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Um Bom Homem
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E Difícil de Encontrar
e Outras Histórias
Relógio D'Água Editores
Rua Sylvio Rebelo, n.º 15
1000-282 Lisboa
tel.: 218 474 450
fax: 218 470 775
relogiodagua@relogiodagua.pt
www.relogiodagua.pt
ISBN 978-989-641-537-2
Um Bom Homem
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E Difícil de Encontrar
e Outras Histórias
Tradução de
Paulo Faria
Ficções
Para Sally e Robert Fitzgerald
Índice
Notas 225
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Um B om Homem É Difícil de Encontrar
A avó não queria ir para a Florida. Queria visitar uns parentes seus
no leste do Tennessee, e não perdia uma oportunidade de convencer
Bailey a mudar de ideias . Bailey era o filho com quem ela morava, o
seu único rapaz . Estava sentado no bordo da sua cadeira, à mesa, cur
vado sobre o caderno de desporto cor de laranja do Atlanta J ournal.
- Olha para isto , Bailey - disse ela - , repara bem, lê isto . - E, ali
parada com uma mão fincada na anca magra, segurava o jornal com a
outra, fazendo-o crepitar junto à cabeça calva do filho . - Um tipo que
diz chamar-se Pária fugiu da Penitenciária Federal e vai a caminho da
Florida, e lê só aqui o que ele fez a estas pessoas . Lê só, se fazes favor.
Eu cá é que não levava os meus filhos para as bandas onde andasse um
criminoso assim à solta. Nem ficava de bem com a minha consciência,
se o fizesse .
Como Bailey não ergueu os olhos da sua leitura, ela deu meia
-volta e encarou a mãe das crianças , uma jovem de calças , rosto largo
e inocente que nem uma couve , um lenço verde amarrado à cabeça
com duas pontas a assomar no alto , quais orelhas de coelho . Sentada
no sofá, com um boião de damascos na mão, ia dando de comer ao
bebé. - Os miúdos já conhecem a Florida - prosseguiu a idosa.
- Vocês deviam de os levar a outros lados , que é para variar, para
eles verem lugares diferentes e lhes abrir os horizontes . Eles nunca
'tiveram no leste do Tennessee .
A mãe das crianças pareceu não a ouvir, mas o rapazito de oito
anos , John Wesley, um garoto entroncado, de óculos , interveio: - Se
a avó não quer ir até à Florida, porque é que não fica em casa? - Ele
12 Flannery O ' Connor
acidente , quem quer que a visse morta na estrada saberia logo que ela
era uma senhora como deve ser.
Disse que lhe parecia que aquele ia ser um bom dia para viajar
de automóvel , nem demasiado quente nem demasiado frio, e avisou
Bailey de que o limite de velocidade era de noventa quilómetros por
hora e de que os polícias de trânsito se escondiam atrás dos painéis
publicitários e das pequenas manchas de árvores, de onde saíam na
mecha atrás dos carros antes que estes pudessem abrandar. Apontou
pormenores interessantes da paisagem: a Stone Mountain; os maci
ços de granito azul que, em certos lugares , assomavam de ambos os
lados da estrada; os taludes de argila vermelha a cintilar, ligeiramente
raiados de púrpura; e as várias culturas que formavam fiadas de ren
dilhado verde sobre os terrenos . As árvores estavam repletas da luz
branca do Sol , em tons de prata, e até as mais humildes refulgiam. Os
dois garotos liam revistas de banda desenhada, e a mãe deles tomara
a adormecer.
- Toca a atravessar a Geórgia depressa, que é para não termos de
olhar muito para esta terra - pediu John Wesley.
- Se eu tivesse a tua idade - acudiu a avó - , não falava nesses
termos do meu estado natal . O Tennessee tem as montanhas e a Geór
gia tem as colinas .
- O Tennessee é uma lixeira cheia de parolos , mais nada - re
torquiu John Wesley - , e a Geórgia também é uma bela porcaria de
estado .
- Nem mais - concordou June Star.
- No meu tempo - tomou a avó, entrelaçando os dedos magros ,
de veias salientes - , os meninos mostravam mais respeito pelo es
tado onde tinham nascido e pelos pais e por tudo o resto . Naquele
tempo, as pessoas tinham tento na língua. Ai, vejam só aquele preti
nho pequerruchinho além ! - exclamou, e apontou para uma criança
negra, parada à porta de uma choupana. - Digam lá que não dava um
quadro bonito, bem? - perguntou , e todos voltaram a cabeça e olha
ram para o negrito pelo vidro traseiro . Ele acenou-lhes com a mão .
- Ele não tinha calças - comentou June Star.
- Provavelmente, não tem calças para vestir - explicou a avó .
- Os pretinhos destas terras não têm coisas assim como nós . Se eu
soubesse pintar, pintava aquele quadro - declarou .
14 Flannery O ' Connor
mas June Star não achou que fosse grande coisa. Disse que nunca se
casaria com um homem só por ele lhe levar uma melancia todos os
sábados . A avó respondeu que teria feito muito bem em casar-se com
Mr. Teagarden, porque ele era um cavalheiro como deve ser e com
prara ações da Coca-Cola mal a companhia apareceu e tinha morrido
havia poucos anos , muito , muito rico .
Pararam na Torre para comer bifanas e pregos no pão . A Torre,
uma construção com algumas paredes de estuque e outras de madei
ra, era uma bomba de gasolina e salão de baile situado numa clareira,
nos arrabaldes de Timothy. O dono era um homem obeso chamado
Red S ammy Butts , e havia letreiros pregados aqui e além no edifício
e na berma da estrada, ao longo de quilómetros e quilómetros num e
noutro sentido , anunciando: EXPERIMENTE o FAMOSO CHURRASCO
DO RED SAMMY. O FAMOSO RED SAMMY É O MAIOR! RED SAM! O
GORDUCHO COM O SEU RISO ALEGRE. UM VETERANO DA GUER
RA! NÃ O HÁ COMO O RED SAMMY!
Red S ammy estava estendido na terra, diante da Torre , com a cabe
ça enfiada debaixo de uma camioneta, enquanto um macaco cinzen
to dos seus trinta centímetros de altura, acorrentado a uma pequena
amargoseira, ululava ali perto . Assim que viu os garotos a saltar do
carro e a correr ao seu encontro , o macaco precipitou-se para a árvore
e trepou até ao ramo mais alto .
O interior da Torre era formado por uma sala comprida e escura,
com um balcão numa ponta e mesas na outra, e uma pista de dança
no meio . Sentaram-se todos em volta de uma mesa de tábuas , junto à
jukebox, e a mulher de Red Sam, uma mulher alta e de pele tisnada,
com o cabelo e os olhos mais claros do que a pele, aproximou-se
e anotou o pedido deles . A mãe das crianças meteu uma moeda de
dez cêntimos na máquina e pôs a tocar The Tennessee Waltz , e a avó
comentou que aquela melodia lhe dava sempre vontade de dançar.
Perguntou a Bailey se ele queria dançar, mas ele limitou-se a fuzilá-la
com os olhos . Não possuía um temperamento naturalmente radioso ,
como o dela, e as viagens enervavam-no bastante . A avó tinha os
olhos castanhos a brilhar imenso . Meneou a cabeça de um lado pa
ra o outro e fez de conta que estava a dançar na cadeira. June Star
pediu uma música que desse para dançar sapateado , e então a mãe
das crianças meteu outra moeda na máquina e escolheu uma melodia
16 Flannery O ' Connor
rápida, e June Star foi para o meio da pista de dança e executou o seu
número de sapateado .
- É bem engraçada, a cachopa - comentou a mulher de Red
Sam, debruçando-se sobre o balcão . - Queres vir morar com a gente
e ser a minha filhinha?
- Não , nem pensar nisso - retorquiu June Star. - Nem que me
dessem um milhão de dólares eu morava nesta casa a cair de podre !
- e fugiu a correr para junto da mesa.
- É bem engraçada, a cachopa - repetiu a mulher, fazendo com
os lábios um esgar delicado .
- Não tens vergonha? - sibilou a avó .
Red Sam entrou e ordenou à mulher que se despachasse a prepa
rar a comida para aqueles fregueses , em vez de estar ali a fazer cera
ao balcão . As calças de caqui chegavam-lhe somente aos ossos das
ancas , e a barriga pendia-lhe sobre elas que nem uma saca de ração a
baloiçar-lhe por baixo da camisa. Acercou-se deles , sentou-se numa
mesa ali próxima e soltou uma mescla de suspiro e gorjeio esgani
çado . - Não há nada a fazer - atirou . - Não há nada a fazer - e
limpou o rosto vermelhusco e transpirado com um lenço cinzento . -
Nos tempos que correm, uma pessoa não sabe em quem há de confiar
- prosseguiu . - Não é verdade?
- As pessoas não são simpáticas como eram dantes , sem dúvida
- acudiu a avó .
- Na semana passada, vieram até cá dois fulanos - contou Red
S ammy - num Chrysler. O carro era velho e ' tava cheio de amol
gadelas , mas era uma bela máquina, e os homens pareciam-me tipos
como deve de ser. Disseram-me que trabalhavam na fábrica, e sabe
que mais, deixei-os ficar a dever a gasolina que meteram no depósito,
acredita? Ora bem, porque é que eu fiz uma coisa assim?
- Porque o senhor é um bom homem ! - declarou a avó de ime
diato.
- Pois , deve de ser por isso - comentou Red Sam, como se aque
la resposta o tivesse impressionado .
A mulher trouxe a comida, transportando os pratos todos de uma
só vez , sem tabuleiro , dois em cada mão e o quinto equilibrado em
cima do braço . - Não há uma só pessoa neste mundo verdejante
de Deus em quem a gente possa confiar - interveio . - E não há
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 17
Atrás deles , a fiada dos bosques surgia, biante , qual boca escura e
muito aberta. - Venham cá - ordenou a mãe das crianças .
- Ouçam lá - começou Bailey subitamente - , nós 'tamos meti
dos num sarilho ! Nós 'tamos . . .
A avó soltou um guincho . Levantou-se com gestos precipitados e
ficou a olhar fixamente . - Você é o Páriaf - exclamou . - Reco
nheci-o logo !
- Nem mais - retorquiu o homem, sorrindo ao de leve como se,
apesar de tudo , lhe agradasse ser reconhecido - , mas olhe que havia
de ter sido melhor pra vocês todos , m'nha senhora, se não me tivesse
arreconhecido .
Bailey virou a cabeça num movimento brusco e repreendeu a mãe
com uma frase que chocou toda a gente , até os garotos. A idosa co
meçou a chorar, e o Pária corou .
- M'nha senhora - disse - , não se apoquente . Às vezes , um
homem diz coisas sem pensar. Não me parece que ele quisesse falar
consigo daquele jeito .
- Você não era capaz de dar um tiro numa senhora, pois não?
- suplicou a avó , e, tirando um lenço limpo do canhão da manga,
começou a dar pancadinhas nos olhos com o tecido .
O Pária cravou a biqueira do sapato no chão e escavou ali um bura
quinho e depois tornou a tapá-lo . - Não era coisa que me agradasse
- disse .
- Escute - a avó estava quase a gritar - , eu sei que você é um
bom homem. Olha-se para você e vê-se logo que não é de baixa ex
tração . De certeza que vem duma farm1ia como deve de ser!
- Sim, m'nha senhora - retorquiu ele - , uma família como não
há outra no mundo. - Ao sorrir, mostrou uma fiada de dentes fortes e
brancos . - Deus não criou mulher mais pura do que a minha mãe , e
o meu paizinho tinha um coração de ouro, ouro puro - prosseguiu. O
rapaz da camisola vermelha contornara-os e estava agora parado atrás
deles , com a arma à altura da anca. O Pária acocorou-se. - Vigia-me
essas criancinhas , Bobby Lee - ordenou . - Sabes bem que elas me
deixam nervoso . - Olhou para os seis membros da farm1ia ali aninha
dos na sua frente e pareceu embaraçado , como se não lhe ocorresse na
da para dizer. - Não há uma só nuvem no céu - notou , olhando para
o alto. - Não se vê o Sol, mas também não se vê nuvem nenhuma.
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 23
lhor - comentou ela - , mas esta vai ser a última vez este ano que
vai poder haver pregações no rio . Limpa o nariz , docinho .
Ele fez menção de passar a manga do casaco sobre o nariz , mas ela
deteve-o. - Isso não é bonito - repreendeu-o . - Onde é que 'tá o
teu lenço?
Ele meteu as mãos nos bolsos e fez de conta que o procurava en
quanto ela esperava. - Certas pessoas mandam uma criança sair de
casa de qualquer maneira - murmurou ela, fitando o próprio reflexo
na vidraça da cafetaria. - É preciso cuidar dos outros . - Tirou do
bolso um lenço às flores vermelho e azul e curvou-se e começou a
tratar-lhe do nariz. - Agora assopra com força - ordenou , e ele
soprou . - Eu empresto-te esse lenço . Guarda-o no bolso .
Ele dobrou-o e guardou-o cuidadosamente no bolso , e caminha
ram os dois até à esquina e encostaram-se à parede de uma mercearia
fechada para esperar pelo elétrico . Mrs . Connin levantou a gola do
casaco para que esta lhe chegasse ao chapéu , na nuca. As pálpebras
começaram a descair-lhe , e ela parecia prestes a adormecer contra a
parede . O rapazito apertou-lhe ligeiramente a mão .
- Como é que te chamas? - perguntou ela em voz sonolenta. -
Só sei o teu apelido , mais nada. Devia de ter perguntado o teu nome
próprio .
O nome dele era Harry Ashfield, e nunca antes lhe ocorrera mudá
-lo . - Bevel - respondeu .
Mrs . Connin desencostou-se da parede , endireitando-se . - Ho
messa, olha que grande concidença ! - exclamou . - Eu disse-te que
é assim que se chama o tal pregador !
- Bevel - repetiu ele .
Ela ficou a olhá-lo de alto , como se ele se houvesse convertido
num prodígio aos seus olhos. - Vou ter de arranjar modo de tu te en
contrares com ele hoje mesmo - disse . - Ele não é nenhum prega
dor como os outros . Ele cura maleitas . Não pôde valer a Mr. Connin,
ainda assim. Mr. Connin não tinha fé , mas disse que não se ralava de
experimentar tudo uma vez . Tinha um aperto na tripa.
O carro elétrico surgiu como uma mancha amarela ao fundo da rua
deserta.
- Agora ' tá internado no hospital público - continuou ela - e
tiraram-lhe um terço do estômago . Eu digo-lhe que deve de agrade-
32 Flannery O 'Connor
cer a Jesus pelo que ainda lhe sobrou , mas ele diz que não agradece
nada a ninguém. Palavra de honra - murmurou . - Bevel !
Aproximaram-se dos carris para esperar. - Acha que ele me vai
curar? - perguntou ele .
- O que é que tu tens?
- Tenho fome - acabou ele por se decidir.
