
dos Legislativos Provinciais somente foram desencadeados em razão do Ato Adicional.
De acordo com estes, as Assembléias Provinciais poderiam legislar sobre os
funcionários provinciais, bem como sobre a divisão civil e judiciária. Os atos do
Legislativo Provincial atacavam as atribuições dos cargos eleitos ou escolhidos a partir
do município (o juiz de paz, o júri e o promotor) em favor do juiz de direito e dos
prefeitos. Como Tavares Bastos assinalava: “Conforme já advertimos quanto à polícia,
o que as leis fortificavam, era o juiz de direito ou juiz municipal” (Bastos, 1937:193).
Em outras palavras, o Ato Adicional realizava a mesma tarefa do regresso conservador,
qual seja, o esvaziamento dos cargos eletivos em detrimento dos cargos nomeados. Mas
com uma diferença fundamental e chave, qual seja, quem realizava esta tarefa era o
Legislativo Provincial, tendo em conta os interesses provinciais, e não os motivos do
poder central. Além do que, com o Ato Adicional os cargos nomeados eram controlados
pelo Legislativo Provincial.
Tendo em vista este aspecto, é fundamental que percebamos outro elemento que
se coloca no centro do nosso esforço interpretativo. Antes de fazê-lo, recuperemos
alguns traços presentes nos Capítulos 2 e 3.
Na idéia de federalismo presente no debate da Constituinte e no Código do
Processo, o poder deveria ser disseminado pela sociedade de maneira a que os cidadãos
controlassem o seu uso. A descentralização do poder iria permitir que os cidadãos ativos
estivessem envolvidos com os assuntos públicos, evitando que o poder fosse usado pelo
Estado para fins e interesses estranhos à Justiça e aos interesses da sociedade. Para a
corrente federalista, entre os anos 1820 e começo dos anos 1830, deslocar o exercício do
poder para mais perto do cidadão implicava torná-lo ativo e participante. Conforme
observamos no Capítulo 3, o cidadão que participava diretamente do funcionamento da
máquina pública sendo eleito, sorteado ou escolhido para os cargos, sabe que após o
término do mandato deveria retornar para o convívio da sociedade, voltava a ser um
particular. Para os federalistas, este retorno era extremamente importante, pois impedia
que o cidadão fosse capturado pela lógica do Estado; nas palavras do deputado Ferreira
França, analisadas no Capítulo 3, isto evitava que o eleito se tornasse um magistrado
letrado, esse era uma “criatura do governo absolutamente dependente, [um] instrumento
passivo da sua vontade [do governo]”.
153
Portanto, na nossa hipótese estamos perante uma inflexão importante no
argumento federalista. Conforme assinalava Tavares Bastos, o Ato Adicional reforçou
os poderes do juiz de direito. Mas não era o juiz de direito criatura dócil aos caprichos
do poder central. Com o Ato Adicional, o juiz de direito passava a ser controlado pelo
Legislativo Provincial. Este, para os federalistas, deveria expressar o interesse
provincial e, tendo em vista os interesses provinciais, deveria controlar o grau de
descentralização possível de ser aplicado na província. Era este órgão o instrumento
mais capaz para realizar esta tarefa. Para os federalistas, com o Ato Adicional, a
descentralização não seria o instrumento através do qual os cidadãos ativos seriam
educados pelo exercício dos seus direitos, mas uma política levada a cabo pelas elites
provinciais. Com o Ato Adicional, sai de cena o cidadão ativo escolhido pelos seus
pares para o exercício do juizado de paz e entra em cena o magistrado controlado pelo
Legislativo Provincial. Da mesma maneira, o processo de escolha do júri e do promotor,
da forma como estava previsto no Código do Processo, passava a ficar na dependência
do Legislativo Provincial. Neste sentido, a corrente federalista operava uma mudança no
conceito de federalismo: a dimensão do município, aquela na qual o cidadão ativo é
convocado a participar diretamente da gestão dos assuntos públicos, é sacrificada à
dimensão provincial.
Iremos reforçar esta hipótese a partir da análise do pensamento e da polêmica
entre Tavares Bastos e o Visconde de Uruguai.
154
americano, não percebiam as diferenças históricas e sociais entre os dois países.
Chamemos a atenção do leitor para a referência, no argumento de Uruguai, do seguinte
ponto: as idéias federalistas teriam influenciado a legislação produzida no Brasil a
partir do fim do Primeiro Reinado. Neste sentido, o Código do Processo e o Ato
Adicional foram moldados pelas idéias federalistas que, por sua vez ignoraram as
circunstâncias do Brasil.
Tavares Bastos repete a crítica de Uruguai, mas com uma diferença importante:
22
Sobre a tramitação do Código do Processo, veja-se, também, o Capítulo I da presente tese.
155
torná-lo responsável perante os cidadãos e seus interesses –, mas a via tentada ignorou
as diferenças entre os Estados Unidos e o Brasil. O Código do Processo buscou tornar
os principais postos da magistratura eleitos ou escolhidos a partir do município. Os
resultados, nas palavras de Tavares Bastos, foram “revoltas parciais e uma desordem
geral”. Havia, portanto, uma lição a ser aprendida: evitar as revoltas provocadas pela
descentralização.
Na nossa interpretação, no argumento de Tavares Bastos a “forma democrática”
está diretamente associada ao modelo norte-americano. No pensamento federalista do
Brasil do século XIX, o modelo norte-americano tornava os postos elegíveis ou
escolhidos no município; conforme a fórmula tocquevillenea, nos Estados Unidos a
comuna vem antes do condado, o condado antes do estado, e o estado vem antes da
União. Em outras palavras, a nação é construída a partir da participação do cidadão na
esfera mais próxima aos seus interesses. Para Tavares Bastos, quando o Código do
Processo buscou implementar essa fórmula no Brasil, o resultado foi a “desordem
geral”. O valor que a corrente federalista pretende aplicar ao Brasil não estabelece a
descentralização como um princípio de organização democrática, mas como um
instrumento a partir do qual o interesse molda o Estado. Caso esse interesse esteja
ameaçado pela forma democrática assumida pelas reformas descentralizadoras, estas
devem ser contidas.
Qual teria sido o erro político do Código do Processo? Segundo Tavares Bastos:
156
Com o Ato Adicional, o pensamento federalista desloca a primazia da
participação do cidadão na gestão dos assuntos públicos, e a submete ao nível de
civilização.
E qual seria o poder que verificaria este nível de civilização?
157
princípio da descentralização era deslocado da sociedade para o Legislativo Provincial.
Os princípios descentralizadores presentes na formação do júri, na eleição do juiz de
paz, na escolha do promotor e do juiz municipal são postos em suspenso, sua aplicação
ficava submetida ao Legislativo Provincial. Com o Ato Adicional, a corrente federalista
redefine a idéia de federalismo, conforme havia sido discutida no Código do Processo:
a descentralização ficava submetida ao tema do interesse; a participação nos assuntos
públicos submetia-se única e exclusivamente à idéia de interesse.
A crítica à eletividade dos cargos, presente no Código do Processo, nos permite
abordar outro aspecto. Vejamos:
158
Em seguida, o argumento de Tavares Bastos opera uma passagem decisiva. A
centralização aplicou uniformemente um princípio sacrificando as províncias mais
civilizadas. Na nossa interpretação, no argumento de Tavares Bastos está incrustada a
idéia de que os interesses das províncias mais civilizadas não possam ser prejudicados
pela necessidade de coesão entre as diversas partes que compõem o Império brasileiro.
Para Tavares Bastos, onde for possível que o interesse fecunde a sociedade sem
levantar a ameaça das rebeliões, a descentralização deve ser adotada, mas nas regiões
nas quais este interesse for ameaçado, a descentralização deve ser contida. E o
instrumento mais capaz para realizar esse cálculo vem a ser o Legislativo Provincial.
Isto porque o guia da sua ação não serão os interesses vagos e vazios do todo, da nação,
mas os interesses provinciais.
Quando observamos o conceito de federalismo presente no debate político
brasileiro do século XIX notamos o seguinte: federalismo envolve a idéia de que o
poder seja compartilhado entre a União, as províncias e os municípios. No século XIX,
o conceito de federalismo não diz respeito apenas à relação entre União e seus estados
membros, mas mobilizava também a esfera do município.
A corrente federalista brasileira, a partir do Ato Adicional, buscava controlar o
município a partir do legislativo provincial. A nação não seria mais montada a partir da
esfera mais próxima do cidadão ativo, a esfera municipal, mas a partir do legislativo
provincial, porta voz dos interesses provinciais. O pensamento centralizador percebe
essa redefinição política do conceito de federalismo e o assinala. Segundo Uruguai:
O fato de que com o Ato Adicional a vida política do município passava a ser
controlada pela Assembléia Provincial não era negado pelos defensores daquela lei.
Tavares Bastos escreve qual teria sido a idéia por detrás do Ato Adicional no que diz
respeito aos municípios:
159
receita e despesa, cabia às assembléias aplicarem às localidades de
cada província o sistema de governo mais proveitoso”. (Bastos,
1937:147).
Para Tavares Bastos, a partir do Ato Adicional a reforma do Código foi feita sem
que nenhuma província seguisse um molde imposto pelo poder central. Se as reformas
caminharam numa determinada direção, isto se deveu a uma imposição das
circunstâncias, e não a um modelo artificialmente imposto, sem considerações para com
as realidades provinciais. Podemos observar que o termo circunstâncias pode ser
substituído por interesses provinciais. Em outras palavras, o Legislativo Provincial
efetuou as reformas segundo os interesses da província sem que houvesse um projeto
comum às diversas partes que compõem a nação. Para Tavares Bastos, essa ação
espontânea gerou um resultado plenamente satisfatório.
Chamemos a atenção do leitor para o seguinte aspecto presente no argumento de
Tavares Bastos. Em 1823, para os federalistas a idéia de federação implicava o fato de
que o poder central não poderia impor leis sem o consentimento dos estados-membros
da União. Naquele contexto político, a idéia de federação estava atrelada à perspectiva
de que as províncias, para a realização dos seus interesses, devessem dispor de
soberania. Seja em 1823, ou em 1832, o conceito de federalismo esteve ligado à idéia de
que os funcionários escolhidos na própria província seriam os mais capazes em razão do
160
seu interesse no desenvolvimento local. A perspectiva de que o poder central dispusesse
de meios para impor uma política ou funcionários estranhos à dinâmica provincial
sempre surgiu aos olhos dos federalistas como a porta de entrada do despotismo e do
atraso social.
Em 1871, Tavares Bastos retomava esta idéia para analisar os efeitos positivos
do Ato Adicional. Com este, o Legislativo Provincial, seguindo seus interesses,
empreendeu uma reforma do Código do Processo. Essa reforma não teria sido ditada
por um poder estranho aos interesses provinciais, mas pelo poder mais próximo a estes
interesses: o Legislativo Provincial.
Para a corrente federalista, o grande valor presente no Ato Adicional foi o de que
o todo não se impôs às partes que o compõem. As reformas, que eram necessárias para
que o interesse se manifestasse sem as ameaças da excessiva descentralização do
Código do Processo, estavam sendo feitas de acordo com o ritmo das províncias. A
crítica que o pensamento federalista realizava ao movimento centralizador, iniciado em
1837, era desta natureza:
23
O cônego Marinho, analisando a fracassada tentativa de reforma da Constituição realizada por Feijó,
em 1831, escreveu o seguinte: “Queria-se que a câmara dos deputados se convertesse em Convenção
Nacional; reformasse a constituição no sentido em que parecia mais acomodado às necessidades
provinciais” (Marinho, 1978:20).
161
conseqüentemente dispõem das condições sociais para implementar a descentralização,
podem e devem fazê-lo, mas as províncias mais atrasadas, aquelas que estão mais
marcadas pela barbárie, não podem adotar os mecanismos descentralizadores na
maneira prevista pelo Código do Processo. Enfatizemos este ponto: no pensamento
federalista, o Estado emerge das províncias mais civilizadas. A centralização, para os
federalistas, altera essa dinâmica e introduz uma política que parte de um centro
artificial.
Notemos que Tavares Bastos assinalava que a centralização realizava uma
política em nome do Império todo, mas que não dizia respeito senão a três províncias 24 .
Em outras palavras, não existe uma política para todo o Império, a idéia de que exista
um conjunto de diretrizes que expresse a nação revela-se artificial. Sejamos claros:
artificial, tendo em vista os interesses das províncias mais civilizadas. Para Tavares
Bastos, a construção do Estado-nação, de um aparelho estatal para o Império, faz
sentido a partir das províncias mais civilizadas – o Estado emerge das províncias mais
civilizadas.
Acreditamos que a compreensão do argumento de Tavares Bastos ainda não está
completa. Ressaltemos o seguinte aspecto: conforme observamos anteriormente, no
argumento federalista estava presente o fato de as províncias, como os indivíduos no
mercado, possuírem níveis distintos de desenvolvimento; algumas serão,
inevitavelmente, mais desenvolvidas que outras. As províncias mais civilizadas,
aquelas nas quais o interesse possuiu alicerces mais seguros, devem seguir seu
caminho. As províncias que não possuírem o mesmo nível de civilização necessitam,
mediante seu esforço, estimulado pela competição, atingir o nível desejado de
desenvolvimento.
24
O livro de Tavares de Bastos foi publicado em 1871 e a referência a Pernambuco talvez se deva à visão
retrospectiva de que a eclosão da Praieira era inevitável. A referência ao Maranhão pode ser atribuída ao
fato de que essa província tenha sido o palco da Balaiada. Nos Relatórios de ministro da Justiça, as
províncias do Ceará e de Alagoas são constantemente referidas como palco de diversos conflitos armados.
Sobre estes pequenos conflitos armados, veja-se o Capítulo 5.
162
não está presente nenhum Alberto Sales, não se trata de quebrar o Império para
introduzir e dar livre curso ao interesse provincial.
A nossa análise busca identificar o conteúdo da idéia de interesse provincial e
como este interage com a idéia da formação do Estado-nação entre centralizadores e
federalistas. Assinalar o vínculo entre o interesse de grupos sociais e de províncias no
debate entre centralizadores e federalistas é um elemento de grande importância 25 . O
que falta conhecer é como cada corrente política avaliou o papel destes interesses na
construção do Estado-nação.
No caminho que percorremos podemos assinalar que, para os federalistas, é a
partir dos interesses, característica do cidadão ativo, e da sua dinâmica que o Estado
nação deve ser montado. Esse cidadão ativo encontra-se mais presente nas províncias
mais civilizadas. Neste sentido, o pacto federativo deve partir das províncias mais
civilizadas para o centro. O movimento político dos atores políticos, que mais tarde vão
se opor à política centralizadora, caminhava no sentido de adequar a descentralização às
regiões mais civilizadas; aquelas nas quais a descentralização não colocasse em
movimento o sertão. Neste movimento político o objetivo, como assinalava Alves
Branco era o de fazer recuar esses chefes políticos turbulentos. Como fazê-lo?
A corrente federalista operou com o Ato Adicional uma redefinição
politicamente significativa na idéia de federalismo. O debate político em torno do
Código do Processo apresentou a idéia de federalismo como uma política que deveria
descentralizar o poder, colocando-o mais próximo ao cidadão. O Estado colonial era
visto como uma máquina política estranha ao cidadão ativo. Neste sentido,
descentralizar o poder envolvia despertar o cidadão para a importância da sua
participação nos assuntos públicos.
Com o Ato Adicional essa dimensão é colocada em segundo plano. Para os
federalistas, a emergência dos conflitos armados, com a sua inevitável malta
turbulenta, a partir da promulgação do Código do Processo, exige uma redefinição da
idéia de federalismo. O ator principal do federalismo não será mais o cidadão ativo,
localizado nos municípios, mas o Legislativo Provincial. As elites políticas situadas no
Legislativo vão comandar a disseminação do poder pela sociedade.
A ação deste Legislativo Provincial apontou na direção do esvaziamento das
figuras centrais do Código do Processo: o juiz de paz e o júri. As atribuições destes são
25
Aspecto estabelecido por Lenharo (1992), Fragoso (1992) e Mattos (1994).
163
esvaziadas em detrimento do juiz de direito, que com o Ato Adicional passava a ser
controlado por esse Legislativo. A própria Câmara Municipal passava a ser controlada
pelo Legislativo Provincial, com a criação da figura do prefeito. Se pensarmos que essa
ação de esvaziamento não era coordenada, podemos supor, a partir do seu sentido
inicial, que iria atingir os demais cargos escolhidos no município – o promotor e o juiz
municipal.
A questão que nos colocamos vem a ser a seguinte: como centralizadores e
federalistas enxergaram a sociedade brasileira? Ao final da conclusão mencionamos
que para os centralizadores, a sociedade brasileira era profundamente heterogênea.
Ressaltemos o seguinte: os federalistas, a partir do Ato Adicional, redefinem a idéia de
federação. Alves Branco e Limpo de Abreu propõem que a aplicação do júri, conforme
o Código do Processo havia estipulado, fosse aplicada apenas nas regiões mais
civilizadas. Tavares Bastos considerava que a elaboração do Código do Processo foi
guiada pela idéia errônea de que a civilização estaria homogeneamente difundida pelo
país. Podemos considerar que para centralizadores e federalistas o tema da civilização e
do sertão estava firmemente presente no seu argumento. Vejamos no próximo capítulo
como este conceito foi pensado por centralizadores e federalistas.
164
Capítulo 5
Civilização e Sertão
165
aparelho judiciário uma ordem impessoal? Por que da localidade não brotou uma cidadania
ativa capaz de proporcionar aos cidadãos um espaço de liberdade? Por que a formação da
nação não poderia nascer das localidades?
Ao criticar as leis descentralizadoras, Uruguai atribuiu a essas localidades uma série
de traços sociais e compôs um painel no qual as desenhou como um espaço social marcado
pela barbárie. Entretanto, essa barbárie não existia sozinha, pois ao seu lado funcionava um
outro mundo social, marcado por outros traços: a civilização 1 .
Poucas imagens são tão fortes, ao longo do período estudado, quanto aquela que
descreve o Brasil como um país marcado por uma dualidade representada por termos
antíteses como Litoral e Sertão ou Civilização e Barbárie.
O objetivo deste capítulo consiste em analisar a maneira pela qual esta dicotomia foi
formulada no debate político acerca da centralização e da descentralização. O recorte do
objeto, tanto no plano temporal quanto no seu conteúdo, foi pensado a partir do modo pelo
qual esta dicotomia apareceu na reflexão de Uruguai, na qual, seja nos anos 30-40, quando
esteve diretamente envolvido nos acontecimentos políticos, seja no final dos anos 50 e
início dos 60, quando da redação e publicação do Ensaio..., em que esteve sempre presente
a visão de um país marcado por uma dualidade expressa nos termos de civilização e sertão
– reproduzindo os termos presentes no debate da época.
Em 1862, Uruguai publicava o Ensaio sobre o Direito Administrativo. Um dos seus
argumentos centrais era que, quando as localidades são bárbaras, divididas por facções, o
que torna impossível uma administração regular e justa – o poder central é ilustrado e, por
estar mais distante, oferece mais garantias ao cidadão: “É certo que o poder central
administra melhor as localidades, quando estas são ignorantes e semibárbaras e aquele
ilustrado; e quando as mesmas localidades se acham dividas por parcialidades odientas,
que tornam impossível uma administração justa e regular” (Ensaio...:353).
1
Mattos, em diversos momentos do seu trabalho, chama a atenção para a presença, no debate político
Imperial, destes termos e da sua importância para a interpretação do período. A partir do destaque que este
autor conferiu aos termos e seu conteúdo, considerei que valia a pena analisar as fontes primárias de maneira
a abrir os sentidos que estes termos possuíam no debate político. Veja-se, por exemplo, Mattos (1994:119-
121, 150-151 e 269).
166
Observemos que, na passagem acima, Uruguai sustentava que a centralização era o
único arranjo político capaz de manter unido um país marcado a fundo pela dicotomia
civilização/sertão. Aquela seria a única fórmula institucional capaz de assegurar a unidade
numa nação na qual os laços entre as regiões são frágeis e, internamente, existem dois tipos
de situação social, que na sua dinâmica interna não possuem vínculos sociais que as liguem.
A reflexão e a ação de Uruguai em favor da centralização trazem, no cerne da sua
argumentação, a visão de um país marcado por esta heterogeneidade interna. Todavia, a
presença desta dualidade não apenas nos remete para a justificativa do arranjo
centralizador, mas, também, nos permite refletir sobre outro aspecto.
Na passagem abordada, Uruguai apresentava um diagnóstico sobre a sociedade
brasileira, sobre uma sociedade marcada por uma dualidade sertão/civilização. Este
julgamento não foi alterado em nenhum momento da sua trajetória política, fosse nos
tumultuados anos 30-40, quando eclodiram as revoltas regenciais e foi implementado o
regresso conservador, fosse no final dos anos 50 e início dos 60, quando o Império estava
pacificado, distante dos conflitos armados, e conhecia um razoável desenvolvimento
econômico.
O objetivo do presente capítulo vem a ser o de compor um painel dos vários
significados que no debate político brasileiro estiveram associados aos termos, de um lado
civilização/litoral/regiões povoadas, de outro, como sua antítese, barbárie/ interior/ sertão/
regiões pouco povoadas. Trata-se de reunir idéias que ajudem a compor a gama de
significados que se alojam nestes dois termos e apontar, na reflexão de Uruguai, o sentido
que esta dicotomia possui: o sertão é julgado a partir dos valores presentes no pólo da
civilização.
Na hipótese que desenvolvemos sobre a reflexão de Uruguai, o termo civilização, e
os significados que o compõem, constitui o pólo forte da dicotomia. É a partir do seu
conteúdo que é pensada a evolução da sociedade brasileira. Poderíamos considerar que, na
reflexão de Uruguai estaria presente a meta da superação desta dicotomia, instalando uma
ordem liberal. Tratava-se de superar o aqui e agora, marcado pela coexistência de
elementos antagônicos, buscando-se absorver e expandir um padrão de civilização que era
proveniente do que podemos chamar de sociedades ocidentais – os dois modelos mais
utilizados pelos políticos do período estudado foram a França e a Inglaterra. O projeto
167
político de Uruguai para a sociedade brasileira apontava para a implantação deste padrão de
civilização, e não existia no seu argumento uma tentativa de preservar o exótico presente na
barbárie; o sertão, com seus conteúdos particularistas, deveria ser superado. Existe uma
clara percepção de que o sertão era um elemento estranho à ordem liberal que estava em
construção no Brasil 2 .
Entretanto, esse dado social a ser superado impunha, pela sua presença, o ritmo e a
estratégia da implantação do padrão de civilização no Brasil. Ao longo desta tese buscarei
mostrar que se o sentido deste processo provém do pólo civilizatório, o sertão conforma o
conteúdo e o ritmo.
A formulação deste diagnóstico acerca do Brasil não foi uma originalidade de
Uruguai e muito menos dos centralizadores. Os federalistas também fazem uso dos termos
civilização e sertão. Entretanto, a solução política dada por esta corrente é distinta daquela
realizada pelos centralizadores.
O que vamos procurar fazer neste capítulo é compreender a reflexão de Uruguai a
partir deste horizonte mental e a sua maneira de lidar com esta dicotomia. Como veremos
mais adiante, Uruguai acrescentou à esta dicotomia idéias que não estavam presentes
anteriormente. Na medida em que as idéias de Uruguai estão referidas aos seus adversários
políticos, torna-se essencial para compreendê-las analisar o pensamento federalista.
Ao longo do capítulo procurarei mostrar como diversos temas foram pensados a
partir desta dicotomia civilização/sertão. As idéias de interesse, amor da propriedade,
violência, o papel do povoamento, a polidez, a educação, a opinião pública e a natureza
das disputas políticas somente ganham seu sentido pleno quando as percebemos
diretamente associadas à dicotomia anteriormente mencionada. Neste capítulo, buscarei
trazer à tona a maneira pela qual estas idéias apareceram no debate político da época.
2
Veja-se Fernandes (1975:caps. 1, 2 e 3 da “Revolução Burguesa”).
168
“No interior de muitas de nossas Províncias vivem os seus habitantes
separados um dos outros, e das povoações por grandes distâncias,
cobertas de matas e serras em um certo estado de independência, e fora
do alcance da ação do Governo e das autoridades. Essa população
não participa dos poucos benefícios da nossa nascente civilização, [...]
desconhece a força das Leis, zomba da fraqueza das autoridades, todas as
vezes que vão de encontro aos seus caprichos. Constitui parte distinta
da Sociedade do nosso litoral e de muitas de nossas povoações e
distritos, principalmente por costumes bárbaros”. (Uruguai, Relatório
de Ministro da Justiça, 1841, p. 19)
Em primeiro lugar, neste trecho está exposta, de maneira clara, a dicotomia entre os
dois termos. No pensamento político do período estudado, são termos opostos e
excludentes: o espaço no qual um destes está presente afasta e, mesmo, repele o outro.
Outro aspecto que torna este trecho importante é o seu momento histórico. Uruguai está
escrevendo durante o regresso conservador, ou seja, enquanto eram implementadas as leis
que visavam a retirar os traços descentralizadores implementados na constituição, conforme
vimos no capítulo anterior. Sua intenção era a de confrontar o funcionamento das leis com
este estado social do país. Uruguai mobilizava os termos civilização e barbárie tendo atrás
de si um largo uso desta dicotomia, seja em discursos, seja em relatórios ministeriais. Não
era, portanto, uma novidade.
Vale a pena observar o lugar desta passagem no Relatório. O trecho está inserido
como desfecho de uma longa argumentação. Uruguai havia, desde da segunda página do
relatório até a décima oitava, narrado as grandes revoltas (Cabanagem e Farroupilha) e os
pequenos conflitos armados que grassavam pelo país 3 .
3
Nos trabalhos historiográficos sobre o período, quando é utilizada a designação revoltas regenciais, esta
refere-se às chamadas grandes revoltas armadas, tais como Setembrizada, Revolta dos Malês, Cabanagem,
Farroupilha, Revolução Liberal de 1842 etc. Entretanto, junto com as chamadas revoltas regenciais ocorre um
grande número de pequenos conflitos armados. Observando os Relatórios da Justiça do período regencial
(1831-1840), até o ano de 1843, podemos observar que a atenção dos ministros estava igualmente voltada não
só para as grandes revoltas - Cabanagem, Farroupilha etc. - mas também para os pequenos conflitos armados
que regularmente eclodiam em todo o país. Analisando as grandes revoltas regenciais, José Murilo de
Carvalho (1988:12-15) assinalou a existência de dois momentos: a primeira onda de revoltas ocorreu no
espaço urbano, tendo como seus principais atores a tropa e o povo, e vai de 1831 até 1835; a segunda onda de
revoltas revolve a “fábrica social do país”, ou seja, se desloca para o interior e envolve grandes proprietários,
pequenos proprietários, homens pobres livres e escravos. Seu potencial de ameaça para o país foi maior,
chegando até à ameaça do separatismo. Seu período histórico foi de 1835 até 1840. Das chamadas revoltas
regenciais, duas são usualmente destacadas: a Cabanagem (1835-1840) e a Farroupilha (1835-1845). Tal
destaque deve-se a motivos que realmente as singularizam, quando comparadas às demais revoltas. Em
primeiro lugar, a sua duração, uma vez que foram as que mais tempo levaram para serem dissolvidas. A
169
Podemos observar a contraposição entre uma civilização ainda frágil e localizada
em alguns pontos e um sertão vasto que se estende por dentro do país, circundando e
ameaçando tragar a nascente civilização. Para Uruguai e para grande parte dos políticos
brasileiros do período aqui estudado, a sociedade brasileira seria profundamente marcada
por uma heterogeneidade interna: uma parte seria marcada pelos traços da civilização,
enquanto a outra parte traria a marca dos costumes bárbaros. Dentro dessa heterogeneidade
interna, Uruguai assinala claramente: que a parte bárbara do país constitui-se em região
distinta, separada, sem vínculos com as regiões civilizadas.
Observemos, inicialmente, que o trecho se detém na descrição da população que
habita os sertões 4 . Essa população vive dispersa, sem laços entre si e para com o Governo,
em um estado de independência; essa população, quando é contrariada, pela Lei entra em
choque com o governo. Vale a pena destacar a metáfora através da qual Uruguai descreveu
o Estado imperial, quando escreveu o Ensaio... (1862): o Estado brasileiro teria cabeça
grande, mas braços pequenos. A agenda de reformas, para Uruguai, envolvia a ampliação
dos braços do Estado para que estes chegassem até o cidadão. Tendo a passagem do
relatório de 1841 em mente, podemos apreender um dos significados desta imagem: fazer
com que os braços do Estado alcançassem os sertões; que a Lei não fosse letra morta, mas
que dispusesse de meios administrativos capazes de penetrar no interior do país.
Ao falarmos dessa ação do Estado, devemos também assinalar que na descrição de
Uruguai está pressuposto que existe uma parte da sociedade na qual se faz sentir a ação do
governo, qual seja, a nascente civilização. Como veremos ao longo do capítulo, nesta parte
da sociedade não está presente apenas a Lei, existem aspectos materiais que a diferenciam
primeira talvez tenha sido aquela que teve a participação mais expressiva dos setores subalternos da sociedade
Imperial. Os relatórios de ministro da Justiça ao longo de toda a sua duração enfatizam o envolvimento de
setores subalternos, que eram comumente chamados de gentalha. Seus adeptos eram comparados com bandos
de salteadores, sem nenhuma relação com as lutas políticas. A segunda teve também um traço que a difere
das demais, pois chegou a proclamar a república e, portanto, a separação da federação. Seu componente social
foi menos popular que a Cabanagem e envolveu principalmente estancieiros e charqueadores. Entretanto,
junto com as chamadas revoltas regenciais eclodem outros pequenos conflitos armados espalhados pelo país,
grande parte deles no interior, em pequenas vilas, comarcas ou municípios. A dimensão espacial e temporal
desses pequenos conflitos armados nunca foi a das revoltas regenciais. Os motivos destes conflitos armados
eram geralmente os cargos eleitos - Juiz de Paz e Promotor -, ou a sua eleição ou o seu funcionamento; a
eleição das assembléias provinciais e disputas entre juiz de direito e juiz de paz. Sua duração também não era
longa, poucas chegavam até o próximo relatório de ministro da Justiça, apesar de que algumas cidades são
recorrentemente palco de conflitos. São, enfim, aquilo que podemos chamar, tendo em vista as duas grandes
revoltas, de pequenos conflitos armados.
4
O uso do termo sertões está neste mesmo Relatório, à p. 9.
170
dos sertões. Seus cidadãos possuem laços de interesses entre si, têm amor à propriedade e
ao trabalho e junto com estes nasce o sentimento de afeição para com a ordem; também
estão dotados de educação, tanto no aspecto formal quanto nos costumes.
Observemos também que os motivos que levam a população a entrar em choque
com o governo são classificados por Uruguai como “caprichos”. Nesta visão, esses motivos
de atritos entre e governo e esta população são sem relevância, resultado da ausência de
uma autodisciplina imposta pelo trabalho, da falta de ilustração, da ausência de vínculos
fundados no interesse e de outros aspectos que iremos tratar ao longo do capítulo.
Sem esses atributos, os indivíduos terminam sem possuir, por um lado, noções de
obediência ao superiores e, por outro, as luzes capazes de permitir o preenchimento
adequado aos cargos do Estado. O estado de independência, no qual estes homens vivem,
não diz respeito só à ação do Estado, mas também à formação de vínculos estabelecidos a
partir do trabalho. Os interesses materiais e sociais que surgem a partir do trabalho,
vinculando os indivíduos entre si e para com a ordem social e política, são frágeis ou
inexistentes nos sertões bárbaros.
Por último, anotemos outro traço da argumentação de Uruguai: a dispersão por
grandes distâncias. Segundo Uruguai, não haveria um equilíbrio entre a quantidade de
indivíduos e o tamanho do território. Em virtude disto, no interior encontraríamos uma
população dispersa, separada por grandes trechos cobertos de matas virgens.
Observemos como ponto de partida os significados de Civilidade e Barbárie no
dicionário Moraes, na sua edição de 1813. Neste, o termo Civilidade é apresentado da
seguinte maneira: hoje significa cortesia, urbanidade, opp. a rusticidade, grosseria. No
mesmo dicionário, Barbaria, possui o sentido de ignorância, usos costumes bárbaros. Ação
cruel, torpeza. Guarde-nos deus das barbarias dos Reis Turcos em Bythinia.
Em primeiro lugar, podemos observar que barbárie significa ignorância e
civilidade, cortesia. No mesmo dicionário, Cortez significa: urbano, civilizado. Que sabe e
usa dos modos e estilos da corte; já Cortezia tem o conteúdo de “Urbanidade, polícia no
falar, no modo de portar-se, falar e obrar, acatando a deus, ao soberano e maiores e
superiores; [...] guardando o que prescreve o bom uso e estilos da corte e gente bem
educada”. O civilizado possui um conhecimento de certas regras de convívio, enquanto o
bárbaro ignora este conhecimento, vive longe das luzes que iluminam estas regras.
171
Ignorância também aponta para a ausência de ilustração. Certamente, chama a atenção do
leitor moderno o uso do termo polícia associado a cortezia. Para nós, este termo somente
está associado ao aparelho repressivo, enquanto para os homens do século XIX possui
também outro sentido.
Polícia possui tanto o significado de administração interna da república, mais
habitual para nós, como um outro significado: “[...] no tratamento decente; cultura, adorno,
urbanidade dos cidadãos, no falar, na boa maneira”. Ao buscar o termo Polidez somos
remetidos a Polícia. Podemos perceber a associação entre Polícia e Polidez, Polido e Polir:
“Homens polidos não falem palavras grosseiras. Polir a nação, mais que civilizar”.
No mesmo Dicionário podemos analisar outros conteúdos relativos ao termo
Civilidade. Vejamos o termo Ignorância, presente no vocábulo barbárie. Este remete à falta
de educação e de ilustração. Um dos sentidos do verbo Educar vem a ser o de respeitar ao
decoro e, neste sentido, remete a polidez. Outro sentido remete ao ato de passar um
conhecimento a outro, num processo de aperfeiçoamento do gênero humano. Da mesma
maneira que Polido apara as partes bárbaras do homem, ilustrar significa “tornar nobre [...]
ilustrar o entendimento com razões e conselhos”. Ou seja, torna-se algo que num primeiro
momento é áspero, sem brilho em algo nobre, e tal procedimento é realizado através da
transmissão para o homem rude de razões e conselhos que lhe dêem luzes.
Há, aqui, um outro sentido que pode ser associado à educação: educar o indivíduo
no sentido de orientar suas paixões e intelecto. O Dicionário Moraes define educar como
sendo um aperfeiçoamento que ensina as regras do decoro, mas, também, traz o sentido de
dar ensino, doutrinar; aquele que é doutrinado possui a capacidade de dirigir a vontade. E,
principalmente neste sentido, vamos encontrar, no material pesquisado, o sentido de
educação e ilustração: os indivíduos educados possuem a capacidade de controlar suas
paixões.
Outro traço presente no significado do vocábulo e que também aparece no material
pesquisado é a associação entre civilização e urbanidade. Como está escrito no verbete do
Dicionário citado anteriormente, civilidade significa cortesia e urbanidade. Urbanidade,
denotando obviamente pertencente à cidade, possuiu este significado de polidez 5 . A elite
política imperial assinalava, com insistência, esta associação entre a dispersão de uma
5
Em A Queda de um Anjo (1866) , Camilo Castelo Branco escreve: Levou urbanamente a mão ao chapéu.
Urbanamente possui um significado de polidez, educação.
172
população por áreas rurais, sem vínculos fundados no interesse, vivendo em áreas pouco
desenvolvidas economicamente e a carência de civilização. O desenvolvimento material
parece apontar para uma maior concentração populacional (o povoamento), a partir da qual
crescem os vínculos baseados no interesse. As lutas políticas são centradas em princípios,
entre outros pontos, todos apontando para uma relação positiva entre povoamento e
civilização.
Por último, o sentido político presente no termo bárbaro: a ação dos reis turcos
estava associada à uma ação sem limites, da qual apenas a oração a Deus poderia proteger
os indivíduos. Um conteúdo bastante difundido a partir de Montesquieu: segundo este, os
cidadãos perante um poder que não conhecia os limites da Lei somente podiam contar com
a religião para protegê-los. Na barbárie, a esfera pública é inexistente, pois está marcada
não pelos limites da lei, mas pela irrupção sempre imprevisível da violência proveniente da
pessoa do monarca.
No debate político brasileiro o termo despotismo estará presente. José da Silva
Lisboa cita com freqüência a definição clássica deste autor sobre despotismo: governo “em
que um só, sem lei, nem regra tudo arrasta pela sua vontade e seus caprichos” (Lisboa apud
Neves, 2003:120). Nesta definição, a ênfase do argumento reside na caracterização do
governo sem lei, fundado na vontade caprichosa de um só homem. No Dicionário Moraes,
despotismo é definido como “abuso de poder contra a razão, contra a lei, excesso do direito
que faz o governo” (apud Neves, 2003:120). A barbárie, como veremos mais adiante, será
sempre identificada com o espaço social marcado pela vontade arbitrária de um só.
Na reflexão de Uruguai, o sertão bárbaro seria marcado pela irrupção imprevisível
da violência, conferindo ao cidadão um sentimento de permanente insegurança. No sertão,
a lei como um espaço marcado pela previsibilidade estaria em constante perigo. Porém, há
uma mudança fundamental na reflexão de Uruguai, quando comparada com o sentido
mencionado acima: a origem da violência não provém do poder, mas da sociedade (ver
Carvalho, 1993). Nossa análise irá, mais adiante, se deter neste tema. Vejamos, no item
abaixo, o conceito de civilização e sertão e o tema do interesse e sua ação sobre os
indivíduos.
173
5.2 – A Civilização e o Sertão: a regularidade do interesse contra as paixões desencontradas
6
Os termos são utilizados por diversos ministros da Justiça para caracterizar os participantes dos conflitos
armados que eclodiram entre os anos 1830 e 1840.
7
Assume em 13 de setembro de 1832.
8
Ver Capítulo 1 da presente tese e Janotti (1990, cap. II).
174
“[...] existência de ódios inveterados e da falta de civilização [...], tem sido
teatro da guerra civil, lhe faz conhecer a possibilidade de terem sido
praticados todas as atrocidades ordinárias de semelhantes guerras [...]”.
(Relatório de Ministro da Justiça de 1832, p. 3)
175
A dicotomia civilização/sertão está associada também a um outro aspecto: a segurança.
Ou melhor, à medida que o cidadão vai se afastando das regiões civilizadas aumenta a
insegurança. Nas regiões bárbaras, a irrupção da violência será sempre uma possibilidade a
atormentar o cotidiano do cidadão, ameaçando sua vida, sua propriedade e conturbando o
processo político. A violência confere à vida social nessas regiões um sentimento de
imprevisibilidade permanente que, para estes homens do século XIX, bloqueia o pleno
desenvolvimento da civilização.
Em 1831, com a abdicação de D. Pedro I, irrompe na capital uma série de conflitos
armados 10 . Em ofício dirigido à Câmara dos Deputados, o então ministro da Justiça, Feijó,
assinalava quem havia enfrentado os adversários da ordem: os cidadãos proprietários e
industriosos; estes por sua vez, “constituem a massa da mais rica e populosa cidade do
Império” 11 . Evaristo da Veiga, aliado de Feijó, abordando este mesmo evento histórico
designa quais eram os adversários da ordem: “[...] os vagabundos que ameaçavam os
bens” 12 . No seu relatório de ministro da Justiça do ano de 1832, Feijó, referindo-se a estes
incidentes, ao designar esses mesmos cidadãos que haviam enfrentado os desordeiros,
escreveu que eram estes “a classe interessada na manutenção da ordem pública” 13 .
Observemos que Feijó descreve a capital do Império como a cidade mais rica e
populosa, e a partir destes traços sociais emerge uma “classe interessada na ordem pública”,
e, conseqüentemente, adversária da violência contra a propriedade e do seu uso nas disputas
políticas. Em síntese, Feijó e Evaristo associam o desejo de manutenção da ordem à
propriedade e ao trabalho (“industriosos”).
A associação entre desenvolvimento material e segurança também estará presente
no Relatório de ministro da Justiça do ano de 1834, de Manoel Alves Branco. O futuro
adversário de Uruguai descreve a capital do Império como aquela na qual o serviço da
Guarda Nacional é mais “regular e preciso”, fato que causa o estado de tranqüilidade
reinante, distinto do resto do país. Alves Branco não acreditava que tal situação se deva
exclusivamente à Guarda Nacional, e tem, inclusive, suas dúvidas se tal instituição será
10
Sobre estes fatos, veja-se Capítulo 1.
11
Ofício dirigido à Câmara dos Deputados pelo Deputado Feijó, em 31 de outubro de 1831 apud Feijó (1999:
78).
12
Os termos são de Evaristo, descrevendo os incidentes após a renúncia de D. Pedro I. Veja-se Cap. 1. Creio
que Feijó tranqüilamente assinaria embaixo essa caracterização.
13
Ver Relatório de 1832, p. 3.
176
eficaz para o Brasil como um todo. Para o ministro, “no interior do país” 14 a Guarda
Nacional não funcionava com a mesma eficiência. E o motivo apontado pelo ministro para
o bom funcionamento da Guarda Nacional na Capital era o fato e que, nesta cidade, a
“civilização e o amor da propriedade” estivessem presentes mais do que em qualquer outro
lugar do Império 15 .
Analisando esse amor da propriedade, podemos associá-lo aos cidadãos
proprietários e laboriosos, mencionados por Feijó. O sentido dessa expressão aponta, na
interpretação aqui desenvolvida, para o apego, num sentido de posse exclusiva. Aqueles
que têm o amor da propriedade não desejam compartilhar sua posse com outros,
notadamente aqueles que pretendem adquiri-la mediante o uso da força.
Podemos observar a associação entre propriedade, civilização e ordem restrita neste
Relatório, praticamente à capital do Império. É importante destacarmos a presença da idéia
de que o amor da propriedade fornece o sentimento que prende os cidadãos à ordem,
impedindo que as paixões desenfreadas se manifestem.
No Relatório, o amor à propriedade confere estabilidade social. Como podemos
observar anteriormente, esse apego inexiste entre os homens pobres livres.
Esse traço apontado por Alves Branco como característico da capital do país foi
ampliado seis anos depois, com o mesmo sentido, por Francisco Coelho para toda a
província do Rio de Janeiro.
O período de revoltas que perpassou o Império nos anos 1830 não deitou raízes na
província do Rio de Janeiro. O então ministro da Justiça, Francisco Coelho, atribui tal fato
aos hábitos de trabalho que estariam bastante difundidos naquela província:
177
Rio de Janeiro. Nesta, por vezes era difícil obter juramentos para busca devido à
insegurança que as testemunhas sentiam. Muitas vezes, ainda segundo Uruguai, a
autoridade pública conseguia saber que em tal parte existia um criminoso, mas não
conseguiria convencer a testemunha a depor, tornando impossível a prisão. Esta situação
terminava gerando impunidade e insegurança. A conclusão era clara: se na Província do
Rio de Janeiro, que era uma das mais ricas do país, podia-se encontrar tal situação, o que
dizer de outras províncias menos desenvolvidas?
178
A civilização passa a estar associada ao amor à propriedade, gerando a ordem e a
estabilidade social, enquanto o interior, o sertão, desconhecia a tranqüilidade social
produzida pelo amor da propriedade.
Portanto, creio que podemos assinalar a incorporação do seguinte sentido à
dualidade civilização/sertão: propriedade e riqueza/pobreza material. Conforme já
observamos, ao longo dos relatórios de 1832 até 1835, a contenção da violência política
passa a ser uma das principais tarefas da civilização, através do amor à propriedade. Dito
isto, acredito que podemos acrescentar que Uruguai, no seu Relatório de 41, tocou num
aspecto relevante para nossa discussão.
No relatório de 1841, Uruguai estava abordando o fim da revolta do Pará. Uruguai,
como outros políticos, salientou em diversos momentos, no Senado e na Câmara, a
necessidade de medidas policiais duras sobre os revoltosos 17 . Entretanto, após mencionar o
fim da revolta, Uruguai salientava que a pacificação desta província ainda não estava – e
nem estaria tão cedo – completa. Segundo ele, era necessário introduzir um outro elemento
no processo de pacificação: o caráter disciplinador do trabalho. Nos relatórios anteriores
que tratavam da revolta do Pará não encontramos essa percepção. É claro que a noção de
civilização, com seu desenvolvimento material, envolve um tipo de trabalho distinto
daquele praticado no sertão. Podemos, mesmo, presumir que esse papel do trabalho
estivesse presente quando era mencionada a idéia de civilização, entretanto Uruguai traz
esse atributo para o primeiro plano. Em outras palavras, o torna manifesto. Fato que merece
nossa atenção.
17
José Murilo Carvalho chama a atenção para a diferença de tratamento entre a revolta da Farroupilha e a
Cabanagem. Ver Carvalho (2002:21).
18
O Governo, após dominar a revolta, ordenou a formação de corpos de trabalhadores para todos aqueles com
mais de dez anos que não tivessem propriedade e ocupação aceitável. Ver Graham (1997:75).
179
conteúdo social do movimento, qual seja, sua forte base “popular” – nas palavras de
ministro anterior, a gentalha – não recomendava, para Uruguai, o instrumento da anistia.
Ainda dentro deste primeiro passo, mas numa perspectiva mais geral, Uruguai sempre irá
mencionar a necessidade de reformar o Código do Processo. Em segundo lugar, e é este o
ponto que o trecho aborda, um outro conjunto de procedimentos deve afetar a região, mas
estes procedimentos não são resultado de uma ação deliberada da mesma maneira como o é
a reforma da legislação, mencionada acima, mas de um processo de longa duração. Quais
sejam, da introdução de hábitos e costumes que terminariam por introjetar nos indivíduos
uma autodisciplina que os tornassem aptos para a vida civilizada. Lembremos sempre que
esses indivíduos viviam “numa mal entendida liberdade, numa licenciosidade” longe dos
braços da lei. A disciplina produzida pela sujeição regular ao trabalho opera contra esse
ambiente, caracterizado pela ausência de regras. A introdução lenta da civilização neste
sertão bárbaro não iria apenas alterar as condições sociais da região, como todos pareciam
concordar, mas também introduzir uma disciplina interior nestas massas ociosas sujeitas a
caprichos e a paixões violentas.
Observemos que o sertão sempre põe em risco a propriedade e os direitos do
cidadão, como veremos mais adiante, e será sempre descrito como um local no qual a
violência estará presente, conferindo a esse espaço uma sugestão de ameaça e de
imprevisibilidade nesse ambiente 19 . O trabalho seria um dos motores que introduziriam a
disciplina e a previsibilidade. Assinalemos o ponto de contato com a discussão realizada
anteriormente sobre Civilização e os termos Polidez e Cortezia. O civilizado é aquele que
conhece as regras do convívio pacífico. Uruguai, neste momento, não está tratando do
conhecimento através da educação formal, mas de um processo que se obtém através do
hábito, ou seja, de atos repetidos 20 . Mas, principalmente, Uruguai estava assinalando que o
trabalho introduz regras que disciplinam o habitante do sertão. Essa disciplina ocorre em
dois sentidos: por um lado, habitua os indivíduos a controlarem seus caprichos e por outro
os treina na subordinação (“o hábito da subordinação”). Afinal, cortesia também traz esse
sentido de acatar as ordens provenientes de Deus, do soberano e dos superiores – conforme
vimos anteriormente.
19
Sobre a ameaça que a irrupção imprevisível da violência imprime à civilização veja-se Elias, 1993
principalmente caps. I e II da Parte Dois :sugestões para uma teoria de processos civilizatórios.
20
Sobre essa definição de Hábito veja-se Moraes (1813).
180
O uso que Uruguai faz do termo civilização explicita uma dimensão presente na
idéia do conceito de civilização. Conforme vimos, no Dicionário de Francisco Constancio,
que a civilização modifica o estado social no qual o indivíduo está inserido, creio que
podemos perceber no argumento de Uruguai um dos significados de social. Nas palavras de
Uruguai, deveriam operar dois motores disciplinadores sobre a população do sertão: o
hábito dos indivíduos se sujeitarem à hierarquia social (da subordinação) e junto com este
o costume do trabalho. Segundo Uruguai, a civilização introduz no indivíduo um
autocontrole, mas agora decorrente não apenas do apuro, pois não é um acréscimo, um
polimento final (um adorno) uma vez que nasce na maneira pela qual a sociedade se
reproduz, o trabalho. E creio que podemos destacar mais um aspecto: esta autodisciplina
não é o resultado de um aprendizado formal – uma ilustração – mas de um hábito, uma
repetição contumaz.
Lancemos um olhar sobre o percurso que realizamos. Como observamos nos
Relatórios de 32 até 36, o amor à propriedade e à riqueza desempenham um papel
fundamental na contenção das revoltas. Com o argumento de Uruguai, o tema do trabalho
emerge como um aspecto particular, dentro da discussão precedente. Como estamos
tratando da dimensão material envolvida no termo civilização, creio ser pertinente trazer
um terceiro aspecto: o tema do interesse e dos vínculos sociais que este produz. Como
pudemos observar no Capítulo 2, o tema do interesse entrou no debate político. Segundo
Evaristo, o interesse estimula o desenvolvimento material; a busca de uma possessão
exclusiva de um bem, para Evaristo, dispõe o indivíduo na direção do progresso. Sem este
sentimento, completa, os indivíduos – os selvagens, ainda segundo o autor – vivem
dispersos. No meu entendimento, essa dispersão mencionada por Evaristo, aponta para a
ausência de laços sociais. O interesse, ao lançar o homem no caminho do desenvolvimento,
estabelece vínculos sociais deste para com seus competidores ou com os seus aliados, na
busca da posse exclusiva de um bem, e para com a ordem social, que lhes garante usufruir
deste bem. O sertão foi descrito, por Uruguai e seus contemporâneos, como um mundo
social no qual os homens viviam dispersos, sem laços para com a ordem social e política,
ao sabor de paixões ferozes ou de caprichos, em síntese, uma esfera social na qual a força
do interesse é inexistente ou fraca.
181
A ausência do interesse e dos laços civilizados que este produz também estava
presente na preocupação do Ministro da Fazenda Alves Branco, na discussão sobre a
revisão das tarifas alfandegárias.
Em 1844, com o fim do tratado comercial com a Inglaterra, foi decretada a Tarifa
Alves Branco, que tributava em 30% a maior parte dos produtos estrangeiros. O Tratado
anterior, de 1810, concedia à Inglaterra a tarifa preferencial de 15%, fato que empobrecia as
finanças nacionais (ver Furtado, 1986:caps. 17 e 18). É neste contexto que Alves Branco
observava os efeitos benéficos que o aumento acarretaria.
