A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX
Norbert Elias
>>> Introdução
>>> Mudanças nos padrões europeus
de comportamento no século XX Norbert Elias – testemunha ocular da “ascensão do nacional- socialismo e, por consequência, também a guerra, os campos de concentração e o desmembramento da Alemanha (...)”
Núcleo das considerações:
“tentativa de destrinchar desenvolvimentos no habitus nacional alemão que possibilitaram o violento surto descivilizador da época de Hitler, e apurar as conexões entre eles e o processo a longo prazo de formação do Estado na Alemanha”.
Autodistanciamento para a percepção das peculiaridades do
habitus da própria nação.
*Habitus – Para Elias, “segunda natureza” ou “saber social
incorporado”. O habitus nacional de um povo não é biologicamente fixado, está vinculado ao processo particular de formação do Estado a que foi submetido e muda ao longo do tempo. 4 significantes processos parciais entrelaçados para entender o habitus alemão
Primeiro – localização e língua
> Encravados entre povos de línguas latinas e eslavas, esses grupos lutaram por mais de mil anos em defesa de suas fronteiras. > Influenciou a formação do Estado alemão: levou a uma constante separação do centro das regiões localizadas na periferia.
Segundo – confrontos de eliminação e tentativas de
recuperação > Unidades sociais que perderam posição de superioridade necessitam de muito tempo para se renderem a nova realidade. > Fase de pesar e lamentação pela grandeza perdida: imperadores medievais como símbolos de uma Grande Alemanha e aspiração à supremacia na Europa. Fase medieval e o atraso da formação do Estado alemão
> Monarquia absoluta / príncipes regionais
> Guerra dos Trinta Anos – série de conflitos por rivalidades
religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais, que ocorreram na Alemanha seiscentista. Empobrecimento, pilhagem, eliminação de cerca de um terço da população alemã.
Para França, Inglaterra e Holanda, o século XVII foi de grande
desenvolvimento cultural e pacificação. Para a Alemanha, empobrecimento cultural e crescente brutalidade entre as pessoas.
Uso excessivo de bebida e disciplina na embriaguez: transe
social ligado à infelicidade.
A fraqueza relativa do Estado alemão, comparado aos outros,
acarretam crises específicas para as pessoas envolvidas: perigos físicos, dúvidas relativas a valores, humilhação, desejo de vingança. > Sacro Império Romano da Nação Germânica – pretensões imperiais de hegemonia e temor do Estados não-germânicos, resultando em contra-ofensivas constantes. > Guerras dentro do território entre Prússia e Áustria no século XVIII. > Invasões das tropas de Napoleão no século XIX: reafirmada a fraqueza da Alemanha comparada aos Estados vizinhos. > Reação alemã: conduta militar e ações bélicas respeitadas e idealizadas. > Vitória contra a França em 1870-71. > Nova derrota em 1918 (I Guerra Mundial): ponto sensível no habitus alemão, representa o regresso ao tempo de fraqueza. > Desejo de melhores chances de vitória - Ascensão de Hitler como mobilizador popular. Terceiro – rupturas e descontinuidades no desenvolvimento do Estado > Capitais: Berlim, uma capital “jovem”. > Pouca influência da tradição medieval de cidades autogovernadas – comparação com o caso dos Países Baixos (Estados-Gerais) > Na Alemanha, monarquias absolutas muito centralizadas e aristocracia de corte (que incorporou a antiga nobreza guerreira) aboliu os começos de autogoverno parlamentar que surgiam nas cidades. > Holanda e a relação entre os mercadores e nobres nas cidades autogovernadas. > Mercadores urbanos / nobreza militar: habitus diferentes > holandês: influência mútua e negociação / alemão: comando e obediência. “os holandeses permitem a seus filhos mais liberdade que os alemães” “as crianças holandesas são mais travessas” > Burguesia: cultivo da desigualdade por padrões não militares. Decoro e reservada cordialidade (comportamento especial). “um holandês não faria isso” (status social e obrigação) Quarto – classes médias alemãs nos modelos militares > Período clássico na literatura e filosofia: antagonismo entre classe média e nobreza de corte (classe média praticamente impedida de acesso à atividade política e militar) > No século XIX, projetos pacíficos da classe média para unificação da Alemanha fracassa. O projeto militar prussiano é bem-sucedido (1871). Vitória da nobreza sobre a classe média. > Necessidade de industrialização e modernização vs. Subordinação dos industriais burgueses donos do capital à nobreza militar e burocrática > Capitulação da classe média à aristocracia: burgueses apropriaram-se do estilo de vida da nobreza militar. > Vulgarização de modelos aristocráticos: a classe média não dispunha do constrangimento de uma herança civilizadora profundamente inculcada para entender os limites práticos dos modelos aristocráticos → Uso descontrolado do poder e da violência Após as duas Guerras Mundiais > Interdependência global das nações: situação econômica da Alemanha > A imagem dos alemães manchada pela lembrança nazista durante gerações: “um indivíduo é sempre membro de grupos, (…) é-lhe atribuída responsabilidade conjunta pelas ações do grupo”. > A questão do orgulho nacional: um ponto sensível na estrutura da