- Não comeste o teu pequeno-almoço?
- Àquela hora, ainda não tinha tido tempo de ficar com fome -
respondeu ele .
- Bom, quando chegarmos a casa comemos os dois qualquer coi
sa - disse ela. - Eu também já tenho uma certa fominha.
Subiram para o elétrico e sentaram-se dois ou três bancos atrás
do guarda-freio , e Mrs . Connin pegou em Bevel e sentou-o ao colo .
- Agora, porta-te com jeitinho - disse - e deixa-me dormir um
pedaço . Não saias do meu colo , ouviste? - Recostou a cabeça no
banco e , sob o olhar dele , os olhos dela fecharam-se gradualmente e
a boca abriu-se-lhe para exibir alguns dentes , não muitos , compridos
e dispersos , alguns de ouro , outros mais escuros do que o rosto dela;
começou a assobiar e a ofegar como um esqueleto melodioso . Não
estava ninguém no elétrico , à parte eles os dois e o guarda-freio , e,
quando ele viu que ela adormecera, tirou do bolso o lenço de assoar
florido e desdobrou-o e examinou-o com cuidado . Em seguida, tor
nou a dobrá-lo e fez correr o fecho para abrir um compartimento no
forro do casaco e escondeu ali o lenço e, pouco depois , ele próprio
adormeceu .
A casa dela ficava a oitocentos metros do terminal da linha do elé
trico , um pouco recuada em relação à rua. Era feita de tijolo cor de
papel pardo , com um alpendre a toda a largura da fachada e telhado
de zinco . No alpendre estavam três rapazitos de diferentes idades ,
com rostos sardentos parecidos , e uma rapariga alta, o cabelo preso
com imensos rolos de alumínio , tantos que cintilava como o telhado .
Os três rapazes seguiram-nos para dentro de casa e cercaram Bevel .
Olharam-no em silêncio , sem um sorriso.
- Este é o Bevel - anunciou Mrs . Connin, despindo o casaco . -
Por concidença, tem o mesmo nome do pregador. Estes rapazes são
o J. C . , o Spivey e o Sinclair, e aquela além, no alpendre , é a Sarah
Mildred. Tira esse casaco e pendura-o aos pés da cama, Bevel .
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 33
Ocorreu-lhe que desta vez tivera sorte por eles terem arranjado Mrs .
Connin, que o levara a passar o dia fora, em vez de uma das amas do
costume , que se limitavam a ficar umas horas lá a casa ou que iam
com ele até ao parque . Uma pessoa descobria mais coisas quando saía
do lugar onde vivia. Naquela manhã, descobrira já que fora criado por
um carpinteiro chamado Jesus Cristo . Antes� julgava que tinha sido
um médico chamado Sladewall , um gordo de bigode loiro que lhe
dava injeções e que achava que ele se chamava Herbert, mas isto era
uma brincadeira, de certeza. Brincavam imenso, lá na casa dele . Se ele
tivesse pensado antes no assunto , teria concluído que Jesus era uma
expressão como «ah» ou «raios partam» ou «valha-me Deus» , ou tal
vez alguém que em tempos tivesse ludibriado os pais dele , privando
-os de qualquer coisa. Quando perguntou a Mrs . Connin quem era
o homem vestido com o lençol , na estampa por cima da cama dela,
ela fitou-o durante um certo tempo , de boca aberta. Depois disse: -
É Jesus - e continuou a olhar fixamente para ele .
Escassos minutos depois , levantou-se e foi à outra divisão buscar
um livro . - Vê aqui - disse , abrindo a capa - , este livro pertencia
à minha bisavó . Não o dava a ninguém nem por nada neste mundo. -
Fez correr o dedo sob alguns dizeres castanhos numa página mancha
da. - Emma Stevens Oakley, 1 832 - leu. - É uma perciosidade, não
achas? E tudo o que aqui 'tá escrito é a verdade verdadinha. - Voltou
a página e leu-lhe o título: - «A Vida de Jesus Cristo para Leitores
com Menos de Doze Anos .» - Em seguida, leu-lhe o livro.
Era um livro pequeno , castanho-claro por fora, com bordos doura
dos e cheiro a betume velho . Tinha imensos desenhos , um em que o
carpinteiro expulsava uma vara de porcos de dentro de um homem.
Eram porcos a valer, cinzentos e de aparência malcheirosa, e Mrs .
Connin explicou que Jesus os expulsara todos de dentro daquele ho
mem. Quando acabou de ler, deixou-o ficar sentado no chão , a ver
novamente as ilustrações .
Pouco antes de saírem de casa para o ritual da cura pela fé , ele
conseguiu esconder o livro dentro do forro do casaco sem que ela
o visse . Agora, o peso fazia o casaco pender um bocadinho mais de
um lado do que do outro . Bevel tinha o espírito sonhador e sereno
enquanto caminhavam e, quando abandonaram a estrada e meteram
por uma longa vereda de argila vermelha, a serpentear entre tufos de
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 37
- , vertam elas nesse Rio de Sangue , vertam elas nesse Rio de Dor e
fiquem a ver elas afastarem-se ao encontro do Reino de Cristo .»
Enquanto ele pregava, os olhos de Bevel seguiam , sonolentos ,
os círculos vagarosos de duas aves silenciosas que voltejavam lá
bem alto , no céu . Na margem oposta do rio havia um bosque baixo
de sassafrás em tons de vermelho e dourado , tendo atrás colinas de
árvores azul-escuras e um ou outro pinheiro a assomar, rompendo
acima da linha do arvoredo . Mais atrás , lá longe , a cidade erguia-se
como um aglomerado de verrugas no flanco da montanha. As aves
desceram a voltejar e pousaram suavemente no topo do pinheiro
mais alto e ali ficaram de espáduas vergadas , como se estivessem a
suportar o peso do céu .
- Se é neste Rio da Vida que querem verter o vosso sofrimento ,
então aproximem-se - prosseguiu o pregador - e vertam as vos
sas penas aqui . Mas não fiquem a pensar que a história acaba assim,
porque este velho rio vermelho não termina aqui , neste lugar. Este
velho rio vermelho , tão sofredor, continua a correr, escutem-me bem,
continua a correr devagarinho ao encontro do Reino de Cristo . Este
velho rio vermelho é bom pra nele nos batizarmos , é bom pra nele
vertermos a nossa fé , é bom pra nele vertermos o nosso sofrimento ,
mas não é esta água barrenta aqui que vos salva. Andei esta semana
inteira pra cima e pra baixo neste rio - explicou . - Na terça-feira,
'tive em Fortune Lake , no dia seguinte , em Ideal , na sexta-feira eu e
a minha mulher fomos de carro até Lulawillow pra ver um homem
doente que ali mora. Aquela gente não viu cura nenhuma - decla
rou , e , por breves momentos , o rosto abrasou-se-lhe um pouco mais .
- Eu nunca disse que iam ver.
Enquanto ele falava, uma silhueta esvoaçante começara a avançar
com um movimento semelhante a uma borboleta, dir-se-ia - uma
velha de braços a adejar, cuja cabeça baloiçava como se fosse tombar
a qualquer momento. Conseguiu baixar-se à beira-rio e deixou os
braços marulhar na água. Em seguida, curvou-se mais ainda e enfiou
a cara na corrente e, por fim, ergueu-se, a escorrer água; e, ainda a
adejar os braços , deu duas ou três voltas num círculo cego até que
alguém estendeu a mão e a puxou novamente para o meio do grupo .
- Faz treze anos que ela 'tá assim - gritou uma voz áspera. -
Passem o chapéu e deem o bago ao rapaz . É pra isso que ele aí 'tá.
40 Flannery O ' Connor
Passou diante do quintal dela e prosseguiu pelo caminho que eles ti
nham tomado para ir até ao rio . As casas de tijolo cor de papel pardo
eram muito afastadas umas das outras , e, ao fim de um certo tempo , a
faixa de terra batida para caminhar chegou ao fim, e ele teve de avan
çar pela berma da estrada de asfalto . O Sol amarelo-claro brilhava lá
no alto e aquecia bastante .
Passou por uma choupana com uma bomba de gasolina cor de la
ranja em frente , mas não viu o velho que , parado no vão da porta,
olhava cá para fora, sem fitar nada de especial . Mr. Paradise estava a
beber uma laranjada. Terminou-a vagarosamente , a remirar por cima
da garrafa, de pálpebras franzidas , a pequena silhueta de casaco aos
quadrados que ia desaparecendo ao fundo da estrada. Em seguida,
pousou a garrafa vazia em cima de um banco e, ainda de pálpebras
franzidas , limpou a boca com a manga. Entrou na choupana e pegou
numa bengala com sabor a hortelã-pimenta, de trinta centímetros de
comprido e cinco centímetros de grossura, retirando-a da prateleira
dos doces , e enfiou-a no bolso de trás das calças . Depois meteu-se no
carro e conduziu vagarosamente pela estrada, atrás do garoto .
Quando Bevel chegou ao campo salpicado de ervas daninhas de
cor púrpura, estava coberto de poeira e de suor, e atravessou-o numa
corrida cadenciada, para chegar ao bosque o mais depressa possível .
Uma vez na floresta, vagueou de árvore em árvore , tentando achar
o carreiro que tinham percorrido na véspera. Por fim, encontrou um
sulco no meio do manto de agulhas de pinheiro, e seguiu-o até que
viu o trilho íngreme a descer, sinuoso , pelo meio do arvoredo .
Mr. Paradise deixara o automóvel lá atrás , na estrada, e encaminha
ra-se para o lugar onde se costumava sentar quase todos os dias , a
segurar uma linha de pesca, tendo na ponta um anzol sem isco mer
gulhado na água, enquanto via o rio passar na sua frente . Qualquer
pessoa que olhasse de longe para ele teria visto um velho penedo
meio oculto nos arbustos .
Bevel não o viu de modo nenhum. Viu apenas o rio , a cintilar em
tons de amarelo-avermelhado , e saltou lá para dentro , de sapatos nos
pés e casaco vestido , e sentiu a água a entrar-lhe na boca. Engoliu uma
parte e cuspiu o resto , e depois ficou ali parado na corrente , com água
até ao peito , e olhou em volta de si . O céu tinha uma cor azul-clara,
bem límpida, todo ele uniforme - excetuando o buraco que o Sol ali
48 Flannery O ' Connor
lha e tirou o chapéu por completo com um gesto largo . Tinha o cabelo
negro , comprido e liso , que pendia da risca ao meio até lhe chegar
às pontas das orelhas , de ambos os lados . O rosto descia-lhe numa
testa ampla até mais de metade do seu comprimento , terminando de
súbito , as feições equilibradas a custo sobre um queixo proeminente,
dir-se-ia uma armadilha de aço . Parecia jovem, mas exibia um ar
de insatisfação comedida, como se compreendesse a vida e todos os
seus meandros .
- Boa tarde - saudou a velha. Era mais ou menos do tamanho de
uma estaca de vedação de cedro e tinha um chapéu cinzento de homem
puxado para baixo , até aos olhos .
O vagabundo ficou parado , a olhar para ela, e não respondeu . Vol
tou-lhe costas e encarou o crepúsculo . Ergueu devagar os dois braços ,
o inteiro e o coto, de modo que estes assinalaram uma extensão de
céu , e a silhueta dele formou uma cruz retorcida. A velha observou
-o , de braços cruzados sobre o peito , como se fosse a proprietária do
Sol , e a filha observou-o, a cabeça atirada para diante e as mãos re
chonchudas e inertes pendidas nos pulsos . Tinha o cabelo comprido ,
rosa-dourado , e os olhos de um azul tão vivo como o pescoço de um
pavão .
Ele manteve-se imóvel naquela postura durante quase cinquenta
segundos e depois pegou de novo na caixa de ferramentas e aproxi
mou-se do alpendre e deixou-se cair no último degrau . - Minha
senhora - disse em voz firme e nasalada - , dava uma fortuna pra
viver onde pudesse ver o Sol fazer isto todos os dias à tardinha.
- Faz isto todos os dias à tardinha - disse a velha, e tomou a
sentar-se . A filha sentou-se também e fitou-o com um olhar cauteloso
e matreiro , como se ele fosse um pássaro que se tivesse aproximado
imenso . Ele inclinou-se para o lado , escarafunchando no bolso das
calças , e, ao fim de um momento , tirou de lá uma embalagem de
pastilhas elásticas e ofereceu-lhe uma. Ela pegou-lhe e retirou o invó
lucro e começou a mastigar sem tirar os olhos dele . Ele ofereceu uma
pastilha à velha, mas ela limitou-se a arreganhar o lábio superior,
indicando que não tinha dentes .
O olhar pálido e vivo de Mr. Shiftlet já percorrera tudo o que ha
via no terreiro - a bomba junto ao canto da casa e a grande figuei
ra em cujos ramos três ou quatro galinhas se haviam empoleirado ,
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 51
para cima e para baixo no pescoço dele . Ele disse então à velha que a
maior parte das pessoas só queria saber de dinheiro, mas perguntou-lhe
para que é que um homem viera a este mundo . Perguntou-lhe se um
homem viera a este mundo para ganhar dinheiro ou quê. Perguntou-lhe
para que é que ela achava que viera a este mundo, mas ela não res
pondeu, limitou-se a baloiçar-se, ali sentada, a meditar se um maneta
seria capaz de lhe montar um telhado novo na latrina. Ele fez imensas
perguntas a que ela não deu resposta. Disse-lhe que tinha vinte e oito
anos e que levara uma vida variada. Fora cantor de gospel, capataz na
construção de linhas férreas , ajudante numa casa mortuária, e cantara
na rádio durante três meses com o Uncle Roy e os seus Red Creek
Wranglers . Disse que tinha combatido e dado o seu sangue nas forças
armadas do seu país e que tinha visitado todas as terras estrangeiras ,
e que por toda a parte tinha visto pessoas que faziam as coisas às três
pancadas . Disse que não tinha sido criado dessa maneira.
Uma Lua gorda e amarela apareceu entre as ramagens da figueira,
como se ali fosse empoleirar-se com as galinhas . Ele comentou que
um homem tinha de fugir para o campo para ver o mundo são , e que
gostava muito de viver num lugar ermo como aquele , onde pudesse
ver o Sol pôr-se todas as noites , assim como Deus determinara que
sucedesse .
- O senhor é casado ou é solteiro? - perguntou a velha.
Seguiu-se um longo silêncio . - M'nha senhora - perguntou ele
por fim - , onde é que se encontra uma mulher inocente , nos tempos
que correm? Eu cá é que não queria nenhuma dessas rameiras que se
andam por aí a oferecer.
A filha estava muito inclinada para a frente , a cabeça quase pendi
da entre os joelhos , a observá-lo através de uma portinhola triangular
que rasgara no cabelo tombado em cascata; e , de súbito , caiu ao chão
como um peso morto e começou a gemer. Mr. Shiftlet endireitou-a e
ajudou-a a sentar-se de novo na cadeira.
