Sei sulla pagina 1di 16

Sobre o cuidado de si: Schopenhauer e a tradição estoica.

Luizir de Oliveira1

O meio mais seguro de não se


tornar muito infeliz consiste em
não desejar ser muito feliz.
Schopenhauer, A arte de ser feliz,
Máxima 362.

Schopenhauer desponta no universo do pensamento filosófico do século XIX


como uma espécie de divisor de águas, embora de modo um tanto quanto incômodo.
Rotulado de pessimista incorrigível; crítico da metafísica elaborada por seus
contemporâneos, especialmente Hegel, o que o colocava contra o establishment
acadêmico de seu tempo; mal-humorado, facilmente irritável, solitário, de poucas
palavras, de difícil trato, mas reconhecidamente de uma inteligência viva, uma
sagacidade intelectual apreciável, e dono de uma vastíssima cultura clássica, sua
filosofia incomoda todos aqueles que dela se aproximam. Seja para odiá-lo e recusar sua
visão realista demais do mundo e do homem, seja para encontrar nele ecos de nossas
próprias constatações da realidade difícil em que nos encontramos. Trata-se de um
pensador que não passa sem deixar marcas profundas em seus leitores. Como dizia dele
Nietzsche, seguramente seu primeiro e mais importante leitor:

Faço parte desses leitores de Schopenhauer que, desde que leram a primeira
página escrita por ele, sabem com certeza que lerão todas as outras e ouvirão
com atenção cada palavra que tenha sido dita. A confiança que deposito nele
foi imediata e ainda é a mesma que tinha há nove anos. Compreendo-o como
se ele tivesse escrito para mim, para me expressar de maneira inteligível, mas
imodesta e loucamente3.

Nós, homens da pós-modernidade, talvez tenhamos simplificado um pouco


demais algumas das grandes inquietações que movem o pensamento schopenhaueriano.
Contudo, elas permanecem em nós, ocultas sob o véu de Maia de nossas ilusões
cotidianas, de nossas frustrações escondidas, de nossos desejos insatisfeitos, de nossas
aspirações não correspondidas. E quando um pensador como Schopenhauer tem a

1
Professor adjunto II de Filosofia da Universidade Federal do Piauí. Contato: luizir@hotmail.com.
2
Organização e ensaio de Franco Volpi. Tradução Marion Fleischer (alemão) e Eduardo Brandão
(italiano). Revsão da tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
3
NIETZSCHE, F. Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher. Krtitische
Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli uns Mazzino Montinari. Berlin: Walter de Gruyter,
1999, p. 346, 20-26. Tradução minha
2

ousadia de explicitá-los, colocando-nos face a face com nossos maiores medos ou


nossas grandes dúvidas,
Faço esta breve provocação introdutória no intuito de preparar o caminho que
sigo neste texto, uma breve análise que visa a mostrar em que medida nós podemos
retomar, com recortes precisos, uma questão que me parece candente na discussão
filosófica contemporânea, qual seja, a ocupação com o cuidado de si. Justifico-me
primariamente pela necessidade que se me apresenta de tentar compreender o porquê de
uma revivescência de determinados sistemas de pensamento, especialmente aqueles que
costumam ser considerados como mais “práticos” ou que aparentemente servem mais
imediatamente à aplicação nos problemas cotidianos. Como se fossem capazes por si
sós de resolver os grandes “dramas” da alma humana, trazidos à luz por meio de
compilações descuidadas de frases de efeito. O fato é que ressurgem, com força e vigor,
Platão, Sêneca, Marco Aurélio, Agostinho, além de Nietzsche e Schopenhauer, não
raras vezes tendo suas ideias deturpadas, distorcidas, desviadas em busca de uma
imediata aquisição de saberes que possam trazer qualidade de vida. E mesmo que essas
compilações possam servir como incentivo à leitura desses pensadores, não bastam para
garantir a compreensão de suas filosofias, muito menos a profundidade de seus
pensamentos. Banalizando-lhes as idéias por meio de apresentações superficiais,
lacunares e pouco profundas, o que se tem como resultado é um pastiche destituído de
seriedade e que acaba por desservir tanto a eles como a nós, leitores. Conceitos que se
aplicam sem fundamentação, temas que se deslocam de seus lugares de origem, sem a
menor preocupação metodológica a fim de garantir resultados impossíveis de serem
atingidos, pelo menos como o esperado de forma imediata, promessas de “curas” das
angústias da vida moderna e quejandos tornam-se meios de acesso comprometedores
quando se tem por objetivo a compreensão séria e profunda desses pensadores.
O que parece sustentar toda essa produção irrefreada é um equívoco com relação
ao verdadeiro significado dessa “cura do espírito”, que Sócrates já reforçara por meio da
divisa délfica do gnôthi sauton e que os romanos retomaram sob as vestes do cura sui.
Momentos históricos diferentes, preocupações diversas, mas um mesmo substrato. O
que fundamenta o “cuidado de si”, o que sustenta suas proposições, parece-me estar na
forma como cada um de nós constroi suas representações da realidade. Isto já era pedra
de toque no mundo antigo, mas retorna no Schopenhauer de O mundo como vontade e
representação e também nas propostas kierkegaardianas, amplia-se na filosofia de
3