O aumento das tarifas alfandegárias, segundo o ministro, protegeria a indústria e a
agricultura nacionais. Um dos resultados desta medida seria “a formação de um grande
mercado ligando os cidadãos com os vínculos do interesse recíproco” ( Relatório do
Ministro da Fazenda do ano de 1844, p. 38). Analisemos esta fala tendo em mente a
passagem de Uruguai, na qual ele descreve os habitantes do sertão como indivíduos que
“vivem em um certo estado de independência”. A partir desta, podemos interpretar a
argumentação de Alves Branco, escrita três anos depois, da seguinte maneira: a tarifa tem
como meta criar um mercado, o que, ao mesmo tempo formaria os vínculos de interesse
que ligariam os indivíduos, que sem estes estariam dispersos. A partir deste fato os
indivíduos passariam a ter necessidade de outros indivíduos para a sua sobrevivência e
prosperidade material. Alves Branco apostava no mercado e nos interesses como criadores
de vínculos entre os indivíduos. Esse estado de dispersão, de ausência de laços sociais,
sempre aparece nos Relatórios e nos discursos associado à barbárie. Portanto, acredito que
podemos colocar o sertão no pano de fundo da argumentação em prol da criação e do
reforço dos vínculos de interesse. Em outras palavras, creio que a passagem do Relatório
mencionada ganha todo o seu sentido se tivermos em conta a descrição do sertão, com a
sua ausência de laços de interesse, e dos efeitos benéficos que essa medida teria sobre esta
região.
Ilmar Rohloff de Mattos assinala a falta de lugar dos homens pobres livres,
dispersos pelo sertão, sem que estivessem vinculados diretamente às atividades mercantis
que conferiam sentido à ocupação do território. Neste sentido, este autor mobiliza um
comentário de um viajante, que nos é extremamente útil. Essa desvinculação, como observa
Mattos, oferecia margem a observações como a de Luís d’Alincourt. Segundo este viajante,
182
para a maior parte do povo não está presente o sentimento do interesse: “[...] o geral do
povo, como não pode exportar, e não é animado pelo interesse, mola real do coração
humano, tem-se entregado à indolência e preguiça, causas fatais à população (apud
Mattos, 1994:115)”.
Podemos assinalar aqui o uso do termo interesse na mesma acepção daquela feita
por Evaristo, analisada no Capítulo 2. O interesse impulsiona o indivíduo a sair do seu
estado de barbárie – no qual está o selvagem, conforme a passagem de Evaristo, ou a maior
parte da população do sertão. O interesse como motor da civilização produz os vínculos
que ligam o indivíduo à sociedade, ou melhor, à boa sociedade: o hábito do trabalho, o
apego à propriedade e, como resultado no plano político, o apreço pela ordem. Esta mola
não existe no sertão, ou pelo menos, sua força é fraca e dispersa, sem conseguir marcar a
paisagem social
A riqueza, por sua vez, é um dos traços marcantes da civilização. Enquanto a
barbárie é marcada pelo atraso material, um dos traços centrais da civilização é o progresso
material. E esse progresso material civiliza os hábitos e costumes dos indivíduos, e o faz de
maneira a “polir” a brutalidade que os distinguia na barbárie.
Creio que podemos mesmo sintetizar essa visão numa passagem de um discurso
feito na Câmara dos Deputados dez anos após o relatório de ministro da Fazenda, escrito
por Alves Branco.
Em discurso feito em 1854, o deputado Maurício Wanderley aborda o tema da
migração de escravos do Norte para o Sul do país. A partir deste fato, ele conclui quais
seriam as conseqüências para o Norte:
183
social da barbárie sobre esse território, permitindo que o homem do sertão manifestasse
suas paixões desenfreadas, com resultados nocivos para a ordem política 21 .
Se pensamos que a civilização produz um polimento nas paixões do homem,
tornando-o apto para uma vida pacífica, podemos argumentar que a ausência desse
polimento desencadeia revoltas. Conforme observamos no relatório de ministro da Justiça
de 1832, Carneiro Leão atribui à “falta de civilização” na província do Ceará a eclosão da
“guerra civil” 22 que naquele momento assolava a região.
A riqueza material é uma das marcas da civilização, fato que, por sua vez, torna os
indivíduos mais brandos. Nesta direção, observemos o contraponto entre os homens
civilizados e os homens rudes do sertão. Estes, que não possuem essa brandura, quando
aparecem nos discursos, seu comportamento não possui essa polidez, esse respeito às regras
do convívio pacífico que caracteriza os homens civilizados; não respeitam a propriedade, o
sexo ou a religião.
No sentido em que interpretamos a riqueza material a partir dos textos, esta vem a
ser o elemento diferenciador entre o homem civilizado e o selvagem 23 . O interesse lança o
indivíduo numa luta em defesa dos seus assuntos particulares através da competição por
bens materiais, e essa luta termina acarretando, entre outros aspectos, o progresso material,
e com ele, conforme o deputado Maurício Wanderley sustentou, aparece a civilização e sua
polidez. O mundo da desordem característico do sertão encontra seu contraponto no mundo
do interesse, típico da civilização.
A idéia de que o indivíduo civilizado é movido pela competição em direção ao
progresso material e a uma autodisciplina interna está presente em outra questão
extremamente importante: a do povoamento. Vejamos como este tema se faz presente no
debate político da época e como as idéias mencionadas acima estão presentes neste assunto.
Observemos o trecho abaixo:
“Eu não duvido que para diante, quando a nossa população houver
aumentado, quando o número de pessoas habilitadas para o cargo de
jurados for maior, quando a instituição do júri estiver mais arraigada
21
Sobre esse discurso do deputado Mauricio Wanderley, veja-se, também, o verbete Civilização no
Dicionário do Brasil Imperial.
22
Ver Relatório de Ministro de 1832, p. 3.
23
Conforme vimos no Capítulo 1, na discussão sobre o sentido que tem esse termo no debate sobre o Ato
Adicional, especialmente em Evaristo da Veiga .
184
e desenvolvida, se possa restabelecer com vantagem o primeiro
conselho. Por ora não preenche os fins que teve em vista o legislador
quando o estabeleceu. Dele não resulta para a sociedade o menor
benefício e garantia, mas unicamente a absolvição de muitos criminosos,
cuja condenação houvera trazido sem dúvida o desenvolvimento da
acusação no segundo conselho”. (Uruguai, Sessão da Câmara dos
deputados de 11 de julho de 1840, p. 306).
“Digo que uma das principais causas porque outras existem nascidas da
nossa posição, estado de civilização, extensão do território
proporcionalmente pouco povoado, dos nossos meios, e outras
circunstâncias que somente o tempo, a maior difusão de luzes e o
aumento de riqueza e população podem lentamente minorar e
remover”. (Uruguai, Relatório de 1841, p. 18)
24
Uma exposição deste artigo e o seu debate político encontra-se no Capítulo 7..
25
Ver Uruguai, Relatório de Ministro da Justiça 1841, p. 18.
185
positivamente o país. Em contrapartida, o território extremamente grande e com uma
população reduzida é um dos males que afligem o país.
Conforme pudemos observar no Capítulo 4, o vínculo entre aumento da população e
civilização está presente, também, no pensamento descentralizador. Segundo uma proposta
do ministro da Justiça, Limpo de Abreu, o júri nos moldes previstos pelo Código do
Processo somente deveria ter vigência plena em cidades com uma determinada população.
Em cidades com uma população escassa o júri não teria um bom funcionamento.
Devemos observar quais são, para o pensamento da época, os traços sociais que
estão presentes na idéia de que o aumento da população acarretava um crescimento do nível
de civilização. Para tanto, vejamos um trecho do Visconde de Cairu:
26
Ver a Introdução escrita por Antonio Penalves Rocha para Cairu (2001).
27
Werneck Vianna, Os intelectuais da Tradição e a Modernidade: os juristas-políticos da OAB (1986: 84).
186
Observemos que no argumento de Cairu o aumento da população incide
diretamente sobre a competição entre os indivíduos. Segundo ele, havendo muitos
concorrentes os indivíduos são obrigados a trabalhar pelo salário mais baixo, mas esta é
apenas uma das conseqüências. A partir do fato de que existem diversos indivíduos
exercendo a mesma tarefa, emerge a concorrência (“em virtude de incessante emulação,
têm despertada no espírito a faculdade inventiva”) entre os trabalhadores. É essa
concorrência que leva o indivíduo a se aperfeiçoar, buscando sempre superar seus
competidores no mercado.
Lembremos ao leitor o argumento de Evaristo da Veiga, analisado no Capítulo 2: é
o sentimento egoísta de apego à propriedade que leva o civilizado a se distinguir do
selvagem. No mesmo sentido, retomemos a idéia de Lino Coutinho, analisada no Capítulo
4. Segundo este, caso seja dado às províncias se organizarem livremente, será estabelecida
uma competição saudável entre as partes da União. Essa competição seria movida pelo
desejo de sobreporem umas às outras, fato que levaria inevitavelmente a uma desigualdade,
mas que seria compensada pelo progresso decorrente da competição.
No argumento de Cairu, o aumento da população desencadeia uma competição que
incide favoravelmente sobre o progresso da sociedade. Na análise que estamos
empreendendo, este aspecto vem a ser extremamente importante. No pensamento político
brasileiro, o sertão é caracterizado como um espaço social no qual transitam uma massa de
homens pobres livres marcados pelo ócio. Como escreveu Uruguai, são homens que não
conhecem a disciplina imposta pelo trabalho. Portanto podemos considerar que no
pensamento político da época, o aumento da população desencadeia um processo que força
os indivíduos a competirem por salários baixos e pelo aperfeiçoamento das suas tarefas..
Esse processo possui, para Uruguai e seus contemporâneos, um caráter civilizatório porque
substitui o ócio pelo trabalho, pela competição, pela busca exclusiva de um bem mediante
o trabalho.
Na nossa análise, a idéia patente em diversos momentos do debate político do
século XIX, seja no argumento centralizador ou federalista, de que nas regiões mais
populosas a civilização está mais presente ganha seu sentido pleno.
Portanto, a idéia de civilização possui conteúdos bastante precisos quando
comparada com a idéia de sertão. Neste item, procuramos assinalar que no debate político
187
brasileiro do século XIX esteve presente a idéia de civilização como um processo social
que moldava o comportamento dos indivíduos. A idéia de civilização esteve associada ao
trabalho entendido como uma atividade que disciplina os indivíduos. A existência de
cidadãos proprietários e disciplinados pelo trabalho constitui uma barreira ao conjunto de
homens, que mobilizados pelos eventos políticos, punham em perigo a ordem social e
política. O conceito de civilização envolvia a idéia de que os indivíduos, forçados pelas
condições sociais, buscavam um constante aperfeiçoamento da sua situação. Neste sentido,
o conceito de civilização acarretava a idéia de progresso. Os indivíduos moldados pela
civilização estabeleciam vínculos estáveis entre si e possuíam interesse na manutenção da
ordem e do progresso.
Em contrapartida, o conceito de sertão era apresentado como a antítese dos traços
presentes na idéia de civilização. O sertão seria fortemente marcado pela dispersão da sua
população. No sertão existiria uma massa de homens que não haviam ainda sido
disciplinados pelo trabalho; nem possuiriam o apego à propriedade. Neste sentido, não
existiria o impulso para o aperfeiçoamento; tampouco esses indivíduos possuiriam vínculos
estáveis entre si. Esses fatos estimulavam seu envolvimento nos conflitos armados.
Essa idéia do sertão como um espaço social no qual a dispersão da população e a
dimensão do território empresta um sentimento de perigo constante pode ser mais bem
discutida no item seguinte.
188
armamentos etc. Essa carência de meios administrativos para implementar a ordem
permitiria a manifestação freqüente da violência. Neste sentido, é preciso assinalar um dos
traços principais do sertão: a insegurança. O sertão seria um espaço social no qual a
violência pode vir a se manifestar de maneira imprevisível; esta constante imprevisibilidade
deixa o cidadão em permanente estado de insegurança. Vejamos como este conteúdo
apareceu em diversos momentos nos discursos produzidos no século XIX.
A ausência da infra-estrutura do Estado no sertão contribui para a insegurança do
cidadão. A presença desta infra-estrutura é mais sentida nas cidades mais desenvolvidas,
mas no interior a carência de prisões estimula a fuga e o sentimento de impunidade. Nas
palavras do ministro de Justiça, Aureliano Coutinho:
28
Relatório de Ministro da Justiça de 1833, p. 10.
189
A ausência de informações sobre a criminalidade no interior leva o ministro da Justiça,
Alves Branco, no seu relatório sobre o ano de 1834, a imaginar um estado gravíssimo. Na
capital do país era possível, a partir dos registros, estabelecer a proporção de 1 criminoso
para cada 154 habitantes 29 . Se, na capital, que era o local mais civilizado do país, existia
esta proporção, no interior esta deveria ser bem maior. Mesmo que posteriormente tenham
sido elaborados mapas sobre a criminalidade para o resto do país, o que vale a pena
destacar é o raciocínio do ministro. A capital do país aparece como local onde os traços
sociais e valores da civilização estão presentes e, à medida que estes vão desaparecendo, os
crimes devem logicamente aumentar.
No sertão, a dispersão da população, espalhada por um território ainda virgem, confere
aos seus habitantes um sentimento de independência frente à Lei. O Estado, neste ambiente,
encontra-se sem braços capazes de fazer-se presente, aumentando a insegurança existente.
Num debate no Senado sobre a necessidade ou não da concessão de passaportes,
Uruguai defende a necessidade da sua exigência com as seguintes palavras:
29
Relatório de Ministro da Justiça de 1834, p. 5. A partir de 1840 os relatórios passam a incluir um mapa
completo das infrações cometidas no território.
190
do Estado”: falta de prisões, juízes receosos em aplicar a Lei. Podemos mesmo dizer que se
faz presente o tema da situação de penúria na qual viviam os órgãos públicos 30 .
O funcionamento de alguns itens das Leis descentralizadoras, como a função do juiz
de paz, passam a serem percebidos, pelos seus defensores, como adequadas apenas às
regiões civilizadas. Na sessão da Câmara de Deputados de 30 de outubro de 1841, o ex-
ministro da Justiça, Limpo de Abreu, naquele momento deputado, defendia o papel do juiz
de paz:
“(Os) juízes de paz têm atualmente a seu favor as eleições dos seus
distritos, têm, portanto a seu favor, a opinião de muitas pessoas que
devem conhecê-los, que estão em relação com eles, e que podem
examinar a sua conduta, e os delegados e subdelegados têm a seu favor a
nomeação do governo”.
“Eu admito que a jurisdição que têm os juízes de paz para pronunciar e
para sentenciar em certos e determinados casos, seja conferida a outras
autoridades, [...].Entendo que os juízes de paz, principalmente nos
lugares populosos, onde a civilização tem feito progressos, oferecem
suficiente garantias. [...]; reconhecendo porém que fora dos lugares,
onde a civilização tem feito maiores progressos, os juízes de paz não
têm oferecido as mesmas garantias; o meu voto seria que fossem
substituídos por outras autoridades, mas quisera que as autoridades que
devem substituir os juízes oferecessem garantias melhores do que eles à
segurança e propriedade dos cidadãos. Ora, eis aqui o que não acontece,
votando-se pelos delegados e sub-delegados, que têm por si a nomeação
unicamente do governo, esta nomeação nada mais, é o quanto se requer.
A lei supõe que o governo nunca pode errar [...]”. (Sessão da Câmara dos
Deputados de 30 de outubro de 1841, pp. 800-801)
30
A referência a este tema é Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997), principalmente o cap. III. Sobre a
abordagem desta autora a respeito do Estado patrimonial, a referência é Werneck Vianna (1999).
191
distintos do juiz de paz. Nas áreas civilizadas, o juiz de paz funcionava de maneira
adequada, agindo de forma impessoal, sem utilizar-se do cargo para perseguir adversários.
Já nas regiões marcadas pela barbárie, o juiz de paz espelharia o estado social e político
desta parte da sociedade.
Gostaríamos de chamar a atenção do leitor para a nossa análise acerca de Limpo de
Abreu e o recuo dos federalistas nos anos 30 feita no Capítulo 4. Limpo de Abreu, quando
ministro da Justiça, propôs que o júri, da maneira pela qual o Código do Processo havia
determinado, deveria ficar restrito somente às cidades mais populosas. No trecho acima,
Limpo de Abreu reafirmava a sua idéia de que as cidades mais populosas seriam o espaço
social mais adequado para que a descentralização, prevista no Código do Processo, fosse
aplicada.
Na nossa análise, os federalistas, a partir da eclosão das revoltas regenciais, buscam
restringir o princípio de descentralização presente no Código do Processo. A idéia do
interesse, para os federalistas, estaria mais assentada nas regiões mais civilizadas. Nestas, o
apego à propriedade e a regularidade imposta pelo trabalho seriam barreiras contra as
insurreições armadas. Podemos, portanto, considerar que, quando os federalistas restringem
os mecanismos descentralizadores às regiões mais civilizadas, a lógica política presente na
sua operação consiste em subordinar o aspecto participativo ao tema do interesse.
5.4 – O partido político movido por princípios versus o mundo das cabalas e das facções
192
opinião pública expressava a existência de um debate desenvolvido na sociedade, ao
mesmo tempo em que vigiava o poder e seus representantes; a educação encontrava-se
difundida, fornecendo aos cidadãos uma base intelectual para participarem dos debates. Por
sua vez, no sertão a vida política expressava outro conjunto de valores. Os partidos eram
organizados em torno de famílias, expressando apenas o desejo de ocuparem os cargos para
oprimir seus adversários, sem nenhuma consideração pelos limites da Lei. Não existia um
debate público acerca dos assuntos, nem uma educação capaz de iluminar os cidadãos.
Observemos como esses temas aparecem no debate político.
Em 3 de novembro de 1841, Uruguai, então ministro da Justiça, discursava na
Câmara numa das últimas sessões legislativas antes da votação da Reforma do Código do
Processo. Uruguai estava respondendo a um discurso proferido por Limpo de Abreu, ex-
ministro da Justiça em 1836 e adversário do projeto. Limpo de Abreu criticara, na sessão
anterior, a dependência em que as autoridades nomeadas ficavam em relação ao governo.
Parte do argumento de Uruguai residia em mostrar que o governo oferecia mais garantias
ao cidadão, enquanto a outra parte consistia em apontar para o contexto político do qual
emergia o magistrado eleito. Vejamos esta segunda parte.
Uruguai descreve como a legislação elaborada durante a Regência havia deixado o
poder fraco, incapaz de “acalmar as paixões, organizar o país e preparar as bases para sua
futura grandeza e prosperidade” (Sessão de 3 de novembro de 1841, p. 810). Essa situação,
de fraqueza do poder, nascia, por um lado, do retalhamento sofrido pelas atribuições que
antes pertenciam exclusivamente ao poder central – sendo agora controladas pelas
Assembléias Provinciais e pelos poderes eleitos no município – e, por outro, do conteúdo
que emergia da ação política oriunda das localidades. Vejamos este segundo aspecto, o
conteúdo da ação política proveniente das pequenas localidades.
193
Para caracterizar o conteúdo da ação política que emerge das localidades, Uruguai
faz uso dos termos “paixões e ambições”. A administração, que com a legislação regencial
nasce nos municípios, é movida por paixões. Na frase acima podemos assinalar a
contraposição entre uma administração movida por paixões locais e outra, por motivos que
visam a objetivos mais regulares e imparciais, e, portanto, mais adequada às necessidades
do país – “uma marcha mais larga da administração”.
É importante que observemos o uso da expressão “marcha mais larga” no trecho
acima. No Capítulo 2 destacamos o seguinte aspecto: para os centralizadores, o funcionário
público deveria estar vinculado ao poder central; em contraposição, os federalistas
defendiam que o funcionário necessitava ser escolhido dentre os cidadãos ativos locais. No
argumento centralizador, o funcionário escolhido e vinculado pelo poder central disporia
dos méritos adequados para um bom desempenho da função. Outro aspecto extremamente
relevante para os centralizadores dizia respeito ao seguinte: esse funcionário não espelharia
os interesses locais (“os aferros locais”), mas uma política que trouxesse valores que
diziam respeito ao Estado-nação. No discurso de Uruguai podemos assinalar a presença
desse contraponto. Para ele, a administração deveria ir por um caminho que não seguisse as
paixões locais, mas uma política mais larga. No trecho citado podemos contrapor a idéia de
que a administração deva seguir valores distintos daqueles da localidade, princípios que
não nascem das localidades, mas de um Estado-nação.
E qual o conteúdo destas paixões nascidas nas localidades? Ou por que Uruguai
escolhe os termos paixões e ambições para nomear a ação política nascida nas localidades?
Vejamos a passagem abaixo, para tentar responder a essas questões.
194
vezes não é político, mas de famílias e de influências locais, procura
colocar a autoridade nas mãos dos seus para não ser oprimido, e para
oprimir e vingar-se.” (ibidem, p. 811)
Repetindo o que havia exposto no seu Relatório do mesmo ano, Uruguai expõe com
clareza o conteúdo da ação política proveniente das pequenas localidades: oprimir para não
ser oprimido. Os cargos eleitos do Judiciário são um mero instrumento de defesa de grupos
familiares. Nas pequenas localidades, a ação política não é pautada por valores calcados na
civilização, que, por sua vez, geram uma ordem social pacífica que permite aos indivíduos
viverem em segurança. A ação política, nestas pequenas localidades, é a mera expressão de
paixões clânicas e de uma ambição voltada para o extermínio do adversário; são paixões e
ambições porque produzem interminavelmente outros conflitos armados que põem em
perigo a ordem; são paixões e ambições porque violam o princípio da impessoalidade,
dando lugar ao favor .
Vale a pena observar um segundo aspecto importante: Uruguai assinalava o local no
qual ocorrem estes conflitos. Tendo em mente o trecho anterior do discurso de Uruguai, no
qual ele se utilizava do termo localidades, observemos esse trecho do seu relatório de
presidente de Província de 1839. Neste, Uruguai, abordava o mesmo assunto, qual seja, a
natureza dos conflitos políticos que se desenrolam longe das cidades mais populosas e das
capitais.
Uruguai situava esses conflitos entre clãs parentais nas pequenas povoações. E
poderíamos abrir o conteúdo deste termo tendo em mente os significados que estamos
levantando: pequenas localidades longe do litoral, sem uma grande difusão da educação
cívica e formal, pouco povoadas, com grande facilidade de fuga dos criminosos e nas quais
195
o interesse não possui força suficiente para disciplinar os indivíduos e torná-los afeitos à
ordem. A estes traços, anteriormente levantados, podemos agora acrescentar: nestas
pequenas localidades, as eleições e a vida política em geral são disputadas por clãs
parentais. Vejamos este aspecto.
Observemos que, segundo Uruguai, nas localidades os partidos não estão
organizados em torno de princípios políticos, mas de famílias e influências locais. O
raciocínio de Uruguai pressupõe que existam duas formas distintas de agrupamentos
partidários: um, reunido em torno de princípios políticos, enquanto o outro seria um mero
agrupamento de famílias, de influências locais. Uruguai estava operando a partir de uma
determinada compreensão das disputas políticas: o problema não é que existam grupos
disputando os cargos, o problema reside em que estes busquem os cargos apenas com a
finalidade de perseguir os adversários. Uruguai operava com esta distinção, mas não se
utilizava de termos distintos para tal. Observemos que no início da citação ele se utiliza dos
termos “as pequenas facções? – que são meros agrupamentos de famílias – e, ao final,
mencionava partidos.
Em resumo, para Uruguai, existiriam grupos que disputavam as eleições
organizadas em torno de princípios políticos, enquanto outros visavam simplesmente a
obter o poder para controlar os cargos, com a finalidade de oprimir os adversários e obter
vantagens. Podemos observar que Uruguai operava a partir da distinção entre partido e
facção, diferença que anteriormente já estava presente no debate político brasileiro.
Vejamos esta distinção no debate político do Primeiro Reinado.
O debate político no Primeiro Reinado e no início da Regência forçou os liberais
moderados a enfrentarem aqueles que eram chamados, na época, de absolutistas ou
caramurus. Neste período, segundo José Murilo de Carvalho, podemos caracterizar a
atuação de Bernardo Pereira de Vasconcelos, um dos representantes dos liberais
moderados, da seguinte maneira: “Sua preocupação central foi a de colocar em
funcionamento a monarquia representativa, acabar com os resíduos do absolutismo ainda
vigente na cabeça e nas práticas do imperador, de seus ministros e até mesmo nas leis”
(Carvalho, 1999:17). Neste sentido, Bernardo e os liberais moderados buscavam legitimar a
oposição que faziam a D. Pedro I, e que não seria anticonstitucional, nem contrária à
liberdade.
196
Numa passagem da sua Carta aos Eleitores Mineiros (1827), Bernardo Pereira
respondia aos absolutistas que teimavam em criticar os partidos no Legislativo, mostrando
que a sua existência não era um mal ao país, muito pelo contrário, era um instrumento
necessário para o bom funcionamento de um sistema liberal. Isto porque não se devia
confundir partido com facção. O país-mãe deste sistema, a Inglaterra, possuía dois partidos
nitidamente separados, fato que não feria a liberdade. Vejamos esta passagem:
Podemos ressaltar que, para Vasconcelos, os partidos não só existem, como são
distintos das facções. Os absolutistas são ironizados porque, ao perceberem a sua
existência, imediatamente temem pela liberdade. Vasconcelos ironiza o temor dos
absolutistas, estes não percebem a sua existência no país-modelo do sistema liberal, a
Inglaterra. Lá, tories e whigs marcam sua presença no Legislativo com toda a legitimidade,
sem que a liberdade esteja em perigo.
Por outro lado, há um receio da parte de Vasconcelos, qual seja, a de que o
eleitorado brasileiro, ainda pouco ilustrado, não tivesse condições de perceber os
benefícios que os partidos trazem, e terminasse por dar ouvidos aos absolutistas,
confundindo partido com facção.
Vasconcelos distinguia claramente dois tipos de grupos políticos. O partido,
segundo ele mesmo escreve, não traria nenhum mal à liberdade; que a Câmara estivesse
divida entre partidos distintos não é, por si, um mal. Mas o perigo à liberdade nasceria caso
o Legislativo estivesse dividido em facções. Certamente por estar na oposição, era
necessário que Vasconcelos legitimasse sua posição, e a dos liberais moderados, no
conflito de idéias que o opunha aos absolutistas. A oposição ao Imperador não estava
organizada da mesma maneira que as facções .
197
Não era apenas Vasconcelos quem operava nesta direção. Evaristo, outro liberal
moderado, também tratava do partido. Na passagem abaixo, Evaristo discutia o contexto
francês após a restauração de 1814. Observe-se o trecho do Aurora Fluminense, publicado
em 12 de novembro de 1828:
“[...] os homens que têm entrada na vida ativa desde a restauração, que se
educarão debaixo do fogo da Tribuna, e da Imprensa Livre. [...] Esses
saberão soltar a eleição das afeições, ou interesses privados das
paixões de localidade, para se ligarem invioladamente ao interesse de
partido na elevada acepção do tema”. (Aurora Fluminense, 15 de
fevereiro de 1833, p. 482).
O contexto político francês era caracterizado pela extrema instabilidade, apenas para
lembrarmos alguns fatos: a República havia sido proclamada (1792); Napoleão foi coroado
Imperador (1804); e, em 1814, a Monarquia é restaurada. Temos, portanto, uma vida
política extremamente ativa, com os partidários de cada regime extremamente mobilizados.
Nesta situação, marcada por uma extrema partidarização, Evaristo assinala a possibilidade
de que os partidos venham a desempenhar um papel positivo. Isto ocorreria quando o
partido se separasse dos interesses mesquinhos da localidade – um aspecto, aliás, bastante
destacado por Burke 31 . Ao longo de todo o artigo, Evaristo chamava a atenção do leitor
brasileiro para esta atitude dos jovens franceses, assinalando a sua importância para a vida
política brasileira. A intenção de Evaristo era clara, não se tratava apenas de uma análise
despreocupada do caso francês, mas de um exemplo a ser seguido.
Segundo Evaristo, os “interesses de localidade” devem sair do seu campo estreito
para se orientar na direção do “partido na acepção elevada do tema”. Em outras palavras, os
interesses de localidade devem galgar um patamar mais elevado. Esse ato de superação dos
estreitos limites das paixões de localidade seria efetuado por um agrupamento partidário. A
vida partidária educaria o cidadão em direção a uma participação mais de acordo com os
interesses públicos. Em outro artigo, ao tratar das eleições para juiz de paz, Evaristo atribui
31
Uma das lutas de Burke foi para demonstrar que o representante eleito na localidade durante o exercício do
seu mandato deve se pautar não pelos interesses locais, mas pelos interesses nacionais. Sobre este ponto veja-
se Pitkin (1967).
198
aos caramurus a organização de facções com o intuito de cabalar votos. Ou seja, de efetuar
uma trama, uma conspiração contrária aos interesses da sociedade.
Portanto, Evaristo também conhecia e operava com a distinção entre partido e
facção, guardando para o partido uma tarefa mais nobre – elevar os interesses – do que
aquela das facções, meros grupos com fins escusos frente ao bem público. Vasconcelos e
Evaristo trabalhavam a partir de Burke, ou muito próximos às suas idéias sobre facção e
partido 32 .
Segundo Sartori, foi Burke quem estabeleceu de forma precisa a distinção entre
partido e facção. Quando Burke percebeu que o conceito de partido poderia ser pensado de
uma perspectiva positiva, seu único antecessor nesta idéia era Hume (Sartori, 1982:29-33).
A idéia tradicionalmente aceita, no debate político ocidental, era de que a facção seria um
mal, pois perturbaria o bem comum (ibidem:23-24). Ao longo do século XVIII o termo
partido, que inicialmente estava ligado exclusivamente ao campo da religião, passa a fazer
parte do vocabulário político, sendo usado como um sinônimo de facção (ibidem:24-25).
Saint-Just expressava esta visão quando escrevia que “Todo partido é criminoso. [...] Toda
facção é portanto criminosa. [...] Toda facção procura enfraquecer a soberania do povo”
(apud ibidem:31).
Na sua atuação parlamentar, Burke lutava contra a estratégia política do rei Jorge
III. Este monarca pretendia garantir para a Coroa prerrogativas que haviam sido
transferidas para o Parlamento, com o advento da Revolução Gloriosa de 1688 (ver Harris,
1993, Introdução). Para Burke, a ameaça inconstitucional provinha do Rei, corporificada na
fórmula divide et impera, qual seja, os aliados do rei se aproveitavam de um Parlamento
desunido, ou melhor, dividido em facções, e com isso impotente para governar. Nas
palavras de Sartori : “Burke compreendeu – e nisto foi genial – que, como o parlamento
não podia ser monolítico, estaria em muitos melhor posição de resistir à coroa se seus
membros estivessem ligados, isto é, organizados em ‘ligações honrosas’” (Sartori,
1982:30). Quando Burke define partido, ao mesmo tempo ele o distingue de facção e
32
Lembremos que Burke era muito citado por um adversário dos liberais moderados, o Visconde de Cairu.
Sobre este ponto ver Lustosa (1999:29). O Visconde de Cairu traduziu, em 1812, uma coletânea de textos de
Burke centrada principalmente em extratos das Reflexões sobre a Revolução na França e alguns trechos dos
Thoughts. Nesta podemos encontrar o seguinte trecho, retirado das Reflexões.., no qual formula-se uma crítica
à facção, apesar de, ao longo do livro, não aparecer o tema do partido: “A facção não é local ou territorial é
um mal geral. Onde parece estar menos em ação sempre está em vigor de vida. O seu espírito está na
corrupção de nossa natureza”. Ver Burke, Extratos das obras políticas e econômicas (Cairu, 1812:52).
199
legitima sua ação na medida em que este passa a possuir um enfoque positivo. Em
Thoughts on the cause of the present discontents um dos ataques de Burke volta-se contra a
“doutrina” difundida pelos homens do rei, segundo a qual : “That all political connexions
are in their nature factions, and such ought to be dissipated and destroyed; and the rule for
forming Administrations is merely personal hability” (Thoughts...:183-184). Neste sentido,
Burke formulava uma definição de partido não como uma facção, mas como uma ligação
(connexion) honrosa, como se vê abaixo.
Na visão de Burke, o partido passa a ser uma ligação honrosa entre diversos
cidadãos, que estão unidos em torno de princípios, os quais eles acreditam que sejam o
melhor para a sociedade. Neste sentido, ocupar e postular cargos públicos exclusivamente
para seus membros não se trata de um fato negativo. Longe disto, constitui-se no pré-
requisito para que o bem público, na visão dos membros do partido, seja implementado. Da
disputa entre os diversos partidos pelo poder nasce uma luta honrosa. Os indivíduos ligados
entre si por princípios têm maiores chances de pôr em prática políticas benéficas para a
sociedade, bem como de prever os males que porventura venham a aparecer. Dessa
maneira, a existência de partidos não é um mal necessário ou inevitável para o sistema
liberal, mas algo necessário, poderíamos dizer desejável, para o seu bom funcionamento.
Na visão de Burke, a facção seria o pólo negativo. Seus membros possuem uma
visão restrita e intolerante, que mistura bem público com interesses particulares (ver
Thoughts..., p. 182). Além disso, sua busca pelo poder visa apenas aos cargos e aos
emolumentos em benefício próprio.
200
Entretanto, se tomarmos o ponto que distingue, para o autor nascido em Dublin, as
facções dos partidos – a luta por cargos ou a luta entre princípios políticos – não podemos
encontrar tal conteúdo nos artigos ou discursos de Evaristo ou de Bernardo.
Mesmo a distinção entre os termos partido e facção, da maneira como Vasconcelos
a apresentou, se perdeu no debate político brasileiro no período regencial. Os relatórios e
os discursos pesquisados constantemente se utilizavam dos dois termos para designar o
mesmo grupo político. Os que desencadeavam as lutas armadas, nas províncias, eram
chamados ora de facção ora de partido, ficando, dessa forma, igualados. Ao mesmo tempo,
podemos perceber que o termo cabala também desempenha a função de um sinônimo de
facção. Vejamos o uso dos termos facção, cabala e partido com o mesmo sentido.
No Dicionário Português e Latino de 1771 de Pedro Fonseca Cabala é definida
como conspiração. Facção, partido. No Dicionário Moraes, na sua edição de 1823,
conforme já vimos no Capítulo 3, Cabala vem a ser conspiração de pessoas para o mesmo
intento, mau fim. No mesmo Dicionário, o termo Partido ainda está associado a
parcialidades, partes, bando, facção. Podemos compreender que os termos cabala, facção e
partido estão apontando para um sentido comum: uma ação oculta, longe dos olhos do
público, intentada por uma parcialidade, uma parte do todo, que não compartilha dos
interesses comuns deste e busca apenas seus objetivos. Temos, para estes termos, uma
conotação negativa.
Em 1834, Alves Branco mencionava a capital da Província de Alagoas como tendo
sido palco de grandes desordens. O resultado das eleições para a Assembléia Provincial
beneficiou “exclusivamente os candidatos de uma das cabalas, que dominavam na
Província”. 33 Os protestos da oposição não encontravam nenhuma esperança na
Assembléia, pois, segundo Alves Branco, esta era “composta quase toda dos chefes da
cabala” 34 . O resultado foi a eclosão de um grande conflito. Gente armada de todos os
cantos da província afluíram para a capital, tendo à sua frente juízes de direito. O centro de
onde se reuniam e partiam esses grupos era a Vila de Atalaia, no interior da província –
palco costumeiro de pequenas revoltas. O vice-presidente, responsável pelo triunfo da
cabala, foi deposto, da mesma forma que outras autoridades civis e militares. “As
primeiras eleições foram anuladas, substituindo-se todos estes funcionários por gente da
33
Ver Relatório de Ministro da Justiça do ano de 1834, p. 13.
34
Ibidem:14.
201
parcialidade da nova facção triunfante, e assassinando-se diversas pessoas” 35 . Podemos
presumir, com base nesta conclusão, que os motivos do conflito apenas trocaram de lado,
agora quem oprimia era a facção que havia sido derrotada anteriormente.
No mesmo relatório, os males que explodiam no Pará (Cabanagem) eram
decorrentes do fato de no “coração do homem ignorante e sem educação quando o espírito
de partido o domina [...] e se acha livre de todo obstáculo e de toda repressão das Leis” 36 .
Aqui encontramos o termo partido na descrição de um evento que, frente aos olhos da elite
política da época, era a expressão de um espírito bárbaro, estreito, que desconhecia o bem
comum, apenas dando vazão ao interesse particular destes homens sem educação.
Lembremos que, em 1828, Evaristo escrevia que uma das funções do partido era a de
elevar os interesses locais do seu estreito campo de visão, enquanto aqui o partido vem a
ser exatamente a expressão desse particularismo. Neste momento (1834), partido, facção e
cabala estão misturados sem que seus distintos conteúdos sejam assinalados.
Entretanto, coube a Uruguai se utilizar da distinção assinalada anteriormente – o
partido estava organizado em torno de princípios, enquanto as facções se resumiam a
disputas de cargos.
Já observamos que Uruguai, em 1841, distinguia nas lutas políticas partidos
organizados em torno de princípios políticos daqueles montados ao redor de famílias e
influências locais. Segundo Uruguai, nas pequenas localidades os partidos seriam
meramente a expressão de famílias. Estes grupos políticos disputavam eleições com o
objetivo de obter cargos de modo a oprimir os adversários
Em 1862, quando da publicação do Ensaio, Uruguai retomava essa discussão.
Entretanto, como se tratava de um texto escrito, Uruguai reforçava a distinção dos grupos
que disputam o poder organizados em torno de princípios, daqueles que o fazem com o
mero intuito de obter cargos, com vistas a oprimir os adversários.
Na passagem que vamos citar, Uruguai estava descrevendo as disputas políticas nas
províncias e nas pequenas localidades. O grupo que vencia as eleições tratava de organizar
“um castelo inexpugnável” (Ensaio..., cap. XXXI, p. 380). Ou seja, montava-se uma
fortaleza a partir da qual buscava-se perseguir os adversários. Punha-se em funcionamento
uma máquina de promotores, juízes de paz, oficiais da Guarda Nacional, deputados
35
Idem.
36
Ibidem:13.
202
provinciais etc., visando a oprimir os adversários, violando seus direitos, bem como
objetivando impedir que nas próximas eleições estes grupos tivessem quaisquer chances de
vitória. Segundo Uruguai, estes grupos se organizavam e conflitavam entre si, visando
apenas aos empregos, que eram usados unicamente para se firmar como o a única
influência relevante na localidade: “[...] a questão era em grande parte de empregos por
meio dos quais cada dominador quer assegurar-se em seu bairro” (idem). A vantagem, para
Uruguai, que a centralização havia trazido era a de tirar poderes destes grupos.
203
compreender a sua reflexão sobre a natureza das disputas políticas no Brasil e o papel dos
partidos: como nas pequenas localidades, com pouco desenvolvimento material, com
populações livres, mas sem os vínculos do interesse, com a ilustração pouco difundida,
sem o costume do autogoverno, com uma opinião pública precária ou inexistente, irão se
organizar partidos que não sejam apenas a expressão de influências locais/de famílias e
que visem apenas ao emprego para dominar e violar os direitos do adversário? Para
Uruguai, os traços sociais do sertão configuram o conteúdo da ação política dos partidos.
Os partidos expressam tão-somente o desejo desses clãs familiares de apresentar-se nas
localidades como o chefe inconteste, manipulando os cargos de todas as maneiras para
obter tal fim, desencadeando, inevitavelmente, conflitos armados que colocam em risco a
construção da nação.
Ocorre que, para Uruguai, existe uma outra luta política que se dá em torno de
outros motivos: princípios políticos. No Brasil, esta ocorre porque o poder foi afastado da
dinâmica social e política das pequenas localidades ou, como ele escreveu no Relatório de
1843, “das suas exigências desencontradas” (ver Relatório de 1843, p. 3). O poder, para
Uruguai, deveria estar organizado de tal maneira que o conteúdo da ação política
proveniente destas pequenas localidades, com seus partidos reunidos em torno de famílias,
fosse o menor possível ou fosse filtrado pelo peso dos setores civilizados existentes na
sociedade brasileira. A centralização retira o poder público das mãos destas pequenas
localidades e o põe girando em torno de princípios emanados dos setores civilizados da
sociedade.
Esse sentido negativo atribuído a estes termos estava presente nas intervenções
parlamentares de Uruguai, feitas no ano de 1841, vistas anteriormente. Assinalemos,
também, que aos grupos políticos nos quais as pequenas povoações se dividem ele os
chama de facções - termo que já observamos é usado para definir cabala, grupo que
conspira longe dos olhos do público. Essas facções são movidas por caprichos, aliás o
mesmo adjetivo usado para descrever a ação dos homens pobre livres dispersos, agindo nos
conflitos armados. Seu motivo está longe de ser nobre, ou merecedor da designação de
princípios.
Da ação política desta facções, presentes nas pequenas localidades espalhadas pelo
país, não emergiria, para Uruguai, nenhuma política capaz de construir um Estado-nação.
204
Na reflexão de Uruguai, ocorre um nítido movimento de desvalorização da ação política
proveniente das pequenas localidades, seu letimotiv será sempre associado ao
“particularismo, aos caprichos”.
A compreensão de que a ação política proveniente dos partidos possuía conteúdos
políticos distintos em razão do seu contexto social e político não ocorre somente em
Uruguai, também esteve presente em Francisco Lisboa. Observar o argumento de Francisco
Lisboa nos permite reforçar as idéias de Uruguai sobre este tema e perceber em que medida
era um diagnóstico presente na sociedade brasileira da época.
Em 1852, Francisco Lisboa 37 escreveu sobre os costumes políticos na sua província
natal, o Maranhão. Na pintura deste quadro, Silva Lisboa, como Uruguai 38 , foge
intencionalmente da descrição e da análise das pessoas envolvidas nos eventos, sua
preocupação é o de captar os traços que configuram a atividade política,
independentemente do personagem; o que ocorre no Maranhão ocorre independentemente
da pessoa envolvida. Como o autor escreveu no seu “Prospecto” ao Jornal de Timon : “A
pintura dos costumes privados [...] não entra como elemento principal no plano deste
trabalho; [...] Mas o seu fim primário ficará sendo sempre a pintura de nossos costumes
políticos; [...]” (Lisboa, 1852:35).
Ao comentar o funcionamento dos partidos no Maranhão, Francisco Lisboa
percebeu a distância entre o mecanismo partidário na teoria e aquele que se manifesta nas
províncias. José Murilo de Carvalho aponta os traços que feriam a consciência liberal de
Lisboa.
De maneira geral, estava presente um descompasso entre o ideal liberal e a
realidade nacional. Os valores que guiavam Lisboa eram aqueles provenientes do
Liberalismo europeu, principalmente da tradição anglo-saxônica, o que o conduzia a
apuros quando do confronto desta teoria com os hábitos nacionais; este traço coloca Lisboa
junto com outros liberais da época como Lopes Gama, Evaristo, Ottoni e Torres Homem 39 .
A aparição do povo, dos homens pobres livres, a patuléia na cena política deixava
esse grupo assustado. Em particular, a presença desta nos dias de eleições em busca de
dinheiro, emprego etc. Homens sem a menor virtude pública, interessados tão-somente em
37
Sobre os dados biográficos do autor ver Carvalho (1995b).
38
Ver Uruguai, “Preâmbulo” ao Ensaio... , p. 6.
39
Ver Carvalho (1995b, “Introdução”)
205
obter alguns pequenos ganhos materiais, que eram usados pelas elites políticas como meros
instrumentos (ver Carvalho, 1995b:23). Também repugnava a Lisboa a incapacidade das
elites políticas locais em resolver seus conflitos. Este fato levava estes grupos a uma
extrema dependência para com o governo central, que funcionava como o árbitro das
disputas locais. Os representantes da Corte eram cortejados por todos os grupos locais e
somente quando ficava óbvia a opção por um é que os demais desencadeavam as
hostilidades (ibidem:24).
O que diferenciava Lisboa dos liberais, como Evaristo ou Ottoni, era a sua solução
política. Nas palavras de José Murilo de Carvalho: “Como o primeiro dos males são os
partidos ‘inúteis, estéreis e impotentes’, quando não positivamente nocivos ou perigosos,
Timon prega simplesmente a suspensão temporária dos partidos e eleições no Maranhão e
em todas as províncias que classifica como sendo de segunda e terceira ordem” (Carvalho,
1995b:26). Deixemos de lado a solução apresentada por Lisboa, à qual Uruguai jamais
manifestou qualquer sinal de simpatia, e vamos nos concentrar na maneira pela qual ele
apresentava a situação dos partidos e da política nas províncias menos desenvolvidas.
É importante destacar que Lisboa percebe e distingue um funcionamento distinto
dos partidos em razão da sua localização social. Lisboa recomendava a suspensão do
funcionamento dos partidos e das eleições nas pequenas províncias, mas não nos grandes
centros, pois nestes o funcionamento era distinto.
206
Segundo Lisboa, a atividade política nas pequenas províncias era estéril e
improdutiva, nada gerava para a sociedade. Seus atores apenas buscavam empregos
públicos; para aqueles menos afortunados estes era a sua única forma de sobrevivência e
para aqueles que já possuíam uma posição material superior, era um aumento do
patrimônio. Entre os membros dos partidos que disputavam as eleições, não havia nenhum
outro motivo os ligasse que não fosse a busca dos empregos públicos. Os partidos
provinciais se resumiam a meras expressões de famílias: “(n)as províncias não há nem houve
em tempo algum partidos políticos, reduzindo-se toda a contenda a ciúmes e ódios de família,
que entre si pleiteiam a preponderância nos negócios;” (Lisboa, Jornal de Timon, p. 127)
Creio que podemos analisar as idéias de Lisboa, aqui apresentadas, a partir dos
termos civilização/sertão. Se observarmos a primeira passagem podemos encontrar uma
expressão bastante usada nos discursos e relatórios analisados anteriormente: centros de
população, denotando regiões povoadas. Já observamos anteriormente a associação entre
povoamento e civilização; as regiões mais povoadas do Império seriam aquelas mais
civilizadas, aquelas nas quais estariam mais presentes o mundo do interesse, uma opinião
pública mais atuante e a difusão da educação entre os cidadãos. Segundo Lisboa, o
experimento Liberal – os sistema de partidos e de eleições – deveria ser adotado apenas
nestas áreas civilizadas (centros de população/grandes províncias). Podemos considerar
que no argumento de Lisboa esteja implícita a idéia de que apenas nestas regiões estariam
presentes os pré-requisitos materiais e culturais necessários para um bom funcionamento
do sistema Liberal.
Para Lisboa, o funcionamento das eleições e dos partidos nas pequenas províncias,
naquelas onde os traços sociais da civilização eram mais fracos, mostrava-se
completamente distinto daquele existente na Corte ou nos países nos quais o sistema
Liberal foi moldado (países estrangeiros). Lisboa identificava, claramente, na Corte uma
presença maior de traços sociais e culturais que forneceriam uma base para o
funcionamento do sistema Liberal. A inexistência desta base reduz os partidos e as eleições
a uma mera contenda de ódios familiares. Estamos diante do mesmo conteúdo do
argumento de Uruguai, qual seja, nas regiões marcadas pela barbárie os partidos são a
expressão de vontades particularistas. Como podemos compreender este caráter
particularista dos partidos nas pequenas localidades?
207
Observemos como Uruguai descreve os conflitos políticos no interior de Alagoas,
no seu relatório de ministro da Justiça de 1841. Neste Uruguai tratava das cidades de
Imperatriz, Anadia, Assembléia e Palmeiras que se encontravam, segundo ele, sem
nenhuma segurança. Nestas localidades diariamente eram praticados crimes e aqueles que
o faziam tinham a certeza da impunidade. Esta certeza ocorria porque devido “[...] às suas
relações de famílias somente reconheciam como Lei a sua vontade” 40 . No trecho em
questão Uruguai não indica que os criminosos fossem pais, filhos, sobrinhos etc. denotando
com o termo família um grupo mais amplo. As relações de família propiciam proteção
àqueles que, sem pertencer diretamente aos laços familiares, praticam atos que favorecem
ao grupo político. Em outras palavras, as relações de família englobavam o que
normalmente designamos como agregados, os capangas. Enfim, todos aqueles que se
punham sob a proteção de um grande proprietário.
O tom da argumentação de Uruguai apontava para essas relações de família não
como algo garantidor da paz social, como um laço social que forneceria aos indivíduos uma
rede frente ao mundo impessoal caracterizado pelo Estado, mas como um adversário na
implantação de uma ordem impessoal calcada na lei. Na reflexão de Uruguai, a lei possui
um caráter de impessoalidade que se confronta com a vontade destas famílias, que
teimavam em considerar a sua vontade particular, pessoal como a única norma social.
Tratava-se, para Uruguai, de disciplinar essas famílias através de um conjunto de normas
que não estavam inscritas nos costumes destas pequenas localidades, marcadas pelo
domínio dos clãs familiares, mas de um ordenamento que deveria vir de cima, do poder
central.
Este confronto entre a lei, como expressão da impessoalidade, e as famílias
apareceu em outros relatórios que podem nos ajudar a conferir maior sentido ao argumento
de Uruguai.
Em 1836, o ministro da Justiça, Alves Branco, descrevia os conflitos armados
desencadeados em Alagoas. Ele assinalava que as eleições para Assembléia Provincial
haviam terminado em conflitos armados. Isto porque, segundo ele, a “justiça estava
entregue nas mãos de uma família” 41 , fato que lhe permitia conceder habeas corpus para
alguns criminosos a seu serviço. Neste ambiente, no qual famílias controlam a Justiça,
40
Ver Relatório de 1841, p. 14.
41
Ver Relatório de 1836, p. 11.
208
conclui Alves Branco, as facções se matam nos conflitos políticos 42 . O que aparecia como
um evento no Relatório de Alves Branco, Uruguai o colocará em primeiro plano. Ele
descreverá este conflito de famílias não apenas como algo restrito a uma determinada
região, mas também como algo característico de todas as pequenas povoações.
Neste ponto da nossa análise, seria pertinente indagar em que medida, nas pequenas
localidades, podem-se encontrar cidadãos capazes de formar o júri isento capaz de resistir
às pressões dos clãs familiares? Tomamos, neste momento, o tema do júri apenas para
abordar questões que aparecem associados ao de que estamos tratando e que dizem
respeito à abordagem aqui desenvolvida. Os temas que veremos aparecer são: educação e
opinião pública. Observando o debate político do Segundo Reinado consideramos que
estes temas compõem um painel do que seria, na visão de Uruguai, a vida política.
Em 11 de julho de 1840, discutindo no Senado a Reforma do Código do Processo,
Uruguai expunha um dos principais inconvenientes do júri, qual seja, a ausência de
cidadãos habilitados para preencher os pré-requisitos estipulados pela lei 43 . Ao longo das
suas críticas, Uruguai voltava a este ponto, a ausência de cidadãos com educação
necessária para exercer adequadamente o papel do jurado. O termo educação apontava
para a presença de uma ilustração necessária para o acompanhamento dos processos e
como um sinal de uma capacidade para fazer frente às pressões dos clãs familiares.
Vejamos se o debate torna mais claro esse sentido atribuído à educação. Entretanto, para
compreender o sentido deste termo na reflexão de Uruguai é necessário que observemos o
uso deste termo em outros momentos históricos.