- É a sua cachopa mais novita? - perguntou .
- É a minha única filha - respondeu a velha - , e não há no mun-
do rapariga mais meiga. Não deixava que a levassem pra longe de mim
nem por nada. E é esperta, além do mais . Sabe varrer o chão, cozinhar,
lavar, dar de comer às galinhas e sachar. Não deixava que a levassem
pra longe de mim nem que me dessem um baú cheio de joias .
54 Flannery O ' Connor
A velha disse que lhe dava o dinheiro . --:--- 'Tá a ver aquela moça
além? - perguntou , apontando para Lucynell , que estava sentada no
chão , a um passo de distância, a observá-lo , de olhos azuis , mesmo
no escuro . - Se um homem alguma vez a quisesse levar pra longe de
mim, eu dizia logo: «Não há homem neste mundo que me leve este
docinho pra longe de mim ! » , mas se ele dissesse: «Minha senhora,
não a quero levar pra longe de si , quero ela aqui mesmo , à sua beira» ,
então eu já dizia: «Meu caro senhor, não lhe levo a mal . Eu cá é que
também não enjeitava a oportunidade de assentar num lugar e de me
casar com a moça mais doce que há neste mundo . Você não é palerma
nenhum» , era o que eu dizia.
- Que idade tem ela? - perguntou Mr. Shiftlet, como quem não
quer a coisa.
- Quinze , dezasseis - disse a velha. A rapariga tinha quase trinta
anos , mas , de tão inocente que era, tomava-se impossível adivinhar.
- Também não era má ideia pintá-lo - comentou Mr. Shiftlet. -
A senhora não quer que a chapa enferruje toda.
- A gente depois vemos isso - disse a velha.
No dia seguinte , ele foi a pé até à povoação e regressou com as pe
ças de que necessitava e com uma lata de gasolina. Ao final da tarde ,
ruídos tremendos elevaram-se do barracão , e a velha saiu a correr de
casa, julgando que Lucynell estava algures por ali , a ter um ataque .
Lucynell estava sentada num caixote para galinhas , a bater com os
pés no chão e a gritar: «Peçarrrinho ! Tupeçarrrachinho ! » , mas es
ta algaraviada foi abafada pelo ronco do carro . Com uma rajada de
estampidos , o automóvel emergiu do barracão , avançando de modo
feroz e solene . Mr. Shiftlet estava sentado no assento do condutor,
muito hirto . Exibia no rosto uma expressão de modéstia grave, como
se tivesse acabado de ressuscitar um morto .
Naquela noite, enquanto se baloiçava no alpendre, a velha não per
deu tempo a abordar o assunto que lhe interessava. - O senhor quer
uma mulher inocente, não é verdade? - perguntou, em tom compreen
sivo. - Não quer saber dessas rameiras que andam por aí.
- Não quero , não , m'nha senhora - disse Mr. Shiftlet.
- Uma mulher que seja mudinha - continuou ela - não lhe
pode responder torto nem pode dizer palavras feias . Ora aí ' tá a
mulher que lhe convém. Aqui mesmo - e apontou para Lucynell ,
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 57
- Eu já bebi dela.
- E onde é que uma pessoa tem de ir? - perguntou ela. Debruçou-
-se um bocadinho mais para ele e sentiu-lhe uma baforada do cheiro ,
que se assemelhava a enfiar o nariz debaixo da asa de um abutre .
- Dentro do meu coração - respondeu ele , pondo uma mão no
peito .
- Ah. - Ruby recuou . - Tenho de ir andando . Acho que o meu
irmão 'tá em casa. - Transpôs a soleira da porta.
- Pergunte ao seu marido se ele sabe qual o grande aniversário que
se comemora hoje - disse Mr. Jerger, olhando para ela com ar aca
nhado .
- Sim, com certeza. - Ela voltou-se e ficou à espera até ouvir
a porta dele soltar um estalido . Olhou para trás , para se certificar de
que estava fechada, e depois desencheu o peito de ar e ficou parada,
de frente para a ladeira íngreme e escura de degraus que lhe restava
subir. - Santo Deus - comentou . Os degraus iam ficando cada vez
mais sombrios e mais íngremes à medida que se subia.
Depois de transpor cinco degraus, sentiu-se sem fôlego . Conti
nuou , subindo mais alguns , a ofegar. Em seguida, parou . Sentia uma
dor no estômago . Era uma dor semelhante a um fragmento de qual
quer coisa a empurrar uma outra coisa. Já antes a sentira, alguns dias
antes . Era a dor que mais medo lhe metia. A palavra cancro ocorrera
-lhe uma vez , e, de imediato , apagara-a do espírito , porque nenhum
horror assim poderia acometê-la, era impossível isso suceder. A pa
lavra regressou-lhe de imediato ao espírito com aquela dor, mas ela
retalhou-a em dois , lançando mão de Madam Zoleeda. Vai acabar por
lhe trazer um golpe de sorte . Retalhou-a ao meio , tomou a cortá-la e
depois repetiu o gesto , até apenas restarem fragmentos irreconhecí
veis . Ia parar no andar seguinte - meu Deus, se alguma vez conse
guisse lá chegar - e conversar com Laveme Watts . Laveme Watts
era uma moradora do segundo andar, assistente de uma calista e sua
grande amiga.
Subiu até ao patamar seguinte , a arquejar, sentindo os joelhos a
fervilhar, e bateu à porta de Laveme com o punho da arma de Hartley
Gilfeet. Encostou-se à ombreira da porta para descansar e , de súbito ,
o chão de ambos os lados desabou . As paredes pintaram-se de negro ,
e ela sentiu-se a rodopiar, sem fôlego , em pleno ar, apavorada pela
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 71
- Porque é que 'tás a olhar pra mim assim dessa maneira? - res-
mungou Ruby.
- De que maneira?
- Dessa maneira - disse Ruby - , assim a espetares a barriga
desse jeito .
- Só te preguntei o que é que tinhas dessa vez . . .
- Foi um furúnculo . Uma preta que morava ao pé da gente expli-
cou-me comé que havia de fazer, e eu fiz o que ela disse e aquilo
passou . - Estava sentada na borda da cadeira, de ombros descaídos ,
de olhar perdido diante de si , como se estivesse a recordar tempos
mais felizes .
Laverne começou a executar uma espécie de dança cómica, para
trás e para diante na sala. Deu dois ou três passos vagarosos numa
direção , de joelhos vergados , depois regressou na direção oposta e
ergueu a perna num gesto lento e penoso . Começou a cantar numa
voz sonora e gutural , a revirar os olhos: - Junta as letras todas , lê-se
MÃE ! MÃE ! - e abriu muito os braços , como se estivesse em palco .
Ruby abriu a boca, sem dizer uma palavra, e a expressão feroz des
vaneceu-se-lhe do rosto . Durante meio segundo , permaneceu imóvel;
em seguida, ergueu-se de um salto da cadeira. - Eu não ! - gritou.
- Eu não !
74 Flannery O 'Connor
«Praestet.fides supplementum
Sensuum defectui.
Genitori, Genitoque
Laus et jubilatio
«Sit et benedictio;
Procedenti ab utroque
Compar sit laudatio .
Amen .»
Desceu da sua cama e trepou para a travessa aos pés da cama delas .
Elas apagaram a luz e meteram-se entre as cobertas , mas ela não se
mexeu . Ficou ali sentada, a olhá-las fixamente, até os rostos delas se
recortarem, bem nítidos , no escuro . - Sou mais nova do que vocês
- declarou - , mas sou praí umas mil vezes mais esperta.
- Há certas coisas - disse-lhe Susan - que uma garota da tua
idade não sabe - e ambas começaram a soltar risadinhas .
- Volta para a tua cama - ordenou-lhe Joanne .
A garota não se mexeu . - Uma vez - começou , numa voz que
soava em tom cavernoso no escuro - , vi uma coelha a ter coelhi
nhos .
Seguiu-se um silêncio. Foi então que Susan perguntou: - Como?
- em tom indiferente , e ela percebeu que as tinha na mão . Disse que
só lhes contava se elas lhe contassem o que era «aquilo que tu sabes» .
A verdade é que nunca tinha visto uma coelha a ter coelhinhos , mas
esqueceu-se deste pormenor no momento em que elas lhe começa
ram a contar o que tinham visto na tenda.
Era um monstro de feira que tinha um nome , mas elas não se
conseguiam lembrar do nome . A tenda onde ele estava tinha sido
dividida em duas metades por meio de uma cortina preta, um lado
para os homens e outro para as mulheres . O monstro passou de um
lado para o outro , falando primeiro com os homens e depois com as
mulheres , mas toda a gente podia ouvi-lo . O palco abarcava toda a
parte da frente da plateia. As raparigas ouviram o monstro dizer aos
homens : «Vou mostrar-vos uma coisa e , se vocês se rirem, Deus é
bem capaz de vos castigar com a mesma deformidade .» O monstro
tinha uma entoação de provinciano , lenta e nasalada e nem aguda
nem grave , uma voz monocórdica. «Deus fez-me assim desta ma
neira e , se vocês se rirem , Ele é capaz de vos castigar do mesmo
jeito . Foi assim que Ele quis que eu fosse , e não me cabe discutir a
vontade d'Ele . Só vos mostro isto porque tenho de fazer pela vida.
Espero que se comportem como senhoras e como cavalheiros. Não
tenho culpa de ser assim deste jeito , nem tive nada que ver com
isto , mas tenho de fazer pela vida. Não discuto nada .» Houve então
um longo silêncio do outro lado da tenda, e , por fim, o monstro
saiu de junto dos homens e veio para o lado das mulheres e disse a
mesma coisa.
90 Flannery O ' Connor
Até parece que vai apanhar o comboio , prosseguiu ela com a mes
ma má disposição no momento em que entraram na capela onde as
irmãs estavam ajoelhadas de um lado e as raparigas , todas de uni
formes castanhos , do outro . A capela cheirava a incenso . Era verde
-clara e dourada, urna série de arcos altaneiros que terminavam com
um arco acima do altar, onde o padre estava ajoelhado diante da
custódia, de costas muito vergadas . Um rapazito de sobrepeliz esta
va parado atrás dele , a agitar o tunbulo . A garota ajoelhou-se entre
a mãe e a freira, e o «Tantum Ergo» já ia bem adiantado quando os
seus pensamentos maldosos cessaram e ela começou a dar-se conta
de que estava na presença de Deus. Ajuda-me a não ser tão má, co
meçou ela mecanicamente . Ajuda-me a não dar a ela tantas respos
tas tortas . Ajuda-me a não falar assim desta maneira. A sua mente
começou a serenar e depois a esvaziar-se , mas , quando o padre er
gueu a custódia com a hóstia a rebrilhar no centro , cor de marfim,
ela estava a pensar na tenda lá da feira que albergava o monstro . O
monstro dizia: - Eu não discuto a vontade d'Ele . Foi assim que Ele
quis que eu fosse .
No momento em que estavam a cruzar a porta do convento , a freira
corpulenta desceu sobre ela num voo picado maldoso e por pouco
não a sufocou nas pregas do hábito negro , esborrachando-lhe a bo
checha contra o crucifixo suspenso do cinto , e depois prendeu-a nos
braços esticados e remirou-a com olhinhos azul-púrpura.
No regresso a casa, ela e a mãe sentaram-se no banco de trás , e Alon
zo, ao volante, ficou sozinho à frente. A garota observou três pregas
de gordura na nuca dele e reparou que ele tinha as orelhas espetadas ,
quase corno um porco . A mãe, para fazer conversa, perguntou-lhe se
ele tinha ido à feira.
- Já lá fui - respondeu ele - e vi tudo o que lá havia, e ainda
bem que fui quando fui , porque já não vai haver feira na semana que
vem, apesar de terem dito que ia haver.
- E porquê? - perguntou a mãe .
- Fecharam aquilo tudo - explicou ele . - Uns quantos pregado-
res da povoação foram até lá e ' tiveram a inspecionar aquilo e chama
ram a polícia pra fechar aquilo tudo.
A mãe deixou morrer a conversa, e o rosto redondo da garota es
tava perdido nas suas meditações . Ela voltou a face para a janela e
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 93
sicas , à imagem das suas reações morais , eram regidas pela sua força
de vontade e pelo seu caráter férreo , que lhe transparecia claramente
nas feições . Tinha um rosto longo , semelhante a um tubo , de queixo
comprido , redondo e largo e nariz comprido e espalmado . Os olhos
eram vivos mas serenos , e , ao luar miraculoso , possuíam um ar de
compostura e de sabedoria secular, como se pertencessem a um dos
grandes guias da humanidade . Dir-se-ia Virgílio convocado a meio
da noite para ir ao encontro de Dante , ou , melhor ainda, Rafael des
pertado por um clarão de luz divina para voar até à ilharga de Tobias .
O único ponto sombrio no quarto era o catre de Nelson, por baixo da
sombra da janela.
Nelson estava encolhido, deitado sobre o flanco, de joelhos encos
tados ao queixo e calcanhares debaixo do traseiro. O fato e o chapéu
novos estavam nas caixas em que tinham chegado pelo correio, e es
tas caixas encontravam-se no chão, aos pés do catre, onde ele poderia
deitar-lhes as mãos assim que acordasse. O penico, fora da sombra e
alvo como a neve à luz do luar, parecia estar de sentinela para o prote
ger, qual um pequeno anjo da guarda. Mr. Head tomou a estender-se na
cama, sentindo-se inteiramente confiante de que poderia levar a cabo
a missão moral do dia que aí vinha. Fazia tenções de se levantar antes
de Nelson e de ter o pequeno-almoço ao lume quando ele despertasse .
O rapaz ficava sempre aborrecido quando Mr. Head era o primeiro a
levantar-se. Teriam de sair de casa às quatro para chegarem ao entron
camento ferroviário às cinco e meia. O comboio ia parar para os reco
lher a um quarto para as seis , e teriam de lá estar à hora certa, porque o
comboio ia fazer aquela paragem de propósito para os receber.
Ia ser a primeira visita do rapaz à cidade, embora ele afirmasse ser
a segunda, porque tinha lá nascido. Mr. Head tentara fazê-lo ver que,
quando nascera, ele não tinha a inteligência suficiente para perceber
em que lugar se encontrava, mas isto não causara a mais pequena im
pressão no rapaz, e ele continuava a insistir que ia ser a sua segunda
viagem. Ia ser a terceira visita de Mr. Head. Nelson dissera: - Ainda
só tenho dez anos , e já vai ser a minha segunda vez na cidade .
Mr. Head rebateu esta ideia.
- Se já não vais lá faz quinze anos , comé que sabes que vais
conseguir encontrar o caminho? - perguntou Nelson . - Comé que
sabes que não 'tá tudo mudado?