Nietzsche para desdobrar-se ao longo do século XX chegando a alcançar pensadores


diversos como Michel Foucault, Charles Taylor e André Comte-Sponville, apenas a
titulo de ilustração.
Ao voltar-me para a cura sui, minha argumentação assume uma tarefa
duplamente exigente, posto procurar estabelecer um diálogo entre dois pensadores
aparentemente distanciados em suas concepções filosóficas acerca do “bem viver”;
Sêneca e Schopenhauer. Reforço isto porque, para o leitor atento de Schopenhauer com
um pouco de leitura da filosofia da Pórtico não escapariam as constantes, embora
veladas referências ao pensamento estoico, e a Sêneca de modo mais particular 4. Em
Schopenhauer, a tradição do cuidado de si segue no horizonte reflexivo. Leitor atento e
crítico da herança grega, ao seu modo retomou o problema do “aprender a viver”
apontando para “soluções” éticas que reavaliam esse diálogo com a antiguidade. Assim,
a ética da compaixão schopenhaueriana poderia ser pensada como uma tentativa de se
apontar para uma possibilidade de viver que, se por um lado não deixa de considerar a
angústia que marca o espírito humano quando se depara consigo mesmo, quando
mergulha em seu eu profundo e tem de enfrentar-se na solidão do pensamento, por outro
encontra nela mesma os instrumentos para sua superação ou, pelo menos, para uma
aquiescência que nada tem, ou não deveria ter, de resignação tácita. Filosofia da
existência? Mas que filosofar sério e profundo não constitui um pensar sobre a vida?
Neste sentido, penso ser oportuno o diálogo Sêneca-Schopenhauer a partir de um
viés que os aproxima marcadamente, muito embora suas Weltanschauungen partam de
fundamentações distintas. Contudo, o que subjaz as propostas filosóficas de ambos é
uma ampla preocupação marcada por reflexões antropológicas, psicológicas,
epistemológicas e morais que se entrecruzam com frequência. Porque a tradição do
cuidado de si pressupõe a compreensão do homem e do seu papel no mundo. E aqui as
respostas de Sêneca e Schopenhauer parecem convergir para um mesmo ponto: as
estruturas de representação mental e seu papel na construção de uma “vida feliz”

4
A título de curiosidade, pode-se encontrar ao longo de O mundo como vontade e representação
referências diretas a Sêneca: cf. pp. 50, 108, 260, 381, 387, 447 e 654 da edição brasileira na tradução de
Jair Barboza. Mas não somente. O diálogo com o autor romano estabelece-se para além de O mundo...:
Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. Sämtliche Werke. Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von
Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch Verlag, 1986: I, 38, 103,
272, 405, 412, 478, 705; II, 5, 86, 192, 193, 196, 203, 204, 206, 302, 307; III, 7, 419, 575, 605, 667, 781,
786, 791; IV, 185, 189, 195, 225, 255, 395, 405, 442, 451, 469, 496, 514, 524, 541, 546, 564; V, 7, 77,
283, 364, 546, 585 (volume e página respectivamente). Cito apenas as referências mais diretas, embora
discussões acerca de temas e teses senequianos possam ser depreendidos em inúmeras outras passagens,
especialmente no que se refere ao meu propósito imediato, qual seja, o cuidado de si.
4

pensada não apenas como um ideal a ser atingido, mas como uma possibilidade efetiva
hic et nunc. Contudo, não se trata de uma mera justaposição de ideias. Schopenhauer é
um autor cuidadoso. Mais do que apenas pensar os antigos, pensa com eles, o que lhe
permite construir um discurso filosófico fundamentado numa escolha de vida, numa
opção existencial que lhe permite tornar a reflexão não apenas um exercício de
pensamento rigoroso, radical e profundo, mas sobretudo, justificador das escolhas que
os homens fazemos cotidianamente, e que incentive à “conversão” do espírito que se
empenha em encontrar um modo de ser e viver adequado a si mesmo.

1. Uma tranquilidade de alma acessível

O primeiro ponto de contato entre Sêneca e Schopenhauer é a pergunta acerca da


possibilidade de se encontrar um estado de tranqüilidade da alma que comumente
chamamos de “felicidade”. Por estranho que possa soar aos nossos ouvidos,
especialmente quando se trata de Schopenhauer, tido como marcadamente
“pessimista”5, e para quem a ideia mesma de felicidade é tomada por sua negativa, ou
seja, como um estado de não-sofrimento, de não-dor, associar-lhe o termo “felicidade”
parece, no mínimo, temerário. Contudo, tanto ele quanto Sêneca mostram-se ocupados
não com uma definição dos modos de que dispomos para alcançar uma vida feliz,
qualquer que seja o conteúdo que a este conceito apensemos 6, mas sim com a forma
como conduzimos nossa reflexão acerca do que se poderia considerar “felicidade”.
Ambos assumem uma atitude revestida de um caráter mais “pragmático” do filosofar,
característica marcante do estoicismo em sua fase romana, mas que também se mostra
pedra angular na filosofia schopenhaueriana, especialmente a da maturidade. Isto nos
auxilia a compreender o convite a uma “boa condução da alma”7, proposto pelo filósofo
romano, e reforçado por Schopenhauer, por meio de uma racional compreensão do
mecanismo da vontade e dos seus desdobramentos.

5
Não desenvolvo aqui uma discussão acerca dessa rotulagem que lhe é frequentemente aposta posto fugir
ao escopo da minha reflexão, mas gostaria de deixar marcado que não aceito tacitamente a adjetivação,
simplificadora demais para um pensador que oferece inúmeras e inspiradoras páginas acerca da
possibilidade de “bem viver”!
6
Isto nos levaria para o campo de uma ética normativa que, no meu entender, não constitui a ocupação
central de ambos os pensadores.
7
Selecionar um ponto de vista, uma escolha por um determinado modo de vida em detrimento de outros
tantos disponíveis, parece acarretar a necessidade de se buscar uma aproximação entre o discurso
filosófico e esse modo de vida a que ele atende, posto participar dele indissociavelmente. Extrair dentre
tantos conceitos e noções aquele que permita alinhavar vida e pensamento é o exercício constante na e da
Seelenführung ou Seelenleitung7, uma tarefa exigente. Para este ponto segue sendo fundamental o
trabalho de Ilsetraut Hadot, Seneca und die griechisch-römische Tradition der Seelenleitung.
5

