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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

CURSO DE DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

VIOLÊNCIA & PRISÃO


UMA VIAGEM NA BUSCA
DE UM OLHAR COMPLEXO

MIRIAM KRENZINGER A. GUINDANI

Porto Alegre, janeiro de 2002.


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

CURSO DE DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

VIOLÊNCIA & PRISÃO


UMA VIAGEM NA BUSCA
DE UM OLHAR COMPLEXO

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, como requisito
parcial para a obtenção do grau de Doutor
em Serviço Social.

Miriam Krenzinger A. Guindani

Orientadora:

Profa. Dra. Julieta Beatriz Ramos Desaulniers

Porto Alegre, janeiro de 2002.


Tese defendida em 16 de janeiro de 2002 perante a Banca Examinadora
constituída pelos professores:

_______________________________________
Profa. Dra. Julieta Beatriz Ramos Desaulniers

________________________________________
Profa. Dra. Carmem Oliveira

________________________________________
Prof. Dr. Juremir Machado da Silva

________________________________________
Profa. Dra. Luiza Dalpiaz
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (livro dos
conselhos)
DEDICATÓRIA:

À Natália, Régis e Vicente.

Anjos que me ajudaram a buscar, por um


caminho singular, a própria síntese, em
todos os momentos e contratempos desta
viagem.
AGRADECIMENTOS

A trajetória empreendida nessa tese levou quatro anos para amadurecer.


Durante essa caminhada tive a sorte de interagir com diferentes pessoas e sou
grata a todos aqueles que colaboraram para esse feito...

De modo especial:

À PUCRS, que me possibilitou condições para viabilizar este trabalho,


principalmente o Diretor Prof. Jairo Melo Araújo, por me lançar nesse desafio;

Ao Professor e amigo Salo de Carvalho, em que tive o privilégio de


contar com sua parceria intelectual e orientação que muito contribuíram para a
construção das idéias aqui apresentadas;

A todos os colegas da linha de pesquisa Formação, Trabalho e


Organização, em especial a Dra. Julieta B. R. Desaulniers pela orientação
desta tese;

A todos os sujeitos que participaram da pesquisa no Presídio Central de


Porto Alegre em especial aos nove lideres das galerias, ao assistente social
Jarbas Pitaguary e ao Capitão Alberto, pois facilitaram o acesso as diferentes
informações do local;

Às auxiliares de pesquisa Cristiane Catharino, Maira Pinto, Marílucia


Mietlikc e Cristina Guindani pelo apoio na coleta e organização dos dados da
Pesquisa no PCPA;
7

Aos professores Juremir Machado da Silva e Luiza Dalpiaz pelas


contribuições para o aprimoramento desta tese, sugeridas na fase de
qualificação;

Aos Professores Máximo Pavarini e Rafaelle De Giorge pelas sugestões


quanto ao tema desta tese e pelas oportunidades, na minha passagem pela
Itália, de aprender um pouco mais sobre violência e sistema penal.

À Ivelise Flach, Eraldo Türck, Helena Totta pelo empenho e paciência


quem tiveram na revisão deste trabalho;

Aos órgãos Secretaria da Justiça e Segurança, Superintendência dos


Serviços Penitenciários, Conselho Penitenciário e Centro de Observação
Criminológica, pelo reconhecimento e por aquilo que me acessaram de
experiências e possibilidades de intervenção. Em especial aos companheiros
do COC, Pedro Pacheco, Magali Andriotti, Moema Cabral, Eliana Ruas, Isabel
Ferreira, Julio Hoanisch, Sonia Almeida, Homero, Carmem, Silvana
Porciuncula, Rafaela e, as equipes dos setores de perícia, administrativo e
demais técnicos do sistema penitenciário gaúcho;

Ao Deputado Federal Marcos Rolim e advogada Cristina Villanova da


Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, por serem gaúchos
de referência compromissada ética-politicamente com a questão dos Direitos
Humanos;

Aos colegas do ITEC-Instituto Transdisciplinar de Ciências Criminais, em


especial Felipe Oliveira, Jader Marques, Alexandre Wunderlich, Rodrigo
Oliveira, Daniel Guerber, Andrei Schimit e Simone Shoroeder, pelos sonhos e
projetos a serem realizados;

Aos professores, funcionários e alunos dos cursos de Serviço Social da


PUCRS e ULBRA, em especial Mônica Bragaglia, Inês Amaro, Bia Aguinski,
Maria Isabel Bellini, Flavia Felipe, Norma Prates, Ana Ferlauto, Bia Marazita,
Maria L. Scavone, Márcia Faustini, Berenice Couto, Jane Prates, Maria da
Graça Türck, Cláudia Giongo, Suzete Lopes, Milene Bordignon, Esalba Silveira,
8

Simone Bier, Leônia Bulla, Gleni Guimarães, Patrícia Grossi, Idilia Fernandes
e, Rosi, Zoraida, Nazira, Giorgina e Caroline;

Aos colegas e queridos amigos Alzira Lewgoy, Ana Lúcia Maciel, Chico
Kern, Jussara Mendes, Ivone Rheinheimer e Maria Palma Wolff, pelo apoio nas
horas mais difíceis dessa experiência;

Aos professores Hans Fiklinger, Helio Silva e em especial a Ruth Gauer,


pelas possibilidades de rupturas, novos olhares e experiências múltiplas;

À Alba Henkin, “Pacha Mama” Vera, Mauro Pozzati, meus gurus, que
deram a força emocional e espiritual para seguir em frente;

À Irene Krenzinger, Helene Otton, Liane Silva, Flávio Azambuja, Luiz


Carlos Azambuja e Francisco Krenzinger (in memória), meus familiares, que
mesmo distante, deixaram marcas no meu ser e nessa tese;

Por fim, quero expressar o meu carinho e gratidão ao Luiz Eduardo


Soares, por reencontrá-lo no final dessa pesquisafazendo com que eu
aprendesse um pouco mais de mim e um tanto da vida.
SUMÁRIO

RESUMO ....................................................................... 011

ABSTRACT ................................................................... 013

TRILHA INICIAL ........................................................... 016

1 O CAMINHO DA PESQUISA................... 027


1.1 O Ponto de Partida: Organizando a Bagagem.................. 027
1.1.1 A Bagagem I ...................................................................... 033
1.1.2 A Bagagem II ..................................................................... 040
1.2 O Mapa da pesquisa: a Problemática Construída 048
1.2.1 As Estratégias de Verificação .......................................... 056
1.3 O Mapa das Trilhas .............................................................. 061

2 O CENÁRIO DA PESQUISA........................................ 064


2.1 Contextualizando o Lugar ................................................... 064
2.2 Chegando no Lugar ............................................................. 073
2.3 A Organização do Lugar: sua Estrutura e Funcionamen-
to ............................................................................................ 080
2.4 Caracterização dos Sujeitos que Compõem os
Diferentes Grupos ................................................................ 100
2.5 A Dinâmica de Interação dos Grupos ................................ 106
2.6 Indicadores da Violência do Ponto de Vista dos Sujeitos
Pesquisados ......................................................................... 120

3 OS OLHARES QUE IMOBILIZAM ............................... 133


3.1 Dialogando com os Teóricos: as Possibilidades do
Lugar ..................................................................................... 133
10

3.2 As Diversas Referencias do Lugar ..................................... 144


4 OS OLHARES QUE CONGELAM ................................ 163
4.1 Dialogando com os Teóricos sobre Violência
Contemporânea .................................................................... 163
4.2 Conversando com os Sujeitos da Pesquisa sobre o
Poder Simbólico do Lugar .................................................. 179

5 A AUTO-ORGANIZAÇÃO DO LUGAR ........................ 188


5.1 O Controle e os Jogos do Poder ........................................ 190
5.2 O Tempo da Prisão: a Grande Ferramenta do Controle ... 197
5.3 A Socialidade e a Potência da Massa ................................ 205

6 O OLHAR RECURSIVO ............................................... 215


6.1 Uma Abordagem Complexa sobre o Lugar e suas
Expressões ........................................................................... 216
6.2 Trilha Especial: Uma Experiência no Lugar ...................... 235

TRILHA FINAL .............................................................. 248

REFERÊNCIAS ............................................................. 258

ANEXOS ....................................................................... 269

Anexo 1 – Modelo de instrumentos e exemplos das


informações coletadas ............................................ 270

Anexo 2 – Organização dos dados .......................................... 312

Anexo 3 – Documentos estatísticos ........................................ 345

Anexo 4 – Exemplo Jornal Arpão ............................................. 364

Anexo 5 – Material extraído da mídia ....................................... 369


RESUMO

Esta tese sustenta que a violência da sociedade contemporânea tem


nas grandes prisões, o lugar privilegiado para se condensar expressando-se
através de múltiplas formas. Ao analisar tal fenômeno, propõe-se um tipo de
abordagem que supõe a constituição de um olhar complexo, que possibilita
captar a prisão não somente como um espaço que manifesta o excesso da
força e do poder de punir - através do controle, vigilância e disciplina -, mas
também, como um espaço de auto-organização que produz vida social,
instaurando rupturas com o projeto idealizador da pena, assim como a
existência de estratégias de não violência capazes de combater a própria
violência institucional. Cinco premissas foram construídas para demonstrar a
tese aqui sustentada: 1) a questão da ambigüidade do discurso que, em
determinados momentos, é favorável à prisão e, em outros, prega a falência da
mesma; 2) a redefinição do poder simbólico da prisão de espaço de
normalização para eliminação de uma massa descartável; 3) a existência de
jogos do poder dentro da prisão; 4) o processo de auto-organização e as
múltiplas formas de violência da prisão. 5) e, por fim, a prisão como espaço
gerador de relações instituintes e sensibilidades, ou seja, de práticas sociais -
dentre elas o Serviço Social - que podem contribuir para a produção de uma
nova cultura sobre a natureza e o significado de sua própria violência,
auxiliando assim na sua transformação. A maior casa prisional do Estado do
Rio Grande do Sul constitui a unidade privilegiada na pesquisa e, através da
análise desse caso exemplar delimitou-se o problema a ser investigado: como
se expressam as múltiplas formas da violência na organização do Presídio
Central de Porto Alegre? Para a coleta das informações, aplicou-se
12

questionários na totalidade da população carcerária incluindo os funcionários


do Presídio Central de Porto Alegre - PCPA. Utilizou-se também outros tipos de
fontes, como documentos escritos e orais, em especial, entrevistas e grupos de
discussão.

Partindo-se do pressuposto de que forma é conteúdo, optou-se por


recursos metafóricos ao montar a estrutura desta tese, principalmente o da
viagem-tese, imagens, trechos de poesias, letras de músicas, bem como
reflexões de diferentes atores sociais. A construção e a operacionalização da
problemática investigada (problema, hipótese, indicadores, fontes e
procedimentos) foram desenvolvidas a partir dos pressupostos teóricos da
complexidade, tendo Edgar Morin e David Garland, como os principais autores
de referência. Nessa ótica, foi possível: - entrelaçar violência e prisão numa
espécie de jogo de espelhos com indicadores significativos da sociedade; -
captar a prisão como organização complexa que se configura a partir das
múltiplas dimensões e referências da pena, além de interagir com outros
sistemas (penal, político, midiático). Ao final, apontam-se as principais
descobertas obtidas nesse processo de pesquisa, bem como algumas
proposições relacionadas à política de segurança / penal e às práticas que
constituem o campo jurídico penal, incluindo a intervenção do profissional em
Serviço Social.
ABSTRACT

The main objective of this thesis is to support that contemporaneous


society‟s violence has a place to condense and express itself through different
meanings in large prisons. The phenomenon‟ analysis has the intention to
constitute a prison‟ complex vision which allows to concept it not just as a place
to show the punishment power but also an auto-organized place that produces
social life and shows non-violence strategies to combat institutional violence.
Five premises had been constructed to confirm the thesis: 1) a doubtful speech
that sometimes is favorable to arrest and in other moments says that arrest is
an institute that had failed; 2) redefinition of prison‟ symbolic power as a space
for normalization to eliminate dismissable mass; 3) existence of power games in
prison; 4) auto-organization process and the different violence meanings in
prison; 5) arrest considered as a space for institutional relations and sensibilities
as social practices including Social Service that may contribute to produce a
new culture about violence meaning and helping on his transformation. The
research main unit chosen was Porto Alegre Central Penitentiary (PACP), the
larger penitentiary in the state of Rio Grande do Sul – Brazil, where it had been
specified the problem: how the different meanings of violence are expressed in
Porto Alegre Central Penitentiary organization? Questionnaires were applied to
carcerary community as well interviews and discussion groups had been taken
place between them to collect data to this research.

Considering that the shape of the text means its contents, metaphoric
resources had been used to construct this work, for example, „thesis-travel‟
figure, images, poetry‟s, songs and many other reflections made by different
14

social artists. The problematic study (problem, hypothesis, sources and


procedures) had been developed using the complexity theory and referring his
authors like Edgar Morin, and David Garland. In this study it was possible to mix
violence with prison showing contemporaneous society‟ significance; to
understand prison as a complex organization through different dimensions and
punishment‟ references, besides including penal and political systems. Finally
the research process points the main discoveries related to the hypothesis and
gives suggestions to developed security /penal policies that constitute penal
and juridical area including Social Service‟ Professional interventions.
“Há viagens de todo o tipo. A do “turista acidental” é aquela em que
o desconhecido - que caracteriza o outro, o estrangeiro e seu
território - é domesticado, reduzido à rotina conhecida e liberado de
todo o medo e de todo o risco, mas também de qualquer
possibilidade de descoberta, amadurecimento, crescimento pessoal
e intelectual, de enriquecimento e transformação. Outra viagem bem
diferente é aquela consagrada na cultura ocidental pelo modelo da
Epopéia, que Homero eternizou. Na Epopéia, a viagem se faz como
um longo e arriscado distanciar-se da origem, da cidade natal, das
relações matriciais e de si mesmo. O outro, o desconhecido, surge
transfigurado em monstros míticos e nos perigos extremos, que
conduzem a experiência do protagonista a seus extremos. Quando,
finalmente, a viagem parece ter mergulhado o viajante na sombra
sem norte, irreversível, aproximando-o de seus limites e da morte, o
destino o devolve à sua cidade natal e a si mesmo, não para
condená-lo à repetição, ao eterno retorno do mesmo, mas para
libertá-lo de vez de sua origem, permitindo-lhe redefinir suas
relações consigo mesmo, para lançar-se, enfim, na aventura mais
audaciosa que um ser humano pode ousar: a metamorfose, a
autotransformação, o exercício radical da estética reflexiva da
autoconstituição”. (Luiz Eduardo Soares).
A TRILHA INICIAL

Tecer uma teia das múltiplas expressões da violência contemporânea


sob o espaço da prisão. Eis o desafio desta tese. Abordo a prisão como sendo
um recurso analítico de um fenômeno complexo e poliforme, através do qual se
organiza um sistema que condensa e potencializa a violência estrutural da
sociedade brasileira.

Tal perspectiva constituiu-se em um fio condutor para esse trabalho, em


que busquei a construção de um olhar complexo capaz de estabelecer a
conexão entre violência e prisão. Dessa forma, procurei captar alguns dos
muitos processos que agem nessa esfera obscura, fazendo do entrelaçamento
violência-prisão uma espécie de jogo de espelhos e indicadores significativos
da sociedade. Ou seja, tentei produzir um olhar que pudesse sinalizar, através
da prisão, antigas e novas formas de violência que atravessam as culturas que
se fundem, não só no interior das instituições do sistema punitivo (sujeitos
aprisionados, magistratura, administração penitenciária), mas também, e de
forma mais ampla, na opinião pública.

Eleger a violência na/da prisão como objeto desta investigação significou


inscrever-me na relação do visível e do invisível. Isto, claro, fez com que eu
corresse vários riscos relativos à suas conseqüências, sendo que a maior
delas, certamente, foi o de não saber caminhar entre o “olhar” e o “não olhar”.
Por isso, ao aproximar-me desse objeto “estranho”1 o desafio de aprender a
delimitá-lo, procurando uma melhor captação e demonstração do mesmo,

1 Para FLIKINGER (1999, p.2), uma cultura estranha só se compreenderá se a tomarmos a sério como estranha, isto
é, se reconhecermos sua estranheza para nós. Querer compreender culturas estranhas exige a coragem de colocar em
cheque os próprios „pré-conceitos‟. Conseqüentemente, o compreender é um processo de gerar insegurança: processo
este que precisamos aprender a suportar.
17

tornou-se uma viagem. Uma pesquisa da (re)descoberta, assim posso dizer,


em todos os sentidos desta palavra.

Penso que tenho vivido uma pesquisa empreendida no inquieto


crepúsculo da modernidade. Pesquisa sobre os limites da violência. Uma
pesquisa através das sombras. Em primeiro lugar, através de minha própria
sombra. Uma pesquisa em busca de uma verdade netuniana. Uma pesquisa
para além da especialização de um saber. Pesquisa a um lugar (prisão) que
abre os seus mecanismos internos através de sucessivas aproximações. Uma
pesquisa que exige paixão do pesquisador e uma linguagem motivada
(MATURANA, 2001), mais do que uma linguagem que pretenda apresentar
uma nova verdade. Porque “(...) sair do caminho da escravidão das pretensões
totalizantes do conhecimento torna-se somente possível por meio de uma
paixão desmedida pelo conhecimento.” (MALDONATO, 2001, p.14) .

Então, que motivo me impulsionou a fazer tal viagem? Certamente não


foi o de demonstrar que a pena de prisão nasceu falida, pois jamais cumpriu
seus objetivos de recuperar o infrator e inibir a criminalidade, pois isso já se
tornou unanimidade mundial. O que haveria, então, de original em pesquisar
um lugar fadado ao insucesso desde sua gênese? Por diversas vezes, fui
questionada e questionei-me se todo o estudo empreendido não seria resumido
apenas a remexer o óbvio. Foram essas mesmas dúvidas, contudo, que me
ajudaram a definir o norte deste trabalho de Doutorado. Foram, exatamente, a
obviedade e o discurso sobre a falência da prisão os fatores que me instigaram
a desenvolver esta tese.

Inquieta-me o fato de que a sociedade contemporânea, principalmente a


brasileira, está presa à satisfação de necessidades imediatas, básicas ou
midiaticamente geradas em imaginários coletivos superficiais. Sendo assim,
esta sociedade mostra-se apática frente aos problemas da violência social e
desinteressada na discussão de novas alternativas ao cárcere, a não ser em
momentos em que os ânimos se alteram, por ocasião de fugas e mega
18

rebeliões2. O debate fica, portanto, restrito ao campo dos cientistas jurídicos e


sociais. E, mesmo no meio acadêmico, principalmente junto ao Serviço Social,
as discussões sobre o sistema prisional são incipientes.

Há uma carência de pesquisas científicas no Brasil que demonstrem o


processo de organização do sistema punitivo dominante - a prisão - e quais as
expectativas dos agentes sociais envolvidos nos mecanismos de punição e
recuperação oferecidos pela sociedade. Freqüentemente, o debate tende para
soluções idealizantes e abolição da prisão. Na prática, são desprezados os
sujeitos que permanecem (con)vivendo nesse contexto, e que estão
experimentando novas formas de exclusão e até eliminação social.

Muitas produções sobre a falência da prisão e suas alternativas são


feitas por teóricos que pouco conhecem o cotidiano dessas instituições
punitivas. Ou seja, partem do reconhecimento de que as instituições totais
estão falidas no seu propósito de recuperação, dando a idéia de que se trata de
uma instituição alienígena. Isto vem servindo para a construção de uma
imagem que associa os efeitos perversos „daquele mundo intramuros‟ aos
estereótipos do sujeito vítima ou perigoso. Nesse contexto institucional em
crise, por mais fechado que seja, produz-se e reproduz-se a vida social. Os
processos de exclusão e inclusão social são constantemente potencializados
pela dinâmica da sociedade em geral (GARLAND, 1999). A negação desses
processos vem sendo uma das formas de violência simbólica, mostrando como
a sociedade trata os excluídos sociais.

Diante dessas percepções, quais seriam as expectativas em relação ao


que eu poderia encontrar no transcorrer da viagem? Pretendia, assim, constituir
uma cartografia dos múltiplos elementos que configuram as forças corporais
que resistem e agridem, dos atos de violência que co-existem, para identificar a
emergência de novas formas de poder e controle social, que vêm
caracterizando a nossa sociedade contemporânea.

2 Para CARVALHO(2001, p.02) “O momento da discussão sobre a realidade carcerária é freqüentemente precedido de
situações de enorme violência institucional.(...) E, não obstante, o modo, o local e os portadores dos discursos sobre
estes fatos são produto de construções políticas extremamente autoritárias, estruturadas em pressupostos
maniqueístas e segregadores, quando não belicistas e de (nova ) „defesa social‟.”
19

Depara-se não só com a ilusão de um tipo de pena refletida em si


mesma, num espelho que está declinando. A máscara cai também no que
tange à crítica retórica à falência da pena de prisão. Entende-se que os
discursos a respeito foram enredados em um conjunto de teorias modernas
que fizeram da penalogia um campo da „Verdade‟. Ao mesmo tempo, não são
vislumbrados outros discursos que tenham conseguido tirar da neblina as
ilusões construtivistas da sociedade normalizada.

A prisão deteve, por muito tempo, o poder simbólico de representar o


processo de normalização da vida social. Isto é, para transformar a conduta
dos indivíduos, as instituições eram organizadas de modo a intervir sobre o
corpo humano, treiná-lo, torná-lo obediente, submisso, dócil e útil
(FOUCAULT,1997).

Atualmente, permanecem as máscaras do poder institucional; todavia,


o preso nem sempre estabelece uma relação de submissão direta aos
agentes sociais de controle e à vigilância formal. Para aqueles que ficam no
„fundo da cadeia‟ surgem outras formas de controle, que se tornam mais sutis
e camufladas, através dos diferentes grupos, que se expandem numa rede de
micro-poderes que conquistam a condição de controlar, adormecer e acalmar
a massa carcerária.

A prisão, considerada pela sociedade como um resíduo marginal


anônimo, é, ao mesmo tempo, o espelho mais fiel e significativo desse
complexo social. Se, por um lado, a sociedade se esconde e é ignorada, de
outro, redescobre-se, fazendo emergir um enorme e variado potencial de
produção simbólica. A isso referem-se, de fato, as imagens do perigo, da
segurança, do castigo, do inimigo, da autoridade do Direito e do Estado, da
honestidade, da Justiça e do “Outro”. Trata-se de uma espécie de remorso
coletivo por aquilo que está oculto e esquecido, e que pode emergir do
improviso, despertando sonhos e emoções mais díspares e incontroláveis.

A prisão concretiza, ainda, um dos feitos mais significativos da relação


entre direito e sociedade. Representa, sob um aspecto, um impacto físico da
20

norma escrita sobre as relações sociais, uma materialização do direito penal e


penitenciário em estruturas, organizações, relações hierárquicas, onde um
mundo formal reina de forma arbitrária e inerte. Sob outro aspecto, explicita a
razão férrea do controle operado em nome da segurança, a não justiça da
norma e dos direitos, mesmo afirmados em linhas de princípios. Além disso, as
contradições e ambivalências que caracterizam a esfera prisional estão
relacionadas com a gravidade da crise da modernidade. Essa crise está
expressa, inclusive, na evidente dificuldade em reorganizar a linguagem, os
signos que representam as políticas do sistema penal e de segurança. Pode-se
destacar ainda que, no estágio atual de crise, mais do que nunca a prisão
representa um recurso comunicativo utilizável para a gestão do consenso do
imobilismo social. No entanto, a prisão tem sido deixada de lado pela opinião
pública, que tem priorizado outros enfoques da esfera punitiva - como a
suposta necessidade de maior repressão policial- quando se trata de aspectos
da segurança.

Esperando contribuir através da lente do Assistente Social para a


reflexão sobre essa realidade, elegi, como unidade principal de análise 3, a
maior casa prisional do Estado, que representava, na ocasião, 15% da
população carcerária do Rio Grande do Sul – um total de 15 mil presos.
Baseada na perspectiva da complexidade, procurei tencionar o fenômeno da
violência na prisão, utilizando como objeto de análise: “Como se expressam as
múltiplas formas da violência na organização do Presídio Central de Porto
Alegre?”

Um dos caminhos trilhados para a consecução dessa análise foi o


desenvolvimento de um estudo de caso de uma grande prisão, considerada
exemplar e também representativa desses espaços. No Presídio Central de
Porto Alegre aconteceram, na última década: superpopulação, motins, mortes,

3 A pesquisa de campo junto ao Presídio Central (1999-2001) tornou-se o lugar privilegiado de investigação, dentre os
diferentes espaços de atuação (acadêmico e profissional) em que discuto a categoria „violência‟. Destaco também aqui:
a experiência com Supervisora de Serviço Social no Núcleo de Apoio às Vitimas de Violência/ULBRA (1999-00). Como
Professora da Disciplina: Desenvolvimento de Comunidade- Estudo exploratório sobre a Violência da Vila
Fátima/FSS/PUCRS(2000). Como membro do Conselho Penitenciário Estadual do Rio Grande do Sul. (em exercício
desde 2000). Como Diretora do Centro de Observação Criminológica da SUSEPE-SJS desde janeiro de 2001.
21

rebeliões, militarização do controle formal, organização de lideranças a partir


de facções, processos de comunicação complexos, participação da
comunidade em diferentes organizações da sociedade civil.

Na referida pesquisa de campo, não me propus tão somente a discutir


com os agentes envolvidos os „efeitos‟ perniciosos e criminógenos da prisão,
nem positivos, como estratégia política de reprodução de um sistema
excludente que está colocado na rede de relações sociais. Pretendi, também,
problematizar as estratégias e representações da violência que revestem o
espaço prisional. A tentativa consistiu em analisar a prisão não somente no
campo teórico, mas no seu cotidiano, o que contribuiu para descaracterizá-la e
fazer emergir suas manifestações a partir de diferentes atores que interagiram
nesse espaço organizacional.

Nesse sentido, a perspectiva da complexidade possibilitou captar a


prisão como unidade complexa4, ou seja, um sistema que se configura a partir
da multiplicidade de dimensões (política, sócio-cultural, simbólica e
organizacional). A prisão considerada como espaço multidimensional, de
manifestação de controle, disciplina, produção de saber e subjetividade; um
campo de co-relações de forças que passa pelos diferentes movimentos de
ordem-desordem e organização complexa. A complexidade possibilitou, ainda,
constituir a trama de interações e imbricações do sistema prisional com os
outros sistemas (jurídico penal, político e informacional).

Portanto, para abordar essa problemática, elaborei a seguinte hipótese:

A violência da sociedade contemporânea tem, nas grandes prisões, o


lugar privilegiado para se condensar e se expressar através de múltiplas
formas. Para analisá-la, faz-se necessária a abordagem complexa sobre o

4 Para Morin (1977, 1991,1999) unidade complexa caracteriza-se como unidade global e não elementar, visto que é
constituído por partes diversas inter-relacionadas; unidade original, não originária, pois dispõe de qualidades próprias e
irredutíveis, mas tem de ser produzido, construído e organizado; unidade individual, não indivisível. Não podemos
reduzir nem o todo às partes, nem as partes ao todo. O sistema possui algo mais do que seus componente
considerados de modo isolados ou justapostos: a sua organização; a própria unidade global e as propriedades novas e
emergentes da organização e da unidade global (1977,p.103). Para isso estabelece alguns princípios como guias para
pensar a complexidade de um sistema: o organizacional, hologramático, anel retroativo, anel recursivo, auto-
organização; dialógica (1977, 1999).
22

fenômeno, o que possibilita captar a prisão, não somente como um espaço que
manifesta o excesso da força e do poder de punir - através do controle,
vigilância e disciplina - mas também, como espaço de auto-organização que
produz vida social, rupturas com o projeto idealizador da pena e outras
estratégias para combater a violência institucional. A potência da socialidade
dos sujeitos apenados, dos defensores dos direitos humanos e dos
abolicionistas seriam estratégias de não-violência à violência da própria pena
privativa da liberdade.

Para sustentar essa hipótese, delimitei cinco premissas que tornassem


possíveis demonstrar a violência da/na prisão. Contudo, o ponto de partida da
presente análise é o lugar onde me situo como pessoa e profissional do
Serviço Social. Sendo assim, é a partir deste capítulo que procuro descrever e
demonstrar o processo de delimitação da problemática que foi sendo
construída. Essa construção pode ser explicitada em um „movimento‟ que
resolvi definir como “Organizando a Pesquisa”. Trata-se do lugar onde
apresento os substratos da tese.

No Capítulo 2 trago o relato da experiência junto à Unidade da pesquisa


- sob o título “O Cenário da Pesquisa”. Nessa parte falo do Presídio Central de
Porto Alegre e sua estrutura e funcionamento, bem como apresento os dados
referentes ao perfil dos funcionários e presos que habitam esse universo, a
opinião que os mesmos possuem quanto às condições materiais e
assistenciais oferecidas na cadeia, bem como a dinâmica dos diferentes grupos
– direção, guarda, técnicos, presos- destacando o processo de organização
existente entre os presos trabalhadores e a massa carcerária.

No Capítulo 3, sob o título “Os olhares que imobilizam”, demonstra-se a


premissa I. Primeiramente faz-se uma análise teórica sobre os diferentes fins
da pena na modernidade, uma breve contextualização da pena privativa de
liberdade no Brasil, para posteriormente analisar as racionalizações sobre a
pena junto aos sujeitos pesquisados. Identificou-se um discurso ambíguo que
ora legitima a manutenção da prisão, ora aniquila qualquer possibilidade de
23

investimento nessa área devido à falência da mesma. Esses diferentes


discursos transformam a prisão numa instituição alienígena, estando
desvinculados da efetivação concreta da pena.

No Capítulo 4, denominado “Os Olhares que Congelam”, demonstra-se a


premissa II. Inicialmente faz-se uma breve contextualização da violência na
sociedade contemporânea em específico no Brasil. Verifica-se que a
ambivalência dos diferentes fins da pena vem contribuindo para que a prisão
redefina o seu poder simbólico de normalização. Revela-se uma violência
simbólica da sociedade ao tratar os diferentes espaços e modalidades da pena
e das formas de punir e aprisionar e, ao mesmo tempo, eliminar a massa de
sujeitos descartáveis;

No Capítulo 5 analiso o processo da “Auto-organização do Lugar” em


que busco demonstrar a premissa III. Identifica-se que na dinâmica complexa
entre os diferentes grupos da prisão emerge um processo de auto-organização,
semelhante ao que acontece nos bairros da periferia, já que os indivíduos
presos não vivenciam o tempo e o espaço da sociedade normalizada. Dessa
forma, produzem-se e reproduzem-se espaços de rupturas simbólicas e de
socialidade, indicando a potência da massa em ser violenta e resistente a um
sistema excludente da sociedade contemporânea; nesses diferentes espaços
revelam-se múltiplas prisões dentro da prisão e o interjogo dos diferentes
micropoderes, fazendo com que a máscara do poder instituído – vigilância e
disciplina – esteja imbricada na emergência de novas estratégias de um poder
hiperespecializado exercido pelos diferentes grupos que compõem a prisão;

No Capítulo 6 designo “O Olhar Recursivo” onde é apresentado uma


articulação dos resultados das premissas anteriores, para poder inferir que a
prisão não é somente expressão passiva da violência e dos modelos culturais
instituídos, mas uma geradora ativa de relações instituintes e sensibilidades.
São abordadas possibilidades, tanto em nível de ruptura e contribuição para o
conhecimento e a renovação de práticas, no sistema penal, quanto em nível de
sugestões para as áreas técnicas em que atua, principalmente, o Serviço
Social, no sistema penitenciário. Como forma de ilustração dessa busca
24

apresenta-se o relato da experiência que se teve na gestão de um órgão de


referência técnica no Sistema Penitenciário do Rio Grande do Sul.