A presença da educação também aparece relacionada aos pólos sertão/litoral,
barbárie/civilização. Na Assembléia Constituinte de 1823 discutia-se sobre a criação ou
não do júri no país. Para seus críticos, era necessário que antes da sua introdução ocorresse
a difusão da educação do povo. Silva Lisboa apontava que a lei deveria ser regulamentada
“em tempo oportuno” quando “[...] pelo progresso liberal da educação do povo este se
mostrar com superior e mais geral moralidade a fim de exercer o juízo dos jurados” (Atas
da Assembléia Constituinte, sessão de 21 de outubro de 1823, p. 151). Como podemos
perceber, a introdução do júri deveria ser precedida pela difusão da educação entre a
população. Vejamos que sentidos podemos atribuir ao termo educação.
42
Ver Relatório de 1834, p. 14.
43
Ver Anais do Senado, Sessão de 11 de julho de 1840, p. 306.
209
O termo educação aponta para duas direções: uma significando o decoro, a polidez,
o conhecimento das boas regras do convívio humano. Neste sentido, assinala o dicionário
Moraes, Educação significa do que respeita ao decoro. Por outro lado, estava presente,
também, o sentido de transmitir de maneira regular um determinado conteúdo: um ensino
formal. Em outras palavras, uma transmissão de conhecimento que não se adquire apenas
pela observação dos bons modos, mas que requer uma doutrinação regular, realizada
através de indivíduos treinados para este fim, sobre os mais jovens. Observemos este último
sentido no mesmo dicionário: criação, que se faz em alguém ...; ensino de coisas, que
aperfeiçoam o entendimento, ou servem de dirigir a vontade. Enquanto o verbo educar
significa: criar, dar ensino e educação, doutrinar a mocidade.
Tendo em vista a passagem que virá após, era a este último sentido, principalmente,
que Silva Lisboa estava se referindo. Pois, logo em seguida, ele utiliza o termo Instrução,
que por sua vez tem esse aspecto da doutrinação sobre os mais jovens como sendo o único
sentido presente.
Conforme vimos, Silva Lisboa assinalava que a introdução do Júri poderia ter lugar
quando a educação estivesse espalhada igualmente pelo país. O deputado, em seguida,
precisa onde estava presente esta educação necessária para a adoção da lei. Vejamos a
passagem de Silva Lisboa: “Sem dúvida no Brasil já existe bastante instrução, nas cidades
marítimas, com liberais princípios de humanidade; mas não podemos dizer o mesmo fora
delas, pelo sistema de cativeiro, e falta de educação”. (Atas da Assembléia Constituinte,
sessão de 21 de outubro de 1823, p. 152)
A existência de uma população educada aponta para uma presença maior da
moralidade, de regras que guiem os indivíduos. Através da educação ocorre o progresso,
não um progresso qualquer, mas de um tipo liberal. No mesmo dicionário, podemos
encontrar como um dos sentidos de Liberal como sendo livre, franco sem um superior que
por ventura tolhesse o progresso. O progresso nas sociedades liberais, segundo um idéia
bastante difundida durante o século XIX, seria marcado pela conjunção de desenvolvimento
material e liberdade. O progresso não teria mais que prestar contas do seu desenvolvimento
à superstição, ao obscurantismo religioso, mas apenas à liberdade do homem. O homem
seria senhor do seu próprio destino.
210
Segundo José da Silva Lisboa, a educação necessária estaria presente nas cidades
marítimas. Nestas era possível introduzir-se o sistema de jurados. Porém, longe deste litoral
desenvolvido, na maior parte do interior predominaria a ausência da educação. Ou seja,
para estas regiões, o interior, não havia o pré-requisito básico para implementação do júri.
Podemos, observar que está presente no argumento de Silva Lisboa uma divisão entre
cidades marítimas e sertão. A primeira seria caracterizada por regiões com a presença maior
da ilustração e do trabalho livre. Esses dois fatos parecem fornecer a base necessária para o
progresso em bases liberais. Podemos por exclusão, desenhar o sertão como marcado pelo
oposto: predomínio do sistema de cativeiro44 e falta de uma educação. A educação à qual
Silva Lisboa estava se referindo era a mesma de que Uruguai sentia falta quando da crítica
ao Código do Processo, mencionada anteriormente: um conhecimento transmitido
regularmente por indivíduos treinados para este fim sobre indivíduos mais jovens.
Outro aspecto que posso associar ao tema da educação vem a ser o tema da
ilustração, qual seja, existência ou não no sertão de cidadãos com os conhecimentos
requeridos pela legislação descentralizadora para o exercício de determinados cargos. O
tema me parece diretamente ligado porque a argumentação desenvolvida por Uruguai e
pelos críticos do júri popular, apontava na seguinte direção: no sertão não se encontram
cidadãos que preencham os pré-requisitos que a legislação demanda. Em outras palavras,
nas regiões civilizadas do país podia-se encontrar cidadãos que preenchessem os requisitos,
mas nos sertões essa “mão-de-obra” não existia, fato que prejudicava o funcionamento da
legislação. Em alguns trechos, os críticos ressaltam que mesmo nos centros desenvolvidos é
difícil preencher as exigências da lei. Este aspecto manifesta-se claramente em 1831.
Neste ano inicia-se no Senado o debate sobre os projetos do Código do Processo
existentes na Câmara. O marquês de Inhambupe 45 expressa sua reserva com relação à
exigência de que o juiz de direito tivesse um suplente formado: “[...] se aqui na Capital
procura-se um homem formado para Juiz de Paz e não se acha, como é possível nas outras
Capitais? [...] É necessário conhecer as Províncias para compreender que há falta de
44
Silva Lisboa não aborda quais as conseqüências negativas que o cativeiro acarreta para o bom
funcionamento do Júri e, de maneira geral, para uma ordem Liberal no campo da política. Leitor de Adam
Smith, Silva Lisboa sustentava o argumento de que o trabalho livre é mais produtivo que o escravo, sem no
entanto entrar no mérito se a escravidão era lícita ou não e de como suprimi-la. Guardava-se para o papel de
difundir idéias favoráveis ao trabalho livre. Ver seu escrito "Da Liberdade do Trabalho".
45
Antonio Luiz Pereira da Cunha, Bahia.
211
homens para se empregar neste ramo” (Sessão de 20 de outubro de 1831, p. 321). O
argumento do senador pela Bahia aponta claramente para a percepção de que à medida que
se vai afastando da capital torna-se mais difícil encontrar um cidadão com o conhecimento
requerido pela lei. A Corte seria um lugar civilizado, entre outros fatores, porque o nível de
educação nesta seria pelo menos razoável, porém quando se vai penetrando no interior, este
nível cai, assinalando uma perda em termos de civilização.
Neste ponto unem-se as três temáticas: a ausência de conhecimento formal nas leis,
a falta de uma opinião pública acostumada a debater os assuntos públicos, em particular, os
da Justiça, e a ausência de pessoas com uma educação formal que as habilite a ocupar os
cargos.
No sertão, esses três pontos ainda estão ausentes. Na passagem abaixo, Limpo de
Abreu aborda esta ausência no sertão, que termina por impedir o bom funcionamento do
júri. O conteúdo do argumento é o mesmo daquele encontrado em Silva Lisboa em 1823: a
ilustração necessária para o bom funcionamento do Júri não estava ainda presente em
várias localidades.
212
existente no sertão, os pré-requisitos para ocupar a posição de jurados tornam-se
impossíveis de serem preenchidos, ou então eram preenchidos de maneira defeituosa. O
resultado destes fatos é o mal funcionamento do júri. Como já tivemos oportunidade de
observar, em relatórios anteriores e discursos, o júri devido à insuficiente ilustração dos
seus membros torna-se uma presa fácil para um advogado hábil ou para a pressão das
facções interessadas em libertar seus capangas.
213
Mas, segundo Uruguai, não era apenas a carência de uma maior difusão da educação
que dificultava o bom funcionamento do júri e de alguns cargos do judiciário. A legislação
produzida, principalmente, durante a Regência havia transferido diversas atribuições para
cidadãos eleitos localmente. Entretanto esse mecanismo sofre uma crítica tanto no
momento da sua elaboração quando no da sua revisão no Regresso Conservador. Essa
crítica sustentava que para que esse sistema funcionasse a contento deveria estar presente
uma opinião pública atuante. Para essa corrente de pensamento, a atuação da opinião
pública não era uniforme em todo o país, fato que dificultava o bom funcionamento desta
legislação.
A maneira pela qual Uruguai formulava essa crítica mobilizava um procedimento
explicitamente comparativo. No Ensaio..., Uruguai trazia o caso inglês. Neste livro,
Uruguai assinalava que na Inglaterra o instrumento mais eficaz para conter ou manter as
instituições em bom funcionamento era a presença de uma opinião pública ativa: “Lá [na
Inglaterra] estão a eleição, a tribuna, a imprensa e um poderoso espírito público para conter
e corrigir os desmandos governamentais” (Ensaio..., p. 387).
Segundo Uruguai, na Inglaterra a opinião pública vigia o funcionamento das
instituições públicas. Essa ação da opinião pública não se restringe apenas a manter sob
controle às instituições, mas também atua na elaboração das leis. As normas que regem a
sociedade antes de ganharem a forma da lei, através do Parlamento, são discutidas pelos
clubes, imprensa, enfim pela sociedade civil. Para Uruguai, no caso inglês, é a opinião
existente na sociedade quem impõe o conteúdo das Leis aos parlamentares.
No Preâmbulo ao Ensaio, Uruguai criticava o açodamento dos liberais, durante a
Regência, em adotar leis que não encontravam respaldo na sociedade civil. Segundo suas
palavras, o “espírito das Leis”, elaborado durante a o Primeiro Reinado e na Regência, era
mais “liberal” 46 do que o “espírito dos homens”. Para Uruguai, no Brasil as reformas
deveriam ser discutidas antes na sociedade – na imprensa, nos clubes etc. –, fato que não
ocorria, dificultando a elaboração das leis. Para efetuar essa crítica, Uruguai evoca o caso
inglês, descrevendo como as Leis nascem na Inglaterra: é a opinião pública quem as
introduz no debate legislativo. Vejamos a passagem:
46
Nesta passagem, por liberal entenda-se a transferência de atribuições que pertencem ao Estado e seus
funcionários para a eleição efetuada diretamente pelos cidadãos.
214
“[No Brasil] não se tem procurado esclarecer e interessar a opinião do
público 47 , chamando sua atenção sobre esses assuntos que tão de perto o
tocam, preparando-o pela imprensa e pela tribuna, para formar seu juízo
[...]. Somente quando as reformas assim feitas são seguras e assentam,
porque quando são sancionadas pelos poderes públicos já têm raízes.
Porque assentam tão bem, porque são tão seguras, tão vivazes na
Inglaterra as reformas aí empreendidas? Porque existem aí no espírito
público antes de serem convertidas em lei. A opinião é que as faz
romper: os que as propõem e votam são meros instrumentos. [...] A
Inglaterra é o país no qual as reformas encontram mais obstáculos para
prevalecerem. [...] O respeito pelo passado deixa subsistir muitas vezes
entre suas leis, textos que indicam atraso de alguns séculos mas uma
interpretação liberal e prática os vai, pouco a pouco apagando. Acontece
ali o contrário do que em outras nações nas quais os espírito das leis é
mais liberal do que o espírito dos homens. E as reformas lentas e tardias
que os ingleses preferem tem uma grande vantagem. São próprias para
remover o mal e uma vez feitas ficam assentadas sólida e
definitivamente”. [...]
[No Brasil] Creio que, pela escassez de estudos e de conhecimentos
administrativos, não está uma grande parte da nossa população em
estado de formar uma opinião conscienciosa sobre quaisquer reformas
que sejam intentadas”. (Uruguai, Ensaio ... , pp. 11 e 12)
47
Nesta passagem, opinião do público e opinião pública são a mesma coisa, um movimento de idéias presente
na sociedade.
215
impulsionados por construções abstratas. Esta idéia de opinião pública emerge com
precisão ao longo do debate político brasileiro anterior a Uruguai. Observemos esta idéia
em três momentos históricos: em 1823, 1840 em 1850 48 .
Em 1823, durante os debates da constituinte, Silva Lisboa criticava a introdução do
júri no Brasil em razão da presença pouco homogênea da opinião pública; em outras
palavras, a sua influência não se fazia sentir com a mesma intensidade no país. Para
assinalar este fato, Silva Lisboa recorre ao caso inglês. Neste país existiria uma opinião
pública ativa e participante.
Na Inglaterra haveria um envolvimento do cidadão comum com o debate público:
discutem-se nos mais diversos locais os temas públicos. Nos ambientes cotidianos ouvem-
se opiniões favoráveis e contrárias a um tema, em resumo, exercita-se o debate. Neste
exercício forma-se uma opinião pública que educa os cidadãos para o exercício do júri.
Vejamos o trecho do discurso.
Destaquemos que não é apenas a presença de uma educação formal que, por si só,
assegura a existência de uma opinião pública. No argumento de Silva Lisboa, estava
presente a idéia de que tão importante quanto a educação formal vem a ser a disseminação
do debate por toda a sociedade. Para ele, o debate espalha-se pela sociedade, as folhas são
lidas por todas as classes, os condutores lêem os tablóides, nas tavernas os casos são
discutidos. A existência de uma educação formal, a leitura, permite que se desenvolva uma
48
Ao mobilizarmos a análise de Silva Lisboa trouxemos idéias que se situavam 39 anos antes da publicação
do Ensaio... Ocorre que podemos controlar essa diferença histórica. A crítica de Silva Lisboa (Cairu) voltava-
se contra a legislação descentralizadora, produzida no Primeiro Reinado, a qual Uruguai, em diversos
momentos, criticou como resultado de uma cópia sem atenção para com o meio social brasileiro. As
intervenções de Vergueiro (1840) e Paula Souza (1850) estão se referindo ao mesmo conjunto de Leis, a
Reforma do Código do Processo, que por sua vez tinha como objetivo rever e cancelar a legislação produzida
no Primeiro Reinado e na Regência. Paula e Souza e Vergueiro defendiam a Legislação descentralizadora.
216
educação cívica. Enfim, forma-se em toda a sociedade uma opinião pública que submete os
casos ao debate.
Para Silva Lisboa, a educação formal é um dos elementos importantes para o júri, o
outro seria a presença de uma opinião pública atuante. Silva Lisboa descreve a Inglaterra
como um país no qual indivíduos, que mesmo desprovidos de uma educação treinada (os
carreiros), discutem os assuntos do justiça. Fato que termina por treiná-los para exercer
uma opinião equilibrada nestes assuntos.
Como podemos observar, para Silva Lisboa um dos trunfos do sistema liberal
inglês era a existência de uma opinião pública educada tanto formalmente quanto pelo
debate público dos assuntos. O tema da opinião pública e do papel que ela desempenha
esteve presente no debate sobre a Reforma do Código do Processo.
Em 1840, começava o debate da Reforma do Código do Processo. Em linhas gerais,
podemos dizer que a Reforma do Código do Processo transfere funções que antes
pertenciam aos funcionários eleitos para funcionários nomeados pelo Poder central.
Quando entra em discussão o artigo que permite que os funcionários do Estado efetuem
buscas através de um mandato de busca concedido ex-officio – ou seja, ele pode efetuar a
busca sem dispor de uma testemunha, bastando apenas indícios – o senador Vergueiro 49
apresenta suas desconfianças sobre o efeito deste fato nas localidades pouco povoadas, ou,
como estamos chamando, nos sertões.
49
Nicolau Campos Vergueiro, advogado e proprietário eleito por Minas Gerais.
217
sertões, os funcionários do Estado tenderiam a uma ação arbitrária. Logo, conceder mais
autonomia para a ação destes agentes do Estado apenas agravaria a situação, já precária,
dos cidadãos nestas regiões, no que diz respeito aos seus direitos civis 50 . Vergueiro inverte
o raciocínio político dos conservadores, argumentando que eram as leis centralizadoras que
não eram adequadas às regiões pouco civilizadas, pois estas permitiam aos funcionários do
Estado agir sem respeitar os valores da impessoalidade, na medida em que estes poderiam
perseguir um inimigo, proveniente seja das disputas políticas, seja da esfera privada.
Ainda nos debates parlamentares, nos quais este artigo estava em discussão,
Vergueiro concluiu: “[...] as Leis que convém à corte não convém aos sertões” (Sessão de 9
de julho de 1840, p. 154). A frase precisa de Vergueiro revela que o velho liberal possuía
uma visão clara sobre um país internamente heterogêneo, dividido em civilização (a Corte)
e sertão. Podemos assinalar que, para Vergueiro, a ameaça maior não provinha dos
cidadãos, mas do Estado; temia que seus funcionários, quando longe do controle, que era
mais rígido nas localidades mais desenvolvidas, violassem as garantias dos cidadãos. Para
Vergueiro, havia a necessidade de adequar leis e meio social. Certamente, podemos
concluir que os liberais brasileiros não sofriam do mal da cópia das leis sem atentar para o
meio social.
Em 1823, Vergueiro foi favorável que o Brasil adotasse um modelo de federalismo
que não acarretasse a idéia das províncias como Estados independentes. Em 1837 e em
1840, Vergueiro se opunha às medidas centralizadoras defendidas pelos conservadores.
Para os federalistas, descentralização posta em prática após o Ato Adicional evitava os
males presentes no regresso conservador. Nesta perspectiva, a descentralização reforçava a
vigilância da Assembléia Provincial sobre os funcionários públicos. Na medida em que a
Assembléia Provincial era um poder próximo às localidades os funcionários não se
sentiriam livres para violar as leis.
Em 1850, numa discussão no Senado sobre os efeitos da Reforma do Código do
Processo, a fala do liberal Paula Souza 51 toca nos dois pontos mencionados por Vergueiro:
o papel da opinião pública e a dicotomia Corte (civilização) e sertão.
50
Observemos que no caso mobilizado pelo senador Vergueiro os direitos civis dizem respeito ao direito de
não ser preso injustamente e à violação do domicílio.
51
Francisco de Paula Sousa e Melo, eleito por São Paulo em 1833.
218
Para Paula Souza a concentração de poderes nas mãos dos agentes nomeados pelo
poder central deixava os cidadãos, da maior parte do país, sem segurança na sua esfera
privada. Os cidadãos somente sentiriam sua esfera privada protegida frente aos agentes
públicos onde houvesse uma opinião pública que os vigiasse; fora destas regiões
predominaria a insegurança :
“Quando ninguém conta com a sua propriedade, nem com a sua segurança? [...]
Aqueles que vivem na corte não podem compreender a verdade das minhas
palavras, porque não sofrem. Na corte não se sofre tanto: é o único lugar do
Brasil onde há alguma opinião pública”. (Anais do Senado, 1850, vol. 3, p.
107)
Podemos destacar, em primeiro lugar, que Paula Souza teme pela propriedade e pela
segurança do cidadão, ou seja, aspectos relativos à esfera privada. O direito à propriedade
garante ao cidadão usufruir dos seus bens materiais e participar da vida política. Por sua
vez, a segurança lhe assegura o trânsito pela sociedade e o gozo da sua propriedade. Em
segundo lugar, Paula Souza identifica tais direitos como sendo plenamente usufruídos
apenas na Corte; isto porque ali ocorre uma vigilância sobre os funcionários do Estado,
proveniente não do próprio órgão – regulamentos, normas etc. –, mas de um outro “Poder”,
qual seja, a opinião pública.
Portanto, podemos concluir, no que diz respeito à idéia de opinião pública, alguns
pontos. Em primeiro lugar, conservadores e liberais operavam com a mesma idéia de
opinião pública, qual seja, uma esfera não estatal na qual são debatidos os assuntos
públicos. Este debate proporciona um controle sobre os agentes do Estado, impedindo que
eles violem as garantias dos cidadãos ou que implementem políticas que não encontram
respaldo na sociedade civil. Em segundo lugar, tanto conservadores como liberais
avaliavam o desempenho da opinião pública no Brasil, a partir de uma dicotomia
civilização/sertão. Caso retirássemos essa clivagem do argumento político de ambas as
correntes, o debate perderia a sua referência a uma paisagem social concreta e singular. Em
terceiro lugar, e, mais especificamente relacionado a Uruguai, podemos observar a presença
no seu argumento de idéias provenientes do Primeiro Reinado.
219
5.5 - O hábito do autogoverno
Com a intenção de apresentar os atores políticos e o conteúdo das suas ações para
Uruguai, centrei minha atenção no material produzido no período 30-40, deixando de lado a
obra mais importante de Uruguai, qual seja, o Ensaio..., escrito no final dos anos 1850.
Este recorte cronológico visava a destacar um aspecto da reflexão de Uruguai que
emerge em um período posterior, quando da publicação do Ensaio...: o papel dos costumes,
dos hábitos longamente sedimentados pela ação da História.
Nas páginas anteriores pudemos traçar um núcleo nos argumentos desfiados contra
as leis descentralizadoras. Segundo Uruguai, estas, ao permitir que a sociedade votasse
para os cargos do aparelho judiciário e repressivo, gerou uma lógica implacável: oprimir
para não ser oprimido. Este fato ocorria na medida em que dentro do país existia “uma
parte distinta da Sociedade do nosso Litoral” que não participava dos benefícios da
civilização. De maneira a sintetizar um conjunto de traços sociais que Uruguai, e outros
políticos da época, lhe atribuíam, optei pelo termo sertão.
Quando escreveu o Ensaio..., Uruguai de maneira nenhuma abandonou essa visão
de um país marcado por uma dualidade civilização/sertão. Porém, Uruguai acrescentou
mais um traço que vinha a contribuir para explicar os motivos do fracasso da aplicação da
legislação descentralizadora no país: nos faltava o hábito do autogoverno. Os homens de
bem que emergiram dos sertões quando da publicação da legislação descentralizadora não
possuíam a prática do autogoverno. Sua ação particularista, incapaz de construir um
máquina administrativa estável ao longo do território, era o resultado da ausência de uma
educação nos negócios municipais. Vejamos como podemos assinalar esta idéia na reflexão
de Uruguai.
Em 1850, Uruguai participava, como Ministro dos Negócios Estrangeiros, de um
debate no Senado. Inicialmente, a discussão girava em torno da política externa no Prata;
porém, em dado momento, o assunto resvala para a Lei de 3 de Dezembro (a Reforma do
Código do Processo). Paula e Souza sustentava a necessidade de se rever a Reforma,
voltando-se ao espírito do Código do Processo; para o senador, a Reforma havia tolhido a
“Liberdade no Brasil” 52 . Rebatendo a tese da necessidade de reforma da Lei de 3 de
52
Atas do Senado 26 de Janeiro de 1850.
220
Dezembro, Uruguai argumentava que o problema não residia somente nas leis, mas nos
costumes. E para reforçar esse raciocínio citava um verso que usará no Ensaio... : “‘Não
valem leis sem costumes,/ Vale o costume sem lei’. O que tem produzido os males do País
não são as leis atuais [...]. É a sua falta de execução e a impunidade que têm produzido
esses males” (p. 226).
Neste momento, Uruguai assinalava a importância do costume, apontando para a
distância entre a legislação pretendida pelos liberais e os hábitos nacionais. De nada
valeriam leis que não encontrassem respaldo nos costumes nacionais. Junto com esse
julgamento, Uruguai finalizava da seguinte maneira: os problemas por que, porventura, o
país passava não decorriam do conteúdo da Reforma do Código do Processo, mas da falta
da sua execução.
Na sua resposta, Uruguai não expunha qual o conteúdo dos costumes brasileiros, de
maneira a que ficasse claro os motivos pelos quais estes eram um empecilho à legislação,
inspirada nos valores anglo-saxões e defendida pelos liberais brasileiros. No Ensaio...,
publicado em 1862, Uruguai retomará a citação do verso de Sá Miranda, agora definindo o
conteúdo dos costumes brasileiros que impediam a adoção da legislação descentralizadora.
221
norte-americano foi habituado ao autogoverno. Conforme Uruguai irá escrever mais
adiante, esta educação forjada na prática não estava presente nos costumes brasileiros.
No Capítulo XXX, Uruguai assinalava de onde provêm os nossos costumes, que
bloqueiam a adoção da legislação inspirada no liberalismo anglo-saxão.
53
Sobre todas essas atribuições ver Salgado (1985).
222
de si uma máquina administrativa montada longe do seu voto. A intenção de Uruguai era
apontar para a falta de costume da sociedade brasileira de votar para cargos no Judiciário.
No argumento de Uruguai, a experiência brasileira colonial é comparada com o
caso norte-americano. Como ele mesmo escreve, os Estados Unidos herdaram o self-
government da Inglaterra. Nesta passagem, Uruguai não cita Tocqueville como sua fonte
sobre os Estados Unidos, mas o fará ao final do último capítulo do livro - junto com Michel
Chevallier e o Estatuto do Estado de Nova York. Neste último capítulo, Uruguai apontava
para uma das conclusões de Tocqueville sobre os Estados Unidos. Escreve ele, mencionando
Tocqueville 54 , que quando das primeiras migrações já estava profundamente arraigada a
idéia e a prática do governo municipal 55 . Os ingleses teriam transposto para a América o
governo comunal. A primeira organização pública com a qual os colonos tiveram contato foi
o governo municipal, transposto dos costumes ingleses. Depois deste fato consumado foi que
a Metrópole organizou as Cartas Régias 56 .
A intenção de Uruguai revela-se clara. Quando os Estados Unidos adotaram, após
a Independência, o modelo de organização centrado no autogoverno, tinham atrás de si
séculos de prática; não era uma escolha recomendada pela Razão abstrata, mas um caminho
que foi forjado lentamente ao longo de uma extensa educação calcada na prática. O Brasil
teve costumes formados por uma prática na qual a administração era nomeada e controlada
pela Metrópole. Seus habitantes não tiveram o hábito do autogoverno.
Minha intenção agora é a de juntar dois momentos da reflexão de Uruguai de
maneira a conferir a esta uma unidade, coerência que, acredito, esteja na ordem das suas
idéias. O primeiro momento vem a ser o período dos anos 40: nos seus dois relatórios de
ministro da Justiça, Uruguai abordava a ação dos grandes proprietários rurais.
Segundo Uruguai, o encontro entre uma legislação descentralizadora com a parte
bárbara do país havia gerado diversos conflitos armados, que colocavam em perigo a
unidade nacional. Esta parte bárbara do país não possuía os valores que caracterizavam a
outra parte, quais sejam, os valores da civilização. Para entender quais eram esses valores,
procurei compor os traços sociais que seriam característicos das regiões civilizadas. Estes
54
Na nota 277, Uruguai escreve o seguinte : “De la Democratie en Amerique, um dos livros mais profundos e
melhores conheço”.
55
Segundo Uruguai, o self-government estava fincado em solo inglês desde da dinastia dos Tudor. Ver
Ensaio .., p. 394, cap. XXXI. Esta perdura de 1485 até 1603.
56
Ensaio .., p.396, cap. XXXI.
223
traços sociais seriam: o predomínio do interesse, a disciplina introduzida pelo trabalho, o
apego à ordem, a presença de uma opinião pública, a difusão de uma educação formal e do
decoro entre a população, os partidos organizados em torno de princípios e, por fim, a
presença dos meios materiais da justiça, como sinalizadores da tranqüilidade social. No
sertão, estes traços estavam ausentes, ou fracos o bastante para marcarem a paisagem social.
Os potentados rurais que emergiram do sertão traziam consigo traços que os
habilitariam a desempenhar um papel estabilizador na ordem política. Estavam ligados ao
mundo do interesse. Uruguai compartilhava da idéia dos doutrinários franceses, segundo a
qual para exercer os direitos políticos eram necessários certos pré-requisitos. Os potentados
rurais certamente dispunham dos pré-requisitos de renda e, talvez, até de alguns de
educação. Entretanto, como Uruguai escreve no seu Relatório de 1841, a sua emergência na
cena pública, a partir dos anos 30, é marcada pela lógica do oprimir para não ser oprimido.
Organizavam partidos meramente familiares, disputavam cargos apenas com o objetivo de
perseguir adversários e de se beneficiar pessoalmente, abriam suas propriedades para dar
asilo a criminosos e tornavam os cidadãos da sua localidade seus dependentes pessoais e não
cidadãos. E tornavam os municípios, por eles controlados, centros imunes à ação do poder
central.
Os grandes proprietários eram, portanto, incapazes de exercer o poder político
diretamente, ou melhor, da maneira pela qual a legislação descentralizadora havia
desenhado às instituições brasileiras. Ao escrever o Ensaio..., Uruguai acrescentava outro
traço à este diagnóstico da incapacidade dos grandes proprietários em construir a nação: a
ausência do costume do autogoverno. Os potentados rurais não foram educados, durante o
período colonial, para exercer o governo municipal; este ponto de partida fundamental do
exercício do poder lhes foi tirado. O exercício do poder público no nível mais próximo e
imediato, como Tocqueville revela na Democracia na América, não esteve presente.
Uruguai cita Tocqueville no cap. XXXI do Ensaio...: o governo municipal era o “germe
fecundo das instituições livres” 57 , era nesta esfera dos assuntos que lhe são mais próximos
que os cidadãos são educados para a liberdade.
A interpretação que exponho sobre a reflexão de Uruguai considera que este
político avaliou o grande proprietário rural como incapaz de exercer o poder, conforme a
57
Ver Ensaio..., cap. XXXI, p. 394
224
experiência regencial havia revelado. Este diagnóstico foi incorporado e ampliado em seu
campo de análise por Oliveira Vianna.
Tal qual Uruguai, o sociólogo fluminense apontava no período colonial um
afastamento da “aristocracia rural brasileira” em relação ao governo colonial. Os principais
cargos eram ocupados pelos nomeados reais, retirando, dessa maneira, qualquer exercício
das funções públicas, restando à esta aristocracia o caminho do isolamento nas
propriedades.
“De modo que afastada dos cargos supremos do governo colonial, rebate-
se a nobreza territorial, modestamente, na penumbra rural, e pastoreia o
fado fabrica o açúcar, e minera o ouro e vai ampliando, destarte o
povoamento e a cultura do interior com a extensão das suas derrubadas e
a multiplicação de seus currais”. (Vianna, 1987a, vol. 1, cap. II:39) .
Quando foi promulgado o Código do Processo, esta aristocracia rural sai do seu
isolamento rural para ocupar a cena pública. Segundo Oliveira Vianna, o resultado desse
ingresso foi desestabilizador para a ordem pública. Ao invés de emergir o self-government,
brotou o conflito armado causado pelo caudilhismo.
Nas suas análises, Oliveira Vianna pouco cita Uruguai. Porém, se não
encontramos nos trechos citados a referência a Uruguai, podemos perceber o eco de suas
palavras. Ocorre que a análise de Oliveira Vianna amplia o campo de conhecimento para
além deste aspecto, já assinalado por Uruguai. Para o sociólogo fluminense, uma das
características principais do grande proprietário rural foi o seu isolamento social. A grande
propriedade era auto-suficiente, dispensando o auxílio de outras classe sociais, como a
burguesia comercial e a burguesia industrial, para o suprimento das suas necessidades.
Produzindo para o mercado externo e produzindo tudo de que necessitava para o seu
225
sustento, a grande propriedade agiu de maneira simplificadora sobre a estrutura social
brasileira, tolhendo o fortalecimento de outras classes sociais, que permanecem frágeis à
sua sombra. A grande propriedade, ao exercer uma força simplificadora sobre a estrutura
social brasileira, terminou por tolher o desenvolvimento nacional, gerando uma estrutura
social sem uma classe média, sem uma burguesia industrial e sem uma classe comercial
fortes, capazes de dinamizar a sociedade brasileira58 . Quando comparado com Uruguai,
Oliveira Vianna fará um mergulho maior na sociedade brasileira. Deste estudo, Oliveira
Vianna sairá com uma sociologia do meio rural brasileira mais ampla: tipos sociais como o
matuto, gaúchos, paulistas, mineiros, fluminenses e o papel da propriedade 59 .
José Murilo de Carvalho apontou a inversão de papéis desempenhados pela
aristocracia rural brasileira, na análise de Oliveira Vianna. No período colonial é ela quem
realiza a principais “tarefas”: ocupa o território do interior, constrói a extensão territorial
brasileira, dispersa a plebe rural anárquica e enfrenta os índios e os espanhóis. Porém,
distinto é o seu papel no Império brasileiro 60 . Quando advém a Independência ocorre, na
reflexão de Oliveira Vianna, uma inversão do julgamento desta aristocracia.
58
Ver Vianna (1987a, vol I, cap. VII: “A Função Simplificadora da Grande Propriedade”). Na nossa
interpretação este capítulo se apresenta como um dos mais importantes da obra de Vianna.
59
Ver Vianna (1987a, vols. I e II), bem como Carvalho (2000b).
60
Sobre este papel positivo, veja-se o Vol. I de Populações Meridionais. Agrupei diversas “tarefas”
empreendidas pelas aristocracias rurais brasileiras do Sul, Sudeste e Norte.
226
Tenho, até aqui, chamado a atenção para a presença desta dualidade na reflexão
política brasileira do Império, e de Uruguai em particular. Neste item analiso um outro
aspecto desta idéia, qual seja, quando Uruguai assinalava esta heterogeneidade presente na
sociedade brasileira – a dualidade civilização/sertão – estava presente na sua reflexão a
idéia de que nas sociedades liberais a civilização marcava homogeneamente a nação. Neste
sentido, estava presente na sua reflexão sobre o Brasil um componente fortemente
comparativo. Havia, por parte de Uruguai, uma compreensão de que os traços sociais que
compunham a civilização estavam homogeneamente espalhados pelas sociedades inglesa e
norte-americana, ao contrário da brasileira. Observemos como esta idéia estava presente na
reflexão de Uruguai.
No último capítulo do Ensaio..., Uruguai se detém na comparação do Brasil com as
instituições inglesas, norte-americanas e francesas. No trecho que vamos destacar, Uruguai
analisava o papel da centralização na Inglaterra. Mas, antes, é necessário que vejamos qual
o sentido que Uruguai estava atribuindo à palavra centralização. Nesse momento, Uruguai
chama de centralização a capacidade do governo de fazer chegar a lei a todos os recantos da
sociedade. Uruguai não estava discriminando os modelos de organização do Estado
centralizado dos modelos descentralizadores. Vejamos este trecho.
61
O conceito de centralização política usado nesta passagem é diretamente retirado de Tocqueville.
227
Entretanto, mais adiante, Uruguai assinalava que a adoção de um modelo de
descentralização administrativa na Inglaterra era precedido de um traço proveniente da
sociedade: a semelhança dos elementos sociais. Observemos esta passagem :
Uruguai caracteriza a Inglaterra como uma nação na qual os traços sociais estão
espalhados igualmente por toda a sociedade. Após a passagem acima, Uruguai se detém na
análise dos cargos da administração pública inglesa; suas atribuições, a maneira pela qual
são eleitos etc. A ordem da sua investigação é extremamente relevante, inclusive pela
citação de Guizot, logo no início. Uruguai começa sua análise pela descrição dos costumes
e hábitos existentes na sociedade para depois comentar as leis e as instituições.
Guizot, nas suas obras históricas 62 , enfatizava que em vez da começar a análise de
uma sociedade pelas instituições políticas, dever-se-ia iniciar pelo estudo da sociedade:
pelo estudo dos costumes (moeurs) da sociedade, as crenças individuais e coletivas e as
relações entre as diferentes classes 63 . Tal procedimento terá grande influência na maneira
pela qual Uruguai considerará a sociedade inglesa. Antes de mencionar a descentralização
administrativa, típica desta sociedade, Uruguai aborda os elementos sociais deste país. Em
primeiro lugar, ele os caracteriza como semelhantes, ou melhor, difundidos uniformemente
por toda a sociedade. Os elementos sociais mencionados por Uruguai são vários: o espírito
de associação, a língua, sistema de canais, costumes etc. O que nos interessa destacar, neste
momento, vem a ser a sua compreensão de que a Inglaterra podia prescindir da
62
Chamamos de obras históricas de Guizot, Des Moyens de governement et d’opposition, Histoire des
origines du governement représentatif e Histoire de la civilization en Europe. Destas, Uruguai cita Des
Moyens... e possuía Histoire du governement. Sobre os livros que Uruguai possuía, veja-se Carvalho (2002).
63
Sobre este ponto, bem como sobre uma análise sobre o pensamento de Guizot e dos doutrinários, veja-se
Craiutu (2003), Rosanvallon (1985) e Del Corral (1984). No caso das obras históricas Craiutu (2003, cap. 3:
“Between Scylla and Charbdis”).
228
centralização administrativa na exata medida em que os elementos sociais que compõem
esta sociedade estão espalhados homogeneamente pela sociedade. No argumento de
Uruguai, centralização ganha o sentido de uma força que confere unidade à sociedade, e no
caso inglês esta unidade provém da própria sociedade; na sociedade brasileira não estava
presente esta homogeneidade; logo, caberia ao Estado imprimir esta característica.
Poderemos chegar a esta interpretação, caso observemos a sua descrição da sociedade
brasileira.
Podemos destacar diversos elementos sociais: a educação imposta pelo trabalho
ainda não estava presente nos sertões, reduzindo o amor à ordem; a ação da opinião pública
sobre a maior parte da sociedade brasileira era fraca; os partidos, nas pequenas localidades,
eram meros clãs parentais destinados a obter cargos para perseguir adversários; nos sertões,
o grande proprietário estabelecia relações de dependência pessoal para com os habitantes
locais; a ação do Estado também era fraca nestas regiões em razão dos seus braços
pequenos. Na sociedade brasileira não existia esta homogeneidade social, sertão e
civilização possuíam elementos sociais distintos : o trabalho não desempenhava o mesmo
papel, na civilização existia o mundo do interesse para ligar os cidadãos à ordem pública;
os partidos funcionavam de maneiras distintas, na civilização estavam organizados segundo
princípios enquanto nos sertões em torno de clãs parentais; nos sertões a presença da Justiça
era menos atuante gerando um sentimento de insegurança; a educação, como difusão de um
conhecimento formal, era precária nos sertões e mais presente nos pólos de civilização.
Em outro momento, Uruguai volta à idéia de homogeneidade social. O self
governement é a melhor forma de organização do Estado desde que exista uma
homogeneidade na sociedade. Observemos a passagem:
229
embebidos/ Numa aparência branda que os contenta/ Dão os prêmios de
Ajace merecidos/ A língua vã de Nilsses fraudulenta’”. (Ensaio..., p. 404)
Uruguai sujeita a adoção do self government a certos traços sociais a uma difusão
homogênea em toda a sociedade de uma educação/ilustração e de hábitos. Por hábitos,
podemos entender o aspecto discutido anteriormente, que a sociedade norte-americana
herdou dos ingleses e praticou durante o período colonial, o autogoverno; dessa maneira
formaram durante séculos costumes, práticas que ficaram gravadas no comportamento
social. A educação/ilustração remete diretamente à transmissão de um conhecimento
regular. Essa educação, como podemos observar no debate sobre o júri, deve preparar o
cidadão para exercer cargos no aparelho judiciário e para o debate dos assuntos públicos.
Ao longo deste capítulo, uma das intenções que tive foi a de compor um painel dos
traços sociais que estiveram associados à dicotomia civilização/sertão na reflexão de
Uruguai: opinião pública, educação, partidos, interesses. Na abordagem que Uruguai
efetuou destas idéias, sempre esteve presente a percepção de uma distância entre a maneira
pela qual a civilização se manifestava nas sociedades liberais e aquela pela qual se
desenvolvia no Brasil.
Neste item, abordo um outro aspecto que marca a sociedade brasileira e, que esteve
associado à dicotomia civilização/sertão, qual seja, o tema da escravidão. O objetivo deste
item não visa a apresentar o vasto debate sobre a escravidão no Brasil do século XIX. O
recorte cronológico e temático segue a trajetória de Uruguai. Neste sentido, trabalhei a
partir das suas intervenções sobre esse tema.
No que diz respeito à escravidão, sua preocupação principal foi o tráfico e os efeitos
que desta sobre o país. Na sua reflexão, o tema da escravidão apareceu em dois momentos:
1841 e 1850. No primeiro momento, Uruguai ocupava o ministério da Justiça, enquanto no
segundo era ministro dos Negócios Estrangeiros.
Nos Relatórios de Ministro da Justiça o tema da repressão ao tráfico aparece
regularmente. Na sua maioria, o ministro reclama da dificuldade em reprimir o tráfico. O
230
argumento é sempre o mesmo, qual seja: a sociedade brasileira era contrária à repressão ao
tráfico, pois existia na sociedade a convicção de que sem a mão-de-obra escrava a
agricultura não poderia sobreviver.
A questão que proponho é a seguinte: compreender como Uruguai avaliava esse
modo de ver da sociedade acerca do fenômeno da escravidão. Uruguai considerava como
esclarecida a opinião existente na sociedade brasileira de que a escravidão era necessária?
Neste sentido, irei utilizar-me do conceito/da idéia de opinião pública analisado neste
capítulo.
Como podemos observar, ao longo do capítulo esteve presente, na reflexão de
Uruguai e na dos nos autores do período, a idéia de uma opinião pública. No pensamento
do período, a opinião pública tinha como uma das suas tarefas vigiar a ação dos membros
do Estado, sejam eles funcionários ou ocupantes de cargos eleitos. Para os autores do
período, a existência de uma opinião pública estava associada a diversos traços: regiões
populosas, difusão da educação, imprensa, desenvolvimento material etc. Esses traços
apontavam para a existência de um processo de discussão pública do assunto. No curso do
debate as opiniões iriam se esclarecendo
A existência de uma opinião pública sinalizava que as pressões provenientes da
sociedade possuíam um conteúdo liberal. No sertão, as pressões provenientes da sociedade,
na visão de Uruguai, eram apenas expressões da barbárie social e cultural.
Os autores do período, como pudemos observar anteriormente, não se utilizavam do
termo opinião pública para caracterizar as manifestações provenientes das regiões bárbaras
do país. Quando os autores do período utilizavam-se do termo opinião pública significava
que aquela opinião possuía um conteúdo esclarecido.
Observemos quais termos que Uruguai mobilizava para designar a opinião existente
na sociedade de que o tráfico era imprescindível para a agricultura.
231
Uruguai classificava o modo de ver de uma parcela da sociedade como convicção.
Podemos considerar o sentido da passagem acima da seguinte maneira: a população
acoberta o tráfico de africanos porque, acredita ela, que sem este não haverá mão-de-obra
para trabalhar na agricultura. Tomando a idéia de opinião pública, conforme observamos
ao longo do capítulo, formulamos as seguintes questões: será que Uruguai julgava essa
opinião como resultado de um debate através do qual os participantes esclarecem seus
pontos de vista? Será que essa opinião favorável ao tráfico estava assentada em provas
seguras? A parte que expressava esse modo de ver é bastante numerosa (avultada), mas
isto, por si só, não significava uma maior presença de esclarecimento. Neste momento,
Uruguai não responde a essas questões e é somente em 1850 que poderemos encontrar
explicações a essas indagações.
Conforme podemos observar no Ensaio..., Uruguai considerava que o termo
opinião pública significava uma opinião esclarecida pelo debate, pelos jornais, pela posse
de uma educação formal que permitia ao cidadão acesso a um conhecimento etc. O sentido
de opinião pública estava diretamente associado a um sentido de esclarecimento.
Entretanto, Uruguai não se utilizava do termo opinião pública para caracterizar o
julgamento favorável ao tráfico presente na sociedade brasileira.
De maneira a reforçar essa distinção entre uma opinião pública esclarecida e uma
mera opinião sem esclarecimento, observemos o relatório de ministro da Justiça do ano de
1840, escrito por Francisco Ramiro Coelho. Neste relatório, o ministro se queixava da
dificuldade em reprimir o tráfico na medida em que este era visto, pela sociedade, como
essencial para a agricultura:
232
Francisco Coelho não designava a opinião existente na sociedade favorável ao tráfico
como opinião pública, mas pelo nome de crença.
Segundo o Dicionário Moraes, crença significa: A ação de crer :v.g. "os artigos de
nossa crença: e fig. a Fé, os Mistérios da Religião. Carta de crença que assegura, que se
deva crédito ao que disser a pessoa que a apresenta, levão-na os Embaixadores e
ministros para os Soberanos com quem vão negociar o que lhe incumbe quem os manda.
Tendo em vista este conteúdo, podemos considerar o seguinte: para Francisco Coelho, o
argumento favorável ao tráfico estava baseado não em provas verdadeiras, assentadas em
conteúdos esclarecidos, mas simplesmente em artigos de fé. A sua demonstração poderia
ser derrubada mediante um debate realizado em bases seguras.
Compreendemos o argumento de Francisco Coelho e de Uruguai no seguinte
sentido: a sociedade acreditava que o tráfico era fundamental ao Brasil, as idéias contrárias
ao tráfico não tinham conseguido esclarecer a sociedade. Em outras palavras, o argumento
favorável ao tráfico não estava assentado em um debate que expressasse um conteúdo
esclarecido.
Após a saída de Uruguai do ministério da justiça, o tema do tráfico e dos efeitos da
escravidão desaparece das suas intervenções. Em 1850, Uruguai retomava o tema do
tráfico e dos seus efeitos sobre a sociedade brasileira.
Em julho de 1850, Uruguai discursava na Câmara dos Deputados, como ministro
dos Negócios Estrangeiros, em defesa do projeto do governo que reprimia o Tráfico de
Escravos – finalmente aprovado em 14 de novembro de 1850. Uruguai ocupava a tribuna
para deplorar os efeitos do tráfico de escravos e, consequentemente da escravidão na
sociedade brasileira. O motivo que levara o gabinete 64 à feitura da Lei fora a pressão
britânica, fato reconhecido pelos seus membros. Uma parte substancial do discurso de
Uruguai era ocupado pela história da pressão inglesa em favor da abolição do tráfico.
Sem dúvida, no argumento de Uruguai, esta pressão ocupava um lugar importante e
o motivo pelo qual o Brasil deveria abolir o tráfico era simples: o país não tinha mais como
resistir à pressão inglesa.
Entretanto, é importante assinalar que, no argumento de Uruguai, junto com o
reconhecimento da força inglesa estava presente a idéia da necessidade da modernização
64
Gabinete presidido pelo Marquês de Olinda, que dura de setembro de 1848 até maio de 1852.
233
da produção no país, tendo em vista um modelo de desenvolvimento capaz de alavancar
potencialidades que viessem a auxiliar o crescimento do país. Sua argumentação poderia
estar assentada apenas no fato incontestável de a pressão inglesa ter chegado a um ponto a
partir do qual o governo não tinha mais como resistir. Entretanto, ele acrescentava outra
ordem de motivos que, no momento, é importante assinalar:
234
Uruguai a idéia de que a mão-de-obra escrava era abundante, daí o fato das “vinte mil
arrobas” por ela recolhidas. Porém, esse uso intensivo não resultava em maior qualidade e
valor agregados ao produto, quando comparados com o trabalho livre; a escravidão era
antieconômica. Em síntese, para o aperfeiçoamento da produção era necessária a
substituição da mão-de-obra escrava.
Com relação ao aspecto antieconômico da mão-de-obra escrava, estamos perante a
mesma idéia exposta por Bonifácio, em 1823. Observemos a idéia de Bonifácio, de
maneira a tornar mais claro esse argumento:
235
dois autores “[...] a escravidão, além de representar condição indispensável para a
civilização no Brasil, é também fator de futura civilização da África” (Carvalho, 1988:
300). Para as “nações” africanas, o comércio entre a África e os compradores de escravos,
possibilitava a elas a introdução dos costumes civilizados 65 . No Brasil, enquanto houvesse
a necessidade da mão-de-obra escrava o progresso da civilização iria fazer uso desta forma
de trabalho. Na medida em que as condições mudassem, a escravidão iria se tornar
detestável e seria substituída (ibidem:300-301).Tanto José de Alencar como o Bispo
Coutinho apontavam para o papel civilizador da escravidão, tanto nos países exportadores
de escravos, como nos países compradores de escravos.
No discurso de 1850, Uruguai dissociava a escravidão da civilização e apontava
para o tema do inimigo interno. Vejamos a passagem.
65
Segundo o Bispo Azeredo Coutinho: “[...] a comunicação dos bárbaros da costa da África com os
comerciantes estrangeiros os vai já fazendo mais humanos do que os do interior daqueles sertões, ou seja,
porque deles vão aprendendo alguma civilização e costumes mais doces, ou porque o seu mesmo interesse
lhes vai ensinado que, para as suas nações ainda nascentes é um maior bem ou menor mal vender antes os
seus cativos e os réus dos crimes graves, do que matá-los” (Coutinho: 278-279).
236
segurança nacional porque aumentariam a possibilidade de uma revolta (ver Silva,
1998:80-81). Quando Uruguai discursava, em 1850, a sua menção ao problema da
segurança interna, fazia referência não apenas à revolta de São Domingos, mas também à
revolta dos Malês, ocorrida em Salvador, em 1835 66 . O seu impacto foi o forte o bastante
para que o ministro da Justiça, Alves Branco, sugerisse a criação de um Estado semelhante
à Libéria, formado pelos Estados Unidos no continente africano para receber ex-
escravos 67 .
Podemos assinalar que, para Uruguai, a escravidão já não estava mais cumprindo as
necessidades de que o país precisava. A escravidão levava o Brasil a um isolamento no
plano internacional, relegava o país a um modelo de trabalho atrasado e ainda ameaçava a
segurança interna.
Em todas as idéias trabalhadas no capítulo, podemos perceber que Uruguai
enxergava na sociedade brasileira regiões nas quais as idéias civilizadas encontrariam um
ambiente propício. No tópico que estamos abordando, Uruguai não mencionava que
setores da sociedade brasileira possuíam civilidade suficiente para adotar o princípio
liberal do combate ao tráfico e do trabalho escravo. Creio que podemos desenhar uma
resposta a esta questão numa análise não nos conteúdos proferidos, mas na História
social 68 .
A História social brasileira aponta que o trabalho escravo estava disseminado por
toda a sociedade. A historiografia recente desenvolveu pesquisas que conferem um papel
mais relevante na economia brasileira, dos séculos XVIII-XIX, de uma acumulação de
capital endógena e da produção voltada para o mercado interno69 – essa corrente
66
Sobre a Revolta dos Malês, veja-se o Relatório de Ministro da Justiça de 1835, escrito por Alves Branco, p.
6-11.
67
Ver Relatório de Ministro da Justiça de 1835, p. 8.
68
Numa História dos conceitos podemos considerar que certas idéias não foram proferidas, mas
permaneceram com seu conteúdo latente. Sobre este ponto veja-se, Koseleck, Social History and Conceptual
History e Berriffsgeschicte and Social History.
69
João Fragoso e Manolo Florentino têm rediscutido as análise clássicas sobre a economia colonial e
Imperial. A conclusão destes dois autores apresenta a “[...] paisagem do espaço colonial era marcada tanto
pela presença de camponeses quanto pela sua combinação com o trabalho escravo, ambos possuidores de
lógicas e mecanismos de reprodução distintos da plantation” (Fragososo e Florentino, 1998:64). Essa
conclusão diz respeito às áreas fornecedoras de alimentos para as regiões exportadoras. Esta idéia rompe com
a hipótese da grande propriedade exportadora, calcada no trabalho escravo, isolada e auto suficiente –
presente por exemplo em Oliveira Vianna. Por outro lado, a economia colonial não era um reflexo automático
das oscilações do mercado internacional. A queda de preços no mercado internacional nem sempre era
acompanhada da queda nas receitas internas. A conjuntura de 1821-1831 assistiu a queda dos preços do
237
historiográfica é usualmente designada como “brecha camponesa”. Entretanto, mesmo essa
produção fazia uso do trabalho escravo; os chamados homens de grosso trato estavam
simultaneamente envolvidos no abastecimento interno de alimentos e no tráfico
internacional de escravos (ver Fragoso, 1992:34). Os camponeses empenhados no
abastecimento interno também faziam uso do trabalho escravo 70 . Podemos, portanto,
considerar que a escravidão cortava o país de Norte a Sul e de Leste a Oeste e em todas as
direções geográficas e sociais.