Ao voltar-se para os resultados que os estudos sistemáticos da física e da lógica


de seu tempo traziam ao espírito humano, Sêneca aponta-nos para a necessidade de
reconhecer que grande parte de nossos “males”, senão mesmo todos eles, advém de uma
má utilização da nossa faculdade racional. Esquecemo-nos, como bem lembrará
Schopenhauer posteriormente8, que o mundo é constituído de representações que
criamos cotidianamente, julgamentos e assentimentos que emitimos com relação às
coisas, aos outros homens, ao mundo, e que acabam por se tornar as únicas réguas de
que dispomos para medir a realidade. E como toda régua já está predeterminada em suas
proporções, qualquer flexibilização no seu padrão requereria não um estiramento dela,
mas uma nova forma de medida. Assim, as modificações possíveis engessam-se em
modelos estanques de comportamento, meros modos reativos de responder às demandas
cotidianas. Ao nos esquecermos disto, corremos o risco de apreender o fenômeno ético
e sua efetividade na práxis humana de um modo muito limitado.
Estar preparado para uma “reavaliação” do peso dado às representações, das
medidas de que nos utilizamos para dimensioná-las, constitui, no meu entender, um dos
pontos de contato mais proveitosos entre os sistemas de pensamento de Sêneca e
Schopenhauer. E as semelhanças significativas não são apenas aparentes, advindas das
várias vezes em que o pensador alemão recorre ao romano em busca de suporte. O que
os aproxima é a inquietação com a existência humana em um mundo pleno de
percalços, dificuldades e atribulações.
Se nos concentrássemos nos Aforismos para a sabedoria de vida, ou no livro
quarto do primeiro volume de O mundo como vontade e como representação, teríamos
material suficiente para sustentar o argumento, aquilo que consido a “herança estoica”
do pensamento schopenhaueriano. Ocupado muito mais em refletir sobre as questões
que angustiam o homem do que em meramente construir uma “tábua” de valores ou um
manual de vida prática a ser oferecido a todos aqueles que buscam a “paz interior” 9,
Schopenhauer remete-nos freqüentemente a Sêneca, uma espécie de seu contraponto
antigo. Em ambos podemos verificar uma preocupação constante com os modos como
elaboramos quadros mentais para explicar, ou justificar, nosso comportamento em face

8
Cf. O mundo como vontade e como representação, Livro I, § 1.
9
Para uma discussão mais aprofundada pode-se consultar ATWELL, John E. Schopenhauer on the
character of the world: the metaphysics of Will. Berkeley and Los Angeles: university of California Press,
1995. Também MANNION, Gerard. Schopenhauer, religion and morality. The humble path to ethics.
Aldershot/UK, 2003.
6

da dupla alternância dor-tédio. Apenas a título de ilustração, destaco duas passagens, a


introdução ao De tranquillitate animi:

Para não prolongar mais tempo cada coisa, em todas me segue essa
inconstância da boa intenção, inconstância em que temo escorregar pouco a
pouco, ou, o que é mais inquietante, pender sempre como quem vai cair – e
me pergunto ‘então’ se talvez este meu caso seja mais grave do que eu
próprio reconheço. [...] Assim então rogo, se tens algum remédio com que
cesses essa minha flutuação [fluctuationem meam], digno me julgues de
dever-te a tranquilidade. [...] para que eu te exprima em correta comparação o
de que me queixo, digo-te que não agitado pela tempestade, mas pela náusea
[sed náusea]10.

E a conhecida metáfora do pêndulo do parágrafo 57 de O mundo:

Querer [Wollen] e esforçar-se [Streben] são sua [da natureza] única essência,
comparável a uma sede insaciável [einem unlöschbaren Durst]. A base de
todo querer, entretanto, é necessidade [Bedürfitgkeit], carência [Mangel],
logo, sofrimento [Schmerz], ao qual consequentemente o homem está
destinado originariamente pelo seu ser. Quando lhe falta o objeto do querer,
retirado pela rápida e fácil satisfação, assaltam-lhe vazio e tédio aterradores,
// isto é, seu ser [sein Wesen] e sua existência [sein Dasein] mesma se lhe
tornam um fardo insuportável. Sua vida, portanto, oscila como um pêndulo,
para aqui e para acolá, entre a dor e o tédio, os quais em realidade são seus
componentes básicos11.

O caráter angustiante, “nauseante”, da vida humana que não se põe como


problema para si mesma advém da falta de compreensão da realidade em que se está
inserido, do mundo como o vemos, tocamos e sentimos. Se o olhar pudesse ser
redirecionado a ela sob novas lentes, perceber-se-ia o quanto de acréscimo, de
sobrecarga representacional os homens colocam sobre as coisas. Isto lhes traz como
resultado uma inquietação constante, uma perturbação do espírito que os impede de
viver o possível, e os compele a procurar, num futuro distante, os meios que
justifiquem, ou pelo menos expliquem as razões para seus sofrimentos. Movidos que
somos pela Vontade, permitimos que nossa “cidadela interior”12 seja invadida por
quimeras ameaçadoras que, em si mesmas, não possuem nenhuma existência real.