Portanto, na última premissa, ouso vislumbrar que as práticas sociais na


prisão, entre elas o Serviço Social, podem contribuir para a produção de uma
cultura sobre a natureza e o significado de sua própria violência, auxiliando na
sua transformação.

Por fim, faço as considerações finais da experiência da Viagem-Tese e


aponto algumas proposições tanto em nível de política de segurança
penitenciária como para instância da prática profissional do Serviço Social no
campo jurídico penal.

Espera-se demonstrar, seguindo a ótica da complexidade, que a prisão


não se expressa apenas através da construção física das normas punitivas,
mas através de signos, símbolos, declarações e formas retóricas. As práticas,
os discursos, as instituições do sistema penal desempenham uma relação ativa
no processo gerador no qual significados, valores e, em última análise, cultura,
são produzidos e reproduzidos na sociedade. A prisão pode ser vista como
uma organização comunicativa e didática que, através de suas práticas e de
suas declarações, confere concretude a uma sensibilidade e uma cultura
específicas, considerando os valores, as opiniões, a sensibilidade e os
significados sociais do ser humano. A prisão, considerada como prática social,
comunica significados não só a respeito de presos, crime e punição, mas
também sobre violência e muitos outros fenômenos sociais conexos.

Dessa forma acredita-se que, a par de outras práticas sociais, também a


prática prisional pode ser considerada sob o ponto de vista da ação social e do
significado cultural. Ao trabalhar-se numa perspectiva de conexão, a prisão é
vista como uma organização que “faz coisas” e, sendo considerada como
geradora de significado, passa a ser, também, uma organização que “diz
coisas”.
25

A trajetória dessa tese foi vivida como uma viagem, desde seu primeiro
desenho, ainda como projeto, até sua redação final, passando pela elaboração
das hipóteses e pelo processo tormentoso e hesitante das interpretações, com
as surpresas do aprendizado renovado, com a perplexidade sempre reiterada
de uma pesquisa sobre relações tão complexas e dolorosas, e com a angústia
asfixiante através da qual o universo do confinamento se oferece a seus
observadores cotidianos.

Na elaboração desse trabalho, utilizou-se também de recursos


metáfóricos, de poesias, músicas e imagens para descrever o mais próximo
possível o processo da pesquisa-tese. Esses recursos transformaram e criaram
condições para a reinvenção da minha visão do mundo e da relação com o
objeto pesquisado. E justamente nessa jornada arriscada, rumo ao
desconhecido, rumo à alteridade, os diferentes olhares foram se
descongelando e deixaram de ser apenas objetos, relativizando também, o
meu lugar-sujeito.

Ao fim da jornada, portanto, a vida reconquistada dos objetos - sujeitos


nos impõe o reconhecimento da humildade a que deve se cingir todo sujeito de
conhecimento. Essa é a caminhada da minha pesquisa- tese: a possibilidade, a
oportunidade, o reconhecimento da necessidade de recomeçar e sempre
iniciar.
“Escrever é um longo período de introspecção, é
uma viagem até as cavernas escuras da
consciência. Uma lenta meditação. Escrevo
apalpando o silêncio e pelo caminho descubro
partículas de verdade, pequenos cristais que caem
na palma da minha mão e justificam minha
passagem pelo mundo” (Isabel Allende)
1 O CAMINHO DA PESQUISA

1.1 O Ponto de Partida: Organizando a Bagagem

 A problemática sentida

A pesquisa- tese possibilita, entre tantos aspectos dessa experiência,


um voltar para si. E, nesse retorno reflexivo, inevitavelmente, necessita-se
fazer uma seleção sobre o que se deve carregar no bagageiro da memória. Por
diversas vezes, encontrei-me refletindo sobre os motivos que me levaram a
optar pelo Serviço Social e, dentro desta área, por que fui escolher o campo
prisional como objeto das minhas indagações. Os anos de terapia e os
caminhos do auto-conhecimento trilhado - quanto aos traumas de uma infância
conturbada, das perdas e dos medos das perdas, das culpas pela raiva e
mágoa sentidas – possibilitaram-me explicar, de forma racional, a escolha do
tema da tese: violência na prisão. Mesmo assim, dois fatos marcantes ainda
borbulhavam em minha memória. Fatos que me colocaram em contato com o
“outro”.

O primeiro aconteceu em 1981, ano em que estava no auge da minha


adolescência, no Hospital de Pronto-Socorro de Porto Alegre. Deparei-me com
uma mãe aparentemente “estranha”5 que carregava uma criança recém-
nascida no colo. Observei que ela não conseguia responder às perguntas
básicas para preencher a guia de atendimento do Hospital. Com curiosidade,
aproximei-me e, é claro, vinculei-me ao drama daquela mãe “limitada” e de sua

5 “Compreender o estranho significa compreender melhor a si mesmo. Pois toda a compreensão é marcada por um
processo reflexivo; o estranho faz-nos experimentar o outro de nós mesmos”. (FLIKINGER, 1999, p. 2).
28

filha Lúcia6. Depois, por três semanas, acompanhei o caso, enquanto a menina
esteve internada no Hospital Santo Antônio. Devido a uma gangrena, Lúcia
acabou perdendo o pé esquerdo porque, num ato de raiva, seu pai, que não
suportava escutar o seu choro, resolveu apertar ao máximo um dos sapatos
que protegiam seu pé. Lúcia foi retirada de seus pais e encaminhada à
FEBEM, para possível adoção.

Por noites, perguntava-me sobre quem iria adotar uma criança sem um
pé. Como estaria aquela mãe com a perda de sua filha? Que motivos levaram
aquele pai a cometer tal atrocidade com uma criança indefesa? Como estaria
Lúcia naquele lugar impessoal e frio ?

Na mesma época, para reforçar meu drama ético-existencial, assisti ao


filme Pixote e descobri que havia um mundo intramuros que se organizava a
partir da violência e para a violência que eu desconhecia. Naquele momento,
se agudizavam, pessoalmente, os meus dramas e minhas experiências de
violência e entendi que não mais conseguiria ficar alheia a tudo aquilo. Resolvi,
então, fazer o Curso de Graduação em Serviço Social, pois considerava esta
uma profissão que sintetizava o ideal de uma sociedade mais justa e igualitária
(compromisso ético-político), as possibilidades de uma intervenção direta na
realidade problematizada (competência técnico-operacional) e pesquisa
(competência teórica). Desde esta decisão, passaram-se 19 anos e “minha
mente não se apaziguou”. Mesmo considerando tantos processos de
racionalização que a formação profissional possibilitou, a dor do “outro” não se
naturalizou, pelo contrário, tornou-se a força propulsora do meu projeto
profissional como Assistente Social e pesquisadora do social.

Na Faculdade, não foi por acaso que carreguei, por um tempo, o ideal de
trabalhar com as crianças vítimas do abandono social. Mas, por uma opção
dentre os diferentes campos de estágio oferecidos na época – 1984 -, acabei
escolhendo a Penitenciária Feminina Madre Pelletier para aprender a fazer o
Serviço Social. Foi uma experiência de dois anos, de possibilidades e limites,

6 O nome aqui utilizado é fictício, por questão ética.


29

de acreditar e desacreditar no contexto sócioinstitucional, na proposta de


trabalho e nas mulheres apenadas. Adotando uma postura messiânica, tive o
desafio e a pretensão de trabalhar numa perspectiva fenomenológica, de talvez
seguir contra a corrente de controle e do poder de punir que me era conferido.
Sem muita crítica, naquele momento, descobri a obra “Vigiar e Punir” de Michel
Foucault (1997) e experimentei um dos grandes paradoxos da profissão, ao me
identificar como um dos mecanismos da tecnologia do biopoder da sociedade
disciplinar.

Nos anos de 1987 e 1994, trabalhei por curtos períodos como Assistente
Social no sistema penitenciário, em diferentes esferas de atuação e
experiência. Mesmo que breves, foram duas experiências que me
possibilitaram, em primeiro lugar, uma intervenção direta com os apenados da
Penitenciária do Alto do Jacuí; em segundo, uma intervenção em nível de
planejamento nos setores da educação e trabalho prisional, no Departamento
de Execução Penal da Superintendência dos Serviços Penitenciários.

Começou então, desde cedo, uma caminhada marginal, tanto no campo


profissional7 quanto nas idéias da própria profissão. Durante boa parte da
minha trajetória acadêmica, senti-me vazia, fechada, endurecida por meias
verdades. Mais tarde, o sentimento passou a ser o de insegurança, pela
descoberta da minha fragilidade na formação de um espírito científico, na
adoção de uma atitude como pesquisadora.8

Assim, para enfrentar a crise do praticante9, fiz uma opção pela fuga,
direcionando-me exclusivamente para as temáticas que emergiam nos

7 A área penitenciária que teve seu auge dentre os campos da prática profissional do Serviço Social nas décadas de
60-70, passava, nessa época, por um processo de retração. Outras áreas, como a Assistência Social e Saúde,
figuravam como centrais junto à categoria, pois acompanhavam o fluxo das políticas sociais públicas na lógica dos
direitos sociais. Portanto, os campos que representavam a face controladora e higienista da profissão passavam por
um processo de superação, ou talvez negação, por parte daqueles que continuavam trabalhando nas instituições totais
punitivas- prisões e FEBEM.
8 Para DESAULNIERS (1999) desenvolver uma atitude como pesquisador “implica a instalação de rupturas através do processo
baseado nas disposições gerais que constituem o hábitus científico, para que o pesquisador seja capaz de se arriscar constantemente
desafiando o real, sem desconsiderar as relações de incongruência que estão na gênese da construção do conhecimento
científico”(p.04)
9 Desencadear e pensar sobre crise do praticante é o início do processo de delimitação do problema da pesquisa
(DALPIAZ,2000) .
30

trabalhos de campo. Em cada área profissional que trabalhava, tornei-me


„expert‟ nas temáticas (Recursos Humanos, Criminologia, Saúde Escolar,
Adolescência, Sexualidade etc.) que correspondiam aos espaços institucionais
e, cada vez mais, afastei-me da preocupação sobre a produção do
conhecimento científico no Serviço Social, distanciando-me de minha
identidade profissional plena .

Somente quando ingressei no Mestrado – 1992 – é que os „dilemas‟


reacenderam-se. Havia construído um tipo de conhecimento mais heterogêneo
e multidisciplinar. Mas o paradigma dominante na profissão, o materialismo
histórico – ou melhor, a leitura que se fazia dele, ainda incomodava, uma vez
que havia muita ênfase nas questões estruturais e econômicas. Sentia falta de
uma abordagem mais complexa, mais profunda, que envolvesse aspectos para
além do concreto, da estrutura. Queria trabalhar dimensões como a da alma,
do mito e do simbólico.

Não era por acaso esse „desvio de rota‟ em relação ao paradigma


dominante. No plano pessoal, estava fascinada pelo Paradigma Holístico
(CAPRA,1990 e CREMA, 1990). Esta visão de mundo, contudo, não tinha
reconhecimento científico no Serviço Social e eu não tinha segurança quanto à
sua dimensão epistemológica, o que me fragilizava na disputa do poder no
campo do meu saber. Mais uma vez acabei recuando.

Após algum tempo, comecei a estudar alguns autores contemporâneos,


como Michel Focault, Edgar Morin, Paul Virilio, Jean Boudrilard e outros tantos
que representaram, não a adoção de um referencial, mas a abertura de uma
cosmovisão, de uma forma de pensar e conhecer a realidade que finalmente
possibilitaria uma ponte com a perspectiva holística.

A „marginalidade‟ em que permaneci por um longo tempo deu-me um


novo fôlego, pois passei a ter certeza da eterna incerteza de meu saber.
Compreendi que não estava „louca‟, pois aquela sensação de „turbilhão‟, de
„caos‟ que emergia, era o que favorecia a complexificação, no sentido da
formação de um “novo olhar” para o Serviço Social.
31

Nesse contexto, a busca do ser e do saber uno e múltiplo vem revelando


um conhecimento no Serviço Social que, mais do que ser detentor de um
objeto específico que possui um arcabouço de verdades absolutas, aponta
para um caminho de novas descobertas e novas verdades. Trata-se de uma
„estrada‟ que aceita a complexidade como uma realidade reveladora e
demonstra que ser pesquisadora no Serviço Social é, ao mesmo tempo, ser
sujeito e objeto da própria construção do (auto) conhecimento profissional
(DALPIAZ, 2000) e do mundo.

No campo do Serviço Social, é interessante resgatar uma espécie de


“complexo de inferioridade" frente a outros saberes. Segundo uma concepção
de ciência, em moldes tradicionais, onde existe a divisão entre o técnico e o
intelectual, dos que pensam e dos que agem, o Serviço Social sempre
encontrou dificuldades na definição de seu objeto específico. Entendo que seu
status científico foi construído a partir da produção do conhecimento sobre a
realidade sócio-institucional com que se depara o Assistente Social no
cotidiano da prática profissional. Isso acontece por tratar-se de uma profissão
que não se originou como um ramo do saber (com o propósito de produzir
conhecimentos/teorias) das Ciências Humanas, mas como área que busca não
só intervir no real/social, mas também compreendê-lo, interpretá-lo e explicá-lo
através de uma base teórica oriunda de várias ciências (Sociologia, Psicologia,
Filosofia, Economia, Direito etc.),

Percebo, entretanto, que descortinar o social, ver o ser humano e sua


rede de relações significa vê-lo como parte e como todo, gerando uma
`obscuridade‟ no olhar de quem busca captar as múltiplas expressões da
Questão Social10 a serem enfrentadas e analisadas.

Enfim, essa multidimensionalidade da abordagem do Assistente Social


leva a uma crise, a uma sensação de caos (saudável na ótica da
complexidade), pois dificulta a identidade da área do Serviço Social na

10 A Questão Social é uma inflexão do processo de produção e reprodução das relações sociais inscritas num momento histórico,
trata-se da produção de condições de vida, de cultura e de riqueza. (ABESS, 1996, p. 12) Nesta perspectiva a Questão Social traduz-
se enquanto expressão: das desigualdades sociais, mas também, formas de pressão social e re-invenção do cotidiano dos sujeitos
excluídos socialmente. (IAMAMOTO, 1998, p.28)
32

apropriação de um objeto específico. Apesar dos custos, riscos e angústias, a


crise traz consigo uma riqueza reflexiva e possibilita o estabelecimento de
imbricações e elos de ligação com as outras áreas do saber que também estão
relacionadas ao ser humano enquanto ator social.

Hoje acredito que a singularidade do Serviço Social contém um potencial


(latente) valioso de inserção nos quadros complexos da realidade social.
Através de sua prática, constrói-se um estatuto profissional que descortina a
globalidade dos processos sociais. Quer dizer, o importante não é saber qual é
o „pedaço‟ do Serviço Social, mas quais são as suas „relações‟ (FALEIROS,
1997).

Portanto, venho buscando construir uma competência como Assistente


Social que não esteja aprisionada ao discurso articulado pelas regras de um
paradigma dominante, mas que possa ser (re)vista de forma complexa, através
da desconstrução reflexiva de uma formação rígida, fragmentada e
tecnocrática.

Essa auto-vigilância crítica sobre o meu processo de construção do


conhecimento do Serviço Social e, especificamente, sobre a questão da
violência na prisão surge na trajetória dos profissionais do sistema prisional
para contribuir para a superação de concepções missionárias e tecnicistas.
Hoje, luta-se pela condição de pesquisadores, gestores e/ou executores das
políticas de segurança e criminal com competência teórico-prática, técnico-
operacional e ético-política.

Por isso faço um recorte, assumindo o risco de proceder a uma


simplificação, para destacar alguns elementos que considero importantes sobre
o Serviço Social no sistema penitenciário do Estado do Rio Grande do Sul, e
que serviram de bagagem na identificação da problemática desta tese.
33

1.1.1 A Bagagem I

 Alguns elementos do Serviço Social no Sistema Penitenciário


do Rio Grande do Sul

As reflexões expressas neste item contêm alguns aspectos relevantes


de minha experiência profissional junto ao Serviço Social do sistema
penitenciário do Rio Grande do Sul. Foram três anos trabalhando no
atendimento direto aos apenados. Além da presente tese, realizei duas
pesquisas: a) a influência dos contrastes sócio-culturais no processo de
criminalização e penalização; b) Serviço Social na Coordenação da Prestação
de Serviços à comunidade – PSC - Pena Alternativa. Na docência, ministrei
Disciplinas no Curso de Especialização em Criminologia da UFRGS, na Escola
dos Serviços Penitenciários e na Especialização em Saúde Mental do Hospital
Psiquiátrico São Pedro; coordenei cursos de extensão; assim como
supervisionei e orientei monografias sobre o tema, na Faculdade de Serviço
Social da PUCRS. Mais recentemente, fui Diretora do Centro de Observação
Criminológica. Atualmente sou membro do Conselho Penitenciário do Estado
do Rio Grande do Sul.

Enfim, foram diferentes experiências em diferentes momentos, contextos


e papéis, que me possibilitaram uma leitura crítica sobre a atividade do
profissional nesse campo de atividades. Contudo, não pretendo aqui fazer um
resgate histórico da profissão nesse contexto, mas somente pinçar elementos
da sua trajetórias que contribuíram para a construção da problemática desta
tese.

O Serviço Social Penitenciário iniciou suas atividades no Rio Grande do


Sul em 1944, em caráter não oficial, junto à extinta Casa de Correção de Porto
Alegre (FERREIRA, 1990). Somente em 1951 o exercício dessa profissão foi
regulamentado nas casas prisionais do Rio Grande do Sul, através da Lei
Estadual nº 1651. No início, a atividade tinha um forte cunho assistencial e,
assumindo funções de outras categorias profissionais, acabou conquistando
34

posição preponderante frente a toda a problemática da ressocialização 11 do


sujeito apenado. Incorporado às práticas assistencialistas estava o caráter
repressor e adaptador da instituição total, sem que fosse questionada a
contraditoriedade existente no trinômio segurança/disciplina/recuperação.

O Movimento de Reconceituação12 da profissão, que tomou forma nas


décadas de 60 e 70, era contrário à prática e ao discurso funcionalista da
matriz positivista preponderante na categoria, e não teve grandes repercussões
no Serviço Social do sistema penitenciário do Estado, que continuou a
expandir-se e legitimar-se como área de controle e reeducação social.

Em meados dos anos 80, as sucessivas crises no sistema prisional


contribuíram para a emergência de uma posição crítica frente às ações do
Serviço Social, quanto ao espaço institucional e estimulando a formulação de
novas estratégias de intervenção. O grupo de assistentes sociais do sistema
penitenciário gaúcho fazia reuniões todo o mês, e também cursos de
capacitação profissional organizados pela UAES – Unidade de Atendimento
Educacional e Social. Surgiram novas formulações teóricas, impulsionadas
pelo desafio de encontrar práticas alternativas às ações de ajustamento social
– lógica da ressocialização. A idéia era a de avançar-se com uma perspectiva
crítica de transformação social numa instituição total de caráter punitivo e
coercitivo. Nesse momento histórico-teórico, no final dos anos 80 e início dos
90, passou-se a explicar a problemática do sujeito que está preso, definindo-o
como representante de uma classe explorada que ocupava, em algumas
análises, posição de “vítima” do sistema social.

Com o advento da LEP – Lei de Execuções Penais 7210/84,


principalmente a partir de 1988, o Serviço Social desarticulou-se teórica e

11 O ideal ressocializador tem sido objeto de várias criticas nos debates sobre o sistema penal. Dentre as v árias
destaca-se:a) a impossibilidade de colocá-lo em prática pela falta de legitimidade (quem é o Estado para querer alterar
o comportamento de um sujeito)?) e de estrutura, já, que o índice de resultados não diminui reincidência criminal; b)
questiona-se o conotação político-ideológica da palavra ressocialização, que tem como premissa que o homem que
está preso é um ser desviante e que a sociedade sofre com isso, devendo, portanto, criar condições de controle e
tratamento para mudá-lo. Sobre esse tema ver: CARVALHO (2001), (BARATTA, 1997), (ANDRADE,1997),
(SANTORO, 1999) (CERVINI,1995).
12 Sobre o Movimento de Reconceituação no Brasil, ver: CARVALHO & IAMAMOTO (1993) e LIMA (1987).
35

politicamente devido às novas prioridades definidas pela Política Penitenciária


do Estado. Através da limitação das ações a propósitos institucionais estreitos
e conservadores, sob a tutela do Poder Judiciário, essa Política esvaziou os
debates sobre os problemas das penitenciárias e os processos de reintegração
social dos apenados. Ou seja, os profissionais do Serviço Social foram
relegados à condição de tarefeiros para simplesmente atender às demandas de
avaliação/perícia para fins de individualização, progressão de regime ou
livramento condicional.

Conforme indica a LEP, em seu artigo 6o, a C.T.C - Comissão Técnica


de Classificação - composta por profissionais do Serviço Social, Psicologia e
Psiquiatria, deve acompanhar os sujeitos presos através de um programa
individualizado (Tratamento Penal) e propor às autoridades competentes
(Juizado de Execução Penal), através da emissão de laudos e pareceres, a
situação dos sujeitos presos quanto às progressões e conversões de regime.
Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que a LEP passou a garantir, nos
termos da legislação, o “Tratamento Penal individualizado” e o acesso aos
direitos humanos e sociais dos apenados, houve uma retirada do Estado, no
que tange às condições materiais e humanas para efetivá-lo. Os recursos
humanos do Sistema Penitenciário, em geral, foram reduzidos através de um
plano de demissões voluntárias, além de aposentadorias. Em contrapartida,
houve um aumento da população carcerária13.

Na década de 90, o Serviço Social perdeu sua identidade como


categoria, ficando relegado, muitas vezes, a um papel de „executor de laudos‟.
As ações passaram a ocorrer através das equipes de CTC, enquanto o
tratamento penal previsto em lei tornou-se, com algumas exceções,
secundário.

É importante lembrar que, historicamente, o Estado Brasileiro submeteu


as políticas públicas a um paradigma compensatório (SPOSATI, 1995).

13 Em levantamento realizado em março de 2001, verificou-se o desmonte das equipes técnicas, principalmente, no
Governo Antônio Britto (1995-1998). Das 49 Assistentes Sociais distribuídas em todo Estado, apenas 11 profissionais
ocuparam cargos de técnicos da SUSEPE ou do Quadro Geral do Estado. Os demais cargos técnicos eram ocupados
por profissionais em desvio de função (agentes penitenciários), Cargos de Comissão-6, cedidos de outras Secretarias
ou incorporados pelo Contrato Emergencial de 1994.
36

Entretanto, no caso específico da política de segurança penitenciária, nem isso


ocorreu, pois, além de ter sido relegada a um plano secundário, acabou
restringindo-se a manter um caráter de simples contenção dos excluídos
sociais. As justificativas para essa redução da política em pauta incluem, desde
a falta de recursos, até o fato de que a pobreza, ao invés de ser objeto de
intervenção, pelo menos compensatória, foi negligenciada e „amenizada‟ em
seus efeitos, através da repressão policial. Em outras palavras, a Questão
Social passou a ser tratada como um „caso‟ de polícia. As cifras que a
desenham – pobreza, grau de subnutrição, criminalidade, violência,
analfabetismo, entre outras– acabam por fragmentar o fenômeno, mais do que
esclarecê-lo. Acaba-se mesmo esquecendo que a pobreza é decorrência do
sistema de organização que retroalimenta a exclusão e a desigualdade social.

Conforme o que já foi citado, segundo a Lei de Execuções Penais - LEP,


esperava-se que a equipe técnica (representada por profissionais das áreas de
Serviço Social, Psicologia e Psiquiatria) exercesse a função de classificação,
triagem, assistência e amparo ao sujeito preso, ao egresso e seus familiares,
bem como a fiscalização do „mau‟ cumprimento de recursos jurídicos. Foi
observado, no entanto, que a partir de meados dos anos 90, as equipes foram
induzidas a atender basicamente às demandas do Poder Judiciário, atuando na
elaboração de pareceres referentes às mudanças de regime (fechado, semi-
aberto, aberto e livramento condicional).

Na maioria dos casos, não existia um acompanhamento anterior, e os


pareceres eram elaborados a partir do levantamento de dados na
documentação do apenado (anotações em prontuários, aspectos
administrativos, disciplinares e o processo judicial) e contatos com familiares,
quando possível. Em relação à elaboração dos Laudos de Perícia,
especificamente, os profissionais do Serviço Social ocupavam posição
secundária, não sendo considerados como peritos, mas apenas meros
informantes a respeito das condições sóciofamiliares do sujeito periciado.
Considerando-se que existiam informações superficiais a respeito da vida
37

sóciofamiliar do sujeito apenado, identificou-se que os pareceres eram


elaborados sem muita clareza e com pouca sustentação teórica-prática.

Nas avaliações do Serviço Social era visível a carência de conceitos


mais específicos. Foi sendo incorporada, na base argumentativa, a linguagem
institucional, com forte influência positivista, disciplinadora e, por vezes,
preconceituosa. As análises eram centradas na conduta do sujeito preso e
ocorriam num padrão ordenado, seguindo uma lógica fundada na bipolaridade
“normal x patológica”. Não era feita uma contextualização que considerasse o
meio social, econômico, político e cultural em que as condutas eram
construídas ou que contemplasse a vida carcerária que estava sendo
observada e „tratada‟.

A desarticulação dos profissionais da área penitenciária acabou gerando


uma carência de sistematização metodológica capaz de proporcionar um
serviço mais eficaz à população carcerária. Acredita-se que a maioria dos
profissionais contratados em CCs – cargos de confiança- nos quais o vínculo
empregatício se estabelece através de um nível mais político do que técnico e
com baixíssima remuneração (salário mensal de R$600,0014)- encontravam-se
em condições particulares vulneráveis às pressões institucionais no
cumprimento das atividades ditas „emergenciais‟, contribuindo para uma
postura fatalista frente às perspectivas de um efetivo Tratamento Penal.

Portanto, o Serviço Social, atuando junto às equipes de CTC, construiu,


no decorrer de sua história (após implantação da LEP-1985), uma identidade
institucionalizante, vinculada aos mecanismos de controle social, com caráter
tarefeiro, subalterno, sem base teórica e intencionalidade ético-política.

Os serviços concretos prestados pelo Serviço Social correspondiam à


demanda oficial, à medida que contribuíam como alívio das tensões intramuros
(ANAIS V CBAS, 1989). Na realidade, esses serviços acabavam, com
freqüência, convertendo-se em uma extensão do poder de decisão do juiz
(CARVALHO, 2001).

14 Dados salariais referentes ao período 2000-2001.


38

Considerando essa experiência acumulada nos últimos 15 anos,


algumas questões passaram a me mobilizar, tais como: qual o papel do
Assistente Social dentro do sistema penitenciário, centrado no laudo (modelo
avaliador): a) não estaria sendo um instrumento simbólico para justificar o
discurso falido da ressocialização, que não vem se efetivando? b) o que fazer
com a defasagem existente entre a proposta legal e a realidade intramuros?

As diferentes experiências desenvolvidas confirmavam que a tão


propalada humanização prevista na Lei estava apenas nos discursos daqueles
que pretendiam justificar, de alguma forma, o poder de punir que o Estado lhes
transferia.

Creio que essa perspectiva histórica de Execução Penal apresenta uma


punição acessória à privação da liberdade. Além de não serem oferecidas (com
exceções pontuais) condições mínimas de atendimento, em nível assistencial,
educativo e terapêutico (previsto na LEP), “é garantida” apenas uma avaliação
fundamentada em dados formais os quais não são condizentes com a
realidade sócio-institucional do apenado. Sendo assim, passei a questionar-me
se a atuação do Serviço Social ficaria bitolada às engrenagens de reprodução
do sistema penal.

Comecei, então, a problematizar em diferentes esferas de atuação do


Serviço Social, nas suas intervenções que poderiam constituir-se em um
espaço reflexivo, ao voltar-se não só às questões do delito e da pena, mas
para as questões cotidianas, a fim de desvendá-las, trabalhando-as ao
apresentar propostas viáveis, frente às situações trazidas pelos sujeitos
apenados ou pelo estabelecimento prisional. E que, na base da compreensão
do processo de criminalização15, encontrar-se-ia um contexto histórico-sócio-
cultural perverso: as formas de “enfrentamento” da Questão Social.

15 O processo de criminalização dá-se através da interação de mecanismos seletivos que agem no momento da
formação da lei penal (criminalização primária) e da aplicação da lei penal (criminalização secundária). Sobre esse
tema ver DIAS e ANDRADE(1984); BARATTA, A.(1997) ANDRADE (1997)
39

Acredito que é dentro desse contexto em que se insere o Serviço Social


como profissão e que acaba intervindo nas contradições que emergem dessa
realidade junto às diferentes expressões da questão social que aparecem nas
relações entre sujeitos apenados e sociedade. Portanto, é uma área que visa a
favorecer a compreensão crítica da vulnerabilidade penal que existe dentro e
fora da prisão, através de uma prática social cotidiana.

A ação junto aos sujeitos apenados poderia ser uma ação político-
cultural e sócio-educativa, visando à liberdade e, por isso mesmo, uma ação
dialógica, interativa e participante, isto é, compartilhada. A vulnerabilidade
emocional e social, fruto da situação concreta da dominação e exclusão em
que os apenados se encontram, gera uma visão ingênua e violenta que serve
para realimentar a dependência e a rejeição por parte de um mundo opressor,
identificando-se, nesse caso, o próprio contexto que exclui e estigmatiza o
apenado.

Nesse sentido, defendia-se que a reflexão crítica sobre a vulnerabilidade


sócio-cultural dos sujeitos apenados e uma efetiva inserção do Serviço Social
nesse contexto seriam aspectos que poderiam conduzir a uma nova forma de
intervenção no sistema prisional. Seria uma ação político-cultural e
sócioeducativa, que procuraria contribuir para a construção de uma nova
identidade social desses sujeitos criminalizados (GUINDANI, 2001).

Portanto, essa trajetória e questões ajudaram-me a sistematização da


problemática da tese que se buscou constituir. Espera-se, com isso, contribuir
para criar novas atribuições ao Serviço Social e, também, aos demais técnicos
do Sistema Penitenciário do Rio Grande do Sul, o que significa que, além de
debater sobre as novas diretrizes da Política de Execução Penal do Estado,
busca-se reconhecer e demonstrar que o Assistente Social almeja criticamente
abordar e dar respostas aos problemas sociais, vinculando-os simultaneamente
a objetivos redutores da violência institucional, constituindo-se, assim, em uma
das contribuições à cidadania e justiça social a todos aqueles que são
vulneráveis à criminalização.
40

Por isso considera-se fundamental, entre as múltiplas vivências,


destacar a bagagem acumulada na Direção do Centro de Observação
Criminológica, no período de construção dessa tese, ou seja, de janeiro a
setembro de 2001.

1.1.2. A Bagagem II

 Situando a experiência junto ao Centro de Observação


Criminológica

Durante o período citado, de janeiro a setembro de 2001, pode-se


considerar que, efetivamente, “fiz parte do cenário da viagem” do sistema
prisional, através da Direção do Centro de Observação Criminológica. Tal
experiência não estava no projeto da tese, porém representaria a possibilidade
de desenvolver minha pesquisa em nível de observação participante 16, ou seja,
“por dentro”. Mesmo sabendo dos perigos científicos de poder acontecer uma
`contaminação´, era algo imperdível.

Em novembro de 2000, quatro dias após a realização de meu exame de


qualificação do Doutorado, resolvi assumir o cargo de Assistente Social na área
da Secretaria de Saúde, cargo este conquistado através da aprovação em um
concurso feito em 1994. Fui lotada, por opção, no Hospital Colônia Itapuã,
instituição total que abrigava portadores de sofrimento psíquico crônico e
hansenianos.