personalidade de um povo. “Os destinos de uma nação cristalizam-se em instituições que têm a responsabilidade de assegurar que as pessoas mais diferentes de uma sociedade adquiram as mesmas características, possuam o mesmo habitus nacional.” > Duelo: origem na cultura internacional dos nobres, perdeu o significado nos outros países com a ascensão da classe média. > Na Alemanha, o duelo foi uma instituição que influenciou a formação do habitus depois de 1871. > Difundido entre oficiais e estudantes não-aristocráticos, acostumados a ordens hierárquicas (desigualdade entre as pessoas). > Incentivo socialmente regulamentado à violência. “Se perguntarmos como Hitler foi possível, não podemos deixar de concluir que a propagação de modelos de violência socialmente sancionados e da desigualdade social estão entre os requisitos preliminares do seu advento.” Questão central: Como os destinos e experiências de uma nação ao longo dos séculos vêm a ficar sedimentados no habitus social de seu povo. > Comparação entre neuroses individuais e perturbações sociais “(...) os problemas contemporâneos de um grupo são crucialmente influenciados por seus êxitos e fracassos anteriores, pelas origens ignotas de seu desenvolvimento.” > O conhecimento do passado e o entendimento do desenvolvimento social também são de uso direto para construir um futuro comum, uma nova compreensão de si mesmo. Civilização e Informalização Mudança nos padrões europeus de comportamento no século XX
Cinco aspectos de mudanças estruturais da sociedade que
influenciaram as mudanças comportamentais
1) O produto nacional bruto da maioria dos países europeus
cresceu a enormes taxas no século XX. > Solução de velhos problemas: queda da fome, melhores condições de trabalho, segurança física (dada a extinção de conflitos dentro das fronteiras dos Estados). 2) Movimentos de emancipação do século XX > Alterar o equilíbrio de poder entre grupos estabelecidos e grupos marginais. > Alemanha: relações da classe média (grupo marginal de grande mobilidade ascendente) com a aristocracia (antigo detentor do poder) → Desaparecimento do establishment anterior. 3) Movimentos de emancipação que reduziram o gradiente de poder entre grupos mais fortes e mais fracos > Relações entre homens e mulheres; gerações mais velhas e mais jovens; sociedades europeias e o resto do mundo; governantes e governados. 4) Consequente sentimento geral de instabilidade > Incerteza de status: códigos convencionais de comportamento hierárquico deixam de corresponder às relações reais entre os membros da sociedade. > Cresce também o problema da identidade social, dado ritmo acelerado de mudanças. 5) Mudança na formação de consciência no século XX > As questões relativas às proporções de poder colocadas à atenção consciente das pessoas > Questões como a fome, problema que constantemente ressurge, deixaram de ser aceitas como condições determinadas por Deus, por exemplo.
“As mudanças em códigos de comportamento de que vou
ocupar-me estão inseparavelmente entretecidas com maciças mudanças estruturais nas sociedades em questão.” Caso apresentado: carta redigida pelo pai de Mozart ao arcebispo no século XVIII (governado/governante). > Utilização da linguagem: o cerimonial a que a pessoa de categoria inferior era forçada a obedecer, refletia o gradiente de poder → Devia expor constantemente sua posição de submissão. > Havia, porém, em outras áreas da mesma sociedade, códigos de comportamento baseados em uma ampla informalidade → Quando se encontravam no convívio do grupo social a que pertenciam. Em todas as sociedades existem categorias de situações em que o código social exige formalidade de conduta ou um grau mais ou menos elevado de informalidade. > Para Elias, o que deve ser sociologicamente apurado é o gradiente sincrônico entre formalidade e informalidade. > As pessoas estão repartidas entre áreas formais e informais da vida social. > Segundo Elias, a dimensão formalidade-informalidade nos mais avançados Estados industriais era relativamente pequena, e entre os mais jovens, ainda menor. > Na Alemanha, ela aumentou no período nazista e declinou consideravelmente nos anos pós-guerra → Gerações nascidas após a guerra empenharam-se mais em demolir a formalidade de comportamento, mas ao mesmo tempo se diminuía o espaço para a informalidade. Tendência para o mesmo comportamento em todas as situações. > O abrandamento da conduta formal ultrapassou o círculo dos jovens. Ex.: Saudações em cartas de rotina. > Relação com os impulsos no sentido de diminuir gradiente de poder entre governantes e governados, por exemplo. > O código de comportamento e sentimento nas sociedades não é um todo unificado: a estrutura muda no decorrer do desenvolvimento do Estado. > O seu desenvolvimento numa direção específica é um aspecto do processo civilizador. Processos civilizadores e os surtos de informalização ocorridos após a I e II Guerras Mundiais. > Redução do problema-chave de qualquer processo civilizador: como as pessoas conseguem satisfazer suas necessidades animalescas sem humilhar ou causar dano aos outros. > Consciência cada vez maior que os padrões de vida humana são diversos e mutáveis. > As pessoas puderam explicar as mudanças não planejadas e planejar mudanças futuras.