10
Sobre a tranquilidade da alma. Tradução, notas e apresentação de José Rodrigues Seabra Filho. São
Paulo: Nova Alexandria, 1994, p. 19.
11
O mundo vontade e como representação. Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barboza. São
Paulo: UNESP, 2005. pp. 401-2.
12
Tomo emprestada a metáfora a Marco Aurélio (Meditações, VIII, 48).
7

Phastámata, diriam os estoicos13; representações movidas pelo primado da Vontade,


retrucaria Schopenhauer14.
Podemos apontar, assim, o eixo representação-cuidado-de-si como ponto de
contato a partir do qual as perspectivas de leitura de ambos os pensadores se ampliam.
Essa proposta de análise ética é extensamente desenvolvida em momentos distintos da
obra de Sêneca (especialmente nas Cartas a Lucílio) e de Schopenhauer (Sobre o
sofrimento do mundo e Sobre a liberdade da Vontade). Ambos marcam aquilo que
poderia ser considerado um “velho erro” da filosofia, qual seja, ocupar-se mais da ética
filosófica do que da ética cívica, convertendo a máxima estóica “seguir a Natureza”
num mero “estudar a Natureza”. Em ambos os pensadores há uma preocupação
constante em apontar que a reflexão ética deve servir tanto ao homem culto quanto ao
homem comum, por meio de uma cuidadosa e constante observação dos seus
sentimentos naturais. Nunca faltaram aqueles que tentaram, por todos os meios,
converter em um culto positivo esse “velho erro”, procurar o conhecimento acima de
todas as coisas. Deste modo, bastaria ao homem conhecer, compreender – a si mesmo
ou qualquer outra coisa - e a felicidade o seguiria! E isto não é algo que aconteça de
modo tão logicamente encadeado.
Um dos grandes méritos de Schopenhauer foi ter desafiado essa espontaneidade
ostensiva da razão, que era parte da filosofia de Kant e uma raiz assumida no sistema
hegeliano. O significado total da filosofia de Schopenhauer está em representar a
disciplina do intelecto com vistas à consciência de sua função real e de seu valor no
sistema das coisas. A razão, para Schopenhauer, significa simplesmente e somente a
existência de concepções na mente humana. Daí que o valor teórico da razão é seu
poder de nos fornecer, em conceitos, uma afirmação resumida da natureza das coisas.
Todas as construções conceituais do universo possuem principalmente um valor prático,
isto é, um valor na medida em que realmente ou possivelmente afetam nossas ações,
como bem apontava Caldwell já em fins do século XIX15.
Deste modo, Schopenhauer procura reavaliar essa visão do intelecto como sendo
a primeira coisa na vida de um homem, responsável por determinar os fins a que deve
tender sua natureza prática e a sua energia especulativa. Não podemos perder de vista

13
Cf. Aécio, 4.12.1-5 (SVF 2.54).
14
Cf. O mundo como vontade e representação, II, § 19 (“do primado da vontade na consciência de si”).
15
Cf. CALDWELL, William. Schopenhauer’s system in its philosophical significance. New York:
Charles Scribner’s Sons, 1896, p. 130 et seq.
8

que, no horizonte da reflexão schopenhaueriana, havia a teoria evolucionista e a


história, que apontavam para o intelecto como um “mecanismo” que desempenha a
mera função de melhor preparar o homem para compreender sua vida prática e natural.
Esta tentativa de unir visões conflitantes acabou por levá-lo àquilo que uma parte dos
seus intérpretes classifica como uma certa dose de pessimismo e de ilusionismo, em
busca do mais alto ideal da filosofia, dos tempos de Aristóteles e dos estoicos: uma
autoconsciência imperturbável, como para o ideal monástico cristão haviam sido as
virtudes “passivas”16. O que se explicitaria na sua proposta do ideal ascético. Contudo,
lê-lo assim seria simplificar grosseiramente sua proposta.
Contrariamente ao que afirmavam seus contemporâneos, Schopenhauer recebia e
retrabalhava filosoficamente as teses da biologia demonstrando que não a reflexão
abstrata e a “quieta” e “interior” “intuição” eram a essência do homem, mas o impulso,
a ação e a aquisição. O homem não poderia estar em repouso consigo mesmo se tivesse
de obedecer a sua natureza animal, isto é, se o querer ou Vontade constituísse sua
essência em vez do pensamento. Isto apresentava para ele uma dificuldade quase
intransponível, se se mantivessem estáticas as teses puramente idealista ou puramente
empirista, lições, aliás, que aprendera de Kant. Um conflito parecia inevitável e eterno
entre o pensamento, que apontava para um retorno da “consciência” sobre si mesma, e o
querer que, contrariamente, buscava sair de si mesmo rumo ao mundo inorgânico.
Como toda ética racionalista, ou toda ética que se funda apenas sobre o
conhecimento, o estoicismo acabou por se fixar na mera contemplação da paz do
espírito que nunca poderia ser alcançada na arena da vida. Magnanimidade da alma e
perfeito desinteresse e simpatia não eram qualidades da alma que os estoicos exibissem
ou se preocupassem em exibir. O ideal dos estoicos era o homem sábio e não o homem
solidário (compassivo, humano), o que “amava o seu vizinho como a si mesmo”. Pelo
menos, este era o modo como se costumava ler a herança estoica. E Schopenhauer, no
meu entender, foi um dos pensadores que, embora partilhasse em grande medida desta
interpretação, deu mostras de ser capaz de ir além dela, ao perceber que pensadores
como Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio apontavam para uma reinterpretação das teses
estoicas no intuito de torná-las mais acessíveis à vida cotidiana17. Teoricamente, o

16
Cf. O mundo como vontade e como representação, livro IV, §63, §64, §66. Também Mannion, op.cit
passim, e BERGER, Douglas L. “The veil of Mâyâ”. Schopenhauer’s system and early Indian thought.
Binghamton/NY: Global Academic Publishing, 2004.
17
É de interesse também o recente trabalho de Gretchen Reydams-Schils, The Roman stoics. Self,
responsibility, and affection. A autora ressalta que, em sua vertente romana, o estoicismo avançou as teses
9

conhecimento do bem parecia contradizer a si mesmo à medida que a vida prática se


desenrola. Nenhuma quantidade de conhecimento impede o homem de cair nos
“pecados” do exclusivismo intelectual e negligenciar seus semelhantes. É perfeitamente
aparente o que Schopenhauer pretende fazer com relação à ética: reconciliar o que se
convencionou chamar de “individualismo abstrato” do século XVIII com o
racionalismo ou intelectualismo de Sócrates e Kant (com o que eles afirmavam ser o
conhecimento absoluto e a absoluta bondade da vontade), e também, em alguma
medida, com os fatos da vida.