Um mês após a entrada no Hospital, fui convidada pelo Superintendente


dos Serviços Penitenciários para assumir a Direção do Centro de Observação
Criminológica, órgão de referência do trabalho técnico desenvolvido (jurídico,
psicológico e do Serviço Social) em todo Estado, e também responsável pela
perícia criminológica realizada junto aos condenados pela Vara de Execução

16 Para LAVILLE&DIONNE (1999,P.178) a “observação participante é uma técnica pelo qual o pesquisador integra-se
e participa na vida de um grupo para compreender-lhe o sentido de dentro”.
41

Criminal de Porto Alegre (Região Metropolitana que conta, em média, com seis
mil apenados).

Em um primeiro encontro, o Superintendente disse-me que o objetivo


central da mudança da Direção do COC era o de rever a forma como as
perícias deslocadas da realidade social dos sujeitos apenados estavam sendo
feitas e avaliar os padrões idealizados de condutas que estavam influenciando
de forma negativa os resultados das perícias. Além disso, uma turma de novos
profissionais do Serviço Social, Psicologia e Direito estava ingressando na
instituição e, segundo ele, tal fato tornaria possível colocar em dia os atrasos
que vinham sendo verificados nas avaliações e, talvez, construir novas
atividades.

A decisão de aceitar o convite não foi tranqüila. Nesse momento,


potencializou-se minha natureza ambivalente quanto ao que fazer. Por um
lado, representava o compromisso ético com o ideal humanista, uma chance de
estar dentro do sistema, no outro lado do poder- formal - lutando por uma
causa que, por tantos anos, eu vinha discutindo em outros fóruns. Estar „dentro‟
facilitaria a captação de dados ocultos do sistema, colocando-me em uma
posição privilegiada de observadora. Mas as dúvidas eram muitas: assumir um
cargo de chefia, no meio da gestão do Governo, sob um comando cujas regras
desconhecia; desconhecendo seus limites, o apoio que teria e qual autonomia
das ações que poderia empreender; além de não saber quais eram as regras
do jogo dos poderes e os jogos do poder (POGGI, 1998) constituídos por
aqueles que iriam me comandar. Corria o risco de desgastar-me
profissionalmente, após trilhar uma trajetória da qual me orgulhava - através da
Universidade, como promotora de eventos científicos, pesquisadora e
supervisora de estagiários. Desgastar-me-ia - depois de aprimorar-me como
uma agente preocupada com a mudança na esfera de atuação e do poder
simbólico desempenhado pelos técnicos da SUSEPE. Por outro lado, o fato de
estar na Academia como intelectual crítica e propositiva (que me propunha ser)
permitiria que eu realimentasse a discussão que empreendia, a partir da
experiência, e isso compensaria, ao menos em parte, os riscos aos quais me
42

sujeitava. Além disso, a oportunidade caracterizava-se como pioneira pois, no


Brasil, seria a primeira vez em que uma Assistente Social assumiria um órgão
ocupado tradicionalmente por Psiquiatras ou Psicólogos. A questão não se
reduzia a uma preocupação corporativista de ocupação de um lugar
historicamente destinado a outras áreas, mas correspondia à possibilidade de
uma ruptura com o poder/saber da criminologia etiológica que se tornara o
“imprint” (MORIN, 1991, 2000) na construção do conhecimento dos técnicos do
sistema penitenciário.

Enfim, havia mais motivos para aceitar o risco do que o medo de


fracassar. Foram 250 dias para testar meus limites e possibilidades. Dias onde
ocorreram gafes e amadorismos. Descobertas da própria imaturidade em lidar
com os jogos do poder político e a lição conclusiva: somente entrando nesse
jogo é possível desconstruir a linguagem17 que naturaliza a violência construída
e reproduzida em um circulo vicioso (SOARES, 1996, 2000). Nesse período,
descobri que é possível gestar uma outra linguagem, havendo um ponto de
visto ético (MORIN, 1996, 1999, 2000) que relativize os antagonismos do
discurso sobre o falido poder de punir. Descobri que o círculo vicioso gira em
torno de quem potencializa mais a desgraça, a violência institucional. Pude
descobrir que existem muitas pessoas competentes que querem um sistema
prisional mais humano e essas mesmas pessoas, quando imbuídas no
comando de um cargo, não estão interessadas somente nos poderes que ele
possibilita. Descobri minha fraqueza e sujeição às injustiças com as quais
acabava me encontrando. Vivi o constrangimento e a impotência ante
situações críticas, quanto às condições de trabalho dos técnicos. Às vezes foi
preciso transigir, como forma de permanecer no cargo, porque uma luta maior
me animava, ou seja, dar-me conta de que fazia parte do jogo, jogando
constantemente com os outros (STEINER, 1984). Por outro lado, aprendi que,
para mudar as regras do jogo, deve-se aprender como ele

17 Todo sujeito ao se “defrontar com a linguagem, vê nela uma realidade de abrangência universal.” Assim as
experiências que naturalizamos como normais, que tratamos como reais “estruturam-se sobre a realidade subjacente-
são filtradas através dela, organizadas por ela, entram em expansão através dela ou, ao contrário, por ela são
relegadas ao esquecimento- pois uma coisa sobre a qual não podemos falar deixa uma impressão muito vaga na
memória.”(BERGER&BERGER, s.d,p.195)
43

funciona, para produzir rupturas, mesmo que simbólicas, e para isso impõe-se
uma atitude de aceitação (MATURANA, 2001) e tolerância (MORIN,1997 e
SOARES, 1996) como pré-condição para enfrentamento do círculo da
vingança, da punição .

Essa experiência contribuiu a toda à sistematização final desta tese. Por


isso, alguns fragmentos dessa „trilha‟ serão melhores explicados no Capítulo 6,
quando aprofundarei o princípio da recursividade e das possibilidades de
trabalho dentro do sistema prisional. A experiência também colaborou para a
construção do “olhar complexo” sobre a prisão, capaz de captar sua
organização e articulá-lo à teia de relações de violência que acontece na
sociedade contemporânea. Para promover esse olhar torna-se necessário
trazer, aqui, a sistematização do pressuposto teórico da complexidade.

 A busca de uma abordagem complexa

A trajetória que vem sendo percorrida no Doutorado em Serviço Social


é permeada pela busca do pressuposto teórico da complexidade, necessário
a uma reordenação intelectual, que me oriente a pensar o objeto da pesquisa
de modo mais profundo. Assim, é possível assumir a ambigüidade existente
no processo científico e técnico construído e a incerteza do próprio fenômeno.

Em linhas gerais, é possível afirmar que a „desordem‟ do meu saber


inicial, provocada pela crise de minha prática (DALPIAZ, 2000), não interfere no
processo de auto-organização intelectual; pelo contrário, o estimula.

A complexidade vem apontando a dissolução dos discursos


homogeneizantes e totalizantes nas Ciências Humanas e no Serviço Social. As
perspectivas teóricas já não são capazes de dar uma única direção à análise
da experiência do social, da vida, da cultura e da própria ciência.

O eixo teórico da complexidade, como provocador de críticas e reflexões


sobre o meu saber, possibilitou-me, ainda, uma auto-vigilância epistemológica,
44

pois exigiu uma consciência teórica e uma interlocução com o conhecimento


científico acumulado.

Vale lembrar que esse pressuposto teórico que questiona os conceitos


de verdade, objetividade e realidade social apresentou-me uma posição ética18
fundamentada na responsabilidade por minhas construções do mundo social e
pelas ações que desenvolvo, as quais me fizeram resistir à possibilidade de
fundamentar exclusivamente minha investigação na realidade social objetiva,
refletida numa “verdade” evidente e dominante, à qual simplesmente devesse
me enquadrar (MORIN, 1977).

A epistemologia da complexidade, que tem a tarefa de ligar tudo o que


está disjunto e compor uma unidade multidimensional, orienta a idéia de vida
social e, portanto, da violência. E quando se pensa complexamente a vida,
procura-se pensar o ser humano/mundo sobre uma base de movimento
dialógico desenvolvido por um anel de co-produção mútua, em que, “uma vez
constituídas, as organizações e a sua ordem própria, são capazes de ganhar
terreno à desordem: ordem - desordem - interações - organização” (MORIN,
1977).

Esta ótica considera as interações inconcebíveis sem a ocorrência das


desigualdades, turbulências, agitação e desordem, provocadas por encontros.
Quanto mais a ordem e a organização se desenvolvem, mais se tornam
complexas, mais toleram, utilizam e até necessitam da desordem.

A desordem contrapõe-se à idéia de ordem que tem marcado a


sociedade moderna (BAUMAN, 1999), onde a verdadeira realidade é a ordem
física (onde todas as coisas obedecem às leis da natureza), a ordem biológica
(lei da espécie) e a ordem social (onde os homens devem seguir a lei da
sociedade) (MORIN, 1977).

18 Para Morin, “... a ética do conhecer tende a ganhar prioridade e a opor-se a qualquer outro valor (...) sendo
necessário desintegrar as falsas certezas e as pseudo-respostas quando se quer encontrar as respostas adequadas”.
(MORIN, 1996, p.p. 121-122).
45

O objetivo do conhecimento visto sob uma perspectiva complexa, já não


é simplesmente o de focalizar um objeto isolado: ao observá-lo e estudá-lo, é
necessário concebê-lo em função da sua organização, do seu meio e do seu
observador (MATURANA, 2000). Há necessidade de uma dialógica entre
ordem-desordem, entre unidade-diversidade, pois as mesmas condições de
existência do mundo são também as condições do conhecimento (MORIN,
2000). Sendo assim, na apreensão do fenômeno violência na prisão, deve-se
reconhecer que existem fatores subjetivos que dependem e influenciam os
critérios utilizados, que desencadeiam processos de análises distintos, bem
como a seleção que se faz desses múltiplos fenômenos.

O pensamento complexo desenvolve-se no próprio movimento de


reorganização conceitual. Implica pensar em conjunto, sem preconceitos
quanto à incoerência na associação de idéias consideradas antagônicas.
Segundo MORIN (1986), nesse processo de associações encontram-se:

a) um metaponto de vista que relativiza a contradição;

b) a inscrição em um anel que torna produtiva a associação das noções


antagônicas tornadas complementares”. (MORIN, 1986, p. 345)

Dessa idéia de anel, emerge o princípio de um conhecimento nem


atomístico nem holístico (totalidade simplificadora). É preciso refletir através de
uma práxis cognitiva (anel ativo) que faz interagir as noções estéreis, quando
estão disjuntas ou antagônicas (MORIN, 1977). A mudança do olhar ocorre
quando já não há um aspecto determinante para a violência na/da prisão
(econômico, político, simbólico), quando o diálogo com as várias formas da
violência é a via alternativa para situar-se entre a complexidade e a
simplificação desse fenômeno.

Segundo MORIN (1999, p. 32-35), os princípios da complexidade


serviriam como procedimentos cognitivos para a constituição do olhar
complexo sobre a violência na prisão:
46

- Princípio hologramático: o todo está na parte, assim como a parte está no


todo. O todo é menos do que a soma das partes, cujas qualidades são inibidas
pela organização de conjunto. A violência da sociedade está na prisão, assim
como a violência da prisão está na sociedade. A prisão não é somente a soma
de todos os setores de uma cadeia, pois suas qualidades seriam inibidas pela
organização do conjunto. Esse princípio inspira-se na virtude cognitiva de
Pascal (apud MORIN, 1999, p.37) que assim se expressa:

“sendo todas as coisas causadas e causadoras,


ajudadas ou ajudantes, mediatas e imediatas, e
sustentando-se todas por um elo natural e insensível
que une as mais distantes e as mais diferentes,
considero ser impossível conhecer as partes sem
conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem
conhecer particularmente as partes”.

Para tanto é necessária a constituição de um tipo de conhecimento que


capte o real através de um pensamento que valorize o contextual e o global.
Um conhecimento que olhe o real como uma

“teia de eventos inter-relacionados, pois nenhuma


das propriedades de qualquer parte dessa teia é
fundamental; todas elas resultam das propriedades
de outras partes, e a consistência global de suas
inter-relações determina a estrutura de toda a teia”
(CAPRA, 1996, p.48)

- Princípio da auto-organização: Os sujeitos desenvolvem sua autonomia na


dependência da cultura, e as sociedades dependem do meio social e geo-
ecológico. Portanto, os sujeitos apenados se auto-organizam em grupos
(facções), estruturando a cultura prisional que é fechada, mas que depende da
organização social mais ampla.
47

- Princípio dialógico: assumir, dialogicamente, dois pontos de vista que


tendem a se excluir. Por exemplo: assumir a dialógica ordem-desordem,
divergência e controle social, inclusão e exclusão; autonomia e dependência;
possibilidades e limites da pena de prisão ; falência e humanização da prisão.

- Princípio retroativo: permite observar os processos auto-reguladores


fundados sobre as múltiplas retroações (negativas e positivas) que surgem
para reduzir o desvio e, assim, estabilizar o sistema, ou amplificá-lo. Exemplo:
uma violência institucional desencadeia outras violências produzidas pela
massa carcerária, que por sua vez desencadeiam novas medidas de controle
para manter o equilíbrio organizacional.

- Princípio recursivo: supera a noção de regulação. É um conceito referente a


um mecanismo gerador de propriedades emergentes. Considera que o sujeito
é produto de um sistema de reprodução oriundo de uma longa história, mas ele
poderá se reproduzir somente se outros sujeitos o tornarem produtores pelo
acasalamento. Pelas interações a prisão produz violência, mas também uma
potência criadora através da socialidade dos sujeitos apenados como agentes
da linguagem e cultura da cadeia.

“A idéia recursiva é portanto uma ruptura com a idéia


linear de causa/efeito, de produto/produtor, de
estrutura e superestrutura, uma vez que tudo o que
é produzido volta sobre o que produziu num ciclo ele
mesmo autoconstrutivo, auto-organizador, auto-
produtor” (MORIN, 1991, p. 90).

Estar aberta e preparada para viajar, portanto, pressupõe considerar que


a construção de um “conhecimento pertinente” (MORIN,2000, p.36) ocorre num
processo descontínuo, que inclui “a complicação, a desordem, a contradição, a
dificuldade lógica, os problemas da organização” (MORIN, 1986, p.175) das
diferentes referências do local. Ou seja, o fato de que o caminho percorrido
para constituição desse olhar seja permeado pelo pressuposto teórico da
complexidade, possibilita articular as diferentes dimensões da violência na
48

prisão. Assim, procurou-se conquistar a pluralidade e a coerência de


conhecimentos sobre o processo de organização de uma grande prisão na
sociedade atual, para assim poder captar as múltiplas expressões da violência,
nesse lugar.

Portanto, a construção do conhecimento na ótica da complexidade


ocorre na apreensão da dinâmica em que o real se movimenta à medida que
se constrói (DESAULNIERS, 2000). Isto pressupõe, também, encarar esse real
e o conhecido de forma interativa, relacional, multidimensional.

Nessa ótica, compreender e apreender a violência, especificamente a da


prisão, depende das estratégias metodológicas que o pesquisador utiliza para
„captar esse real‟ e dos instrumentos epistemológicos teóricos utilizados para
decifrá-lo19.

1.2 O Mapa da Viagem: a Problemática Construída

No processo de preparação da viagem, foi preciso admitir que não se


chega a lugar algum totalmente desprovido de expectativas, aberto para o que
der e vier. Há sempre um foco no caminho que se quer percorrer, há uma
busca que leva a delimitar, selecionar, demarcar o terreno que se atravessa. A
questão, para mim, era: como fazer isso sem mutilações, pré-concepções ou
simplificações?

Não podia querer captar o todo do sistema prisional, sem saber das
partes que o compõem- Princípio Hologramático. Também não seria possível,
nessa viagem, querer ver tudo, como naquelas excursões de 13 dias que
prometem a visita a quatro países e onde se vê tudo e não se vê nada. Por
outro lado, não podia me vincular somente a uma “esquina” que me

19 Para Bachelard, a investigação do real decorre da elaboração de hipóteses que articulam dialeticamente a relação
entre o racional (pesquisador) e o real (fenômeno). Há um filtro que é oferecido pelas teorias que instrumentalizam o
olhar sobre o fenômeno, num movimento contínuo entre razão e experiência. (BACHELARD, 1996).
49

possibilitasse a obtenção de dados, informações sobre o lugar, mas que não


seria representativo a ponto de mostrar todo o contexto social em que se
insere. Como exemplo, estudar a prisão apenas a partir da prática
desenvolvida pelo Serviço Social no sistema. Fazia-se necessário captar a
organização20 do lugar, por isso a escolha do Presídio Central de Porto Alegre -
como um caso exemplar e representativo das grandes prisões da sociedade
contemporânea.

Teve-se como orientação na definição do objeto de investigação sobre


esse lugar o conjunto de princípios da complexidade - explicitados
anteriormente - além de esquemas e categorias (MORIN, 1986), alguns
advindos da bagagem teórica, outros (re)elaborados no decorrer da experiência
profissional vivida. Ao constituírem-se, esses elementos agruparam-se,
articularam-se e sobrepuseram-se uns aos outros, de maneira não só
complementar, mas, em algumas vezes, de forma concorrente e antagônica.

Tratou-se de uma tarefa desafiadora, pois, como afirma BACHELARD


(1996, p. 10), mesmo na

“... mente lúcida, há zonas obscuras, cavernas onde


vivem as sombras. Mesmo num “novo espírito
científico” permanecem as marcas do velho. Por
isso, devemos buscar um norte que nos possibilite
reconstruir incessantemente o próprio
conhecimento”.

Valorizou-se, assim, o pensamento inquieto, desconfiando de


identidades mais ou menos aparentes, pois o pesquisador engajado no “novo
espírito cientifico” deseja saber, mas para imediatamente poder questionar,
duvidar e criticar.

20 Para leitura dessa Organização que será tratada no capítulo 3, utilizei a perspectiva de MORGAN (1996) que
interpreta as organizações a partir de metáforas, comparando-as a imagens que permitem vê-las como máquinas,
cérebros, culturas sistema político, prisões psíquicas e instrumentos de dominação. O verdadeiro desafio foi aprender a
lidar com essa multidimensionalidade, o que possibilitou encontrar brechas, não só para novas formas de organização,
mas para enfrentar questões em nível estrutural.
50

Esses substratos do meu conhecimento possibilitaram a construção


objetiva de comunicações intersubjetivas, confrontações e discussões sobre o
local a ser pesquisado. É uma perspectiva de inteligibilidade, que me orientou
na construção de uma razão aberta a dialogar com o racional e o irracional. A
racionalidade surgiu como crítica e controle lógico, mas também como
autocrítica, reconhecendo seus limites.

Considerou-se, portanto, o potencial ético do pensamento complexo, que


suscita um novo olhar sobre o real e uma tomada de posição do pesquisador
na recusa à simplificação e às mutilações veiculadas historicamente por
racionalidades legitimadas e que se sustentam em conhecimentos
especializados e abstratos (MORIN, 1999). Está se vivendo um momento
oportuno para soterrar anteriores certezas, conviver com indagações, romper
com condutas rígidas (MAFFESOLI, 1999), em que pensar
desinteressadamente, com aceitação (MATURANA, 2001), é uma das
estratégias contra o dogmatismo.

Nesse sentido, SOUZA SANTOS (1989) sugere uma dupla “ruptura


epistemológica”, através de um trabalho de transformação, tanto do senso
comum como da Ciência. Seguindo a mesma ótica de BACHELARD(1996), em
que os obstáculos epistemológicos se apresentam sempre aos pares –
“polaridade dos erros”- indica-se que a primeira ruptura é imprescindível para
constituir Ciência, mas não despreza o senso comum, deixando-o como
estava, antes dela. A segunda ruptura transforma o senso comum com base na
Ciência.

Desta forma, é importante explicitar a preocupação em manter uma


“dúvida radical” (BACHELARD,1996) em torno das sinalizações que eram
empreendidas na pesquisa(para que não fossem simples opiniões21). Sabe-se
que a pressão social sobre a temática da prisão clama por „soluções‟, e a
tendência imediata do pesquisador é a de servir de porta-voz dos apenados,
usando a denúncia como instrumento de uma análise maniqueísta.

21 Para Bachelard, a ciência opõe-se absolutamente à opinião. “A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades
em conhecimentos. Ao designar objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los”. (BACHELARD, 1996, p. 18).
51

A construção da tese não ocorreu somente a partir do registro de


transformações conceituais, como se fossem atos epistemológicos que
acompanhavam o percurso. Na prática, o compromisso com a ruptura, com a
descontinuidade, não se resumia somente em registrar os conceitos. Implicou
aprofundar os diferentes tipos de modalidades dessas rupturas para fazer do
passado, já vivido por mim e praticado por outros cientistas jurídicos e sociais,
a possibilidade de um presente criativo que se incorporava dialogicamente ao
meu modo de pensar. Por isso, conforme já falado no início deste trabalho, a
escolha do tema da tese ocorreu através da tentativa de ruptura com o senso
comum, principalmente sobre a propalada “falência das prisões”. Essa ruptura
está justamente no fato de que, ao desenvolver o processo de reflexão
qualitativa sobre o tema, surgiu a necessidade de distanciamento e observação
sobre como a opinião pública e a academia tratavam a questão.

A construção do objeto dessa tese, portanto, foi proveniente de um duplo


movimento: a) um ascendente, que foi o da escolha do tema empírico para a
sua construção a partir de uma hipótese (provisória) e de suas premissas; b)
um movimento descendente, que foi o da operacionalização das premissas e
que será demonstrada nos capítulos subseqüentes (MARRE, 1990).

O movimento ascendente desencadeou-se a partir da experiência já


referenciada no item 1.1. A escolha do tema violência na prisão ocorreu como
uma tentativa de rompimento com o senso comum, bem como pela realidade
percebida através da observação direta que começava a desenvolver, graças à
aproximação com a Unidade de Pesquisa, o Presídio Central. Por fim, é
importante ressaltar que a prática acumulada no Serviço Social começava a ser
relativizada por um ponto de vista que modificava a percepção, o olhar do
conteúdo empírico sobre o objeto que foi se delineando.

A partir dos pressupostos teóricos da complexidade apresentados no


item anterior e das premissas sugeridas por essa matriz de observação do real,
pode-se construir um sistema de relações teóricas que, de um lado, decorrem
dos pressupostos (da complexidade) e, de outro, envolvem as propriedades do
objeto (violência da prisão) empírico que vêm sendo analisadas. Ou seja, a
52

partir desse sistema de relação é que se chega à elaboração da hipótese


central da tese:

“A violência da sociedade contemporânea tem, nas grandes prisões, o


lugar privilegiado para se condensar e se expressar através de uma teia de
significados. Para captá-la, é necessária a constituição de um olhar complexo
sobre o fenômeno, o que possibilita analisar a prisão não somente como um
espaço institucional de manifestação do excesso de força e do poder de punir -
através do controle, vigilância e disciplina, mas também, como organização que
vem produzindo vida social, rupturas com o projeto de normalização e outras
estratégias para combater a violência institucional, como o silêncio e a
socialidade dos apenados, a luta pelos direitos humanos e sociais via área
técnica e sociedade civil. Seriam essas, estratégias recursivas que vêm abrindo
brechas para que se proponham novas alternativas à violência da pena
privativa da liberdade.”

Como se pode notar, com essa hipótese busca-se demonstrar a


articulação direta entre violência da prisão e a violência contemporânea. Para
tanto, é necessário poder explicitar essa articulação „genérica‟, numa espécie
de jogo de espelhos em que o microcosmo condensa, representativamente, a
complexidade sistêmica do macrocosmo.

Assim, essa hipótese foi desmembrada em cinco premissas para sua


melhor demonstração:

1) a violência social se expressa de múltiplas formas no sistema penal


brasileiro: o sistema penal produz e reproduz a violência contemporânea .
Como forma de expressão aparece o conjunto de significados que referenciam
a pena privativa de liberdade. A ambigüidade desses significados ora legitima a
manutenção da prisão, ora aniquila qualquer possibilidade de investimento
nessa área devido à falência da mesma. Esses diferentes significados
transformam a prisão numa instituição alienígena, pois na sua maioria estão
desvinculados da efetivação concreta da pena - princípio hologramático;
53

2) essa ambivalência vem contribuindo para que a prisão redefina o seu


poder simbólico de normalização. Ou seja, por seu intermédio, revelam-se
diferentes espaços e modalidades da pena e das formas da sociedade punir ,
aprisionar e, ao mesmo tempo, eliminar a massa de sujeitos considerados
descartáveis - princípio hologramático;

3) é dentro desses diferentes espaços que se revelam múltiplas prisões


dentro da prisão e o interjogo dos diferentes micropoderes, fazendo com que a
máscara do poder instituído - vigilância e disciplina – esteja imbricada na
emergência de novas estratégias de um poder hiperespecializado exercidos
pelos diferentes grupos que compõem a prisão - princípio retroativo;

4) na dinâmica complexa entre os diferentes grupos da prisão, emerge o


processo de auto-organização que se aproxima do mundo da vila, já que os
sujeitos presos não vivenciam o tempo e o espaço da sociedade global. Dessa
forma, produzem-se e reproduzem-se espaços de rupturas simbólicas e de
socialidade. Isto indica a potência da massa em ser violenta e resistente a um
sistema excludente da sociedade contemporânea - princípio da auto-
organização;

5) a prisão não é somente uma expressão passiva da violência e dos


modelos culturais instituídos, mas uma geradora ativa de relações e
sensibilidades. Portanto, as práticas sociais na prisão podem contribuir para a
produção de uma cultura sobre a natureza e o significado de sua própria
violência contribuindo para sua transformação - princípio recursivo.

O movimento ascendente que ocorreu na construção do objeto da tese,


resultou, então, na hipótese central e nas cinco premissas construídas. Estas
seriam o que BACHELAR (apud MARRE, 1991) chamaria de “uma totalidade
sintética a priori”. Não são suposições extraídas diretamente de teorias, mas
suposições elaboradas a partir dos pressupostos teóricos da complexidade.

Dito de outro modo, a formulação da hipótese e premissas possibilitou


um esquema para captar e analisar a realidade empírica que não foi
54

imediatamente dada, já que “a observação se faz através de rupturas e ao


mesmo tempo na adoção de um ponto de vista teórico fundamentado”
(MARRE, 1991, p. 43-44).

O quadro a seguir demonstra como o movimento ascendente pode ser


explicado:
55

HIPOTESE: A violência da sociedade contemporânea tem, nas grandes prisões, o


lugar privilegiado para se condensar e se expressar através de múltiplas formas. Para
analisá-la, faz-se necessária a abordagem complexa sobre o fenômeno, o que
possibilita captar a prisão não somente como um espaço que manifesta o excesso da
força e do poder de punir - através do controle, vigilância e disciplina-, mas também,
espaço de auto-organização que produz vida social, rupturas com o projeto
idealizador da pena e outras estratégias para combater a violência institucional. A
potência da socialidade dos sujeitos apenados, dos defensores dos direitos humanos
e dos abolicionistas seriam estratégias de não-violência à violência da própria pena
privativa da liberdade.

4) Premissa 1- nas 1) Premissa 5-


racionalizações sobre a pena, identifica-se
um discurso ambíguo que ora legitima a a prisão não é somente
manutenção da prisão, ora aniquila expressão passiva da
qualquer possibilidade de investimento violência e dos modelos
nessa área devido à falência da mesma. culturais instituídos, mas uma
Esses diferentes discursos transformam a geradora ativa de relações
prisão numa instituição alienígena, estando instituintes e sensibilidades.
desvinculados da efetivação concreta da
pena.

Premissa 4- na dinâmica complexa


3) Premissa 2- entre os diferentes grupos da prisão,
3) essa emerge um processo de auto-
ambivalência vem contribuindo organização, semelhante ao que
para que a prisão redefina o acontece nos bairros da periferia, já
seu poder simbólico de que os presos não vivenciam o tempo
normalização. Revelam-se e o espaço da sociedade normalizada.
diferentes espaços e Dessa forma, produzem-se e
modalidades da pena e das reproduzem-se espaços de rupturas
formas de a sociedade punir e simbólicas e de socialidade, indicando
aprisionar e, ao mesmo tempo, a potência da massa em ser violenta e
eliminar a massa de sujeitos resistente a um sistema excludente da
descartáveis. sociedade contemporânea.

2) Premissa 3- nesses diferentes


espaços revelam-se múltiplas prisões
dentro da prisão e o interjogo dos
diferentes micro-poderes, fazendo com
que a máscara do poder instituído -
vigilância e disciplina – esteja imbricada
na emergência de novas estratégias de
um poder hiper-especializado exercido
pelos diferentes grupos que compõem a
prisão.
56

1.2.1 As Estratégias de Verificação

O movimento descendente seria, então, a transformação do problema


anteriormente delimitado no quadro demonstrativo – hipótese - premissas -
pressuposto teórico - em problemas operacionalizáveis do processo
ascendente anteriormente descrito.

Essa teoria materializa-se (metodologia) numa sucessão de estratégias


possíveis, no sentido de apreender a realidade empírica que o quadro da
problemática da tese sugere: a) dimensão operacional e indicadores; b)
delimitação da amostra das fontes e dos procedimentos.

a) dimensões operacionais e indicadores – seria a operacionalização


de conceitos teóricos. Por exemplo, a análise sobre o discurso da
normalização, de M. FOUCAULT, Z. BAUMAN, M. MAFFESOLI materializa-se
como possibilidade de interpretação dos indicadores do Presídio Central
através da leitura das propostas de ressocialização dos sujeitos presos, dos
projetos profissionais, da política penitenciária do Estado do Rio Grande do Sul.
Outro exemplo: a potência da massa e a socialidade, em MAFFESOLI, também
aparece como indicador no Presídio Central – o silêncio da cadeia, a massa
chapada, os códigos de comunicação à solidariedade. Assim, operacionalizar
conceitos teóricos na dialética descendente permite evidenciar que há uma
relação entre dimensões operacionais de um conceito teórico e as de um outro
conceito teórico .

Por isso, o objeto violência na/da prisão tem como categoria de análise a
violência que, por ser um fenômeno complexo, poliforme e multirreferencial,
configura-se teoricamente em diferentes dimensões de representação do
social. Pode se expressar: na perspectiva de força, num ato de excesso,
presente nas relações de poder e controle, permeada por uma violência física
e/ou simbólica, que se exerce mediante a subjetivação dos agentes sociais
envolvidos na relação (FOUCAULT, 1979), na perspectiva discursiva que
revela a ambigüidade da critica sobre a falência da pena e inviabiliza e aniquila
qualquer possibilidade de intervenção pela falta de outras referências
57

(SOARES, 1996 a); na perspectiva de fratura, que possibilita a passagem a


outros dispositivos de poder (potência), a outras formas de relação social
(socialidade) como expressão de violência ao controle formal. Ex: O silêncio da
massa e a socialidade (MAFFESOLI, 1987) dos sujeitos apenados contra a
violência legítima do Estado poderiam representar uma dessas linhas de fratura
nos dispositivos da violência institucional;

b) delimitação da amostra, das fontes e dos procedimentos – a


magnitude e diversificação da amostra está relacionada com a realidade
empírica que se deseja investigar (MARRE,1991). Portanto, optou-se por uma
amostra diversificada, utilizando-se diferentes fontes para reconstruir o
universo das relações singulares e estruturais, assim como determinados fatos
que marcam o PCPA no período de 1999-2001. A seguir, são relacionadas a
natureza e o tipo das fontes utilizadas para compor a amostragem.
58

 Das Fontes22

NATUREZA TIPO CARACTERIZAÇAO


Escrita - Fonte 1- -Dados qualitativos e quantitativos do questionário
*QUESTIONÁRIO (ver modelo anexo 1) aplicados a todos os presos e
*DIÁRIO DE funcionários. Os respondidos geraram uma amostra
CAMPO simples (52% dos presos e 45% dos funcionários)-
(organização dos dados anexo 2)
-Observação direta dos pesquisadores
-Documentos com dados estatísticos da BM
referentes ao PCPA, período 1999-2000.(ver
anexo3)

- Fonte2 - -Jornal Arpão – 5 edições – de 1996 a 1998 (ver


*DOCUMENTAL modelo anexo 4).
-Relatórios Azul – 1995 a 2000.
-Relatórios da Anistia Internacional
-Relatório do Censo Penitenciário do Ministério da
Justiça– 2000. –
- Reportagem de Jornais – amostra aleatória,
selecionada no período de 1999 a 2000 (Ver Anexo
5)

ORAL - Fonte 3 - -Entrevistas com representantes dos diferentes


grupos de agentes que compõem a organização da
Entrevistas
prisão: presos, funcionários da segurança, da

Grupo de administração, chefias, técnicos, conselheiro,

discussão políticos, voluntariado (Anexo 5 - instrumento


exemplo de depoimento).