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 97
dela. Desejou mergulhar o seu olhar no dela, cada vez mais fundo ,
enquanto ela o apertava cada vez mais nos braços . Nunca antes tivera
uma sensação assim. Sentia-se como se estivesse a rodopiar por um
buraco abaixo , um túnel negro como breu .
- Se andares mais um quarteirão, apanhas um carro elétrico ali
adiante pra te levar à estação dos comboios , amorzinho - explicou ela.
Nelson teria desfalecido aos pés dela se Mr. Head não o tivesse
afastado dali com um repelão . - Parece que não tens juízo nenhum
nessa cabeça! - resmungou o velho .
Precipitaram-se pela rua fora, e Nelson não olhou para a mulher
atrás de si . Com um gesto repentino , puxou o chapéu para baixo , so
bre o rosto , que já lhe ardia de vergonha. O fantasma trocista que ele
vira na janela do comboio e todos os maus presságios que o tinham
assaltado na viagem tomaram a acometê-lo , e ele recordou que o ta
lão da balança o avisara para ter cuidado com as mulheres morenas e
que o talão do avô dissera que ele era honesto e corajoso . Agarrou a
mão do velho , um sinal de dependência que raramente exibia.
Dirigiram-se para o fundo da rua, ao encontro dos carris do elétri
co , por onde vinha a chegar um comprido carro elétrico amarelo, a
matraquear. Mr. Head nunca tinha andado de elétrico , e deixou passar
aquele . Nelson permaneceu em silêncio . De tempos a tempos , a boca
tremia-lhe ligeiramente , mas o avô , preocupado com os seus pro
blemas , não lhe prestava atenção . Parados à esquina, nenhum deles
olhava para os negros que iam passando , entregues aos seus afazeres
·
como se fossem brancos , à parte o facto de a maioria deles se deter e
remirar Mr. Head e Nelson . Ocorreu a Mr. Head que , uma vez que o
carro elétrico andava sobre carris , podiam simplesmente seguir esses
carris . Deu a Nelson um ligeiro empurrão e explicou-lhe que iam
seguir pelos carris a pé até à estação ferroviária, e partiram os dois .
Pouco depois , para seu grande alívio , começaram novamente a ver
brancos , e Nelson sentou-se no passeio , encostado à parede de um
prédio . - Tenho de descansar um pedaço - disse . - Perdeste o
saco e fizeste com que a gente se perdesse . Agora podes esperar que
eu descanse um bocado .
- 'Tão aqui os carri s , na nossa frente - contrapôs Mr. Head. -
Basta que a gente não os perca de vista, e podias ter-te lembrado do
saco do almoço tão bem como eu . Foi aqui que tu nasceste. Esta é a tua
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 111
velha cidade natal. É a tua segunda viagem até aqui . Devias de saber
como é que te governas - e, acocorando-se, continuou neste tom, mas
o rapaz, soltando os pés ardentes dos sapatos , não respondeu.
- E tu ali parado , de boca aberta que nem um chim-pan-zé , en
quanto uma preta te ensinava o caminho . Santo Deus ! - rematou
Mr. Head.
- Eu só disse que tinha nascido aqui , mais nada - justificou-se
o rapaz em voz trémula. - Nunca disse que ia gostar ou que não ia
gostar disto . Nunca disse que queria vir até cá. Só disse que nasci
aqui , e não tive voto na matéria. Quero ir pra casa. Eu nem queria vir
até cá, logo pra começar. Foi tudo uma grande ideia tua. Comé que
sabes que não 'tás a seguir os carri s na direção errada?
Isto também ocorrera a Mr. Head . - Esta gente toda é branca -
disse .
- Ainda não tínhamos passado por aqui - ripostou Nelson . Era
um bairro de prédios de tijolo que podiam ou não ser habitados . Al
guns automóveis vazios encontravam-se estacionados ao longo da
berma do passeio , e via-se um ou outro transeunte . O calor do pavi
mento passava através do fato de fazenda leve de Nelson . As pálpe
bras começaram a descair-lhe , e, ao fim de alguns minutos , a cabeça
pendeu-lhe para diante . Contraiu os ombros uma ou duas vezes e, em
seguida, tombou sobre o flanco e ficou ali esparramado , mergulhando
num sono exausto .
Mr. Head observou-o em silêncio . Ele próprio estava muito can
sado , mas não podiam dormir ambos ao mesmo tempo , e ele não
teria sido capaz de adormecer, fosse como fosse , porque não sabia
onde estava. Dentro de alguns minutos , Nelson iria acordar, revi
gorado pelo sono e de nariz empinado , e começaria a queixar-se de
que ele perdera o saco e de que não sabia o caminho . Havias de ver
comé que elas mordem, se eu não ' tivesse aqui , pensou Mr. Head;
e foi então que outra ideia lhe ocorreu . Olhou para a figura espar
ramada durante vários minutos ; por fim, pôs-se de pé . Justificou o
que ia fazer, dizendo a si mesmo que , por vezes , é necessário dar a
uma criança uma lição que ela nunca mais esquecerá, especialmente
quando a criança está constantemente a reafirmar o seu ponto de vis
ta com novos comentários impertinentes . Dirigiu-se sem ruído para
a esquina, a cerca de cinco metros dali , e sentou-se na tampa de um
112 Flannery O ' Connor
Mr. Head ficou a olhar para a estatueta em silêncio , até que Nelson
parou a pequena distância. E então , enquanto estavam os dois ali pa
rados , Mr. Head soltou a meia-voz: - Um preto artificial !
Não se conseguia perceber se o negro artificial pretendia ser jovem
ou velho; tinha um ar demasiado desgraçado para ser uma ou outra
destas coisas . Pretendia exibir um ar feliz, porque tinha a boca arrepa
nhada nos cantos , mas o olho lascado e o ângulo em que pendia, incli
nado, davam-lhe, em vez disso, uma aparência desvairada de tristeza.
- Um preto artificial ! - repetiu Nelson , precisamente no mesmo
tom de Mr. Head .
Ficaram ali os dois de pescoço estendido quase no mesmo ângulo
e de ombros curvados quase exatamente da mesma maneira e com
as mãos a estremecer de forma idêntica dentro dos bolsos . Mr. Head
parecia uma criança vetusta, e Nelson assemelhava-se a um velho
em miniatura. Contemplaram o negro artificial como se estivessem
confrontados com um grande mistério , um monumento a uma vitória
alheia que os reunia na sua derrota comum. Ambos sentiam a estatue
ta a dissipar as divergências entre ambos , qual um ato de misericór
dia. Mr. Head nunca antes soubera qual o sabor da misericórdia, por
que fora demasiado bondoso para a merecer, mas achava que agora
sabia. Olhou para Nelson e compreendeu que tinha de dizer qualquer
coisa ao garoto para lhe mostrar que ainda possuía uma grande sabe
doria, e , na expressão com que o rapaz o fitou por sua vez , viu uma
ânsia dessa garantia. Os olhos de Nelson pareciam implorar-lhe que
explicasse de uma vez por todas o mistério da existência.
Mr. Head abriu os lábios para proferir uma declaração solene e
ouviu-se dizer: - Não têm pretos suficientes de carne e osso por
aqui . Tiveram de arranjar um preto artificial .
Ao cabo de alguns momentos , o rapaz assentiu com a cabeça, uma
estranha tremura em volta da boca, e disse: - Vamos pra casa antes
que a gente se perca outra vez.
O comboio entrou a deslizar na estação suburbana no preciso mo
mento em que eles entravam no edifício , e eles subiram juntos para
a composição e , dez minutos antes da hora prevista para a chegada
ao entroncamento , dirigiram-se para a porta e ficaram ali , prontos a
saltar da carruagem se o comboio não parasse; mas o comboio parou ,
no instante em que a Lua, devolvida ao seu pleno esplendor, saltava
118 Flannery O ' Connor
chard, mas a voz dela foi abafada pelo som do trator, que o negro, Cul
ver, estava a conduzir pelo caminho fora, vindo do celeiro. O reboque
vinha atrelado , e um outro negro estava sentado na caixa, a gingar,
com os pés a baloiçar a cerca de um palmo do chão . O negro que ia a
conduzir o trator rodou o volante e passou diante da cancela que dava
para o campo , à esquerda.
Mrs . Cope virou a cabeça e viu que ele não cruzara a cancela por
que era demasiado preguiçoso para descer do trator e ir abri-la. Ia dar
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 121
a volta pelo caminho mais longo à custa dela. - Diga-lhe que pare e
que venha cá ! - gritou .
Mrs Pritchard desencostou-se a custo da chaminé e agitou o braço
.
num círculo feroz , mas ele fez de conta que não ouvia. Ela caminhou
em passo solene até à orla do relvado e gritou: - Anda cá, já te disse !
Ela quer falar contigo !
Ele desceu do trator e encaminhou-se para a chaminé , curvando
a cabeça e os ombros para diante a cada passo, para dar a aparência
de quem se apressa. Tinha a cabeça enterrada até ao cocuruto num
chapéu de fazenda branca, raiado com diferentes cambiantes de suor.
A aba, descaída, ocultava-lhe toda a parte de cima do rosto , excetuan
do a orla inferior dos olhos avermelhados .
Mrs . Cope estava de joelhos , a cravar na terra a colher de jardinei
ro: - Porque é que não passaste pela cancela, acolá? - perguntou ,
e ficou à espera, de olhos fechados , a boca repuxada e lisa, corno se
estivesse preparada para qualquer resposta ridícula.
- A gente tem de levantar a lâmina da segadeira, se formos por aí
- justificou-se ele e, com o olhar, perfurou um ponto mesmo à esquer-
da dela. Os negros de Mrs Cope eram tão daninhos e tão impessoais
.
corno a junça.
Os olhos dela, no momento em que os abriu , pareciam prestes a
dilatar-se sem cessar, até a virarem do avesso . - Então levanta-a -
ordenou, e apontou para o outro lado do caminho com a colher de
jardineiro .
Ele afastou-se .
- Eles não querem saber - comentou ela. - A responsabilidade
não é deles . Dou graças a Deus por estas coisas todas não me caírem
em cima de urna vez só . Destruíam-me .
- Pois , é verdade - gritou Mrs . Pritchard por cima do ruído do
trator. O negro abriu a cancela e ergueu a lâmina e transpôs a cerca
e desceu para o campo; o ruído diminuiu no momento em que o re
boque desapareceu. - Não consigo perceber corno é que ela teve o
bebé ali metida - prosseguiu ela na sua voz normal .
Mrs . Cope estava curvada para diante , novamente a desenraizar
a junça com golpes encarniçados . - Ternos muito que agradecer a
Deus - comentou . - Todos os dias você devia rezar urna oração de
graças . Você faz isso?
1 22 Flannery O ' Connor
cá tudo e mais alguma coisa. Disse que havia cá cavalos. Disse que
tinha passado os melhores tempos da vida dele aqui mesmo , nesta
quinta. Não para de falar disto aqui .
- Não cala a matraca um minuto com isto aqui - resmungou o
rapagão , pondo o braço diante do nariz , como que para abafar as suas
palavras .
- Sempre a falar nos cavalos que montava aqui - continuou o
mais pequeno - e disse que nos deixava montar eles também. Disse
que havia um chamado Gene .
Mrs . Cope tinha sempre receio de que alguém se magoasse na
quinta dela e lhe exigisse uma indemnização colossal . - Não estão
ferrados - disse com precipitação . - Havia um chamado Gene ,
mas já morreu , e receio bem não ser possível vocês montarem os ca
valos , porque se podiam magoar. São perigosos - rematou , falando
muito depressa.
O rapaz mais alto sentou-se no chão com um ruído de asco e co
meçou a soltar pedrinhas da sola do ténis com a ponta do dedo . O
pequenino dardejou olhares para aqui e para acolá, e Powell fixou-a
com os seus olhos e não disse nada.
Ao cabo de uns minutos , o rapazito disse: - Ouça, minha senho
ra, sabe o que é que ele disse uma vez? Disse que , quando morresse ,
queria vir até aqui !
Por momentos , Mrs . Cope pareceu não compreender; depois co
rou; em seguida, uma expressão bizarra de dor invadiu-lhe o rosto , no
momento em que se deu conta de que aqueles garotos tinham fome .
Olhavam-na fixamente porque tinham fome ! Quase sentiu o fôlego
a faltar-lhe diante deles , e depois perguntou-lhes muito depressa se
queriam alguma coisa para comer. Eles disseram que sim, mas as
suas expressões faciais , contidas e insatisfeitas , não se iluminaram.
Parecia que estavam habituados a ter fome e que o assunto não era
da conta dela.
A garota no andar de cima ficara com o rosto muito encarnado do
entusiasmo . Estava ajoelhada diante da janela, de tal modo que só os
olhos e a testa assomavam acima do parapeito . Mrs . Cope disse aos
rapazes que dessem a volta até ao lado oposto da casa, onde estavam
as cadeiras de jardim, e caminhou à frente , e Mrs . Pritchard seguiu-a.
A garota saiu do quarto de dormir da direita, atravessou o corredor e
1 26 Flannery O ' Connor
- Bom, receio bem que isso seja impossível - disse ela, levantan
do-se subitamente . - O celeiro está cheio de feno , e eu tenho medo
que haja um incêndio por causa dos vossos cigarros .
- A gente não fuma - disse ele .
- Mesmo assim, receio bem que vocês não possam lá passar a
noite - repetiu ela, como se estivesse a falar educadamente com um
gangster.
- Bom , atão podemos acampar na mata - disse o rapazito . -
A gente trouxemos os nossos cobertores , seja como for. É isso que
a gente tem naquela mala acolá. Vamos embora.
- Na mata! - exclamou ela. - Ah , não ! As matas estão muito
secas nesta época do ano , não posso ter pessoas a fumar nas minhas
matas . Vocês vão ter de acampar no campo , neste campo aqui , junto
da casa, onde não há árvores nenhumas .
- Onde ela pode ficar de olho em vocês - disse a garota a meia-
-voz .
- As matas dela - resmungou o rapagão , e desceu da rede .
- A gente dorme no campo - disse Powell , mas parecia não estar
a dirigir-se a ela em particular. - Esta tarde , vou mostrar a quinta
a eles . - Os outros dois estavam já a afastar-se , e ele pôs-se de pé
e lançou-se atrás deles , e as mulheres ficaram sentadas , com a mala
negra entre ambas .
- Nem um não , obrigado , nem nada - observou Mrs . Pritchard .
- Brincaram com a comida que lhes oferecemos , mais nada -
queixou-se Mrs . Cope em voz magoada.
Mrs . Pritchard sugeriu que eles talvez não gostassem de bebidas
sem álcool.
- Eles pareciam cheios de fome , essa é que é a verdade - disse
Mrs . Cope .
Por volta do crepúsculo , eles emergiram dos bosques , sujos e
transpirados , aproximaram-se do alpendre das traseiras e pediram
água. Não pediram comida, mas Mrs . Cope percebeu que eles que
riam comer. - Só tenho galinha-da-índia fria - disse . - Querem
galinha-da-índia e umas sanduíches , rapazes?