2. Transcender a condição humana de conflito

A possibilidade e a realidade de conversões repentinas e de vidas modificadas,


da verdadeira vita nuova na qual a “cruz da vida” é tomada e carregada, e na qual a
“necessidade” da natureza ou destino torna-se a divina Providência (theía moîra) ou
graça divina, é o que interessa a Schopenhauer. O estoicismo era uma espécie de
reductio ad absurdum do racionalismo ético; obtinha uma vitória moral sobre o mundo,
quer por uma aquiescência fatalista à natureza das coisas, quer por uma supressão
daquilo que dá à vida seu conteúdo total e toda a riqueza de seu significado: os vários
sentimentos e emoções. Neste sentido, ensina-nos Schopenhauer: em questões teóricas,
deve-se iniciar não por conceitos, mas pela percepção, como fonte primária de todo
conhecimento. Por outro lado, em matéria de questões práticas, só os animais são
guiados pela percepção; os homens devem-se conduzir pelos conceitos18. Contudo,
embora a constatação seja flagrante, o seu modus operandi exige um esforço adicional
por parte do homem, posto esta diferenciação não se mostrar de modo imediatamente
acessível.
Guiar-se unicamente pelos conceitos – porque o mundo exterior, a realidade
perceptível faz-se presente de modo muito invasivo, obstruindo mesmo a mente mais
forte - é um modo possível de nos fortalecermos, de nos mantermos firmes impedindo

do antigo Pórtico: a teorização daquilo que chamaríamos de uma noção de self avant la lettre aliada a
uma atenção consistente às questões da ética prática não deveria ser interpretada como um mero endosso
das condições sociais de seu tempo. Tratava-se, antes de tudo, de colocar a nobreza da alma acima da
nobreza do nascimento, de apontar que homens e mulheres possuem igual capacidade para a razão. Os
romanos transcenderam a moralidade convencional de sua sociedade. Sêneca, Epiteto, Marco Aurélio,
Musônio Rufo, dentre outros, propõem um difícil, desafiador e exigente processo de equilíbrio entre o
cuidado de si e o envolvimento com os outros, ideais filosóficos e circunstâncias cotidianas, reserva moral
e afeição pessoal, em suma, uma busca ativa, e não baseada no estereótipo do estoico como frio,
desapegado, passivo.
18
Cf. SCHOPENHAUER, A. Sobre o uso prático da nossa razão e sobre o Estoicismo. O mundo como
vontade e como representação, volume II, capítulo 16.
10

que esses assaltos perturbem nossa frágil harmonia interior. O mundo exterior adquire
tamanho poder sobre a mente por conta da sua proximidade e da sua “imediatez”. E
neste ponto Schopenhauer introduz uma de suas muitas metáforas ilustrativas: do
mesmo modo como uma bússola pode ter a sua agulha desviada pela proximidade de
um pedaço qualquer de metal, que a impede de continuar cumprindo sua missão
orientadora, a resolução mais deliberada pode-se tornar uma irresolução momentânea
por um contra-motivo insignificante, mas imediatamente presente. Lição que ele parece
ter aprendido de suas muitas leituras de Sêneca. O filósofo romano também ressalta o
efeito deletério que uma emoção (animi perturbatio) exerce sobre uma mente
descuidada. Como nos adverte nas páginas iniciais do De ira, esse tipo de distúrbio tem
sua origem no fato de que uma representação, agindo do exterior sobre nossa vontade,
aproxima-se tanto de nós que esconde de nós tudo o mais, e nos torna incapazes de ver
qualquer outra coisa que não ela.
Haveria um lenitivo, ou um remédio para tais estados de alma? Schopenhauer
ensina-nos um caminho possível: considerar o presente como se fosse passado, e assim,
acostumar nossa apercepção, bem ao estilo epistolar dos romanos. Por outro lado,
convém ressaltar, também somos capazes de viver em função do passado, e trazer de
volta emoções como se seus motivos estivessem efetivamente presentes. Se
mantivéssemos claro que o homem é a criatura mais necessitada e abandonada,
diariamente, e hora após hora, deixado aos grandes e pequenos infortúnios sem conta, e
que tem de viver em constante medo e cuidado19, talvez fosse possível amenizar os
efeitos desses desajustes interpretativos. Neste sentido, há que se tentar uma conciliação
entre a realidade aparente e a essencial, como as duas faces de uma mesma moeda: o
desejar não pode advir de um estado que não seja de insatisfação, de não-
contentamento. Deste modo, a satisfação só ocorre num ser que sofreu alguma privação,
que teve de abrir mão de uma série de escolhas em nome de uma única, a do momento,
posto ser a única de que dispõe. Assim, toda satisfação é negativa; só o sofrimento é
positivo. Esse “pessimismo desbragado”, contudo, não constitui um olhar meramente
mal-humorado com relação ao mundo, mas como aquilo que constitui em si mesma a
essência do indivíduo deixado no mundo20: imaginar uma existência sem sofrimento é