Tomando essa conclusão como base, podemos compreender a análise de José
Murilo de Carvalho. Esse autor ressalta um aspecto essencial acerca da presença da
escravidão na sociedade brasileira: a inexistência de uma região assentada no trabalho
livre.
“Havia mais quilombos no Brasil do que no sul dos Estados Unidos, mas
não havia mais do que nos Estados Unidos. De fato, o Norte era um
grande quilombo para onde fugiam milhares de escravos sulistas.
Pode-se dizer, então, que no Brasil ninguém gostava de ser escravo mas
muita gente inclusive escravos e libertos, gostaria de possuir um escravo.
Há aí sem dúvida grande distância da situação norte-americana de
polarização entre o mundo da liberdade e o mundo da escravidão”.
(Carvalho, 1998b:71 e 73)
açúcar sem que houvesse uma queda das receitas de exportação. Esse desempenho fora possível em razão do
aumento do volume exportado. Por motivos internos à própria economia colonial estava presente a
possibilidade de uma acumulação endógena. Ver Fragoso (1992:22 e 147-148).
70
A pesquisa histórica mais recente aponta para as chamadas “brechas camponesas” na economia colonial e
do Império. Esse espaço para a mão-de-obra livre se dava principalmente nas áreas voltadas para o mercado
interno. A grande propriedade exportadora era incapaz de suprir as suas necessidades, bem como das maiores
cidades do país naquele momento, em especial o Rio de Janeiro. Porém, mesmo esta economia estava
associada ao trabalho cativo. Ver Fragoso (1992:209).
238
A inexistência de áreas civilizadas que pudessem exprimir uma opinião esclarecida sobre o
tema do tráfico põe em destaque a pressão inglesa e os valores civilizados que não
encontram acolhida na sociedade brasileira.
Podemos assinalar as seguintes conclusões. Em primeiro lugar, Uruguai defende
explicitamente a extinção do trabalho escravo, sem explicitar quando. A sua estratégia
consistia em deplorar os seus efeitos, sem criticar a sua forma hegemônica na sociedade
brasileira: a grande propriedade escravocrata.
Entretanto, esse seu silêncio sobre a grande propriedade escravocrata não impedia
que na sua reflexão existisse um modelo de trabalho que o país deveria se preparar para
adotar. Essa forma de trabalho não era aquela vigente no país, qual seja, o trabalho
escravo. Estava presente no argumento de Uruguai, bem como no de Bonifácio 71 , um
futuro a ser conquistado, que impõe a adoção de mudanças no aqui e agora da sociedade
brasileira. Somente podemos entender o argumento de Uruguai se estivermos atentos a
essa abordagem: o autor traz para o presente uma ponderação atenta sobre o futuro, e é a
partir deste que são julgados os elementos sociais vigentes (Fernandes, 1975:49).
Essas mudanças não podem alterar radicalmente o modelo hegemônico - a grande
propriedade escravocrata -, mas devem lentamente introduzir pequenas transformações que
neutralizem a escravidão. A abolição do tráfico permitia iniciar um processo lento de
mudanças visando à substituição da mão-de-obra escrava.
Observemos a conclusão que podemos depreender da discussão anterior: Uruguai,
um expoente da elite política, deplora os efeitos da escravidão. A sua reflexão, na nossa
interpretação, incorpora idéias que tornam a escravidão um obstáculo ao desenvolvimento
do país. Porém, sua crítica não menciona a base social sobre a qual a escravidão estava
assentada: a grande propriedade escravocrata 72 . Esse silêncio se torna mais expressivo se
pensarmos no ataque que este autor faz ao grande potentado rural, no seu interesse em
tornar o habitante da pequena localidade num refém do seu arbítrio pessoal, e não um
71
Bonifácio, sem dúvida, possui um comprometimento maior com a supressão do trabalho escravo, na sua
Representação... estava presente a proposta da extinção do tráfico em quatro ou cinco anos. Isto num
momento em que a pressão inglesa era menor do que aquela existente no período de atuação de Uruguai.
Bonifácio também propunha medidas de integração do negro e do índio à sociedade que nunca estiveram
presentes no programa político de Uruguai. A semelhança entre ambos provém da compreensão do atraso do
trabalho escravo e da necessidade de superá-lo tendo em vista um desenvolvimento posterior.
72
Foi José Murilo de Carvalho, no seu ensaio sobre o Visconde de Uruguai, quem chamou a atenção para esse
silêncio de Uruguai (Carvalho, 2002:38-45).
239
cidadão pertencente a um Império regido por leis – conforme veremos no Capítulo 7. Nesta
crítica incompleta ao papel desempenhado pelo grande potentado rural revela-se uma das
facetas do liberalismo brasileiro 73 .
* * *
240
civilização/sertão a intenção dos federalistas era afastar a mobilização dos setores
subaltermos, preservar a unidade nacional e afastar a ameaça à grande propriedade.
As questões que nos propomos para análise do pensamento político de Uruguai
parte da trajetória sumarizada acima. Observemos uma primeira questão: se o objetivo da
centralização era conter e desmobilizar os setores sociais que vieram à tona com o Código
do Processo, por que Uruguai não aderiu às idéias presentes na corrente federalista
reformuladas após o Ato Adicional? Uma segunda questão: com o Ato Adicional o
legislativo provincial iniciou um processo de esvaziamento da justiça escolhida ou eleita
no município. Se a reflexão política de Uruguai visava esvaziar justiça eletiva por que não
lhe pareceu adequado seguir o caminho indicado pelo Ato Adicional?
Na nossa hipótese, somente poderemos empreender uma compreensão correta da
reflexão de Uruguai se partindo destas questões analisarmos a maneira como este lidou
com o tema do interesse provincial, da construção do Estado-nação e da escolha do
funcionário público. Trataremos destes temas nos próximos capítulos.
241
Capítulo 6
1
A polícia judiciária dizia respeito à repressão e prevenção de delitos enquanto a polícia administrativa
tratava da salubridade dos lugares, estradas, feiras mercados públicos etc. Segundo a definição do senador
Lopes Gama: “[...] a polícia se divide em administrativa, tem por objeto velar sobre tudo que pertence à
salubridade e comodidade pública, e impedir tudo quanto pode perturbar a tranqüilidade como rixas,
disputas tumultos em lugares públicos. Assim, ela se ocupa da comodidade e asseio das ruas, caminhos,
praças e passeios, da demolição a reparação de edifícios que ameaçam ruína; da iluminação;de manter a
ordem nas feiras, nos mercados, nas cerimônias públicas, nas igrejas, nos espetáculos; de fazer respeitar
os costumes e a decência; em uma palavra, na polícia administrativa compreendem-se todos os objetos de
que trata a lei da criação de nossas municipalidades [...]. A polícia judiciária ocupa-se dos delitos
classificados nos códigos penais, persegue os delinqüentes seja por denúncia, seja pela notoriedade do
crime; forma o governo de delito, inquire as testemunhas, ouve os réus, colige as provas, e, reconhecendo
242
judiciária ficava inteiramente subordinada ao poder central; conforme os adversários da
Lei de Interpretação costumavam repetir, o ministro da Justiça controlava da nomeação
do presidente de relação até o carcereiro.
Segundo os centralizadores, sua intenção era a de aclarar as dúvidas decorrentes
do funcionamento do Ato Adicional. A comissão havia apresentado sua proposta como
sendo uma “interpretação” 2 do sentido correto da palavra polícia contida no Ato
Adicional. A idéia de que se tratava de uma mera interpretação era um expediente
político utilizado pelos centralizadores. O Ato Adicional havia sido aprovado como
uma reforma à Constituição. Para a aprovação de uma reforma constitucional era
necessário um quorum maior do que aquele necessário para uma lei ordinária, de forma
que os centralizadores, percebendo que não conseguiriam um quorum maior,
apresentaram seu projeto como uma interpretação do sentido preciso do Ato Adicional.
Os centralizadores estavam, na verdade, efetuando uma reforma do Ato Adicional num
sentido político distinto daquele presente na sua origem; não se tratava de um
aperfeiçoamento do Ato, mas do seu cancelamento. Os federalistas mencionaram esse
truque dos centralizadores em diversas ocasiões. A hermenêutica jurídica de Uruguai
possuía um sentido político preciso: reformar o projeto federalista hegemônico na
política brasileira a partir de 1832.
os culpados, entrega-os aos tribunais que os devem punir. Portanto, todos os procedimentos até a
pronúncia são da alçada da polícia judiciária. É isto que já se acha disposto no nosso código do processo,
sobre as atribuições dos juízes de paz. Nele se extremaram as funções da polícia judiciária, as quais
constituem a primeira instância na administração da justiça criminal, que não é objeto de providências
locais” (Lopes Gama, Sessão do Senado, em 26 de julho de 1839, p. 381).
2
Ver Sessão da Câmara do dia 10 de julho de 1837.
243
permitem; sendo, pois, equívoca a expressão, eu sustento que a palavra –
polícia- deve ser entendida e tomada separadamente da – municipal: - o
espírito e a vontade do legislador são manifestos. Senhores, a reforma
não está tão distante de nós: todos somos desse tempo, e é constante a
todos que o que se quis então foi permitir que as assembléias
provinciais legislassem nas províncias, sem ser necessário recorrer à
corte em todos os negócios de maior interesse às mesmas províncias.
Deixou-lhes a liberdade de propor ainda à Assembléia Geral o que
julgassem conveniente, mas marcou-se no Ato Adicional estes objetos
sobre os quais pudessem já mesmo legislar. Certamente, um desses
objetos foi a polícia, como negócio de summo interesse e de uma
grande importância, que os nobres senadores do lado oposto não se
atrevem a negar.”(Feijó, sessão do Senado em 26 de julho de 1839, p.371)
3
Sobre os grupos sociais em conflito nesse momento, ver Carvalho (1980) e Lenharo (1993). Este ponto
foi analisado no Capítulo 1 .
244
pelo Legislativo provincial, pois este estaria animado pelo interesse provincial. Para os
assuntos relevantes da província, o melhor condutor seriam legisladores animados pelo
interesse provincial.
No discurso de Feijó, outro elemento emerge, qual seja, a idéia de uma Corte
distante dos interesses provinciais. No trecho citado, Feijó deplorava o estado de coisas
vigente antes da promulgação do Ato quando as províncias tinham que recorrer
constantemente à Corte. Essa idéia emerge com mais ênfase num trecho do discurso do
senador Alencar. Vejamos o trecho:
Para Alencar, bem como para qualquer adversário do projeto do governo, ficava
claro que não se tratava de uma interpretação do Ato Adicional, mas de uma reforma
que alterava radicalmente o sentido político desta lei. Podemos assinalar que, para o
senador Alencar, de acordo com o Ato Adicional a polícia judiciária estava na órbita de
influência do Legislativo provincial. Essa conclusão nos remete à polêmica jurídica
acerca do Ato Adicional: quando este Ato menciona a palavra polícia, estaria implícito
a polícia judiciária ou simplesmente a polícia administrativa? Segundo Alencar, na
4
Tratava-se de Bernardo Pereira de Vasconcelos, grande aliado de Paulino.
245
palavra polícia estava presente tanto a polícia administrativa como a judiciária. Porém,
o trecho de Alencar nos revela como, numa discussão pontual – polícia judiciária –
pode emergir um aspecto central da polêmica entre federalistas e centralizadores.
Observemos como Alencar justificava politicamente esse controle do Legislativo
provincial sobre a polícia judiciária.
Chamemos a atenção do leitor para a seguinte idéia expressa pelo senador
Alencar: a Assembléia Geral ficava ocupada com o todo da nação e, dessa maneira,
não poderia cuidar dos assuntos provinciais. É fundamental que tratemos de assinalar a
contraposição que o argumento do senador Alencar estabelecia, qual seja, o poder que
cuida do todo da nação não é o mais apropriado para velar pelos assuntos provinciais.
Devemos nos perguntar as razões pelas quais o poder central, ao velar pelo todo, não
poderia cuidar dos assuntos provinciais.
O sentido político desse argumento emerge a partir do momento em que
mobilizamos o conceito de federalismo discutido nos capítulos anteriores, que
estabelecia que os interesses provinciais eram aqueles que diziam respeito à busca do
que fosse melhor para a província, sem que nesse cálculo fossem introduzidos valores
externos à sua dinâmica. Para os federalistas, conforme observamos nos Capítulos 2, 3
e 4, os funcionários e os deputados escolhidos na própria província teriam um
compromisso maior no desenvolvimento da província, pois isto lhes dizia respeito
diretamente. A província, no conceito de federalismo discutido no Brasil do século
XIX, estava referida diretamente à idéia de casa e do cidadão ativo responsável pela sua
economia. O cidadão ativo encontra-se numa competição pela posse exclusiva de bens.
Segundo os federalistas, da busca de cada província pela satisfação dos seus objetivos
iria emergir a prosperidade nacional. Nesta competição, diziam os federalistas, algumas
províncias vão se desenvolver mais do que outras; em que pese esse desenvolvimento
desigual, o resultado final é positivo. Pois a competição estimula o progresso.
Na maneira pela qual Alencar apresentava seu argumento, a preocupação com o
todo impede ao Poder central de velar pelos interesses provinciais. Podemos deduzir, a
partir do argumento de Alencar, que a lógica que move o poder central nos assuntos
que dizem respeito a todo o Império é distinta daquela que move o interesse provincial.
Um poder que age tendo em vista as diversas partes que compõem o Império não pode
ser guiado pela idéia de interesse provincial; isto porque nos próprios termos em que
esta idéia foi definida pelos federalistas está presente a busca da posse exclusiva de um
bem por parte da província. Dessa maneira, a ação do poder central envolve a
246
consideração dos diversos interesses que formam o Império brasileiro. Nesta chave
política, o poder central, conforme os centralizadores o pensavam, emergia aos olhos
dos federalistas como um elemento que bloqueava os interesses provinciais. A idéia de
federação, em contrapartida, envolve a idéia de que a organização do Estado deva dar
livre vazão aos interesses provinciais.
Ao analisar o argumento de Alencar, nos deparamos com uma idéia relevante
para a compreensão da corrente centralizadora. A idéia de todo, móvel da ação do
poder central, implicava conter o interesse provincial, forçando esses a considerar a
prosperidade não apenas da sua região, mas do Império na sua totalidade. Neste
sentido, o móvel da ação do poder central talvez fosse, aos olhos de Alencar, o
estabelecimento de uma harmonia entre as partes que compõem o Império brasileiro e
que, ao final, terminasse por bloquear a emergência daquela idéia de competição
saudável presente no argumento federalista, conforme observamos nos capítulos
anteriores.
Na nossa interpretação, com o desenvolvimento do parágrafo anterior tocamos
num ponto central da polêmica entre federalistas e centralizadores, ao qual gostaríamos
de retornar mais adiante, quando formos analisar o argumento centralizador.
Ao longo da tese temos enfatizado a presença, no argumento federalista, da
idéia de que a província deveria ser segundo a lógica do cidadão ativo no trato da sua
propriedade. A província, e em particular o Legislativo provincial, deveria ser guiada
pela mesma lógica que conduz o cidadão no controle da sua propriedade. Na discussão
acerca da Lei de Interpretação essa idéia retornava. Vejamos um trecho do senador
Feijó acerca dos motivos pelos quais a província deveria controlar a polícia judiciária.
247
para o bom funcionamento da casa, deve controlar a economia doméstica. Segundo o
Dicionário Moraes (1844), economia significava: O regime ou governo dos bens ou da
casa de cada um. Economia política: ciência que ensina a conhecer as riquezas
naturais e industriais de um país e os modos de aproveitar e acrescentar. Da mesma
maneira, para o bom funcionamento e desenvolvimento da província, o Legislativo
provincial deveria controlar a polícia judiciária.
O argumento de Feijó, ao mobilizar a idéia do controle sobre a economia
doméstica, confere uma dimensão extremamente ampla à discussão acerca da polícia
judiciária. Na nossa interpretação, manifesta-se no seu argumento um dos traços
fundamentais do conceito de federalismo: a idéia de que a província deve lidar com
seus assuntos da mesma forma que o cidadão ativo lida com a casa. A justificativa para
a liberdade provincial busca sua lógica na esfera privada, e, mais especificamente,
numa determinada idéia de indivíduo. O cidadão ativo que melhor controla os recursos
da sua casa obtém, na competição entre os demais, uma posição mais vantajosa. A
província, ou melhor, o Legislativo provincial, eleito pelos cidadãos ativos, regula a
polícia judiciária tendo em vista a melhor maneira de aproveitar os recursos naturais e
sociais da província. Neste sentido, o federalismo é um arranjo político que permite às
províncias a busca da melhor maneira de aproveitar seus recursos sociais e naturais, de
tal maneira que na competição entre as demais unidades da federação, a localidade
consiga predominar. A organização retira sua lógica do cidadão ativo e da competição
entre estes.
No item de apresentação assinalamos que a polêmica acerca da Lei de
Interpretação esteve centrada em dois artigos: a definição de polícia judiciária e a
possibilidade de que a Assembléia Provincial alterasse as atribuições de empregos
previstos em leis elaboradas pelo poder central. Tendo já observado o tema da polícia
judiciária, vejamos o segundo item. Observemos o seguinte trecho de Teófilo Ottoni:
248
juízes de direito;” (Ottoni, sessão da Câmara dos Deputados de 10 de
junho de 1839, p. 340)
5
Dentre as atribuições do Legislativo nacional estava: “Criar ou suprimir Empregos públicos, e
estabelecer-lhes ordenados”. Art. 15 parágrafo XVI da Constituição. No artigo 10º do Ato Adicional
parágrafo 7º, compete ao Legislativo provincial: “[...] a criação e supressão dos empregos públicos
municipais e estabelecimento dos seus ordenados.”
6
Ver Bastos (1937, Parte segunda, cap. I, item I, pp. 89-90).
249
Efetuemos uma conclusão das questões discutidas anteriormente. Em primeiro
lugar, para os federalistas o termo polícia, presente no Ato Adicional, dizia respeito
tanto à polícia judiciária como à polícia administrativa. Em segundo lugar, os cargos da
polícia judiciária previstos em leis nacionais eram passíveis de serem alterados pelo
Legislativo provincial. Ainda para os federalistas, o Ato Adicional estabelecia que nos
empregos provinciais, mesmo que criados por leis nacionais, as duas esferas estivessem
em contato de maneira a produzir o bom funcionamento. Em terceiro lugar, conferir
essas atribuições ao Legislativo provincial era importante na medida em que o poder
central estava movido por um objeto e por motivos distintos daqueles presentes na idéia
de interesse provincial. O poder central estava voltado para o todo, o Império tomado
na sua totalidade. A idéia de interesse provincial enfatizava os meios e os fins da
província sem nenhuma referência externa. Tendo em vista este último aspecto,
gostaríamos de analisar como o debate acerca da Lei de Interpretação nos permite
compreender o conceito de federalismo presente naquele momento histórico.
250
união das províncias”. (Ferreira Melo, sessão do Senado em 3 de agosto de
1839, p. 72)
Para os federalistas, o modelo descentralizador era uma via mais segura de unir
as províncias. Acerca deste tema, vejamos um trecho do deputado Álvares Machado:
“Sr. Presidente está sobre a mesa o boa constrictor, o Sucury, que vai
lançar as províncias, e esmaga-las contra a capital; está sobre a mesa,
não o laço do recíproco interesse, que é o único que pode manter a
integridade do império, mas a cadeia de ferro que vai prender a essas
mesmas províncias, que voluntariamente se coligaram para formar o
império brasileiro; está sobre a mesa a redação desse ominoso projeto
que, debaixo do esfarrapado manto de interpretação ao ato adicional da
constituição, reforma a mesma constituição, com clamorosa usurpação das
liberdades provinciais, garantidas pelo ato adicional que se quer nulificar”.
(Álvares Machado, sessão da Câmara dos Deputados de 3 de junho de
1839, p. 256).
O primeiro ponto que merece a nossa atenção diz respeito à maneira pela qual
Álvares Machado descreve a forma pela qual a Lei de Interpretação iria unir as
províncias. Se centralizar significava aproximar as partes ao centro, a Lei de
Interpretação construiria um laço de ferro, que iria sufocar as províncias. E por que a
Lei de Interpretação seria uma cadeia de ferro? Retomemos a idéia presente no trecho
do senador Alencar. Segundo este, com a Lei de Interpretação o órgão encarregado de
conduzir os assuntos mais relevantes para a província seria a Assembléia Geral, esse
estaria preocupado com o Império considerado como um todo. Na nossa compreensão,
para o senador Alencar, a Lei de Interpretação iria introduzir valores estranhos à
província, móveis que diziam respeito ao Império considerado como um todo, violando
a liberdade que a província deveria dispor para determinar seus objetivos e meios. O
trecho do deputado Álvares Machado torna-se mais claro caso pensemos na idéia
anterior. O pacto federativo capaz de unir as diversas partes que compõem o Império
brasileiro deve permitir a cada província manifestar livremente seus interesses sem
referência a valores externos. A província deve encontrar, no pacto federativo,
vantagens que lhe digam respeito exclusivamente. Dessa liberdade podem emergir
laços comuns, mas que brotam da liberdade, e não da cadeia de ferro.
251
A idéia de que com a Lei de Interpretação o interesse provincial seria
comprimido, forçado a considerar valores estranhos à sua dinâmica, é fundamental para
que possamos compreender o trecho abaixo.
7
Sobre a trajetória política de Teófilo Ottoni, veja-se a Introdução escrita por Paulo Pinheiro Chagas em
Ottoni (1979).
252
global do projeto. O discurso de Teófilo Ottoni encontra-se dentro do segundo
momento – na sessão seguinte será a vez de Uruguai efetuar um longo discurso,
realizando diversas referências ao discurso de Ottoni. Gostaríamos de analisar as idéias
contidas no trecho seguindo a exposição de Ottoni.
Inicialmente, observemos a referência à promulgação de leis provinciais
absurdas. Conforme observaremos no item acerca do argumento centralizador, este era
um dos pontos mais mencionados pelos defensores da Lei de Interpretação. Segundo
Uruguai, em algumas províncias o Legislativo provincial extinguiu cargos previstos no
Código do Processo, transferindo suas atribuições para outros cargos, ou simplesmente
suprimindo o cargo, mas sem definir quais cargos herdariam suas tarefas. Teófilo
Ottoni reconhecia que tais exemplos estavam ocorrendo, mas destacava que o
Legislativo geral ocasionalmente aprovava leis, para posteriormente reformá-las. Em
síntese, no Legislativo geral também eram produzidas leis absurdas. Em seguida,
Teófilo Ottoni argumentava que em Minas, desde a promulgação do Ato Adicional, a
administração da Justiça havia melhorado. Ottoni não mencionava que a produção
legislativa provincial de Minas fosse caracterizada por leis incompatíveis com as leis
nacionais. Segundo Ottoni, o motivo pelo qual isto se dava residia no fato de Minas ser
uma das províncias mais ilustradas. Um pouco mais adiante, o argumento de Ottoni
indicava que o progressivo desenvolvimento da civilização no Brasil contribuiria para
que cada vez um número menor de leis absurdas fossem promulgadas. Estabelecendo
essas premissas, Ottoni conclui que a supressão do Ato Adicional não poderia ser
realizada porque nas províncias mais civilizadas não eram encontrados motivos
suficientes para cancelar a descentralização (“sucede em Minas talvez na Bahia [...] que
estão em condições de exercer todos os direitos que o Ato Adicional confere. [...] não
acho justo que a maioria sofra quebra de prerrogativas [...]”).
Podemos formular a seguinte pergunta: será que Ottoni imaginava que a maior
parte das províncias no Brasil possuía o mesmo nível de civilização presente em Minas
e na Bahia? Tendo observado o material presente no Capítulo 5, podemos afirmar que
Ottoni não considerava que a difusão da civilização na sociedade brasileira fosse
homogênea. A imagem mais comum no material analisado no Capítulo 5, seja de
centralizadores ou federalistas, foi o de uma sociedade com ilhas de civilização
cercadas por um vasto sertão. Mesmo nas províncias mais ricas a presença da
civilização estava restrita às cidades mais populosas. O uso que Ottoni faz do termo
maioria para se referir às províncias que não deveriam sofrer com a quebra da
253
descentralização prevista no Ato nos parece mais um recurso parlamentar para angariar
apoio do que um julgamento acerca da sociedade brasileira.
Portanto, podemos formular a seguinte conclusão: no argumento de Ottoni não
havia motivos que levassem ao cancelamento do Ato Adicional. Tal posição decorria
do lugar de onde Ottoin analisava o funcionamento do Ato Adicional, qual seja, de uma
das províncias mais civilizadas. Em nenhum momento do seu argumento Ottoni
introduz a idéia de que o Ato Adicional deveria ser mantido tendo em vista o Império
tomado como um todo, formado por partes heterogêneas, por províncias marcadas pela
civilização e outras pela barbárie. Em resumo, Ottoni pensava o arranjo político que
costurava o pacto entre as diversas partes que compunham a União a partir das
províncias mais civilizadas e dos seus interesses.
Chamemos a atenção do leitor que Ottoni mobilizava a idéia de províncias mais
ilustradas e de avanços da civilização, assinalando que o Ato Adicional funcionava
adequadamente nas províncias marcadas pela civilização.
Conforme observamos no Capítulo 4, a corrente federalista empreende um recuo
a partir dos conflitos desencadeados pelo Código do Processo. Assinalamos que, para
essa corrente, as leis descentralizadoras deveriam ser aplicadas apenas em regiões com
um determinado desenvolvimento e caberia ao Legislativo provincial estabelecer quais
seriam estas regiões. O argumento de Ottoni segue a mesma lógica política presente na
discussão do Ato Adicional. As províncias mais civilizadas possuíam condições para
aplicar a descentralização prevista no Ato Adicional. A promulgação, por parte do
Legislativo provincial, de leis contraditórias com as leis nacionais não era um problema
grave nas províncias mais civilizadas – Minas e Bahia, segundo o exemplo de Ottoni.
As províncias mais civilizadas não deveriam perder a liberdade, prevista no Ato
Adicional, de controlar a polícia judiciária porque algumas províncias menos
civilizadas haviam abusado desta prerrogativa. No argumento de Ottoni, as províncias
mais civilizadas não deveriam abrir mão da descentralização em favor de províncias
menos civilizadas.
Na nossa interpretação devemos deslocar para dentro do argumento de Ottoni o
conceito de federalismo de maneira a precisar seu sentido político. O conceito de
federalismo envolve a idéia de que a província possui interesses que lhe dizem respeito
exclusivamente. O pacto federativo deve conceder liberdade às províncias para
marcarem os fins e os meios a serem atingidos. No conceito de federalismo, essa
liberdade é fundamental, pois é ela que assegura que esse interesse provincial se
254
manifeste plenamente. O poder central não deve, para os federalistas, introduzir valores
estranhos à província. A prosperidade comum, segundo os federalistas, nasce da busca
de cada província em satisfazer suas políticas. Neste sentido, para Ottoni as províncias
mais civilizadas não devem restringir sua liberdade provincial em nome de valores que
dizem respeito a uma realidade estranha aos seus interesses. No seu argumento, as
províncias menos desenvolvidas desempenham o mesmo papel descrito por Lino
Coutinho, visto no Capítulo 4: da mesma maneira que alguns indivíduos não são bem-
sucedidos na realização dos seus interesses, o pacto federativo deve permitir que as
províncias mais capazes se imponham. Um dos valores que reagem ao arranjo
descentralizador é a competição e a sua inevitável desigualdade.
255
supressão de um emprego sem criação ou supressão das atribuição que
lhe estão inerentes, tomando-se a palavra em acepção genérica e abstrata
sem referência a localidades e a divisões civis, judiciárias ou eclesiásticas.
O emprego de juiz de direito é provincial. Logo, podem as assembléias
provinciais suprimi-lo e criar outro que o substitua. O mesmo podem
fazer a respeito dos juízes municipais, de órfãos, de paz dos
promotores, chefes de legião, oficiais da guarda nacional, vereadores,
párocos etc.”.(Uruguai, sessão da Câmara dos Deputados de 10 de julho de
1837, p. 69)
256
etc. – e as transferiu para o juiz de direito, escolhido e nomeado pelo poder central. Por
último, foi criada a figura do prefeito, que ficou encarregado da elaboração da lista dos
jurados. Da mesma forma destacamos a seguinte alteração, realizada pela Assembléia
Provincial do Ceará: a eleição do juiz de paz passou a ser indireta, ou seja, em dois
níveis, posteriormente o presidente de província escolhia um dentre os três mais
votados. No mesmo sentido, o Legislativo cearense extinguia as juntas de paz –
formada pelos juízes de paz para julgarem recursos – passando suas atribuições para o
juiz de direito.
Todas as figuras citadas – juiz de paz, lista de jurados, juntas de paz – foram
objetos da crítica de Uruguai – conforme veremos no próximo capítulo. Devemos
assinalar o seguinte aspecto: as reformas realizadas pelas Assembléias Provinciais
retiravam poderes do juiz de paz. No caso da Assembléia de Pernambuco, o juiz de paz
perdia seus poderes criminais e voltava a ser um juiz de pequenas causas. Na província
do Ceará, a escolha do juiz de paz passava para, em última instância, o presidente de
província nomeado pelo poder central. Uma das críticas mais freqüentes de Uruguai ao
júri era de que este formado pelo grupo político que dominava o Legislativo municipal,
fato que acarretava a absolvição de todos os acusados ligados a este grupo. A junta de
paz, segundo Uruguai, por ser formada por juízes de paz, pouco se reunia. Isto ocorria
devido ao fato de os juizes serem particulares e não disporem de tempo para o
deslocamento e a reunião na sede da comarca. Como resultado um grande número de
recursos ficava sem apreciação.
Conforme observamos no Capítulo 3, o juiz de paz era um dos mecanismos
mais importantes no projeto federalista, tendo sido, desde o início, objeto de críticas das
correntes centralizadoras. Segundo estes, a estratégia que deveria ser adotada seria a do
fortalecimento do juiz de direito, vinculado ao poder central e passível de deslocamento
pelo território nacional. O argumento federalista considerava que era fundamental o
envolvimento do cidadão ativo nos assuntos públicos na sua esfera mais próxima do seu
interesse. Neste sentido, a eleição do juiz de paz no município em eleição direta sem a
necessidade de pré-requisitos de formação era o meio mais eficaz de aproximar o
cidadão ativo dos assuntos públicos. No Capítulo 4 procuramos destacar que a corrente
federalista procurava reformar o projeto inicial, presente no Código do Processo,
deslocando os principais poderes para o Legislativo provincial. Esse deslocamento
implicava um esvaziamento do juiz de paz e do júri de acusação. Na nossa
compreensão, as medidas citadas por Uruguai terminam por reforçar o argumento de
257
Tavares Bastos, analisado no Capítulo 4, qual seja, o funcionamento do Ato Adicional
estava permitindo ao Legislativo provincial reformar os “excessos” do Código do
Processo. A descentralização empreendida por esse terminou mobilizando setores
sociais que ainda estavam disciplinados pela civilização. Com o Ato Adicional, as
elites provinciais retomavam o controle do processo político buscando adequar a
descentralização aos seus interesses (ver Werneck Vianna, 1992). Portanto, na nossa
interpretação, o que Uruguai estava criticando não era o esvaziamento destes cargos –
juiz de paz, juntas de paz, júri –, mas a forma pela qual esse esvaziamento estava sendo
realizado. Ao longo do capítulo vamos acrescentar e analisar outros aspectos da
reflexão de Uruguai que nos permitirá compreender o conteúdo da sua crítica ao Ato
Adicional.
Observemos como Uruguai abordou o tema da polícia judiciária.
258
debate acerca da Reforma do Código do Processo revela que a preocupação central de
Uruguai consistia em armar o poder central de instrumentos capazes de impedir que a
execução das leis fosse controlada pelos particularismos locais.
Na reflexão de Uruguai acerca da experiência de descentralização realizada
entre 1823-1837 emerge a seguinte idéia: a descentralização permitiu que os grupos
locais controlassem a aplicação da lei. Para os federalistas, as leis deveriam ser
adaptadas às circunstâncias locais como uma maneira de assegurar o seu bom
funcionamento. No argumento de Uruguai, esse valor emerge como a porta de entrada
para a negação do caráter imparcial de lei. Em vez de ela ser aplicada indistintamente,
os mecanismos descentralizadores permitiriam o uso da lei para proteger aliados e
perseguir adversários. No próximo capítulo analisaremos a reflexão de Uruguai acerca
do funcionamento do Código do Processo, no qual os exemplos deste comportamento
serão estudados mais detidamente. Portanto, refutar os particularismos locais (“[...] as
regras não dependem das circunstâncias [...]”) era o meio através do qual Uruguai
pretendia afirmar a idéia de uma lei que deveria ser aplicada indistintamente.
Em resumo, subordinar a polícia judiciária ao poder central significava, para
Uruguai, assegurar que as leis nacionais seriam aplicadas indistintamente. No
pensamento político de Uruguai, o conceito de centralização passava a estar associado a
essa dimensão. Dessa maneira, o poder central passava a ser o instituto a partir do qual
a aplicação da lei deve emanar, não apenas na sua feitura, mas, também, na sua
aplicação. Na visão política de Uruguai, a idéia de deixar para as províncias adaptarem
as leis à sua realidade emerge como o meio pelo qual os particularismos iriam alterar o
sentido geral da lei.
Este aspecto – centralizar no mesmo Poder a elaboração e a implementação -
possui uma abordagem complementar de outra natureza.
Segundo Bernardo Pereira de Vasconcelos:
259
adicional, não se consideravam empregados gerais? Regular a
determinação pertencia ao Governo Geral; mas a pessoa que tinha de
executar era do Governo provincial; de maneira que todas as vezes
que os dois governos não estivessem dispostos a proceder da melhor
harmonia, a desordem e anarquia era infalível”. (Vasconcelos, sessão
do Senado de 5 de agosto de 1845 apud Uruguai, 1960, p.375)
Nos dois trechos está presente a visão de que o Ato Adicional dividiu as tarefas
entre os poderes central e provincial. Ao poder central caberia a elaboração da lei e a
determinação dos cargos e das suas atribuições. Por sua vez, o poder provincial estaria
encarregado de controlar o empregado designado para executar as resoluções do poder
central. Segundo os centralizadores, tal mistura poderia provocar a paralisia na
aplicação da justiça. Isto porque, caso os dois ramos não estivessem de acordo, a justiça
não entraria em funcionamento. O problema residia no fato de que partidos distintos
poderiam deter o poder no Legislativo provincial e no Executivo central.
Segundo Uruguai, a administração deveria estar subordinada ao poder político e
este, por sua vez, estaria sujeito às oscilações da opinião pública. O poder político
imprimiria à administração a sua direção particular (ver Uruguai, 1960, cap. III:26). A
crítica dos centralizadores chama a atenção para a possibilidade de que partidos
distintos estejam no poder nas esferas provincial e nacional. A idéia de cooperação
política, defendida por Tavares Bastos, é rechaçada pelos centralizadores. Segundo
estes, a ação do poder público possui um componente político que não pode ser
cancelado. E mais: o exercício da direção política do Estado excluiria a idéia de
cooperação entre as forças políticas presentes nas esferas provincial e central 8 . Nas
palavras de Uruguai: “Era indispensável que essa descentralização fosse meramente
8
Conforme assinalamos no Capítulo 1, Uruguai foi contra a política de conciliação entre liberais e
conservadores.
260
administrativa, e não embaraçasse a direção política dos Poderes Gerais, que não pode
deixar de ser única” (Uruguai, Ensaio.., 1960, cap. XXX:372).
Para a corrente centralizadora, no conceito de centralização está presente a idéia
de trazer para o centro a administração do Estado e esta idéia pressupõe que este centro
disponha da faculdade de elaborar e de implementar. Para os centralizadores, não
poderia ocorrer uma quebra entre esses dois momentos por causa do componente
político presente no Estado. O poder que elabora está imbuído de uma dada direção
política, que deve imprimir sua lógica também no momento da ação.
A partir da discussão acerca do controle da polícia judiciária, por parte dos
centralizadores, podemos ponderar os seguintes aspectos no que diz respeito ao
conceito de centralização. Segundo o dicionário Moraes (1844), centralizar significa a
ação de chamar a um centro a Justiça. De acordo com dicionário Constâncio (1836)
centralização é chamar para um ponto central a administração do Estado. Para
centralizadores, centralizar envolve o controle por parte do poder central da elaboração
e da implementação da justiça. É neste sentido que terá relevância para esta corrente a
idéia de uniformidade: uniformidade, para os centralizadores, significava que o poder
responsável pela elaboração das leis deveria, também, ficar encarregado da sua
execução. A idéia de uniformidade é extremamente valorizada pelos centralizadores e,
em igual medida, criticada pelos federalistas. É importante que compreendamos a
relevância da uniformidade. Para os centralizadores, é através do mecanismo da
uniformidade que os particularismos locais são afastados na execução da lei.
As esferas dos poderes central e provincial possuem uma dimensão política. A
direção do governo imprime um dado espírito. A possibilidade de cooperação entre os
dois ramos, aspecto presente no argumento federalista, é afastada pelos centralizadores.
A idéia de cooperação emerge para os centralizadores como a possibilidade de paralisia
do poder.
261
elemento federal é o fracionamento do poder; combinar estes dois
elementos de modo que não se prejudiquem e destruam mutuamente é uma
das coisas mais difíceis em política; todavia, da pouca leitura que tenho
concluído que todas as vezes que se tratar de combinar o elemento
monárquico com o federativo deve-se ter em vista duas coisas: 1ª conservar
o elemento monárquico todas as atribuições em que são necessárias
centralização, unidade e força; deixar pelo contrário ao elemento
federativo todas aquelas a cujo exercício não prejudica o
fracionamento.
Uma outra circunstância se deve ter muito em vista, isto é, deixar a cada
um dos poderes, geral ou provincial, aquela soma de atribuições que são
necessárias para que cada um possa preencher o fim a que é destinado; é
indispensável marcar com exatidão as raias de cada um desses poderes,
para que se não encontrem no mesmo terreno, porquanto os governos
federativos são muito sujeitos a conflitos, e por isso, quando mal
combinados, têm em si o germe da sua dissolução”. (Uruguai, sessão de
17 de junho de 1839).
262
conteúdo: centralizar num único ponto a elaboração e a execução das tarefas. Com
relação à Lei de Interpretação, esta idéia implicava o seguinte: se cabe ao poder central
elaborar as regras de funcionamento da polícia judiciária, logicamente deveria esse
cuidar do funcionamento desta, sem que esta tarefa implique divisão, mas sim
concentração.
Em segundo lugar, Uruguai define federalismo como fracionamento do poder.
Esta definição somente pode ser compreendida no seu elemento político caso
mobilizemos a definição de federalismo presente no debate acerca do Código do
Processo. Retomemos seus elementos essenciais. Para o pensamento federalista, o
poder deveria estar disseminado pela sociedade de maneira a que o cidadão ativo molde
o Estado segundo seus interesses. Num sentido positivo, fracionar o poder permitiria
que o cidadão ativo impedisse que o Estado se tornasse uma máquina opressiva e
arbitrária. Para o argumento federalista, antes do Ato Adicional, fracionar o poder
acarretava o fato de que a montagem do Estado partisse do município para a província e
desta para a União 9 .
Em terceiro lugar, o argumento de Uruguai estabelece uma oposição entre a
unidade requerida pelo conceito de centralização e o fracionamento característico do
federalismo. Entretanto, o autor concede que seja possível ocorrer uma combinação
entre os dois elementos desde que haja uma delimitação precisa das atribuições que
cada esfera do Estado iria deter (“[...] é indispensável marcar com exatidão as raias de
cada um desses poderes, para que se não encontrem no mesmo terreno [...]”). A
transformação dos antigos Conselhos Gerais em Assembléias Provinciais contou com o
9
Em novembro de 1841, Uruguai analisava a legislação descentralizadora produzida a partir da
abdicação. Nessa análise, Uruguai mobilizava o traço principal do conceito de federalismo, segundo a sua
interpretação: o fracionamento do Poder: “Quem tiver meditado por um pouco sobre a legislação que se
seguiu ao 7 de Abril, há de reconhecer que, no seu desenvolvimento, o elemento democrático da
constituição excedeu as raias que ela marcara, preponderou e tornou-se invasor. O monárquico quase se
nulificou. A constituição tinha dado ao poder executivo a atribuição de nomear magistrados; [...] A
câmara há de recordar-se de que aquela importante atribuição da coroa de nomear magistrados, já esteve
reduzida a nomeação de um ou outro membro do supremo tribunal de justiça, de um outro
desembargador, quando havia vaga em alguma relação, e dos juízes de direito do município da corte.
Tudo o mais pertencia ás autoridades dos municípios ou aos presidentes das províncias. Os juízes de paz
eram eleitos pelo povo dos seus distritos, como exige a constituição; os juízes municipais, de órfãos e
promotores eram propostos pelas câmaras, e bem como os juízes de direito, nomeados pelos presidentes.
Todas as atribuições as mais importantes estavam nas mãos dessas autoridades. Assim, a tendência da
legislação dessa época, era para localizar, fracionar, enfraquecer e retirar do centro os mais
insignificantes poderes e colocá-los nas localidades” (Sessão de 3 de novembro de 1841, pp. 809-810).
263
apoio de Uruguai, pois a situação anterior era marcada pela extrema dependência das
províncias para com a Assembléia Geral 10 .
A definição de centralização presente nos dicionários da época apontava para a
seguinte idéia: chamar para um centro a administração do Estado. Esse ato de chamar
implicava aproximar desse as partes ativas e as partes afastadas. Para a corrente
centralizadora, centralizar implicava concentrar num centro comum a elaboração e a
aplicação da Justiça – no caso em debate – de forma tal que o funcionamento do
aparelho público se dê de maneira uniforme em todo o território. A idéia de unidade,
enfatizada no trecho analisado, remete ao tema da uniformidade: a unidade e a
concentração de força no poder central são elementos indispensáveis para que o
funcionamento da Justiça se dê de maneira uniforme em todo território nacional.
Observamos que, segundo Uruguai, era possível chamar para um ponto central
certas tarefas, enquanto outras seriam delegadas aos poderes locais. Em outras palavras,
nem todas as tarefas deveriam estar concentradas no centro. Tendo em vista este
aspecto, gostaríamos de analisar como a reflexão de Uruguai estabelecia o critério
político a partir do qual certas atribuições deveriam caber exclusivamente ao poder
central e outras deveriam ficar na órbita provincial.
10
No Ensaio..., Uruguai mencionava de maneira crítica que a nomeação de um professor para uma escola
primária deveria esperar a sanção do Legislativo nacional.
264
A linguagem do trecho espelha o contexto do momento político. Uruguai
descrevia a revolta liberal que havia eclodido em São Paulo e Minas Gerais,
manifestando-se abertamente pela suspensão das medidas centralizadoras 11 aprovadas
anteriormente. No argumento de Uruguai, estabelece-se uma contraposição entre a
“vontade Nacional” e os “interesses meramente provinciais”.
Vejamos, inicialmente como podemos entender vontade Nacional. O termo
vontade, segundo Moraes (1844), significava a faculdade que alguém tem de querer, ou
não querer, o que se lhe apresenta bom ou não. Ter vontade de fazer alguma função
necessária; i.e. sentir a necessidade disso; n.g. de urinar, de vomitar. Vontade; desejo,
homem feito da sua vontade. Na primeira acepção expressa, podemos observar que o
agente dispõe da faculdade da escolha em realizar ou não determina ação: a vontade de
realizar de fato tal ato, ou a vontade de não realizar tal ato. Neste sentido, vontade
significa decisão, deliberação, escolha Na segunda acepção, vontade denota uma
disposição de realizar uma tarefa necessária. Em ambas, o sentido de vontade denotava
uma deliberação tomada pelo agente no sentido de realizar um ato 12 . Temos, portanto,
um sentido de ação intencional com relação a um determinado fim. Desloquemos nossa
atenção para o termo nacional.
Observemos os sentidos do termo nacional através de dois jornalistas de
correntes políticas distintas. O jornal Nova Luz Brasileira (5/3/1830), favorável ao
federalismo, designava a Assembléia Geral como “representação nacional sendo o
corpo unido dos deputados”. Justiniano José da Rocha, jornalista assalariado dos
conservadores, escrevia que somente o governo monárquico merecia o “título de
nacional”. Segundo ele, a “nação investiu da sua soberania um rei hereditário” (O
Brasil, 21/9/1873). O termo nacional possui dois sentidos. No primeiro, nacional está
referido ao conjunto de órgãos situados no poder central (Legislativo, Poder
Moderador, Conselho de Estado). Porém, percebe-se que os dois jornalistas utilizam-se
do termo nacional não apenas para designar os ramos do poder central, mas também
para se referir à idéia de todo. A representação nacional é o corpo unido, enquanto o
Imperador recebeu o título de nacional da nação. A idéia de nacional remete ao todo, ao
corpo unido.
11
Ver Marinho (1978). Sobre os fatos políticos relacionados a esse movimento, veja-se nosso capítulo 1.
12
Para uma análise da questão da vontade popular baseada na filosofia analítica ver Souza (1983, cap.
IV).
265
Chamemos a atenção do leitor para esse último sentido – nacional como corpo
unido, todo, conjunto – vem a ser o valor ressaltado no argumento de Uruguai. De
acordo com este, a “vontade Nacional não deveria se curvar perante interesses
meramente provinciais”. Quando, no argumento de Uruguai, emerge o termo vontade
Nacional, estava presente a idéia de que esta englobava as províncias, sem que estas
conformassem sua ação.
De maneira a reforçar essa idéia, vejamos como podemos compreender nação,
um termo que está diretamente vinculado a nacional.
13
Antonio Carlos Andrada Machado e Silva.
14
Ver Calmon (1977:37, “Coleção de Falas do Trono”).
15
Ver nota 16.
16
“Mas se por desgraça feita constituição, Sua Majestade reacusasse aceita-la, então ou Sua Majestade
tinha por si a opinião nacional, e nós nos tínhamos desviado do nosso mandato, e nesse caso nulo era o
que tivéssemos feito, ou Sua Majestade não tinha por si a opinião geral, e nessa hipótese ou havia de anuir
à constituição, que era a vontade geral, ou deixarmos quod Deus averat. A nação, Sr. Presidente, elegeu
um imperador constitucional, deu-lhe o poder executivo e o declarou chefe hereditário, nisto nós não
podemos bulir” (Andrada Machado, sessão de 6 de maio de 1823, p. 52).
266
pelas províncias, mas é o poder central que confere forma, através da razão e da
vontade, a essa coleção de partes.
Desloquemos a idéia de nação para o dentro do argumento de Uruguai. O
sentido da expressão interesses meramente provinciais remete ao debate político
analisado nos capítulos anteriores. Para a corrente federalista, a idéia de interesses
provinciais remete ao juízo de que a província possui assuntos que dizem respeito
exclusivamente a ela, e que esses são mais bem geridos quando conduzidos por
representantes escolhidos na própria província. Esses representantes estariam guiados
pela busca de vantagens exclusivas para a província. Para os federalistas, a ação do
poder central receberia seu conteúdo da competição saudável estabelecida entre os
diversos interesses provinciais.
A idéia presente no argumento de Andrada Machado (o soberano como razão
social que imprime uma forma à coleção de vontades individuais), na nossa
interpretação, aponta para a relação existente no pensamento político de Uruguai entre
vontade nacional e interesses meramente provinciais. Para Uruguai, os interesses
provinciais desempenhariam o mesmo papel das vontades individuais no argumento de
Andrada Machado. Sua reflexão não ignora que existam interesses específicos às
províncias – conforme observamos, este autor defende a transformação dos antigos
Conselhos Gerais em Assembléias Provinciais. Porém, o interesse provincial requer
uma intervenção que o direcione para um fim externo à província e seus interesses.
Enquanto referidos à sua dinâmica interna, esses interesses constituem-se numa mera
coleção de vontades provinciais, o que os torna parte da nação é a ação do poder
central. É neste sentido que Uruguai atribui aos interesses provinciais o adjetivo de
serem restritos (“interesses meramente provinciais”) quando comparados à vontade
nacional.
Esse vem a ser um dos traços principais não apenas do pensamento político de
Uruguai, mas do argumento centralizador. Segundo Nabuco de Araújo, as leis
centralizadoras teriam sido necessárias como maneira de conter os interesses
provinciais: “essa tendência centralizadora me parecia necessária como um dique
imposto à torrente dos desvarios das Assembléias provinciais; [...]” (sessão da Câmara
dos Deputados de 6 de abril de 1843 apud Uruguai, 1865:45). Podemos perceber neste
trecho a mesma lógica política presente em Uruguai. Com o Ato Adicional, os
interesses provinciais passaram a funcionar sem possuir um centro comum que lhes
conferisse forma e conteúdo. Para Nabuco Araújo e Uruguai, os interesses provinciais
267
requeriam um centro (dique) capaz de conduzir os interesses provinciais. A imagem do
poder central como um dique é extremamente reveladora do pensamento político de
Uruguai e dos centralizadores em geral. Sem a existência de um dique, os rios
desperdiçariam seu potencial positivo e se tornam apenas agentes de destruição.
Somente a partir da construção de um dique é que os rios passam a servir aos
propósitos humanos. Observemos essa lógica no termos do debate acerca da Lei de
Interpretação. A polícia judiciária deveria ser controlada exclusivamente pelo poder
central. Isto significava que os cargos e as suas atribuições determinados pelo poder
central seriam aplicados uniformemente em todo o império. A Justiça una, para os
centralizadores, significava a possibilidade de impor uniformemente a Justiça em um
Império heterogêneo internamente.
268
interesses; o segundo, reunindo elementos da geografia17 : clima e território. Cada
região seria marcada por produtos, climas, costumes. De maneira a compreender o
trecho acima, podemos nos utilizar do conceito de interesse segundo Uruguai: cada
província movida pela busca do que lhe útil não encontraria elementos semelhantes em
outras províncias. Em outras palavras, a partir dos interesses existentes na esfera da
economia não seria possível construir um laço comum entre as diversas partes que
compõem o Brasil. A centralização, a unidade entre essas partes, não emerge a partir
dos interesses.