- Eu cá é que não comia um bicho careca como uma galinha-da-
-índia - atirou o rapazito . - Era capaz de comer frango ou peru ,
mas galinha-da-índia é que nem pensar.
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 1 29
agradecem a Deus todas as noites tudo o que Ele fez por vocês?
Agradecem-Lhe por tudo?
Isto fê-los calarem-se de imediato . Mordiam as sanduíches como
se tivessem perdido todo o gosto pela comida.
- Então, agradecem? - insistiu ela.
Eles mantinham-se tão silenciosos como ladrões no seu esconderi
jo. Mastigavam sem um som.
- Bom, eu sei que agradeço - disse ela por fim, e virou costas e
tomou a entrar em casa, e a garota viu-os deixar descair os ombros .
O rapagão estendeu as pernas , como se estivesse a libertar-se de uma
armadilha. O Sol ardia tão depressa que parecia estar a tentar pegar
fogo a tudo quanto a vista alcançava. A cisterna branca adquiriu um
vidrado cor-de-rosa, e a erva exibia um verde pouco natural , como
se estivesse a converter-se em vidro . A garota esticou a cabeça subi
tamente para fora da janela e disse: - Ugggghhrhh - em voz bem
alta, entortando os olhos e deitando a língua de fora o mais possível ,
como se fosse vomitar.
O rapagão olhou para o alto e fitou-a. - Santo Deus - resmungou
- , outra fêmea.
Ela recuou , afastando-se da janela, e ficou de pé , de costas contra
a parede , a pestanejar ferozmente como se lhe tivessem dado uma
bofetada e não pudesse ver quem tinha sido . Assim que eles abando
naram os degraus , ela desceu para a cozinha, onde Mrs . Cope estava
a lavar a loiça. - Se eu deitasse a mão àquele rapagão , dava-lhe uma
tareia que ele nem sabia de que terra era - declarou .
- Não te metas com aqueles rapazes - avisou Mrs . Cope , vol
tando-se bruscamente para ela. - As senhoras não dão tareias em
ninguém. Não vás para junto deles . Eles já cá não estão amanhã de
manhã.
Na manhã seguinte , porém, eles ainda ali estavam .
Quando ela saiu para o alpendre , depois do pequeno-almoço, viu
-os parados em volta da porta das traseiras , a dar pontapés nos de
graus . Estavam a sentir o cheiro do toucinho fumado que ela comera
ao pequeno-almoço . - Ora essa, rapazes ! - exclamou ela. - Jul
guei que vocês iam ter com o teu tio . - Eles tinham a mesma ex
pressão de fome endurecida que a pungira na véspera, mas hoje ela
sentia-se ligeiramente provocada.
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 131
crescer? O que vai ser de ti? Olho para ti e tenho vontade de chorar !
À s vezes , pareces filha de Mrs Pritchard !
.
lamitoso para anunciar. - Hoje, ' tou que não posso da boca - co
mentou , agarrando-se ao pouco que lhe restava. - São estes meus
dentes . Cada qual me parece um furúnculo cheio de pus .
O general Sash tinha cento e quatro anos . Vivia com a neta, Sally
Poker Sash, que tinha sessenta e dois anos e rezava todas as noites ,
de joelhos , pedindo a Deus que ele não morresse antes de ela se di
plomar. O general estava-se nas tintas para o bacharelato da neta, mas
não tinha dúvidas de que iria viver até esse dia. Viver tornara-se nele
um hábito tão arreigado que não era capaz de conceber nenhuma ou
tra condição . Uma cerimónia de entrega de diplomas universitários
não era exatamente a sua ideia de um bom divertimento , ainda que ,
como a neta dizia, fosse de esperar que ele se sentasse no palco , de
uniforme . Ela dizia que ia haver um longo cortejo de professores e
alunos de toga, mas que nada haveria que rivalizasse com ele , trajado
com o seu uniforme . Ele sabia isto perfeitamente , não precisava que
ela lho dissesse , e, quanto ao raio do cortejo, podia ir para o Inferno e
voltar, era-lhe igual . Gostava de corsos com carros alegóricos cheios
de Misses América e Misses Daytona Beach e Misses Produtos Rai
nha do Algodão . Não queria saber de cortejos , e um cortejo cheio de
professoras primárias era, no entender dele, quase tão mortiço como
o rio Estige . No entanto , estava disposto a sentar-se no palco , de uni
forme , para o poderem ver.
Sally Poker não estava tão certa como o avô de que ele iria sobre
viver até ao dia do seu bacharelato . Não houvera qualquer mudança
percetível nele durante os últimos cinco anos , mas ela tinha o pres
sentimento de que veria esboroar-se o seu triunfo , porque isso já lhe
acontecera tantas vezes . Todos os anos , desde há vinte anos , frequen
tava cursos de verão na universidade, porque , quando começara a
1 42 Flannery O 'Connor
Aí, ela viu o general parado na sua cadeira, de cenho franzido e sem
chapéu , ao sol abrasador, enquanto John Wesley, com a blusa solta
atrás , de anca e bochecha encostadas à máquina vermelha, bebia uma
Coca-Cola. Ela abandonou o desfile e precipitou-se para junto deles
e arrancou a garrafa das mãos do rapaz . Sacudiu-o e entalou-lhe a
blusa nos calções com gestos bruscos e pôs o chapéu na cabeça do
velho . - Agora leva-o ali para dentro ! - ordenou , apontando um
dedo hirto para a porta lateral do edifício .
Pela sua parte , o general sentia que havia um buraquinho a come
çar a alargar-se-lhe no alto da cabeça. O rapaz levou-o rapidamente
por um passeio abaixo, subiu uma rampa e entrou num edifício e fê
-lo transpor o rebordo do palco com um solavanco e coqduziu-o até
ao lugar que lhe fora indicado, e o general lançou olhares fuzilantes
para diante de si , para as cabeças que pareciam amalgamar-se numa
só e para os olhos que se moviam de um rosto para outro . Várias figu
ras de togas negras acercaram-se e pegaram-lhe na mão e sacudiram
-lha. Um cortejo negro fluía ao longo de cada coxia e, ao som de
uma música solene , formava um grande lago defronte dele . A música
parecia entrar-lhe na cabeça através do buraquinho e, por momentos,
pareceu-lhe que o desfile também ia tentar entrar por ali .
Não sabia que desfile era aquele , mas havia na cerimónia qualquer
coisa de familiar. Era-lhe certamente familiar, já que viera ao encon
tro dele , mas um desfile negro não lhe agradava. Qualquer desfile
que viesse ao seu encontro , pensou , irritado , deveria ser formado por
carros alegóricos cheios de moças bonitas , como os carro s alegóricos
antes da tal estreia. Aquilo era certamente qualquer coisa relacionada
com o passado histórico , como os desfiles que se estavam sempre a
realizar. Não queria saber daquilo para nada. O que acontecera em
tempos não tinha importância nenhuma para um homem que estava
vivo agora, e ele estava vivo agora.
Quando todo o desfile escorrera para dentro do lago negro , uma si
lhueta negra começou a arengar diante da multidão . A silhueta estava
a dizer qualquer coisa acerca da história, e o general decidiu que não
ia ouvir, mas as palavras coavam-se sem parar através do buraquinho
na cabeça dele . Ouviu o seu próprio nome a ser referido e sentiu que
lhe empurravam a cadeira para diante com gestos rudes , e o escutei
ro fez uma grande vénia. Chamaram o nome dele , e o gaiato gordo
1 50 Flannery O ' Connor
ponto e acendia o seu aquecedor a gás e o de Joy. Joy era a filha dela,
uma rapariga corpulenta e loira com uma perna artificial . Mrs . Ho
pewell encarava-a como uma criança, embora ela tivesse trinta e dois
anos e fosse extremamente culta. Joy levantava-se da cama enquanto
a mãe estava a comer e dirigia-se pesadamente para a casa de banho
e fechava a porta com estrondo , e , pouco depois , Mrs . Freeman che
gava à porta das traseiras . Joy ouvia a mãe a dizer: «Entre , entre» , e
depois as duas mulheres falavam durante algum tempo em voz baixa,
de modo que as palavras delas não se percebiam na casa de banho .
Quando Joy entrava na cozinha, geralmente elas já tinham concluído
o boletim meteorológico e estavam a falar de uma ou de outra das fi
lhas de Mrs . Freeman , Glynese ou Carramae . Joy chamava-lhes Gli
cerina e Caramelo . Glynese , uma ruiva, tinha dezoito anos e muitos
admiradores ; Carramae , uma loira, tinha apenas quinze anos , mas já
se casara e estava grávida. Não conseguia aguentar nada no estôma
go . Todas as manhãs , Mrs . Freeman contava a Mrs . Hopewell quan
tas vezes é que a filha vomitara desde o último relatório.
Mrs Hopewell gostava de dizer às pessoas que Glynese e Carra
.
mae eram duas das raparigas mais simpáticas que conhecia, e que Mrs .
Freeman era uma senhora e que não tinha vergonha de a levar onde
quer que fosse ou de a apresentar a quem quer que pudessem encontrar.
Em seguida, contava como é que contratara os Freemans , logo para
começar, e explicava que eles eram para ela uma dádiva dos céus e que
os tinha consigo havia quatro anos . O motivo que a levara a mantê-los
tanto tempo consigo era eles não serem escumalha. Eram boa gente do
campo. Ela telefonara ao homem cujo nome eles tinham dado como
referência, e ele contara-lhe que Mr. Freeman era um bom lavrador,
mas que a esposa dele era a mulher mais metediça que alguma vez
houvera à face da terra. - Ela tem de meter o nariz em tudo - disse o
homem. - Se alguma vez acontecer alguma coisa e ela não chegar lá
antes de a poeira assentar, então é porque morreu, e 'tá tudo dito. Ela
vai querer saber tudo da sua vida. Eu dava-me muito bem com ele -
dissera o homem - , mas nem eu nem a minha mulher conseguíamos
aturar aquela mulher nesta casa nem mais um minuto . - Isto refreou
o ânimo de Mrs Hopewell durante alguns dias .
.
adotar para lidar com a mulher. Uma vez que ela era o género de
pessoa que tinha de se meter em tudo , então , decidira Mrs . Hopewell,
não só a deixaria meter-se em tudo como se certificaria de que ela
estava por dentro de tudo - encarregá-la-ia de tudo , confiar-lhe-ia
o governo da casa. Mrs . Hopewell não tinha defeitos seus , mas con
seguia usar os defeitos dos outros de um modo tão construtivo que
nunca lhes sentia a falta. Contratara os Freemans e mantinha-os ao
seu serviço havia quatro anos .
Nada é perfeito. Esta era uma das frases feitas preferidas de Mrs .
Hopewell . Uma outra era: a vida é mesmo assim ! E outra ainda, a mais
importante, era: bom, toda a gente tem direito à sua opinião. Proferia
estas frases , geralmente à mesa, num tom de insistência suave, como
se mais ninguém acreditasse naquelas verdades a não ser ela, e Joy,
corpulenta e pesadona, cuja indignação constante lhe apagara do rosto
toda a expressão facial, fitava um ponto ligeiramente ao lado dela, de
olhos azuis e gélidos, com a expressão de alguém que alcançou a ce
gueira por um ato deliberado e tenciona manter-se assim.
Quando Mrs . Hopewell dizia a Mrs . Freeman que a vida era mes
mo assim, Mrs . Freeman respondia: «Foi o que eu sempre disse .»
Ninguém chegara a nenhuma conclusão a que ela não tivesse já che
gado primeiro . Era mais despachada do que Mr. Freeman . Quando
Mrs . Hopewell lhe dissera, depois de eles estarem há algum tempo
lá em casa: - Sabe , a senhora é o volante atrás do volante - e lhe
piscara o olho , Mrs . Freeman respondera: - Eu sei . Sempre fui des
pachada. Alguns são mais despachados do que outros , prontos .
- Não há duas pessoas iguais - comentou Mrs . Hopewell .
- Pois não , quase nenhumas - disse Mrs . Freeman .
- A variedade evita o fastio .
- Foi o que eu própria sempre disse .
A rapariga estava habituada a este género de diálogos ao pequeno
-almoço , e mais diálogos do mesmo género ao jantar; por vezes , o
mesmo sucedida à ceia, também. Quando não tinham convidados , co
miam na cozinha, por ser mais cómodo. Mrs . Freeman arranjava sem
pre maneira de chegar num qualquer momento durante a refeição e de
ficar a vê-las terminá-la. Ficava parada no vão da porta, se fosse verão,
mas , no inverno, postava-se com um cotovelo apoiado no frigorífico e
olhava-as de alto, ou então ia para junto do aquecedor a gás , erguendo
1 56 Flannery O ' Connor
recia a Mrs . Hopewell que , a cada ano que passava, ela se asseme
lhava cada vez menos às outras pessoas e se tomava cada vez mais
peculiar - vaidosa, grosseira e vesga. E dizia coisas tão esquisitas !
Dissera à própria mãe - sem aviso , sem desculpa, pondo-se de pé a
meio de uma refeição , de rosto púrpura e boca meio cheia - «Mu
lher! Alguma vez olhas para dentro de ti? Alguma vez olhas para
dentro de ti e vês o que não és? Meu Deus ! » , e, depois de bradar
estas palavras , tomara a afundar-se na cadeira e , fitando o prato ,
acrescentara: «Malebranche tinha razão: não somos a nossa própria
luz . Não somos a nossa própria luz ! » Ainda hoje, Mrs . Hopewell
não fazia ideia do que desencadeara esta explosão . Limitara-se a
dizer, esperando que Joy assimilasse o comentário , que um sorriso
não fazia mal a ninguém .
A rapariga doutorara-se em filosofia, e isto deixara Mrs . Hopewell
completamente perdida. Uma pessoa podia dizer: «A minha filha é
enfermeira» , ou «A minha filha é professora primária» , ou até «A
minha filha é engenheira química.» Ninguém podia dizer: «A minha
filha é filósofa.» Isso era uma coisa que tinha acabado no tempo dos
gregos e dos romanos. Joy passava o dia inteiro recostada numa fun
da poltrona, a ler. À s vezes , ia dar passeios , mas não gostava de cães ,
nem de gatos , nem de pássaros , nem de flores , nem da natureza, nem
de rapazes simpáticos . Olhava para os rapazes simpáticos como se
lhes farejasse ao longe a estupidez .
Um dia, Mrs . Hopewell pegou num dos livros que a rapariga aca
bara de pousar e , abrindo as páginas ao acaso , leu: «A ciência, por
seu lado , tem de reafirmar a sua prudência e a sua seriedade e decla
rar que se preocupa apenas com o ente . O nada - poderá ser outra
coisa para a ciência que não horror e fantasia? Se a ciência está certa,
então uma coisa é indiscutível: a ciência nada quer saber do nada. Eis
aqui , no fim de contas , o conceito rigorosamente científico do Nada.