19
A imagem é emprestada por Schopenhauer de Heródoto, História, I, 32.
20
Cf. JANAWAY, C. Self and world in Schopenhauer’s philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1999.
11

imaginar uma existência que não é a de um indivíduo humano, poderíamos inclusive


aduzir, que não é a de um ser vivente.
Assim, o primeiro resultado de se aplicar a faculdade da razão a questões
práticas é que ela junta aquilo que está separado, singularizado no conhecimento e na
mera percepção, e usa os contrastes apresentados a ela como correções para outras
percepções. Schopenhauer busca uma vez mais Sêneca: “se queres que tudo te esteja
sujeito, sujeita-te tu à razão”21. Mas sua citação do filósofo romano pára neste ponto.
Bastar-nos-ia, contudo, seguir um pouco mais e veríamos explicitada uma tese cara ao
filósofo alemão. Segue Sêneca: “tu não podes apontar-me alguém que saiba de que
modo começou a querer aquilo que quer. E por quê? Porque o comum das pessoas não
é levada pela reflexão, mas arrastada pelos impulsos”22. A faculdade da razão, por meio
de seus conceitos, examina a vida toda, e o resultado, no caso mais feliz concebível, não
pode ser outro que não o que vimos apontando.
Schopenhauer concluirá afirmando que todos os sistemas morais da antigüidade,
exceto o de Platão, foram guias para a vida feliz. E mais, que a “virtude”23 tem um fim
neste mundo, e certamente não depois da morte. Contudo, pergunta-nos ele, a virtude é,
por si mesma, suficiente para uma vida feliz, ou requer algo exterior? A resposta parece-
lhe bem clara, e não por acaso elenca muitos exemplos a fim de melhor ilustrar sua
tese24, isto é, a privação de todas as coisas que podem mover o homem, isto é, fugir dos
prazeres porque são ciladas pelas quais caímos novamente na dor. A vida presente, em
suas formas mais simples e básicas, com as durezas que naturalmente pertencem a ela, é
ainda assim mais tolerável, portanto a que deve ser escolhida. Qualquer coisa que fuja a
isto acarretará mais dor25. Há que se buscar uma independência no sentido mais amplo.
E aqui Schopenhauer recorre também à tradição indiana: o principium indivituationis, a
que corresponderia grosso modo o véu de Mâyâ26, contrapõe-se a outra visão, mais

21
Epístola 37, 4.
22
Ibidem. O grifo é meu. Também. Aristóteles, Ét. nic., VII, 12.
23
Interessante ressaltar que Schopenhauer parece resgatar a “teoria das virtudes” de um modo muito
particular. Cf. MANNION, op. cit., cap. 6.
24
As referências aos antigos são muitas: Agostinho, De civ. Dei, XIX, 1; Aristóteles, Magna moralia, I,
4; Ét. Nic. I, 5; Cícero, Tusc., V, 1; Plutarco, De repugn. Stoic., c. 18, c. 26; Estobeu, Ecl., II, 7; Epicteto,
Disc., I, 4; Sêneca, Epist. 90; 108; De tranq., VIII; Diógenes Laércio, VI, 2.
25
Schopenhauer tem em mente não apenas os estoicos, mas também os cínicos Diógenes, Antístenes e
Crates.
26
Ilusão, engano, miragem, “fantasma”. Para um estudioso do estoicismo a explicação de Aécio (SVF, II,
54; DDG, p. 401, 14) vem imediatamente à tona: diferente da imaginação (phantastikòn), um movimento
vão, uma afecção que se produz na alma sem que haja um objeto que a produza, a representação
(phantasía) tem um objeto por substrato (phantastòn) enquanto que a imaginação repousa sobre nada, é
atraída pelo imaginário (phantasma). Tal como a luz (phôs), a representação manifesta-se por si mesma a
12

profunda, mais correta porque não-individuante, e que se traduz na expressão tat tvam
asi (tu és isto)27. O ponto de vista a ser adotado é o da universalidade da Vontade, do
fundamento único do mundo.
Os cínicos surgem como uma complementação às ilustrações que Schopenhauer
oferece porque de algum modo parecem apontar para o mesmo objetivo. Embora
distintamente diferente da postura dos santos e saniâsis, mantinham como estes a firme
convicção de que é mais fácil reduzir nossos desejos e necessidades ao mínimo do que
obter sua máxima satisfação; aliás, esta é mesmo impossível, uma vez que, com a
satisfação, os desejos e as necessidades crescem ao infinito! Contudo, como bem
relembra Schopenhauer, para os cínicos, a humildade, essencial aos ascetas, era
estranha. Tinham orgulho e desdém por todos os outros homens28. Neste ponto, embora
em grande medida inspirados no cinismo, os estoicos talvez fossem mais fáceis de se
seguir porque preferem trocar o prático pelo teórico: dispensar tudo que pode ser
descartado, de modo real, não é necessário. É suficiente que saibamos que as posses e a
fruição são dispensáveis, posto estarem nas mãos da Fortuna. A privação real, se
acontecer, não seria inesperada, tampouco seria um fardo: podemos, em todas as
circunstâncias, possuir e fruir as coisas; só temos de ter em mente sua inutilidade e
dispensabilidade, de um lado, e sua incerteza e desgaste, de outro. O homem tem de
lidar com essas coisas a fim de não se deixar mover por elas, demonstrar tê-las como
boas em seu coração, mas saber ser necessário colocá-las distantes para que não caia na
tentação de buscá-las. O sábio, por outro lado, sabe que não boas, mas
insignificantes/indiferentes (adiáphora) ou, no máximo proegména (preferíveis), a
serem escolhidas de modo muito pontual.
Schopenhauer argumenta que os estoicos aperfeiçoaram a teoria da
equanimidade e da independência sacrificando a prática, e reduzindo tudo a um
processo mental. Fazendo isto, contudo, deixaram de lado o fato de que tudo aquilo a
que nos acostumamos torna-se uma necessidade e, por esta razão, só pode ser
descartado por meio da dor. A crítica de Schopenhauer tem um foco bem específico: a
Vontade não pode ser menosprezada; os homens não conseguem desfrutar os prazeres