No seu relatório de presidente de província analisado no Capítulo 1, Uruguai
percebia que o café despontava como a principal atividade econômica do país (como
sabemos, Uruguai vinculou-se a esse grupo social). Entretanto, no trecho acima,
Uruguai não mencionava que a partir dos interesses da província do Rio de Janeiro
pudessem ser construídos laços entre as diversas partes do Império. Ao contrário, sua
reflexão negava explicitamente que a partir dos interesses pudesse ser construída uma
política capaz de unir a nação. Podemos interpretar que Uruguai considerava que os
interesses de uma província marcada pela produção cafeicultora não eram os mesmos
daqueles de uma província voltada para a produção de carne (como a do Rio Grande do
Sul) ou com partes voltadas para o abastecimento do mercado interno (como o sul de
Minas); ou ainda de províncias pouco habitadas, como as províncias do centro-sul ou
mesmo a província do Rio Negro. Entre essas províncias não existe, no plano do
interesse, um elemento comum.
No esforço interpretativo desta tese é fundamental o passo seguinte.
Retomemos o argumento de Teófilo Ottoni. Segundo o deputado mineiro, a
manutenção do Ato Adicional justificava-se porque nas províncias mais civilizadas a
descentralização não implicava conflitos com o poder central. Teófilo Ottoni defende o
Ato Adicional a partir dos interesses das províncias mais civilizadas. O Ato Adicional
permitia que as províncias mais civilizadas buscassem seus objetivos sem ferir a
unidade nacional. Porém, seu argumento silencia quanto às regiões menos civilizadas.
Na nossa interpretação, seu silêncio é coerente com a idéia de federalismo. Nesse
arranjo constitucional, a solidariedade entre as partes nasce das vantagens que cada
província obtém do pacto. Do ponto de vista das províncias mais civilizadas, para certas
17
Essa referência ao território e ao clima parece denotar alguma influência do pensamento de
Montesquieu.
269
províncias – aquelas que na competição interna são as mais bem aquinhoadas – a
descentralização cumpre plenamente sua finalidade.
Conforme podemos observar no Capítulo 5, o pensamento político de Uruguai
insere-se na corrente que reconhece que o avanço da civilização requer que os
indivíduos sejam domesticados pelo interesse. Observamos que o tema do aumento da
população e das suas conseqüências na difusão da competição entre os indivíduos era
considerado de maneira positiva por grande parte dos autores do período, inclusive
Uruguai. Segundo este, o grande problema das rebeliões do Norte do país foi o fato de
que grande parte dos seus participantes vivia no ócio, longe da disciplina imposta pelo
trabalho. Ainda segundo ele, a província do Rio de Janeiro não conheceu essas
agitações porque nela estava difundido o amor ao trabalho e o apego à propriedade.
Portanto, não estamos perante um autor que desconheça a relevância do interesse na
civilização moderna.
Da mesma maneira, o pensamento político de Uruguai não desconhece que
certos assuntos devam recair na esfera de decisão dos Legislativos provincial e
municipal. Conforme observamos, Uruguai deplorava a situação vigente na época dos
Conselhos Gerais. Numa chave mais abstrata, Uruguai reconhecia que o elemento
federal poderia ser incorporado à Constituição brasileira, desde de que fossem
marcadas precisamente as esferas de atuação dos poderes central e provincial,
guardando para o poder central a unidade necessária para o funcionamento da Justiça
una.
Na nossa interpretação do pensamento político de Uruguai a análise de Ottoni
era inaceitável, pois o pacto entre as partes não poderia ser pensado exclusivamente a
partir dos interesses das províncias mais civilizadas. O poder central não poderia ser o
agente que garante uma competição saudável entre os interesses provinciais. Os
interesses, mesmo os da cafeicultura, deveriam ser erguidos da sua dinâmica para a os
interesses da nação. O poder central, para Uruguai, imprime um movimento de
harmonia entre as diversas partes da nação, e não de competição. No pensamento
político de Uruguai, a idéia de competição entre as províncias sempre irá apontar para o
exemplo hispânico, porque a união não nasce da competição e rivalidade entre as
províncias, mas de uma ação que espalhe uniformemente os valores da justiça pelo
território.
A citação com qual abrimos o capítulo apontava criticamente para o movimento
liberal de 1842. Segundo o jornal O Brasil, o brado do movimento teria sido marcado
270
pelas demandas de paulistas, mineiros etc., mas não pela integridade da pátria. Na nossa
interpretação, não seria correto identificar o movimento liberal de 1842 como sendo
separatista. Entretanto, devemos analisar o trecho da seguinte maneira: para os
centralizadores, a integridade territorial era um valor central (ver Arrighi, 1997:33), e
essa não poderia ser mantida apenas pela ação do interesse provincial; não existiam
interesses comuns entre as diversas províncias. A manutenção da integridade territorial
requeria uma ação do poder central que não fosse movida pelo plano do interesse (ver
Carvalho, 1988 e Werneck Vianna, 1997).
Neste sentido, para Uruguai, a razão/vontade nacional presente no poder central
deveria deslocar os interesses provinciais para um caminho que fosse benéfico para
todo o império. Conforme Uruguai escreveu no Ensaio..., o poder central é mais
eqüidistante dos conflitos existentes na província, ou seja, a razão nacional se distancia
do que seja exclusivo da província e vela pelo que diz respeito ao todo. No argumento
centralizador, o que diria respeito ao todo era a necessidade da construção de um
aparelho público capaz de implementar a paz interna e assegurar a integridade nacional.
Controlar os interesses provinciais implicava refrear o grande proprietário,
desmobilizar as classes subalternas e introduzir a temática dos direitos civis
uniformemente em todo Império.
6.4 - Conclusão
18
Ver também Murilo, 1993.
271
Na nossa hipótese sobre o pensamento político de Uruguai, duas dimensões são
centrais para a sua compreensão. A primeira seria formada pela ação civilizadora do
Poder central através da justiça e dos seus funcionários sobre o grande proprietário e as
classes subalternas, ponto que será visto no capítulo seguinte. A segunda dimensão diz
respeito ao tema da precedência da vontade nacional sobre os interesses provinciais.
Aspecto que buscamos analisar neste capítulo. A idéia de que no pensamento político
de Uruguai o Poder central civiliza deve ser desdobrada para o tema do interesse
provincial.
O diagnóstico sempre presente no final dos anos 30 e começo dos anos 40 de
que era necessário armar o Poder central, deve ser compreendido em dois sentidos.
Primeiro era preciso armar o Poder central para enfrentar as diversas revoltas armadas
que sacudiam o país – sejam os grandes conflitos como os pequenos conflitos
analisados no capítulo 5. Em segundo lugar, era necessário armar o Poder central como
uma maneira de deslocar os interesses provinciais da sua dinâmica natural. O Poder
central deveria dispor de meios que lhe permitissem controlar autonomamente a
aplicação da justiça.
Conforme observarmos neste capítulo, para os centralizadores a polícia
judiciária deveria ter suas regras elaboradas pelo Poder central. Porém, o Poder central
não deveria apenas elaborar, mas executar. A execução não poderia ficar a cargo dos
legislativos provinciais. Este controle asseguraria que a lei não ficasse sujeita a
particularismos. Os funcionários encarregados de aplicar a lei deveriam estar
subordinados ao Poder central de forma que o Poder provincial não poderia adaptar as
atribuições à sua realidade local.
É fundamental que compreendamos porque o legislativo provincial não poderia
estar encarregado desta tarefa para o pensamento político de Uruguai. Segundo esse
autor, o legislativo provincial estaria movido pelos interesses da província. Conforme
destacamos, nos termos de Uruguai, esses interesses são meramente provinciais.
A compreensão política do termo meramente nos é dada quando analisamos o
conceito de federalismo nos capítulos 2, 3 e 4. O conceito de federalismo foi concebido
a partir da idéia de interesses provinciais. Conforme analisamos anteriormente,
principalmente a partir de 1834, a corrente federalista considerou a província movida
pela mesma lógica do cidadão ativo no trato da sua economia doméstica. O Legislativo
provincial e os funcionários escolhidos localmente buscariam gerir a província tendo
em vista a busca de bens que seriam, em princípio, exclusivamente utilizados na
272
província. O arranjo federalista garantiria que o Poder central não interviesse nesta
esfera; eis o sentido da liberdade provincial. As províncias, como bem assinalou o
deputado Lino Coutinho em vários trechos analisados no capítulo IV, estariam em uma
competição. Essa competição de cada província pelo seu bem particular teria como
conseqüência o fato de que algumas províncias ficassem mais atrasadas enquanto outras
mais prósperas, mas o resultado seria favorável ao progresso da nação.
O argumento centralizador, conforme analisamos nos capítulos 2, 3 e 4,
discordava dessa visão. Conforme Silva Lisboa assinalava, na constituinte de 1823, o
Poder central deveria velar pela prosperidade geral. No debate analisado no capítulo 2,
Silva Lisboa considerava que os funcionários não deveriam ser escolhidos pelo poderes
locais - provincial e municipal-, mas pelo Poder central, pois este era guiado pela
prosperidade de todo o império e, não apenas, de uma província. O pensamento
centralizador entendia a idéia de uma competição entre as províncias como o caminho
através do qual a integridade territorial seria posta em perigo. Ao identificar essa
possibilidade de ruptura, o argumento centralizador era movido pelo conteúdo presente
no conceito de confederação. Conforme observamos nos capítulos 2 e 3, o conceito de
federação era ainda compreendido como sendo idêntico ao de confederação. Neste
sentido, as províncias seriam entidades soberanas. Nesta chave de leitura, os
centralizadores argumentavam que as províncias mais fortes firmariam pactos
prejudiciais às mais fracas, fato que levaria a essas buscar alianças defensivas ou
ofensivas contra os acordos. Para os centralizadores, nessa competição não haveria uma
província capaz de impor a paz às demais, generalizando-se o conflito tal qual na
América hispânica.
Durante os anos 30, o conceito de federalismo separa-se nitidamente da idéia de
confederação. Porém, o pensamento centralizador entende o Poder central como um
agente vinculado ao interesse comum entre as diversas províncias. O laço que uniria as
províncias seria forjado pela ação de um poder central que uniria as partes distintas da
nação. Os interesses da província seriam, para os centralizadores, como incapazes de
enxergar os elementos comuns e harmônicos entre as partes.
O pensamento de Uruguai move-se nessa perspectiva política, mas num
contexto mais favorável. Contexto este que a sua ação ajudou a construir. O
pensamento centralizador esteve desde o fim dos 20 até o fim dos 30 na defensiva. Essa
273
corrente reagia às iniciativas federalistas19 . A partir do fim dos anos 30 o pensamento
centralizador inicia a revisão da legislação descentralizadora. A qual segundo Uruguai,
havia fracionado e retalhado o Poder central. Porém, o pensamento centralizador
impõe um outro conjunto de temas de maneira tal que a relevância da integridade
territorial vem acompanhada de outros valores. A unidade do Poder central deve ser
capaz de impor uma justiça em todo território nacional, sem que a sua aplicação sofra
as contingências dos particularismos provinciais. Neste sentido, a elaboração da Lei de
Interpretação: a polícia judiciária deveria ser controlada exclusivamente pelo Poder
central, ficando ao cargo desse tanto o seu conteúdo quanto as suas atribuições. A
Reforma do Código do Processo (tema do próximo capítulo) vinha como decorrência
desta subordinação da polícia judiciária, mas ao mesmo tempo introduzia o tema do
tipo de funcionário necessário para a aplicação do Código. Ao mesmo tempo, o
pensamento de Uruguai apontava para o fracasso da experiência política
descentralizadora no sentido de delegar aos cidadãos ativos o controle da justiça. A
legislação descentralizadora instaurou, conforme já analisamos no capítulo 5, a lógica
de oprimir para não ser oprimido. O grande proprietário engendra uma ação que
desestabiliza a paz interna. O argumento centralizador chama para si o tema da
introdução dos direitos civis como um meio de pacificar o país. A justiça deixaria de
ser um instrumento de perseguições políticas para assegurar os direitos civis dos
cidadãos.
Na hipótese desta tese, esse conjunto de temas que passaram a ficar associados a
ação do Poder central requerem um dado enfoque sobre o tema dos interesses
provinciais. Na nossa interpretação do pensamento político de Uruguai, a idéia de que o
poder central civiliza – e nesta idéia colocamos os temas mencionados acima – somente
faz sentido se tivermos compreendido o tema do interesse provincial na sua reflexão.
A análise que realizamos no capítulo 4 torna-se angular para entendermos esse
tema. No capítulo citado assinalamos que o funcionamento do Ato Adicional ia na
direção contrária aos mecanismos democratizantes do Código do Processo. O Ato
Adicional e seus defensores procuram reforçar os poderes da assembléia provincial em
detrimento do município. A corrente federalista buscava subordinar os mecanismos
descentralizadores previstos no pacto à idéia de civilização. O legislativo provincial
19
Mesmo o Ato Adicional, visto por alguns como o primeiro movimento a ir contra a descentralização,
deve ser visto como um recuo realizado dentro dos moldes federalistas – conforme abordamos no capítulo
IV.
274
aplicaria os mecanismos descentralizadores segundo os interesses das elites provinciais.
Isto implicava colocar a polícia judiciária na sua alçada. Essa lógica de ação era
louvada por Tavares Bastos. Segundo este, a reforma dos excessos do Código do
Processo era realizada com base nos interesses provinciais sem referência ao todo
artificial e externo a esses.
O pensamento de Uruguai não discorda do ataque à justiça eletiva, mas é
movido por outra perspectiva política com conseqüências políticas relevantes (parte
delas serão analisadas no capítulo seguinte). A justiça eletiva colocava em perigo a paz
interna ao desencadear uma série de conflitos armados de forma que a integridade do
território ficava ameaçada. Essa integridade seria obtida através de uma ação que
buscasse estabelecer a harmonia e a unidade entre as províncias. Conforme assinalamos
no capítulo 4, o argumento centralizador enfatizava que o interesse de uma província é
forjado pelas suas localidades sem referência às demais partes do império. O
pensamento político de Uruguai segue essa idéia e a aprofunda. Os interesses, para
Uruguai, são parte essencial da civilização moderna. Entretanto esses não fornecem o
laço comum entre as províncias. E esse ponto na nossa hipótese vem a ser a veia jugular
do seu pensamento político. Conforme observamos, no Brasil imperial, para Uruguai,
não existiam no plano dos interesses elementos comuns às diversas regiões. Na nossa
hipótese, no pensamento de Uruguai a ação de centralizar, estabelecer laços entre as
províncias, não poderia nascer dos interesses provinciais. No Brasil, a unidade é ação
intencional que nasce de um Poder guiado pela idéias de unidade e harmonia e que, em
função dessas, deve guiar esses interesses provinciais. O dique centralizador do qual
falava Nabuco ganha todo o seu sentido político. E esse ponto nos permite chamar a
atenção para o fato de que para Uruguai não existia unidade nacional no plano dos
costumes nem no plano dos interesses. A unidade nascia da ação política de um Poder
central guiado pela idéia de nação 20 .
20
É um equívoco abordar a polêmica entre centralizadores e federalistas como se os primeiros
discordassem dos segundo porque enxergavam a unidade nacional como um fato natural. Segundo essa
abordagem, para os centralizadores, a nação preexistia e os federalistas buscavam alterar esse dado. E que
tal postulado não passava de um mecanismo através do qual os interesses das províncias do Rio, São
Paulo e Minas Gerais impuseram sua hegemonia política e econômica ao restante do país. Ver Cabral,
2001, p.16-17. Em nenhum momento da sua obra escrita ou nos discursos, Uruguai sugere que a unidade
estivesse construída no plano dos costumes e dos interesses. Ao contrário, conforme observamos o que
ele escreve é que a unidade não existia nesse plano, sendo necessária uma intervenção de fora, do Poder
central, para efetuá-la. A unidade nacional para Uruguai pode ser tudo menos um dado inscrito no plano
dos costumes e dos interesses. O estudo da polêmica entre federalistas e centralizadores deve focar sua
atenção na maneira pela qual o interesse provincial foi pensado nessas correntes. É a partir dessa análise
que esse debate pode ser entendido. Essa foi a perspectiva tentada nesta tese.
275
Retomemos os conceitos de centralização e de centralizar observados na
Introdução á tese: centralizar ajuntar em um centro. Repor, restituir ao centro físico ou
moral as partes ativas e afastadas; centralização chamar para um centro a
administração de um estado ou províncias ou dos distritos etc. No pensamento político
de Uruguai, o ato de centralizar implicava em concentrar no centro comum a tarefa de
estabelecer um laço entre as partes ativas e afastadas da nação. O centro comum deveria
reunir em suas mãos o controle sobre a elaboração e implementação da justiça em todo
território, sem permitir que essa seja alterada por particularismos provinciais; a justiça
deveria ser una para toda a nação. Caso nós compreendermos que a expressão partes
ativas pode ser entendida como as províncias mais civilizadas, poderemos ampliar
nossa compreensão do conceito de centralização. No pensamento político de Uruguai, a
tarefa de centralizar deveria ser conduzida pelo centro comum na medida em esse
conduz sua ação tendo em vista a coesão das partes mais civilizadas bem como das
partes mais atrasadas da nação. A tarefa de centralizar não poderia ser pensada apenas
em função das partes ativas.
Vejamos no capítulo seguinte qual o tipo de funcionário requerido para a
política de centralização. Vejamos também em que medida a construção de um Estado
nação implicava conter as ações do grande proprietário e das classes subalternas e
afirmar o tema dos direitos civis.
276
Capítulo 7
7.1 - Hipótese
277
elemento, qual seja, o tipo de funcionário que seria nomeado. Podemos recortar na
reflexão de Uruguai uma definição deste funcionário; sua natureza era distinta do
funcionário eleito. Aquele funcionário deveria possuir um conhecimento específico para
o desempenho do seu cargo, deveria se dedicar exclusivamente às suas tarefas e para
tanto deveria dispor de um salário e poderia ser deslocado pelo território nacional
segundo as necessidades do Estado.
Devemos buscar, na reflexão de Uruguai, os motivos destes atributos nos móveis
da sua ação serem também distintos daqueles do funcionário eleito. O tipo de
funcionário requerido pela centralização era o veículo através do qual o poder central
construía o Estado-nação; sua função não era a de espelhar os interesses municipais ou
provinciais, mas um projeto que se impunha de fora. Neste sentido, na reflexão de
Uruguai, a ação do Estado não era moldada pela ação de cidadãos voltados para a
proteção de sua esfera privada; o tema da proteção à segurança e à propriedade do
cidadão se impõe como interligado à expansão do poder central. É a ação deste poder
que impõe esta agenda política – expansão do Estado-nação – a cidadãos que, na sua
dinâmica social, não vislumbram tal conteúdo. Neste sentido, podemos escrever que a
ação do poder central educa os interesses dos cidadãos.
Desta forma, a maneira pela qual Uruguai compreendeu a Reforma do Código
do Processo é fundamental para que possamos definir e interpretar o conceito de
centralização, seus agentes e seu conteúdo. Dessa maneira, meu olhar sobre a Reforma
do Código não irá analisar a relação do Direito Penal e do Processo Criminal com as
estruturas sociais 1 . Minha preocupação central será a relação da Reforma do Código
com o tema da centralização. Quais os motivos políticos que Uruguai apontava para
esvaziar a Justiça criminal eletiva? Por que o funcionamento da Justiça criminal deveria
se submeter única e exclusivamente ao poder central? Por que, para Uruguai, o poder
central não deveria transferir a nomeação para os cidadãos nos municípios ou para as
Assembléias Provinciais? Por que, para Uruguai, a Reforma do Código deveria
assegurar a Unidade do poder central?
Se sintetizarmos este conjunto de indagações e o pusermos nos termos do debate
entre centralizadores e federalistas, poderíamos formular a seguinte questão: por que,
para Uruguai, a atribuição de eleger certos cargos na Justiça não poderia ser posta ao
alcance da sociedade? Por que esse poder não poderia ser espalhado pela sociedade?
1
Sobre esta perspectiva, veja-se sobre o Código de 1830 em Machado Neto (1977).
278
São essas questões que nos permitirão relacionar a Reforma do Código e o conceito de
centralização.
2
Ao delinear o contexto político procurei relatar os fatos diretamente ligados a Reforma do Código do
Processo. Neste sentido não exponho um painel político do período (quedas e subidas do Gabinetes, a
proclamação da Maioridade etc.).
279
as idéias de Vasconcelos, tendo introduzido, ao mesmo tempo, diversas novidades 3 . Por
sua vez, Vasconcelos reconhecia a presença das idéias de Uruguai no projeto de
Reforma, não o considerando uma mera cópia do trabalho da comissão por ele formada
(ver Souza, 1988b:190). Os debates parlamentares revelaram a afinidade de idéias entre
os dois políticos, são eles que se põem à frente no enfrentamento com Alves Branco,
Limpo de Abreu, Vergueiro e outros liberais moderados.
Em 3 de dezembro de 1841 foi sancionada pelo ministro da Justiça, Paulino José
Soares de Souza, a Reforma do Código do Processo – tendo sido emitido um
Regulamento em 3 de janeiro de 1842 sobre a Lei aprovada.
A Reforma do Código do Processo incidiu sobre onze pontos presentes no
Código do Processo (1832). Estes foram: 1) criou-se nas capitais um chefe de polícia
nomeado pelo poder central. O chefe de polícia escolhia, nos municípios, os delegados e
subdelegados que ficavam a ele subordinados. Os chefes de polícia eram escolhidos
entre os desembargadores e juízes de direito obrigados a aceitar os lugares e amovíveis.
Os subdelegados e delegados eram indicados entre os cidadãos e juízes; 2) foram
esvaziadas as atribuições dos juízes de paz, a maior parte destas transferidas para o
chefe de polícia e seus delegados; 3) os mandados de busca passaram a ser concedidos
independentemente do depoimento de qualquer testemunha, apenas a partir de indícios
veementes ou fundada probabilidade da existência dos objetos ou do criminoso no
lugar; 4) modificou-se a forma da nomeação dos juízes municipais e promotores,
dispensando a proposta das Câmaras Municipais exigindo que os promotores fossem,
quando possível, bacharéis formados; 5) foram dadas atribuições mais amplas aos
juízes de direito, os quais deveriam ser nomeados entre os bacharéis formados que
tivessem servido nos cargos de juízes municipais, de órfãos ou de promotores por pelo
menos quatro anos; 6) ficaram abolidas as juntas de paz e o júri de acusação; 7) foram
estabelecidas novas regras sobre o júri, elevando os pré-requisitos para tomar parte no
mesmo; 8) foram introduzidas novas regras para a formação da culpa acerca do corpo
delito, o número de testemunhas, recursos de pronúncias dos delegados; 9) restringiu-se
a fiança; 10) com relação ao habeas corpus ficou estabelecido que a competência para a
sua concessão caberia ao juiz superior ao que havia decretado a prisão, prevendo-se o
recurso necessário; e 11) expandia as atribuições dos juízes municipais e estabelecia a
3
Ver discurso no Senado em 26 de agosto de 1841 apud Souza (1988b:190).
280
Relação do Distrito como competente para conhecer todas as apelações das sentenças
definitivas 4 .
Para a análise escolhemos aqueles pontos que foram objeto de polêmica entre
conservadores e liberais moderados. Os pontos que foram consensuais não vão merecer
a nossa atenção. Na medida em que nosso objetivo recai nas idéias de centralização e de
federalismo entendidos como conceitos políticos, a existência de divergências nos
revela mais agudamente o conteúdo dos conceitos de centralização e federalismo. Neste
sentido, vamos nos deter na análise nos setes primeiros pontos.
4
Sobre estes pontos veja-se Nequete (1973:70-73) e Almeida Junior (1920).
5
Ver Reforma do Código Artigos 1,2 e 3.
281
Nosso material de análise serão os debates parlamentares e os relatórios de
ministro da Justiça.
Observemos qual o conteúdo da crítica de Uruguai à figura do juiz de paz.
Uruguai destacava, no seu Relatório de Presidente de Província de 1839, a incapacidade
do juiz de paz em realizar suas tarefas.
6
Quando é mencionado o fato de que em um ano ocorrem diversas substituições, isto ocorre porque o juiz
de paz, como era um cargo não remunerado, podia argumentar que era necessário se ausentar das tarefas
por algum tempo, sendo substituído pelo segundo na lista. Ver Lei de 15 de outubro de 1827, Art. 4.
7
O desempenho do juiz de paz na comarca de Rio das Mortes, em Minas Gerais, durante todo o século
XIX foi analisado por Ivan Velasco (2002). A tese de Velasco aponta que a função do juiz do paz esteve
diretamente ligada ao arranjo político que foi feito para a sua eleição. Em diversos distritos, o juiz de paz
saiu das elites locais, fato que acarretou dois pontos importantes: a) não houve conflitos com o juiz de
direito; e b) normalmente era um cidadão que dispunha de uma formação jurídica. Neste caso, o
desempenho do juiz de paz foi extremamente eficiente. Na sua análise de São João del Rei, Velasco
destaca estes aspectos, ao mesmo tempo em que assinala que esta conjunção de fatores nem sempre
ocorreu.
282
dos meios disponíveis. Entretanto, mesmo esses juízes de paz terminam mortos ou em
fuga. Neste sentido, para Uruguai, ainda aqueles que não fossem negligentes
encontrariam dificuldades em razão de outros fatores. Vejamos quais são estes.
Uruguai criticava o pouco tempo de duração do juiz no cargo; mal este
começava a conhecer as suas funções era substituído e esta rotatividade impedia que o
funcionário se familiarizasse com as suas tarefas. Como a lei não requeria que o eleito
fosse um bacharel, tornava-se fundamental que houvesse tempo para que o juiz
começasse a conhecer as leis e as suas atribuições. Esta pouca intimidade com as suas
atribuições era agravada pelo fato de o juiz de paz ser um particular, não era um
assalariado do governo, e dessa maneira não poderia descuidar dos seus afazeres
particulares. Segundo Uruguai, as atribuições do juiz de paz foram enormemente
alargadas com o Código do Processo, tal acúmulo de tarefas passou a exigir uma
dedicação exclusiva do funcionário. Podemos considerar que, para Uruguai, mesmo o
juiz de paz disposto a colocar em primeiro plano sua atividade pública não conseguiria
fazê-lo, pois a sobrecarga de funções não iria permitir tal desprendimento.
Ao realizar tal crítica, Uruguai delineia claramente o modelo de funcionário
desejável. Neste sentido, podemos depreender que Uruguai estava demandando um
funcionário assalariado, pois este fato impediria que suas tarefas fossem tolhidas pelo
esforço que um funcionário amador deveria fazer para prover seu sustento. Este
funcionário assalariado poderia se dedicar exclusivamente à suas tarefas, significando,
com isto, que Uruguai demandava para o exercício do cargo um funcionário que
passasse a depender, para a sua sobrevivência, do seu salário proveniente do Estado. O
vínculo que o funcionário assalariado passa a ter com o Estado é distinto daquele que o
funcionário amador possui. O funcionário assalariado possui vínculos mais fortes com o
Estado em virtude da sua dependência para com este, na medida em que sua única fonte
de sustento provém do Estado (cf. Weber, 1984, primeira parte, cap. III; e Bendix, 1986,
cap. XII).
Neste momento, podemos assinalar que, na visão de Uruguai, o funcionário
amador estaria impossibilitado de desempenhar suas tarefas por dois motivos: o
primeiro residia na sua incapacidade técnica, não possuía um treinamento que o
habilitasse para um manejo razoável da complexidade presente na legislação brasileira
e, em segundo lugar, devido à impossibilidade de se dedicar integralmente às suas
tarefas.
283
É fundamental que percebamos que estes obstáculos estão presentes nos
elementos que caracterizam o funcionário amador e se tornam mais acentuados no
sertão. Em outras palavras, a reflexão de Uruguai articula a crítica ao juiz de paz
amador sem referência aos obstáculos presentes no sertão. Neste espaço social, a
precariedade dos meios administrativos e a fraqueza da civilização tornam a tarefa do
funcionário amador ainda mais difícil.
De maneira a precisar as idéias de Uruguai, vejamos dois trechos de discurso
acerca da forma pela qual a Reforma do Código estabelecia o preenchimento do cargo
de chefe de polícia. Observemos uma fala de Uruguai e de um aliado dos conservadores.
“Quem lhe disse que o governo há de nomear uma lesma cuja capacidade o
torne paspalhão? Pois não se consagra nas reformas que o governo deve
escolher os homens de mais prática, mais abalizados e mais
condecorados mesmo na magistratura para servirem neste importante
cargo?” (Gonçalves Martins, sessão da Câmara dos Deputados de 26 de
outubro de 1841, p. 700)
284
Podemos interpretar que Uruguai, ao colocar o funcionário nomeado tendo como
referência uma maior esfera, estabelece que a ação estatal não deve receber seu
conteúdo das vontades dos cidadãos inseridos nos municípios, ou dos poderes
provinciais. A ação do Estado não deve refletir os interesses dos cidadãos formulados a
partir da sua dinâmica social. A nossa interpretação mobiliza outro aspecto presente na
idéia de uma maior esfera. Conforme veremos no item 3.1, Uruguai estabelece uma
contraposição entre Vontade/Razão Nacional e interesses provinciais. A ação do poder
central, ao se colocar como o centro comum das partes que compõem a União, age
tendo em vista interesses e realidades heterogêneos. Por um lado, as elites locais estão
inseridas na sua lógica de oprimir para não ser oprimido, mas não essa não é a única
limitação política da sua ação. No pensamento político de Uruguai, a idéia de que o
funcionário vinculado ao Estado age tendo em vista uma maior esfera está relacionada à
perspectiva de que o poder central, ao agir, não toma em consideração apenas os
interesses da província, mas pondera esses numa realidade mais ampla.
Estabeleçamos o contraponto com o artigo de Evaristo da Veiga acerca da
eleição do juiz de paz. Para o político do Primeiro Reinado, o cidadão construía seu
interesse em participar da eleição a partir do envolvimento nas lutas políticas travadas
na sociedade. Nos seus motivos de envolvimento não existiria nenhuma referência a
valores que extrapolassem a sua esfera privada. Ao final do processo eleitoral, o cidadão
compreende a importância da sua participação e da eleição, mas o faz sempre tendo em
vista seus interesses. A soma de outros interesses individuais igualmente educados pelo
envolvimento político forneceria o conteúdo da ação do juiz de paz.
A diferença para com a idéia de Uruguai é relevante. Para Uruguai, a nomeação
do chefe de polícia atende a outros objetivos. Por um lado, o poder central busca
pacificar o país: desarmar os potentados e derrotar as classes subalternas que emergiam
dos sertões. Por outro lado, a ação do poder central leva em consideração realidades
distintas daquelas presentes no município ou na província. Na reflexão de Uruguai,
esses objetivos não nascem da dinâmica dos interesses individuais ou provinciais, mas a
partir de uma referência mais ampla: a construção do Estado-nação e o Império tomado
como um todo, e não apenas as províncias mais civilizadas.
Observemos a fala do deputado Gonçalves Martins. O deputado estava
respondendo aos liberais moderados. Segundo estes, a Reforma permitia que o poder
central escolhesse aquele que lhe aprouvesse e nada impediria que fosse escolhido um
funcionário disposto a violar a esfera privada dos cidadãos. O deputado Gonçalves
285
Martins enfatizava que a escolha do poder central não seria aleatória, estaria marcada
por certos pré-requisitos: a prática e a formação em Direito.
A escolha para chefe de polícia de um magistrado era o sinal de que seria
nomeado um indivíduo com um conhecimento específico e com prática; elementos que
o distinguiam positivamente do juiz de paz. Segundo o Código do Processo, não era
requisitado para este cargo nenhuma destas características – um conhecimento
específico e prática prévia. Portanto, para Uruguai, e para os centralizadores, um dos
principais males do juiz de paz era sanado no projeto do governo.
Retomemos a análise a partir da contraposição entre o chefe de polícia e o juiz
de paz. No capítulo “Civilização e Sertão” observamos que, para os centralizadores, o
mau desempenho do juiz de paz era exacerbado no sertão em razão das suas condições
sociais específicas: a carência de uma opinião pública, o atraso material, os partidos
envolvidos unicamente em disputas por cargos, a dispersão da população etc.
O argumento presente nos trechos anteriores prescinde da referência da situação
social na qual o juiz de paz estaria inserido. Não se trata de afirmar que as referências às
condições sociais brasileiras não estejam presentes em outros momentos da reflexão de
Uruguai, mas que o ministro da Justiça argumentava a partir de um dado modelo de
organização do aparelho do Estado, que envolvia valores específicos que orientavam
sua análise da realidade brasileira. Podemos, até o momento, assinalar os seguintes
traços deste modelo: um funcionário assalariado, amovível ao longo do território
nacional e dotado de um treinamento específico para o desempenho do cargo.
Portanto, frente ao juiz de paz, eleito localmente, sem vencimentos, sem uma
formação prévia e que após o fim do mandato retornava a localidade, Uruguai
contrapunha um outro tipo de funcionário: nomeado pelo poder central, com uma
formação específica e que poderia ser deslocado ao longo do território nacional. Este
tipo de funcionário possuía um desempenho superior não apenas no sertão, mas também
frente a um juiz de paz ativo e zeloso das suas atribuições, atitude mais presente nas
regiões civilizadas do país. Na reflexão de Uruguai, a substituição do funcionário
amador eleito é fundamental, tendo em vista a necessidade de cessar os conflitos
armados pelo país.
De acordo com a hipótese desta tese, é fundamental interpretar a questão acima.
Nos anos 1830 e 1840, para a reflexão de Uruguai, o tema central era desarmar os
grupos políticos envolvidos nas eleições da Justiça. O pensamento político de Uruguai
aborda o tema das garantias que o Estado deve oferecer ao cidadão com relação à
286
propriedade e a sua segurança pessoal a partir do ponto de vista das conseqüências que a
não observância destas têm para a construção de um Estado-nação. A incapacidade
técnica do juiz de paz amador e o seu uso nos conflitos locais desencadeiam uma série
de conflitos armados. Eventos que colocam em risco tanto a unidade nacional quanto a
construção de um aparelho administrativo no país. Tratava-se de esvaziar essa figura (o
juiz de paz) estabelecendo a precedência da construção de um aparelho administrativo
centralizado como um garantidor da segurança e propriedade dos cidadãos. Ao mesmo
tempo, esse funcionário expressava um Estado que estava referido a realidades distintas
daquela presente na província ou município. A idéia de que a ação do poder central está
referida a uma realidade mais ampla do que aquela presente na província será
fundamental para que possamos entender a continuidade deste tema, na reflexão de
Uruguai, nas décadas de 1850 e 1860, quando o país estiver pacificado.
No pensamento político de Uruguai, a idéia de que o juiz de paz girava numa
esfera mais restrita se manifesta, também, na discussão acerca da concessão do
passaporte. Neste caso se manifestava um aspecto distinto, qual seja, o juiz de direto
simbolizava a substituição do julgamento pessoal pelo julgamento fundamentado em
leis escritas. Vejamos este debate.
O Código do Processo, no Título II, capítulo I, dos artigos 114 ao 120, versava
sobre o passaporte - seu título era Do Passaporte. Neste capítulo ficava determinado
que toda pessoa que for se estabelecer no distrito de paz deverá se apresentar ao juiz de
paz. Esse interrogará o indivíduo 8 e caso suas respostas não sejam satisfatórias, mandá-
lo-á embora do distrito 9 . O uso do passaporte não era considerado obrigatório para os
deslocamentos dentro do Império, mas o cidadão ficava sujeito às indagações do juiz de
paz (Artigos 118 e 119). O projeto de Reforma do Código retirava essa atribuição do
juiz de paz e estabelecia que o requerimento ou não do passaporte devesse ser
determinado pelos regulamentos do governo 10 . Ao mesmo tempo, a Reforma do Código
estabelecia que o termo de bem viver, pronunciado pelo juiz de paz acerca dos
8
Artigo 114: “Toda pessoa, que se for estabelecer de novo em qualquer Distrito de paz, deve apresentar-
se pessoalmente, ou por escrito ao juiz respectivo, o qual poderá exigir dela as declarações que julgar
necessárias, quando se lhe faça suspeita.”.
9
O artigo 116 estabelecia o seguinte: “Se o juiz de paz, não for convencido de estar o interrogado livre de
crime, mandará que este se retire para fora do seu Distrito no prazo, que lhe for assignado, sob pena de ser
expulso debaixo de prisão, exceto se provar que não tem crime, ou se der fiador conhecido e de
probidade, que se obrigue a apresentar passaporte dentro de certo prazo, sujeitando-se a uma multa se não
fizer.”
10
“Ninguém poderá viajar por mar ou por terra, dentro do Império, sem passaporte, nos casos, e pela
maneira que for determinada nos regulamentos do governo” (Sessão do Senado de 6 de julho de 1840).
287
indivíduos que se estabelecessem no seu distrito, era passível de recursos para o juiz de
direito (ver Sessão do Senado de 13 de maio de 1841).
Observemos, inicialmente, a intervenção de Uruguai.
11
“Todo o que não cumprir a obrigação prescrita no artigo antecedente,será chamado à presença do juiz
de paz, por ordem deste, para ser interrogado sobre seu nome, filiação, naturalidade, profissão, gênero de
vida e atual pretensão”.
288
segura para que este não emita um julgamento de ordem pessoal. Uruguai demandava
que a Lei estabelecesse de maneira escrita e formal os modos pelos quais o passaporte
deveria ser requerido, em vez de ficar na dependência do julgamento pessoal do juiz de
paz. E neste ponto, podemos considerar que para Uruguai estava estabelecido que este
tipo de julgamento, baseado em critérios pessoais – mesmo que retirados da experiência
diária do juiz de paz –, ganham o sentido de um julgamento arbitrário. A Reforma do
Código do Processo, segundo Uruguai, estabelecia que o poder central iria estabelecer
em que circunstâncias o passaporte seria requisitado. Tal procedimento ofereceria mais
garantia na medida em que eram regulamentos escritos passíveis de serem consultados
pela população. O regulamento escrito também ofereceria a possibilidade um recurso
com base na letra da lei para o juiz de direto.
Portanto, o ataque de Uruguai se concentra em dois pontos: a) o requerimento do
passaporte deveria ser estabelecido por regulamentos escritos e não em julgamentos
pessoais do juiz de paz e b) o estabelecimento de um indivíduo num distrito não poderia
ficar sujeito aos critérios pessoais do juiz de paz, mesmo que este fosse uma
notabilidade local 12 .
Tendo esta conclusão em mente, devemos deslocar o foco da nossa atenção para
a corrente política a qual Uruguai se opunha, qual seja: os liberais moderados. Na
abordagem desenvolvida nesta tese, o texto estudado não é um objeto fechado em si,
mas está, antes, inserido num debate político, o que envolve analisar “contra quem” o
texto e o autor se voltam. Neste sentido, vamos nos deter nesta corrente política, nos
momentos nos quais esteve em debate a transferência de atribuições que antes
pertenciam ao juiz de paz para o chefe de polícia.
Observemos o debate ocorrido no Senado em 1840, na discussão da Reforma do
Código. Tomemos como material de análise dois trechos dos discursos dos senadores
Costa Freire e Nicolau Vergueiro, ambos proferidos na mesma sessão.
“Senhores, para mim são princípios cardeais... que o povo, que por
desgraça sua, tiver juízes que possam ser recompensados e influídos
pelo poder, é sem dúvida mais desgraçado do que essas hordas de
selvagens que vagam pelas nossas matas. [...] Sr. Presidente devemos
olhar com muita circunspeção para a forma por que esses juízes eram
eleitos, para o eleitor que os nomeava, e para o tempo que durava esta
magistratura: os juízes de paz são eleição popular, tem a sua duração
determinada em lei e é este talvez o motivo por que eles não chegaram
12
Sobre a importância das normas escritas em detrimento do julgamento pessoal veja-se Weber (1984,
Parte III:174-175).
289
a abusar deste artigo; eles sabiam belamente que, passado um espaço de
tempo, ficavam residindo no mesmo distrito, tinham de responder
perante seus cidadãos, tinham de sofrer a mesma pena que tivessem
imposto e não tinham um interesse peculiar de zombar deste ou daquele
indivíduo. [...] Eu desejo, Sr. Presidente, acabar com essa torrente de
anarquia que assola nossa pátria. [...] Mas, como havemos de frear
essa fera cruel ? É tirando o arbítrio, o despotismo das mãos dos
Balaios e entregando-os a estes chefes e delegados de polícia”. (Costa
Freire, Sessão do Senado de 11 de julho de 1840, pp. 292-293)
“Eu não entro se convém ou não que os juízes de paz tenham estas
atribuições [as atribuições de formação de culpa] não se trata disto; mas,
todavia eu entendo que tais atribuições não podem ser tão nocivas nas
mãos dos juízes de paz, como necessariamente hão de ser nas mãos dos
delegados de polícia. Os juízes de paz são eleitos por seus concidadãos,
são concidadãos das pessoas sobre quem administram jurisdição; e
acabado o tempo dela, entram outra vez na massa da população, e
então ficam sujeitos ao juiz que lhes suceder; o que é uma garantia
para não abusarem. Mas, os delegados de polícia não estão no mesmo
caso porque são amovíveis; não se exige que eles sejam domiciliários e
é do projeto que sejam chefes de polícia os juízes de direito, os quais
não tem permanência alguma nos lugares onde exercem funções,
porque não ficam a eles ligados; acabado o tempo vão para outra
parte”. (Nicolau Campos Vergueiro, Sessão do Senado de 11 de julho de
1840, p. 298)
13
Ver Carvalho (1988, “Introdução”) e Werneck Vianna (1997:16).
290
fundamental que compreendamos que a forma política envolvida nesse recuo – a
descentralização do poder, ou o federalismo – deveria ser levada a partir das
Assembléias Provinciais, não deveria envolver a disseminação do poder até os
municípios.
A preocupação do liberal Costa Freire com a ameaça que a Balaiada (o
despotismo nas mãos dos balaios) representa à ordem social é latente. O problema, para
este senador, é como enfrentar esta ameaça. Vergueiro também considera que as
atribuições criminais do juiz de paz são excessivas, mas a solução dos conservadores é
recriminada pela suas conseqüências.
Para os federalistas, que ficaram contra a Reforma do Código, transferir as
atribuições do juiz de paz para um funcionário nomeado pelo poder central abria o
caminho para outra ameaça: o arbítrio do Estado. Nesta chave, coloca-se um dos temas
centrais dos liberais, a eleição dos funcionários na localidade ou o seu controle pelos
poderes provinciais permite que o Estado espelhe os interesses dos cidadãos.
O argumento é o mesmo em ambos: a eleição do juiz de paz protege os cidadãos
do arbítrio estatal, pois o eleito responde perante seus concidadãos. Após o fim do
mandato o eleito retorna ao convívio de seus pares, fato que impediria o arbítrio. Isto
porque o eleito, caso tivesse tido uma atuação deplorável, sofreria a censura dos
habitantes ou poderia sofrê-la por parte do novo eleito. A defesa do domicílio é
vigorosa, o pertencimento ao local estabelece vínculos entre a atuação do funcionário
eleito e os cidadãos. Através deste pertencimento, os interesses dos cidadãos estarão
representados no Estado.
No último trecho, Vergueiro deplorava um dos principais traços da Reforma, e
por sua vez enormemente valorizado por Uruguai: o funcionário, no caso em discussão,
o chefe de polícia, poderia ser movido pelo território nacional. A possibilidade de que o
Estado desloque o funcionário ao longo do território nacional é deplorada, pois rompe o
vínculo que leva os interesses dos cidadãos para dentro da máquina do Estado.
Neste sentido, podemos contrapor esta idéia com o argumento de Silva Lisboa
analisado no Capítulo 2: o funcionário que é deslocado pelo território nacional assegura
que os interesses locais não se sobreponham aos interesses do Estado. Os federalistas se
colocam, intencionalmente ao lado da defesa destes interesses provinciais. E mais, que o
Estado seja explicitamente o portador destes interesses.
Observemos que dos dois aspectos até aqui assinalados na reflexão política de
Uruguai - treinamento específico e assalariamento - não são sequer mencionados. Fica
291
nítido que estes não possuem relevância para os federalistas. Para esta corrente, o
pertencimento à localidade e a eleição são elementos fundamentais para o bom
funcionamento da máquina pública. Estamos diante de um dos pontos que diferenciam
os liberais moderados dos conservadores.
Se em 1840 o senador Nicolau Vergueiro abria mão de defender a capacidade do
juiz de paz em formar a culpa, em 1841, Limpo de Abreu propunha explicitamente a
redefinição das atribuições do juiz de paz em função da difusão da civilização nas
regiões do país.
“Eu admito que a jurisdição que têm os juizes de paz para pronunciar e
para sentenciar em certos e determinados casos, seja conferida a outras
autoridades, [...]. Entendo que os juizes de paz, principalmente nos
lugares populosos, onde a civilização tem feito progressos, oferecem
suficiente garantias. [...] reconhecendo porém que fora dos lugares,
onde a civilização tem feito maiores progressos, os juizes de paz não
tem oferecido as mesmas garantias; o meu voto seria que fossem
substituídos por outras autoridades, mas quisera que as autoridades que
devem substituir os juizes oferecessem garantias melhores do que eles à
segurança e propriedade dos cidadãos. Ora eis aqui o que não acontece,
votando-se pelos delegados e sub-delegados, que tem por si a nomeação
unicamente do governo, esta nomeação nada mais, é o quanto se requer. A
lei supõe que o governo nunca pode errar. [...] Estes empregados da
administração da justiça não podem ser independentes, por isso que pelo
projeto o governo pode demiti-los e substituí-los quando quiser. Acresce
que estes empregados na administração da justiça, que tem de ser criados
pelo projeto, não oferecem garantias mais amplas do que aquelas que
podem oferecer os atuais juizes de paz; pelo contrário, na alternativa das
duas nomeações, ou do governo ou do povo em cada um dos distritos de
paz, eu me persuado que devia escolher-se a eleição dos distritos com
referência à eleição do governo”. (Limpo de Abreu, sessão da Câmara dos
Deputados de 26 de outubro de 1841, p. 801)
292
proteção à propriedade. A ênfase é claramente em aspectos relacionados aos direitos
civis dos cidadãos.
Tomando como base os três trechos dos discursos dos liberais moderados citados
anteriormente, formulemos uma visão geral da maneira pela qual estes autores
consideram a relação entre o Estado e os interesses do cidadão. Observemos que, para
os liberais moderados, os cidadãos envolvidos na defesa dos seus interesses elegem os
funcionários na máquina do judiciário. Em nenhum momento estes liberais fazem
qualquer referência a que estes interesses devessem estar relacionados a algum motivo
para além da dinâmica social presente no nível local. Neste sentido, enfatizamos que,
para os liberais moderados, o juiz de paz leva para dentro do aparelho do Estado estes
interesses. É importante destacar que os discursos ressaltam os interesses relativos à
esfera privada do cidadão, qual sejam, a segurança e a propriedade. Entretanto, esses
somente se põem a partir do horizonte de envolvimento imediato do cidadão.
Esta idéia está presente mesmo quando consideramos o recuo dos liberais
moderados. Se tomarmos o Ato Adicional, a idéia das correntes federalistas era a de que
as Assembléias Provinciais, por estarem mais próximas dos interesses dos cidadãos,
adaptariam o Código do Processo às necessidades locais. Com referência ao trecho do
relatório de Limpo de Abreu, este defende que nas regiões civilizadas os cidadãos
continuem elegendo o juiz de paz tal qual o Código do Processo previa. Podemos supor
em bases seguras que, para os liberais moderados, as Assembléias Provinciais
demarcariam as regiões mais civilizadas nas quais a eleição de juiz de paz seria
realizada. Entretanto, a forma pela qual os liberais moderados consideram a eleição do
juiz de paz é a mesma: a expressão dos interesses dos cidadãos, seja nas regiões
civilizadas, a partir dos municípios, ou da maneira pela qual a Assembléia Provincial,
expressão mais próxima dos seus interesses, determinar.
Neste momento, podemos agrupar os elementos da oposição entre federalistas e
centralizadores. Para os centralizadores, o funcionário nomeado pelo poder central,
assalariado e deslocado nacionalmente, em razão destas características era mais capaz
de aplicar imparcialmente as leis do que o funcionário eleito, sem vencimentos e sem
uma um preparo específico. Esse funcionário era o veículo para apaziguar os conflitos
locais. Se entendemos, conforme observamos no debate sobre a Lei de Interpretação,
que a lei deveria ser aplicada uniformemente no Brasil, esta tarefa somente poderia ser
levada a cabo por este funcionário. Isto porque, para Uruguai, a referência deste
funcionário não será a localidade e seus interesses, mas o Estado-nação. E neste ponto
293
podemos recolocar o tema da precedência do Estado-nação no pensamento político de
Uruguai. A construção do Estado-nação era fundamental para que os direitos dos
cidadãos fossem assegurados (Carvalho, 1988b, 2000b e 2002). Esvaziar as atribuições
criminais do juiz de paz significava centralizar e expandir o poder do Estado. Na
reflexão de Uruguai, esse processo não nasce da agregação das vontades dos cidadãos
referidos aos seus interesses, mas de um movimento específico do poder público,
entendido fundamentalmente como um agente civilizador (Werneck Vianna e Carvalho,
M. A., 2002 e 2004).
Essa contraposição efetuada no pensamento político de Uruguai, entre poder
central e províncias, somente podemos compreender se tivermos em mente o seguinte
aspecto: para Uruguai, a idéia de interesse provincial, no termos do debate da época,
significava que a província buscava a realização dos seus fins tendo em vista sua
realidade local. No seu pensamento, a Razão Nacional expressa pelo poder central age
tendo em vista não apenas o interesses das províncias mais civilizadas, mas o Império
considerado como um todo. Neste sentido, o poder central introduz valores que não
estão presentes nos interesses provinciais.
Os federalistas se movem por outros valores. O funcionário eleito, no caso em
debate, o juiz de paz, seria o portador dos interesses dos cidadãos na máquina do
Estado. Esta eleição refrearia a possibilidade do arbítrio por parte do Estado. A
superioridade do juiz de paz, quando comparada aos agentes nomeados pelo poder
central, estava relacionada aos seus vínculos para com a localidade. Neste sentido, são
refutados elementos como vínculo monetário para com o Estado e o deslocamento
nacional.
Na nossa hipótese, na concepção dos federalistas, é a partir dos interesses dos
cidadãos que a máquina do Estado se move e ganha conteúdo. Mesmo quando
consideramos o recuo dos liberais moderados a partir do Ato Adicional, tratava-se de
escolher o poder mais próximo ao cidadão para efetuar essa conformação aos seus
interesses, qual seja, a Assembléia Provincial.
Tomando como base temas discutidos e sintetizados anteriormente, devemos
assinalar um ponto fundamental para a nossa compreensão dos conceitos de
centralização e federalismo. Há uma dimensão que, a nosso ver, precisa ser assinalada.
O conceito de centralização não envolvia apenas a dimensão da concentração de
atribuições no poder central. No debate político brasileiro, o conceito de centralização
envolveu dois temas: do tipo de funcionário requerido por esta concentração de
294
atribuições e numa dada concepção de Estado, e na sua relação para com o cidadão.
Esvaziar as atribuições do juiz de paz implicava pensar os direitos do cidadão a partir da
concentração de poderes no poder central e da sua expansão.