Conhecemo-lo ao desejarmos nada saber do Nada.» Estas palavras ,
sublinhadas com um lápis azul , abalaram Mrs . Hopewell como um
feitiço maléfico , pronunciado numa algaraviada incompreensível.
Fechou o livro muito depressa e saiu da sala como se um calafrio a
percorresse.
Naquela manhã, quando a rapariga entrou , Mrs . Freeman estava a
falar sobre Carramae . - Ela vomitou quatro vezes depois do jantar
1 60 Flannery O ' Connor
disse que ele lhe disse que nem que lhe pagassem quinhentos dólares
abdicava do casamento na presença do pregador.
- E quanto é que ele aceitava para abdicar? - perguntou a rapa
riga do fogão .
- Ele disse que nem que lhe pagassem quinhentos dólares - re
petiu Mrs . Freeman .
- Bom, todos temos muito que labutar neste mundo - comentou
Mrs . Hopewell .
- O Lyman disse que assim é que teve a sensação duma coisa sa
grada - insistiu Mrs . Freeman. - O médico quer que a Carramae
coma ameixas secas . Diz que é melhor do que medicamentos . Diz que
as cãibras lhe vêm da pressão. Sabe onde é que eu acho que o coiso 'tá?
- Ela vai melhorar dentro de poucas semanas - acudiu Mrs . Ho
pewell .
- Na trompa - disse Mrs . Freeman . - Se não fosse assim , ela
não andava tão agoniada como anda.
Hulga descascara os seus dois ovos cozidos e pusera-os num pi
res e estava a levá-los para a mesa , juntamente com uma chávena
de café que enchera demasiado . Sentou-se com gestos cautelosos
e começou a comer, fazendo tenções de manter Mrs . Freeman na
cozinha por meio de perguntas , se , por qualquer motivo , ela se mos
trasse inclinada a sair. Apercebia-se do olhar da mãe cravado nela.
A primeira pergunta indireta diria respeito ao vendedor de Bíblias , e
ela não desejava suscitá-la. - Como é que ele lhe estalou o pesco
ço? - indagou .
Mrs . Freeman lançou-se numa descrição do modo como ele lhe
estalara o pescoço . Disse que ele tinha um Mercury de 1 955 , mas que
Glynese tinha dito que preferia casar-se com um homem que tivesse
apenas um Plymouth de 1 936, desde que ele se quisesse casar na p�
sença dum pregador. A rapariga perguntou-lhe então e se ele tives�
um Plymouth de 1932, e Mrs . Freeman respondeu que ela tinha fala
do dum Plymouth de 1 936.
Mrs . Hopewell disse que não havia muitas raparigas com o bom
senso de Glynese . Disse que o que mais admirava naquelas rapa
rigas era o bom senso delas . Disse que isso lhe trazia à lembrança
que , na véspera, tinham recebido um visitante simpático , um jovem
a vender Bíblias . - Valha-me Deus - disse - , ele aborreceu-me
1 66 Flannery O ' Connor
de morte , mas era tão sincero e tão genuíno que não consegui ser
malcriada com ele . Era boa gente do campo , sabe como é - acres
centou - , o sal da terra.
- Eu vi-o passar - disse Mrs . Freeman - e depois , mais tarde ,
vi-o ir-se embora - e Hulga apercebeu-se da ligeira mudança na
voz dela, a vaga insinuação de que ele não se afastara sozinho , pois
não? Manteve o rosto inexpressivo , mas ficou com o pescoço muito
vermelho e pareceu engolir o rubor com a colherada seguinte de ovo .
Mrs . Freeman olhava-a como se partilhassem um segredo .
- Bom, é a variedade que evita o fastio neste mundo - comentou
Mrs . Hopewell . - Ainda bem que não somos todos parecidos .
- Certas pessoas são mais parecidas do que outras - ajuntou
Mrs . Freeman .
Hulga pôs-se de pé e encaminhou-se para o quarto a bater com
os pés , fazendo quase o dobro do barulho que lhe seria necessário ,
e trancou a porta. la encontrar-se junto à cancela com o vendedor de
Bíblias às dez em ponto . Passara metade da noite a pensar naquilo .
De início , pensara naquilo como uma grande brincadeira, e depois
começara a aperceber-se de implicações desmedidas . Deitada na ca
ma, pusera-se a imaginar diálogos entre eles que eram tresloucados ,
à primeira vista, mas que alcançavam profundezas de que nenhum
vendedor de Bíblias se apercebia. A conversa deles na véspera fora
deste género .
Ele estacara defronte dela e limitara-se a ficar ali parado . Tinha o
rosto ossudo e transpirado e rebrilhante , com um narizito pontiagudo
no meio, e uma expressão diferente da que exibira à mesa do jantar.
Fitava-a com curiosidade franca, com fascínio , como uma criança a
observar um novo animal fantástico no jardim zoológico , e ofegava,
como se tivesse tido de correr uma grande distância para a alcançar.
Havia naquele olhar qualquer coisa de familiar, mas ela não se recor
dava de onde fora olhada daquela forma. Durante quase um minuto ,
ele nada disse . Por fim, naquilo que pareceu um sorvo de ar, sussur
rou: - Alguma vez comestes um frango com dois dias?
A rapariga olhou-o com expressão empedernida. Ele tinha cara de
quem acabara de pôr aquele dilema à consideração da assembleia, nu
ma reunião de uma associação de filósofos . - Sim - acabou ef a por
replicar, como se tivesse ponderado todas as vertentes do problema.
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 1 67
amanhã? Diz que sim, Hulga - atirou ele e lançou-lhe um olhar mori
bundo , como se sentisse as entranhas prestes a jorrarem-lhe do corpo .
Pareceu até tombar ligeiramente na direção dela.
Durante a noite, ela imaginou que o seduzia. Imaginou que cami
nhavam os dois pela quinta até chegarem ao celeiro , para além dos
dois campos nas traseiras da casa, e ali , imaginou ela, as coisas as
sumiam tais proporções que ela o seduzia com toda a facilidade e
depois , é claro , tinha de lidar com os remorsos dele . O verdadeiro gé
nio consegue transmitir uma ideia até mesmo a um espírito inferior.
Ela imaginou que pegava nos remorsos dele pela mão e que os alte
rava, transformando-os numa compreensão mais profunda da vida.
Livrava-o de toda a vergonha e convertia-a em qualquer coisa de útil .
Encaminhou-se para o portão precisamente às dez em ponto , esca
pulindo-se sem atrair a atenção de Mrs . Hopewell . Não levou nada pa
ra comer, esquecendo-se de que, geralmente , as pessoas levam comi
da para os piqueniques . Vestia um par de calças e uma camisa branca
já suja e, depois de pensar um pouco , tinha posto pomada de mentol
Vapex no colarinho , uma vez que não tinha perfume nenhum. Quando
chegou à cancela, não estava lá ninguém.
Olhou para um lado e para o outro ao longo da estrada e experi
mentou a sensação furiosa de ter sido ludibriada, de que ele quisera
apenas que ela caminhasse até à cancela em obediência ao convite
dele . Então , subitamente , ele pôs-se de pé , muito alto , erguendo-se
de trás de um arbusto no talude do lado oposto . Sorridente , ergueu
o chapéu , que era novo e tinha aba larga. Não o trazia na véspera, e
ela ficou na dúvida se ele o comprara para a ocasião . Era amarelo
-torrado com uma fita vermelha e branca em volta da copa, e era um
tudo-nada grande de mais para ele . Ele emergiu de trás do arbusto ,
ainda carregando a mala preta. Vestia o mesmo fato e as mesmas peú
gas amarelas , enrodilhadas dentro dos sapatos de tanto andar. Atra
vessou a estrada e disse: - Eu sabia que tu vinhas !
A rapariga perguntou a si mesma com acrimónia como é que ele
sabia. Apontou para a mala e perguntou: - Porque é que trouxeste
as tuas Bíblias?
Ele pegou-lhe no braço , sorrindo enquanto a olhava de alto , como
se não fosse capaz de parar. - Nunca se sabe quando é que vamos
precisar da palavra de Deus , Hulga - disse . Houve um momento
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 1 69
-se num monte de palha. Uma larga faixa oblíqua de luz do Sol , reple
ta de partículas de poeira, passava sobre ela. Recostou-se contra um
fardo, de rosto desviado, a olhar para o exterior pela abertura frontal
do celeiro, por onde a palha era atirada de uma carroça para dentro
do palheiro. As duas encostas salpicadas de cor-de-rosa jaziam contra
o pano de fundo de uma crista escura de bosques . O céu era limpo e
tinha uma cor azul e fria. O rapaz deixou-se cair ao lado dela e pôs-lhe
um braço por baixo do corpo e o outro por cima e começou a beijar-lhe
para o ponto onde a perna se encontrava, ereta. Por fim, ela afastou-o
de si e ordenou: - Põe-ma outra vez , agora.
- Espera - disse ele . Inclinou-se para o lado oposto e puxou a
mala para mais perto e abriu-a. O forro era azul-claro, às bolinhas ,
e lá dentro havia apenas duas Bíblias . Ele tirou para fora uma destas
e abriu a capa. O livro era oco e continha um cantil de whiskey para
usar no bolso , um baralho de cartas e uma caixinha azul com qualquer
coisa impressa por fora. Ele pousou estes três objetos diante dela, um
de cada vez, em fila, a intervalos regulares , como quem apresenta ofe
rendas diante do santuário de uma deusa. Pôs-lhe a caixa azul na mão .
ESTE PRODUTO DEVE SER USADO APENAS PARA A PREVENÇÃO DE
DOENÇAS , leu ela, e deixou cair a caixa. O rapaz estava a desatarraxar
a tampa do cantil . Deteve-se e apontou , com um sorriso , para o bara
lho de cartas . Não era um baralho como os outros , havia um desenho
obsceno na parte de trás de cada carta. - Bebe um gole - disse
ele, oferecendo-lhe o cantil em primeiro lugar. Segurou-o diante dela,
mas , como uma pessoa hipnotizada, ela não se mexeu .
Quando falou , a sua voz tinha uma entoação quase suplicante . -
Não és . . . - murmurou - não és apenas boa gente do campo?
O rapaz inclinou a cabeça de viés . Parecia ter entendido naquele
preciso momento que ela talvez estivesse a tentar insultá-lo . - Sou
- disse , arrepanhando um bocadinho os lábios - , mas isso não me
embaraçou nada. Valho tanto como tu todos os dias da semana.
- Dá-me a minha perna - pediu ela.
Ele afastou mais a perna de pau com o pé . - Vamos lá, vamos
começar a divertir-nos - disse em voz insinuante . - Ainda não nos
ficámos a conhecer bem .
- Dá-me a minha perna! - berrou ela, e tentou lançar-se na dire
ção da perna artificial , mas ele empurrou-a para baixo com facilidade .
- O que é que se passa contigo , de repente? - perguntou , fran
zindo o cenho enquanto atarraxava a tampa do cantil de bolso e o
guardava muito depressa dentro da Bíblia. - Ainda há um niquinho
dissestes que não acreditavas em nada. Julguei que eras uma moça
de truz !
Ela tinha o rosto quase púrpura. - És um cristão ! - sibilou . - É s
um belo cristão ! É s igualzinho ao resto das pessoas , dizes uma coisa
e fazes outra. É s um perfeito cristão , és . . .
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 1 75
Eles deviam de ' tar lá na terra deles , onde as coisas ainda são como
eles 'tavam habituados . Aqui é tudo mais avançado do que na terra
donde eles vêm. Mas eu , se fosse vocês, ficava de olho atento -
prosseguiu , acenando com a cabeça. - Há mais uns dez milhões de
biliões iguais a eles , e eu é que sei o que Mrs . Mclntyre disse .
- O qué que ela disse? - perguntou o mais novo .
- Não é fácil arranjar emprego nos dias que correm, seja pra bran-
cos ou pra pretos , mas acho que ouvi bem o que ela me disse - disse
ela em voz de quem entoa uma melopeia.
- A gente ouve com cada uma - comentou o velho, curvando-
-se para diante como se fosse afastar-se, mas mantendo-se quieto no
mesmo lugar.
- Ouvi-a dizer assim: «Isto vai incutir o temor a Deus naqueles
pretos mandriões ! » - declarou Mrs . Shortley em voz vibrante .
O velho começou a caminhar. - Ela diz coisas desse género de
vez em quando - observou . - Ah , ah. Pois , pois .
- Acho melhor entrares naquele estábulo e dares uma ajuda a Mr.
Shortley - disse ela ao outro . - Pra que é que julgas que ela te paga?
- Ele é que mandou eu sair de lá - resmungou o negro . - Ele é
que mandou eu fazer outra coisa.
- Então acho bem que te ponhas a fazer o que ele mandou - re
torquiu ela, e não arredou pé até ele se afastar. Em seguida, ficou ali
mais um pouco , a refletir, o olhar perdido a fixar um ponto mesmo à
frente da cauda do pavão . O animal saltara para cima da árvore , e a
sua cauda pendia diante dela, repleta de planetas ferozes com olhos ,
cada qual orlado de verde e desenhado sobre um sol que era dourado
à luz de um momento e cor de salmão à luz do momento seguinte .
Dir-se-ia que tinha diante dos olhos um mapa do universo, mas não
reparou , assim como não reparou nas manchas de céu que rompiam
o verde mortiço da árvore . Em vez disso, estava a ter uma visão inte
rior. Estava a ver os dez milhões de biliões de refugiados a ocuparem
à força novos lugares do lado de cá do oceano , e ela própria, um anjo
gigantesco com asas da largura da casa, dizia aos negros que eles iam
ter de encontrar outra terra para viver. Voltou-se na direção do está
bulo , a meditar acerca disto, com uma expressão altiva e satisfeita.
Aproximou-se do estábulo por um ângulo oblíquo , que lhe permi
tiu espreitar através da porta antes de ela própria ser vista. Mr. Chan-
1 84 Flannery O ' Connor
- Achas que ele sabe guiar um trator, se nem inglês sabe falar? -
perguntou ela. - Não me parece que ela vá dar o dinheiro dela por
bem empregado . O rapaz sabe inglês , mas tem um ar muito delicado .
O que consegue labutar não sabe falar, e o que sabe falar não conse
gue labutar. Vai dar ao mesmo do que se ela tivesse arranjado mais
uns quantos pretos .
- Eu cá preferia um preto , se fosse a ela - comentou Mr. Shortley.
- Ela diz que há mais dez milhões assim como eles , refugiados ,
diz que o padre lhe arranja tantos quantos ela quiser.
- Eu cá é que não dava muita confiança àquele padre - disse Mr.
Shortley.
- Ele não parece muito esperto - comentou Mrs . Shortley - ,
parece meio apalermado .
- Eu cá é que não vou deixar que seja o papa lá de Roma a dizer-
-me comé que se governa uma vacaria - atirou Mr. Shortley.