cada um de nós e revela-nos a atividade do sujeito no processo da representação, um desenvolvimento da


atividade interna da alma por ocasião de uma sensação.
27
Cf. O mundo como vontade e como representação , § 63, e também Sobre o fundamento da moral.
28
Este ponto retorna em um texto reconstruído de Schopenhauer, e que entre nós foi publicado como A
arte de conhecer a si mesmo. Organização e ensaio de Franco Volpi. Tradução Jair Barboza (alemão) e
Silvana Cobucci Leite (italiano). Revisão da tradução de Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
13

sem que se apeguem a eles. Entre o desejo e sua renúncia não há meio-termo. O
fundamento último dessa equanimidade inabalável que constantemente se espera de nós
está no conhecimento de que o curso do mundo é inteiramente independente da nossa
vontade, e conseqüentemente, o “mal” que cai sobre nós é inevitável. Ecos daquilo que
encontramos em Epiteto, aquilo que é ouk eph’ hemin (que não depende de nós)
também é imediatamente ou prós hemas (não concerne a nós).
Espera-se que nos livremos disso tudo que é sem valor por meio do correto uso
da razão, em virtude da qual não consideramos essas coisas como nossas, mas apenas
como emprestadas a nós por um tempo indefinido; só assim nunca as perderemos.
Sêneca é enfático neste ponto29, e Schopenhauer adensa e aprofunda seus conselhos. Se
o homem percebe a embusteira ilusão da felicidade por um momento e então usa sua
faculdade da razão, tem de reconhecer a rápida mudança dos dados, bem como a
intrínseca inutilidade das fichas que usa para suas apostas, e deve, assim, ficar imóvel,
impassível, indiferente. Nosso sofrimento sempre surge de uma incompatibilidade entre
nossos desejos e o curso do mundo e das coisas30. Um deles tem de mudar e se adaptar
ao outro. Contudo, só a vontade é eph’ hemin – katá physin zein31. Ou melhor, como
corrigirá Schopenhauer, somente sobre aquela parcela mínima do querer-fazer aquilo
que já está determinado pelo querer tornado “objetidade da Vontade” pelo principium
indivituationis abre espaço para um controle refletido.
O exercício está nos modos como nosso caráter empírico é desenvolvido a fim
de se alcançar um estado em que aquilo em que nos tornamos, ou seja, nosso caráter
adquirido esteja minimamente em consonância com o restante do mundo que não pode
ser modificado. Via uma bem cuidada áskesis pode-se chegar a compreender a si
mesmo, ao próximo e, por extensão, o mundo todo, mesmo que de modo sempre
limitado, posto individual. O que importa, contudo, é chegar a perceber, por meio desse
cuidado esforço que aquilo que faz parte de mim também faz parte de toda a realidade
circundante. Ao redimensionarmos nosso olhar, enxergamos para além das aparências
do mundo fenomênico, descortinando-se o que subjaz a todos nós: o pulso inexorável da
Vontade.

29
Epíst., 98; De tranq., XI. Cf. também Diógenes Laércio, VII, 87; Arriano, Disc., III, 24, 84-89; IV,
1.42; Marco Aurélio, IV, 29.
30
Cf. O mundo como vontade e representação §56.
31
Segue Schopenhauer em suas ilustrações: Arriano, Disc., II, 17, 21, 22; IV, 1, 175; Sêneca, Epíst., 31;
74; 92; 119; Cícero, Tusc., IV, 26.
14

O cuidado de si, portanto, aponta para uma necessidade quádrupla:


primeiramente, há que se reconhecer que nossa vida cotidiana é repleta de frustrações e
insatisfações. A causa dessas insatisfações é nossa tendência ao apego às coisas, nossas
constantes tentativas de agarrarmos tudo o que pudermos a fim de tentar satisfazer a
essas intensas demandas. Se, contudo, formos capazes de reduzir o poder que esse
esforço por satisfação impõe sobre nós, isto é, se conseguirmos diminuir sua
intensidade, então a vida diária será menos frustrante e mais pacífica. Há um meio pelo
qual este estado pode ser alcançado: compreender a constante flutuação do mundo, para
deixar de tomar as coisas como se fossem permanentes e, daí, perceber que se tornam
menos significativas e menos atraentes. Em busca da tranqüilidade, Schopenhauer
retraça o caminho pelo qual a vontade é objetivada. Estados mentais mais pacíficos
acabam por ser encontrados ao se direcionar a objetivação da vontade rumo a níveis
mais universais de consciência, uma vez que o grau de insatisfação que uma pessoa
vivencia é diretamente proporcional ao grau em que a consciência daquela pessoa é
objetivado e individuado: menos individuação, menos conflito, menos dor e mais paz.
Lições que Schopenhauer aprendeu da tradição oriental32, mas que reverberam em
consonância harmônica com as teses estoicas.