- Grupo de discussão com os funcionários da BM,


sobre os dados coletados nos questionários.

22 Esse quadro foi baseado em BARDIN (1979).


59

 Dos Procedimentos metodológicos

A partir do entendimento de metodologia como teoria materializada


(DESAULNIERS, 2000), torna-se um desafio a demonstração do problema:

“Como se expressam as múltiplas formas de violência na


organização do Presídio Central de Porto Alegre?”

Foi necessário saber transformá-lo em um conjunto de estratégias que


permitissem a sua concretização e viabilidade empírica; partir da dialética
ascendente - ver o quadro teórico de hipóteses  para descendente 
operacionalização e demonstração empírica (MARRE, 1991).

O desenvolvimento da pesquisa compreendeu, então, os seguintes


movimentos:

a) posicionamento das idéias, indicando a direção da pesquisa,


incluindo consideração da curiosidade, dogmas, abertura, revisão com o saber
e experiência profissional acumulada, itens todos que foram descritos e
explicitados no item 1.1;

b) resgate crítico da produção teórica sobre o tema violência e a


penalogia - que será explicitada no Capítulo 2, identificando-se as perspectivas
de análises, as conclusões chegadas a partir do conhecimento anterior e a
indicação das premissas a partir do pressuposto teórico da complexidade;

c) recorte da totalidade mais ampla (não simplificadora e totalizante),


explicada na problemática, a partir de condições materiais já existentes
(unidades de pesquisa - Presídio Central) e organização dos dados coletados -
que será apresentado no Capítulo 3. Constituiu-se também através do contato
com uma rede de agentes sociais, que envolveu a unidade de pesquisa: sujeito
preso, técnico, guarda, direção, entidades representativas da sociedade civil –
Comissão de Direitos Humanos, Pastoral Carcerária, Grupo de Voluntárias e
mídia.
60

Essa coleta foi dividida em duas fases:

1ª Fase: coleta e organização dos dados – de julho de 1999 até outubro de


2000.

 Os dados não foram coletados de forma linear, ou seja, por etapas. Por
exemplo, enquanto se coletavam informações através dos questionários dos
funcionários, já estavam sendo tabulados e cruzados os dados dos sujeitos
presos, realizou-se entrevistas com os sujeitos “externos” vinculados ao PCPA,
enquanto outras já estavam sendo transcritas e pré-analisadas. As informações
foram coletadas nos diferentes contatos e observações e constantemente
registrados no diário de campo.

Os dados quantitativos foram extraídos dos questionários, entrevistas e


a partir do Jornal Arpão; considerando-se como fonte principal os
questionários, mas usando-se, também, outras fontes documentais a fim de
confrontar os aspectos antagônicos e poder complementá-los.

2a Fase: devolução e discussão dos dados – de novembro de 2000 até 2001.

Foi promovida a discussão dos dados com os sujeitos que organizaram a vida
interna da prisão (sujeitos presos, guarda e técnicos);

d) ajuste das questões norteadoras dos instrumentos utilizados


(observação participante, entrevistas, questionários, documentos etc.): ocorreu
de acordo com os indicadores que se pretendeu analisar a partir da hipótese
provisória que conseqüentemente era sempre revisada;

e) a análise dos resultados qualitativos e quantitativos, segundo


categorias fornecidas pelo referencial teórico, visando a organizar os tópicos, a
compreensão, a interpretação e a explicação da violência na prisão. Nesta
fase, houve o encontro entre os dados do conhecimento anterior e os
pressupostos de organização desse conhecimento. Para o tratamento das
múltiplas informações, utilizou-se como recurso a análise documental do
discurso e estatística do tipo fatorial.
61

1.3 O Mapa das Trilhas

A organização da pesquisa já está desencadeada, pois a viagem-tese


delineou-se, quando se demarcou desde a introdução desse estudo: o
problema (contexto – espaço/tempo), a hipótese – premissas (o que
demonstrar, descobrir, verificar) e a bagagem profissional que está se
levando a bordo.

Apesar de toda essa „pretensa elucidação‟ dos elementos que


orientaram os caminhos trilhados, acredito ser necessário também destacar os
elementos que compõem o mapa da viagem, apresentados até aqui. Acredito
que seja importante fazê-lo, mesmo assumindo o princípio da incerteza e a
incompletude do saber que me acompanhou em toda a trajetória da elaboração
desta tese.

No quadro a seguir, busco relembrar o caminho percorrido até aqui: o


processo da problemática construída, que se inicia pela problemática sentida
(ascendente), até sua operacionalização (descendente). O quadro representa
também uma síntese da viagem-tese que está sendo apresentada.
62

Pressuposto teórico
Bagagem da complexidade
profissional e teórica sobre o
sistema prisional e violência

Indicadores da
Hipótese
violência no PCPA

Premissa 1
Premissa 2 Fontes:
Premissa 3 Documental
Premissa 4 Oral
Premissa 5 Escrita
“À maneira de um volume de água que avança,
corrói, se insinua, contorna obstáculos, passa por
cima desse mesmo obstáculo, em suma, por uma
estratégia de lentidão, pretendemos menos indicar
um lugar, demonstrar um lugar, do que abrir as
pistas num debate social poliformo(...).Trata-se de
pintar um quadro, ou uma série de quadros, que a
maneira das águas fortes progridem por
aprofundamentos sucessivos, ou então, como
iluminuras, recomeçam em minúsculos pormenores
do conjunto do quadro. Propomos peças de um
enigma que se imbricam, se completam e dão assim
os grandes contornos do visível na aparência de
nossas vidas” (Michel Maffesoli)
2 O CENÁRIO DA PESQUISA

2.1 Contextualizando o Lugar

Nesse item, sem a pretensão de fazer um exame aprofundado da


situação da política penitenciária brasileira, foram destacadas informações
sobre essa realidade para poder situar o contexto nacional no qual o Presídio
Central de Porto Alegre se insere.

O Brasil possui a maior população carcerária da América Latina, com


223.200 presos em 512 prisões – dados do Censo Penitenciário de 2000. A
população nas prisões cresceu regularmente desde a década passada; apesar
disso, o número de prisioneiros por 100.000 habitantes é o mesmo da maioria
da América Latina e países desenvolvidos da Europa, como Itália e Inglaterra.
As estatísticas de 1997, relativas ao número de encarcerados por 100.000
habitantes, mostram o seguinte: Chile – 173; Colômbia – 110; México – 108;
Venezuela – 113; Estados Unidos – 645; Brasil – 142 (HUMAN RIGHTS
WATCH, 1998 e MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2001) .

O sistema prisional brasileiro está estruturado com variações diferentes


nos estados da Federação, estando sob a jurisdição do Ministério da Justiça,
que conta com um órgão específico para o tratamento da questão, o Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP. Esse órgão atua na
proposição de políticas e fiscalização nesta área, sendo que a administração
propriamente dita dos presídios está a cargo dos Poderes Executivos
Estaduais. Nos estabelecimentos penais - presídios, penitenciárias e cadeias -
estão os presos provisórios ou condenados sob a jurisdição das Secretarias de
Justiça ou de Administração Penitenciária dos Estados. O Poder Judiciário atua
65

como instância de decisão (das progressões e conversões) e fiscalização (dos


incidentes) da execução das penas.

Apesar de os direitos estarem garantidos nas leis, principalmente na


Constituição Federal23, os grupos de defesa dos direitos humanos nacional e
internacionais24, há vários anos, preocupam-se com a política penitenciária no
Brasil e as constantes violações dos direitos dos sujeitos apenados.

Ao se fazer um resgate da produção acadêmica brasileira sobre as


condições carcerárias no País, identificam-se dois marcos teóricos nos últimos
25 anos. A Questão Penitenciária, de Augusto Thompson (1976) e Os Direitos
do Preso, de Heleno Cláudio Fragoso, Yolanda Catão e Elisabeth Sussekind
(1980), ambos anteriores à LEP (1984). Passaram-se mais de 20 anos, e pode-
se observar que as condições não se distanciaram dos seus projetos
idealizados, tendo como fim penas mais humanas e justas. Nessas obras
verificam-se vários indicadores de violência institucional que se perpetuam,
como por exemplo, o hiato existente entre os direitos legalmente reconhecidos
e aqueles garantidos, na prática, aos prisioneiros; o uso de prisões locais
(celas em delegacias) como centros de detenções por longo tempo; a falta de
assistência à saúde; falta de assistência legal; falta de educação e trabalho
para os prisioneiros.

As rebeliões representam um dos indicadores da violência da prisão


mais exploradas pelos meios de comunicação e tendencialmente selecionadas

23 A Constituição Federal de 1988 posterior a LEP, deveria ser instrumento maior do ordenamento jurídico, que
dedicou parte expressiva de seu texto aos direitos, garantias individuais e coletivas dos cidadãos brasileiros . Define os
direitos da pessoa humana e do cidadão em seu artigo 5º e seus 37 incisos, que orientam a legislação infra-
constitucional. Dos comandos constitucionais, todos importantes, alguns serão citados porque são adequados ao tema
da tese:
III – Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;XLVIII – A pena será cumprida em
estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, idade e o sexo do apenado; XLIX – É assegurado aos
presos o respeito a integridade física e moral;LVII – Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da
sentença penal condenatória; LXII – A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontra serão comunicados
imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;
24 Nas décadas de 80 e 90, importantes instrumentos de proteção aos direitos humanos foram ratificados pelo País: a
Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1989); a Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1989); a Convenção sobre os Direitos da Criança (1990); o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1992); o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1992); a Convenção Americana dos Direitos Humanos (1992) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher (1995). Em 1995 foram ratificadas pelo Brasil as Regras Mínimas para o
Tratamento de Reclusos, da Organização das Nações Unidas (ONU), através do Ministério da Justiça, sendo
incorporadas como "Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil”.
66

ou amplificadas as descrições do uso das brutalidades e forças excessivas.


Observa-se, ainda, que após alguns dias de comentários insistentes, a mídia
não possibilita à sociedade a reflexão dos muitos motivos que as provocaram,
pois essas são apresentadas apenas como brigas entre os próprios detentos
ou com as direções dos estabelecimentos prisionais. Também as mortes
ocorridas caem no esquecimento, até por que muitas acabam não sendo
investigadas, havendo casos de execuções extrajudiciais que são “justificadas”
como incidentes nas rebeliões. Os Departamentos dos Estados, que examinam
as autópsias dos mortos, torturados ou espancados, são administrado pela
polícia, não sendo, portanto, independentes nas investigações e elaboração
dos laudos (TORRES, 2001).

O grau de violações dos direitos humanos da população carcerária que


está no sistema de segurança pública (nas cadeias) é significativamente maior.
Esse quadro é inexistente aqui no Estado, o que contribui para que o Rio
Grande do Sul seja considerado o melhor sistema prisional do País.

Assim como no Rio Grande do Sul, em muitas penitenciárias do País a


militarização dos serviços penitenciários foi a opção para conter os problemas
criados pela falta de profissionais e os riscos de segurança. Contrariando,
dessa forma, as Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas e outros
tratados que o País ratificou para o tratamento dos presos25.

A falta de inspeções nos presídios, que deveriam ser executadas pelos


Juízes da Execução Penal e Ministério Público, pouco ocorre pela sobrecarga
do poder judiciário. Acrescente-se a isso o descaso das autoridades, a
impunidade dos agentes do Estado e a descrença, por parte da população
carcerária, de que o sistema prisional possa ser justo, já que os mecanismos
que protegem o sujeito preso são incipientes, caso este faça uma denúncia de
violação dos seus direitos.

25Segundo TORRES (2001) no relatório enviado pela Pastoral Carcerária Nacional para a Comissão de Direitos
Humanos da Câmara Federal e para várias entidades internacionais em 1999, eram relatados incidentes prisionais nos
estados do Rio Grande do Sul, Goiás, Espírito Santo, Ceará, Paraíba, e Rio Grande do Norte, por conta de haver
nestes estados, estabelecimentos penitenciários comandados pela Polícia Militar.
67

Como conseqüência, a corrupção (desvio de alimentação, tráfico ou


porte de drogas e armas, facilitação de fugas) torna-se rotina, demonstrando a
existência de inúmeras falhas administrativas, o despreparo dos agentes e as
relações violentas entre presos, funcionários e autoridades.16

A Lei de Execução Penal assegura o direito ao trabalho, incentivando-o


através da remissão da pena (3 dias de trabalho abatem 1 dia de pena), porém
as condições da vida carcerária restringem esse direito a apenas uma minoria,
sendo objeto de controvérsia a sua exploração, e os sujeitos presos não
contam com qualquer benefício previdenciário.

A área da saúde apresenta-se dramática, pois não há uma política de


Saúde Pública voltada aos sujeitos presos que contraem doenças infecto-
contagiosas, entre elas a AIDS e tuberculose, além de problemas relacionados
à dependência química18. No Rio Grande do Sul, conforme o RELATÓRIO
AZUL (2001), a realidade é semelhante ao resto do País: a assistência médica
aos sujeitos presos é negligenciada, desde atendimentos mais simples como
moléstias de pele, ocorrências dentárias, pequenos curativos, até problemas
complexos, como acidente vascular cerebral, acidente cardiovascular e câncer,
não tendo atendimento adequado ou até mesmo nenhum atendimento. Os
dependentes químicos e aqueles que chegam a desenvolver doenças mentais
após o encarceramento e não recebem assistência adequada na maioria dos
estabelecimentos, permanecendo nas mesmas condições do restante da
massa carcerária.

26 Conforme TORRES (2001) o requerimento de informação 428/99 solicitado pela Pastoral Carcerária e Comissão de
Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo junto à Secretaria de Administração Penitenciária
informou que, em dezembro de 1999, 57 funcionários da Casa de Detenção respondiam a processos criminais e
continuavam trabalhando na própria Casa de Detenção e em outras unidades. Respondiam a processos por roubo,
furto, homicídio, tráfico de drogas, porte de drogas, estelionato, lesão corporal, abuso de autoridade, concussão
(suborno), receptação de objeto roubado; e ainda, outros 42 funcionários sofriam sindicância por negócios com presos,
jogos ilícitos, suborno, apropriação de dinheiro de detento, facilitação de introdução de entorpecentes e de bebidas
alcoólicas, introdução de aparelhos telefônicos celulares, porte ilegal de arma de fogo, desvio de dinheiro de presos,
posse de maconha, crack e cocaína, facilitação de fugas, maus-tratos contra presos, destruição de propriedades de
presos e licença médica fraudulenta.
27 Segundo TORRES(2001), através de dados da Organização Mundial de Saúde, 70% dos presos brasileiros são
portadores do bacilo da tuberculose. O Censo Penitenciário nacional de 1995 contava com 12% da população
carcerária como portadora do vírus HIV, com ou sem manifestação da doença.
68

Porém, a necessidade mais importante para os sujeitos presos e que


acaba sendo, inclusive, motivo de muitas das rebeliões, é a da assistência
judiciária, que se tem revelado muito lenta e incipiente. Sucessivamente, os
Censos Penitenciários têm apontado o percentual de 90% de apenados que
necessitam de assistência judiciária fornecida pelo Estado. Apesar desse
percentual elevado, não há um levantamento atual do Ministério da Justiça
sobre o número de advogados disponíveis para este serviço nas Varas de
Execução e nas unidades prisionais (TORRES, 2001).

Em todos os Estados do País existem unidades prisionais interditadas 28


pelas autoridades responsáveis pela fiscalização das prisões (Vigilância
Sanitária, Ministério Público, Juizes de execuções); no entanto, os Órgãos
Executores não cumprem as ordens de desativação destas unidades, devido à
superlotação. Os presos não são separados por tipo e gravidade do delito ou
idade conforme prevê a lei e o sistema é chamado comumente de “escola do
crime” (TORRES, 2001).

A Lei de Execução Penal prevê a criação de “Conselhos da


Comunidade” nas comarcas onde existem estabelecimentos prisionais. Esses
Conselhos teriam como função a fiscalização e elaboração de propostas para
mudanças necessárias. Sua instalação depende de iniciativa do Poder
Judiciário, embora seja obrigatória por lei. Os Conselhos são compostos por
um Advogado, um Assistente Social e um representante da Associação
Comercial, além de outras organizações da sociedade civil. Esses Conselhos
poderiam ser um canal de resolução de muitos dos problemas penitenciários
através da participação da sociedade, mas devido a suas características
democráticas e aos poderes conferidos pela lei, acabam por sofrer diversos
obstáculos para o seu funcionamento. Na capital do Estado do Rio Grande do
Sul, esse Conselho está desarticulado desde 1997.

A estrutura do Poder Judiciário em todo País tem sido uma constante na


prática de uma política conservadora na interpretação e aplicação da lei. O que

28 Aqui no Rio Grande do Sul, desde 1996 o Presídio Central de Porto Alegre está parcialmente interditado e
impossibilitado de receber novos condenados. O Instituto Psiquiátrico Forense foi interditado no primeiro semestre de
2001 por não apresentar as mínimas condições de um Hospital Psiquiátrico.
69

se nota é uma prática encarceratória, mesmo quando a lei prevê alternativas à


prisão. O Poder Judiciário, o Ministério Público, parlamentares e setores
conservadores da sociedade constantemente reclamam um maior
endurecimento da legislação, mesmo quando este endurecimento vai contra a
tradição do Direito brasileiro que não prevê a pena de prisão perpétua, pena de
morte, castigos físicos, confinamento solitário ou trabalho forçado.

Uma das questões centrais que preocupam juristas progressistas e


defensores dos direitos humanos é o movimento de “lei e ordem” que vem
provocando muitas vezes a elaboração precipitada de leis que respondam com
imediatismo sensacionalista a problemas de ordem social profundos.
Segmentos da sociedade brasileira apóiam o tratamento desumano e as más
condições de reclusão dos sujeitos presos, como uma retribuição justa aos
crimes cometidos.

Isto, no meu ponto de vista, parece contribuir para legitimar as ações


violentas, maus tratos, humilhações e espancamentos cometidos por policiais
no interior dos presídios e sua conseqüente impunidade29.

Enfim, o sistema penitenciário brasileiro é, em sua essência, violador


dos direitos humanos dos presos e presas (NEDER, 1994), com conseqüências
prejudiciais a toda sociedade. Inúmeros relatórios de organismos nacionais e
internacionais de defesa dos direitos humanos reportam-se à situação caótica
do sistema penitenciário brasileiro, onde a violação dos direitos humanos dos
sujeitos presos é uma rotina diária.

Em 199930, ao publicar “Brasil: Aqui ninguém dorme sossegado -


Violações dos direitos humanos contra detentos", a Anistia Internacional volta a
apresentar denúncias de violação dos direitos humanos cometida em prisões

29 Em 02 de outubro de 1992, no trágico Massacre do Carandiru, 111 presos foram mortos pela Polícia Militar na Casa
de Detenção de São Paulo. Em 11/10/1992, pesquisa de opinião publicada pelo jornal “O Estado de São Paulo” relata
que “Massacre de presos divide população”.
30 Para a elaboração deste relatório, a Anistia visitou 33 presídios no Brasil, em 10 Estados: São Paulo, Rio de
Janeiro, Espírito Santo, Pernambuco, Pará, Ceará, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
70

brasileiras. Na análise de ambos os relatórios, nota-se um agravamento da


situação, sem mudanças significativas no trato à população carcerária.

As falhas no sistema penitenciário são sempre “justificadas” pelas


ausências de maiores recursos materiais e humanos: faltam remédios, mais
profissionais técnicos e funcionários mais capacitados. Entende-se que esses
fatores são indicadores que revelam a falta de uma política institucional
definida e estruturada em nível nacional, que construa novos parâmetros e
objetivos para o sistema penitenciário, além das questões da segurança e do
encarceramento.

Nota-se que, mesmo o Estado e sociedade brasileira procurando,


através de algumas ações muito pontuais, implementar políticas alternativas de
combate à situação da maioria dos presídios no Brasil, a retórica fatalista gera
um imobilismo social por parte dos gestores das políticas penitenciárias,
reforçando-se para que as ações não atinjam os principais fatores
desencadeadores da violência no sistema prisional.

Enfim, relacionando com a análise de Torres(2001), o PCPA se insere


em um contexto mais amplo que revela:

a) uma política de execução penal que no País prioriza o modelo


encarceratório, em detrimento de outras alternativas penais, mesmo com
dispositivos legais para serem utilizados; b) as péssimas condições de vida
na grande maioria dos presídios e as constantes alegações
governamentais da falta de verbas e recursos para uma assistência mínima
aos sujeitos presos, como o atendimento à saúde, o acompanhamento
jurídico nos prazos legais a que o preso tem direito, a assistência às
necessidades materiais e sociais do mesmo; c) a impunidade do sistema,
que colabora na manutenção da ideologia do castigo e da vingança social
através do controle paralelo e da perversidade do Estado e de seu aparato
policial; d) as situações de violência a que está submetida a população
carcerária, praticadas muitas vezes pelos próprios agentes do Estado
(funcionários e policiais), como maus tratos, humilhações, espancamentos,
71

torturas, corrupção, tráfico de drogas; e) a estigmatização do indivíduo que


cumpre ou cumpriu pena, com a inexistência de uma política pública
voltada para o atendimento aos egressos prisionais; violência simbólica que
se tem assistido, na mídia, através do tratamento dado às rebeliões e fugas
em massa) (TORRES, 2001)

No Brasil, há uma relativa abundância de estudos legais que se


centralizam na necessidade de reformas judiciais (como a redução de
superpopulação através de uso muito amplo das penas alternativas). Destaca-
se aqui no Estado a militância da Juíza Vera Muller que implantou, em 1987, de
forma pioneira no País a pena de Prestação de Serviços à Comunidade- PSC,
bem como, em nível nacional, a contribuição, entre outras, de Julita Lemgruber
da “Penal Reform International”. Estas são algumas referências no uso de
alternativas para as penas carcerárias. Recentemente estão sendo implantadas
as Centrais de Medidas e Penas alternativas em todo o Brasil, e as Varas de
Execuções Criminais – VECs - foram desmembradas em duas: a) a VEC-
voltada para a execução da pena privativa de liberdade ; b) a VEPMA- voltada
para a execução de penas e medidas alternativas.

Poucas pesquisas, porém, têm sido realizadas sobre as condições


carcerárias a partir de uma perspectiva acadêmica que considere os atores
sociais envolvidos neste contexto. De fato, além dos trabalhos de Thompson
(1976) e Fragoso (1980) anteriormente referidos, e de João Batista Herkenhoff
(“Crime: tratamento sem prisão”, 1987) e Odete Maria de Oliveira (“Prisão: um
paradoxo social”, 1984), a maioria das pesquisas feitas sobre as condições
carcerárias têm sido realizadas por ONGs. As organizações “Human Rights
Watch” (1992) e Anistia Internacional (1993), por exemplo, lançaram relatórios
específicos sobre o massacre no Carandiru, bem como foi instaurada
Comissão Especial pela “Bar Association”(CARVALHO, 1999). No Rio Grande
do Sul, existe o Relatório Azul, desde 1994, publicação anual da Comissão
sobre Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado, que
sistematiza e relata as violações dos direitos da população carcerária.
72

Por outras vias, VARELLA (1999) em Estação Carandiru, através de


crônicas do seu cotidiano profissional como médico, desvela de forma criativa
como é a vida na maior prisão brasileira. Procura mostrar

“que a perda da liberdade e a restrição do espaço


físico não conduzem à barbárie ao contrário do que
muitos pensam. Em cativeiro, como os demais
grande primatas, criam novas regras de
comportamento com objetivo de preservar a
identidade do grupo” (VARELLA, 1999, p.10).

Quanto ao Rio Grande do Sul, destacam-se recentes obras: a) de


HASSEN (1999), “O trabalho e os dias”, que através de uma pesquisa de
campo efetuada no Presídio Central de Porto Alegre, no período de 1993 a
1995, demonstra que o trabalho desenvolvido na prisão não tem qualquer
relação com a noção de trabalho que caracteriza ação dos seres humanos em
liberdade; b) de CARVALHO (2001), “Pena e Garantias: uma leitura do
garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil” . Essa obra é resultante da Tese de
Doutorado do autor, que trata dos fundamentos da execução da pena privativa
de liberdade no Brasil. O autor mostra que é falsa a idéia corrente de que o
grande responsável pela violação dos direitos humanos dos sujeitos presos é o
Poder Executivo através da sua ineficácia administrativa. Busca demonstrar o
nível de (co)responsabilidade dos juristas na manutenção da barbárie do
sistema prisional, constituindo assim, mecanismos teórico-práticos que
justifiquem as ações de resistência dos sujeitos presos no resgate dos seus
direitos. Para construir seus argumentos, CARVALHO parte de três hipóteses:
1) a ideologia do tratamento ressocializador não apresenta conteúdo mínimo
que possa ser garantido e afirmado com os valores e princípios constitucionais
(por exemplo, não garante o direito de não ser “tratado”, avaliado etc); 2) o
processo da execução penal não prevê instrumentos jurídicos que possam
garantir os direitos dos apenados; 3) a incapacidade processual do direito de
assegurar os direitos exsurge, quando da constatação de violência institucional,
73

o direito de resistência, como manifestação legítima de desagravo pela massa


carcerária (CARVALHO, 2001).

2.2 Chegando no Lugar

Conforme foi citado no início deste trabalho, a escolha do Presídio


Central de Porto Alegre – PCPA - como base da pesquisa deu-se em função de
alguns fatores: por estar em Porto Alegre, a grande metrópole do Estado; por
ser um espaço construído para abrigar 650 pessoas e que continha uma
população carcerária de 2100 pessoas; por ser a porta de entrada do sistema
prisional, ou seja, todos que são presos na Grande Porto Alegre devem passar
pelo PCPA, já que não existem aqui as delegacias de polícia que recolhem
pessoas em prisão preventiva ou provisória.

Portanto, esses foram os critérios “objetivos” da escolha. Além disso,


outras questões me mobilizavam: tinha uma relação próxima com um dos
Assistentes Sociais da casa, pois havia sido sua professora, supervisora e
orientadora de Trabalho de Conclusão, ou seja, ele representava um grande
canal; havia no imaginário daqueles que trabalhavam no Sistema - e no qual eu
transitava a partir das diferentes relações pessoais/profissionais - de que o
Presídio Central, “apesar de tudo” estava sendo um dos melhores lugares para
se trabalhar. Que, depois que a Brigada Militar assumiu, as condições do
PCPA melhoraram. E ainda, que os próprios sujeitos presos não queriam ser
transferidos para outras Casas, como a PEJ (Penitenciária Estadual do Jacuí),
ou PEC (Penitenciária Estadual de Charqueadas).

Nesse sentido, tornava-se um lugar fascinante para o desenvolvimento


do estudo, pois as rebeliões e motins haviam cessado e, em contrapartida, a
população carcerária aumentava. Indagava-me como conseguiam manter a
“massa” sob controle, depois de uma trajetória de diversos motins e rebeliões.
Paralelamente a isso, na questão acadêmica eu ia me aproximando da
74

discussão teórica sobre o tema e ativando a memória daquilo que já tinha sido
vivido e estudado.

Então, em maio de 1999, resolvi marcar um encontro informal com o


Diretor da Casa para me apresentar e ver a possibilidade de iniciar uma
pesquisa, em julho daquele ano. O mesmo foi extremamente acessível e
apenas solicitou a formalização perante a Superintendência dos Serviços
Penitenciários - SUSEPE. Cumpri a formalização de praxe e, no final de julho,
comecei os primeiros contatos através dos técnicos do Serviço Social. Passei a
contar com o trabalho voluntário de uma acadêmica de Psicologia, que me
auxiliou na coleta dos dados.

Inicialmente, procedemos a um reconhecimento geral da cadeia,


observando os diferentes locais da vida prisional. Depois, foram realizadas
entrevistas com os diferentes sujeitos que participavam do cotidiano prisional.

Até o final daquele ano estivemos, semanalmente, presentes no


Presídio. Tínhamos um trânsito livre e não ficávamos vinculadas a um setor
específico. Qualquer movimento de nossa parte era formalizado perante o
Chefe da Segurança. Foi interessante, pois a pessoa que ocupava esse cargo
no início da pesquisa31 era um acadêmico de Direito que gostava de refletir
sobre a prisão. Fazia imensa questão de levar estudantes para dentro do
presídio, a fim de que pudessem desmistificar um pouco a imagem que tinham
do lugar. Dizia “que aquilo era um laboratório para a academia estudar”.

Em novembro, resolvi aplicar um questionário (ver anexo 01) em toda a


massa carcerária, pois havia questões sobre o processo de organização da
vida cotidiana sobre as quais tinha receio de não conseguir coletar impressões
através de entrevistas com os sujeitos presos. Sabia que as entrevistas
deveriam ser gravadas e isso poderia constituir fator impeditivo para um clima
de confiança.

31 Durante o período de maio / 1999 até janeiro/2001 houve uma mudança na Chefia da Segurança e duas na Direção
Geral.
75

Além de fazer um pré-teste com 7 sujeitos presos que deram sugestões


sobre as questões do instrumento, realizei o face valid, isto é, o instrumento foi
corrigido e alterado a partir da leitura do Diretor e Vice-Diretor, do Chefe da
Segurança, de um Assistente Social e de um Professor da Casa. Mesmo
assim, o instrumento apresentou-se falho quanto à elaboração das questões e
o esquecimento em solicitar informações como o número de filhos.

Para distribuir o questionário, fiz questão de não utilizar os técnicos ou a


segurança da casa. Estabeleci canais de comunicação direta com nove líderes
das galerias (ou prefeituras) e com diferentes setores da casa. Foram feitas
reuniões com subgrupos, tendo o cuidado de não juntar pessoas de diferentes
facções. Nessas reuniões, procurei sensibilizá-los para participação no estudo
e foram dadas as explicações básicas para o preenchimento do questionário.
No caso dos presos analfabetos, solicitei a colaboração de um parceiro de cela
para a produção das respostas. Na ocasião, foi explicado que eles não eram
obrigados a responder e tampouco a se identificar. O que mais perguntavam é
se iria sair o estudo na imprensa, pois estavam cansados dessas pesquisas
das quais não recebiam retorno. Nada lhes foi prometido em relação à
imprensa, mas sim que os dados seriam devolvidos a eles, e foi assumido o
compromisso de socializá-los de diferentes formas no meu espaço profissional.
No Relatório Azul (2000-01, p.446-9) parte dos resultados foram apresentados
à comunidade dos internos.

Foram distribuídos 2110 questionários para os sujeitos presos, nos


diversos setores e galerias, sendo devolvidos 1167, ou seja, mais de 50% dos
presos responderam.
76

Setor Distribuídos Devolvidos

1a B-galeria 212 73

2a B-galeria 236 102

3A B-galeria 217 33

1A E-galeria 74 25

2A E-galeria 45 22

COZINHA 42 17

CONSERVAÇÃO/OBRAS 45 29

REFEITÓRIO FUNCIONÁRIOS 15 10

FAXINA GERAL 27 04

LAVANDERIA 08 06

1A D-galeria 189 181

2A D-galeria 161 152

3A D-galeria 209 66

1A C-galeria 250 121

2A C-galeria 171 162

3A C-galeria 209 164

TOTAL 2110 1167

Observa-se que não foi homogêneo o número de devoluções dos


questionários por setores. Destaca-se que a adesão ficou concentrada no
Pavilhão C. Ao contrário, o Pavilhão B, principalmente a 3 a galeria, apresentou
o menor número de preenchimentos. Isso corresponde ao processo de
interação e relação entre os diferentes grupos dos sujeitos presos e os grupo
da administração. A 3a galeria tem, como política de funcionamento, a não
77

participação e negociação com qualquer atividade ou situação advinda da


administração. Por mais que os questionários tivessem sido entregues
diretamente aos líderes, e que os mesmos não precisassem de identificação, a
maioria se identificou através do nome e número de matrícula e, sendo assim,
sabiam que eu teria o controle sobre a que galeria fazia parte aquele
determinado questionário. Mesmo assim, pode-se considerar esses números
obtidos como sendo um indicador da heterogeneidade e funcionamento dos
diferentes grupos.