- Eles não são italianos , são polacos - acudiu ela. - Da Polónia,
onde havia aqueles montes até ao teto de pessoas mortas . Lembras-te
daqueles mortos todos?
- Dou-lhes três semanas nesta quinta - rematou Mr. Shortley.
ali parada, a ouvir Mrs. Mclntyre desabafar até ao fim, mas , daquela
vez, a ladainha não terminou como habitualmente . - Só que, final
mente, estou salva! - exclamou Mrs Mclntyre. - A desgraça de uns
.
res sem essas patranhas . Para as pessoas como ela, gente despachada,
a religião era uma ocasião social que proporcionava a oportunidade
de cantar; porém, se alguma vez tivesse pensado a valer no assunto ,
teria considerado o demónio o chefe da religião, e Deus o pendura.
Com a chegada daqueles refugiados , via-se obrigada a refletir nova
mente em muitas e variadas coisas .
- Sei muito bem o que é que a Sledgewig disse à Annie Maude
- comentou , e, quando Mrs Mclntyre teve o cuidado de não lhe per-
.
Mrs . Shortley achou que já não era sem tempo , ela fazer aquela
pergunta. Mr. Shortley estava há dois dias de cama com uma crise .
Mr. Guizac tomara o lugar dele na vacaria, além de fazer todo o seu
trabalho . - Não , não se sente melhor - respondeu . - O médico
disse que ele que sofria de exaustão .
- Se Mr. Shortley está exausto - comentou Mrs . Mclntyre - é
porque deve ter um segundo trabalho nas horas vagas - e remirou
Mrs . Shortley de olhos quase fechados , como se estivesse a examinar
o fundo de uma bilha de leite .
Mrs . Shortley não disse uma palavra, mas as suas desconfianças
sombrias adensaram-se como uma nuvem negra de tempestade . A
verdade era que Mr. Shortley tinha mesmo um segundo trabalho
nas horas vagas , e que , num país livre , isto não era da conta de
Mrs . Mclntyre . Mr. Shortley fabricava whiskey . Tinha um pequeno
alambique numa das zonas mais recônditas da quinta, nas terras de
Mrs . Mclntyre , sem dúvida, mas em terras de que ela era proprietá-
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 1 89
ria mas que não cultivava, em baldios que não serviam para nada.
Mr. Shortley não tinha medo de trabalhar. Levantava-se às quatro
da manhã e ordenhava-lhe as vacas e , a meio do dia, quando deve
ria estar a descansar, ia tratar do seu alambique . Não havia muitos
homens capazes de trabalhar assim. Os negros sabiam do alambique
dele , mas ele sabia do alambique deles , por isso nunca tinha havi
do desaguisados de parte a parte . No entanto , com estrangeiros na
quinta, com gente que tudo via e nada entendia, que viera de um
lugar onde as pessoas se guerreavam sem parar, onde a religião não
fora reformada - com aquele género de gente , era preciso estar
sempre de sobreaviso . Ela achava que devia haver uma lei contra
eles . Não havia razão para eles não ficarem na sua terra e ocuparem
os lugares de alguns dos que tinham sido mortos nas suas guerras e
massacres .
- E o que é mais - acrescentou subitamente - , a Sledgewig
disse que , assim que o paizinho dela ajuntar dinheiro que chegue , vai
comprar um carro em segunda mão . Assim que eles comprarem um
carro em segunda mão , vão-se embora daqui .
- Com o que lhe pago , é impossível ele poupar dinheiro - con
trapôs Mrs . Mclntyre - , não tenho de me afligir com isso . É claro
- disse então - que, se Mr. Shortley ficasse incapacitado , eu teria
de empregar Mr. Guizac na vacaria a tempo inteiro , e então teria de
lhe pagar mais . Ele não fuma - rematou , e era a quinta vez naquela
semana que sublinhava este aspeto .
- Não há homem - replicou Mrs . Shortley, com ênfase - que
trabalhe tanto como o Chancey, ou que seja tão meigo com as vacas ,
ou que seja mais cristão - e, cruzando os braços , perfurou a lonjura
com o olhar. O ruído do trator e da ceifeira de forragem recrudesceu, e
Mr. Guizac surgiu, a avançar do lado oposto do renque de canas . - E o
mesmo não se pode dizer de toda a gente - resmungou. Perguntou a si
mesma se, caso o polaco encontrasse o alambique de Chancey, perce
beria do que se tratava. O problema daquela gente era não sabermos o
que eles sabiam. Cada vez que Mr. Guizac sorria, a Europa estendia-se
a perder de vista na imaginação de Mrs . Shortley, misteriosa e ruim, o
campo de experiências do demónio .
O trator, a ceifeira de forragem e o atrelado passaram, a sacolejar
e a rumorejar e a chiar diante delas . - Pense só no tempo que isto
1 90 Flannery O ' Connor
havia de ter demorado , fazer este trabalho com homens e com mulas
- gritou Mrs . Mclntyre . - A este ritmo , vamos ceifar este campo
inteiro em dois dias .
- Talvez - resmungou Mrs . Shortley - , se não acontecer ne
nhum acidente terrível . - Pensou no modo como os tratores tinham
tomado as mulas inúteis . Hoje em dia, ninguém ·queria uma mula,
nem oferecida. A próxima coisa a ser descartada, recordou a si mes
ma, seriam os pretos .
De tarde , foi ter com Astor e Sulk quando eles estavam no pasto
das vacas , a encher o adubador com estrume , e explicou-lhes o que
lhes ia acontecer. Sentou-se junto ao bloco de sal , sob um pequeno
alpendre , a barriga assente no regaço , os braços cruzados por cima.
- Se eu fosse a vocês , as pessoas de cor, tinha cuidado - disse . -
Sabem bem quanto é que nos dão por uma mula.
- Nada, não dão nada - disse o velho - , nem um tostão .
- Antes de haver tratores - continuou ela - , podiam ser as mu-
las a fazer o trabalho . E antes de haver refugiados , podiam ser os
pretos . Vai chegar o dia - profetizou - em que já nem sequer se vai
falar dos pretos .
O velho riu-se educadamente . - Pois é , pois é - disse . - Ah , ah.
O mais novo não disse nada. Limitou-se a fazer um ar carrancu
do , mas , quando ela desapareceu no interior da casa, comentou: -
A Barriguda tem a mania que sabe tudo .
- Não te aflijas - disse-lhe o velho - , o teu lugar é demasiado
mesquinho pra alguém querer roubar ele a ti .
Ela não comunicou os seus receios acerca do alambique a Mr.
Shortley até ele ter retomado o trabalho na vacaria. Então , uma noite ,
depois de já estarem deitados , disse: - Aquele homem anda pela
quinta a meter o nariz .
Mr. Shortley entrelaçou as mãos sobre o peito ossudo e fingiu que
era um cadáver.
- Anda por aí a meter o nariz - prosseguiu ela, e desferiu-lhe um
rijo golpe no flanco com o joelho . - Vá lá a gente imaginar o que é
que eles sabem e o que é que não sabem . . . Se calhar, se ele encontrar
o alambique , vai a correr ter com ela e conta-lhe logo . Como é que
sabes que eles não fazem aguardente lá na Europa? Guiam tratores .
Têm montes de maquinaria diferente . Responde-me .
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 191
sabem. A gente pode sempre mandar um preto fazer uma coisa e ficar
a vigiá-lo até ele a fazer.
- Era o que o juiz dizia - comentou Mrs . Mclntyre, e olhou
para ela com ar aprovador. O juiz fora o primeiro marido dela, fora
quem lhe deixara a quinta em herança. Mrs . Shortley ouvira dizer
que ela se casara com ele quando tinha trinta anos e ele tinha setenta
e cinco , pensando que ia enriquecer assim que ele morresse , mas que
o velho era um patife e que , quando lhe foram analisar o património ,
se descobriu que ele não possuía um tostão . Deixou-lhe em herança
somente os vinte hectares de terra e a casa. Mas ela falava sempre
dele em tom reverente e citava-lhe os adágios , como «Ü azar de uns
é a sorte dos outros» e «Mais vale um mal conhecido do que um bem
por conheceD> .
- Ainda assim - acudiu Mrs . Shortley - , mais vale um mal
conhecido do que um bem por conhecer - e teve de desviar o rosto ,
para que Mrs . Mclntyre não a visse sorrir. Descobrira o que é que
o Refugiado andava a fazer através do velho , Astor, e não contara
a ninguém, à parte Mr. Shortley. Este soerguera-se na cama, muito
direito , que nem Lázaro a levantar-se da sepultura.
- Cala a boca! - ordenou ele .
- Sim - teimou ela.
- Não ! - exclamou Mr. Shortley.
- Sim - repetiu ela.
Mr. Shortley tornou a cair na cama que nem uma tábua.
- O polaco não sabe o que faz - disse Mrs . Shortley. - Acho
que é o padre que lhe anda a dar essas ideias . Cá pra mim, a culpa é
do padre .
O padre vinha muitas vezes ver os Guizacs, e ia sempre até à casa
fazer uma visita a Mrs . Mclntyre , e caminhavam os dois pela quinta,
e ela indicava-lhe os melhoramentos e ouvia-lhe o palavreado matra
queante . De súbito, ocorreu a Mrs . Shortley que ele estava a tentar
convencê-la a trazer outra farm1ia polaca para a quinta. Com duas
daquelas farm1ias ali , quase não se falaria outra língua naquele lu
gar a não ser o polaco ! Os negros desapareceriam, e haveria duas
farm1ias contra Mr. Shortley e ela própria ! Começou a imaginar uma
guerra de palavras , a ver as palavras polacas e as palavras inglesas a
lançarem-se ao encontro umas das outras , a avançarem, sorrateiras ,
1 94 Flannery O 'Connor
não frases , somente palavras , blá blá blá, proferidas em vozes agudas
e estridentes e a esgueirarem-se para diante e depois a lutarem corpo
a corpo umas com as outras . Viu as palavras polacas , reles e astutas
e que nenhuma reforma emendara, a atirarem lama às palavras ingle
sas puras até tudo estar igualmente conspurcado . Viu-as amontoadas
numa divisão , todas as palavras mortas e sujas , as deles e também as
dela, amontoadas como os cadáveres nus das atualidades do cinema.
Deus me livre ! bradou em silêncio , do poder ascoroso de Satã ! E, a
partir daquele dia, começou a ler a sua Bíblia com atenção redobra
da. Leu o Apocalipse de fio a pavio e começou a citar versículos dos
livros dos Profetas , e não tardou a alcançar uma compreensão mais
profunda da sua existência. Via claramente que o significado do mun
do era um mistério que fora planeado de antemão e não a espantava
desconfiar que ela própria tinha um papel especial nesse plano , por
que era muito forte . Via que Deus Todo-Poderoso criara as pessoas
fortes para fazerem o que tinha de ser feito e sentia que estaria pronta
quando fosse chamada. Naquele momento , parecia-lhe que a sua ta
refa era vigiar o padre .
As visitas dele incomodavam-na cada vez mais . Aquando da últi
ma, ele pôs-se a apanhar plumas do chão . Encontrou duas plumas
de pavão e quatro ou cinco de peru e uma velha pena de galinha e
levou-as consigo , como se fosse um bouquet. Estes gestos apalerma
dos nem por sombras enganavam Mrs . Shortley. Ali estava ele: a tra
zer estrangeiros aos magotes para lugares longe da terra deles , para
causarem desaguisados , para expulsarem os pretos , para instalarem
a Prostituta da Babilónia no meio dos justos ! Sempre que ele vinha à
quinta, ela escondia-se atrás de qualquer coisa e ficava a observá-lo
até ele partir.
Foi numa tarde de domingo que teve a sua visão . Fora arrebanhar
as vacas em lugar de Mr. Shortley, que tinha uma dor no joelho , e es
tava a caminhar vagarosamente através do pasto, de braços cruzados ,
de olhos postos nas nuvens baixas e distantes que pareciam fiadas su
cessivas de peixes brancos lançados a uma vasta praia azul . Deteve-se
ao chegar ao alto de um declive para soltar um suspiro de exaustão ,
pois tinha de carregar um peso colossal e já não era tão jovem como
dantes . Às vezes , sentia o próprio coração , semelhante ao punho de
uma criança, a cerrar-se e a abrir-se dentro do peito , e, quando essa
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 1 95
frasco , e por baixo dos pés dele lia-se a inscrição: «Esta maravilhosa
descoberta regulou-me os intestinos ! » Mrs . Shortley sempre se sen
tira próxima daquele homem, como se ele fosse uma pessoa distinta
dos seus conhecimentos , mas agora o seu espírito estava concentra
do somente na presença perigosa do padre . Postou-se junto de uma
fenda entre duas tábuas , onde poderia espreitar e vê-lo a caminhar
juntamente com Mrs . Mclntyre em direção à incubadora de perus ,
que estava instalada mesmo à porta do barracão das rações .
- Arrrrr ! - soltou ele ao aproximarem-se da incubadora. - Veja
só estes pintinhos ! - e , detendo-se, franziu as pálpebras para esprei
tar através da rede de arame .
Mrs . Shortley retorceu a boca.
- Acha que os Guizacs vão querer deixar esta quinta? - pergun
tou Mrs . Mclntyre . - Acha que eles vão partir para Chicago ou para
outro lugar assim?
- E porque é que eles haviam de fazer uma coisa dessas agora?
- indagou o padre, a agitar o dedo na direção de um peru , com o
narigão muito próximo da rede .
- Por dinheiro - disse Mrs . Mclntyre .
- Arrrr, então pague-lhes um salárrrio mais alto - disse ele, sem
prestar grande atenção . - Eles têm de se governar.
- Também eu - resmungou Mrs . Mclntyre . - Quer dizer que
vou ter de mandar embora alguns dos outros assalariados .
- E os Shortleys são satisfatórrrios? - indagou ele , mais concen
trado nos perus do que nela.
- Encontrei Mr. Shortley a fumar no estábulo cinco vezes neste
último mês - respondeu Mrs . Mclntyre . - Cinco vezes .
- E os negrrros são melhorrre s?
- Mentem e roubam, e é preciso estar sempre de olho neles -
disse ela.
- Tsk, tsk - soltou ele . - E quem é que a senhora vai despedir?
- Decidi que amanhã vou dar o aviso prévio a Mr. Shortley -
respondeu Mrs . Mclntyre .