Coações: elemento central da questão da civilização
a) Coações impostas pelas características da natureza animal: fome, impulso sexual, morte, afeição... b) Coações decorrentes de circunstâncias naturais não-humanas: busca por alimentos, necessidade de abrigo... c) Coações exercidas mutuamente pelas pessoas (coações externas ou sociais): uma família vivendo junto numa casa, nós vivendo com milhares de pessoas no âmbito municipal... d) Coações de autocontrole ou autocoação: são realizadas através da aprendizagem e da experiência, e mudam ao longo do processo de desenvolvimento humano (razão, consciência). . > As coações da natureza humana são as mesmas, com poucas variações, em todas as fases do desenvolvimento humano. > Já os padrões de autocoação, que se desenvolvem como resultado de experiências diferentes, são bem distintos. > Relações entre coações externas (sociais) e autocoações em sociedades em etapas diferentes ou diferentes sociedades na mesma etapa de desenvolvimento. > Elias defende que não existe sociedade que reprima os impulsos animais apenas pela coação externa (medo, pressão dos outros). > Em geral, um padrão de autocoação é formado através de coações externas durante a infância. > Em sociedades mais simples e nas agrárias, o padrão de autocontrole é fraco, o que requer reforço através de coações externas diretas. > É importante para garantir a integridade e sobrevivência das pessoas. > Característica dos processos civilizadores: mudança na relação entre coações sociais externas e autocoações individuais. > Caso apresentado: a criança que apanha do pai após uma travessura → autocoação pouco desenvolvida, coibição do comportamento dependente da ameaça de outros. > Transposição para sistemas políticos: Um Estado absolutista, governado de cima para baixo, desenvolve estruturas sociais de baixa autocoação, permanecendo na dependência de coação externa (ameaça e força punitiva). Um regime não- absolutista e multipartite requer um mecanismo mais forte de autocoação. > Em suma, no decorrer do processo civilizador, o mecanismo de autocoação torna-se mais forte do que as coações externas. E torna-se mais uniforme e abrangente também. > Sentimento envolvente de vergonha: desenvolvimento de um grau elevado de auto-contenção no trato com todas as pessoas. Surto de informalização observado nas relações homens/mulheres e gerações mais velhas/mais jovens > Antes da Primeira Guerra, a maioria dos estudantes alemães provinha das prósperas classes médias e se organizavam em confrarias enfaticamente hierarquizadas. > O calouro de uma confraria aprendia com seu patrono as regras da boa conduta em relação às senhoritas, assim como os cerimoniais da taverna e do duelo. > Eles distinguiam dois tipos de mulheres: a da mesma classe social, com quem podiam casar-se e tinham um código de conduta estabelecido e formalizado para o contato; e as moças de classes sociais mais baixas, com quem só poderiam ter um caso. > A emancipação das mulheres abriu as portas da universidade para elas como pessoas com aproximadamente os mesmos direitos dos homens. > O ritual convencional que regulava a relação homem/mulher perdeu boa parte da função. > Esse código de comportamento era uma coação externa, que servia de apoio a pessoas com fraco mecanismo de autocoação, por exemplo. > Individualização do processo de formação de pares: a informalização traz maior exigência do mecanismo de autocoação, experimentação e insegurança estrutural. “O exemplo das relações entre os sexos mostra até que ponto o colapso de um tradicional e mais antigo código de conduta e sentimento está intimamente ligado a uma mudança no equilíbrio de forças entre os grupos sociais cujas relações eram socialmente reguladas pelo código.” > As confrarias do período anterior à I Guerra Mundial inculcavam atitudes de dominação e subordinação na relação calouro / patrono → Ex.: regras para beber em tavernas. > Após a II Guerra Mundial, comportamento enfaticamente igualitário da juventude → Ex.: uso do padrão informal “tu” para referir-se a um professor. > Antes da I Guerra Mundial, a maioria dos universitários vinha da classe média abastada e os pais bancavam todos os seus custos. Após a II Guerra Mundial, houve uma tendência de diversificação: trabalhadores, autônomos, servidores públicos... > A criação de bolsas pelo Estado desempenhou um importante papel na emancipação dos mais jovens. > Confrarias declinaram: impulso em direção à individualização “Não tivemos nada a ver com isso” > Desconfiança generalizada dos estudantes com relação às gerações mais velhas: culpa não articulada pelos acontecimentos da era nazista > Autoridades não reconhecidas pelos estudantes > Surgimento de grupos que desejavam libertar-se das coações sociais: a vida em conjunto impõe sempre coações recíprocas > 1960 e 1970: excessivas esperanças e expectativas não concretizadas → o desenvolvimento social não retrocedeu, os sonhos não foram totalmente realizados, mas a distribuição de poder ficou menos desigual → Ex.: mulheres jovens e solteiras no início do século XX e depois. > Essas mudanças no código social não devem ser vistas como descivilizadoras ou como um relaxamento do código de comportamento → Trata-se de uma transferência da decisão e regulação de um âmbito externo (família, religião...) para auto- regulação, individualização.