Apesar de toda a estratégia desenvolvida, não era esperado um número


tão significativo de devolução dos instrumentos. Além da assessoria estatística,
tive que contar com ajuda de duas pessoas para tabular os dados quantitativos
e qualitativos. Foi preciso desconsiderar algumas questões pela dificuldade de
categorização dos dados e também pelo tamanho com que ficou a amostra.

Enquanto isso, de dezembro de 1999 até abril de 2000 afastei-me do


Presídio pois fui para a Itália estudar, conhecer experiências - Serviço Social de
Bologna com Medidas Alternativas e o Proggeto Citta Sicure - e também fazer
contatos com alguns teóricos sobre criminologia crítica .

Retornei em maio de 2000, não só para os contatos internos no Presídio


mas também atendendo ao convite para fazer parte no novo Conselho
Penitenciário Estadual, que estava sendo composto. Também assumi uma
Disciplina na Faculdade de Serviço Social da PUCRS, que estava trabalhando
a “questão da violência”. Um grupo de alunas passou a fazer parte do meu
Projeto de Pesquisa e, assim, foram retomados os contatos com o Presídio.
Foram feitas entrevistas com questões norteadoras (ver anexo 01) mais
voltadas para a violência dentro do PCPA, que foram gravadas, transcritas e
tabuladas a partir das categorias teóricas que me orientaram nesse estudo.

Nesse processo foram entrevistadas 15 pessoas: 02 sujeitos presos


trabalhadores, 03 sujeitos presos não trabalhadores e 1 sujeito preso líder de
galeria; 01 Assistente Social, 01 Advogado e 01 Psicólogo; 01 Chefe da
Segurança, 01 Sargento, 01 Cabo e 03 soldados.
78

Em junho de 2000, a Casa passou por uma série de modificações devido


à mudança geral que aconteceu na Força Tarefa (grupo de brigadianos
responsáveis pelo comando das principais Casas prisionais do Estado32). O
Chefe da Segurança que era o canal formal de inserção foi afastado e acusado
(através da imprensa) de ter cometido diversas irregularidades. Mesmo assim,
nos últimos dias de sua gestão, ele foi o principal canal de distribuição dos
questionários aos funcionários. Foram distribuídos 120 questionários (ver
anexo) e retornaram 83, ou seja, uma amostra representativa correspondente a
70% dos funcionários.

O trabalho de pesquisa teve momentos de dificuldades pois, a cada


tentativa de aproximação da Casa, percebia-se que o ambiente não estava
favorável. O novo comando tinha posições totalmente contrárias ao antigo, o
que gerava novos desafios e estratégias. Os contatos foram refeitos em janeiro
de 2001, para a devolução dos resultados junto aos líderes representativos da
massa carcerária e aos funcionários. Com os apenados a apresentação e
discussão aconteceram em duas reuniões, uma com o grupo de sujeitos presos
trabalhadores e outra com o grupo dos não trabalhadores. Com os funcionários
foi feito um encontro. Nesses três momentos, foi possível apresentar os dados
da pesquisa aos sujeitos representantes do universo da prisional e discutir os
principais aspectos sinalizados por eles.

Os dados, em sua maioria, foram legitimados. É interessante ressaltar


que, no grupo dos sujeitos apenados, os nove representantes das galerias
estavam juntos, diferentemente do que tinha ocorrido na fase inicial da
pesquisa, quando houve a preocupação de não juntá-los. Essa questão foi
trazida por um dos líderes, que justificou essa nova fase pois se estava “no
novo milênio” e havia a necessidade de superar as rixas e dificuldades de
estarem juntos quando os assuntos diziam respeito a todos. Acredita-se que
esses espaços serviram muito para proporcionar a discussão das condições

32 Em 1995, devido aos problemas de rebeliões e de insegurança nas principais prisões da região metropolitana, a
Brigada Militar-BM assumiu o comando de cinco casas: Presídio Central de Porto Alegre, Hospital Penitenciário,
Penitenciária Estadual de Charqueadas, Penitenciária Estadual do Alto do Jacuí e Penitenciária de Alta Segurança de
Charqueadas.
79

estruturais e execução da pena que, de certa forma, todos os sujeitos que


compõem esse sistema vivenciam.

Nesse período, também foram realizadas entrevistas com pessoas da


sociedade civil e de entidades que possuíam uma relação direta com o
Presídio. Faziam parte desse tipo de fonte um grupo de cinco pessoas
formados por um político, um membro do Conselho Penitenciário e três
voluntários que representavam grupos de auto-ajuda e apoio espiritual.

Também nesse período passei a fazer parte do sistema prisional através


da Direção do Centro de Observação Criminológica, conforme já foi exposto no
Capítulo 1 deste trabalho.

Não foi tarefa fácil ler os diversos espaços particulares de relações e


ações que têm organizado o espaço do PCPA. Não se trata somente de
estratégias de leituras, mas de ter a consciência de que a captura de um
espaço representa a adoção de uma perspectiva sempre relativa e limitada,
capaz de selecionar e transformar a realidade. Procurei então, exorcizar a
“instituição total” 33 através da descrição específica daquilo que pude observar
nos diversos contatos (mesmo que superficiais) no Presídio Central.

Procurei mergulhar em algumas imagens, documentos e depoimentos


que eram acessíveis, deixando-me impressionar pelas coisas simples da
cadeia, resistindo à dor e à culpa que o ambiente provoca e tudo que, por
qualquer motivo, fosse destacado no discurso dominante. Não sei se esta
atenção serviu para remover ao menos em parte a inibição que surge quando
se resolve compreender o tema da violência no espaço de concretude da pena.
Essa foi, no entanto, a minha intenção.

33 Segundo GOFFMAN (1987, p.11): uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho
onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por
considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.Essas instituições totais não
permitem qualquer contato entre o internado e o mundo exterior, até porque o objetivo é excluí-lo completamente do
mundo originário, a fim de que o internado absorva totalmente as regras internas, evitando-se comparações,
prejudiciais ao seu processo de “aprendizagem”
80

Ao descrever o espaço do Presídio Central de Porto Alegre - como ele


se isola, se manifesta e se organiza e as imagens que produz - preferi,
inicialmente, selecionar alguns elementos do diário de campo onde registrei um
pouco da sua história, de sua estrutura física e de seu funcionamento.

2.3 A Organização do Lugar: Estrutura e Funcionamento


81

O Presídio Central foi inaugurado em 1959 com o propósito de substituir


o antigo Cadeião localizado próximo ao centro da cidade e que se encontrava
superlotado e em péssimas condições físicas (HASSEN, 1999). Hoje a história
se repete. O PCPA é a maior casa do sistema penitenciário gaúcho34.
Possuindo capacidade de 650 vagas, abriga em torno de 2000 pessoas.

Desde 1995 está sob um comando militarizado, infringindo um preceito


constitucional e parcialmente interditado pelo Ministério Público para receber
novos presos condenados, conforme promessa política do Governo Antônio
Britto (1994-1997). Em 1997 iniciou-se uma megaoperação para desativá-lo
definitivamente até 1998. Conforme referências, a operação teve pleno êxito,
mobilizou mais de 530 homens, inclusive o Grupo de Ações Táticas especiais
(GATE). Naquele período o PCPA Passou a contar com 1614 presos.

Desde que o Governo Olívio Dutra assumiu, em 1998, a promessa de


retirada da BM tornou-se uma constante, principalmente como forma de
atender a pressões dos sindicatos dos agentes penitenciários, que se sentiram
desvalorizados, pois os gastos com as diárias dos oficiais e demais brigadianos
poderiam ser investidos em melhores condições salariais e formação dos
mesmos. Além disso, mais de 400 novos agentes foram preparados para
reassumirem as casas prisionais comandadas pela Brigada. A partir de 2000, a
SUSEPE reassumiu a Penitenciária Estadual de Charqueadas - PEC e a
Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas - PASC. Conforme a
promessa, os próximos seriam a PEJ e PCPA. A incerteza da definição gerava
intranqüilidade, receios de boicotes de quem estava saindo, falta de

34 O sistema Penitenciário Gaúcho está sob o comando da Superintendência dos Serviços Penitenciários - SUSEPE - subordinada à
Secretaria da Justiça e Segurança, que atua como órgão público responsável pelo planejamento e execução da política penitenciária
do Estado do Rio Grande do Sul Os 89 estabelecimentos prisionais do Estado do Rio Grande do Sul atendem homens e mulheres em
cumprimento de pena privativa de liberdade, em regimes variados, bem como em cumprimento de penas alternativas (limitação de
final de semana), prisões civis e medidas de segurança. A SUSEPE abrange 14 estabelecimentos penais chamados de Casas
Especiais que estão localizadas em Porto Alegre, município de Charqueadas e Venâncio Aires, todos sob a jurisdição da Vara de
Execuções Criminais de Porto Alegre e abrigam 6.541 presos. Além destes estabelecimentos, no interior do Estado, existem 75
presídios de pequeno e médio porte que compõem as oito Delegacias Penitenciárias Regionais (DPR) que ao total abrigam 7.824
presos. Para atender homens e mulheres portadores de doença mental que estão em cumprimento de medida de segurança, há o
Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso que abriga 605 pacientes. (segundo dados do efetivo carcerário semanal de
23/04/2001).
82

informações necessárias. Pude assistir a todo esse processo dentro do


sistema, enquanto estava na Direção do COC.

Era voz corrente o desejo de permanência da Brigada Militar – BM - no


PCPA, tanto da massa carcerária quanto da sociedade civil em geral. Com a
entrada da Brigada Militar no Presídio Central, segundo a pesquisa realizada
com os apenados (conforme citei anteriormente)35, 74% deles consideraram
que a segurança na prisão melhorou, e que piorou para 11%. Houve 15% de
não respostas.

O poder dos brigadianos tornou a vida na cadeia mais segura para


63% dos apenados; mais difícil para fazer o que se quer fazer foi a resposta de
13% e mais violenta para 6%. 17% não responderam.

Os funcionários também compartilhavam da mesma idéia quanto à


presença da BM no Presídio, pois 100% afirmaram que a segurança melhorou
e 96,1% acreditam que as estratégias de poder e controle que a BM utiliza
tornam a cadeia mais segura. O depoimento abaixo ilustra a visão que um
brigadiano tem em trabalhar no PCPA e o diferencial da corporação na gestão
dessa organização :

“...com certeza, eu tenho consciência que nós


nesta função, eu por exemplo nesta função que eu
exerço, no Presídio é muito importante. Mas é uma
gotinha d'água no mar, no oceano que nós temos.
Nesta parte acho que não adianta exercer uma
função se tu não achares que tenha uma finalidade.
Não adianta eu vir para cá se eu não tiver
interiorizado que eu posso melhorar alguma coisa

- O que acha que tu podes melhorar?

- Primeiro um tratamento mais humano ao


apenado, começa por aí. Porque quando o policial

35 Os dados apresentados nesse capítulo estão organizados em tabelas no anexo II, da página 313 a 344.
83

militar chega novo na força-tarefa este é o primeiro


enfoque a ser tratado. A gente faz reuniões, a gente
conversa com os grupos novos que estão chegando,
nós fazemos formaturas informais. Nós temos uma
forma: uma vez por mês, que nós reunimos todo o
efetivo e daí nós trabalhamos sobre assuntos
específicos. Na verdade é o seguinte, a Brigada
quando ela entrou, entrou só com uma finalidade,
impedir fugas. Na verdade terminar com os motins,
as fugas e as rebeliões. Nada mais, o resto ficaria
com órgãos competentes. Só que e gente começou
a ver que os órgãos competentes não eram tão
competentes assim, e aí nós começamos a botar
nossa mãozinha, aqui, ali, no setor de segurança,
setor de transporte, setor técnico e setor de
compras.
- O que tu achas que diferencia a Brigada da
outra gestão ?
- A Brigada é muito condenada, muito
criticada pelo aspecto que nós passamos de rigidez,
hierarquia, disciplina, as pessoas costumam dizer
que nós somos muito „a ponta de faca‟, muito
exigente.” (entrevista com o sujeito 02)

Na próxima entrevista, identifica-se também, uma aprovação da


permanência da Brigada no PCPA:

“Desde quando a Brigada Militar assumiu a


direção dos principais presídios (...), eu fui uma das
poucas pessoas que publicamente reconheceu que
a presença da Brigada dentro dos presídios trouxe
algumas melhoras sensíveis na execução penal. Por
mais contraditório que isso possa parecer, porque
84

são pessoas que não estão habilitadas prá isso, não


têm curso prá tratar, nem formação específica prá
isso. Mas ao longo dos últimos anos, pelo menos,
(...) o número de casos de violação dos direitos
humanos dos próprios presos, especialmente casos
de violência, espancamento, tortura, caiu muito no
sistema penitenciário do Rio Grande do Sul, e a
Brigada Militar tem muito a ver com isso. Não por
que ela em si seja melhor que qualquer outra
instituição; o problema é que dentro da Brigada
Militar existe uma relação de maior controle sobre a
atividade dos seus integrantes. Eles prestam conta
do que fazem, há punições mais freqüentes,
havendo portanto uma disciplina maior na relação
que se estabelece ali dentro, do que havia, por
exemplo, entre os agentes penitenciários. A questão
da hierarquia ela é muito presente, o que facilita
muito esse controle. Então nós tínhamos antes da
presença da Brigada Militar uma situação de
absoluto descontrole nos presídios maiores do
Estado. Casos muito freqüentes de corrupção, de
violência, de espancamento, de tortura. A presença
da Brigada diminuiu bastante isso, o que não
significa que a presença da Brigada hoje não tenha
também trazido novos problemas. Eu acho que há
problemas novos que foram trazidos pela presença
dos policiais militares na administração dos
presídios. Então eu acho por exemplo hoje,
especialmente, nós estamos vivendo uma situação
muito grave de abusos quando da realização das
revistas sobre os familiares, a revista íntima tem sido
uma prática reiterada nos presídios gaúchos há
85

muito tempo, faz seis anos pelo menos que a gente


vem lutando contra isso. Hoje eu tenho, assim, muita
esperança de que em breve o Governo do Estado
possa finalmente resolver o problema (...). A revista
íntima vem sendo especialmente aplicada nos
presídios onde a Brigada Militar vem atuando hoje,
por conta de uma visão de segurança prisional e que
vem sendo aplicada com tanto rigor que isso implica
numa humilhação extraordinária sobre os familiares.
Eles são obrigados a se desnudar, a mostrar a
vagina, o ânus, enfim, são humilhados mesmo.
Então esse é um problema que se agravou mais
recentemente com a própria concepção de disciplina
militar com a qual é administrado os presídios. De
outra parte eu acho que é um problema gravíssimo
que eu tenho já há muito tempo levantado a
preocupação sobre isso e acho que até agora eles
têm muita sorte de não ter acontecido um problema
maior. A presença da Brigada Militar nos presídios
faz com que os policiais militares transitem dentro
das áreas de contato com os presos, corredores,
galerias, enfim fortemente armados (...), com arma
de grosso calibre, inclusive metralhadoras. Isso é
uma postura que contraria frontalmente qualquer
norma de segurança prisional do mundo. Quer dizer,
se há uma regra que é consensual no mundo inteiro
de segurança prisional é que armas devem se situar
fora do presídio, nunca dentro do presídio. Elas não
têm nenhuma serventia dentro de um presídio, a não
ser despertar a cobiça de algum preso que resolva
tomar essa arma e começar um motim, tomar reféns,
enfim. E os presídios hoje sob a responsabilidade da
86

Brigada Militar eles estão fortemente armados, quer


dizer, os policiais militares trabalham fortemente
armados. Então há um risco muito grande de que
uma dessas armas seja capturada pelos presos (...),
isso pode implicar num problema sério (...). Já houve
um tempo no passado, (...) há dois, três anos atrás
que os presos do Central, por exemplo, chegaram a
organizar uma greve de fome para que a Brigada
Militar não saísse do presídio, porque eles tinham
receio de que se a Brigada saísse, os agentes
penitenciários voltassem, aqueles que estavam lá há
mais tempo tinham memória da situação anterior dos
agentes, não queriam voltar à situação anterior. Mas
nesta última visita que nós fizemos no Central agora,
faz um mês, enfim, eu conversando com os presos
eu percebi o seguinte: eles não têm mais essa
relação (...). Ou seja, se eles pudessem hoje
definiriam que a Brigada não ficasse mais lá. Então
se alterou de alguma forma a relação dos policiais
militares com eles. Eu acho que o que houve na
verdade foi o seguinte: recentemente o Governo
Estadual acabou mudando todo o corpo de oficiais
da Força Tarefa. Então há um novo comandante, há
novos oficiais que estão dirigindo os presídios. Então
é um pessoal novo que entrou. A turma que tava
antes ela tinha ficado praticamente quatro anos
administrando as casas, eles começaram também
sem nenhuma experiência, mas ao longo de quatro
anos adquiriram muita experiência, foram
descobrindo coisas, construindo uma relação com os
presos (...) que acabou estabilizando um pouco a
situação dentro dos presídios. Como essa turma
87

mais antiga vinha adquirindo experiência saiu e veio


uma turma nova, a impressão que eu tenho é que a
turma nova que entrou tá recomeçando o trabalho
do zero. Talvez reproduzindo os mesmos erros do
começo, logo da entrada da Brigada, que é
basicamente isso: uma noção muito desproporcional
de exigência, de disciplina, de militarização das
posturas internas, e acho que essa relação, aos
poucos com os presos, ela se deteriorou muito.
Enfim, há muita reclamação, muita angústia dos
presos com relação a isso (...). Hoje o que sobra
para eles com essa experiência com a Brigada é a
exigência disciplinar. Ponto. Mais nada. Eu acho que
eles não suportam isso. Eu tenho medo. Acho que
se a situação não for enfrentada logo ela pode
implicar em problemas no Central, meio logo.
(entrevista com sujeito 04)

Por outro lado, alguns discordam não só pela inconstitucionalidade mas


pelo caráter do tratamento que é oferecido, conforme é dito o que segue:

“Sou totalmente contra a militarização. Acho


que não dá para trabalhar a segurança pública em
termos militares, a formação militar é uma formação
para guerra, uma formação para a eliminação do
inimigo, eliminação do outro, não dá para se
trabalhar, isso eu tenho bem claro, não dá para se
trabalhar uma perspectiva de uma segurança cidadã,
uma segurança pública democrática com um
paradigma militarizado. Essa é assim uma máxima
que eu levo, claro alguns problemas surgem de
ordem prática que até abalam um pouco esta minha
afirmação. O Y. tem um trabalho bem interessante,
88

que ele diz que a militarização é um problema sério,


a que a questão da violação dos direitos do preso
dentro deste modelo é menor que dentro do modelo
dos agentes da SUSEPE. Não sei, não sei se
existem dados corretos que possam levar a isso.
Enquanto paradigma, sou radicalmente contra... É,
eu acho que esta lógica é bélica militar, este
paradigma bélico, ele reforça este modelo de
intolerância e reforça ainda mais uma situação de
violência que já é específico da instituição. Acho que
explicita mais porque se tem uma vantagem, a
militarização é que deixa claro as relações de poder
que tem a instituição. E outra coisa também não sei
se diminuíram as violências, talvez não, talvez não
tenham a publicidade que tinham antes é diferente,
não sei se esta violência não esta encoberta (...),
talvez o modelo anterior era um modelo que
aparecia mais a violência. O fato de aparecer mais a
violência não sei se não é um bom indicativo, ao
menos ela aparece. Parece que todo mundo está
relativamente tranqüilo porque parece que não há
mais violência. Ela existe mas acontece que ela não
vem à tona.” (entrevista com o sujeito 05)

A retirada da Brigada Militar da gestão do PCPA está prevista para o


final de 2001 ou primeiro semestre de 2002.

Voltando aos aspectos de estrutura e funcionamento do presídio, como


não existem cadeias públicas no Estado, o PCPA é a porta de entrada para
presos da Região Metropolitana. Por exemplo, no ano de 199936 entraram, por
motivos de transferência, mandatos de prisão e flagrante 5956 pessoas e

36 Os dados aqui apresentados são da fonte 01 documental- Relatório Anual da Chefia Operacional- Adminsitração
Brigada Militar - SUSEPE/SL, 1999.
89

saíram, por motivos de transferência ou liberdade, 6528. Aproximadamente


75% da população carcerária está presa provisória ou preventivamente. Os
restantes 25% que por muito tempo permaneceram irregularmente
condenados, desde abril de 2001, estão aos poucos sendo transferidos para
outras Penitenciárias devido às reformas estruturais e radicais pelas quais
passa o PCPA. Com essa reforma, as perspectivas giram em torno de que o
presídio passe a comportar somente 1500 presos provisórios; que seja uma
casa de passagem; que aconteça o fim das revistas íntimas e das galerias; que
sejam criados lugares especiais para as visitas íntimas. A questão é que a
história nos mostra que uma superpopulação vai remodelando a geografia da
prisão e os espaços passam a ser vistos como mais uma vaga que estava
faltando, e todos os outros projetos ficam num segundo plano.

O PCPA situa-se em um terreno de 9 hectares no Bairro Partenon, zona


urbana de Porto Alegre. Sua arquitetura é simples e considerada de segurança
média, conforme foto apresentada na próxima página. No período da pesquisa,
quem transitava pela Rua Roccio não deixava de notar a imagem acinzentada 37
e as paredes laterais descascadas com as grades abarrotadas de roupas dos
presos. Visto de frente, o Presídio apresentava um local em aparente ordem e
sob controle. Já na Portaria Principal existia uma entrada à esquerda para os
visitantes onde se encontrava em anexo a famosa sala de revista íntima. É
importante ressaltar que, desde 1999, com a mudança de governo, a abolição
da revista íntima se tornou compromisso político da SUSEPE. Contudo, as
casas administradas pela BM enfrentaram resistências por não adotarem tais
medidas por motivos de segurança. No ano da pesquisa (1999), o setor de
revista apresentou um total de 11 ocorrências de apreensão durante as
revistas, sendo quatro por porte de arma e as demais por porte de drogas. Tais
dados revelam a insignificância do risco em relação ao processo de vitimização
da violência pelo qual passam os familiares dos sujeitos presos.

37 É importante assinalar que, com a nova reforma, a fachada do Presídio está se modificando, bem como sua
estrutura interna. Contudo a descrição feita é baseada no período da pesquisa de 1999 a 2000.
90

Quantos aos procedimentos da revista, foram selecionados trechos de


uma entrevista com uma brigadiana, que descreve como ocorre tal experiência:

“Na masculina são os mesmos procedimentos,


porém, feminina, canal vaginal, masculina não, né. O
órgão é externo, a não ser o canal anal. Então como
é que se faz, é o mesmo fato. Tira-se toda a roupa,
faz-se os agachamentos e simplesmente faz aquela
propulsão anal, se agacha pra fazer aquela força e
depois se veste novamente, lógico depois de ter
analisado o cabelo, dente, roupa, a língua e depois
ele se veste e vai para a galeria para a visitação.Isso
faz com que a droga e munição sejam temidas, mas
não que seja sanada completamente, sempre vai
existir. Tu pode observar em todos os presídios, foi
encontrado tanto de droga e de cocaína, de
maconha ou tantas munições. Isto existe e sempre
vai existir, porém, a gente tenta prevenir o máximo
que a gente pode, até mesmo porque nós não temos
exame de toque, a gente não toca, a gente apenas
visualiza. E tu sabes que canal vaginal é diferente de
mulher para mulher, uns abrem bem, outros não
abrem e então a gente não tem esse poder, a gente
faz o máximo que a gente pode. E é certo que esse
sistema não é um sistema 100%, mas a gente tenta
o máximo pra prevenir.” (entrevista com sujeito 12)

Conforme informações obtidas recentemente em novembro de 2001, o


PCPA finalmente colocou fim às revistas intimas, fato inédito na sua história.

Voltando à descrição do prédio, na sua direita há a entrada para


trabalhadores do sistema penitenciário ou visitantes como advogados,
voluntários, pesquisadores e outros. A recepção é uma incógnita. A cada
91

semana que eu freqüentava o Presídio, era recebida com tratamento


diferenciado, dependendo do humor e do rigor do soldado que estava na
portaria. Caracterizava-se por um processo burocratizado de controle do
documento, revista na bolsa e deixar alguns pertences como telefone celular.
Somente para os funcionários do sistema e advogados o controle é menos
detalhado.

Entre a portaria e o prédio existe um pátio de uns 100 m 2 com jardim


bem cuidado e estacionamento para os carros oficiais. Todo terreno do
Presídio é cercado por um muro de 3 metros de altura com brigadianos nas
guaritas e cachorros da raça Rotweiller.

No alto da fachada do prédio principal está registrado em letras azuis:


“Presídio Central de Porto Alegre”. Na entrada, há um saguão que serve de
nova recepção aos visitantes, em que se expõem os trabalhos dos sujeitos
presos e que possibilita o fluxo do material (alimentação, higiene) de quem está
no Presídio. Nesse saguão há uma grade de ferro que impede o acesso para
dentro da cadeia. Um funcionário da segunda portaria de controle de entrada
certifica-se qual é o destino da pessoa. Subindo as escadas, à direita,
encontram-se dois andares com setores administrativos, equipe técnica,
direção, subdireção, chefias etc. O primeiro andar dá acesso ao Hospital
Penitenciário que possui Administração independente do PCPA e atende a
toda a população doente do sistema penitenciário do Rio Grande do Sul.

Voltando à portaria central do prédio, no térreo, seguindo à esquerda


encontra-se o setor de identificação- INFOPEN. É o primeiro local por onde o
sujeito preso passa no Presídio. Ali são tiradas fotos, impressões digitais e é
feita a verificação da ficha criminal - se tem outras ocorrências e o tipo de delito
cometido. Próximo a esse setor está a cela provisória de triagem, sempre
lotada, com capacidade para 25 pessoas, onde os presos permanecem em
média 2 dias. Antes de serem encaminhados para alguma galeria, eles
deveriam passar por uma avaliação psicossocial e jurídica. Isso, contudo, não
acontece por falta de técnicos. Nessa avaliação, que vai ocorrer muitas vezes,
uma semana após a entrada, são identificadas as necessidades do sujeito
92

preso, como as de contato com a família, atendimento médico ou psiquiatra,


material de higiene. Passando então por uma breve triagem da segurança, o
sujeito preso é consultado se há alguma galeria em que não poderia
permanecer por problemas de incompatibilidade de facções. Para aquela
pessoa que é presa pela primeira vez não existe local diferenciado para ela
permanecer.

A fala abaixo ilustra diferentes experiências de triagem:

“não acredito que as entrevistas de triagem que são


feitas podem ajudar muito o presos. Não vejo poder de
solução para os entrevistadores...o que pode ocorrer é
sugerir uma ou outra galeria, evitar algum mal maior, de
rejeição dos próprios internos (art.213 por exemplo) mas
as coisas acontecem por osmose e não por interferência
da triagem. Repito, acredito que não tem poder de
solução. Se você tem algo para oferecer, dinheiro,
influência, Q.I., você é bem recebido. Do contrário, pode
servir de burro de carga, bode expiatório, até virar mulher.
Tudo depende de como você chegar e se impor diante da
nova vizinhança que vai viver contigo nos próximos
meses, anos...” (questionário 315)

“a minha entrada foi péssima no atendimento pela


guarda. Fui bem apoiado pelos presos” (questionário 071)

“a triagem ainda é obsoleta pois passa-se duas


noites dormindo na laje sem comida sem apoio, de um
modo primitivo” (questionário 898)

“triagem é péssima, suja sem condições. não é


triagem é uma jaula fria. Não me lembro com que falei
mas na certa com os brigadianos. Na galeria C1 foi
péssimo, depois fui para a D3 excelente. Fui recebido
93

pelo plantão com dignidade e respeito é a melhor galeria


de todo o presídio.” (questionário 534)

Retornando ao saguão do prédio principal, encontra-se uma nova grade


que dá acesso a outras dependências do presídio. Na parte térrea caminha-se
num longo corredor que tem, além de uma faixa amarela que delimita o
caminhar dos sujeitos presos, uma tela que favorece a separação entre “eles” e
os demais funcionários ou visitantes. Nessa trajetória pelo corredor observei,
por diversas vezes, o processo de submissão a que é submetido o sujeito
preso ao vê-lo obrigado a caminhar com os braços para trás e cabeça baixa
como forma de respeito. Através desse mesmo corredor chega-se à escola38,
cantina39, sala piloto40, ambulatório médico, refeitório dos funcionários, capela,
sala da segurança, setores de trabalho, como a gráfica e Valorização
Humana41.

Ao término desse corredor, ainda no térreo, à esquerda tem-se o acesso


à cozinha, lavanderia, marcenaria e serralharia. Junto a esses setores de
trabalho está o alojamento dos sujeitos presos trabalhadores.

Seguindo na direção contrária, nesse mesmo corredor secundário, tem-


se acesso aos principais pavilhões que concentram a massa carcerária – 1850

presos. O Presídio é formado por cinco pavilhões A, B, C, D, E, sendo que o


primeiro está desativado desde 1995, período da interdição do Ministério
Público. Nos pavilhões B,C e D existem 3 galerias em cada um, que abrigam
entre 160 a 250 pessoas. Cada galeria corresponde ao andar inteiro com celas

38 No Núcleo de Orientação Educacional e Social – NOES- é oferecido curso de alfabetização e preparação para os
supletivos de 1o e 2o graus. Os professores, em numero de 06, são oriundos da Secretaria da Educação e Cultura -
SEC. Também a escola oferece uma média de dez vagas no curso de computação.
39 Desde abril de 2001 a cantina passou a ser terceirizada, pois anteriormente apresentava várias irregularidades
fiscais na comercialização dos mantimentos por ser de responsabilidade da administração interna.
40 A sala piloto é um lugar especial com oito cabines para receber, em 15 minutos, familiares com problemas de saúde
ou que estão chegando ao presídio pela primeira vez. Nesses casos, é o preso que passa pela revista íntima depois da
visita.
41 A valorização humana é um setor de trabalho que congrega: serigrafia, artesanato, escultura em pedra sabão e
alfaiataria .
94

abertas (pois as portas foram destruídas) sendo isolada por uma grade grande
na porta de entrada.

Na galeria D3 estão separados os presos que cometeram delitos que a


“massa não perdoa” como crimes sexuais (art.213 e 214),travestis e delatores
etc. Àqueles que não se adaptam em nenhuma galeria, na parte térrea existe
uma cela provisória chamada “buraco”, antiga sala de costura de bolas.

O depoimento abaixo confirma a discriminação dos travestis:

“não deveriam ser presos homossexuais,


travestis, se caso fossem condenados deveriam ser
a penas alternativas, pois são poucos que não
discriminam e aceitam essas pessoas como ser
humano e os tratam com respeito” (questionário 685)

Os pavilhões, ainda que iguais na sua fachada e no cheiro forte de


creolina, possuem estéticas diferenciadas entre as próprias galerias. Algumas
são extremamente organizadas e limpas; as paredes são ocupadas com fotos
de mulheres, mensagens de esperança sobre liberdade, fé e paz. Outras são
escuras, sinalizando um ambiente frio e pesado.

Entre os pavilhões estão os pátios com campos de futebol de areia, que


são freqüentados uma hora por dia por cada galeria, em torneios de futebol e
dias de revista geral42.