O padre pareceu quase não a ouvir, tão ocupado estava a agitar o
dedo dentro da rede . Mrs . Shortley sentou-se numa saca aberta de
ração para poedeiras com um baque surdo que levantou em volta de
la nuvens de pó do cereal . Deu por si a olhar de frente para a parede
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 1 97
II
Ela casara-se com ele quando ele já era velho, por causa do dinheiro
dele , mas havia outra razão , que ela se recusava a reconhecer, mesmo
lá no íntimo: gostava dele . Ele era uma figura bem conhecida no tribu
nal , um velho imundo que passava a vida a meter rapé nas gengivas ,
famoso em todo o condado por ser rico , calçava sapatos de cano alto ,
usava gravata de fio, fato cinzento com riscas negras e um panamá
amarelado, quer de inverno, quer de verão . Tinha os dentes e o cabelo
da cor do tabaco e o rosto de um cor-de-rosa em tons de argila, esca
lavrado e sulcado por marcas misteriosas de aparência pré-histórica,
como se o tivessem desenterrado do meio de fósseis . Exalava um odor
peculiar a notas de banco amarrotadas e transpiradas , mas nunca an
dava com dinheiro nem tinha um tostão para gastar. Ela fora secretária
dele durante alguns meses , e o velho , com o seu olho arguto, viu de
imediato que ali estava uma mulher que o admirava pelas suas quali
dades . Os três anos que ele viveu depois de se casarem foram os mais
felizes e os mais prósperos da vida de Mrs . Mclntyre , mas , quando ele
morreu , verificou-se que estava falido . Deixou-lhe em herança uma
casa hipotecada e vinte hectares de terra, cujas florestas , antes de mor
rer, ainda arranjara forma de cortar para lhes vender a madeira. Era
como se , à laia de triunfo final de uma vida bem-sucedida, ele tivesse
conseguido levar tudo consigo .
Mas ela sobreviveu . Sobreviveu a uma sucessão de rendeiros e
responsáveis da vacaria que o próprio velho teria tido dificuldade
em suportar, conseguiu fazer face às delapidações constantes de uma
horda de negros carrancudos e imprevisíveis , e conseguiu até não se
deixar levar pela cantiga de vampiros esporádicos , negociantes de
gado e madeireiros e compradores e vendedores de tudo e mais algu
ma coisa que vinham até à quinta nos seus camiões desconjuntados e
buzinavam no terreiro .
Ela ficou de pé, ligeiramente inclinada para trás , de braços cru
zados sob a bata, uma expressão satisfeita no rosto enquanto obser
vava o Refugiado a desligar a mangueira e a desaparecer dentro da
vacaria. Tinha pena de que o pobre homem tivesse sido expulso da
Polónia e obrigado a abandonar a Europa, vendo-se reduzido a viver
numa choupana de assalariado , num país estrangeiro , mas ela não
era responsável por nada disto . Ela própria passara muitas dificulda
des . Sabia o que era lutar pelo pão de cada dia. Era bem melhor as
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 205
O que lhe viera ao espírito fora o anjo junto à campa do juiz . Era
um querubim nu feito de granito que o velho tinha visto na cidade,
certo dia, na montra de uma loja de lápides . A estátua cativara-o de
imediato, em parte porque o rosto do anjo lhe lembrava a mulher,
em parte porque queria uma obra de arte genuína a adornar a própria
sepultura. Regressara a casa com a estátua pousada no banco de felpa
verde do comboio, a seu lado . Mrs . Mclntyre nunca se apercebera de
nenhuma semelhança com as suas próprias feições . Sempre achara o
anjo horroroso , mas , quando os Herrins o roubaram da sepultura do
velho , ficou chocada e furiosa. Mrs . Herrin achava a estátua muito bo
nita e ia frequentemente até ao cemitério para a contemplar, e, quando
os Herrins partiram, o anjo partiu com eles , deixando apenas os dedos
dos pés , pois o machado que o velho Herrin usara para o partir percu
tiu a pedra um pouco acima do ponto desejado . Mrs . Mclntyre nunca
juntara dinheiro suficiente para o mandar substituir.
Depois de verter todas as lágrimas de que foi capaz , ela levantou
-se e foi até à sala das traseiras , uma divisão semelhante a um gabi
nete, escura e silenciosa como uma capela, e sentou-se na borda da
cadeira articulada do juiz , forrada de negro , com o cotovelo apoiado
na secretária dele . Tratava-se de uma gigantesca escrivaninha com
tampo de correr, repleta de fiadas de compartimentos atafulhados de
papéis poeirentos . Nas gavetas entreabertas viam-se pilhas de velhos
livros de contabilidade e de registo , e um pequeno cofre , vazio mas
trancado , erguia-se, qual tabernáculo , no centro da divisão . Ela deixa
ra aquela parte da casa inalterada desde o tempo do velho . Era uma
espécie de monumento à memória dele, sagrado porque ele tratara ali
dos seus negócios . Bastava ela inclinar-se, por pouco que fosse , para
um lado ou para o outro , e a cadeira soltava um resmungo esquelético
e ferrugento que fazia lembrar vagamente o próprio velho quando ele
se queixava da sua pobreza. Ele tinha por princípio falar sempre como
se fosse a pessoa mais pobre do mundo, e ela imitava-o , não apenas
para lhe seguir o exemplo , mas também porque era verdade. Quando
se sentava ali com o rosto febril e contraído virado para o cofre vazio,
sabia que não havia no mundo ninguém mais pobre do que ela.
Ficou sentada à secretária, imóvel , durante dez minutos ou um
quarto de hora, e depois , como se tivesse recobrado algum vigor, le
vantou-se e meteu-se no carro e conduziu até ao milharal .
208 Flannery O 'Connor
cada vez mais depressa, até que acabou , sem fôlego , a meio de u ma
.
palavra - , aquele preto não se pode casar com uma mulher branca
da Europa. O senhor não pode falar assim com um preto . Vai fazê-lo
perder a cabeça, e , além do mais , isso não é permitido . Talvez seja
permitido na Polónia, mas aqui é proibido e o senhor tem de parar
com isso . É um disparate pegado . Aquele preto não tem dois dedos
de testa, e o senhor vai fazer com que ele perca . . .
- Ela está numa campo faz três anos - disse ele .
- A sua prima - declarou ela em tom categórico - não pode vir
para a América e casar-se com um dos meus pretos .
- Ela tem dez e seis anos - insistiu ele . - Da Polónia. Mãe mor
reu, pai morreu . Ela ficou à espera numa campo . Três campos . - Sa
cou uma carteira do bolso e folheou o respetivo conteúdo e tirou de lá
outra fotografia da mesma rapariga, alguns anos mais velha, vestida
com uma qualquer peça de roupa escura e informe . Estava encostada
a uma parede junto de uma mulher baixa que , aparentemente, não
tinha dentes . - É mãe - explicou , apontando para a mulher. - Ela
morreu na dois campo .
- Mr. Guizac - atirou Mrs . Mclntyre , devolvendo-lhe a fo
tografia com um gesto vivo - , não admito que desinquietem os
meus pretos . Não posso governar esta quinta sem os meus pretos.
Posso governá-la sem si, mas não sem eles , e , se o senhor toma a
falar nesta rapariga ao Sulk, não quero que trabalhe mais para mim .
Entendeu?
O rosto dele não manifestava compreensão . Ele parecia estar a en
caixar todas aquelas palavras no espírito para criar um pensamento .
Mrs . Mclntyre recordou as palavras de Mrs . Shortley: «Ele perce
be tudo , só faz de conta que não percebe pra poder fazer.o que muito
bem lhe apetece» , e o seu rosto readquiriu a expressão de ira chocada
do início da conversa. - Não consigo entender como é que um ho
mem que se diz cristão - declarou - seria capaz de trazer para cá
uma pobre rapariga inocente e casá-la com uma criatura daquelas .
Não consigo entender. Não consigo ! - e, abanando a cabeça, fitou a
lonjura com uma expressão angustiada dos seus olhos azuis .
Ao cabo de escassos momentos , ele encolheu os ombros e deixou
pender os braços , como se estivesse cansado . - Ela não se importa
preto - explicou . - Ela está na campo três anos .
210 Flannery O ' Connor
Mrs . Mclntyre sentiu uma fraqueza peculiar por trás dos joelhos .
- Mr. Guizac - disse - , não quero ser obrigada a falar consigo
novamente por causa deste assunto . Se isso acontecer, o senhor vai
ter de mudar de casa. Compreende?
O rosto feito de retalhos não respondeu . Ela tinha a impressão de
que ele não a via ali na sua frente . - Esta quinta- é minha - pros
seguiu . - Eu é que decido quem aqui mora e quem aqui não mora.
- Pois - disse ele , e tomou a pôr o boné na cabeça.
- Não sou responsável pelos males do mundo - acrescentou ela,
como uma reflexão tardia.
- Pois - disse ele .
- O senhor tem um belo emprego . Devia estar grato por viver
aqui - ajuntou ela - , mas não sei se está mesmo .
- Pois - disse ele , e executou o seu pequeno encolher de ombros
e tomou a encaminhar-se para o trator.
Ela viu-o subir para o assento e manobrar a máquina novamente
em direção ao milho . Quando ele passou diante dela e dobrou a cur
va, ela trepou até ao alto da encosta e ficou ali de braços cruzados e
espraiou a vista pelo campo com ar carrancudo . - São todos iguais
- murmurou - , quer venham da Polónia, quer do Tennessee . Já
lidei com Herrins e com Ringfields e com Shortleys , posso bem
lidar com um Guizac - e franziu as pálpebras até o olhar se lhe
fechar totalmente em volta da silhueta cada vez mais pequena do
Refugiado ao volante do trator, como se estivesse a observá-lo atra
vés da mira da uma arma. Passara a vida inteira a combater o refugo
do mundo , e agora tinha-o na sua frente , sob a forma de um polaco .
- É s igualzinho aos outros todos - disse - , só que és esperto e
frugal e vigoroso , mas eu também sou . E esta terra é minha - e ali
ficou , imóvel , uma silhueta atarracada, de chapéu negro , bata negra,
com um rosto de querubim caduco , e cruzou os braços como se es
tivesse à altura de qualquer desafio. Mas o coração batia-lhe como
se tivessem já cometido sobre ela uma qualquer violência interior.
Abriu os olhos para abarcar todo o campo , de modo que a silhueta
no trator não era maior do que um gafanhoto naquele panorama
alargado .
Ficou ali algum tempo . Soprava uma brisa leve , e o milho oscilava
em grandes ondas de ambos os lados da encosta. A grande ceifeira,
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 211
III
O padre , com o seu rosto comprido e afável apoiado num dedo , ti
nha estado a falar durante dez minutos acerca do Purgatório enquanto
Mrs . Mclntyre o fitava furiosamente de pálpebras semicerradas , sen
tada na cadeira em frente. Estavam a beber ginger ale no alpendre da
frente da casa dela, e ela não parava de chocalhar o gelo no seu copo ,
de chocalhar as contas do colar, de chocalhar a pulseira como um ca
valo impaciente a sacudir os arreios . Não tenho nenhuma obrigação
moral de o conservar aqui , dizia a si mesma em surdina, não tenho
obrigação moral absolutamente nenhuma. De súbito , pôs-se de pé de
sajeitadamente , e a voz dela tombou sobre o sotaque irlandês cerrado
do padre como uma pua a cair numa serra mecânica. - Escute ! -
soltou . - Eu não sou nada teológica ! Sou muito prática ! Quero falar
consigo acerca de uma questão prática !
- Arrrrr - gemeu ele , calando-se com um arquejo rangente .
Ela pusera pelo menos um dedo de whisky no seu ginger ale , para
conseguir suportar a longa visita dele , e sentou-se com um movimen
to canhestro , deparando com a cadeira mais perto do que esperava.
- Não estou satisfeita com Mr. Guizac - declarou .
O velho ergueu as sobrancelhas num espanto fingido .
- Ele é supérfluo - continuou ela. - Não se encaixa. Tenho de
ter alguém que se encaixe .
O padre rodou o chapéu cuidadosamente sobre os joelhos . Recor
ria a um pequeno truque, que consistia em esperar alguns momentos
em silêncio, para depois desviar a conversa novamente para o campo
que lhe interessava. Tinha cerca de oitenta anos . Ela nunca travara
conhecimento com um padre até ter ido procurar este , para lhe pedir
que lhe arranjasse um refugiado . Depois de lhe ter arranjado o pola-
212 Flannery O ' Connor
O velho padre evitava aparecer, como que assustado pela sua últi
ma visita, mas , por fim, vendo que o Refugiado não fora despedido,
atreveu-se a fazer uma nova visita à quinta para ministrar instrução a
Mrs . Mclntyre , retomando os ensinamentos no ponto em que , tanto
quanto se recordava, os deixara. Ela não pedira que a instruíssem,
mas ele insistia em fazê-lo , introduzindo uma breve definição de um
dos sacramentos ou de um qualquer dogma em cada conversa que
tinha, fosse com quem fosse . Sentou-se no alpendre , sem reparar no
rosto da dona da casa, que , com uma expressão em parte trocista,
em parte ofendida, se sentou também, a agitar o pé , à espera de uma
oportunidade de lhe fender o discurso com uma machadada certeira.
- Porque - estava ele a dizer, como se falasse de qualquer coisa
que se passara na véspera, na povoação - quando Deus enviou o
Seu Filho único , Nosso Senhor Jesus Cristo - fez uma ligeira vénia
com a cabeça - , como Redentor da humanidade , Ele . . .
- Padre Flynn ! - exclamou ela numa voz que o fez saltar na
cadeira. - Quero falar-lhe de um assunto muito sério !
A pele sob o olho direito do velho estremeceu .
- Cá no meu entender - declarou ela, e fuzilou-o com um olhar
feroz - , Cristo não passava de mais um refugiado .
Ele ergueu ligeiramente as mãos e tomou a deixá-las cair sobre os
joelhos . - Arrrrrr - murmurou , como se estivesse a ponderar estas
palavras .
- Vou despedir aquele homem - prosseguiu ela. - Não tenho
qualquer obrigação para com ele . A minha obrigação é para com as
pessoas que fizeram alguma coisa pelo seu país , não para com aque
les que vieram até cá somente para se aproveitarem daquilo a que
podem deitar a mão - e começou a falar rapidamente , lembrando-se
de todos os seus argumentos . A atenção do padre pareceu retirar-se
para um qualquer oratório privativo , para ali aguardar até que ela
terminasse . Uma ou duas vezes , o olhar dele deambulou pelo relva
do fronteiro , como se buscasse uma forma de escapar, mas ela não
se deteve . Explicou-lhe que cuidava daquela quinta, contra ventos
e marés, havia trinta anos , sempre com a corda ao pescoço , lutando
contra gente que vinha de nenhures e que não tinha futuro nenhum,
que queria apenas comprar um automóvel . Disse que descobrira que
eles eram todos iguais , quer viessem da Polónia, quer do Tennessee .
Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias 217
1 Trata-se da estreia mundial do filme E Tudo o Vento Levou , que teve lugar
em Atlanta, em 1 93 9 . (N. T.)
2 Sigla da United Daughters of the Confederacy, organização feminina
composta por descendentes de militares confederados . (N. T.)
3 Antigo nome de Atlanta. (N. T.)
ÜBRAS DA AUTORA NESTA EDITORA
Um Diário de Preces
O Céu É dos Violentos
NESTA COLEÇÃO