Para os federalistas é do livre jogo dos interesses provinciais que emerge o
Estado-nação. Quando os federalistas recuam da aplicação do federalismo a partir dos
municípios, pensam o juiz de paz a partir das regiões civilizadas do país. O Legislativo
provincial controlaria quando e onde o juiz de paz, conforme o Código do Processo
havia estabelecido, poderia funcionar.
295
Esse aspecto é mencionado na sessão de 5 de agosto de 1846, na Câmara dos
Deputados, nas palavras do Cônego Marinho14 : “E por que oferece o subdelegado mais
garantias do que o juiz de paz? Porque o subdelegado é da nomeação do governo” (p.
424). O Cônego Marinho, adversário dos conservadores, ironizava a garantia oferecida
pelos conservadores: a simples nomeação do poder central. Na mesma sessão (p. 431),
Uruguai, agora apenas deputado, reconhecia que os delegados e subdelegados eram
tirados dentre os mesmos cidadãos que poderiam servir como juiz de paz. É
fundamental assinalar que Uruguai não atribui a estas figuras nenhuma qualidade
decorrente do seu treinamento, salário ou vínculo, traços presentes na sua defesa do juiz
de direito, promotor e chefe de polícia. O único aspecto que Uruguai ressalta
positivamente é o fato de que a escolha é feita pelo poder central. Na nossa
interpretação, revela-se o fato de que, no pensamento de Uruguai, esses funcionários
não possuem as mesmas qualidades positivas que caracterizam os funcionários
mencionados anteriormente.
E neste ponto se revela um dos aspectos fundamentais do esforço de
centralização empreendido por Uruguai, qual seja, os limites do processo de
centralização: a convivência entre funcionários amadores retirados da localidade, mas
nomeados pelo poder central, e os funcionários provenientes de outros locais e que são
constantemente deslocados, que dispõem de uma formação prévia para o exercício do
cargo e recebem um salário. Na reflexão política de Uruguai, estas características são
ressaltadas positivamente em detrimento daquelas típicas do funcionário amador. Mas,
existem limites no esforço em introduzir estas características para todo o quadro
administrativo.
A ação do poder central nunca pode prescindir desta colaboração obtida na
localidade. O funcionário amador, com o regresso conservador, continuaria a
desempenhar um papel importante, mas sem a mesma força que antes. Conforme
assinala Werneck Vianna, as pretensões do Estado Imperial em montar um quadro
administrativo nos moldes racional-legais eram corrigidas no plano da vida local 15 . José
Murilo de Carvalho descreve a lógica presente na expansão do Estado Imperial:
14
Padre eleito por Minas Gerais, adversário de Uruguai na Revolta Liberal de 1842 e autor de um livro
sobre o movimento.
15
Ver Werneck Vianna (1999:421). A discussão sobre os limites da centralização empreendida durante o
regresso conservador também está presente em Carvalho (1980) e Schwartzman (1988, cap. 5) e Franco
(1997, esp. cap. 3).
296
“A incapacidade do Estado brasileiro em chegar à periferia é bem ilustrada
pelos compromissos que se via forçado a fazer com os poderes locais. No
Brasil, como nos exemplos históricos descritos por Weber, o
patrimonialismo combinava-se com tipos de administração chamados
litúrgicos. Na ausência de suficiente capacidade controladora própria, os
governos recorriam ao serviço gratuito de indivíduos ou grupos em geral
proprietários rurais, em troca ou concessão de privilégios”. (Carvalho,
1980:122)
297
dos cidadãos aptos a serem jurados era elaborada pelo delegado de polícia e enviada a
uma junta de revisão formada pelo juiz de direito, o promotor público e o presidente da
Câmara Municipal, que tomaria conhecimento das reclamações e deveria excluir todos
aqueles que manifestassem falta de bom senso, bons costumes e que tivessem sofrido
alguma condenação passada por crimes (ver Reforma do Código, cap. V, artigos 27, 28
e 29). Desta lista eram escolhidos cinqüenta nomes – no Código, o júri era composto
por sessenta cidadãos, 23 para o júri de acusação, doze para o de julgamento, 24 para as
recusas, e um presidente.
No que diz respeito à formação do júri, a Reforma do Código alterava dois
aspectos, quando comparada ao Código do Processo, quais sejam, os pré-requisitos para
participar do júri e as autoridades encarregadas de elaborar a lista dos jurados. Na
questão dos pré-requisitos, a Reforma os elevava, tornando sua composição mais
elitista, enquanto do controle dos cidadãos aptos era retirado o juiz de paz e postos em
seu lugar três funcionários nomeados pelo poder central, quais sejam, o juiz de direito, o
delegado e o promotor.
Vejamos quais os motivos que Uruguai apresentava para efetuar estas alterações.
16
Quando não havia o número suficiente de jurados habilitados, devia-se recorrer aos termos mais
próximos.
17
O júri de acusação também era chamado de juiz de fato.
298
“Falou-se muito contra a abolição do júri de acusação. É verdade que as
reformas acabam com este júri, este júri de acusação tão gabado e que
tantas garantias oferecem na Inglaterra; mas note-se que a França também
teve júri de acusação, mas acabou com ele; e, o que é notável, os
motivos que os legisladores deram para esta supressão do júri são
idênticos aos nossos.
Em muitos lugares tem havido anos sem reunião de jurados por falta de
apuração, por causa da dificuldade da reunião das câmaras. E julgar-se-há,
por ventura, que não é bem substituída a câmara municipal pelo
tribunal de um juiz vitalício, um juiz que, pela reforma, torna-se de
grande importância. Senhores, a reforma [...] é toda principalmente em
favor das atribuições conferidas aos juizes de direito;” (Uruguai, sessão
da Câmara dos Deputados de 26 de outubro de 1841, pp.702-703)
18
Ver Relatórios de 1833:22, 1834:23 e 1837:32.
299
precedência sobre seus assuntos particulares. Para Uruguai, os cidadãos decidiam
apressadamente, ansiosos para retornarem para seus afazeres particulares. A meu ver,
Uruguai assinalava no cidadão brasileiro a predominância da esfera privada sobre o
envolvimento com os assuntos públicos. Observemos que se trata da mesma crítica
formulada no tema do juiz de paz, um particular que, muitas vezes, prefere dedicar-se
ao seu ganha-pão.
A necessidade de uma maior habilitação para preencher os cargos do júri
denotava, na reflexão de Uruguai, a presença de um “sentimento aristocrático” 19 .
Somente os cidadãos possuidores de certos pré-requisitos de renda e instrução poderiam
ocupar certos cargos.
A comissão proposta pelo Código era formada por figuras escolhidas na
localidade. Segundo Uruguai, quando todas pertenciam ao mesmo grupo político, o júri
tornava-se um instrumento deste agrupamento, protegendo os criminosos e contribuindo
para a insegurança. A Reforma do Código substituía estas figuras por um juiz de direito
e um delegado de polícia. Esta substituição afigurava-se, para Uruguai, como o
elemento que iria assegurar que o júri não se tornasse um instrumento de uma facção;
aproveitando uma expressão que ele mais tarde irá escrever no Ensaio..., “era o poder
mais distante” das refregas locais introduzindo padrões de organização no aparelho
público que não estavam dados pelos interesses locais.
O júri de acusação foi um dos pontos mais relevantes para os liberais moderados
no período regencial. Para os liberais moderados, através do júri popular o cidadão ativo
bloqueava a possibilidade de arbítrio por parte do Estado. O bom funcionamento da
Justiça não residia no preparo técnico de funcionários nomeados pelo poder central, mas
na eleição de cidadãos reconhecidos na localidade.
No tema do júri de acusação, podemos assinalar nos Relatórios de Ministro de
Justiça de Alves Branco (1835:23), e Limpo de Abreu (1836), dois dos futuros
adversários de Uruguai, a crítica a este mecanismo. Em ambos os relatórios está
presente a proposta de diminuir a presença do júri ao longo do território brasileiro. Nas
palavras de Limpo de Abreu:
19
Segundo Ilmar Rohloff de Mattos “[...] era este sentimento aristocrático que referenciava os diferentes
critérios que permitiam não só estabelecer distinções – entre a ‘flor da sociedade’ e a ‘escória da
população’ no dizer do Timandro, por exemplo –, mas também e antes de mais nada hierarquizar os
elementos constitutivos da sociedade – cada qual e todos ‘nunca deixavam de mais ou menos manter e
conhecer o seu lugar’” (Mattos, 1994:106).
300
“Os jurados continuem somente neste Município [a Corte], nas Capitais
das províncias e nas Cidades e Vilas, que tiverem uma certa e determinada
população, que devereis fixar como base. A ilustração não está ainda
derramada em algumas de nossas povoações, onde um advogado hábil e
ousado e algumas pessoas influentes podem exercer grande predomínio
sobre os Jurados, e arrasta-los a decisões pouco conformes com a justiça,
acrescendo a tudo isto haver Termos, em que não tem sido possível reunir
sessenta Jurados”. (Limpo de Abreu, Relatório de Ministro de Justiça de
1836, p. 34)
301
mesmo tempo, podemos assinalar a crítica dos conservadores às idéias hegemônicas no
Primeiro Reinado.
Portanto, podemos resumir a reflexão de Uruguai acerca do júri. Para Uruguai, o
exercício do júri de acusação deveria ser suprimido. Esta supressão decorre da
precedência no cidadão brasileiro dos assuntos privados sobre os assuntos públicos. O
segundo júri deveria exigir cidadãos mais instruídos e com uma renda mais alta, o
exercício deste direito deveria estar associado a pré-requisitos de renda e de instrução.
A elaboração da lista do segundo júri, já que o primeiro havia sido suprimido, deveria
ser feita por funcionários controlados pelo poder central, pois estes não estariam
envolvidos pelas disputas locais. Podendo dessa maneira aplicar a lei tendo em vista
seus aspectos formais sem atentar para os grupos políticos envolvidos nas lutas locais.
20
Regulamento 120 de 31 de janeiro de 1842. Regula a execução da parte criminal da Lei 261 de 3 de
Dezembro de 1841. Ver Cap. III, artigos 34, 35 e 36 e 41. Pela Lei de 3 de Dezembro de 1841, o juiz
municipal serviria pelo tempo de 4 anos após os quais seriam ou promovidos para juiz de direito ou
reconduzidos ou ainda passados para outros lugares (Cap. III, art. 36). A Lei ainda regulava quais os
municípios que teriam um juiz municipal. Tal fato estava estabelecido pela extensão e população, nos
grandes e populosos “em que a influência dos negócios assim exigir poderá haver até três com jurisdição
cumulativa” (Cap. III, art.31). Podemos perceber que a idéia de que o tamanho da população era um
indicativo da complexidade da sociedade; quanto maior a população, maior a complexidade dos assuntos,
daí a necessidade da Justiça.
302
assalariado do governo que, após quatro anos, poderia ser deslocado, de acordo com as
necessidades do poder central, ao longo do território nacional.
Vejamos a crítica de Uruguai a esta figura:
“É pois, o projeto de lei que nos ocupa não exige nestes juízes de direito, a
quem chama juízes municipais, essa condição, a condição de vitaliciedade,
pelo contrário declara que findos 4 anos de exercício, eles poderão deixar
de ser empregados. [...] Atualmente os juízes municipais são propostos em
lista tríplice pelas câmaras municipais; desta lista o governo escolhe um
303
que deve servir 4 anos. O projeto atual prescinde desta proposta, tira ao
governo este embaraço, dá-lhe faculdade ampla para nomear juiz municipal
a quem lhe aprouver, e ao mesmo tempo aumenta as atribuições que
atualmente tem os juízes municipais. Diz além disto o projeto que o juiz
municipal poderá no fim de 4 anos ou ser reconduzido, ou obter um lugar
de juiz de direito. [...] Por isso ficam os juízes municipais apenas com uma
esperança, esperança consagrada no código atual do processo, que diz
tendo-se de prover o lugar de juiz de direito, se dará preferência aos que
tiverem servido os cargos de promotor e juiz municipal. Portanto, não vejo
nesta disposição do projeto em discussão o mais pequeno melhoramento à
legislação atual.[...] Ora em boa lógica pode-se por ventura supor-se que a
nomeação do governo supra, por si só, todas as qualificações que devem ter
em virtude da lei, as autoridades encarregadas da administração da justiça ?
Estou persuadido que não”. (Limpo de Abreu, sessão da Câmara dos
Deputados de 30 de outubro de 1841, p. 802)
21
Ver Sessão da Câmara dos Deputados de 30 de outubro de 1841, pp. 802-803.
304
grande mal a ser evitado não é a violação da Lei pelo funcionário eleito, fato que eles
reconheciam que estava ocorrendo no Brasil, mas a concentração de poderes nas mãos
das autoridades nomeadas pelo poder central. Limpo de Abreu permanecia fiel à idéia
de que o cidadão ativo deve moldar o aparelho de Estado segundo seus interesses e este
fato asseguraria que a administração pública não viole a sua esfera privada. Na medida
em que os liberais reconheciam o funcionamento falho do federalismo nos municípios,
tratava-se, em primeiro lugar, de restringir esse mecanismo, adotá-lo a partir das
províncias, tornando as Assembléias Provinciais o poder controlador da sua aplicação
nos municípios; em segundo lugar, aplicar esses mecanismos federalistas tendo em vista
as regiões mais civilizadas do país.
Retomemos a discussão específica sobre o juiz municipal. A crítica de Limpo de
Abreu acerca da dependência deste para com o poder central forçava Uruguai a
reconhecer que o Poder Judiciário não poderia ser independente, que deveria ficar
subordinado ao poder moderador. E, principalmente, que o controle sobre o Judiciário
passava para um poder mais civilizado. O Estado, colocado seguramente longe dos
interesses locais, poderia introduzir valores que iriam construir uma nação moderna. No
que diz respeito ao juiz municipal, a Reforma do Código não se restringia a transferir
seu controle para o poder central, outros aspectos eram alterados. Vejamos quais foram
estes:
Nos aspectos da Reforma do Código até aqui discutidos podemos demarcar com
precisão um conteúdo político para o conceito de centralização: armar o poder central
de um conjunto de funcionários vinculados através de um salário e que pudessem ser
deslocados através do território nacional; esses funcionários deveriam dispor de uma
formação técnica, seus vínculos não deveriam ser para com a localidade, na qual
serviriam, mas para com o Estado.
22
Ver Sessão do Senado de 26 de janeiro de 1850, p. 233.
305
7.2.5 – O promotor
Outra figura sobre a qual Uruguai centrava suas críticas era o promotor. O
conteúdo geral da sua crítica a este funcionário segue de perto aquele feito ao juiz de
paz e ao juiz municipal. O Código estabelecia que todos aqueles que poderiam ser
jurados poderiam também ocupar tal cargo, sendo que dentre estes seriam preferidos os
“que forem instruídos nas Leis” (ver Código, Seção III, Art. 36).O promotor seria
escolhido pelo presidente da província a partir de uma lista tríplice elaborada pela
Câmara Municipal. O promotor era, portanto, mais um cargo preenchido a partir do
município.
Destaquemos, a partir de um trecho do relatório de ministro da justiça escrito por
Limpo de Abreu, alguns elementos:
306
lutar com vantagem contra a defesa. E o que quase sempre não acontece. O
cargo de promotor é odioso, nenhum incentivo tem, e por isso,
principalmente em nossos municípios de fora, quase todos fogem de o
exercer, de modo que freqüentemente recai em pessoas menos idôneas . Os
réus que tem meios ou proteção encarregam as suas defesas a
advogados hábeis, que com muita facilidade fazem calar ou embaraçar
um promotor, que não tem conhecimento das leis, que não, que não é
dotado de muita inteligência e que não tem o hábito de falar em
público. Uma hábil defesa, uma acusação mal deduzida e sustentada
dão muitas vezes lugar à absolvição de verdadeiros criminosos”.
(Uruguai, sessão da Câmara dos Deputados de 3 de novembro de 1841, p.
815)
307
remediava este problema estabelecendo um salário, além de exigir uma formação
prévia.
E quais eram os obstáculos instransponíveis que se colocavam frente ao
promotor? Podemos ampliar esse pergunta: quais eram os obstáculos que, para Uruguai,
se colocavam perante a Justiça eletiva, nos moldes do Código do Processo, formada por
amadores escolhidos na localidade? O problema da Justiça eletiva, para Uruguai, não
residia apenas na sua estrutura formal, mas, também, na relação desta com o meio social
– o tema da civilização e do sertão – e com os atores políticos que emergem desse meio.
Analisemos quais eram os atores políticos que emergiram a partir da promulgação do
Código do Processo e como esses afetaram negativamente o seu funcionamento.
"Reparai senhores, como em tão breve tempo rebentou dos sertões do Pará,
do Maranhão e Piauí uma massa enorme de homens ferozes, sem moral,
sem moral sem religião e sem instrução alguma, eivados de todos os vícios
da barbaridade! Trazei à lembrança todos os assassinatos, todos os
roubos, todos os estupros, todas as violências que praticarão ! Nem o sexo,
nem a propriedade nada respeitaram! Nem o sexo, nem a idade, nem a
propriedade, nada respeitaram! Parece que a sua missão era apagar até
os últimos vestígios da nossa civilização nascente! Estes fenômenos são
importantíssimos [...] derramam uma luz imensa sobre o estado do país
convém que não passem desapercebidos quando se trata de avaliar o grau
de eficácia de nossas Leis e que tem por fim prevenir e reprimir os delitos”.
(Relatório de Ministro de Justiça de 1841, pp. 9-10)
Quem são esses homens? Podemos trazer para responder essa pergunta alguns
dos traços sociais que viemos recortando intencionalmente até aqui. Em primeiro lugar,
são homens que não respeitam nem a propriedade. Não respeitam a propriedade porque
308
não têm o amor à propriedade que o trabalho e a posse desta conferem aos cidadãos;
não possuem para com os proprietários laços de interesse. Tampouco parecem possuir
laços entre si, que não seja o intento do roubo. Na descrição de Uruguai, a ação destes
homens não possui nenhum caráter político, sendo uma manifestação do atraso no qual
estes vivem. Observemos que Uruguai destacava que seus atos (crimes) como estranhos
à política, ou seja, apesar de irromperem a partir de disputas políticas, não
compartilham dos motivos desta – pelo menos na forma pela qual a elite política
Imperial a considerava.
Estes homens ferozes são homens pobres sem propriedade e laços de interesse.
Em nenhum momento Uruguai se refere a eles como escravos, fato que ocorre quando
estes aparecem nos Relatórios. São portanto, para usar a designação de Maria Sylvia de
Carvalho Franco, homens pobres livres. A análise de Franco nos permite assinalar a
inserção destes homens pobres livres na sociedade Imperial.
Podemos destacar que na sociedade imperial ocorreu uma concentração dos
meios de produção nas mãos dos grandes proprietários. Ao mesmo tempo que isto
ocorre, dá-se um aumento do mercado utilizado por esta produção e forma-se um
conjunto de homens livres sem propriedade, que nas palavras da autora:
São homens que não estão inseridos diretamente na grande propriedade movida
pelo trabalho escravo; em outras palavras, sem vínculos fundamentais para com o
mundo do interesse. Um conjunto de homens que estão disponíveis para as mais
diversas tarefas requeridas pelo grande proprietário. Dessa maneira, esses homens não
possuem entre si vínculos capazes de conferir à sua ação um caráter de classe 23 .
O papel desempenhado por estes homens pobres livres em razão da sua
inserção numa sociedade marcada pela grande propriedade e pelo trabalho escravo
também está presente na obra de Oliveira Vianna. O que assinala uma proximidade
muito grande, neste aspecto, entre a autora paulista e o sociólogo fluminense 24 .
23
Sobre este aspecto ver, principalmente, o Capítulo 2, “A dominação pessoal”, item 3, Agregados e
camaradas: necessidade e contingência da dominação pessoal.
24
No enfoque que apresentamos de Oliveira Vianna seguimos o método adotado por José Murilo de
Carvalho na sua Introdução a Populações Meridionais: separar os traços da sua análise provenientes do
309
"Observemos, por exemplo, a classe dos trabalhadores livres, o numeroso
proletariado dos campos. Entre essa classe e a aristocracia senhorial as
relações de interdependência e solidariedade não têm nem permanência,
nem estabilidade. São frágeis e frouxas”. (Vianna, 1987a, vol. I:119)
"O senhorio não precisa, pelo menos até 88, dos trabalhadores livres: tem
os escravos. Estes contam-se, às vezes, por centenas nos domínios
meridionais. Há perto de trezentos negros na Fazenda de Santa Sé. [...] Daí
nem nos domínios cafeeiros, nem nos engenhos de açúcar, o senhorio
depender, como o farmer saxônio, do operariado livre. Essa dependência,
quando se estabelece não é essencial, nem necessária, nem permanente.
(ibidem:120)
determinismo biológico típico da sua época, das suas explicações baseadas nos motivos sociais e
históricos, destacando, dessa maneira, o que permanece como válido na sua explicação. Ver Carvalho
(2000b).
310
durante a Regência, traz consigo os valores que os orientam nos sertões. Os grupos
políticos são apenas as expressões de famílias/influências locais que buscam cargos para
seus afilhados. O mundo do interesse com sua disciplina oriunda do trabalho e seu
apego à ordem em razão da propriedade não lhes fala de perto, em razão da sua inserção
marginal na sociedade imperial. Ao traçar a ação destes homens durante a revolta da
Cabanagem e de pequenos conflitos, Uruguai apontava para a perda de controle que a
mobilização destes pode trazer. Esta perda de controle, por parte dos homens de bem,
acarretava a irrupção dos valores deste sertão habitado por homens pobres livres: o
desprezo pela propriedade. Não estamos sugerindo que a ação destes homens pobres
possua um sentido de superação da propriedade privada, mas, antes, um conteúdo de
questionamento da maneira pela qual esta estava distribuída na sociedade imperial 25 .
A esta visão do papel que os homens pobres livres desempenhavam na
sociedade brasileira, em razão dos traços sociais analisados, podemos acrescentar um
terceiro aspecto. Uruguai compartilhava da visão característica do liberalismo do século
XIX, segundo a qual o direito de voto e de ser votado não era um direito universal, e
sim decorrente da inserção do cidadão na sociedade. No Ensaio..., Uruguai apontava
para esta distinção citando Guizot. Sustentava que existem direitos que pertencem a
todos os homens, como o acesso à Justiça, não ser preso arbitrariamente, ter um
julgamento etc. - um conjunto de direitos aos quais chamaríamos de direitos civis –
enquanto para participar do governo eram necessárias certas “condições de capacidade
e aptidão” (ver Ensaio..., nota 8); ou seja, não eram universais. E para corroborar tal
idéia traz uma longa citação de Guizot proveniente das Memoires pour servir à
l'histoirie de mon temps. O próprio uso do termo capacidades está associado à palavra
francesa utilizada pelos doutrinários para justificar o voto censitário: capacités 26 .
Segundo Bobbio, ao longo do século XIX formaram-se dois tipos de Liberalismo: o
primeiro, ao qual ele chama de Liberal radical, que ao longo das lutas políticas e sociais
deste período incorporaria a idéia da extensão do sufrágio como um ponto central, vindo
a ganhar o nome de corrente democrática; enquanto o segundo tipo de Liberalismo, ao
qual ele acrescenta o adjetivo conservador, apesar do ponto em contato com a corrente
democrática no seu repúdio ao absolutismo, jamais considerou o direito ao voto como
um direito universal 27 .
25
Sobre a Cabangem ver Freitas (1982).
26
Ver Rosanvallon (1985, caps. III, “La Nouvelle Citoyennité”, e IV, “Le Sacre des Capacités”.
27
Ver Bobbio (1998, principalmente o cap. “Liberais e Democratas no Século XIX”).
311
Ao final de sua vida, Uruguai marcava sua posição. Se nos 30-40 seu tom era
marcado pela descrição dos eventos nos quais estes homens pobres livres participaram,
destacando o ataque destes aos valores da civilização, no início da década de 60, com a
publicação do Ensaio..., Uruguai sustentava a dependência da participação no governo à
capacidade dos cidadãos; ou seja, o cidadão deveria cumprir certos pré-requisitos de
renda e de educação para estar apto a exercer esse direito. Na medida em que os
conflitos regenciais estavam longe e sem nenhuma nuvem que anunciasse a sua volta,
Uruguai desacreditava da participação destes homens na vida política. Os homens
pobres livres não estavam incapacitados de participar da produção do governo apenas
em razão da legislação produzida nos anos 20-30, mas devido a um fato social anterior:
a desigualdade decorrente de posições sociais distintas ocupadas pelos indivíduos na
sociedade 28 .
Entretanto, observando a reflexão de Uruguai, podemos assinalar outro ator
político diretamente envolvido nos conflitos regenciais: os grandes proprietários 29 . O
trecho que escolhi é imediatamente posterior àquele no qual Uruguai descrevia o
envolvimento dos homens pobres livres. Uruguai escreve que estes homens zombam
das Leis todas as vezes em que esta fere seus caprichos (ver Relatório de 1841, p. 19) e,
logo abaixo, destaca o papel dos homens bons nestes conflitos:
28
Ilmar Rohloff de Mattos, tomando como ponto de partida o mesmo trecho do relatório de ministro da
justiça, elaborado por Uruguai, desenvolve a idéia de que ao longo de toda a reflexão de Uruguai, e dos
Saquaremas, estaria presente um sentimento aristocrático (Mattos, 1998:106, 117). Um sentimento
aristocrático que buscava manter separado o mundo da desordem da política. Os Saquaremas, após as
revoltas regenciais, buscavam reordenar as distinções calcadas numa sociedade desigual (Mattos, 1988).
Mattos assinala que os liberais falavam a partir da Casa, esta sendo o espaço do cidadão ativo. Os liberais
mantinham os limites hierárquicos entre o mundo da desordem e boa sociedade (ibidem:125). Entretanto,
a concepção de Liberdade dos liberais “[...] não deixava de implicar uma Igualdade que ameaçava romper
as fronteiras que separavam os mundos constitutivos da sociedade imperial [...]” (ibidem:133). Neste
sentido, os Saquaremas, ao requalificar a Liberdade, efetuam um deslocamento importante. Na nossa
interpretação do trabalho deste autor, neste se manifesta a compreensão de que requalificação da
Liberdade, efetuada pelos conservadores, implicava um distanciamento do mundo da casa.. O autor
reconhece que, neste movimento, ocorre um enfraquecimento da Casa, reforço do Estado (ibidem:133-
134 e 154-155). Sem discordar inteiramente desta hipótese, pretendo interpretar o pensamento de Uruguai
de maneira distinta. Para compreender integralmente a reflexão de Uruguai é fundamental assinalar a
crítica que este faz ao personagem principal da Casa: o grande proprietário rural. Não podemos deixar de
nomear o chefe deste espaço social e de assinalar as conseqüências deste fato na reflexão de Uruguai. A
crítica de Uruguai se desenvolve em duas direções contra os homens pobres livres e contra os grandes
proprietários.
29
Minha atenção para este movimento na reflexão de Uruguai com relação aos grandes proprietários foi
provocada pela leitura do trabalho de José Murilo Carvalho sobre Oliveira Vianna. Ver Carvalho (2000b).
Na interpretação de Carvalho, ocorreria, na reflexão de Vianna, uma inversão dos papéis desempenhados
pelos grandes proprietários. Estes, de heróis passariam a vilões, pois o grande ator da construção da
unidade nacional não foram estes, mas o Estado Imperial. Não apenas era o Estado o fiador da unidade
nacional, mas também garantidor dos direitos civis. Os grandes proprietários, quando emergem do seu
isolamento rural, o fazem de maneira turbulenta, colocando em risco estes dois valores.
312
“Como para melhor assemelhar essa sociedade às primitivas, os mesmos
homens bons que habitam esses lugares vêem-se forçados, em defesa
própria, a oprimir para não serem oprimidos; constituem-se pequenos
centros de força, a que se aglomeram os perseguidos, que depois a
vingança torna também perseguidores. Essa força cresce na razão dos
acontecimentos cotidianos; e procurando cada um obter maior grão de
preponderância e tornar-se temido para ser respeitado, abre a sua proteção
ao maior número de facínoras e turbulentos”. (Uruguai, Relatório de
Ministro da Justiça, 1841, p. 19).
30
Apud Vianna, 1987a, vol. 1, cap. IV, p. 59.
31
João Francisco Lisboa, no seu Jornal de Timon descreve um grande proprietário do interior que vinha à
capital com freqüência para obter favores do presidente: “[...] a importância da sua elevada posição social,
quero dizer, pela sua riqueza, que como se sabe, é um grande elemento de ordem, e dá aos que a possuem
o caráter, o nome e todas as virtudes de homem de bem” (Lisboa, 1995:145-146, grifos do autor)
313
bons, mas como parte necessária de um sistema que os leva a tal procedimento. Quais
seriam os elementos deste sistema que imprimem forçosamente um conteúdo à ação
política desta elite local? A partir da própria reflexão de Uruguai, podemos assinalar os
seguintes fatos: em primeiro lugar, a legislação descentralizadora produzida nos anos 20-
30 que transferiu atribuições que antes pertenciam ao Estado para a sociedade, tornando
certos cargos do Judiciário eletivos. A sociedade civil passava a exercer diretamente
certos poderes coercitivos, através do juiz de paz, do promotor e do júri; todas figuras
selecionadas na localidade. Devemos também mencionar que, para Uruguai, o Ato
Adicional também pertencia a este movimento, na medida em que passava para o
controle da Assembléia Provincial certas atribuições, antes exclusivas do poder central.
O que podemos assinalar, com ênfase, é o funcionamento da legislação
descentralizadora: deslocava poderes coercitivos amparados pela lei para estes sertões.
Em segundo lugar, a dicotomia entre regiões marcadas pela barbárie, a maior parte do
país, e civilizadas, ilhas cercadas. Neste sertão bárbaro encontram-se a dispersão
populacional, a ausência da disciplina produzida pelo trabalho, a falta de uma educação
formal, os partidos clânicos, a precariedade dos meios da Justiça em se fazer presente e
uma massa de homens sem vínculos para com o mundo do interesse e facilmente
mobilizados para participar de disputas eleitorais com finalidades de obtenção de
empregos.
A união destas duas ordens de fatos, a composição social e a legislação
descentralizadora, elaborada por uma elite política que desconfiava do Estado, produziu
uma lógica implacável: oprimir para não ser oprimido. Os que dispõem de recursos
materiais e políticos reúnem em torno de si as “armas” (eleitores, cargos públicos,
facínoras) que permitam agredir para não ser oprimido. Na medida em que a legislação
oferece o preenchimento de cargos públicos do Judiciário para uma sociedade marcada
pela barbárie, resta aos indivíduos se protegerem. E o fazem da única forma que é
possível: perseguindo seus adversários.
Na explicação de Uruguai convergem duas ordens de fatores: um, proveniente
da intervenção humana, a elaboração da legislação descentralizadora por liberais
ofuscados pelo exemplo bem-sucedido norte-americano, enquanto o segundo diz respeito
a processos sociais que fogem à intervenção humana: são costumes, hábitos que
lentamente vão se sedimentando na ação dos indivíduos sem que estes tomem
consciência destes; são ações moldadas por fatos sociais mais fortes que a intenção dos
agentes. A precariedade do mundo do interesse no sertão, a ausência da disciplina
314
imposta pelo trabalho e do amor à propriedade terminam conferindo à ação de homens
pobres livres e grandes proprietários rurais um conteúdo que não pode ser controlado
pelo agente. Como escreve Uruguai, “os homens bons se vêem forçados a oprimir para
não serem oprimidos”. Em meio a uma peça burocrática, Uruguai expõe com clareza um
mecanismo social.
Esses homens bons buscam particularizar a lei, pretendem tornar a lei um
instrumento dos seus caprichos tal qual os homens pobres livres. Observemos o trecho
abaixo:
No trecho acima, podemos perceber que a lei não pode ser um meio de vingança
pessoal desses homens bons, mas um instrumento imparcial imune aos particularismos.
Na nossa interpretação, Uruguai nunca deixou de enxergar a política como uma
esfera na qual os direitos eram exercidos em razão de pré-requisitos de renda e
educação. A emergência da classe subalterna nas revoltas regenciais foi designada em
seu Relatório de Ministro de Justiça como uma tentativa de apagar os vestígios da
nascente civilização no Brasil. Porém, Uruguai descreve a realidade que o promotor
enfrenta, e ao descrevê-la marca os atores que, se valendo da legislação
descentralizadora, desestabilizam a ordem. Na reflexão de Uruguai, o funcionário
amador e eleito na localidade é o instrumento menos capaz de frear estes instáveis
personagens sociais.
Na nossa interpretação é fundamental assinalar de onde Uruguai fala. Seu
discurso não fala do lugar das classes subalternas e da ampliação dos seus direitos
políticos. Na sua reflexão não está presente a idéia de que a mobilização da participação
política de outros setores da sociedade viesse a controlar a ação dos homens bons; sua
preocupação não reside no tema da liberdade política, do exercício dos direitos
políticos. A sua descrição negativa da ação política dos homens bons deve-se a ao fato
de que a sua avaliação procede de um ator político que pensa a relevância da construção
de um Estado-nação. Nos discursos, relatórios e nos livros de Uruguai podemos
315
compreender o seu esforço intelectual no sentido de aparelhar o Estado brasileiro de um
conjunto de leis e funcionários capazes de implementar a ordem pública. Na sua visão,
esse empreendimento não poderia emergir das esferas provincial ou municipal, como
nos casos norte-americano e inglês, mas de um esforço levado a cabo a partir do poder
central. Ao bloquear a emergência do Estado-nação a partir destas esferas (municipal e
provincial), a reflexão de Uruguai interdita aos grandes proprietários o exercício do
poder público a partir de um controle direto do aparelho público, conforme a sua
avaliação da experiência regencial havia demonstrado. A interferência destes atores
sociais deveria passar pelo crivo dos objetivos da construção do Estado-nação levados a
cabo pelo poder central.
A possibilidade aberta pela legislação descentralizadora de que os cidadãos
elegessem funcionários no Poder Judiciário gerou, segundo Uruguai, pequenos
potentados que tratam os habitantes não como cidadãos, mas como vassalos de um
feudo. Vejamos dois trechos sobre este tema. No primeiro, Uruguai, discorrendo sobre a
situação dos sertões 32 deplora o desdobramento da transferência de poderes coercitivos
para a sociedade, atribuição que torna os grandes proprietários pequenos potentados .
Vejamos a passagem:
32
Nesta passagem, o termo é do próprio Uruguai. Veja-se Relatório de Ministro de Justiça de 1841, p. 19
316
“Nem isso pode admirar porque também conheci ali (Serinhaem) estar em
voga, e ser máxima geralmente seguida, que ninguém pode ser obrigado a
jurar a verdade com risco iminente da sua própria vida pela certeza com
que se conta da impunidade dos criminosos sempre absolvidos pelo
Tribunal de Jurados, quando se reúne, e mormente quando são poderosos,
em cuja conta se devem ter alguns senhores de engenho, e os protegidos
por e que a maior parte das vezes se vingam com assassinatos nas
testemunhas que contra eles depõem, se longo não saem da terra para
muito longe [...] estes assassinatos. Geralmente falando são mandados
fazer por aqueles poderosos, ou perpetrados sem seu mandato por
assassinos seus protegidos para suas empresas, a quem chamam
vulgarmente de guarda-costas, a quem em todo caso prestam todo asilo,
apoio e a mais decidida proteção para os conservar, e com eles os prestígio
e respeito em que pretendem ser tidos pelos outros seus vizinho .... não
parece que a população desses lugares possa ser chamada de
população de homens livres, e Cidadãos de um Império Constitucional,
mas sim hum complexo de pequenos feudos onde há senhores e
vassalos, e onde as Autoridades Policiais e Criminais são em tudo deles
dependentes, e ainda mais do que se eles tivessem a regalia de nomeá-los
tal é o estado de aviltamento e coação em que elas se acham. “( Relatório
de Ministro de Justiça de 1843, p. 26. O trecho foi citado na íntegra, os
recortes são de Uruguai 33 )
“[...] a instituição dos jurados entre nós é ainda nova; a nossa população
principalmente nos lugares do centro 34 , ou naquelas comarcas que, como
disse um nobre senador por São Paulo 35 em uma das sessões passadas,
vivem sujeitas a certos potentados, não estava ainda preparada para essa
instituição, que aí não pode ainda tomar seu verdadeiro assento”. (Uruguai,
Sessão de 10 de junho de 1850, p. 159).
33
Mesmo levando em consideração que é um trecho do delegado Paulo Cavalcanti Uchôa, Uruguai o cita
corroborando suas palavras e os alvos de seus ataques. Por isto tomaremos como um trecho seu. No seu
Relatório de 1841, Uruguai narrava diversas situações semelhantes àquela encontrada no Relatório de
1843, para isto vejam-se as pp. 14-16, inclusive com a mesma figura do senhor de engenho. De todos os
Relatórios que li, este foi o único em que tal correspondência é mencionada e, além disto, citada. A
intenção de Uruguai era a de corroborar o conteúdo e os termos do trecho.
34
Por centro entenda-se localidades que se situam longe do Litoral.
35
Nicolau Vergueiro.
317
Em momentos históricos distintos, Uruguai apontava, de maneira clara e
precisa, aqueles que são os responsáveis por tentarem obstaculizar o bom funcionamento
do júri, ou poderíamos também dizer, aqueles que são responsáveis pela condição de
vassalos e não de cidadãos no Império: os potentados, os grandes senhores de engenho.
No argumento de Uruguai persiste, num intervalo de tempo de sete anos, um julgamento
negativo sobre a intervenção desses homens de bem.
Podemos assinalar, em ambas as passagens, o funcionamento da lógica
implacável dos sertões: oprimir para não ser oprimido. Os senhores de engenho
controlam o júri ou o intimidam, o mesmo ocorrendo para com as testemunhas. A
intimidação se dá através da ação dos protegidos, aos quais depois os homens bons dão
asilo.
A legislação descentralizadora colocou em funcionamento, neste mundo do
sertão, um mecanismo no qual cada potentado deve oprimir para não ser oprimido; os
eventos acima destacados passam a se impor como uma necessidade para todos os
potentados; ou ele age dessa maneira, ou outro o fará. Em outras palavras, irá usar os
mecanismos da legislação descentralizadora e a massa de homens pobres livres contra
ele.
O ponto que se destaca no argumento de Uruguai vem a ser o seguinte: os
senhores de engenho, ou num sentido mais amplo, os homens bons, com a legislação
descentralizadora, controlam o aparelho repressivo – o Judiciário e a Guarda Nacional.
Segundo Uruguai, mesmo os homens bons, a despeito dos seus traços
civilizatórios, quais sejam, da propriedade, do interesse e, mesmo em alguns, das luzes,
adotam a prática de construir feudos imunes à ação da lei, de onde eles perseguem seus
adversários. A lógica particularista do sertão imprime seu conteúdo a despeito da
posição social. Neste sentido, os grandes proprietários não fogem a esta regra e,
portanto, o poder não pode emergir da sua ação política.
Um outro conteúdo emerge do sistema no qual funcionam os homens de bem.
Observemos a oposição estabelecida intencionalmente por Uruguai entre vassalos e
cidadãos. A palavra vassalo está relacionada à História Medieval e podemos tomar o
seu sentido a partir do seu uso no Portugal medievo. Segundo o Dicionário de História
de Portugal, vassalo era o homem que recebia do senhor honra e benefício, tendo a
obrigação de prestar serviços 36 . Estabelecia-se, portanto, um vínculo entre o vassalo e o
36
Ver Ruy d’Abreu Torres, “Vassalos” apud Serrão (1965:260).
318
senhor em razão do favor prestado, cabendo ao vassalo servir. No sentido que Uruguai
utiliza a palavra, podemos destacar o seu caráter de subordinação, de dependência para
com um superior ao qual se deve um favor ou que se teme. Observando a palavra que
lhe serve de antítese, qual seja, cidadão de um Império Constitucional, podemos
perceber que Uruguai desejava ressaltar no vassalo o seu aspecto de dependência
pessoal para com o senhor em oposição ao cidadão que vive protegido pela lei. A
palavra cidadão apontava para aquele que vive sob um conjunto de leis que lhe
conferem direitos e deveres, independente da vontade pessoal daquele que as aplica.
Temos, portanto, dois seres sociais: um, o vassalo, vivendo, a partir de um favor
prestado, sob a dependência pessoal do senhor; enquanto o segundo, o cidadão, estaria
ao abrigo de um conjunto de normas impessoais que lhe garantiria confiabilidade e
segurança.
Podemos, a partir da idéia exposta acima, destacar um vínculo expressivo com
a definição de barbárie presente no Dicionário Moraes, mencionada anteriormente.
Segundo este, a barbárie é caracterizada pela vontade de um só que desconhece a lei,
que age orientado apenas pela sua vontade pessoal. Esta ação seria originária do Estado.
Na passagem que estamos analisando, a origem desta ação, que desconhece os limites
da lei, provém da sociedade: o potentado rural 37 . Na nossa perspectiva, Uruguai
assinalava claramente uma contraposição entre o potentado rural, com seus caprichos
pessoais (segundo a definição de despotismo do Dicionário Moraes) e o espaço da lei,
marcado pela impessoalidade.
Outro aspecto-chave no trecho refere-se ao papel da segurança. A situação dos
“vassalos” de Serinhaem era de insegurança devido ao fato de terem de se subordinar
aos caprichos pessoais dos potentados. A dependência para com a vontade pessoal de
um potentado emprestava à vida do habitante uma sensação de intranqüilidade. Na
descrição efetuada por Uruguai é o habitante de localidades como Serinhaem que se
constituem no elo fraco do sistema; em outras palavras, aquele sobre o qual recai a
violência, emprestando às suas vidas um sentimento de permanente intranqüilidade. O
potentado local, segundo Uruguai, oprime para não ser oprimido. No argumento de
Uruguai, o "vassalo" local não oprime, ao contrário, é o objeto da opressão. É claro que
existem os bandos de homens pobres livres que, ao fugirem ao controle das elites
37
Conforme assinala José Murilo de Carvalho: “Para os conservadores liberais, como o Visconde de
Uruguai, a liberdade estava ameaçada não somente pelo Estado, mas também pelos particulares. A
experiência da Regência, segundo ele, tinha ensinado essa lição” (Carvalho, 1993:70).
319
locais 38 , espalham a insegurança e a violência, mas não são esses que Uruguai estava
mencionando. Sua atenção estava voltada para o cidadão que deve encontrar no Estado
a garantia do seu direito de acesso à Justiça, e era esta que faltava aos cidadãos de
Serinhaem.
Ao final deste argumento poderíamos colocar como fecho uma frase do relatório
anterior: “Tal é o estado de muitos de nossos sertões [...]” (Uruguai, Relatório de
Ministro de Justiça de 1842, p. 19).
38
Veja-se a análise de Uruguai acerca da Cabanagem.
320
“As câmaras municipais eleitas nos municípios, são as que propõem em
lista tríplice os juizes municipais de órfãos e promotores e organizam a
lista dos jurados. Assim quase toda a justiça nasce e forma-se nos
municípios por uma maneira quase independente, porque, ainda que aos
presidentes de províncias pertença nomear juízes municipais de órfãos e
promotores é essa nomeação dependente e limitada a três indivíduos
propostos pelas câmaras. Uma administração de um dos lados das câmaras
legislativas está hoje no poder. Tem certos princípios, certa política que
seus delegados nas províncias representam. [...] Estes delegados somente
podem servir-se nas províncias para manter a ordem pública e para fazer
executar as suas ordens pelo que respeita à polícia de autoridades cuja
origem é a eleição popular. Naquelas províncias em cujas eleições [...]
preponderou uma opinião contrária, hão de encontrar os agentes forçados
de polícia de que tem de servir-se de má vontade, indisposições, obstáculos
e mesmo hostilidades”. (Uruguai, sessão da Câmara dos Deputados de 3 de
novembro de 1841, p. 810)
“Releva observar pois que um abuso muito arraigado tem tornado as nossas
autoridades eletivas mais políticas do que judiciárias. As pequenas
facções, que na localidade se disputam as eleições dos juízes de paz e
das câmaras, que influem para que este ou aquele seja proposto juiz
municipal ou promotor, não cometem tantos excessos para que a
eleição recaia no homem mais capaz de administrar a justiça, e mais
imparcial, mas sim para sejam eleitos homens do partido, os mais
decididos mais firmes mais capazes de cortar por quaisquer
considerações para o servir e para abater e nulificar o contrário. E
qual é o resultado? Uma luta continuada, uma séria não interrompida de
reações com as paixões cada vez mais se irritam, que o governo não pode
prevenir e conter e de que todavia é sempre acusado – Que justiça se
poderá esperar de tais autoridades ? Que garantias podem eles oferecer ?
Todo o favor, toda a proteção para aqueles que os ajudarão a vencer, toda
perseguição aos vencidos.” (Uruguai, sessão da Câmara dos Deputados de
de 3 de novembro de 1841, p. 811)
321
traço principal do elemento federal vem a ser o fracionamento do poder. Este
fracionamento gerava a mencionada paralisia. A idéia de centralização, para Uruguai,
envolve a capacidade do poder central em controlar os seus agentes. Esse controle não
pode ser compartilhado com outras esferas. A unidade do poder mencionada no capítulo
anterior fica clara quando temos em mente o trecho citado: o poder central deve ter o
controle sobre a nomeação e a demissão dos funcionários.
Num primeiro momento podemos apontar o seguinte: o Código do Processo e o
Ato Adicional produziriam um problema de natureza essencialmente política: partidos
diferentes estavam no poder em nível nacional e local (provincial e municipal). O poder
central, para efetuar as ações que estavam dentro da sua alçada constitucional, deveria
fazer uso de funcionários sobre os quais ele não possuía pleno controle. Deste impasse
nascia uma situação de insegurança generalizada. Observemos que o argumento de
Uruguai não faz menção à heterogeneidade interna do país. Os problemas decorrem da
maneira pela qual o federalismo organizava o exercício do poder. Segundo Uruguai, a
característica principal do federalismo era o fracionamento do poder.
Na nossa interpretação, Uruguai avaliava a eleição dos funcionários da Justiça
do ponto de vista da concentração de atribuições no poder central, e não do
envolvimento do cidadão com os assuntos públicos, como, por exemplo, o fez Evaristo
da Veiga no seu artigo sobre a eleição do juiz de paz, analisado no Capítulo 2. Sua
preocupação estava voltada para a quebra da unidade do Estado, entendida como a
capacidade que o poder central deve ter de controlar os agentes sobre os quais incide a
aplicação das leis por ele promulgadas; capacidade esta que a eleição dos funcionários
quebrava. Se, por um aspecto, a reflexão de Uruguai não abarcava a idéia de que o
indivíduo possa moldar a máquina do Estado segundo seus interesses, essa abordagem
não impede que no seu pensamento esteja presente o tema dos direitos civis dos
cidadãos para com o Estado. Para tal tema observemos segunda parte do discurso.
Neste trecho, Uruguai atacava a ação das facções (“as pequenas facções das
localidades”), pois estas controlavam os cargos eleitos na localidade – juiz de paz,
promotor e júri – e a partir deste monopólio fazia uso da lei para atacar seus adversários
e proteger seus aliados. A lei deixava de ser, para Uruguai, um instrumento imparcial
para ser um instrumento particular. O problema deixava de ser a incompatibilidade
entre o partido político hegemônico no poder central e a corrente adversária na
localidade, como na primeira parte do trecho, para se tornar um mal decorrente do uso
privado da lei nas localidades; o foco de tensão não era mais de caráter político-
322
institucional, o problema passava a envolver uma dimensão social. Neste sentido, é
extremamente importante ressaltar o espaço social no qual Uruguai assinalava a
predominância do uso particular da lei, qual seja, os sertões marcados pela barbárie.
Neste espaço social a vida política, segundo Uruguai e o pensamento político da
época, era dominada pelas facções. Esta predominância era causada pela a ausência de
uma opinião pública, pelo pouco desenvolvimento material, por uma educação formal
precária, pela inexistência de hábitos arraigados de autogoverno e pela dispersão da
população, em resumo os traços sociais que no Capítulo 5 denominamos como Sertão.
Estes fatos moldavam uma vida política na qual os cargos eram vistos como um
instrumento para perseguir seus adversários.
Segundo Uruguai, nestas localidades aquele que era eleito não era o mais
imparcial. As leis promulgadas pelo Estado tendo em vista uma aplicação geral e
imparcial terminavam, com a Justiça eleita, sendo aplicadas por funcionários cuja
lealdade não era para com o Estado, mas para com o grupo que o elegeu. Os adversários
ficavam sem proteção, pois o funcionário eleito era o instrumento da perseguição e não
a garantia de que a Justiça o protegesse, assegurasse seus direitos civis. Entretanto, o
argumento de Uruguai prossegue e devemos assinalar o mal que este estado de coisas
acarretava, nas suas palavras: “uma luta continuada, uma série não interrompida de
reacções [...]” . Esta situação de luta permanente desembocava no conflito armado, o
grupo adversário incapaz de encontrar amparo na lei buscava sua defesa na violência.
Conforme Uruguai havia escrito no seu Relatório de Presidente de Província de 1841,
mesmo os homens bons oprimem para não serem oprimidos; o recurso à violência passa
a ser o remédio. O ponto de partida de Uruguai acerca das garantias que a Justiça deva
oferecer ao cidadão residia nos males que a sua não observação acarretava para o
Estado-nação. Esses males, o pior dos males para o Estado, eram os conflitos armados.
Na medida em que a Justiça eleita não assegurava a aplicação imparcial, todos se
armavam, corroendo a capacidade do Estado de assegurar a ordem. Na nossa
interpretação, na reflexão de Uruguai o tema da relevância de que a Justiça assegure os
direitos civis dos indivíduos emerge a partir da preocupação com a construção do
Estado-nação. Para Uruguai, enquanto a Justiça eletiva estivesse em funcionamento,
não seria possível dotar o país de um aparelho administrativo capaz de assegurar a
ordem.
323
Na reflexão de Uruguai, o tema da expansão da capacidade de ação do poder
central é indissociável do tema dos direitos do cidadão. De maneira a reforçar esse
aspecto vejamos o trecho abaixo:
39
Ver Marshall (1967), Carvalho (1995, cap. III), Mattos (2000) e Grinberg (2002).
324
independentemente da sua situação social. Conforme ele escreverá no Ensaio..., os
direitos civis constituem-se em uma conquista da civilização.
Retomemos ao trecho citado. Segundo Uruguai, com a Reforma do Código o
poder passaria a dispor de meios para agir em favor da ordem pública e da segurança
do indivíduo. De acordo com o que observarmos ao longo do capítulo podemos clarear
o sentido da frase do autor. Com a Reforma do Código o poder central passaria a dispor
de uma cadeia de funcionários vinculados à sua esfera. Estes funcionários teriam, na sua
maioria, um treinamento específico, um salário e seriam passíveis de deslocamento pelo
país. Portanto, para Uruguai, a construção de cadeia de ação permite que os direitos
civis sejam assegurados. Neste sentido, a centralização é o pré-requisito dos direitos
civis do cidadão. Para Uruguai, a consolidação dos direitos civis encontrava-se
imbricada com o fortalecimento do poder central. Diferentemente da tradição
contratualista, os direitos civis não são pensados como um instrumento para tolher o
Estado. Para Uruguai, o tema dos direitos civis nasce colado ao fortalecimento da
capacidade do Estado em intervir na sociedade.