No E1 e E2 próximo ao início do corredor e longe dos outros pavilhões


estão localizados os presos trabalhadores e ex-policiais, que representam a
minoria (270) e possuem maior acesso ao poder formal da administração. O
sujeito preso trabalhador é considerado pelos outros como traidor. Por isso,
caso seja desligado do seu setor de trabalho, lhe restam duas opções: tentar
uma vaga em outro setor ou ser transferido de Presídio.

42 Durante o ano de 1999 foram feitas pela BM 205 revistas nos pavilhões em nível estrutural , onde se quebram
paredes, vasos sanitários e, 311 em nível geral onde são revistados todos os pertences dos sujeitos apenados.
95

O quadro a seguir ilustra a estrutura e a distribuição dos pavilhões:

Fonte: Zero Hora, 15 de agosto de 2000.

Não existe atividade fixa de cunho cultural e de lazer (além dos jogos de
futebol). Ocorrem eventos que promovem aproximação com a família e
comunidade, bem como a visita de alguns conjuntos musicais em dias de Natal
e outras festividades. Há um auditório recém reformado mas que é pouco
utilizado por questões de segurança.

Existia o Jornal Arpão (ver anexo 4), elaborado pelos internos


trabalhadores do Presídio Central de Porto Alegre sob a Coordenação e
Financiamento de Órgãos Governamentais (Ministério da Saúde e Secretaria
Municipal de Saúde), no período de 1996 a 1998 e 2000-01. Com uma tiragem
de 2000 exemplares, tornou-se um veículo de informação à massa carcerária
na orientação e prevenção da AIDS e no uso de drogas.

Desde 1995 não há registros de motins e fugas. Aconteceram rebeliões


isoladas e reprimidas, em alguns pavilhões, principalmente o B que está sob o
96

comando do “manos”, que tradicionalmente não aceitam negociar ou pactuar


com a Direção da Casa.

Segundo Relatório da Chefia Operacional da BM no PCPA, durante


todo o ano de 1999, (ver anexo 3) ocorreram 08 tentativas de fugas frustradas.
Em todas, os apenados serraram as grades e desceram as galerias com
“jibóias” (cordas de pano), alcançando o pátio interno e sendo logo capturados.
Durante o ano foi apreendida apenas uma arma de fogo na 3 a do B. Contudo,
foram apreendidas 109 munições, sendo que 107 do Pavilhão B e apenas 02
do C. Houve um total de 245 apreensões de drogas, principalmente maconha.
É um dado interessante registrar que, no pavilhão C e junto aos trabalhadores,
não foi apreendido nenhum tipo de droga, enquanto no B foram 191
ocorrências e no D, apenas 54. Na apreensão do uso de materiais como forma
de armas (trabuco, estoque, ferros, jibóias) o quadro se repete: 530 materiais
no pavilhão B, no C, 173 e 117 no D. Nos outros setores não há registros.

A equipe administrativa - responsável pela parte burocrática da


administração - como controle de pessoal, controle legal, controle de material
é formada por profissionais da SUSEPE e da BM. A equipe técnica vinculada
à SUSEPE é composta por técnicos: quatro advogados que fazem
orientações jurídicas, três psicólogas e três profissionais do Serviço Social.
No total, estão em média 15 funcionários da SUSEPE trabalhando dentro do
PCPA. As atividades da equipe técnica giram em torno das demandas
advindas da Triagem (contatos familiares encaminhamentos), pronto-
atendimento - atendimento e acompanhamento psicossocial- apenas por
determinação do Juiz da Execução Penal quando o parecer é desfavorável à
progressão - avaliação das condições subjetivas para fins de Comissão
Técnica de Classificação.

O acesso à assistência médica, jurídica, psicológica e social, ocorre da


seguinte forma: a) para aqueles que são sujeitos presos trabalhadores, o
acesso à equipe técnica e à guarda e mais facilitado. Já presenciei solicitação
de consulta de um sujeito preso a um técnico no horário da refeição. B) para os
que estão no fundo da cadeia, a comunicação se dá pelos bilhetes ou pela lista
97

entregue através dos plantões de cada galeria à segurança. Na época da


pesquisa, a demora para o atendimento levava, em média, 40 dias e, muitas
vezes, o motivo para solicitarem o atendimento do Assistente Social ou
psicológico era querer informações sobre a situação jurídica ou estabelecer
contato com familiares. Na sala dos técnicos há um telefone com linha direta
onde o sujeito apenado tem o direito de fazer contato com algum familiar em
situação de urgência. Há um telefone público dentro do presídio, mas o acesso
a este passa pelo mesmo esquema dos bilhetes para a segurança autorizar a
retirada do sujeito de dentro da galeria.

Não existe refeitório dos apenados, como ocorre em muitos outros


estabelecimentos prisionais. Os sujeitos que trabalham na cozinha levam três
panelões até à porta de cada galeria e entregam, sem entrar no ambiente da
galeria, para três apenados (chamados de “paneleiros”) distribuírem a comida.
Os líderes (os prefeitos) das galerias geralmente têm seus próprios cozinheiros
que produzem suas comidas separadamente. Segundo dados da pesquisa, a
realidade referente à alimentação é a seguinte: 45,1% disseram que não
consomem a comida da prisão, 39,5% disseram que fazem uma mistura com a
sua própria alimentação e apenas15,4% disseram que consomem somente a
comida oferecida.

Em relação ao que acham da alimentação da prisão, 57% dos apenados


consideram a comida do presídio ruim; 28% razoável e 10% disseram que é
melhor do que passar fome na rua. Somente 3% consideraram a comida ótima
e 2% boa. Entre os respondentes verificamos que 42% disseram que não,
somente 37% consomem alimentação da prisão, 6% fazem uma mistura com
sua alimentação e 15% não responderam. Se forem agrupados aqueles que
nunca consomem com os que fazem uma mistura, nota-se que 84,6% dos
presos consomem alimento externo. Isso faz com que o comércio de alimentos
movimente as galerias. Cada sujeito preso pode circular com R$40,00 43
semanais Nem todos conseguem ter acesso com facilidade à Cantina e
possuem capital para armazenar alimento. Quem tem esse poder econômico

43 Dado atualizado em dezembro de 2001.


98

favorece seu status e o poder de controle na galeria, pois acaba comprando na


cantina ou recebendo produtos diferenciados dos visitantes e vendendo fiado
por um preço muito superior ao equivalente do produto, o que se torna um
mercado paralelo de circulação de bens alimentícios e de higiene.

O sujeito, ao entrar, deixa seus pertences (relógio, documentos etc) na


administração e vai para a triagem com a roupa que tem no corpo. Lá dentro
“tem que se virar” para conseguir produtos de higiene, pratos, talheres e roupa
de cama. O setor de Serviço Social, quando recebe algumas roupas e produtos
de higiene, distribui na triagem para o recém chegado. Há um costume de que,
quando um sujeito sai em “viagem”- audiências com o juiz- ou em liberdade
total, os outros podem usar os seus pertences na galeria, até mesmo aparelho
de televisão. Isso faz com que o novato, quando chega sem nada, receba
alguma ajuda material dos companheiros de galeria. O relato abaixo ilustra
isso:

“chegou um moço sujo e sem sapatos com a roupa


suja de sangue. Todos deram uma força para ele”
(questionário 814)

Quanto à relação dos sujeitos apenados com o contexto externo, só é


permitida a visita de parentes e “companheira(o)s” (mulheres que são casadas
ou homens e mulheres que viviam junto com algum detento) dos presos. A
entrada no presídio só é possível se a pessoa estiver no cadastro de visitas,
tiver sua carteirinha e com sua situação em dia. Nesse cadastro constam os
dados da pessoa, qual é o preso que ela vai visitar e se está permitida a sua
entrada. Existem duas possibilidades para a visita não ser liberada: se o sujeito
preso ou a segurança requisitarem.

O horário de visitas é organizado em duas vezes por semana, no sábado


e domingo. Durante a semana, é permitido o recebimento de uma sacola por
sujeito preso. Há uma lista de itens que são permitidos e as sacolas são todas
minuciosamente revistadas, as embalagens são todas abertas e os conteúdos
revistados. Enquanto a sacola é revistada, a visita passa pela revista íntima
99

onde tem que se despir e fazer três agachamentos com as pernas abertas de
frente e depois três de costas na frente de uma policial. Depois, a visita tinha
que virar-se de costas para uma lâmpada e fazer o afastamento de suas
nádegas para que a policial pudesse verificar se existiria a presença de objetos
em seu canal vaginal. A visitante também tinha que sacudir seus cabelos,
mostrar o interior de sua boca e ter suas roupas revistadas, não havendo
contato físico com as policiais.

Outra regra a ser respeitada, por questões de segurança, é que as


visitas não podem usar roupas com cores semelhantes aos uniformes da
brigada, militares e dos presos trabalhadores. Depois de passar por todos
esses processos, a visita é liberada para ir para a galeria do sujeito preso que
visita, onde pode ficar até o fim da tarde, sem a supervisão de ninguém da
segurança.

A visita de crianças só é permitida em quatro dias determinados, por


mês. As crianças são despidas e revistadas pelas mães ou responsáveis sob a
inspeção de alguém da segurança e depois são liberadas para acompanharem
suas mães à galeria.

O setor de visita é muito burocratizado, tudo é registrado em livros


específicos e no computador. Há um rodízio diário dos funcionários deste setor
nos postos de revista de sacolas, de pessoas, conferência e confecções de
carteirinhas. O único cargo que é fixo é o de coordenação e supervisão que é
exercido por uma sargento. Os outros cargos são ocupados por cabos,
soldadas e agentes penitenciárias.

Na pesquisa realizada entre os apenados, 58%, recebiam visita


semanalmente; 12%, quinzenalmente; 8% raramente, 6%, mensalmente e 10%
não recebiam visitas. Houve um índice de 6% que não responderam.
Especificamente em relação a visitas íntimas, 49% dos respondentes disseram
que recebiam, 37% não, 7% raramente e 7% não responderam. Como
informações de pesquisa adicionais, para 69% dos apenados, a parceira sexual
era sempre a mesma e para 12%, não. Houve 19% de não respostas.
100

Das pessoas que mais fazem visita aos sujeitos apenados, 50% são as
companheiras e, em segundo lugar, 22% os parentes, seguidos das mães com
21%. Apenas 4% das visitas são do pai. Considerando a freqüência das visitas,
a companheira apresentou 88,9% de freqüência, posteriormente apareceram
os parentes e amigos (45%), seguidos da mãe com 37, 5% e, por último, o pai,
com somente 7,9% de freqüência.

A média diária de visitas a apenados do PCPA, em 1999, foi de 900


pessoas, mensalmente, 10139 pessoas e anualmente circularam como visitas
nesse estabelecimento 121.667 pessoas44. Segundo o mesmo relatório, o
número de presos que em 31/12/99 recebia visitas era de 1097. Imagina-se o
processo de organização interna dos sujeitos presos nas galerias e dos
funcionários para receber esse número significativo de pessoas mensalmente.
No que tange às correspondências, foram encaminhadas, pelos sujeitos
apenados, 8730 cartas e recebidas 18620 durante 1999. Observa-se, com
esses dados, que a relação com o mudo exterior é dinâmica e constante e
atinge grande parte da população, descaracterizando a idéia totalizante de que
as pessoas, ao serem presas, são abandonadas socialmente e que a
instituição prisional, por ser total, caracteriza-se pelo seu isolamento com o
mundo exterior conforme nos indicou GOFFMAN (1987).

2.4 Caracterização dos Sujeitos que Compõem os Diferentes Grupos

Os dados aqui apresentados foram coletados através dos questionários


aplicados, conforme falado anteriormente45. Ao caracterizá-los, não se tem a
intenção de criar um perfil ou padrão criminológico dos sujeitos que habitam a
prisão. Mostra-se como estudo exploratório das variáveis que configuram os
sujeitos desse lugar. Sabe-se que muitos dados merecem aprofundamento em
estudos posteriores e podem servir de novos objetos de investigação.

44 Dados fornecidos pelo Relatório Anual da segurança do PCPA- Brigada Militar. Anexo 03.
45 Para melhor detalhamento e visualização dos dados quantitativos ver tabelas e gráficos no anexo 02.
101

O depoimento abaixo demonstra a preocupação de definir, com o que


concordo plenamente, que não há uma identidade grupal, mostrando o risco de
qualquer homogeneização, bem como o uso das informações que podem ser
passíveis de generalizações .

“É difícil falar assim, genericamente, em


relação aos presos, (...) porque um dos grandes
erros que eu acho que em geral se comete é quando
nós imaginamos que entre os encarcerados exista
uma identidade. As pessoas que estão de fora, elas
tratam dos presos como se eles tivessem alguma
coisa em comum, quando na verdade além do fato
de serem normalmente pobres, jovens analfabetos
ou semi-alfabetizados, quer dizer, os presos
brasileiros têm pouco a ver entre si, têm pouco em
comum entre si. Tu pegas um sujeito condenado por
estelionato, art. 171 do Código Penal, um sujeito
condenado por não pagar pensão alimentícia para
esposa ou para o filho, um sujeito condenado por
consumo de drogas, art.16 do Código Penal, um
sujeito condenado por tráfico, art.12, um sujeito que
cumpre pena por homicídio, art. 121, um sujeito que
tá na cadeia por estupro, art. 213, quer dizer, tu
pega cada um desses tipos penais, o que salta aos
olhos é o seguinte: não há nada em comum entre
eles, e as pessoas que estão lá são pessoas muito
distintas entre si. E também como há uma grande
rotatividade nos presídios, quer dizer, há uma
entrada freqüente e uma saída de presos ou em
liberdade condicional ou por finalizar sua sentença
ou por progressão de regime” (entrevista com sujeito
4)
102

 OS FUNCIONÁRIOS

Dos funcionários pesquisados, 92,6% trabalhavam na área da


segurança e 41,5% estavam trabalhando entre 2 a 6 meses. O pouco tempo de
permanência é decorrente da política funcional da força tarefa. É de praxe a
rotatividade, pois trabalhar no PCPA, além de não ser atribuição dos mesmos,
representa um ganho de 100% sobre a salário advindo das diárias. Ou seja,
representa uma oportunidade pela qual vários brigadianos querem passar. A
breve passagem pelo sistema penitenciário é um ponto favorável contra a
corrupção e o estreitamento de vínculo entre guardas e presos. Não existe
critério explícito para escolher quem vai trabalhar no PCPA, é por indicação ou
solicitação. A maioria é proveniente do interior e 48% tinham idade entre 26 a
35 anos e 83,3% eram casados. Quanto à escolaridade 45,8% possuíam o 2o
grau completo, entretanto 93,9% não estavam estudando na época. Isso revela
a falta de formação específica para o trabalho no ambiente carcerário. Mesmo
assim, somente 13,3% disseram que se sentiram estigmatizados depois que
passaram a trabalhar na prisão e apenas 26,8% tinham outros projetos
profissionais para não trabalhar mais naquele local. Quanto ao entendimento
de pena, identificou-se uma perspectiva “dura” de execução, já que 51,4%
manifestaram-se a favor da pena de morte, indicando-se 29,6% para estupro,
25,9% para crimes hediondos e 27,8% nos casos de latrocínio.

Quanto às condições de trabalho, 41,1% dos funcionários opinaram que


precisam de atendimento psicológico e dentre os motivos estão: 17,2%
consideram importante para atividade e 13,7% passam por momentos difíceis -
“não enlouquecer”. Apenas 2,4% afirmam que ficaram dependentes depois que
passaram a trabalhar na prisão e 9,9% já fizeram algum tratamento de saúde
após a entrada na prisão.

 OS SUJEITOS APENADOS

Dos apenados, 48,6% eram jovens com menos de 25 anos e 77%


tinham procedência da zona urbana. Quanto ao estado civil, 62% possuíam
103

algum tipo de cônjuge, 29,1% eram solteiros e 7,9% divorciados, separados ou


viúvos. Quanto ao número de filhos, destaca-se que 66,3% já possuíam dois
filhos. Em relação ao nível da escolaridade, 77,8% tinham o 1 o grau
incompleto, sendo importante considerar que esse dado é aparentemente alto
em relação aos dados gerais da população brasileira. Por outro lado, o fato de
o 1o grau significar da 1a à 8a serie (níveis muito diferenciados de
aprendizagem), o dado não permite fazer uma inferência real de qual a
escolaridade. Entretanto, comparando-se com outros relatórios gerais do
sistema penitenciário do Rio Grande do Sul, identifica-se simetria no índice.

Os sujeitos respondentes indicaram que 70,4% estavam presos entre


um mês e um ano. A alta incidência de pouco tempo de permanência diz
respeito à natureza do estabelecimento e 52,3% já foram presos mais de uma
vez. Nesse dado, confirma-se o alto índice de retorno ao sistema prisional, não
necessariamente representando reincidência do delito praticado.

Dos delitos praticados apareceu uma freqüência 9% estelionato, 10%


lesões corporais, 18% furto, 11% crimes sexuais, 18% roubo, 14% homicídio e
20% tráfico de drogas.46

É significativa a informação de que 83,1% estavam morando com a


família antes de serem presos, 10,5% estavam sozinhos, 6,4% moravam com
outros (na rua, casa de amigos). Isso desmistifica a idéia totalizante de que os
sujeitos que estão presos têm uma trajetória de abandono social, pois 66,4%
disseram que foram criados pelos pais, 30,2% somente por um dos pais ou
parentes e apenas 3,4% disseram que tiveram passagem pela Fundação
Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem). Por outro lado, verificou-se um
índice de experiência no trabalho infantil, pois 48,8% começaram a buscar o
próprio sustento antes dos 14 anos, 41,7% entre os 15 e 17 anos, 9,3% depois
dos 18 anos e 0,3% disseram que nunca trabalharam. Além disso 61,7%
indicaram que o sustento vinha do trabalho como autônomo ou fazendo
biscates, 35,2% com carteira assinada e 10,2% através de atividade ilícita.

46 Essa informação foi atualizada em dezembro de 2001 conforme relatório mensal da BM


104

Ainda na questão profissional, é interessante destacar que, dos que foram


presos pela primeira vez, 63% indicaram que estavam trabalhando sem carteira
assinada, revelando-se um alto índice de vinculação ao trabalho informal. Entre
os que já foram presos mais de uma vez, aumentou para 71% o número de
sujeitos presos trabalhando sem carteira assinada. É interessante notar que os
sujeitos apenados não se enxergam como um grupo de desamparados sem
função profissional, pois 83,7% disseram possuir algum tipo de profissão,
concentrando-se mais na área da construção civil (pedreiro e servente), e por
conseguinte, na área do comércio informal 68,1% assinalaram que estavam
trabalhando, principalmente no mercado informal, quando foram presos.
Quanto ao envolvimento de algum membro da família com delitos, 23%
disseram que possuem algum tipo de familiar envolvido com a justiça.

É semelhante aos dados nacionais o índice de pessoas com problemas


de alcoolismo, pois 15,5% disseram que eram dependentes de álcool antes da
prisão e 11,2% eram dependentes de outro tipo de droga (prevalecendo
maconha e cocaína). É significativo o índice de retorno ao sistema àqueles que
se disseram dependentes, pois 52,9% já foram presos mais de uma vez.

Quanto à assistência a que os sujeitos presos em geral tiveram acesso,


os setores jurídicos - 79,5% - e social - 89,9% - foram os que com mais
freqüências apareceram.

Em relação à assistência à saúde, 80,7% indicaram que nunca fizeram


tratamento e/ou tiveram acesso ao setor de saúde na prisão. Quanto ao fato de
adoecer na prisão, 17,4% disseram que contraíram algum tipo de doença
dentro do PCPA; dentre essas, destaca-se a incidência de doenças
respiratórias como tuberculose, pneumonia, as doenças de pele, doenças
sexualmente transmissíveis e doenças emocionais. Em relação aos dados
nacionais identifica-se um número baixo de doenças adquiridas, contudo se for
considerar-se o pouco tempo de permanência e a grande circulação das
pessoas, tal índice torna-se significativo. Em relação à AIDS, 86,5% disseram
que não estão com HIV, 8,5% disseram que talvez sim, mas não têm coragem
de fazer o teste e 5,0% afirmaram que estão com o vírus. Se unirmos os que
105

afirmam com os que estão em dúvida o índice passa para 13,5%, o que
representaria, em cada galeria, contendo uma média de 250 presos, existirem
de 25 a 30 pessoas com HIV. Para o grupo de funcionários pesquisados,
quanto a essa questão, entre as doenças que mais assinalaram junto aos
presos destacam-se 39,2% AIDS, 24,6% tuberculose, 16,4% dependência
química e 19,9% outras.

Nos grupos de discussão junto aos líderes das galerias e funcionários


esse índice foi referendado. Importante destacar que 5,1% dos que disseram
que ficou dependente de drogas depois que entraram para a prisão, 18,9% já
eram dependentes de álcool e 66% já foram presos mais de uma vez. Nessas
informações pode-se inferir a correlação existente entre dependência química e
vulnerabilidade aos processos de criminalização e punição.

Quanto à assistência educacional, trabalho e religião, ou seja, atividades


ocupacionais, verificou-se que 87,9% não estavam estudando dentro do PCPA,
70% não praticavam nenhum tipo de religião e 63,1% disseram que não
estavam trabalhando.

Os sujeitos presos indicaram como principais responsáveis pela falência


do sistema e falta de assistência: 59,9% a SUSEPE; 28,4% o Poder Judiciário;
16,2% o Ministério Público; 9,7% a Administração dos Presídios e 6,0% os
próprios sujeitos presos.

Já para o funcionários, o principal responsável apontado pela crise no


sistema penitenciário do Rio Grande do Sul foi, com 49,4% de indicações, a
SUSEPE. 27,3%, os próprios presos; 10,4% o Poder Judiciário e 7,8% o
Ministério Público. Para 79,5% dos funcionários, o PCPA deveria continuar do
mesmo jeito, sem solução e 19,2% dos pesquisados indicaram que deveria ser
desativado.
106

2.5 A Dinâmica de Interação dos Grupos

Todo e qualquer grupo organizacional tem características singulares na


sua dinâmica de funcionamento. O que se torna peculiar dentre os grupos do
PCPA é que estão inseridos dentro de uma organização que, por sua vez,
assume uma dinâmica de regulação interna rígida em função da interação das
forças existentes dentro dos próprios grupos nele inseridos. Ou seja, as forças
existentes dentro da organização do PCPA influenciam a dinâmica de seus
diferentes grupos e, por outro lado, os pequenos grupos com suas diferentes
forças também afetam a dinâmica organizacional.

Geralmente a composição dos grupos que configuram o universos


prisional é dividida em quatro setores (THOMPSON, 1976): direção e chefias,
guarda, terapeutas e os presos. Contudo, no PCPA, dentro dessas quatro
categorias, se multiplicam vários tipos de grupos que são muitas vezes
antagônicos em seus funcionamentos. Além disso, pelo fato de a organização
não estar fechada em si mesma, novos sujeitos, além dos presos, inserem-se
cotidianamente no PCPA, advindos de outras esferas do sistema punitivo ou
sociedade civil: Ministério Público, pessoal da SUSEPE (Segurança,
engenharia prisional), Comissão de Direitos Humanos da Assembléia
Legislativa, grupos de voluntários de vários tipos (religiosos, terapêuticos,
assistenciais).

Quanto à direção e seu estafe é formada somente por militares, desde a


intervenção da força tarefa de 1995. Nesse período de seis anos passaram 7
diretores e várias chefias de segurança e operacionais. Observando a trajetória
das direções, notam-se diferentes estilos da gestão militarizada, que definiu-se
em três fases:

a) linha “dura” 1995-97: quando a direção fez uso de muita


violência física e muita repressão. A fala de um ex- apenado ilustra muito
bem como foi esse período:
107

“quando a BM chegou para assumir os


presídios, veio com todo o gás, pois chegou de
madrugada e como uma operação de guerrilha dois
dias antes do prazo, com forte aparato policial e bem
armados, fizeram uma tomada de assalto(...) Não
deram a mínima chance aos agentes penitenciários
saírem de cabeça erguida, pois a grande maioria foi
botada a correr com o rabo entre as pernas, e
aqueles que pediram para ficar estão assim até hoje.
Apesar de desconhecerem o serviço a Brigada
começou bem, pois comanda em estilo militar e com
o pulso forte(...) fizeram da cadeia um quartel e os
pontos conquistados por eles não se pode negar
pois a corrupção diminuiu muito”. (fonte 02-
depoimento de ex-apenado)

b) linha estratégica e de negociação 1997-2000 – nesse


período foi quando se instalou institucionalmente a facção como
elemento na política de funcionamento. Reuniões com as lideranças,
acordos, privilégios. Surge a figura do “Brasa”. Fortalece-se o poder de
oposição dos “manos” nas outras casas prisionais. É estratégico manter
o dissenso entre os sujeitos presos, porém fortalecer os grupos que se
vinculam aos valores e hábitos da brigada, como disciplina, ordem,
limpeza. Essas eram características das galerias do pavilhão C. O que
eles ganhavam em troca? A família era bem tratada, havia diferenciação
na revista íntima, respeito ao tempo legal e possibilidade de parecer
favorável da segurança na progressão de regime ou livramento
condicional. A entrevista abaixo ilustra as diferentes formas de
tratamento com os diferentes grupos de presos e essa fase de
negociação:

“Porque no C o pessoal é bem vinculado, (...)


porque no B é um problema. No B é justamente o
108

tipo de delinqüente que comanda a galeria (...) e a


política deles é não aceitar nada da Brigada. Eles
não querem se vincular. Quer ver, eu chamo um
pessoal da primeira, da Segunda do B e qualquer
uma das três do D. Eu chamo aqui para conversar
com eles. Eles chegam aí apertam a mão, tomam
cafezinho(grifo meu). Se eu chamar aqui a prefeitura
da terceira do B eles já vêm, mas já vêm se
encolhendo. Chamou eles respondem o que tu
perguntar, eu ofereço um café eles não querem. Não
aceitam nada, faço um jogo agora, eu chamo (...) se
eu não estender a mão para apertar a mão deles,
eles não estendem a mão.Para não criar este
vínculo (...).(...) para saber como é que funciona, só
observando (...) Só na prática para aprender, se eu
começar a escrever ninguém vai entender.”
(entrevista com sujeito 02)

c) linha austera e burocratizada 2000-2001 – caracteriza-se por uma


das dificuldades em lidar com os órgãos externos, burocratização e controle de
todos os movimentos e ações de cada pessoa que entra e de quem trabalha.
Por exemplo, o setor técnico - Assistente Social ou Psicólogo - não tem trânsito
livre para se aproximar do ambulatório, como acontecia antigamente. Num ato
de ousadia, a direção dessa gestão tentou colocar fim nas facções.
Inicialmente, deixou o PCPA sob o comando dos “brasas”, posteriormente
retirou essa a liderança “Brasa” e enfraqueceu todas as outras. Houve uma
pressão externa para que a gestão concedesse espaços para os diferentes
tipos de facção. É incrível constatar-se que o abaixo-assinado dos
representantes do “manos”, querendo reconquistar os seus espaços até então
legitimados, foi mediado pelo representante do Ministério Público e Direitos
Humanos.
109

Em meados de 2001, o PCPA começou uma reforma geral na sua


estrutura física, fazendo com que grande parte dos condenados fossem
transferidos. Isso fez com que o número de pessoas condenadas diminuísse a
ponto de dificultar a organização das facções, pois a rotatividade dos apenados
era alta.

Quanto ao grupo dos terapeutas, é um grupo em minoria, quase em


extinção. Desde o Governo anterior, que implementou o plano de demissões
voluntárias, o número de técnicos foi reduzido pela metade. Há também uma
alta rotatividade dos profissionais. Nesse grupo encontram-se as equipes de
Assistentes Sociais, Advogados, Psicólogos, Professores, Médicos e
Enfermeiros que se dividem em setores isolados chefiados pela brigada e que
muito pouco se comunicam entre si. Além disso, há muita discrepância dos
diferentes cargos que assumem em relação às funções. Como exemplo, pode-
se citar que, dentro da equipe de Assistentes Sociais, há profissionais com as
mesmas atribuições percebendo salários entre R$600,00 e R$2000,00. Nos
demais setores técnicos, a situação se repete. Os setores jurídicos,
educacional e o ambulatório são os mais procurados e que mais são alvo de
reclamações. Apesar de pouco freqüentado, por problemas de espaço e
segurança, o setor educacional é o setor em que os apenados mais têm
proximidade devido a sua autonomia (está mais isolado da administração e
próximo dos presos trabalhadores, perante o poder formal do Presídio). O setor
jurídico e o da saúde são os mais solicitados pela massa e a grande queixa
recai sobre a área médica pela falta de médicos e medicamentos. Atualmente,
o PCPA está sem infectologista. A falta de profissionais, juntamente com a
demanda reprimida, faz com que paire no clima organizacional das equipes
uma postura fatalista. A vulnerabilidade a que estão expostos, ao estilo do
comando da BM versus as orientações técnicas da SUSEPE, fez com que os
técnicos passassem por diferentes fases no trabalho desenvolvido, além da
dificuldade de atender a dois poderes distintos que muitas vezes não se
comunicam.
110

As incertezas do comando da Brigada reproduzem-se no processo de


trabalho das equipes. Por exemplo, na segunda fase da gestão da BM os
técnicos da CTC eram tratados hierarquicamente no nível de assessoria e suas
idéias e opiniões eram respeitadas e muitas ações eram planejadas em
conjunto. Atualmente a relação ocorre nas reuniões de CTC onde cada técnico
juntamente com o responsável pela segurança deve opinar quanto à
progressão de regime ou livramento condicional. As equipes por áreas
raramente planejam e avaliam o trabalho desenvolvido como um todo, o
argumento é a falta de tempo. Em cada área há um técnico responsável,
escolhido pela BM, que faz a comunicação e medição com o comando e
demais setores.

O grupo dos sujeitos presos pode ser dividido em trabalhadores e não


trabalhadores. Os que trabalham na cozinha possuem dormitórios anexos. Os
demais ficam no pavilhão E. Para a “massa”, independente de facção, ser
trabalhador é se vender ao poder formal, é aceitar as regras dos que dominam
formalmente o sistema. Os sujeitos presos trabalhadores passam a ter maior
acesso à vida administrativa da cadeia e, em contrapartida, são mais
controlados. Por outro lado, possuem possibilidades de ter seus direitos à
progressão e remissão atendidos. Quando são transferidos para o regime
semi-aberto passam a ter problemas de segurança. Nos regimes semi-abertos
não existe dentro de um estabelecimento a mesma divisão de um regime
fechado. Eles estão mais sob o comando das facções. Por exemplo a CPA-
Colônia Penal Agrícola está sob o comando do “manos”, o Instituto de Mariante
e Casa Miguel Dario estão sob o comando dos “brasas”. Porém, o regime semi-
aberto não está estruturado para atender a essa pesudo-individualização, o
que se tornou um fator motivador dos altos índices de fuga que vêm
acontecendo nesse regime.

Para ilustrar o assunto, segue um trecho de um depoimento de um ex-


preso trabalhador, para demonstrar como é explicitada a diferença entre eles.
Na fala abaixo, pode-se ver o quanto eles se diferenciam:
111

“neste lugar, do portão para dentro, vale mais


aquele que tiver assaltando mais, roubado mais,
ferido ou matado mais gente. Aqui todo aquele que
chega se diz ser inocente, tudo o que é dele é de
todos, pois não importa se na rua foi bom chefe de
família, trabalhador, aqui isso conta como ponto
negativo, o homem assim na massa ninguém
considera. E são excluídos da massa carcerária,
ainda mais se não usar drogas, aí então é que vão
pegar no seu pé chamando de otário e de careta(...)
alguns costumam me chamar de tabacudo, o mesmo
que grosso” (depoimento fonte 02 ex-apenado)

Por outro lado, a auto-imagem que alguns sujeitos presos não


trabalhadores têm da “massa” reforçam a imagem que os sujeitos presos
trabalhadores têm “deles”, conforme os dados abaixo:

“ infelizmente o que eu vou comentar não é


nada favorável aos presos. Porque o preconceito
vem dos próprios presos, da parte dos nossos
colegas como inveja e ciúmes. porque o índice de
pessoas sem princípio e educação dada pelos pais é
grande. Resumindo, a maioria dos que são
responsáveis por galerias são analfabetos e
ignorantes e se julgam superiores aos outros. Por
não terem ninguém, nem família, nem mulher, se
tornam amargos e estúpidos. infelizmente esses são
os que mandam nesse lugar.” (questionário 256)

Porém, verificou-se através da pesquisa que, na opinião dos sujeitos


presos pesquisados, para a maioria dos que estavam na cadeia, ou seja,
53,1% achavam que foram vítimas da sociedade, 30,9% eram viciados e
apenas 15,7% eram bandidos. Em outra questão, quando se perguntou o
porquê de eles estarem presos, 40,2% disseram que estavam na prisão por
112

uma fatalidade, 27,5% porque foram vítimas da sociedade, 25,5% por um erro
da justiça, 2,4% porque se consideravam uns marginais e 2,4% porque se
consideravam malandros.