3. Consciência moral como modo de transcendência

As conclusões que se podem extrair dessas breves considerações que faço acerca
do diálogo entre Schopenhauer e o estoicismo levam-nos a compreender que somente
no momento em que formos capazes de nos conscientizar de que cada ser humano é
apenas um aspecto do único ato de Vontade que é a humanidade em si mesma,
conseguiremos perceber que a diferença entre aquilo que nos atormenta e nosso estado
atormentado é apenas ilusória. De fato, é o mesmo olho da humanidade que olha por
cada pessoa. Cuidar de si, então, torna-se um exercício diário de auto e
altercompreensão, uma vez que cada indivíduo traz em si todos os sofrimentos do
mundo, posto tratar-se da mesma natureza humana interior que suporta toda a dor e toda
a “culpa”33.
Não só a individuação, quando somos colocados no espaço-tempo em busca do
conhecimento, fragmenta o mundo, como também o princípio de razão; ambos geram a
ilusão de que estamos essencialmente separados, individualizados. As condições do

32
Cf. O mundo como vontade e representação §68. Cf também ATWELL, op.cit. cap. 7.
33
O mundo como vontade e representação §63 e §64.
15

conhecimento científico têm um impacto moral negativo, pois levam a se pensar os


homens com individualidades alheias umas às outras. A compaixão faz brotar esse
sentimento de pertença à humanidade. Perceber a vida concreta de um ser humano
permite penetrar imaginativamente a vida humana em sua integralidade, o que nos
levaria a coincidir com os outros nossas ações da forma mais rápida possível. Neste
sentido, o desenvolvimento da consciência moral permitira a expansão da própria
consciência em direção à mista, tensa, agridoce, tragicômica, multifacetada e sublime
consciência humana.
Aprendemos com Schopenhauer que do mesmo como a música personifica as
tensões emocionais de forma abstrata e distanciada, permitindo uma imagem suavizada
e sonora do mundo cotidiano de conflito universal, a consciência moral também é
marcada pela tranqüilidade. Quando o homem atinge a consciência universal,
transcendendo as determinações individuais espaço-temporais, os desejos, que derivam
seu significado de um posto de vista individual, passam a ser vistos pelo que realmente
são, isto é, fundados sobre a ilusão de fragmentação. Perdem, assim, muito da sua força.
A consciência moral torna-se o lado mais “sereno” da Vontade.
Negativamente considerada, a consciência moral aplaca a sede que é a vida
humana individual, com suas incessantes oscilações entre a dor e o tédio. Positivamente,
ela gera a sabedoria, uma vez que nosso olhar se torna afim ao romance universal, que
contém todas as histórias humanas repetindo-se geração após geração: cômicas,
trágicas, patéticas, triunfais, triviais e monumentais34, muito embora essa negação da
Wille zum Leben entre em choque com os instintos individuais de sobrevivência, as
forças físicas (dos prazeres físicos) que teimam em florescer. Antes de “atingir o
paraíso”, o homem terá de passar pelo inferno dessa luta: experimentamos a noite da
alma quando o self universal luta contra o self físico e individual, da mesma maneira
como o conhecimento puro luta contra a vontade animal, e como a liberdade luta contra
a natureza, contra seu próprio self. Isto não significa, contudo, que a Vontade esteja
sendo destruída, mas apenas seu lado individualizado, personalizado.
Uma vida o menos dolorosa possível, e assim, o mais feliz possível, objetivo dos
estoicos, é o motto para as conclusões éticas a que Schopenhauer chegará no livro IV de
O mundo como vontade e como representação. Reforçando muitas das teses estóicas,

34
É a imagem da árvore inabalável cujas gerações de folhas caem a cada estação (Homero, Ilíada, VI).
Os exemplos de que se utiliza Schopenhauer em O mundo... são eloqüentes: Francisco de Assis, §68, e
Jesus, §70, protótipos desse estilo de vida iluminado.
16

aponta para uma diferença marcante entre a filosofia platônica, o pensamento cristão e
mesmo as propostas da sabedoria indiana, de inspiração hinduísta ou budista: não há
nenhuma tendência metafísica, nenhum fim transcendente, mas um fim que é totalmente
imanente e alcançável nesta vida. A imperturbabilidade (ataraxía) pode ser encontrada
nos simples endurecimento e insensibilidade aos golpes do destino. Basta que
mantenhamos em mente a brevidade da vida, a vacuidade dos prazeres, a instabilidade
das satisfações. A diferença entre a felicidade e a infelicidade é muito menor do que
nossa antecipação de ambas costuma nos forçar a crer. Talvez este seja um dos segredos
do cuidado de si.

Referências bibliográficas
ATWELL, John E. Schopenhauer on the character of the world: the metaphysics of
Will. Berkeley and Los Angeles: university of California Press, 1995.
BERGER, Douglas L. “The veil of Mâyâ”. Schopenhauer’s system and early Indian
thought. Binghamton/NY: Global Academic Publishing, 2004.
CALDWELL, William. Schopenhauer’s system in its philosophical significance. New
York: Charles Scribner’s Sons, 1896.
JANAWAY, C. Self and world in Schopenhauer’s philosophy. Oxford: Clarendon
Press, 1999.
MANNION, Gerard. Schopenhauer, religion and morality. The humble path to ethics.
Aldershot/UK, 2003.
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Tradução,
apresentação, notas e índice de Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005.
______________________ El mundo como voluntad y representación II. Tercera
edición. Traducción, introducción y notas de Pilar López de Santa María. Madrid:
Editorail Trotta, 2009.
_____________________ Sämtliche Werke. Textkritisch bearbeitet und herausgegeben
von Wolfgang Frhr. von Löhneysen. Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch
Verlag, 1986.
______________________ A arte de conhecer a si mesmo. Organização e ensaio de
Franco Volpi. Tradução Jair Barboza (alemão) e Silvana Cobucci Leite (italiano).
Revisão da tradução de Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
SÊNECA, L. A. Sobre a tranquilidade da alma. Tradução, notas e apresentação de José
Rodrigues Seabra Filho. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
_____________ Cartas a Lucílio. Tradução, prefácio e notas de J. A. Segurado e
Campos. Lisboa: Fundação Calouste-Gulbenkian, 1991.

Potrebbero piacerti anche