Tendo este aspecto em mente desloquemos nossa atenção para o capítulo
anterior, bem como para a definição de federalismo efetuada a partir de 1834. No
Capítulo 4 estabelecemos que no arranjo federalista os interesses provinciais deveriam
ficar em primeiro plano. O pacto entre as províncias era pensado a partir da liberdade
que estes interesses possuiriam para organizar a província de acordo com as suas
necessidades. Observamos que a partir de 1834 o Legislativo provincial passou a ser o
principal agente nesta tarefa. No Capítulo 4 destacamos que para os federalistas a
reação centralizadora prejudicava as províncias mais desenvolvidas, na medida em que
lhes retirava a liberdade para se organizarem de acordo com suas necessidades. Tendo
em vista estes aspectos analisemos o trecho acima.
Segundo Uruguai, o poder central deve dispor de força para enfrentar o partido
hegemônico na esfera provincial. Na nossa interpretação, para Uruguai o poder central
deveria dispor de meios para agir mesmo que encontrasse resistências nas províncias
mais civilizadas. No argumento de Uruguai, o poder central é um órgão que age tendo
em vista não os interesses das províncias mais civilizadas, mas a necessidade da
construção de aparelho administrativo capaz de agir em toda a nação. A idéia de
interesse provincial remete a uma preocupação voltada para o desenvolvimento da
própria província. Para Uruguai, o poder central não deve estar preso a essa dinâmica, a
nação é formada por províncias prósperas e civilizadas e por províncias mais atrasadas.
325
A Reforma do Código é entendida como uma política para toda a nação, que se estende
uniformemente para todo o país. A intenção de Uruguai vem a ser que os agentes do
poder central tenham o mesmo comportamento independente da província na qual eles
estejam. O conteúdo da ação destes agentes provém do centro e deve se estender para
todas as províncias.
40
Sobre a Revolta e a participação de Uruguai na sua repressão veja-se o Capítulo 1.
326
fins. Cada província buscaria a melhor forma de se organizar tendo em vista a sua
prosperidade interna. No argumento federalista, nesta busca pela forma de organização
as províncias seguiriam a mesma lógica que um cidadão ativo adota numa competição
frente a outros. Em outras palavras, a província procuraria de maneira egoísta o que
fosse melhor para si sem referência a valores comuns. Conforme assinalava Evaristo da
Veiga, essa competição era saudável na medida em que impulsionava o
desenvolvimento nacional. O resultado desta competição, segundo Lino Coutinho,
acarretava um desenvolvimento desigual, mas que era compensado pelo aspecto
ressaltado anteriormente. Neste sentido, o argumento federalista fazia uso do termo
interesse para caracterizar as necessidades provinciais. Este termo dizia respeito a busca
pela posse exclusiva de um bem. Para os federalistas, as províncias deveriam dispor da
liberdade para buscarem a realização dos seus interesses provinciais.
O pensamento político de Uruguai mobilizava, como um termo oposto a
interesse provincial, o termo vontade nacional. Observemos o uso do termo vontade
como denotando uma ação intencional. Lembremos ao leitor que esse procedimento era
o oposto daquele presente no argumento federalista. No conceito de federalismo
observado anteriormente, cada província busca seu bem particular sendo a prosperidade
geral um resultado da soma desta procura, que é realizada sem referência ao todo. Nos
termos em que Uruguai apresentava seu argumento, o poder central buscava
intencionalmente um determinado resultado, o qual não estava dado para cada província
tomada isoladamente, mesmo as mais civilizadas. A ação do poder central
intencionalmente buscava construir uma ordem comum a toda as partes do Império. No
argumento centralizador, a ação do poder central necessariamente impõe uma política
que não está presente na idéia de interesse provincial, entendido como uma ação
referida unicamente à realidade provincial. Neste sentido, o argumento de Uruguai
mobilizava o termo nacional que remete a algo que diz respeito ao todo, que por sua
vez é composto por partes distintas. No Capítulo 5 observamos que, para os
centralizadores, o Brasil era um país marcadamente heterogêneo. Para os
centralizadores, dos interesses provinciais marcadamente distintos entre si não emerge
uma política comum às diversas partes. Tornava-se imperativo buscar construir essa
política comum e não esperar que ela brotasse, era necessário agir do centro comum
para as diversas partes.
327
Podemos perceber que esta ação intencional dos centralizadores será, aos olhos
dos federalistas, sempre uma ação arbitrária, porque impunha uma meta que não estava
dada aos interesses provinciais.
No argumento de Uruguai, essa ação intencional do poder central necessitava de
“armas” para se impor aos interesses provinciais auto-referidos. Vejamos o trecho
abaixo:
328
tendo em vista os interesses das províncias mais civilizadas. A Lei de Interpretação do
Ato Adicional retirava das províncias a liberdade em adaptar os Códigos Nacionais a
sua realidade. Segundo Teófilo Ottoni, nas províncias mais civilizadas a liberdade de
organização não implicava uma ameaça ao interesse – aspecto analisado no Capítulo 4.
No pensamento político de Uruguai, centralizar implicava ponderar realidades sociais
nas quais os traços sociais da civilização eram inexistentes. Neste momento, podemos
trazer para a análise a definição de centralizar presente no Dicionário Moraes 41 :
Centralizar, ajuntar em um centro, conchegar a ele;v.g. centralizar as forças as
potenciais, as nações. Repor, restituir ao centro físico ou moral as partes ativas,
ponderantes afastadas e alongadas; v.g. centralizar os Estados. Ao trazer esta definição
podemos mobilizar a análise anterior e considerar a definição do Dicionário Moraes a
partir do debate político. Para os centralizadores, centralizar implicava efetuar um
movimento intencional de reunir partes distintas entre si, que entregues aos seus
interesses particulares, não iriam construir um laço comum. Para construir essa política
comum era necessário um centro. Em razão da maneira com se deu o processo de
independência, o Imperador ocupava esse centro comum. Na medida em que os
interesses das províncias, para centralizadores e federalistas, visam à satisfação das suas
necessidades o argumento centralizador considerava que centralizar implicava efetuar
uma política que visasse à nação. Centralizar implicava efetuar um cálculo para além
dos interesses provinciais. Para centralizadores, os interesses provinciais serão sempre
particulares frente às exigências de uma realidade que os transcende.
Neste sentido, a presente tese considera equivocadas as abordagens que
analisam a polêmica entre centralizadores e federalistas a partir dos mecanismos de
ocultação e censura efetuado pelo Estado Imperial contra as idéias federalistas. Nestas, a
análise privilegia o mecanismo através do qual as idéias centralizadoras efetuariam uma
substituição imperceptível do tema da unidade nacional pela centralização 42 . Da mesma
maneira discordamos da abordagem que privilegia a construção do Estado Imperial a
partir do mecanismo da cooptação.
41
Conforme analisamos na Introdução, a definição de centralizar não sofreu alterações nas edições de
1823, 1831, 1844 e 1858.
42
Não estamos sustentando que o Estado Imperial não tenha efetuado mecanismos de censura sobre as
idéias federalistas. No argumento centralizador, a substituição do tema da unidade nacional pela
centralização decorria da maneira pela qual este considerava a idéia de interesse provincial. O equívoco
consiste em compreender essa operação como um mero expediente de ocultação, sem compreender a sua
lógica política.
329
O equívoco destas análises reside em não compreender um dos aspectos
fundamentais da polêmica entre centralizadores e federalistas. Para a corrente
centralizadora, a unidade nacional era uma construção intencional que não estava dada
no plano dos interesses provinciais. No termo centralizar está presente a idéia de um
movimento no qual são aproximadas as diversas partes que compõem a nação. No
pensamento político de Uruguai, podemos compreender que este ato (centralizar) exigia
um cálculo que fosse para além dos interesses provinciais. A análise que compreende a
formação do Estado Imperial fundamentalmente sob o mecanismo da cooptação não
percebe que deslocar o interesse provincial da sua dinâmica natural era parte de uma
política que visava a assegurar a unidade entre partes heterogêneas e introduzir os
valores da civilização – conforme observamos dos direitos civis e da aplicação
imparcial das leis.
A nossa análise considera que da maneira pela qual o pensamento centralizador
abordava o tema interesse provincial não ocorre nenhum mecanismo de deformação.
Procuramos construir a idéia de interesse provincial fiel aos termos apresentados pelos
seus defensores. Segundo estes, cada província busca o seu interesse e na busca deste
está contido o bem geral. O desenvolvimento que essa busca produz para a nação supera
as desigualdades produzidas pela competição entre as províncias. Estava na essência da
definição de federalismo que não ocorresse uma intervenção externa aos interesses
provinciais. Para os federalistas, essa intervenção seria sempre um mecanismo
autoritário; os interesses não podem ser educados, o que não implica que eles não
devam ser protegidos das manifestações do sertão. Na nossa hipótese, construir esse
conceito de federalismo nos permite compreender politicamente a polêmica entre
federalistas e centralizadores. Na nossa análise, o pensamento político de Uruguai, e dos
centralizadores, considerou a idéia de interesse provincial tal como o argumento
federalista a colocou no debate de idéias. O nervo da polêmica vem a partir das
conseqüências do papel deste interesse provincial. Para Uruguai, a construção do
Estado-nação envolve ponderar razões que não estão presentes na ação dos interesses
provinciais, na medida em que estes agem tendo em vista o bem da província. A
unidade nacional é uma ação intencional e não o resultado de interesses auto-referidos,
que necessitam, para seu livre funcionamento, da ausência de um poder externo – que
aos seus olhos seria sempre autoritário. Para Uruguai, a unidade nacional seria o
resultado de uma vontade, uma ação intencional que visasse a esse fim, e uma razão, um
cálculo que transcendesse os interesses provinciais. Num desenvolvimento necessário
330
desta idéia, o poder central deveria dispor de meios – deveria estar armado – para
imprimir sua política aos interesses provinciais, que pela sua própria definição resistem
a esta ação.
7.4. – Conclusão
43
Ver Capítulo 4 da presente tese.
331
imprescindível pacificar o Império, desarmar os grupos políticos. Neste sentido, nos
afastamos da análise que privilegia o mecanismo de cooptação presente no Estado
Imperial. Sem dúvida que para Uruguai o Estado não deve espelhar os interesses, mas,
em contrapartida, sua reflexão incorporava a idéia de que a aplicação da lei deve
preservar os direitos civis do cidadão.
Em segundo lugar, esta maneira de aplicar a lei requer um tipo de funcionário
específico. Vejamos quais as características que este funcionário deveria possuir.
Conforme pudemos observar ao longo de todo o capítulo, Uruguai criticava os vínculos
que o funcionário eleito possuía com o meio. Para Uruguai, o funcionário deveria poder
ser deslocado pelo território nacional; esse deslocamento asseguraria que o funcionário
aplicasse a lei sem levar em consideração as circunstâncias locais. Neste ponto, Uruguai
retomava a idéia presente na constituinte de 1823, observada no Capítulo 2. Segundo
Cairu, o funcionário público deveria atuar sem estar preso aos aferros locais. Para
Uruguai, o funcionário eleito deve, necessariamente, dividir seu tempo entre seus
afazeres públicos e suas obrigações profissionais. Um juiz de paz eleito, sendo um
particular, não disporia do tempo necessário para exercer as obrigações criminais que
lhe foram transferidas. A mesma lógica se aplica ao promotor. Esses cargos requerem,
para o cumprimento das tarefas profissionais, um funcionário que se dedique
integralmente a elas. Neste sentido, está a superioridade do juiz de direito e do promotor
assalariados. Na reflexão política de Uruguai, o funcionário amador não disporia do
treinamento necessário para a condução adequada das suas tarefas. O funcionário
requerido pela Reforma do Código deveria possuir um treinamento prévio.
Por um lado, as críticas de Uruguai acarretavam uma desmobilização do
exercício dos direitos políticos. A análise que José Murilo de Carvalho realizou do
mecanismo do júri de primeira instância destaca o elemento de ativação dos direitos
políticos. Sua análise destacava o movimento, da parte da sociedade, de se apropriar de
certos cargos da administração pública (Carvalho, 1996). Sem descartar o fato de que
esse período regencial foi também marcado pela emergência turbulenta do mundo rural
(Carvalho, 1988), o autor assinala uma mudança significativa nesse momento político.
Para este autor, o conjunto de leis descentralizadoras teve como efeito retirar uma
parcela significativa dos cidadãos, que durante a Colônia permaneceram passivos, da
sua esfera privada, da sua apatia, da esfera do não-cidadão. Os cidadãos passaram a se
relacionar com o Estado, não apenas na sua face repressiva e fortemente tributária, mas
332
também no aspecto que acarretava o envolvimento do cidadão com a res publica
(Carvalho, 1996:355).
Ilmar Rohloff de Mattos observa que o período regencial seria marcado pelo
predomínio da Liberdade Positiva. As idéias que predominavam neste momento
tendiam a apagar os limites traçados por um liberalismo que pretendia restringir a
participação da sociedade. A Liberdade Positiva toca na pergunta “por quem sou
governado?”, envolvendo um apelo para que os cidadãos assumam a condução dos
assuntos públicos (Mattos, 1999:192).
Entretanto, não podemos considerar o pensamento político de Uruguai apenas
sob o prisma dos direitos políticos e da ativação das classes subalternas. Quando
consideramos a análise que Uruguai efetuava do funcionário amador, devemos ressaltar
que esse tipo de agente era o mais despreparado para enfrentar aqueles acusados que
dispunham de proteções poderosas, ou para implementar a lei em regiões controladas
pelo grande proprietário rural. Na visão de Uruguai, a aplicação da Justiça era ameaçada
pelas classes subalternas habituadas ao ócio e pelos grandes proprietários acostumados
ao uso particular da lei. A centralização implicava, para Uruguai, modificar essa
concepção particularista do uso da lei, introduzir uma idéia distinta, marcada pela lei
com aplicação imparcial e universal.
Retomemos a idéia de Uruguai de que centralização é a unidade de ação.
Pudemos observar que essa unidade de ação requeira um determinado tipo de
funcionário. Entretanto, essa unidade não era constituída por um único tipo de
funcionário. Conforme observamos, nesta cadeia de funcionários ocorre uma dualidade
de critérios que será um traço central ao longo de toda a reflexão de Uruguai: um
funcionário possuía treinamento específico e era amovível ao longo do território
nacional (o juiz de direito); o outro era um notável local, escolhido pelo poder central
(delegado e subdelegado). Na medida em que seu vínculo não era profissional – não
dispunha de um salário, nem de um treinamento específico e, após sua demissão,
retornava para a localidade – sua autonomia era maior, seu controle por parte do poder
central era mais indireto. Esta dualidade nunca irá desaparecer ao longo de toda a
reflexão de Uruguai.
333
Capítulo 8
O Ensaio
1
O texto escrito, conforme nota Feres (2005), desloca o intérprete do contexto histórico específico e o
põe perante o estudo da recepção daquele texto.
334
8.1 – O direito administrativo: o veículo para o interesse geral
2
Citação já analisada anteriormente.
3
Ver Ensaio..., p. 72. Mais adiante analisaremos esse uso.
335
estabelecer uma precedência do interesse geral sobre o interesse particular. De maneira
a compreender essa precedência, observemos como Uruguai definia interesses e
direitos dos particulares.
Segundo Uruguai, interesse significa algo que é útil ou resulta em vantagem ao
indivíduo 4 . Observemos que Uruguai considerava que quaisquer indivíduos possuíam
interesses, inclusive os não proprietários, posto que se utilizava da palavra geral
indivíduo, quando poderia ter se utilizado da palavra proprietário para designar que
apenas os proprietários seriam portadores de interesse. Podemos considerar que, para
Uruguai, aqueles que tinham propriedade e trabalho possuíam um interesse mais
arraigado, mas qualquer indivíduo poderia buscar algo que lhe fosse útil. Podemos
considerar que Uruguai expõe a idéia de interesse de maneira tal que as vantagens são
usufruídas apenas pelo indivíduo em razão da sua capacidade de tirar vantagens da sua
ação.
Na reflexão de Uruguai, podemos encontrar a seguinte definição de direito:
aquilo que é inerente ao cidadão ou proprietário em virtude da lei 5 . Da mesma maneira
que na definição de interesse, Uruguai apontava para um sentido amplo da idéia de
direito. O cidadão, seja ele proprietário ou não, é portador de direitos, que lhe estão
assegurados por uma lei que é válida para todos. A validade desses direitos para o
indivíduo não decorre da sua posição social, proprietário ou não proprietário, mas do
seu pertencimento a uma determinada coletividade. De acordo com a definição, o
respeito ao direito do cidadão não está relacionado à boa vontade do agente público,
mas ao caráter impessoal da lei.
A maneira pela qual Uruguai apresentava a idéia de interesses e de direitos
colocava a ênfase desses na figura do indivíduo tomado isoladamente. Na reflexão de
Uruguai, nem o interesse nem o direito individuais, com a sua dinâmica voltada para o
próprio indivíduo, produzem benefícios para sociedade. Seus benefícios permanecem
presos ao indivíduo. Conforme pudemos observar no Capítulo 5, a disseminação do
interesse pela sociedade contribuiu para que o apego à ordem fosse mais presente. Isto
porque indivíduos que tivessem apego à propriedade e ao trabalho dificilmente seriam
mobilizados para conflitos armados em torno de cargos eletivos. Na visão geral do
pensamento de Uruguai, esse é um aspecto importante, mas não se constitui no termo
4
Ver “O interesse [...] é o que é útil [...] a vantagem que resulta para este ou aquele indivíduo [...]”
(Ensaio..., cap. XV, p. 62).
5
“O direito [...] está inerente a alguém por virtude da lei. Tal é o que está inerente à qualidade de
proprietário ou cidadão” (Ensaio..., cap. XV, p. 63).
336
final. Na nossa interpretação, torna-se importante analisar a relação entre o Estado,
enquanto promotor do bem público, e os interesses e direitos individuais e, ao mesmo
tempo, compreender a idéia de bem público utilizada acima. Nesse sentido, observemos
o trecho abaixo:
6
“O poder executivo puro, político ou governamental, isto é o governo, é exercido pelo Chefe do Poder
executivo e seus ministros, direta e indiretamente” (Uruguai, Ensaio..., cap. X, p. 53)
337
entendido como algo que diz respeito a todos. Em outras palavras, o direito
administrativo confere ao Estado uma jurisdição específica, e tal fato somente é
legítimo enquanto esse órgão promove o bem público, entendido como algo que diz
respeito a todos. Nesse caso, o Estado não pode ser julgado como um portador de um
interesse particular, mas, como está escrito no trecho acima, de um interesse especial.
A reflexão de Uruguai, após apontar para essa precedência do interesse geral,
assinalava que “o interesse geral gira numa esfera inacessível às reclamações
individuais”.
De maneira a ampliar nossa compreensão desta idéia, vejamos quais os móveis
da ação dos interesses individuais e por que esses não são capazes de dialogar como o
interesse geral. Em outras palavras, qual a lógica presente na ação dos interesses
individuais que os impede de conformar positivamente o interesse geral? Nesse sentido
analisemos o trecho abaixo:
Isto nos liga diretamente à discussão acerca dos interesses e direitos particulares.
Assim, podemos recortar a seguinte idéia: o indivíduo é propenso ao egoísmo, a
individualizar suas ações. Caso essa ação, movida pelos interesses individuais, fosse
colocada como o motor da ação do Estado, implicaria o sacrifício de bens coletivos
(“[...] sacrificar a nossa grandeza nacional, a nossa força interior, e a nossa posição
exterior.”).
Tendo em vista essa idéia, efetuemos uma ponte com a discussão acerca do
interesse e aprofundemos nossa interpretação da idéia de interesse geral/bem público no
pensamento de Uruguai. Segundo ele, o interesse diz respeito à busca egoísta de bens,
vantagens etc. A ação do interesse sobre o indivíduo o conduz à moderação no campo
da política, com inegável benefício para a sociedade, mas não produz um bem público.
Nesse sentido, podemos compreender a idéia presente no primeiro trecho citado nesse
item, qual seja, o Estado enquanto portador do interesse geral deve promover o bem
7
Com relação à possibilidade de que os interesses sacrifiquem a posição exterior observaremos, quando
tratarmos da questão da razão de estado, que Uruguai estava se referindo aos interesses dos traficantes de
escravos.
338
público. O bem público que emerge do interesse geral não é produzido pelo estéril
egoísmo. Quando Uruguai utiliza-se do verbo promover para caracterizar a ação do
Estado, está implícito que este interfere na dinâmica natural do interesse, retirando-o do
egoísmo e conduzindo-o à produção de benefícios que digam respeito a toda a
sociedade. Os interesses particulares úteis para a paz interna não são o móvel principal
da ação do Estado, mas, sim, o interesse geral.
A dimensão política dessa idéia pode ser compreendida caso a comparemos com
uma perspectiva oposta. Observemos o argumento do federalista Tavares Bastos:
8
Em 1862 – no ano da publicação do Ensaio... –, Tavares Bastos analisava o processo administrativo
brasileiro com as seguintes palavras: “Caracteriza-o [o Estado brasileiro] o espírito preventivo, a
desconfiança dos interesses particulares;” (Bastos, 1975, apêndice a Carta V, p. 258)
339
daqueles do interesse individual. Caso o Estado fosse guiado por esses, sua ação seria
ilegítima frente ao interesse geral, bem como implicaria a perda de eficiência.
Na medida em que as razões individuais não podem alcançar o interesse geral,
Uruguai requer que este possua uma esfera distinta para o julgamento das suas ações. A
preocupação de Uruguai em delimitar um espaço, na organização da Justiça brasileira,
para o direito administrativo reside no seguinte aspecto:
O trecho acima chama a nossa atenção na medida em que nos permite ampliar a
nossa compreensão da idéia de interesse geral. Notemos que Uruguai substitui interesse
geral por interesses comuns e coletivos. O uso da palavra comuns seguida de coletivos
denota que o interesse geral deve estar referido à coletividade, entendida na sua
totalidade. Da mesma maneira que anteriormente, Uruguai mencionou cidadão e
proprietário, apontando para os cidadãos não proprietários. Coletividade, no trecho
acima, englobava cidadãos ativos e passivos. A ação do Estado deve dispor de
precedência frente aos interesses particulares na medida em que esteja referida a bens
que digam respeito à coletividade.
9
“Aplica o interesse geral a casos especiais, pondo-se em contato com o cidadão individualmente, e vê-se
muitas vezes na necessidade de sacrificar o interesse particular deste e mesmo direito ao interesse social.”
(Ensaio..., cap. XII, p. 62
340
“O direito administrativo propriamente dito, diz ele 10 , é a ciência da ação
e da competência do Poder Executivo, das administrações gerais e locais,
e dos conselhos administrativos, em suas relações com os interesses ou
direitos dos administrados ou com o interesse geral do Estado.”
(Ensaio..., p. 19, itálicos do autor).
Uruguai acrescenta à idéia de interesse geral o termo Estado, aspecto que lhe
confere uma dimensão distinta. Dentre os exemplos que mencionava como uma
aplicação dos princípios do direito administrativo à realidade brasileira encontrava-se o
aprisionamento das embarcações envolvidas no tráfico de escravos. Observemos esse
trecho:
Comecemos pelo fim, pois este nos liga diretamente ao tema do direito
administrativo. O motivo pelo qual Uruguai demandava a criação de um contencioso
administrativo vinha a ser a necessidade que o interesse geral, quando em conflito com
os interesses e direitos individuais, não usurpasse a esses, nem fosse constrangido na
sua ação. No trecho acima, a Justiça era, segundo Uruguai, o meio mais propício para
que o tráfico negreiro continuasse, pois afeita aos direitos e interesses individuais, não
possuía instrumentos para avaliar a razão de Estado. O julgamento desse conflito entre
o Estado brasileiro e os traficantes requeria um tribunal administrativo, mais afeito a
considerar a razão de Estado e os direitos e interesses individuais. No trecho acima,
Uruguai utiliza-se com ênfase e, ao mesmo tempo, sem maiores ponderações, da idéia
de razão de Estado. Tentemos compreender o conteúdo desta no seu argumento. Para
esta tarefa, torna-se necessário nos deslocarmos para o debate político em torno da
abolição do tráfico e observarmos como Uruguai abordou esse tema.
10
M. F.Laferrière.
341
que lhes imprimiu o passado, dominar os acontecimentos, e mudar-
lhes rapidamente a face. Não estamos nesse caso. Todo o nosso
passado nos embarca por tal modo, que só lentamente nos podermos ir
livrando das peias que nos pôs. Tratemos de nos irmos desembaraçando
de ganhar pouco a pouco uma posição que nos desembarace para o
futuro. Hoje havemos, bom ou mau grado, curvar-nos a força de certos
acontecimentos, de certos fatos consumados, e não podendo dominar sua
força, dirigir a nossa política pelo trilho que eles traçaram. Acrescentou o
nobre senador 11 : ‘Dizeis que está quase extinto o tráfico, mas quais são
as convenções que fizestes com a Inglaterra, deu-se ela porventura por
satisfeita ?’ Se o nobre senador quer, por uma pergunta saber se a
Inglaterra deu o tráfico por extinto entre nós, dir-lhe-hei que ainda não. O
que digo, porém é que vamos andando o nosso caminho, façamos aquilo
que devemos fazer em cumprimento da nossa palavra, e o que pede a
nossa futura segurança, que a causa da razão e da justiça há de triunfar
mais tarde ou mais cedo. E por ventura são aquelas as únicas
considerações que nos devem guiar? Quando a escravidão está extinta
em quase todo o mundo, especialmente nos Estados da América
Meridional que nos cercam, e que recusam restituir-nos os escravos que
para eles fogem, com o fundamento de que pisando em seu território
ficam livres; quando a questão da escravidão ameaça romper o laço que
liga o poderoso colosso da União Norte-Americana 12 ; quando é
impossível resistir à pressão das idéias do século em que vivemos;
quando as idéias humanitárias vão em progresso, [...].Não nos
aconselhariam todas as considerações de moral, de civilização, da nossa
própria segurança e de nossos filhos, que puséssemos um termo à
importação de africanos, ainda mesmo que a Inglaterra em virtude de um
tratado não exigisse.” (Uruguai, sessão do Senado, 1850, vol. I, p. 319).
11
Uruguai estava se referindo a um trecho de Montezuma.
12
Observe-se a referência de Uruguai a possibilidade que a escravidão venha a desencadear um conflito
armado nos Estados Unidos. Fato que ocorreria em 1861.
342
(ver discurso no Senado, em 15 de julho de 1850, p. 200). A pressão para um país como
o Brasil era insuportável (ibidem, p. 208). O outro fato que coagia o ator era o
isolamento internacional: quase todas as nações foram abolindo o tráfico. Em outras
palavras, o Brasil não possuía aliados no plano internacional. A análise dos relatórios
de ministro dos Negócios Estrangeiros nos revela outro fato bruto que constrangia o
ator político: as tensões na Bacia do Prata. No momento em que as pressões inglesas
aumentavam, o Brasil encontrava-se em uma situação tensa com Rosas, na Argentina, e
Oribe, no Uruguai. As alegações argentinas nos conflitos territoriais com o Brasil
tinham o apoio do representante britânico em Buenos Aires. Nesse sentido, para que as
atenções do Estado brasileiro pudessem ser deslocadas para a Bacia do Prata, o mais
importante ponto da política externa brasileira na América do Sul, era fundamental
dirimir o conflito com o Império britânico.
Na nossa visão, esse conjunto de fatos conformam os imperativos externos que
constrangem o ator. A fortuna estará sempre presente no contexto da política. Para o
ator político situado no contexto brasileiro, a pressão inglesa foge ao seu controle, não
está ao seu alcance diminuí-la. Da mesma maneira, o isolamento internacional não está
ao alcance da sua intervenção. E, por fim, havia a descomunal diferença entre a
potência militar inglesa e brasileira. Esses fatos desencadeiam um processo que se
move sem a necessidade da intervenção do ator político, situado no Brasil. Entretanto,
se o ator não pode controlar esses fatos, ele os enxerga como portadores de
potencialidades valiosas. Caso observemos o trecho citado, bem como a discussão
empreendida no Capítulo 5, podemos perceber que a abolição do tráfico, para Uruguai,
produziria conseqüências valiosas para o Brasil. O argumento de Uruguai apontava
para três fatos: em primeiro lugar, a ameaça que a escravidão representava à segurança
interna - usualmente referida ao tema da possibilidade das revoltas de escravos. Porém,
Uruguai acrescentava outro aspecto: a escravidão poderia vir a desempenhar um papel
desagregador com relação à unidade nacional, caso no Brasil se repetisse a divisão
interna que estava ocorrendo nos Estados Unidos 13 . Em segundo lugar, a escravidão era
menos produtiva que o trabalho livre 14 e, terceiro, a abolição do tráfico permitiria que o
13
O autor voltará ao tema no Ensaio..., capítulo XXX.
14
Esses pontos foram expostos e discutidos no Capítulo 5.
343
país fosse lentamente iniciando a substituição do trabalho escravo 15 . O rio da fortuna
permitia que o Brasil começasse a substituir o trabalho escravo.
De forma a que possamos compreender quais os valores que o ator introduz de
maneira a utilizar o curso da fortuna a seu favor, é importante que introduzamos o tema
do direito administrativo e da razão de Estado. A idéia de razão de Estado aponta para a
necessidade do Estado, em situações nas quais a sua segurança encontra-se ameaçada,
de violar normas jurídicas, morais, econômicas e políticas (Meineke, 1997, Byrd, 1996
e Pistone, 1986). Conforme Uruguai expõe em diversas passagens do Ensaio..., o
direito administrativo seria o ramo mais adequado para julgar esses assuntos. A Justiça
teria por fim o direito privado; a administração, o interesse geral e a conveniência (ver
Ensaio..., cap. V). Dessa maneira, o caso do aprisionamento das embarcações
traficantes era um caso do direito administrativo na medida em que o Estado violava
normas e direitos do indivíduo em nome da segurança do Estado; o Brasil não tinha
como enfrentar a pressão inglesa. A ameaça inglesa punha em perigo a soberania
nacional e um conflito com a Inglaterra teria conseqüências desastrosas para o Brasil.
Dessa perspectiva, o uso que Uruguai faz da idéia de razão de Estado
permanecia dentro dos parâmetros pelos quais esse conceito foi pensado ao longo do
século XIX: a precedência da segurança e da sobrevivência do Estado. Entretanto,
quando Uruguai mobilizava, no Ensaio..., a idéia de razão de Estado para justificar o
fim do tráfico, outros valores, além da segurança do Estado, estavam presentes.
Conforme já observamos, a escravidão implicava uma série de prejuízos para o
desenvolvimento da nação. Observando o uso que Uruguai faz da idéia de interesse
geral ao longo do Ensaio... podemos considerar a seguinte formulação: a continuidade
do tráfico feria os interesses gerais, não apenas do Estado - o tema da razão de Estado/
a expressão interesse geral do Estado utilizada anteriormente -, mas dos interesses da
coletividade.
Entretanto, a própria sociedade não era capaz de compreender o seu interesse
geral. Conforme observamos no Capítulo 5, segundo diversos ministros da Justiça,
existia na sociedade brasileira uma crença 16 favorável à continuidade do tráfico, fato
que dificultava a sua repressão. Essa crença era devida à difusão da escravidão na
15
“E devemos nós continuar a dormir o sono da indolência, para daqui a 10, 15 ou 20 anos acharmo-nos
tão atrasados nas medidas que convém adotar para substituir os braços africanos como nós achamos
hoje?” (sessão da Câmara dos Deputados de 15 de julho de 1850, p. 208.) Esse trecho e outras partes
relativas ao tema foram citadas e analisadas no capítulo V.
16
Observe-se o sentido de crença em oposição a idéia de uma opinião pública esclarecida. Tema discutido
no Capítulo 5.
344
sociedade brasileira. O argumento de Uruguai nos permite considerar, ainda, outro
aspecto: os interesses dos grupos sociais envolvidos no tráfico, compradores e
traficantes não era capaz de efetuar um cálculo que envolvesse uma ponderação para
além da sua dinâmica imediata. Conforme já observamos, o interesse é movido pelo
sentimento do que lhe é útil, pelo egoísmo.
A maneira pela qual interpretamos o tema do interesse, conforme Uruguai o
apresenta, e o tráfico, nos conduz à seguinte interpretação acerca do uso da idéia de
razão de Estado: os diversos interesses envolvidos no tráfico deveriam ser atacados em
nome de duas idéias: a necessidade de assegurar a manutenção da soberania nacional
frente às pressões inglesas e do interesse geral na abolição do trabalho escravo; um
interesse geral que, reafirmamos, não era percebido pela própria sociedade.
345
razão/vontade nacional se desloca para dentro do tema do interesse geral. Nos anos 30-
40, a ação do Estado deveria estar voltada para a reunião das diversas partes que
compunham a nação; nos anos 50-60, essa ação está referida ao interesse comum a toda
a sociedade, tanto de províncias, como de cidadãos. Nos anos 50-60, Uruguai faz do
direito administrativo o veículo através do qual o interesse geral desloca o interesse
particular da sua dinâmica egoísta e o põe em movimento numa esfera mais ampla.
Esse movimento não diz respeito apenas ao sertão, mas também ao indivíduo situado
nas regiões civilizadas. Quando observamos essa ampliação do esforço intelectual de
Uruguai, podemos compreender que o vínculo que liga Oliveira Vianna ao saquarema é
muito profundo 17 e não diz respeito apenas ao diagnóstico comum da experiência
regencial. O pensamento de Uruguai faz parte de uma corrente política no debate
brasileiro (ver Werneck Vianna e Carvalho, M.A., 2004). Se por um lado, essa corrente
conforma a sua reflexão 18 , por outro, o esforço teórico dos anos 50-60 exerceu uma
influência central sobre o pensamento brasileiro posterior. Esse esforço, ao projetar a
defesa do interesse geral assinalando os limites do interesse individual deixou, o molde
no qual parte considerável do pensamento político dos anos 10-30 do século XX vai se
formar.
O confronto com o pensamento de Tavares Bastos marca essa passagem do
tema dos anos 30-40 para o esforço dos anos 50-60. O debate de Tavares Bastos para
com Uruguai aborda não apenas as leis do regresso conservador, efetuadas nos anos 30-
40, mas refletem o modelo de Estado presente no político alagoano. Somente podemos
entender a repulsa de Tavares Bastos ao Conselho Administrativo provincial se
atentarmos para esse tema. Os interesses particulares, segundo Tavares Bastos, não
devem ser vistos com desconfiança pelo Estado; ao contrário, a sua expansão deve ser o
objetivo do agente público. O modelo de Estado presente na reflexão de Uruguai, para
Tavares Bastos, reiterava o caráter atrasado do Estado brasileiro. O amplo sertão
intocado pelos interesses era a obra desse Estado. Na perspectiva de Tavares Bastos,
não era o Estado quem civilizava o sertão a partir do interesse geral, mas os interesses
dos cidadãos ativos (ver Werneck Vianna, 1991).
17
“Nos círculos do pensamento conservador brasileiro, tal disposição fez-se presente ainda na década de
1920, como nos ensaístas que, antecipando a ordem que viria com a Revolução de 30, defenderam uma
pedagogia a ser exercida pela lei, especialmente no âmbito do mundo do trabalho, que impusesse ‘por
cima’ as idéias de cooperação e solidariedade em substituição às paixões do indivíduo independente.
(Oliveira Vianna, 1974)”. (ver Werneck Vianna e Carvalho, M.A., 2004:207).
18
Tenho em mente as análises de Carvalho (1988b) acerca de José Bonifácio, e Barboza (2000).
346
A perspectiva de Uruguai é distinta, o interesse movido pela busca de vantagens
exclusivas para o indivíduo não produz o bem público, esse interesse particular não se
constitui no fim último da ação estatal. O Estado, segundo Uruguai, através do direito
administrativo dispõe dos meios necessários para forçar esses interesses para além da
esfera individual. Nesse sentido, a sociedade formada por indivíduos voltados para a
consecução dos seus interesses egoístas encontra no Estado e no interesse geral o seu
momento de racionalização. Isto porque o interesse geral presente na ação do Estado
está voltado para o que é comum a todos os grupos que formam a nação. Nesse sentido,
a presença central na reflexão de Uruguai vem a ser o tema da comunidade, e não da
sociedade individualista (ver Werneck Vianna e Carvalho, M.A., 2004; e Carvalho,
1988b).
Segundo Uruguai, o interesse geral remete à coletividade, e mesmo ao social,
mas o leitor privilegiado desse interesse reside no Estado e nas suas elites. Esse
interesse geral, nunca é descolado do Estado. Poderíamos afirmar que, para Uruguai,
esse interesse geral não existe fora do Estado, o interesse geral não se forma na
sociedade movida pelos indivíduos e seus interesses. Nesse ponto, esperamos que o
item tenha marcado com ênfase esse aspecto: o interesse é o instrumento do indivíduo,
mas não do interesse social. Conforme já analisamos, o Estado, e mais especificamente
o poder central, é o veículo do interesse geral e o seu produtor – mais adiante
analisaremos o sentido dessa idéia com mais vagar.
O interesse geral do qual o Estado é o portador é regulado pelos Legislativo e
Executivo. A administração encarregada de levar esse interesse à sociedade é
subordinada à esfera política, composta pelo Executivo e pelo Legislativo. Neste
Executivo estão presentes não apenas os ministros, que devem prestar contas ao
Legislativo, mas também o poder moderador, o qual não está sujeito, para Uruguai, ao
Legislativo. Afora o fato de que o poder moderador possui ao seu lado o Conselho de
Estado – que, segundo Uruguai, deveria desempenhar o papel de tribunal administrativo
– escolhido pelo Imperador.
Tendo em vista o que foi discutido nessa conclusão, dois pontos ainda devem
merecer nossa atenção. Mencionamos que o Estado pode sacrificar os direitos e
interesses particulares em prol do interesse geral. Devemos analisar como Uruguai
abordou o tema dos direitos individuais. O segundo ponto diz respeito à idéia do
interesse geral e ao tema da centralização.
347
8.2.2 – Os direitos e a administração: a separação entre a política e a administração
19
Veja-se Capítulo 1 da presente tese.
20
Ilmar Rohloff Mattos desenvolve uma interpretação distinta desta no seu capítulo III, “A Teia de
Penélope”. Ver Mattos (1994:183-265).
348
“Já tive ocasião de ponderar aqui que os nossos ministros não
encontravam na organização atual adjutório algum, tudo quanto podiam
apresentar devia ser filho de sua própria experiência, deveria ser
elaborado, calculado sobre os materiais que eles próprios tivessem
reunido; fiz ver que nós não tínhamos esses corpos que têm alguns
estados da Europa, que são depositários das tradições, que
conservam, acumulam os materiais indispensáveis para servir de
base à legislação.” (Sessão de 21 de julho de 1839, p. 281).
21
Esse trecho é copiado integralmente no Ensaio..., capítulo XXV.
349
No capítulo XXV do Ensaio..., Uruguai abordava o tema dos Conselhos
Administrativos provinciais. Ao abordar a formação destes Conselhos para o Brasil, o
autor efetua um esforço comparativo com outros países. O modelo francês apresenta a
seguinte característica: para cada ministério estão presentes diversos Conselhos – o
mesmo ocorrendo nas prefeituras e subprefeituras. Como exemplo, observemos os
Conselhos existentes no Ministério da Agricultura, Comércio e Trabalho 22 : o conselho
geral da agricultura, o conselho geral do comércio, o conselho superior do comércio, da
agricultura e da indústria, o conselho geral das pontes e calçadas, o conselho das minas,
a comissão consultiva dos caminhos de ferro, a comissão consultiva de higiene pública,
a comissão permanente das caudelarias e, por último, a comissão consultiva das artes e
manufaturas. Essa mesma lógica é reproduzida junto aos prefeitos e subprefeitos, os
quais possuem diversos Conselhos (instrução pública, comércio, agricultura, hospícios).
Para Uruguai, o modelo francês de organização do Estado era aquele que efetuava a
melhor divisão entre a cabeça política e os braços da administração 23 .
O pensamento político de Uruguai não pretendia transpor integralmente o
modelo francês de organização do Estado. Seu esforço em implantar um aparato
administrativo num modelo racional-legal era contido pelas limitações internas do
Estado brasileiro 24 . A racionalização do Estado deveria se ater apenas à esfera
provincial. O projeto de Uruguai previa os Conselhos como auxiliares somente para o
presidente de província. Tendo como sua principal função o contencioso administrativo.
Analisemos como deveria ser a composição do Conselho.
22
Além do ministério da agricultura, comércio e trabalho Uruguai detalhava os conselhos existentes no
ministério da saúde e no ministério da guerra.
23
“A França possui nos conselhos de prefeitura, que equivalem a conselhos de presidência, uma
instituição utilíssima e perfeitamente organizada.” (Bases..., p. 10).
24
O tema das limitações internas do Estado Imperial estão analisadas em Carvalho (1988a, esp. cap. 2,
“O Orçamento Imperial: os limites do Governo”).
350
conselhos de presidência. As primeiras legislaturas provinciais
contavam muitos fazendeiros, cujo número tem escasseado
progressivamente nas últimas. Cumpre que a nomeação de conselheiro
de presidência não seja negócio de favor, de aparato e de influência
política, que não seja obtida para satisfazer a vaidade e para inculcar
influência. Deve ser uma verdadeira magistratura administrativa,
que se entregue com constância e dedicação ao exercício das suas
funções. Será portanto necessário em grande número de casos
despachar para conselheiros de presidência gente de fora e dar-lhes
algum ordenado, o que trará o inconveniente de aumentar a
despesa”. (Bases..., p. 13).
25
Sobre a falta desse estrato social veja-se a análise de Justiniano José da Rocha em O Brasil dias 19, 21,
23 e 26 de setembro de 1843.
351
grande prejuízo dos serviços administrativos, e as vezes com grande
desmoralização”. (Ensaio..., cap. III, p. 28) 26
Acreditamos que com a citação acima podemos tornar mais claro o sentido do
trecho retirado das Bases.... Naquela passagem, Uruguai apontava que o presidente de
província se concentrava apenas no manejo político. Observando o trecho acima
podemos considerar que, para Uruguai, a administração, sem a presença desses
Conselhos, torna-se um mero instrumento eleitoral. Na nossa interpretação, esse uso
eleitoral está firmemente associado à maneira pela qual Uruguai abordou o tema da
justiça criminal eletiva.
Devemos deslocar para esse tema a análise empreendida no Capítulo 7. Nele,
buscamos assinalar a visão que Uruguai formulou acerca da Justiça eletiva nos
municípios, ou controlada pelo Legislativo provincial. Segundo Uruguai, os grupos
hegemônicos utilizavam-se da máquina do judiciário apenas para perseguirem
adversários e favorecer aliados. Na nossa interpretação, o pensamento de Uruguai
abordava o tema do Conselho Administrativo provincial com a mesma lógica presente
na Reforma do Código, analisada no Capítulo 7.
Conforme observamos naquele capítulo, para Uruguai os cargos do aparelho
judiciário deveriam ser compostos por indivíduos dotados de um determinado
treinamento, poderiam ser provenientes de outras regiões do país e deveriam dispor de
um salário que lhes permitisse dedicar-se integralmente às suas atribuições. Dessa
maneira, a lei deixaria de ser um instrumento de perseguição nas mãos de grupos locais,
para se tornar um instrumento capaz de apaziguar os grupos em conflito.
Se, por um lado, podemos remontar esse esforço aos anos 30-40 por outro,
podemos observá-lo no seu contexto político. A idéia de que o cargo de presidente de
província era extremamente instável e, em razão deste fato, a condução dos assuntos
administrativos ficavam prejudicados, estava presente na ação de Nicolau Tolentino na
presidência da província do Rio de Janeiro (1856-58) (Candido, 2002). Segundo seu
biógrafo, Tolentino era um funcionário do segundo escalão que foi nomeado pelo
presidente do Conselho de Ministros, Marquês de Olinda, para a presidência de uma
importante província. A escolha de um funcionário para a presidência e ainda mais de
26
“A distinção [entre Poder político e administração] da qual se trata, não se dará por certo em um país
onde a falta de conveniente desenvolvimento da parte administrativa, deixa a administração
completamente confundida com a política, como acontece entre nós, por quanto entre nós a mesma
administração é apenas mero instrumento nos cálculos de parcialidades políticas pessoais, e reduz-
se a máquina de eleições, o que é um grande mal” (Ensaio... ,cap. III, p. 30).
352
uma das mais importantes foi uma novidade na época; tal ato nunca havia sido feito
antes.
Essa nomeação está diretamente ligada ao texto escrito por Uruguai, qual seja, as
Bases... Esse texto, conforme já assinalamos, fora escrito a pedido do Marquês Olinda.
A nomeação de Tolentino foi em 1856, e o texto foi publicado em 1858. Observemos o
diagnóstico de Tolentino:
27
Tolentino elabora e assina o relatório na condição de vice-presidente a sua nomeação para a presidência
ocorreu no ano seguinte.
353
Segundo Tolentino, a reunião dos chefes de repartições provinciais seria “[...]
como uma tradição viva das regras e da história administrativa da província, sobre que
ele [presidente] merece ser informado” (Tolentino, Relatório de Presidência da
Província do Rio de Janeiro, 1858, p. 51). Outros aspectos da proposta de organização
da administração provincial poderiam ser analisados 28 , entretanto, acreditamos que esse
aspecto pode nos mostrar sua intenção e a sua relação com o pensamento político de
Uruguai.
As análises de Tolentino e Uruguai abordam ramos diferentes da administração
provincial, mas com o mesmo enfoque. Tolentino está preocupado com o
funcionamento das diversas secretarias da administração provincial, enquanto Uruguai
discute o contencioso administrativo. Sobre certos aspectos, a reforma de Tolentino foi
uma tentativa mais ampla, mas a direção política é a mesma. Na nossa interpretação, o
que nos interessa relevar é o esforço em direção à separação entre administração e
política. E, principalmente, esse esforço não é direcionado para um recolhimento da
ação do Estado; ao contrário, busca-se aperfeiçoar os mecanismos internos desses - no
caso em discussão, através da formação de um corpo de funcionários afastados das
oscilações políticas.
No caso de Uruguai, a montagem desse conselho nesses moldes possui, na nossa
interpretação, uma finalidade muito clara. No Ensaio..., o autor abordava as garantias
que o Conselho oferecia à sociedade. O contencioso administrativo – principal objeto do
Conselho – seria levado “[...] perante homens independentes de influências locais [...]”
29
(Ensaio..., cap. XXVII, p. 83). Podemos notar, nesse traço, o mesmo impulso
28
Nicolau Tolentino pretendeu estabelecer uma “junta administrativa” formada pelos chefes de serviços
das repectivas secretárias – agricultura, comércio etc. – que poderiam se comunicar entre si sem a
necessidade de recorrer ao presidente da província. Esta medida buscava estabelecer um contraponto de
continuidade na administração frente às sucessivas mudanças de presidente de província. Outra medida
tentada por Tolentino foi o ingresso através de concurso e a promoção no serviço sem saltos. Sobre essas
medidas veja-se o Relatório de Presidente de Província dos anos de 1856 e 1858 bem como Candido
(2002:65-79). Em 1860, o deputado João de Almeida Ferreira Filho apresentou a câmara um projeto que
criava a careira de presidente provincial (ver Candido, 2002:65).
29
O tema contencioso administrativo nas províncias encontra os mesmos adversários da lei de
Interpretação e da Reforma do Código. Segundo Tavares Bastos: “Carecemos, não de tribunais de
primeira e segunda instâncias para o chamado contencioso administrativo, mas de erradicar esta parasita
francesa enxertada o regulamento do conselho de estado [...]. A Inglaterra e os Estados Unidos não
conhecem o contencioso administrativo, e nem por isso os seus sistemas de governo parecem piores que o
nosso.O que se pretende, pois, senão aumentar funcionalismo supérfluo, sem necessidade positiva que o
demande, por mera imitação dos conselhos de prefeitura de França? Os publicistas da escola
conservadora criaram um prevenção exagerada contra a organização administrativa da nossas províncias.
Ela contém lacunas certamente; mas, para preenche-las, a solução dos liberais é mui oposta e diversa, é
completar e fortificar o sistema do ato adicional [...]” (Bastos, 1937:108-109). A análise acerca dos
modelos de organização de Estado, francês ou anglo-saxão mobilizados no debate político brasileiro do
século XIX nos revelam traços importantes do pensamento dos autores em questão.
354
presente nos anos 30-40: afastar o exercício da lei das influências localistas que buscam
conformar a aplicação da lei segundo suas vontades particulares.
Na visão de Uruguai, essa administração moldada apenas pela política traz
consigo uma grave deficiência.
355
representando um conjunto de valores superior ao mero egoísmo de particulares. Se esse
aspecto possui relevância na sua reflexão, podemos considerar a seguinte idéia: na
reflexão política de Uruguai, a teia de Penélope era um obstáculo para o bom
funcionamento do Estado, enquanto portador do interesse geral. Nesse sentido, era
fundamental romper a teia de Penélope e distinguir política e administração.
O argumento de Uruguai não pretendia subsumir a política na administração, ao
contrário, a política permanecia com o seu espaço claramente delimitado. Nesse sentido
analisemos o trecho abaixo:
Uruguai destaca um traço que lhe parecia essencial, qual seja, separação da
esfera política da esfera administrativa. Nos termos do trecho, a chefia política (o
governador) está rodeado de Conselhos administrativos. O Poder Executivo, para
Uruguai, deveria apreciar as informações provindas dos Conselhos (ver Ensaio..., cap.
XXV, p. 26). Após considerar essas informações, caberia a ele imprimir sua direção 30 .
Conforme Uruguai escrevia em outro momento: “O Poder administrativo é portanto
secundário e subordinado ao Poder político” (Ensaio..., cap. III, p. 26).
No esforço em romper a teia de Penélope, a reflexão de Uruguai busca efetuar
uma proteção aos direitos civis. Em outras palavras, controlar a possibilidade de arbítrio
por parte do Estado. Destaquemos esse aspecto.
30
“Cabe-lhe [ao poder Executivo] imprimir na administração o seu espírito geral e o seu pensamento”
(Ensaio..., cap. XXV, p. 26).
356
aos resultados práticos e palpáveis da sua administração. [...] A
população tinha confiança na justiça quer administrativa, quer civil,
quer criminal. E é sem dúvida por isso que a França tem podido
suportar as restrições que sofre na liberdade política”. (Ensaio..., p. I)
31
Foi José Murilo de Carvalho quem trouxe para o primeiro plano da análise essa mudança no
pensamento de Uruguai (Carvalho, 2002). A reflexão de Uruguai acerca dos direitos civis e da sua relação
para com a centralidade do Estado passa a ser um paradigma importante para a compreensão de outros
autores, notadamente Oliveira Vianna (Carvalho 1988b e 2000b).