Os dados evidenciaram discriminação junto aos homossexuais e aos


presos que cometeram delitos referentes aos artigos 214 (abuso sexual) e 213
(estupro), e uma valorização daqueles que infringiram os artigos 157 (assalto) e
12 (tráfico de drogas).

A LEP estabelece que os sujeitos presos deveriam ser separados, na


execução da pena, levando em conta o tipo de infração praticada, o tipo de
crime praticado. Pelos critérios legais não se poderia ter, no mesmo espaço,
presos que praticaram, por exemplo, latrocínio e presos que furtaram. Quer
dizer, crime contra a vida e crime contra o patrimônio não poderiam estar num
mesmo local de convivência. Nos grandes presídios brasileiros, como foi visto
no Capítulo 2, entretanto, a regra para separação de presos nunca foi essa, por
conta da superlotação. Quer dizer, estabeleceu-se uma prática naturalizada
pela própria organização do sistema, de se separar os sujeitos presos por
conta de pertencimento a grupos rivais. Deve-se evitar, tanto quanto possível, e
no Presídio Central tem sido assim ao longo dos anos, no alojamento dos
presos, que estejam no mesmo local presos que têm rixas entre si ou que
pertençam a grupos diferenciados. Então, no Presídio Central, em cada galeria,
existem sujeitos presos que têm uma convivência firmada por laços anteriores,
de participação no próprio crime. A própria distribuição dos sujeitos presos
emerge da tentativa de evitar que haja confronto e morte entre eles, e acaba
também produzindo uma organização criminosa dentro da cadeia.

Assim, cada galeria, cada pavilhão, reproduzia essa diferenciação.


Existiam no PCPA, na época da pesquisa, três diferentes facções. Uma
vinculada ao sujeito preso chamado Brasa, sendo então, „a turma do Brasa‟; a
turma dos “manos”, que eram os sujeitos presos contrários às negociações ou
pactos com os sistema (guarda/direção) e, por fim, “os abertos”, que não
pertenciam a qualquer comando.
113

A dinâmica dos grupos, independente das facções, formada pelos


sujeitos presos pertencentes à massa, apresenta as seguintes variáveis:
papéis, rede de comunicação, regras de convivências e punições e lideranças.

Os papéis formais:

a) os plantonistas- em média são 3 sujeitos presos. Revezam-se nas


24h para o controle da galeria. Quando há qualquer necessidade de
comunicação, chama-se o preso de plantão. b) jurídico- prestam atendimento,
fazem petições, dão informações e servem de mediadores com o Setor jurídico
da casa. c) paneleiros– são em média 3 e servem as refeições dentro das
galerias. d) faxineiros- são os responsáveis pela limpeza geral da galeria-
corredor, banheiro das vistas etc. Trabalham principalmente no dia anterior aos
dias de visita.

Os papéis informais:

a) o prefeito - que é o líder e em algumas galerias não se identifica. É o


sujeito preso que mantém o controle de quem entra e de quem sai, que media
os conflitos e impõe as regras. Quase sempre esse líder está vinculado ao
crime organizado das periferias da região metropolitana. b) os robôs - são os
presos que se deixam influenciar por aqueles que detém o poder de liderança e
persuasão. Aparentam estar no comando, mas quase sempre são controlados
por um sujeito discreto e misterioso. Fazem o que lhes for mandado, por
exemplo, esfaqueiam, brigam, vingam-se etc. c) os laranjas - são aqueles que
assumem os atos pelos outros. Quase sempre possuem uma dívida com as
lideranças e, como forma de pagamento, acabam assumindo assassinatos,
brigas, agitações perante a BM. d) as mulas e aviões - são tanto visitantes
como presos que têm facilidade de circulação na cadeia e acabam fazendo o
movimento das drogas e da comunicação entre as lideranças.
114

A entrevista descrita, a seguir, caracteriza a dinâmica desses papéis:

“Esse grau de associação ou de afinidade era


o que dividia as pessoas dentro do Central. No
passado houveram outras facções, que eram rivais.
Em cada galeria, eles têm o plantão de galeria (...).
As prefeituras que eles chamam, que é uma pessoa
indicada prá representar os demais. Mas essa
representação de galeria, dificilmente o plantão de
galeria é na verdade a liderança da galeria. O mais
provável é que o plantão seja alguém que tenha um
mandato conferido pela liderança prá fazer o meio
de campo, mas a liderança ela se protege, não
aparece na condição de plantão. Eu vejo isso muito
facilmente quando a gente reúne, por exemplo, os
plantões no Central, várias vezes eu fiz reuniões
com eles lá; então eles trazem as demandas e levam
as demandas, mas eles nunca decidem, nunca
tomam decisão pelos outros, porque eles não têm
essa possibilidade, não são líderes efetivamente,
eles são prepostos das lideranças. É uma forma que
eles encontraram também de se proteger, porque
normalmente nos presídios quando aparece alguém
que assume a condição de líder, essa pessoa é
embalada, como eles chamam; quer dizer, é
transferida para outra casa, enfrenta uma série de
represálias por parte da administração, então as
lideranças de fato, efetivas, elas atuam, digamos
assim, nos bastidores (...) das galerias, e ali dentro
rola tudo. Quer dizer, nem se sabe plenamente o
que acontece, porque a administração prisional pára
na grade de acesso à galeria. O que ocorre ali
115

ninguém efetivamente sabe, eles é que sabem (...).”


(entrevista com sujeito 04)

A rede de comunicação:

A rede de comunicação reflete como os grupos no PCPA se estruturam,


como os papéis são assumidos pelos presos e como os mesmos atuam para
reprodução dos padrões que potencializam a violência da prisão ou favorecem
a mudanças deste. O padrão verbal, dominante nas relações em geral dentro
do PCPA, concorre com outros níveis de comunicação, por exemplo, o
corporal, o gestual e o verbal informal, através do uso de uma linguagem
própria. Pode-se citar o silêncio como uma metacomunicação que não é falada
mas que sua carga pode ser sentida quando condensa o clima de violência nos
diferentes grupos dos apenados.

Como esses não apresentam espaço interno para que os sujeitos


possam participar, contra-argumentar, enfim, serem autônomos e se
comunicarem em todos o níveis, torna-se inevitável a alta incidência de redes
informais e paralelas aos diferentes processo grupais, esvaziando com isso
suas forças internas de coesão dentro da organização do PCPA como um todo
e a predisposição dos sujeitos e grupos diferentes interagirem sem fazer uso
da coerção.

As regras de convivência e liderança:

Os critérios de divisões entre os grupos e as regras de convivência são


rígidos e severos quanto ao seu cumprimento. Segundo os funcionários
pesquisados, 60% confirmaram que os presos são solidários entre si e 83,3,2%
achavam que os presos são unidos por um “código de silêncio” com regras
bem definidas; e 90,5% indicaram que existe um “código penal” entre os
mesmos.
116

O mesmo foi indicado pelos presos, em que 72% afirmaram que os


presos são unidos por um “código de silêncio” e 55% disseram que existe um
“código penal” entre os mesmos.

Por isso, torna-se importante destacar algumas regras de convivência e


punições mais assumidas dentro do PCPA:

a) não cobiçar a família, pois é sagrada, algo intocável. Mesmo um preso


que não seja respeitado ou considerado pelos demais, tem sua família
respeitada. Ninguém pode dirigir a palavra, olhar ou perturbar a visita se
não for autorizado. Quando um familiar passa por um preso desconhecido,
esse último deve baixar a cabeça em sinal de respeito;

b) não mentir, pois o valor de uma palavra tem alto preço e muitas vezes é
selada com a própria vida ;

c) não “vassourar”, pois apropriar-se de um objeto de outro preso não é


considerado roubo, pois quem rouba de ladrão é considerado “vassourão”.
Se alguém “vassourar”, corre o risco de sofrer sérias punições, que vão
desde agressão verbal, física até a morte dissimulada como suicídio
(enforcamento ou picadas de seringa);

d) não intrigar através de fofocas, pois é o que mais desarticula a união do


grupo. São chamados de “chavequeiros” ou “dedo-duros” aqueles que
semeiam brigas e discórdias entre os presos. Quando são desmascarados,
ficam marcados por esse rótulo.

No depoimento abaixo, pode-se evidenciar as regras de convivência e a


forma de responsabilização e enfrentamento dos “desvios”:

“Esta questão aí é natural numa galeria de


300 presos, que vivem lá dentro, eles têm que se
organizar. Eles se organizam, têm as lideranças, têm
as suas normas, têm as suas regras, é natural para
o ser humano, e acontece aqui no Presídio Central,
117

têm seu código penal, têm suas normas, cada grupo


se organiza, uns se organizam melhor de acordo
com o perfil da liderança e outros são mais
desorganizados, até pela própria higiene a gente
verifica quais são os mais organizados, mas isto aí é
uma coisa assim que é natural, é do próprio
grupamento humano. E lá no fundo também as
próprias galerias embora elas sejam localizadas lá
no fundo, elas têm características próprias. E estas
características elas variam de grupo para grupo, e
veja assim, reflete um pouco lá de fora, como é
dentro da sociedade com determinados bairros têm
determinadas características, isto vem junto para
cá.” (grupo de discussão BM)

Foi possível, portanto, constatar na pesquisa que os diferentes grupos


(presos e funcionários) no PCPA, assim como microorganizações, contêm
particularidades que tornam singulares e autônomos seus funcionamentos,
mas também dependem e influenciam a Organização através das forças
existentes no interior desse grupo. Contudo, a dinamicidade das forças grupais
do PCPA se espelha num paradigma de relações orientadas pela e na
violência, pois se desenvolve numa arena onde as experiências dos grupos se
movimentam através do e para o conflito. Os grupos acabam não tendo
recursos suficientes para atender a todas as necessidades internas e a todas
exigências externas. Sempre haverá limitações de tempo, de recursos e
principalmente de liberdade de ação e expressão. Embora os conflitos possam
ser diminuídos através de diferentes estratégias (repressão, ameaça, prêmio),
as soluções quase sempre são acompanhadas por novas tensões.

Foi identificado que a capacidade de adaptação e reprodução da


violência é o que torna os diferentes grupos da prisão passíveis de
sobrevivência, isto é, quando os recursos são eliminados pela escassez ou
falta de recursos humanos e materiais como higiene, medicamento,
118

alimentação, surge uma capacidade de auto-organização que expressa, nesse


sentido, diferentes modulações da violência.

Seguindo a ótica de MORGAN (1996), ao analisar-se a organização do


PCPA a partir de imagens metafóricas, foi possível identificar-se vários tipos de
metáforas que se entrecruzam. Inicialmente o PCPA, em sua trajetória, tem
como forma marcante de organização, principalmente a partir da gestão da BM
em 1995, um processo mecânico de funcionamento, ou seja, organizava-se
através do autoritarismo, da mecanização do tempo, do controle das atividades
e dos movimentos das ações, através do uso da burocracia, da vigilância e da
força. Os movimentos eram reprimidos de todas as formas- verbal e física- e
ocorriam principalmente através de ofícios e listas com nomes que passavam
por uma estrutura verticalizada.

Identificou-se também a metáfora do cérebro, estrategicamente de


forma sábia, ocorrendo mudanças nos mecanismos de controle e poder. Esse
se torna mais flexível, articulando-se entre os diferentes tipos de grupos,
complexificando mais as relações e tornando-as mais estratégicas- com mais
diálogo, reuniões com os diferentes prefeitos, acertos, cumprimento de
promessas etc.- para se lidar com as limitações e incertezas que o cotidiano
apresentava.

Verificou-se que essas características contribuíram para que o PCPA,


por mais interligado e dependente de outras esferas do sistema penal,
constituísse um processo de auto-organização que, apesar do fluxo enorme de
pessoas que entrassem e saíssem e das limitações e falta de recursos, fazia
com que a cadeia tivesse um constante movimento e nunca entrasse em
colapso. É importante frisar que esse processo auto-organizativo tornou mais
sutil e complexo o jogo de forças e dominação de um grupo sobre o outro. Por
exemplo, a dominação da BM através da força que se mostrava explicitamente
no uso de armas e era duramente atacada por todos, principalmente os
militantes dos direitos humanos, passou a ser legitimada por muitos grupos de
presos, pois isso „impôs‟ o respeito que havia sido perdido com os agentes,
gerando um clima de proteção. Esse espaço de confiança foi sendo
119

conquistado, por exemplo, com a construção das salas-piloto como um lugar


esteticamente bonito, com um bom clima para recepção, e esta foi uma
conquista perante a massa que tem na visita um bem valorizado nas relações
de troca e ao mesmo tempo de sustentação da ordem. A proposta de respeito
e um relacionamento amigável com prefeituras e plantonistas que muitas vezes
foi possível presenciar, constituíam-se em formas sutis de controlar as rotinas
das galerias a fim de descobrir tentativas de fugas e evitar amotinamentos. O
acordo implícito era: manter a galeria em ordem e que todos sairiam “limpos”
pela porta da frente no tempo legal previsto no processo da execução penal .

Por outro lado, esse processo de vocalização dos sujeitos apenados foi
um dos fatores que contribuíram para organização mais complexa das facções
e, ao mesmo tempo, fortaleceu as relações de dominação do comando da BM.
Dar voz às necessidades de agrupamento e segurança do recém chegado
estimulou a distribuição dos sujeitos apenados em diferentes galerias com
diferentes comandos. Isso possibilitou o equilíbrio das diferentes forças dos
diferentes grupos. Essas forças contrárias eram referendadas pela gestão da
BM , garantindo que um grupo de presos que não se entrosasse com o outro
jamais ficariam próximos, “protegendo-os” da autodestruição e garantindo o
controle da ordem sob o comando da BM.

Pode-se observar que houve uma familiaridade com a necessidade de


uma nova ordem militarizada entre grupos de presos e funcionários, pois
ocorreu uma identificação na cultura das galerias, através dos seus códigos e
regras rígidas de convivência, com o processo de militarização do PCPA.

Constituir, então, um olhar que possa captar a prisão – PCPA - na ótica


da complexidade significa trazer à tona as diferentes variáveis que interferem
na produção e dinâmica dos diferentes grupos dessa organização. Além disso,
requer trazer para região luz47 aspectos das dinâmicas grupais que se

47 Segundo MOSCOVICI(1988) região luz de uma organização representa todos os aspectos concretos, físicos e
formais do ambiente e das dinâmicas grupais que podem ser observados e que são institucionalizados. Por exemplo,
objetivos do PCPA, Estrutura, funcionamentos, os recursos, a comunicação, as normas etc.
120

encontram na região sombra 48, ou seja, da violência. Para tanto foi importante
captar qual o significado desse fenômeno para os sujeitos pesquisados.

2.6 Indicadores da Violência do Ponto de Vista dos Sujeitos Pesquisados

Considerando o questionário junto aos presos, 83,5% deles disseram


que não corriam risco de vida na prisão e ainda 92,4% afirmaram que não
sofreram violência dentro da prisão e 7,6% afirmaram que sim. Em outra
questão sobre o tratamento oferecido pelos presos, 75,7% acreditavam que os
brigadianos eram bem tratados por eles. Quanto à família, 84,5%
consideravam que era bem recebida na prisão. Contudo, em outra questão
sobre a revista íntima, 55,4% disseram que os familiares eram tratados com
violência moral, ao passo que 39% disseram que a família era tratada com
respeito e dignidade. Esses números devem ser considerados em relação ao
significado da violência para os sujeitos respondentes. Comumente, pensa-se
em violência física. As falas abaixo ilustram as diferentes concepções de
violência e que a mesma pode se manifestar em diferentes significados:

Na fala de alguns entrevistados, a violência no PCPA manifesta-se a


partir da falta de gestão da política penitenciária e da falta de acesso a direitos
sociais previstos na LEP.

“A violência pra mim ela é identificada sempre


que há a supressão arbitrária de um direito. Sempre
que se suprime arbitrariamente um direito nós
estamos diante de uma prática violenta. Porque
supressão arbitrária: porque há certos direitos que
podem ser suprimidos de forma consensual, de

48 Segundo MOSCOVICI (1988) a região sombra concentra todas as minúsculas modulações da violência e os
aspectos subjacentes, que não são vistos mas estão presentes de tal maneira que sua ação tem força de impacto no
funcionamento dos aspectos mais aparentes. Tornam-se uma espécie de “força oculta” que quando não assumida
condensa-se na organização da prisão. Inserem por exemplo: sentimentos de rejeição, a espera, as projeções, os
medos, os códigos velados, o silêncio etc.
121

forma democrática. O próprio ato de prisão é


a supressão de um direito básico, no caso a
liberdade; mas que se for feito nos marcos da lei,
dentro de um estado democrático de direito não é
uma supressão arbitrária, é uma supressão legal,
legitimada. Agora, para mim o diferencial para
separar uma prática violenta de uma prática não
violenta é se nós identificamos ou não a supressão
arbitrária de um direito. E por isso eu acho que os
presídios são uma realidade especialmente violenta,
porque ali dentro inúmeros direitos dos presos são
sumariamente subtraídos, sem que haja nenhum
procedimento legal que autorize isso. Praticamente
toda a conduta prisional, a prática de administração
prisional ela está fundamentada em posturas
tradicionalmente defendidas dentro dos presídios e
que são supressivas de direitos, sem base legal para
isso. Então ela é a própria realidade da
violência.Desde a entrada do preso dentro de um
presídio, quando ele é submetido a uma revista
íntima, quando as suas concavidades corporais são
examinadas, a forma como eles se dirigem a ele, a
forma como as pessoas o abordam dentro do
sistema. A exigência de que ao caminhar por dentro
do presídio ele tenha que às vezes caminhar dentro
de uma área demarcada por uma linha, ou caminhar
de braços cruzados, ou virar contra a parede o rosto
quando passa alguém. Quer dizer, nestes
procedimentos elementares (...) de abordagem do
preso já se denuncia uma relação de violência.
Depois, quando ele é alojado dentro de uma galeria
(...), ele fica entregue à realidade da mais absoluta e
122

pura violência, porque ali dentro como não há


separação individual dos presos, as regras que
governam essa convivência são regras violentas.
Impostas pelo predomínio do mais forte, na base da
ameaça etc. Então a relação interna entre os
próprios presos é também uma relação muito
atravessada pela violência. A prisão em si mesma é
uma instituição estruturalmente comprometida com a
violência. O Presídio Central de Porto Alegre, a
realidade do Central ela consegue combinar uma
série de perversões do próprio sistema. Então nós
temos de um lado superlotação dentro do presídio,
as pessoas empilhadas, sem terem condição de
serem tratadas individualmente como seres
humanos (...). No Brasil a rigor não há pena
individualizada, como manda a lei. Os presos são
tratados como se fosse uma massa uniforme. Então
no Central isso é muito evidente, isso implica a
mistura de presos com potenciais totalmente
distintos entre si, com tradições diferenciadas, com
riscos diferenciados, que acabam (..) convivendo no
mesmo espaço; isso é horrível prá realidade de
recuperação prisional. Um presídio onde via de regra
os presos não trabalham, quando trabalham em
tarefas de manutenção, o que significa que não se
profissionalizam. Onde os presos não estudam via
de regra (...), não há oportunidade de estudo, então
as pessoas são presas pelo Estado, passam anos
dentro de uma cadeia e saem de lá piores do que
quando entraram, sem terem aprendido nada, a não
ser o que há de pior na relação com os demais,
submetidos a toda a sorte de ameaças, de violência,
123

de riscos a sua integridade física e a sua própria


saúde. A situação de convivência nessa massa
carcerária onde os presos com tuberculose estão em
convívio com os demais, onde presos soropositivos
convivem com os demais, quer dizer, há um risco
permanente de contaminação; grande parte dos
presos do Rio Grande do Sul e do Central
especialmente são portadores da maior parte de
doenças de pele e bronco-pulmonares que se
imagina. Então, toda a situação (...) interna do
Central é uma situação muito comprometida, enfim.”
(entrevista com o sujeito 04)

“Os governantes e os políticos serem tão


despreocupados com o povo e tão preocupados
consigo mesmos, eu acho a pior forma de violência;
pois é essa violência que gera todas as outras (...). A
violência que os presos cometem para ir para o
Presídio é até ridícula perto da violência cometida
pelos governantes. A mídia é outra forma de
violência, é até virulenta. Faz uma grande inversão
das coisas (...).” (entrevista sujeito 01)

“A violência que mais se expressa é a


questão da Justiça (...). É uma forma terrível de
violência. As pessoas que estão cumprindo pena,
que já terminaram de cumprir a sua pena, e estão
esquecidas. Essa é a violência maior que tem (...). A
maior violência é da Justiça, que está gerando mais
revolta entre os internos.” (entrevista sujeito 06)

“Hoje a violência que existe nos presídios e a


má administração é conseqüência de um governo
que só pensa em seu próprio benefício e poder, e se
124

esquecem que aqui existem seres humanos que


precisam urgente de ajuda.” (questionário 33)

“Não estou de acordo com a metodologia dos


exames para progressão de regime, pois os mesmos
são tendenciosos e não estão de acordo com a LEP.
Não há acompanhamento psicológico e social. Tu só
vê a cara da psicóloga no dia do exame que é no
máximo de 20 minutos. Tudo não passa de uma
farsa para garantir e inchar esse cabide de emprego
que é a SUSEPE.” (questionário 316)

Tais referências assemelham-se à realidade apresentada no item 2.1 e


denunciada pelos militantes dos direitos humanos e por denúncias feitas em
nível nacional quanto à degradação do cárcere brasileiro.

A violência se manifesta também a partir do discurso sobre a pena falida


e a imagem que a sociedade tem da prisão:

Nas falas transcritas abaixo, explicita-se um significado de violência


vivenciada no PCPA associado à relação deste com o meio externo e
expectativas como forma de uma violência simbólica:

“O discurso da ressocialização dentro do


sistema carcerário se transforma num discurso de
manutenção da segurança e de manutenção da
disciplina, ou seja, num pensamento quase
militarizado, quer dizer, no caso de Porto Alegre e do
Presídio Central, não apenas no simbólico, mas no
real, que é tido com esta meta disciplinar de
segurança, ou seja, não existem direitos, os direitos
são colocados sempre como condicionais à questão
da segurança, numa disputa entre segurança e
direitos do preso vai prevalecer a segurança, uma
125

disputa entre direito e disciplina, vai permanecer a


disciplina. E por ser uma categoria tão ampla fica
difícil estabelecer um conceito específico do que é
violência. Mas, a mim me parece que a melhor forma
de trabalhar com este conceito, é trabalhar com as
perspectivas de anulação, aniquilação ou eliminação
do diverso, do outro, acho que partindo deste
pressuposto, que seria uma sintonia de violência
com intolerância daí eu acho que dá, no meu modo
de ver, para entender todas as relações de violência,
inclusive a violência institucional que é a do Estado
contra o indivíduo. Então me parece que o centro da
violência está na tentativa de aniquilar o diferente,
daí dá para ver pelo aspecto internacional a tentativa
de impor um pensamento único também é uma
forma de violência porque exclui a possibilidade de
um pensar diferente... vai desde a relação
internacional à relação doméstica, bem Foucaltiano,
microfísico mesmo, uma estrutura de pensamento
que pulveriza e parte do pressuposto de que a
existência do outro, ela tem que ser eliminada, no
sistema carcerário isto é muito forte... É, fazendo
este gancho, fica muito clara esta relação, porque
todo o trabalho mesmo oficial, inclusive das funções
da pena dentro do sistema carcerário é no sentido
de impor um determinado padrão de conduta a uma
determinada pessoa diferente, que está ali por
inúmeras circunstâncias, daí esta é uma outra
questão, mas está ali, que se apresenta como
diverso e o discurso é padronizar o seu
comportamento é transformar o ser daquela pessoa
no ser único. Imposição de uma moral, por isso,
126

assim que eu tenho uma crítica muito forte com a


própria questão da ressocialização, ao fundamento
socializador da pena, é claro assim, todo mundo já
disse, eu acho que não tem mais que escrever, que
a prisão não ressocializa, bom isso é uma questão, é
chover no molhado, não há nada de novo em afirmar
isto. A questão que eu estou propondo é a seguinte:
E mesmo se ressociabilizar, seria legitimo impor um
determinado padrão de comportamento para outra
pessoa, só pelo fato dele ser diferenciado? É
legítimo isto, isto não é uma característica do
pensamento intolerante também e violento? E daí dá
para ver nestas relações com agentes, isso fica
muito claro, primeiro que não se tem uma idéia,
exatamente do que é a ressociabilização, acho que
ninguém tem, eu não tenho. Moralmente,
normalmente se faz uma sintonia, uma aproximação
do conceito de ressociabilização com a não
reincidência, que são coisas absolutamente
diversas, penso ao menos. E este esta disciplina é o
pensamento único , é o padrão (...), então vai por aí
também a idéia de que, ao menos a minha idéia de
que este discurso da ressociabilização deve ser
abandonado, causa mais prejuízos do que
vantagens pensando no aspecto concreto, aliás bem
antropológico daquela pessoa que está presa.”
(entrevista com sujeito 05)

“Que tanto a sociedade que só conhece o


que vê na TV (rebeliões, fugas e tragédias), como o
poder judiciário deveria reconhecer que existe
recuperação para a maioria dos presos”.
(questionário 178)
127

“Neste item que diz acompanhamento de


psicólogos acho que seria importante que a pressão
que todos sofrem aqui dentro do presídio não é só
uma pressão interna do preso, daquela questão
assim de rebelião, de fuga, de risco de vida, mas
também existe a pressão externa, e esta pressão é
grande, os vários órgãos da sociedade, da imprensa.
A imprensa infelizmente, ela com relação ao presídio
ela é tipo assim meio „abutre‟. Ela não quer saber o
que está acontecendo de bom aqui dentro, ela quer
saber o que está acontecendo de ruim, aí sim
interessa a ela. Então se ela quiser, entrar aqui
dentro, ter alguém aqui dentro, ela vai ter alguém
para ver o que está acontecendo de ruim, se deu
rebelião, se alguém foi mal tratado, mas se a
Assistente Social está fazendo um trabalho bom de
acompanhamento, se a questão psicológica está
sendo acompanhada, se eles estão contentes com o
tipo de trabalho, isto não interessa para ela. Então,
isto aí causa pressão, porque ele é centralizado, ele
é dentro de Porto Alegre, então todos estão de olho
aqui dentro, autoridades, os órgãos que competem
fiscalizar o presídio, como a imprensa, e também a
pressão interna do próprio preso, saber que tem
mais de 100% de super lotação. Toda esta questão
é uma panela de pressão que vai estourar, então
não tem como alguém trabalhar aqui dentro e não
precisar de um acompanhamento psicológico. De
repente com alguns anos de casa, não para agora,
vai precisar.” (grupo de discussão com os
funcionários da BM).
128

“(...) A imprensa, nós tivemos o ano passado


um evento voltado para as famílias dos apenados no
domingo, teve um repórter da Zero Hora aqui, mas
durante a semana não saiu uma linha sobre o
evento. Foi um evento que atingiu bastante as
famílias, tivemos vários serviços aqui gratuitos e não
saiu uma linha se quer do trabalho desenvolvido. E
outra coisa (...) nós tivemos experiência aqui antes,
nós variamos a nossa revista geral e era fechado e
foi um horror, a nossa primeira revista aqui foi um
horror com tanto telefonema pedindo entrevista.
Ficou estipulado que ninguém daria entrevista,
nenhuma declaração, ao final saiu um relatório com
todos os dados. Mais foi uma pressão aqui terrível.
Depois, isto que na primeira nós tínhamos isolado a
frente, depois na segunda fizemos com este grupo
que ia ser revistado, nós fizemos e não isolamos a
rua da frente, a única coisa que saiu só foi os
documentos de praxe: AB, o documento do não
atendimento parlatório e a nota para a imprensa
ficou à disposição no portão de entrada por dois dias
e não veio uma ligação sequer, o cenário estava
calmo aparentemente não tinha nada de diferente
porque o cenário, a estrutura externa estava
exatamente igual aos outros dias, mas se nós
colocarmos hoje sem fazer nada, podemos ficar aqui
discutindo este assunto, mandar botar dois
cavaletes, mandar trancar a rua aqui na frente já
desperta a curiosidade. – O que está sendo feito? –
Não nada, estamos conversando sobre um trabalho
que está sendo feito aqui. - Ah, pensei que fosse
rebelião.- Aí vem aquele sentimento de frustração,
129

porque o repórter pensa que vai pegar uma


reportagem sobre rebelião. Também tem este
aspecto.” (grupo de discussão com os funcionários
BM)

A violência se expressou também como processo de organização dos


presos:

“Uma coisa que eles acham aqui que é


violência, é quando eles entram aqui, eles não
aceitam, digamos as regras deles mesmos. Aí vem
aquela não aceitação de quem está na galeria
comandando o regulamento. Ocorre muitas vezes, a
gente tem notado, eles próprios relatam que vão ter
que aceitar as regras impostas. Alguns presídios, por
este Brasil afora, isto vem a ser a principal causa
das mortes, aqui nem tanto, aqui vamos dizer assim,
os apenados são bem privilegiados, porque o tipo de
direção que tem aqui... porque em outros presídios
do Brasil, com outras éticas que são colocadas, este
fator aí, se torna o principal (...) a não aceitação de
quem está na liderança é morte, para nós também é
um fator de violência. Aqui é claro não tem
acontecido, mandam o cara arrumar outro lugar para
ficar.” (grupo de discussão BM)

“A violência física, ao que nós sabemos, só


existe entre presos, entre eles mesmos, pois eles
têm leis, regulamentos, que quando não são
obedecidos partem para agressão física.” (entrevista
07)

“Dentro das galerias existe violência. Se


transpira alguma coisa assim (...). Eles têm leis de
130

silêncio e tal, mas volta e meia a gente fica sabendo


de alguma coisa. Claro, eles estão dentro de uma
galeria, 160, 170 homens (...). É até natural, até
dentro de família a gente briga, tu imagina pessoas
de tudo quanto é tipo juntos.” (entrevista 08)

Surgiu também a expressão de violência como sofrimento advindo do


não Cumprimento do lapso temporal para progressão de regime e/ou
livramento condicional, o que produz uma incerteza em relação ao tempo da
pena:

“E outra coisa a demora dos processos que


levam meses até anos para serem resolvidos e as
pessoas ficam à disposição da violência e
pobreza...se tudo fosse mais rápido e melhor
dividido não haveria tantas mortes e rebeliões.”
(questionário 268)

“A justiça no Brasil é muito lenta, tem muitos


casos que o preso fica até um ano sem ser ouvido
numa audiência. E pior... quando se é julgado
inocente já era... pois depois que ficar todo esse
tempo na prisão não dá para ficar inocente o resto
da vida.” (questionário 1044)

“Gostaria de dizer para o juiz que eu aprendi a


lição. não tenho capacidade física e psíquica para
suportar esse lugar. Por favor tirem-me daqui eu
quero criar o meu filho que está sem o pai.”
(questionário 50)

Essa teia de expressões da violência nos remete à hipótese central


desse trabalho que afirma que: “A violência da sociedade contemporânea tem,
nas grandes prisões, o lugar privilegiado para se condensar e se expressar
131

através de uma teia de significados. Para captá-la, faz-se necessária a


constituição de um olhar complexo sobre o fenômeno, o que possibilita analisar
a prisão não somente como um espaço institucional de manifestação do
excesso de força e do poder de punir - através do controle, vigilância e
disciplina, mas também, como organização que vem produzindo vida social,
rupturas com o projeto idealizador da pena e outras estratégias para combater
a violência institucional, como o silêncio e a potência da socialidade dos
apenados, a luta pelos direitos humanos e sociais via área técnica e sociedade
civil. Seriam essas as estratégias que vêm abrindo brechas para que sejam
propostas novas alternativas à violência da própria pena privativa da liberdade.”