357
Na nota relativa a esse trecho, Uruguai continua especificando a natureza dos
direitos:
“Os direitos políticos são aqueles em virtude dos quais participamos mais
ou menos diretamente, no governo do país (arts. 71 e 90 da
Constituição). Supõem capacidade, isto é certas condições como idade,
renda etc. Deux idées, diz Guizot e não o traduzo para lhe não desbotar a
eloqüente energia, sont les grands caracteres de la civilization moderne,
et lui impriment son redoutable mouvement; je les resume en ces
termes;- il y a des droit universels inhérents à la seule qualité
d´homme, et que nul régime ne peut legitimement réfuse à nul
homme-; il y a des droites individuels que dérivent du seul mérite
personnel de chaque homme sans égard aux circonstances extérieurs de
la naissance, la fortune ou du range que tout homme qui les porte en lui
même doit être admis à deployer”. (Ensaio..., nota 8, p. 448).
32
O tema da escravidão e dos direitos do escravo foi discutido por Grinberg (1994 e 2002) e Mattos
(2000). Creio que posição do Visconde de Uruguai esteja bem próxima daquela expressa por Feijó: “Os
escravos são homens e as leis os compreendem” (Uruguai, Relatório de Ministro da Justiça de 1832).
358
A reflexão de Uruguai operava um duplo movimento. Por um lado, afirmava-se
a relevância dos direitos civis, por outro, em nome da garantia desses direitos era
reforçada uma atribuição do Estado, a aplicação do contencioso administrativo no nível
provincial. A maneira pela qual era controlada a possibilidade de arbítrio do Estado não
era através de uma diminuição da capacidade do aparelho público; ao contrário, ocorria
um aperfeiçoamento desse aparelho.
Nessa lógica podemos observar a confluência do pensamento de Uruguai com
os doutrinários franceses. Para Guizot, a sociedade civil, o indivíduo e seus interesses e
direitos, não é pensada em detrimento do Estado 33 .
Esse Conselho Administrativo provincial e a criação do agente administrativo
no município, defendidas por Uruguai, não ocultam aos seus olhos a diferença para com
o modelo anglo-saxão.
33
“Thus Guizot’s radical critique of the modern deification of the human will also radically challenges
the distinction between the state and civil society. He himself admits it unequivocally in the text we are
considering, when he writes, ‘society and government are born together and coexist necessarily. They
cannot be separated, even in thought’. The idea and the fact of society both imply the idea and the fact of
government” (Manent, 1994:101). Ver, também, Rosanvallon (1984, esp. cap. II, “Le Pouvoir Social”).
34
Os povos da raça latina, segundo Uruguai, seriam: Espanha, Portugal, Itália e França (Ensaio..., cap.
XXXI, p. 415). Conforme podemos inferir para Uruguai a centralização não se constitui num expediente
temporário destinado a ser substituído quando o Brasil estivesse mais civilizado. Pois a França, modelo de
centralização, não se afigurava como um país no qual a civilização estivesse pouco difundida.
35
O raciocínio acima é muito próximo do seguinte trecho: “Há países onde um poder, de certo modo
exterior ao corpo social, age sobre ele e o força a marchar em certa direção. Outros há em que a força é
dividida, estando ao mesmo tempo situada na sociedade e fora dela. Nada de semelhante se vê nos
Estados Unidos; ali a sociedade age sozinha e sobre ela própria.”(Tocqueville, Livro I, Primeira Parte,
cap. IV, p. 52)
359
No trecho acima Uruguai apontava para o fato de que, principalmente nos
Estados Unidos, os efeitos da centralização administrativa e política são substituídos
pela ação dos cidadãos. Nos países latinos, segundo Uruguai, a centralização política e
administrativa pretende implementar os interesses gerais; no caso norte-americano, essa
ação é produzida com o mínimo de interferência da autoridade estatal. Mais adiante
voltaremos a discutir esse tema e a questão da liberdade e do interesse.
No caso norte-americano, essa relação entre a limitação da ação do aparelho
administrativo do Estado e a iniciativa dos cidadãos era resultado de um processo
histórico e social.
Inicialmente, observemos a formação histórica norte-americana. O autogoverno
promulgado na Independência havia sido um costume herdado da Inglaterra 36 . De
acordo com Uruguai, os norte-americanos haviam feito sua educação política (ver
Ensaio..., cap. XXXI, p. 394) neste modelo. De maneira mais clara, quando os norte-
americanos declararam sua independência, estava presente nos seus hábitos a prática da
descentralização, recebida da Inglaterra. Essa educação política encontrava um forte
apoio na religião. O puritanismo era não apenas uma doutrina religiosa, mas também
uma doutrina democrática (ibidem:395).
Junto com esses dois aspectos emerge um terceiro traço: a origem social dos
colonizadores. Numa citação de Tocqueville: “Os emigrantes eram quase todos saídos
das classes médias, e não tinham idéias de superioridade uns sobre os outros. Havia
proporcionalmente uma massa maior de luzes derramadas entre esses homens do que
no seio de qualquer nação européia” (ibidem:394-395, tradução do autor). Aos olhos de
Uruguai a presença dessa classe média é de grande importância, pois isto significava
que a sociedade norte-americana possuía um amplo segmento de indivíduos marcados
pelos traços sociais da civilização.
Segundo Uruguai, “a regra é que o povo é que deve dirigir o governo”
(ibidem:404), porém tal regra somente é válida “onde o povo for homogêneo” (idem) 37 .
Chamemos a atenção do leitor para o uso da palavra povo. Essa palavra, segundo o
Dicionário Moraes (1858), designava Povo miúdo: a plebe, gentalha. Nesse sentido,
36
“Na época das primeiras emigrações, o governo municipal, gérmen fecundo das instituições livres,
já estava profundamente arraigado nos hábitos ingleses e com ele o dogma da Soberania do povo se
havia introduzido mesmo no seio da monarquia dos Tudors” (ver Ensaio..., p. 394). A fonte era
Tocqueville, Livro I, Primeira Parte, Cap. II.
37
Com o mesmo raciocínio Uruguai abordava a descentralização inglesa. Segundo ele, a falta de
centralização administrativa é suprida pela semelhança de elementos sociais. Ver Ensaio..., cap. XXXI, p.
385.
360
para Uruguai a maior parte da nação norte-americana é formada por indivíduos dotados
de traços sociais semelhantes, ocorrendo uma difusão homogênea de luzes, educação,
hábitos, propriedade e interesses.
Na nota 281, Uruguai assinalava esse caráter democrático do federalismo norte-
americano:
38
Uruguai não efetua nenhuma designação, mas o trecho é retirado do Livro I, Parte I, Cap. II.
361
continente da Europa, não há talvez uma só que a conheça” 39 . (Ensaio...,
cap. XXXI, p. 405).
39
Uruguai não apontava de que trecho de Tocqueville havia retirado essa idéia. Entretanto analisando a
Democracia, podemos assinalar que Uruguai reescrevia trechos do Livro I, Parte I, cap. V Do sistema
comunal na América.
40
Na segunda parte da Democracia..., Tocqueville assinalava que essa característica acarretava o fato de
que a liberdade norte-americana era passível de ser apreendida pela moderna forma do despotismo. A
solução consistia na possibilidade de que o interesse fosse educado. Ver Werneck Vianna (1997) e
Jasmin (1997:79-85). Werneck Vianna chama a atenção para a presença na obra de Tocqueville de duas
leituras da experiência norte-americana. A primeira apontaria para uma experiência saudável, porém
presa a sua singularidade. A segunda leitura sugere que o modelo norte-americano implicaria num
processo que tenderia a universalização. Porém com resultados menos positivos do que aqueles previstos
no primeiro livro. O segundo livro apontaria para a possibilidade de que a marcha inexorável da
democracia seja educada. Em outras palavras, que o acaso fortuito que presidiu a experiência norte
americana seja educado para fugir ao moderno despotismo.
362
Essa questão nos permite caminhar em direção ao tema da liberdade 41 e dos
interesses e, a partir deste, lançar um olhar sobre o percurso que realizamos. Ao longo
da tese pudemos observar, no pensamento de Uruguai, e dos centralizadores, que o
conjunto de direitos que pertencem ao cidadão tomado isoladamente não se constitui no
fim último da ação pública. Esses direitos e interesses somente ganham seu sentido
pleno a partir do momento em que são capturados pelo interesse geral/vontade nacional.
No modo pelo qual compreendemos o objeto da tese gostaríamos de apontar a
seguinte questão: a liberdade permite que o indivíduo participe da produção do bem
público. Essa participação tem como princípio a abnegação, e não a mera satisfação dos
seus interesses individuais. Nesse sentido, a liberdade é um bem coletivo, já que para o
seu exercício o indivíduo não pode se realizar solitariamente. Participar dessa ação
abnegada envolve o indivíduo na consciência dos seus direitos, que, ao lhe pertencerem,
exigem para a sua existência continuada a sustentação dos demais participantes. Nesse
sentido, a percepção do indivíduo da sua singularidade e dos seus direitos pode ser
associada a um envolvimento coletivo, afastando, dessa maneira, a escolha entre a
liberdade negativa e a liberdade positiva; entre uma liberdade que se afigura como uma
conquista da modernidade e do indivíduo, e uma liberdade que, apesar de virtuosamente
positiva, ameaça a esse indivíduo com uma tirania coletiva em nome de um princípio
impossível de ser realizado 42 . Em outras palavras, o fato de a ação do indivíduo nascer a
partir do interesse não impede que, ao longo de uma ação pública, marcada por
procedimentos democráticos, possa vir a se tornar uma ação virtuosa. Nesse sentido,
não seria necessário efetuar uma escolha entre virtude e interesse, mas que ao longo de
uma ação coletiva o cidadão vislumbrasse os limites do seu interesse e dos seus
vínculos para com o interesse coletivo.
No esforço interpretativo desta tese, a discussão acerca da centralização e do
federalismo ganha, a partir da temática exposta acima, um sentido mais amplo e expõe a
41
A possibilidade de trazer o tema da liberdade positiva e negativa para o debate político brasileiro foi
elaborada pelo professor Ilmar Mattos em Mattos, 1994 e 2000. O professor José Murilo de Carvalho
abordou as relações entre a liberdade e o debate entre centralizadores e federalistas em Carvalho, 1993 e
2002.
42
Com relação ao tema da liberdade negativa e positiva a referência clássica vem a ser Berlin (1969), as
críticas à abordagem desse autor estão em parte em Sidentop (1979) e Taylor (1979). Na sua formulação
história o tema das duas liberdade está em Constant, 1997. O contraponto histórico à abordagem de
Constant pode ser observado principalmente em Hegel (1990). Sobre este autor, veja-se Bobbio (1991) e
Tocqueville (1977). A questão da liberdade e da abnegação podemos encontrar em Ribeiro (2000a e
2000b), Eisenberg (2003, esp. caps. 4 e 5). A possibilidade de que a liberdade possa se dar em contextos
fortemente marcados pelos conflitos e, em particular, pelos conflitos de interesse veja-se Werneck Vianna
e Carvalho, M. A. (2002). Na mesma perspectiva mas numa análise voltada para análise de Tocqueville,
veja-se Jasmin (2000).
363
lógica que orientou o intérprete. O conceito de federalismo discutido no Capítulo 3
aponta, na nossa compreensão, elementos importantes. As correntes federalistas
buscam, através do Código do Processo, permitir que os cidadãos ativos, a partir dos
seus interesses, construam uma esfera da liberdade. Seus defensores reconhecem o
passado colonial como uma barreira; a apatia e o privatismo decorrentes desse passado
poderiam ser lentamente superados por uma pedagogia da liberdade, mas que nesse caso
seria exercida pelos cidadãos ativos, e não pelo poder central 43 . Os cidadãos ativos
envolvidos na discussão dos assuntos da sua esfera mais próxima experimentam a
possibilidade de resolver suas demandas relativas aos seus interesses privados numa
ação coletiva, na qual a lei é um instrumento impessoal. Nessa visão política, liberdade
e interesse se complementam. O interesse do cidadão no sentido de proteger seus
interesses particulares o desloca da sua esfera privada e o põe em contato com outros
interesses, os quais ele percebe como tão legítimos como os seus, e com os quais ele
deve dialogar. Na nossa interpretação, para os federalistas, nesse momento histórico, o
bem público produzido, ao fim era uma agregação e negociação de interesses
particulares. O que não afastava a percepção da parte dos federalistas de que para tal
resultado era imprescindível a liberdade e participação de outros cidadãos ativos.
O Ato Adicional marca um recuo nessa compreensão. A longa discussão
empreendida, desde a Constituinte de 1823, em favor dos interesses provinciais emerge
contra as idéias contidas no Código do Processo. Na nossa interpretação, o argumento
federalista deve ser pensado a partir do conceito de casa: a província estaria para a
nação na mesma medida em que o indivíduo estaria para a casa (ver Mattos, 1994 e
1999), cabendo a este a busca do que é melhor, segundo os seus interesses. O pacto
federativo passava a ser pensado segundo essa lógica. O interesse geral é o resultado de
uma competição entre interesses provinciais, uma competição mediada por regras
pacíficas de convivência. A idéia de que a descentralização devesse permitir à
província/indivíduo gerir a economia da sua casa passa a implicar o controle da
disseminação do poder aos cidadãos ativos situados no municípios; a possibilidade de
que os cidadãos nos municípios elegessem ou que o Legislativo municipal escolhesse
alguns dos cargos mais importantes do aparato judiciário é suprimida em nome do
interesses provincial. Para certas correntes federalistas, tratava-se de esvaziar essa
43
A marca do pertencimento desses cidadãos à sociedade que os elegeu é o fato de que, após o fim do seu
mandato retornam a esfera privada (juiz de paz, júri e promotor). Em outras palavras não passariam a
gravitar na esfera estatal.
364
dimensão da liberdade em detrimento da preservação dos interesses representados no
legislativo provincial. Conforme escreveu Tavares Bastos, o Código Processo
equivocadamente imaginou um país no qual a civilização estivesse homogeneamente
espalhada. Os mecanismos de descentralização ficavam a cargo do Legislativo
provincial. Conforme nos mostrou Tavares Bastos, as ações desses imediatamente
voltaram-se contra as figuras eleitas no município. E, segundo a nossa interpretação,
fizeram-no tendo em vista apenas os interesses provinciais, sem nenhuma referência ao
todo, ao Império.
O pensamento federalista mantém a idéia de que o bem público é construído a
partir de uma competição pacífica entre interesses auto-referidos. Porém, agora sem
nenhuma referência à participação dos cidadãos ativos na sua esfera mais próxima.
Conforme dirá mais tarde Teófilo Ottoni o Ato Adicional foi extremamente benéfico
tendo em vista as províncias mais civilizadas. Em 1870, Tavares Bastos assinalava a
mesma idéia: o regresso conservador castrou aquelas províncias nas quais o
desenvolvimento da civilização era mais presente. Na nossa interpretação, os grupos
federalistas recuavam frente à possibilidade de que o envolvimento das classes
subalternas viessem a questionar os limites do exclusivismo agrário.
A partir desse momento, na nossa interpretação, as correntes federalistas
agrupadas em torno do Ato Adicional tornam clara e presente a idéia do deputado Lino
Coutinho, analisada no Capítulo 4: o pacto federativo é regido pela mesma lógica
presente na casa; o cidadão ativo administra a sua casa de maneira tal que na
competição com outras casas o seu interesse prevaleça. Nessa competição,
inevitavelmente algumas províncias serão prejudicadas, mas o bem geral, movido pelo
aperfeiçoamento da competição, terminará distribuindo benefícios a todos – de maneira
desigual, é claro. Do ponto de vista das províncias mais civilizadas o Ato Adicional foi
extremamente benéfico44 . Porém, essa idéia, o pacto federativo regido pela competição
entre interesses auto referidos, provocava a crítica dos centralizadores.
O pensamento centralizador marcava, desde a Constituinte de 1823, a
precedência da nação sobre os interesses particulares. Os centralizadores enxergavam
no tema do interesse provincial uma lógica marcada pelo abandono da nação e uma
afirmação do egoísmo. O pensamento centralizador assinalou o sentido político dessa
44
Na nossa interpretação é desse argumento que emerge o pensamento de Alberto Sales. Porém com uma
solução política (o separatismo) distinta daquela pensada por Ottoni, Tavares Bastos e outros.
365
idéia: o bem público é produzido sem nenhuma referência à nação, mas apenas às
necessidades provinciais.
À medida que vão emergindo as propostas descentralizadoras, sejam as do
Código do Processo ou do Ato Adicional, os centralizadores apontavam para a
possibilidade de que as províncias mais civilizadas movidas pela lógica dos interesses
bloqueassem a prosperidade geral, que requeria dos seus agentes um cálculo distinto
daquele presente no indivíduo e seu interesse. O Império era formado por regiões
civilizadas e regiões marcadas pela barbárie, produzir um bem comum a essas diversas
partes requeria uma ação que envolvesse, da parte das províncias, mais prósperas abrir
mão de alguns dos seus interesses.
Nesse sentido, a classificação utilizada por Uruguai para designar os interesses
províncias com o termo meramente, ou, em outro momento, ele os designando como
interesses particulares. Esse traço decorria do fato de que para os centralizadores os
interesses eram vistos como parciais, limitados frente a um interesse comum ao todo. A
formulação de Uruguai, analisada no Capítulo 6, emerge como a mais precisa: no
Império brasileiro não existem laços comuns no plano dos interesses, apenas a
centralização é capaz de construí-los. Ao longo dos anos 30-40, o pensamento
centralizador não contrapõe aos interesses egoístas das províncias o tema da liberdade,
mas, sim, o da manutenção da integridade territorial, a unidade de um Império marcado
pela civilização e pela barbárie.
A análise que empreendemos no Capítulo 7 nos revela que, para os
centralizadores, a imposição da lei entendida na sua impessoalidade e aplicada,
principalmente, mas não unicamente, por um corpo de funcionários treinados, capazes
de serem deslocados nacionalmente e dotados de um salário, é um meio de instalar a paz
no território. A Lei de Interpretação e a Reforma foram, para Uruguai, o meio de conter
os homens pobres livres, carentes da domesticação do processo social civilizatório, e os
homens bons, os grandes proprietários movidos pela intenção de oprimir para não serem
oprimidos – potentados que não tiveram a educação política do self government e que
encontravam massas disponíveis para a instrumentalização da lei. Os cidadãos que por
ventura se encontrassem sob o domínio de uma facção política não eram, em nenhum
sentido, membros de um Império regido por leis. Aos olhos de Uruguai o movimento do
regresso centralizador visava a estender os braços de um Estado constitucional. Esse
366
movimento de esticar os braços do Estado assegurava aos cidadãos, proprietários ou
não 45 , a garantia dos seus direitos.
Na nossa interpretação cabe assinalar que esse movimento não incluía o direito
dos cidadãos de participar da produção do bem público; forçados a abrir mão dos seus
interesses, grande parte dos cidadãos não eram instados ao exercício da liberdade.
Analisando o pensamento de Uruguai como um todo, a reflexão dos anos 30-40
prepara a ênfase conferida aos direitos civis nos anos 50-60. Sem nenhuma dúvida, esse
homem preparado para o papel de jurista político vinculado aos interesses da grande
propriedade cafeicultora não enxergava o espraiamento da civilização no Império sem a
concorrência desse setor social. Porém, a crítica de Uruguai à mão-de-obra escrava nos
repõe na consideração de que os interesses desse grupo social não são capazes de
vislumbrar o interesse geral, seja na sua dimensão de razão de Estado, seja tomando o
desenvolvimento da nação em longo prazo.
Na reflexão de Uruguai, tanto os interesses das províncias mais civilizadas,
como dos grupos sociais beneficiados pela escravidão operavam a partir do interesse
particular. O interesse geral exige que esses interesses sejam sacrificados em nome da
nação. Nos anos 30-40, Uruguai assinalava que o pacto federativo não poderia ser
pensado a partir das províncias mais civilizadas. Na nossa interpretação, essa
formulação adequou-se à discussão mais abstrata efetuada no Ensaio...: conforme
analisamos no item sobre o direito administrativo, os interesses particulares são
marcados pelo egoísmo; não se tratava de negar a sua existência e os seus direitos, mas
de deslocá-los da sua dinâmica isolada, pondo-os em contato com os interesses gerais.
A reflexão de Uruguai apontava para a seguinte idéia: não há liberdade em
permanecer preso aos interesses egoístas; a saída para os interesses particulares estava
em serem negados e racionalizados em proveito da nação. Entretanto, coloquemos a
seguinte pergunta: o interesse geral, para Uruguai, era uma agregação de interesses
particulares, uma média forjada pelo conflito pacífico entre facções? 46 Acreditamos
que analisando esse tema abordaremos um dos aspectos centrais da reflexão de Uruguai
45
E se pensarmos em Grinberg (1994) e Mattos (2000), o movimento de extensão da lei implicava
garantias para o não cidadão.
46
“Nas sete críticas que Elster faz a Habermas naquele artigo ele demonstra que um dos maiores vícios
do modelo de situação ideal de fala, que é subjacente ao conceito de ação comunicativa, consiste na
elaboração de um conceito de bem comum que na verdade é um conceito de bem coletivo travestido, já
que ainda opera sob o paradigma da agregação de preferências que exprimem interesses individuais e/ou
coletivos” (Eisenberg, 2003:84).
367
e dos centralizadores em geral, o que nos permitirá retomar o tema da liberdade e dar
um desfecho para o capítulo.
47
“Quando veio a Independência e com ela a Constituição que nos rege, saímos da administração dos
Capitães Generais, dos Ouvidores de Comarca, dos Provedores dos Juízes de Fora e Ordinários etc. Não
tínhamos, como formaram os ingleses por séculos, como a tiveram herdada os Estados Unidos, uma
educação que nos habilitasse praticamente para nos governarmos nós mesmos” (Uruguai, Ensaio..., cap.
XXX, p. 345). Esses cargos foram descritos e analisados no Capítulo 5.
48
Veja-se Guizot (2002, Lecture 15:112-113), Rosanvallon (1984:60-61). Uma análise da recepção das
idéias de Guizot por Uruguai está em Carvalho (2002, esp. pp. 38-44).
368
“O que produziu todas as misérias da sociedade feudal na idade média,
diz Tocqueville, foi estar o poder não somente de administrar, como
também de governar, repartido em mil mãos, e fracionado por mil
maneiras; a ausência de toda e qualquer centralização governamental
impediu que as nações da europa marchassem para algum fim.”(Uruguai,
Ensaio .., Cap. XXX, p.344 itálicos do autor)
49
“[...] a qualidade essencial do elemento federal é o fracionamento do poder;” (sessão de 17 de junho de
1839).
50
A avaliação negativa do feudalismo conforme a ótica de Guizot pode ser encontrada em autores do
direito administrativo. Podemos encontrar em Laferrière: “Ainsi messieurs, la feudalité será considérée
par nous comme l´époque d´immobilisant et de morcellement.”(Laferrière, 1838,p.10)
369
Para o intérprete, a questão do feudalismo se desdobra em outra direção. A linha
interpretativa formulada por Raymundo Faoro apontava para a seguinte idéia: “[...]
‘somente os países revolvidos pelo feudalismo’ teriam chegado a adotar o sistema
capitalista, integrando nele a sociedade e o Estado” (Werneck Vianna, 1999:35). As
sociedades que não tivessem percorrido esse caminho, como a brasileira e a portuguesa,
teriam conhecido um Estado sobreposto ao indivíduo. O cidadão seria um ser castrado
na sua iniciativa e desprovido de direitos.
Na nossa interpretação, a análise de Uruguai oferece um caminho distinto frente
a essa visão. O feudalismo não representava a via de acesso à modernidade. Esse
sistema social é, antes, sinal de uma separação entre indivíduo, direitos e Estado. A
questão que se colocava para Uruguai era como capturar o cidadão e inseri-lo numa
dinâmica marcada pela impessoalidade da lei e pelo interesse geral. Os direitos e
interesses do cidadão não são pensados contra o Estado, ao contrário, ganham a sua
dinâmica social quando são por este incorporados. Nesse sentido, a discussão ganha
uma dimensão para além da ampliação do seu significado histórico (federalismo-
feudalismo).
O pensamento de Uruguai pertence a uma tradição para a qual a superação do
particularismo na aplicação da lei implicava o reforço e o aperfeiçoamento do Estado. A
partir dos direitos civis e da necessidade de garanti-los frente a esses particularismo (ver
Carvalho, 2002) emerge um esforço de construção do Estado-nação. A montagem do
Conselho Administrativo provincial, das juntas elaboradas por Tolentino, apontam nesta
direção. A possibilidade de que o uso do poder público (a presidência da província) se
torne um instrumento de perseguição política é combatido pelo aperfeiçoamento do
aparelho administrativo, subtendida a idéia da separação entre administração e política.
A emergência da centralidade dos direitos civis é pensada a partir da captura desta pelo
Estado.
Não sem razão, o tema do contratualismo é inexistente na reflexão de Uruguai, o
que não implica negar a presença do tema dos direitos civis. A via pela qual a reflexão
absorve esse tema é distinta. Introduzir a reflexão acerca da recepção, de Weber, nos
permite abordar um aspecto central do pensamento de Uruguai e dos centralizadores. Se
observarmos diversas intervenções dos federalistas analisadas nos Capítulos 2 e 3,
perceberemos o uso recorrente da idéia de que a província, como o indivíduo no
momento do pacto, possui direitos anteriores, os direitos naturais, através dos quais o
370
pacto é formulado; no caso em discussão, os direitos da província de administrar a
economia da casa. A via dos centralizadores é distinta.
Os direitos civis, conforme Uruguai escreve, residem na natureza do homem,
portanto, a ação pública não pode ignorá-los. Na reflexão de Uruguai, os direitos do
indivíduo, da mesma forma que as províncias e suas prerrogativas, não são pensados
como anteriores à comunidade na qual estão inseridos. Os direitos do indivíduo não
possuem precedência frente ao interesse geral, isto porque, sem a ação desse interesse,
esses direitos não possuem eficácia, nem legitimidade.
A província sem a referência à razão nacional é apenas um interesse auto-
referido em busca da afirmação da sua superioridade sobre as províncias mais fracas,
colocando em risco a paz interna. Os direitos do indivíduo pensados fora do Estado são
apenas instrumentos da afirmação de um interesse sobre outro. A captura desses pelo
Estado lhes confere garantias frente aos particularismos de outras vontades, mas o
obriga a pensar para além do seu egoísmo natural. Pertencer a uma nação implicava,
para Uruguai, submeter os interesses e direitos a uma dinâmica que os inclui, mas não
se esgota nesses.
371
Suas idéias gerais emergiam em debates acerca do juiz de paz, júri, província etc. Seu
deslocamento para os assuntos externos o colocava em outra frente de ação; seu retorno
aos assuntos internos, nas figuras de senador e conselheiro de Estado, o colocam perante
as tentativas de reformas da lei de 3 de Dezembro (Reforma do Código do Processo),
bem como das pressões das províncias, principalmente São Paulo, pela
descentralização. A maneira pela qual Uruguai abordou essas iniciativas não foi a
mesma dos anos 30-40. Sua abordagem passou a tratar a centralização e a
descentralização em sentido geral. Em algumas intervenções no Senado, nos anos 50,
Uruguai evitava defender em detalhes o regresso centralizador dos anos 30-40, preferia
assinalar as condições peculiares do momento. Em termos mais específicos, recua da
defesa das atribuições criminais do delegado, ou da subordinação do município ao poder
central.
Ao escrever o Ensaio..., Uruguai passava a defender a centralização, a qual pode
sofrer ajustes em pontos específicos, mas que deve continuar vigorando como princípio
geral. Na nossa interpretação, o pensamento de Uruguai apontava na seguinte direção:
as reformas podem vir, mas não devem cancelar a centralização. Esta continua sendo o
veículo através do qual os direitos civis, a unidade nacional e os interesses gerais se
afirmam na sociedade brasileira.
Retomemos o tema do feudalismo. Segundo Uruguai, o Brasil teria sido feliz por
não ter passado por esse período feudal e, em contrapartida, ter herdado a centralização
proveniente da monarquia portuguesa.
“O Brasil não tomou parte naquelas lutas [do rei contra os senhores
feudais]. Tivemos a fortuna de vir depois e de aproveitar, na Constituição
que nos rege, o fruto de tantas lutas, de tantas dores e de tanta
experiência. Herdamos a centralização da Monarquia Portuguesa.”
(Ensaio..., p. 345).
51
“A dimensão pública das sociedades ibéricas ganha sua força na aventura externa, mas reduz a sua
possível virulência revolucionária ao organizar-se como campo de aliança do rei com a nobreza,
preservando o caráter aristocrático e ainda tradicional dos reinos e impérios ibéricos” (Barboza,
2000:277).
372
civilização - a centralização e o Estado. Aos olhos de Uruguai, o que a centralização
ofereceu de tão importante para a civilização moderna?
373
O tema do conflito entre interesses econômicos nos chama a atenção para o
texto Federalista nº 10. Neste está presente uma análise acerca do conflito entre os
interesses da agricultura e da manufatura. Vejamos:
52
“By a faction I understand a number of citizens, whether amounting to a majority or minority of whole,
who are united by some common impulse of passion, or of interest, adverse to the rights of other citizens,
or to the permanent and aggregate interests of community” (Madison, nº 10, p. 43).
53
“There are two methods of curing the mischief of the faction: the one, by removing its causes; the
other, by controlling its effects. […] Liberty is to faction, what air is to fire, an aliment without which it
instant expires. But it could be a less folly to abolish liberty, which is essential to a political life”
(Madison, nº 10, p. 43)
54
The diversity in faculties of the latter will attach themselves. The diversity in the faculties of men from
which the rights of property originate, is not less an inseparable obstacle to uniformity of interests”
(Madison, nº 10, p. 43-44)
55
“The regulation of these various and interfering interests forms the principal task of modern
Legislation, and involves the spirit of the party and faction in the necessary and ordinary operations of
Government” (Madison, nº 10, p. 44)
374
motivação, a satisfações do seu interesse; a incorporação de outros interesses foi apenas
uma estratégia de maneira a obter a vitória.
Se a liberdade constitui a participação na produção do bem público, na qual o
indivíduo se liberta da esfera privada e encontra outra dimensão formada por valores
distintos, então no arranjo federalista existe liberdade de organização, mas não existe o
exercício da liberdade.
Vejamos, para Uruguai, qual seria o papel da centralização na produção do bem
público. Conforme observamos no trecho da página 351 analisada anteriormente, a
centralização deve velar pelos interesses comuns da sociedade, o laço que a une. Um
Estado centralizado, quando se depara com um conflito entre interesses particulares,
deve buscar o aspecto que não está dado aos interesses, qual seja, o interesse comum a
toda a sociedade. A ação do poder central não pode ser o resultado de um conflito de
interesses, no qual o resultado pode eventualmente favorecer a um bem comum a toda a
sociedade. A ação dever ser incisiva – lembremos ao leitor do dique do qual falava
Nabuco de Araújo -, deve desviar os interesses da sua ação natural e deslocá-los para
uma outra dinâmica. Observemos, apenas para reiterar essa idéia, um trecho dos
Estudos Práticos:
375
com o poder central, este possuiria a precedência, pois sua ação não está referida apenas
à dinâmica interna da província, mas ao todo. Evitaria dessa maneira o conflito, e
deslocaria o interesse provincial da sua busca auto referida para uma outra lógica,
marcada pela busca do que é comum à sociedade.
376
amarras do egoísmo. O tema da titularidade do exercício da liberdade pela sociedade
não está presente no pensamento de Uruguai. Conforme assinalou José Murilo de
Carvalho, para o pensamento centralizador o Estado é o pedagogo da liberdade; o que
implica uma relação paternal entre os cidadãos e o aparelho público, sem que a
pergunta “por quem sou governado” apareça (ver Mattos, 1994:127 e 1999:192).
377
Conclusão
1
Uricoechea (1978), Carvalho (1980), Schwartzman (1988) e Mattos (1994).
2
“A sociedade que nossos historiadores descrevem, [...] podia prescindir do Estado, se este é, por
excelência, a organização de centralização e controle dos meios densos e de população compacta na
associação numerosa” (Duarte, 1966:59)
3
“Na realidade, o debate entre as teorias da centralização e a poder descentralizado está mal colocado.
Não ocorria uma destas coisas, mas as duas. De um lado, um poder político centralizado e hierárquico,
que não dependia de bases locais de sustentação, apoiando-se na própria máquina administrativa
governamental para subsistir e se afirmar. De outro, um poder privado e autônomo difuso, que só adquiria
expressão política quando era cooptado pelo Estado, e que entrava em uma trajetória de conflito e derrota
quando pretendia se articular, minimamente que fosse como força política autoôma e representativa de
seus interesses” (Schwartzman, 1988:107).
4
“Era da essência do processo certo dualismo que se manifestava, por um lado, num governo
relativamente centralizado e, por outro, numa oligarquia agrária relativamente poderosa, sendo que a
eficiência daquele – dada a natureza patrimonial e diletante do governo local – dependia da cooperação
litúrgica angariada desta última. Cada um era fraco sem o outro” (Uricoechea, 1978:109). Veja-se,
também, “Mandonismo e Coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual” (Carvalho, 1998b).
5
“O primeiro obstáculo para a constituição de um sistema de dominação inteiramente burocrático e
despatrimonializado foi a ausência de pessoal qualificado ao qual confiar a administração local de
governo. Esta carência foi particularmanete severa na esfera judiciária, e acarretou como conseqüência
imediata que as funções a serem formalmente desempenhadas por advogados profissionais enviados pela
administração central foram de fato preenchidas pelo serviço amadorístico dos honoratiores locais.”
(Uricoechea, 1978:113).
378
dualidade levou Uricoechea a caracterizar o Estado brasileiro imperial com o termo
burocrático-patrimonial 6 .
Maria Sylvia de Carvalho Franco lidou com a mesma problemática no seu
trabalho, em especial no capítulo 3. A autora demonstra que a penúria de meios
financeiros postos à disposição dos órgãos públicos constituiu-se em obstáculo
fundamental às tentativas de burocratizar a administração pública 7 . A análise de Ivan
Vellasco, reconhecendo na montagem da máquina da Justiça a ação dessa penúria,
aponta para uma intensificação da ação da Justiça a partir de 1840. Segundo o autor, a
formação de uma burocracia de polícia com uma estrutura hierarquizada, com
atribuições específicas e submetida a um controle nacional, resultou em três aspectos
fundamentais: a diminuição do tempo entre a data do crime e o início do processo ; a
intensificacão da ação condenatória ; e a diminuição do tempo decorrido entre o começo
e o fim do processo.
Dentro dessas quatro análises existem matizes diferentes, mas acreditamos ser
possível assinalar que exista uma problemática comum entre os quatro trabalhos: a
compreensão da existência de uma dualidade entre o esforço do Estado imperial no
sentido de empreender uma administração racional, e a necessidade do recurso ao poder
privado, fato que tolhia o impulso burocrático desse Estado. Mesmo reconhecendo este
traço, devemos ressaltar que essas análises recortam objetos distintos. A análise de
Uricoechea está centrada na Guarda Nacional, enquanto a de Maria Sylvia de Carvalho
Franco está mais voltada para a arrecadação fiscal e para o funcionamento da Justiça. Já
a análise de Ivan Vellasco está centrada exclusivamente no funcionamento da Justiça.
Objetos diferentes que, no contexto histórico do Império, possuem realidades distintas 8 .
A construção do aparelho da Justiça está vinculada ao processo que José Murilo de
Carvalho designou como o de acumulação primitiva de poder, no qual predominaram as
atividades de controle e extração. Na medida em que a área da Justiça está diretamente
vinculada ao tema do controle, esta recebeu uma atenção maior no período histórico
6
Acerca das considerações teóricas, veja-se, especialmente, a Introdução (Uricochea, 1978).
7
Ver Franco (1997:130). Veja-se, também, o trabalho de Werneck Vianna, 1999.
8
A desconfiança das elites imperiais para com a força militar foi marcante ao longo de todo o período
imperial. A participação das tropas em diversas revoltas armadas no Primeiro Reinado e no período
regencial foram elementos importantes para a composição desse sentimento. Da mesma maneira, a
identificação do caudilhismo militar como um dos aspectos que contribuíram para a crônica instabilidade
da América espanhola. Nesse sentido, a criação de um Exército forte sempre foi visto com desconfiança
pela elite imperial. Parecia-lhes pouco provável que essa instituição contribuísse para a estabilidade,
sendo mais possível que ocorresse o contrário.
379
estudado. Em outras palavras, o esforço em direção à montagem de um aparelho
burocrático foi mais presente nessa área.
A análise do pensamento político de Uruguai acerca da Reforma do Código do
Processo nos fornece uma via de acesso privilegiada para pensar a discussão anterior.
Podemos precisar o esforço de Uruguai na direção da montagem da máquina
administrativa. Em primeiro lugar, Uruguai atacava o funcionário eleito em razão do
amadorismo; o funcionário não dispunha de tempo para uma dedicação exclusiva às
tarefas da Justiça, isto porque deveria dedicar parte substancial do seu tempo às suas
obrigações privadas. Esse amadorismo também se manifestava na falta de um preparo
adequado para as tarefas requeridas pelo Código do Processo. Na medida em que o
Código estipulava que para diversos cargos não era necessária uma formação prévia, o
funcionário amador necessitava de um tempo maior no cargo para tomar contato com os
assuntos da Justiça.
É fundamental que percebamos o seguinte raciocínio: para Uruguai, o
funcionário amador, em razão desses elementos, é o mais propício a ser controlado
pelos indivíduos, que em razão dos seus recursos econômicos e políticos, buscam
influenciar o funcionamento da Justiça. Na sua reflexão, tornava-se imperioso deslocar
o funcionário encarregado da aplicação da Justiça das influências locais e colocá-lo na
órbita do Estado e do poder central. Transpor esse funcionário para a órbita do poder
central significava três aspectos: salário, treinamento prévio e a possibilidade de
deslocamento pelo território nacional. Ao submeter esse funcionário ao poder central,
obtinha-se a fidelidade na aplicação das leis uniformemente em todo o território
nacional, fugindo dos particularismos dos grupos locais.
Na nossa análise buscamos apontar para a coexistência de um outro tipo de
funcionário. Cargos importantes como o de delegado e o de subdelegado permaneciam
como uma moeda de troca em favor do poder local. Da mesma maneira, a fragilidade do
Estado no sentido de estender seus braços ficava manifesta quando observamos a
diminuta presença dos funcionários deste nos municípios e províncias (ver Carvalho,
1981, cap. 6).
Entretanto, a partir da análise efetuada no Capítulo 7, podemos retomar a famosa
metáfora do Visconde do Uruguai: o Estado brasileiro possui cabeça enorme e braços
curtos. A análise que empreendemos da reflexão de Uruguai apontava para um
movimento claro em direção à extensão desses braços e as características desse
funcionário encarregado de estender os braços da ordem ficaram claras. A persistência
380
desse tema no final da sua vida confere um sentido mais profundo. Assim, a formação
do Conselho administrativo provincial é um avanço nessa direção.
Dificilmente consideraríamos que o recurso aos personagens locais fosse o ponto
final da Reforma do Código do Processo pretendida por Uruguai. Na nossa
interpretação, eles se impõem como uma necessidade imperiosa dadas as dificuldades
de recursos do Estado. Pela análise que realizamos da sua reflexão não encontramos
elementos que nos digam que Uruguai entendesse essa situação como a ideal. O seu
retorno a esse tema, do funcionário assalariado, vinculado e passível de ser deslocado
pelo território, na discussão do contencioso provincial e do seu respectivo conselho,
apenas reforça os traços profissionais do funcionário encarregado de estender os braços
do Estado.
As análises mencionadas (Uricoechea, Franco e Schwartzman) apontavam para
essa dualidade presente no Estado Imperial. Nesse sentido, quando concordamos que
existia uma dualidade entre poder local e poder central consideramos que essa dualidade
estava em movimento e, que, a partir da reflexão de um dos políticos mais importantes
do Império, podemos apontar para o sentido do seu movimento.
O conceito de centralização ganha um sentido politicamente mais preciso.
Conforme observamos, centralizar significava juntar em um centro as partes ativas e
afastadas da nação (ver Moraes, 1844). No pensamento do Visconde do Uruguai, a
maneira pela qual estas partes deveriam ser reunidas apontava para o reforço do poder
central e de um funcionário com um determinado conjunto de características.
Na nossa análise da reflexão de Uruguai, esse funcionário era o veículo através
do qual a vontade nacional/interesse geral submeteria os interesses particulares ou
meramente provinciais. A abordagem deste tema nos remete para um dos aspectos
centrais da abordagem weberiana, qual seja, o Estado Imperial brasileiro teria
permanecido imune às teorias contratualistas e seus desdobramentos. Neste sentido, os
interesses províncias seriam bloqueados em favor da máquina administrativa. Na
mesma lógica, a liberdade negativa teria sido preterida em prol de um interesse geral do
Estado, que terminava por não garantir aos cidadãos a plena eficácia dos seus direitos.
Em resumo, direitos e interesses, sejam particulares, sejam provinciais, terminavam
castrados e o Estado Imperial girava longe do liberalismo do século XIX, sendo, antes, a
expressão da continuidade do patrimonialismo proveniente da colonização portuguesa.
Em outra perspectiva, a centralização teria terminado por solapar a liberdade
positiva (ver Mattos, 1994 e 1997) em favor de uma requalificação desta em prol do
381
reforço da distinção entre os três mundos. A liberdade e a igualdade não poderiam pôr
em perigo o exclusivismo agrário.
Quando analisamos, no Capítulo 5, o tema da civilização e do sertão pudemos
perceber a posição de Uruguai com relação aos homens pobre livres. As massas que
emergiram dos sertões, e, mesmo, das cidades, com a descentralização, eram marcadas
pelos traços sociais da barbárie. No pensamento político brasileiro do século XIX, e no
pensamento de Uruguai, a civilização era um conjunto de traços sociais que moldavam a
personalidade do indivíduo. Essas massas eram caracterizadas pela ausência ou pela
presença fraca desses traços. O exercício da liberdade por esses setores punha em
ameaça a construção da civilização no Brasil. Entretanto, como pudemos observar no
Capítulo 7, o exercício do poder judicial pelos grandes proprietários revelou-se, para
Uruguai, uma ameaça à paz interna e aos direitos dos cidadãos. Conforme observamos
no Capítulo 3, o pensamento federalista presente no Código do Processo buscava
construir o exercício da Justiça a partir da participação dos cidadãos ativos, o bem
público seria um obra de um interesse bem compreendido, e não de um agente externo.
Frente a tal movimento, Uruguai recuava, e apontava a ameaça à unidade interna de um
Império formado por regiões nas quais o interesse bem compreendido poderia ter livre
curso e por regiões marcadas pela barbárie, nas quais os homens pobres livres punham
em perigo a grande propriedade escravocrata, bem como grandes proprietários
utilizavam-se da lei como um instrumento de perseguição.
Se, por um lado, podemos marcar o recuo de Uruguai frente a essa liberdade, por
outro, podemos assinalar que sua crítica se desdobrava em outra direção. A
descentralização do Poder Judiciário envolvia outro aspecto. Nesse sentido, é
fundamental a compreensão do Ato Adicional. No Capítulo 4 analisamos o Ato
Adicional como o momento no qual as elites provinciais atacavam a descentralização
desencadeada pelo Código do Processo. Destacamos que homens como Alves Branco,
Limpo de Abreu e Tavares Bastos marcavam a impossibilidade de a liberdade ser
construída a partir do interesse bem compreendido. Os mecanismos descentralizadores
previstos pelo Código deveriam ser submetidos ao crivo do Legislativo provincial,
palco das elites provinciais. Conforme esses homens não se cansavam de dizer, os
mecanismos previstos no Código deveriam estar submetidos a um determinado nível de
civilização. Pórem, a corrente federalista não submete apenas as figuras eleitas, ou
escolhidas localmente, ao controle do Legislativo provincial, mas também o juiz de
direito, importante instrumento do poder central, e mais, as atribuições judiciais
382
previstas pelos Códigos nacionais poderiam ser adaptadas às circunstâncias locais;
adaptação essa feita pelo Legislativo provincial.
Com o Ato Adicional, a corrente federalista retomava a linha presente na
constituinte de 1823, interrompida pela Constituição outorgada. No Capítulo 2,
analisamos a formação da idéia de interesse provincial. Conforme observamos, para os
federalistas a província era administrada tal qual o cidadão ativo administra a economia
da sua casa, somente aceitando entrar no pacto federativo caso seus interesses
estivessem garantidos. Neste sentido, nomear para os cargos mais importantes do
aparelho de Estado era apenas uma das maneiras através das quais o interesse provincial
se manifestaria. Os federalistas projetavam para a esfera pública a mesma lógica
presente na esfera privada, os interesses racionalizam a intervenção política. O pacto
federativo seria o espaço no qual os diversos interesses provinciais estariam em ação
dentro de limites pacíficos.
Em 1834, a idéia de federação limpa das “arestas” confederativas retomava seu
caminho no debate político. Na formulação fundamental de Lino Coutinho, o pacto
federativo é um espaço regido pela mesma lógica do mercado, no qual algumas
províncias mais desenvolvidas serão mais beneficiadas, enquanto outras, como os
indivíduos, ficarão para trás. Essa lógica competitiva impulsionava o desenvolvimento
material e a liberdade.
Tendo efetuado a análise do Ato Adicional e do Código do Processo, pudemos
formular a seguinte questão: se a reflexão de Uruguai fosse movida apenas pelo ataque à
liberdade positiva, por que sua ação contra o Ato Adicional? Afinal, o Ato Adicional foi
voltado contra a liberdade de matriz norte-americana, na qual interesse e bem público
estão harmonizados, ou, em outras palavras, o Ato Adicional foi pensado contra a
liberdade positiva.
Quando analisamos a Lei de Interpretação, no Capítulo 6, apontamos a fala de
Teófilo Ottoni contra a Lei de Interpretação. Para o político mineiro, o Ato Adicional
era favorável às províncias mais civlizadas. Com a mesma lógica argumentava Tavares
Bastos, em 1870. Em resumo, o pacto federativo deve ser pensado como um modelo
que assegure a competição entre os interesses provinciais e, em especial, das províncias
mais desenvolvidas 9 . Entretanto, Uruguai caminhava em outra direção, retomando as
idéias formuladas na Constituinte de 1823 e sempre presentes ao longo do debate
9
A solução política de Alberto Sales é distinta, mas a lógica política é a mesma.
383
político, quais sejam: o pacto federativo não pode ser pensado apenas a partir dos
interesses das províncias mais civilizadas. Quando as forças políticas se voltam contra a
Lei de Interpretação e a Reforma do Código, a reflexão de Uruguai as chama de
interesses meramente provinciais em oposição à vontade nacional e, em outro
momento, interesses particulares contra a razão nacional. E nesse momento, a reflexão
de Uruguai operava em duas direções: uma, contra o pacto federativo pensado
exclusivamente como o espaço da competição; outra, contra o Estado como veículo dos
interesses particulares.
Na nossa interpretação as Bases..., o Ensaio... e os Estudos... se articulam e
aprofundam o movimento presente nos anos 30-40. Em nenhum momento Uruguai
pensava o Estado como um instrumento através do qual os setores subalternos iriam
abrir caminho de modo a diminuir a força da grande propriedade escravocrata. Essa
perspectiva não impedia sua reflexão de buscar estender os braços do Estado de maneira
a assegurar os direitos e deveres para com esse grupo social. A reflexão de Uruguai
assinalava que a unidade nacional não nasce dos interesses particulares nem provinciais,
seja porque eles não existam, seja porque o pacto federativo deva ser guiado pela idéia
de comunidade e de nação, e não de interesses particulares. Aqui um dos pontos que
procuramos assinalar: a compreensão do debate entre centralizadores e federalistas no
Brasil do século XIX deve ser feita a partir da análise da maneira pela qual esses grupos
pensaram a idéia de interesse provincial.
Nos anos 50-60, Uruguai assinalava que o fato que confere legitimidade à ação
do Estado não seria a lógica dos interesses particulares, mas o princípio do interesse
geral 10 . Esse interesse geral, na reflexão de Uruguai, não encontrava um ator como em
Guizot (classes moyens), ou mesmo em Justiniano José da Rocha (ricos proprietários
do interior) (Carvalho, 2002:38-45). Não porque a reflexão desse autor não enxergasse
os interesses e seu papel na civilização moderna, mas porque torná-los o fim último da
ação estatal era, para ele, um equívoco. Nesse sentido, para Uruguai os interesses devem
ser capturados pelo poder central, o qual se torna o ator privilegiado do interesse geral.
Tendo essa idéia em mente, pudemos deslocar nossa atenção para o tema da
liberdade. O movimento da reflexão de Uruguai não caminhava em direção à esfera da
liberdade negativa. Ao contrário, essa esfera, com seu conjunto de direitos e interesses,
10
Se quisermos um ponto de partida para pensarmos a emergência do tema da vontade nacional no
pensamento republicano, poderíamos tomar como ponto de partida a presença da idéia de interesse geral
no monarquista Uruguai.
384
é invadida pelo Estado, que só é legítimo enquanto portador do interesse geral. Os
interesses e direitos devem ser retirados da sua dinâmica natural e transpostos para as
necessidades do bem público. Nesse sentido, não estamos nem na esfera da liberdade
negativa, nem na esfera da liberdade positiva. No que diz respeito ao tema da liberdade
positiva, não se tratava apenas da recusa em incorporar todos os setores à produção de
governo, mas também porque o autor intencionalmente reconhece e opera a partir da
idéia de interesses e direitos do indivíduo. A expansão do aparelho judiciário, nos
moldes da Reforma do Código e o Conselho administrativo provincial, estão referidos
aos direitos do indivíduo. Neste sentido, o pensamento de Uruguai não pode ser
apreendido a partir da armadilha estabelecida por Berlin.
Trata-se de pensar num outro conceito de liberdade, que nos permita analisar um
autor, que, ao conceber a dimensão da produção do bem público não como uma
agregação de interesses particulares, não seja automaticamente transferido para a
liberdade dos antigos (ver Cardoso, 2004, Vianna, 2002, Werneck Vianna e Carvalho,
M. A., 2004). A reflexão de Uruguai pode ser melhor interpretada quando percebemos
que, para o autor, o exercício da liberdade como que possuía uma dimensão coletiva
ligada à nação e ao interesse geral. Entretanto, partindo desse outro conceito de
liberdade, podemos perceber a ausência do tema-chave da autonomia do sujeito da ação.
Não se trata apenas de apontar o pertencimento de Uruguai ao liberalismo do século
XIX, para o qual os direitos políticos não são universais. A questão central, na nossa
visão, diz respeito à perspectiva desse autor segundo a qual somente o Estado vem a ser
o ator do interesse geral, não há exercício da liberdade fora do Estado, apenas interesses
egoístas. Isto, por outro lado, impede a construção de um espaço público que dê vazão
aos conflitos existentes entre as diversas concepções de interesse geral (ver Cardoso,
2004:39).
Tomamos como idéia geral, capaz de elucidar sua reflexão, a perspectiva de que
o poder central civiliza. Nesse momento, podemos formular essa idéia: para Uruguai o
poder central civiliza quando introduz o funcionário da justiça nomeado pelo poder
central, dotado de salário e de treinamento e passível de ser deslocado; mas, civiliza,
também, em outra direção, quando desloca os interesses provinciais e particulares da
sua dinâmica natural. E os força a pensar numa dimensão marcada pela precedência do
interesse geral e da nação.
385
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