Para tanto, os capítulos subseqüentes visam a aprofundar e demonstrar


a operacionalização das cinco premissas que sustentam a hipótese.
“...o mundo das instituições pode ser concebido como um
grande rio que flui através do tempo. Aqueles que por um
momento viajam em suas águas, ou vivem às suas
margens, continuamente atiram objetos nele. Na sua
maioria, estes vão ao fundo ou se dissolvem
imediatamente. Mas alguns deles se consolidam e são
carregados por um período mais curto ou mais longo.
Apenas uns poucos percorrem todo o trajeto, chegando à
foz, onde este rio tal qual todos os outros, se despeja no
oceano do olvido que é o fim de toda a história empírica”
(Peter Berger e Brigitte Berger)
3 OS OLHARES QUE IMOBILIZAM

Nesse capítulo pretende-se demonstrar a premissa I a partir de


indicadores que expressam a ambivalência dos discursos sobre a pena
privativa de liberdade.

3.1 Dialogando com os Teóricos: as Possibilidades do Lugar

Para analisar a questão da institucionalização da pena privativa de


liberdade e seus fins, é importante ressaltar o entendimento da sociedade
como uma rede de instituições que constitui

“árvores de composições lógicas que, segundo a


forma e o grau de formalização que adotam podem
ser leis, podem ser normas e, quando não estão
enunciadas de maneira manifesta, podem ser
pautas, regularidades e comportamentos”.
(BAREMBLIT, 1996)

Para vigorarem e cumprirem suas funções, as instituições necessitam de


organizações que sejam a materialização em dispositivos concretos de
interações. Ou seja, de estabelecimentos que efetivamente coloquem em
prática os seus fundamentos. A linguagem, a família, a religião, a pena seriam,
nessa ótica, exemplos de instituições estruturantes das relações sociais.
134

Qualquer instituição compreende um movimento que a gera: do


instituinte- organizante - a um resultado instituído – organizado - e um processo
de organização, que passa pelo processo de ordem-desordem (MORIN,
1977)49

Portanto, a instituição de normas penais na solução de conflitos


delituosos é um processo que está intimamente relacionado com o processo
histórico-social de surgimento de estruturas de poder verticalizadas e
centralizadas nas sociedades ocidentais.

A respeito da trajetória dos crimes e das penas, DURKHEIN (1977)


analisa que a evolução dos fenômenos considerados socialmente como crimes
favorece a evolução das penas. É a cultura50 (GARLAND, 1999) que nós
expressamos sobre o fenômeno “crime”, que constrói o que é e qual tipo de
pena. Por isso torna-se importante: a) contextualizar os fatores
desencadeantes de um tipo penal; b) o meio que a coloca em relações com a
ordem moral; c) e as diversas mentalidades e ”sensibilidade cultural” e
emoções a influenciar o nascimento e a falência das instituições penais.

Assim, acredita-se ser importante assinalar, correndo o riso da


simplificação, a trajetória que alguns historiadores da pena realizaram e que foi
sistematizada por OLIVEIRA (1996). Identifica-se nessa ótica que, durante o
passar dos tempos, em torno das mais variadas culturas, tem-se a trajetória da
pena dividida nos seguintes períodos: a) a vingança privada que era a reação
da parte ofendida contra quem lhe havia cometido o mal. b) vingança coletiva,
que era realizada através do clã que se colocava ao lado do ofendido. c) a
vingança do sangue, onde havia a vingança pelo sangue do crime praticado,
sendo este por um membro de outro grupo. Este tipo também situava-se dentro
da estrutura familiar. d) vingança limitada, que possuía dois tipos - Talião

49 A noção de organização é circular, constitutiva de relações, formações, invariâncias que circularmente a constituem.
Por exemplo, a organização da pena privativa de liberdade deve ser analisada como organização de sua própria
organização(MORIN, 1977,p.129).
50 O termo cultura na ótica de GARLAND (1999) tem um sentido amplo, compreensivo de todos os fenômenos cognitivos, notados
como mentalidade (valores, categorias, sistemas de idéias, também daqueles relativos aos afetos, emoções, denominados
sensibilidade).
135

Material e Talião Simbólico51. e)período da Vingança Divina. Dentro desta nova


fase da evolução das penas os indivíduos tinham de seguir normas de conduta
provenientes dos deuses.Os delitos eram ofensas aos deuses, já que a religião
era o direito da época. A pena continuava dominada pelo sentimento de
vingança. f) período da vingança pública em que surge a autoridade pública e o
Estado Público fortalecidos e que, por isso, poderiam sobrepor-se. Isso levou à
aplicação da pena ao ofensor e atribuiu-se ao Estado o dever de aplicá-la.

A principal conseqüência do último período assinalado aconteceu em


Roma, durante o período da República, quando surgiu a Lei das XII Tábuas,
contendo 32 preceitos penais, ocorrendo, mais tarde, a transformação da
prática penal em um cunho eminentemente público. Durante a Idade Média
dava-se ênfase aos crimes religiosos, sendo as penas requintadas de
crueldade. Crueldade esta que, mesmo com as intervenções contrárias da
Igreja, continuou na Idade Moderna. A pena de morte era uma constante. Estas
penas, porém, não se resumiam apenas à privação da vida dos criminosos,
num processo lento que era destinado a impressionar o povo. As execuções
eram públicas, o povo tinha um papel de destaque por ser o espectador e a
testemunha da punição (FOUCAULT, 1997; OLIVEIRA, 1996).

O Direito Penal entra então numa fase humanitária, quando passa a ser
instrumento de controle e manutenção da ordem e da segurança pública, com
a difusão dos ideais iluministas. Foi Marques de Beccaria que, nessa época,
tornou-se referência dos penalistas ao manifestar-se contra as penas cruéis e
imoderadas, o sistema legal, os julgamentos e a pena de morte (BECCARIA,
1959).

Mesmo considerando-se as diversas teorias modernas52 da pena já


formuladas pelos diferentes teóricos da penalogia, pode-se dizer que a pena

51 No talião material, havia a proporcionalidade entre delito cometido e pena imposta. Na fase do talião simbólico se
está diante de um avanço das penas que surge para atingir delitos não abrangidos pelo Talião Material, suas penas
eram menos rigorosas, porém de maior expressão. Nesta fase o criminoso poderia reparar o crime sem lhe ser imposta
uma pena, sendo esta substituída por uma multa a ser paga ao ofendido. Este período foi chamado de sentimental,
pois o sentimento era quem regia a justiça. (OLIVEIRA, 1996)
52 Para aprofundar a questão das teorias modernas do Direito Penal indica-se “Pena e societá moderna. Uno studio de
teoria sociale”, de David Garland (1989).
136

possui tripla finalidade, a saber: finalidade preventiva de forma geral, preventiva


de forma especial e finalidade de readaptação social.

a) É preventiva geral, na medida em que visa a evitar a prática de


crimes intimidando-se a todos da sociedade diante da norma, com a
aplicação da pena. Acredita-se que, através da ameaça da sanção,
pela coação psicológica, e a difusão do temor que a perspectiva da
punição gera, se possa impedir a delinqüência;

b) a finalidade preventiva, de modo especial, na medida em que afasta


da sociedade e do convívio social o sujeito que delinqüiu, evitando
que este venha a reincidir, praticando novos delitos;

c) por último, a finalidade de readaptação social do indivíduo,


preparando-o para o retorno ao convívio social por meio de
assistência educacional e profissional, formando pessoas úteis e
produtivas para a sociedade. Pode-se dizer que modernamente a
pena deixou de ser vista como forma de pagamento pelo delinqüente
do crime que cometeu. Com esse discurso, nega-se o caráter
retributivo da pena (PAVARINI, 1999).

Em outras palavras, a pena representa a supressão de um bem jurídico,


podendo ser esse bem representado pela vida, a integridade física, a liberdade,
um direito ou a privação ou diminuição do patrimônio. Pode ser ela de natureza
corporal, de privação de liberdade, de multa ou de privação de direitos, mais
em voga hodiernamente. A pena corporal tem sua maior expressão na pena de
morte. A privação de liberdade, mediante recolhimento celular, é pena recente,
137

como será visto adiante. Consiste no aprisionamento em celas como forma de


pagamento, de retribuição ao delito praticado e como prevenção social. A pena
de multa consiste na diminuição patrimonial como forma de retribuição pelo
delito cometido. E, por último, as penas restritivas de direitos, em substituição
às penas privativas de liberdade, consistem na restrição de um direito como
punição pelo crime praticado (BERGALLI, 1983).

Quanto aos objetivos da pena, muitas teorias tentaram explicá-los. Não


há uma perspectiva homogênea e muitas vezes nem assumida ou reconhecida
pelos operadores do poder punitivo (magistrados e operadores do sistema
penal em geral). O objetivo da pena, para uns, representa a possibilidade de
castigar o delinqüente em retribuição ao mal praticado (fim retributivo). Para
outros, o fim da pena é a segregação ou eliminação, como defesa social (fim
de contenção e proteção social). Outros a vêem como intimidação, e para ser
eficiente em relação a todos, precisa ser efetiva em relação aos que
transgrediram a lei penal (fim de prevenção). Outros apontam a finalidade do
reerguimento pela educação do criminoso (fim terapêutico/educativo)
(PAVARINI, 1999).

Contudo, desde o seu nascimento, a instituição dos processos penais


tem uma dimensão irracional e não possui discurso próprio, assumindo um
modelo retórico, ora policial, de perseguição ao infrator de situações legais pré-
definidas, ora reparador, de ajuste do infrator à situação contratual rompida,
conforme convém a cada momento político. Essa situação está em curso há
700 anos e pouco tem mudado em sua essência. O processo iniciou nos
séculos XII e XIII e adquiriu sua estrutura teórica e contornos retóricos no
século XV, com a perseguição às bruxas (ZAFARONI, 1997).

Estando a cargo de diversos agentes políticos (senhores, reis,


presidentes, legisladores, magistrados etc.), os processos de decisões penais
despersonalizam e burocratizam os conflitos, inclusive sob o aspecto de
tratamento das vítimas, que não são mais do que partes a serem consideradas
de maneira objetiva e impessoal no conflito, a fim de justificarem a eficiência
legal e caricaturada de imparcialidade, das decisões das instâncias
138

competentes de poder (ZAFARONI, 1997). Nos dias atuais, o Estado, mais do


que mediador, torna-se proprietário dos conflitos, despersonaliza-os e assume
o lugar da vítima.

Entende-se que a pena não seja uma encarnação da sensibilidade


decorrente de uma política social determinada somente pela esfera econômica
(GARLAND, 1999), mas também um fator que contribui para estabilizar os
princípios políticos morais e formar o universo simbólico de ordem: que
interpreta cotidianamente os eventos e produz (comunica) significados, não só
sobre o delinqüente, sobre o crime e sua punição, mas também sobre o seu
poder.

Nesse sentido, a instituição pena privativa de liberdade é um fio que se


articula a todos os níveis da organização complexa das instituições da
sociedade contemporânea, é uma instituição social altamente elaborada, à qual
o ser humano confere múltiplos sentidos e trata a complexidade dos
fenômenos também a partir de suas necessidades, relações e conflitos.

 A Pena de Prisão

A prática de privação da liberdade, através da reclusão social, apresenta


uma leitura não homogênea quanto a sua gênese, metodologias e à disciplina
oferecida. Entretanto, alguns aspectos devem ser destacados, como por
exemplo FOUCAULT (1999) que identificou na prática de profilaxia social e na
baixa idade média frente ao perigo do contágio da lepra, os grandes
motivadores das construções de lares asilares. Já PAVARINI (1996) e
MELOSSI (1982) mostram que a prisão já era uma prática punitiva conhecida
no mundo clássico, aplicada como resultado de confrontos de algumas
condutas transgressivas dos escravos e que se realizava através da
internação. PAVARINI (1996) indica uma lista de experiências que demonstram
a produção de uma cultura de adestramento do ser humano em ser mais útil e
da afinidade disciplinar longe de um modelo de uma fábrica, já que a disciplina,
139

antes de tudo, é uma categoria de cunho teológico, ou seja, o disciplinamento


do sujeito era antes de tudo uma relação clerical. A indagação e a articulação
entre os campos do poder religioso e o campo penal começam a surgir
somente a partir dos escritos dos reformadores dos séculos XVIII.

Por isso é que se deve ter o cuidado de se atribuir, por mais fontes que
se tenha, o momento histórico em que a prática da detenção legal passou a ser
exercida (PAVARINI, 1996).

É provável que a presença carcerária na época pré-moderna


respondesse essencialmente à exigência estranha àquela que nós
reconhecemos como específica de uma sanção criminal. Fica, porém,
circunscrito que somente entre o século XVII e XVIII a pena privativa de
liberdade se torna “a” pena institucionalizada (PAVARINI, 1996).

 A Pena Privativa de Liberdade no Brasil

No Brasil Colonial53, os portugueses passaram a aplicar nas novas terras


a sua legislação penal. O Quinto Livro das Ordenações descrevia os tipos e
suas penalidades, bem como as disposições processuais para sua aplicação. A
finalidade da pena tinha um caráter de prevenção geral. Ou seja, representava
a repressão dos delinqüentes pelo pavor da pena, pela prática do terror e pela
aflição do castigo cruel. A pena de morte era larga e amplamente utilizada, e as
penas infamantes eram abundantes em sua aplicação” (PIERANGELLI, 1980).

Verifica-se que no Brasil, até o advento do Código Criminal do Império,


não houve pena privativa de liberdade. O Código Criminal fixava graus para a
quantidade da pena a ser aplicada, grau máximo, médio e mínimo. Previa as
penas de morte, galés, banimento, degredo, desterro, multa, suspensão de

53 Os dados históricos apresentados aqui são uma síntese do estudo elaborado pelo juiz de direito do Estado de
Rondônia “A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE NO BRASIL: SEU PASSADO, O PRESENTE E AS PERSPECTIVAS
PARA O FUTURO” (NAUJORKS NETO, Adolfo Theodoro)
140

emprego, perda de emprego e de prisão. Previa também a pena de açoite, mas


com aplicação somente para os escravos. A pena de morte era executada com
a forca. A mulher grávida que fosse condenada à morte somente seria
enforcada após quarenta dias do parto. Os corpos dos enforcados eram
entregues aos parentes ou amigos, que não poderiam enterrá-los com pompa,
sob pena de prisão por um mês a um ano. A pena de prisão estava dividida em
três modalidades: a prisão perpétua com trabalhos forçados, a prisão com
trabalhos forçados e a prisão simples.

A pena de prisão perpétua condenava o criminoso ao recolhimento


celular até o fim da vida, encerrando-se com a morte. A pena de prisão simples
obrigava os criminosos a ficarem recolhidos nas prisões públicas, de
preferência próximas ao lugar do delito. Já a pena de prisão com trabalho
obrigava os condenados a ocuparem-se diariamente com o trabalho que lhes
era destinado dentro das prisões, na conformidade das sentenças e dos
regulamentos policiais das respectivas prisões.

O artigo 49 do Código dispunha que, enquanto não se estabelecessem


prisões adequadas para o trabalho, a pena seria cumprida como de prisão
simples, acrescida de um sexto. A grande maioria dos crimes eram
condenados com pena de prisão, simples ou com trabalhos, em seus três
graus, mínimo, médio e máximo.

O Código Republicano (1890) abandonava as antigas penas corporais


antes previstas no Código Criminal do Império, passando a apresentar um rol
mais extenso de penas privativas de liberdade. Estabelecia o Código Criminal
da República Velha oito espécies de penas: prisão celular, banimento,
reclusão, prisão com trabalho obrigatório, prisão disciplinar, interdição,
suspensão e perda do emprego público com ou sem inabilitação para o
exercício de outra atividade e multa. Portanto, previa como pena privativa de
liberdade a prisão celular, a reclusão, a prisão com trabalho obrigatório e a
prisão disciplinar. O artigo 43 do Código Republicano de 1890 dispunha que as
penas privativas de liberdade seriam temporárias e não excederiam a trinta
anos. A pena de prisão celular deveria ser cumprida com isolamento, em
141

estabelecimento especial, com trabalho obrigatório, observando-se que esse


isolamento deveria durar a quinta parte da pena quando esta não fosse maior
que um ano. Em sendo maior, deveria durar a quarta parte do total da pena.
Para o condenado à prisão celular em que a pena fosse maior do que seis
anos, ao cumprir metade da pena e demonstrando ter bom comportamento,
era-lhe assegurado o direito de transferência para penitenciária agrícola a fim
de cumprir o restante da pena.

Já a pena privativa de liberdade, na forma de reclusão, deveria ser


cumprida em fortalezas, praças de guerra ou estabelecimentos militares. A
pena de prisão com trabalho deveria ser cumprida em penitenciárias agrícolas
para tal fim, ou em presídios militares, e a pena de prisão disciplinar deveria ser
cumprida em estabelecimentos industriais especiais, onde deveriam ser
recolhidos os menores até a idade de 21 anos. Nessa fase observa-se a
introdução de mecanismos disciplinares com fins de retribuição.

Em 14 de dezembro de 1932, considerando que o Código de 1890 tinha


sofrido inúmeras modificações, tanto na classificação dos delitos como na
intensidade das penas, foi aprovado, mediante o Decreto 22.213, a
Consolidação das Leis Penais, de autoria do Desembargador Vicente Piragibe.
A Consolidação das Leis Penais aboliu a pena de banimento e criou a pena de
prisão correcional, que deveria ser cumprida em colônias a fim de reabilitar,
pelo trabalho e instrução, os mendigos válidos, vagabundos ou vadios, e
desordeiros.

O Código Penal de 1940 restringia as penas principais a três espécies:


reclusão, detenção e multa. A reclusão e a detenção, ambas penas privativas
de liberdade, eram temporárias e não poderiam ultrapassar o limite de trinta
anos. As penas privativas de liberdade eram executadas de acordo com um
sistema progressivo, dividido em períodos, no total de quatro: o inicial, em que
o condenado era submetido a isolamento diurno e noturno, passando para um
segundo período em que o condenado passava a trabalhar dentro ou fora do
estabelecimento. No terceiro período, o apenado podia ser transferido para
colônia penal, e no quarto e último período, o apenado poderia beneficiar-se
142

com o livramento condicional. A transferência para a colônia penal exigia


cumprimento de metade da pena quando essa não fosse superior a três anos
ou cumprimento de um terço da pena quando essa fosse superior a três anos,
além do bom comportamento. Já a pena de detenção ficou destinada para os
crimes de menor gravidade, devendo os condenados à pena de detenção ficar
separados dos condenados à pena de reclusão. O apenado com detenção
poderia escolher o trabalho que melhor se adaptasse às suas condições,
aptidões e ocupações.

Nesse contexto histórico do Brasil ocorre uma expansão de instituições


totais em geral como os manicômios, os reformatórios de “menores”, os asilos,
etc. O discurso jurídico, nessa fase, passa a assumir o caráter de profilaxia dos
doentes e desviante da ordem social.

Atualmente o sistema penitenciário brasileiro está regulamentado pela


Lei de Execuções Penais (LEP nº 7.210 de 11-7-1984) que, embora votada ao
final do regime militar e anterior à Constituição de 1988, é uma lei „moderna‟
que procura incorporar os princípios do Direito Internacional e Direitos
Humanos e Sociais.

A LEP determina como deve ser executada e cumprida a pena de


privação de liberdade e restrição de direitos, e é considerada pela maioria dos
juristas como um avanço em relação à legislação anterior que era de caráter
mais repressivo. Orienta os agentes públicos para a efetiva individualização da
execução da pena, aponta deveres, explicita direitos, dispõe sobre o trabalho
dos reclusos, disciplina e sanções; determina a organização e competência
jurisdicional das autoridades; regula a progressão de regimes e as restrições
de direito. Contém prescrições com relação aos direitos e ao tratamento que
deve ser dispensado aos sujeitos presos no cumprimento de suas penas,
privilegiando a socialização e não autorizando que esta seja obtida à custa de
punição adicional e intimidação. Nela encontram-se as normas para o
cumprimento das penas, bem como os direitos e deveres da população
carcerária. Por exemplo, a lei rege em seu artigo 10 que: "a assistência ao
143

preso é um dever do Estado e tem por objetivo, impedir a delinqüência e ajudar


o delinqüente a reintegrar-se na sociedade”.

O seu artigo primeiro deixa claro que a execução penal deveria cumprir
os ditames da sentença, mas também, "proporcionar condições para a
harmônica integração do condenado e do internado". Destaca a proteção de
"todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela Lei"

A LEP define as determinações fundamentais para a vida e as


expectativas da reintegração futura do condenado ao trabalho, a visita e o
alojamento.O trabalho é definido "como dever social e condição de dignidade
humana". (Art. 29), devendo ser remunerado (Art. 29) e servir como
instrumento de remissão da pena – 1 dia de pena para cada 3 dias de trabalho
(Art. 126, parágrafos 1º, 2º, 3º).

A visita é um instrumento fundamental para ressocialização do preso,


não só do cônjuge, companheiro (a), e parentes, mas também, de amigos (Art.
41, inciso 10), embora possam ser suspensas ou restringidas por "ato motivado
do diretor do estabelecimento" (Art. 41).

A LEP define taxativamente, que o alojamento será a cela individual,


com o mínimo de 6 m² (seis metros quadrados) e adequada salubridade
ambiental (Art. 88), sendo bem mais rigorosa que as Regras Mínimas da ONU.
No caso das penitenciárias femininas, ainda exige "seção para gestante e
parturiente e creche com a finalidade de assistir ao menor desamparado cuja
responsável esteja presa" (Art. 89).

Sobre os presos provisórios a LEP é clara: "A Cadeia Pública destina-se


ao recolhimento de presos provisórios" (Art. 102). "Cada Comarca deve ter sua
cadeia pública" (Art. 103); próximas de centros urbanos, exigindo-se celas
individuais. Xadrez de Delegacia não é contemplado na LEP. Aos condenados,
aos quais sobrevenham doença mental, manda serem internados em Hospital
de Custódia e Tratamento (Art. 108). Finalmente, estabelece ainda os regimes
de cumprimento da pena: o juiz, na sentença estabelece o regime no qual o
144

condenado iniciará o cumprimento da pena preventiva da liberdade (Art. 112),


podendo progredir até o regime aberto (Art. 113), para tal exigindo-se o
compromisso do exercício do trabalho (Art. 114, I), além do mérito individual.

Atualmente tramita no Congresso Federal Projeto de Lei que revisa o


Código Penal e a LEP. Mesmo não estando ainda aprovado, vários pontos
estão na pauta de debates entre os penalistas e operadores das políticas
penitenciárias. Acredita-se que tais revisões já vêm produzindo impactos sobre
a execução e gestão da pena privativa de liberdade.

3.2 Diversas Referências do Lugar

..roubaram minha alma mas não levaram minha fé...


não consigo me olhar no espelho
sou combantente e o coração vermelho
varias vezes me senti menos homem desempregado e meu moleque com fome
é muito fácil vir aqui me criticar
a sociedade me criou e agora mandam me matar
me condenar e morrer na prisão
vira noticia de televisão
seria diferente se eu fosse mauricinho criado a sustage tomando leite ninho
colégio particular depois faculdade
não não não é essa a minha realidade
sou caboquinho comum com sangue no olho
com ódio na veia soldado do morro
a sociedade me criou mais um marginal
como ódio na veia pronto pra atirar (MBVILL)
145

Geralmente, as análises feitas sobre a questão prisional correspondem a


um conjunto de práticas sociais e organizacionais que aparentemente são
internas aos seus muros. A visão de instituição total serviu, durante muito
tempo, para as análises dos problemas decorrentes de tais ações e relações
como se existissem dois âmbitos separados, prisão e sociedade. Esse tipo de
abordagem inspirou os penalistas que, em geral, falavam de pressões sociais e
de influência da esfera externa sobre a interna.

Contudo, ao delimitar o Presídio Central de Porto Alegre como unidade


principal da pesquisa, verificou-se que o mesmo não se limita somente a
segregar e a colocar os detentos em processos de classificação, a regimes
heterogêneos como isolamento, participação nas facções, trabalho, sanção
disciplinar etc. Conforme sinalizado no Capítulo anterior, esse espaço da
prática penal se auto-organiza e se regula sob relações internas que são
correspondentes a critérios específicos e de diferentes saberes objetivos
146

(declarados ou não declarados) e das dinâmicas grupais. Porém, pretende-se


nessa fase da pesquisaabordar a prisão como uma organização complexa que
é atravessada por uma série de interações sociais diferentes; de relações
políticas, ideológicas, econômicas, que não se limitam somente a influenciar,
modelar, determinar, ou fazer pressão sobre a execução da pena de prisão,
mas sim, que se operam e se reproduzem através dessa e são materialmente
inscritas na sua prática.

Nesse sentido, ao querer captar as racionalizações e significações que


os diferentes sujeitos pesquisados deram para pena privativa de liberdade
executada no PCPA, acabou-se assumindo a impossibilidade de conceber a
pena como uma simples resposta negativa à criminalidade. Ou seja, a sua
natureza, a forma e o conteúdo do campo da execução penal não podem ser
compreendidos a partir de um único ponto de vista.

A análise social feita nessa perspectiva sobre o PCPA como


organização complexa que é, constituída de instituições, práticas e relações,
privilegia, nesse momento, a teia dos significados da pena que não pode ser
reduzida à unidade física, no caso o PCPA, e também não pode ser
adequadamente compreendida somente a partir de um ponto de vista teórico
como uma única filosofia em ato ou moral materializada. Por isso, não há a
pretensão de dar conta das diferentes visões e concepções da pena que
circunscreve as visões dos sujeitos pesquisados.

O que se quer destacar é o fato, por exemplo, de como um sujeito


julgado responsável e condenado por um ato infracional, torna-se objeto de um
jogo de discursos (sobre a base de uma ordem de prisionização) que é, ao
mesmo tempo, jurídico (sobre a base de uma sentença), político (os
fundamentos e os limites da sanção entram na esfera do discurso político),
ideológico ou simbólico (a prisão veicula signos e símbolos que caracterizam a
vida na prisão e também o detento) e econômico (a questão do desemprego,
falta de apoio familiar, custo que cada detento representa para o Estado etc).
147

Contudo, há uma tendência por parte da esfera do sistema penal de


transformar uma questão substancialmente complexa em uma operação teórica
desvinculada das instituições específicas, das experiências concretas daqueles
que vivenciam o cotidiano da pena. Por isso a preocupação de dar voz aos
diferentes sujeitos que fazem parte desse espaço prisional.

A seleção das significantes abaixo, visa a descrever alguns dos vários


discursos que compõem um cenário que é constituído de vários atores que
muitas vezes falam línguas diferentes. Foi possível categorizar, nas diversas
fontes pesquisadas, cinco significações da pena privativa de liberdade como: a)
mal-necessário b) ideal de ressocialização ou algo perdido que devesse ser
resgatado; c) possibilidade de aprendizagem; d) algo fracassado que produz
injustiças; e) expressão de crise.

Assim, no entendimento da pena como sendo um mal-necessário, foi


selecionada a fala de um sujeito e que é descrita logo a seguir, em que critica a
utilização da prisão, mas não vislumbra outras possibilidades de punição para
determinados tipos de delitos:

“Eu acredito que a pena privativa de liberdade


ela (...) é uma necessidade diante daquelas
circunstâncias onde a permanência da pessoa que
praticou um ato delituoso e liberdade significa uma
ameaça concreta à vida ou integridade física dos
demais. Esta definição já supõe uma idéia, um
conceito a respeito da pena privativa de liberdade
que a considera praticamente como uma medida de
segurança (...) e portanto como uma necessidade
para a preservação dos direitos das demais pessoas
em liberdade, que podem ser potencialmente
vitimadas por um agressor. Ela não envolve
essencialmente a noção de retribuição, a noção
retributiva da pena, que é muitas vezes associada à
idéia medieval de castigo (...). Então eu acho que
148

nós devemos colocar uma pessoa atrás das grades


não para castigá-la por conta do mal praticado, mas
para impedir que esse mal seja mais uma vez
praticado. Então, alguns casos, alguns perfis
delituosos; por exemplo, o sujeito que pratica o
estupro, quer dizer, via de regra o estuprador, ele
não estupra uma única vez, ele precisa da
intermediação da violência para exercício da sua
sexualidade. Então se ele permanecer em liberdade,
o mais provável é que ele pratique várias vezes esse
mesmo delito. Então a prisão ou (...) a apartação
social, essa separação do convívio social dessa
pessoa é uma necessidade que se impõe para a
preservação dos direitos dos demais, mas não como
medida de vingança por conta do mal que ele
praticou (...), mas para que se impeça a prática
repetida desse mesmo mal. A pessoa que praticou
latrocínio, matar para roubar, ela chegou a um nível
tal de degeneração moral, de degradação moral que
muito provavelmente se ficar em liberdade ela vai
praticar de novo o mesmo delito. Então nesses
casos eu acredito que a pena privativa de liberdade
ela seja ainda uma necessidade. Agora, todos os
demais delitos de potencial ofensivo menor (...),
todos os demais delitos praticados sem violência não
deveriam merecer pena privativa de liberdade, e sim
outros tipos de condenação, penas alternativas à
prisão. “ (entrevista com.sujeito 02)

Pode-se relacionar esse fala com os primeiros discursos teóricos


justificadores da pena e que foram de cunho moralizante (CARVALHO, 2001).
Tratavam o delito e a loucura como produtos de uma existência desordenada e,
por isso, a necessidade de contenção das pessoas. Para alguns, era
149

necessário ainda colocar as pessoas em disciplinas que operassem uma


mudança comportamental tanto em nível moral quanto psíquico. (ZAFFARONI,
1991a, CARVALHO, 2001, FOUCAULT, 1997).

Na esteira do discurso moralizante identificou-se, entre os sujeitos


pesquisados, o discurso que almeja ressocialização que não é realizada. Esse
discurso possui sustentação científica e desenvolvem-se as ciências criminais
de matriz positivista etiológica- servindo de substrato ao tratamento do sujeito
„periculoso‟. É dentro dessa perspectiva teórica que emergiu a vertente
funcionalista do tratamento ressocializador. Decorre dessa idéia a concepção
da noção de “conduta desviada” por um processo de socialização fracassado
que deveria ser “consertado”. Esse discurso pôde ser verificado como ideal a
ser atingido nos documentos que orientam o planejamento das ações do PCPA
- em nível técnico e da segurança - e na constatação de um ideal que não é
realizado conforme indicam as falas abaixo:

“É uma coisa bem complicada. Na medida em


que essa prisão não oferece nenhuma alternativa
(...). Ele vai preso, ele é punido e não se conserta
nada, não se melhora absolutamente ninguém (...).
Tinha que ter programas para que eles
conseguissem sair melhor do que entraram.
Normalmente eles saem ainda piores do que
entraram.” (Entrevista 05 - grupo de auto-ajuda)

“Não, realmente é uma coisa que nós


contestamos, o que adianta deixar o camarada aqui
dez anos, e que não dá oportunidade para trabalhar,
que não dá uma oportunidade para ele tentar pelo
menos mostrar que ele tem força de vontade,
tentar pelo menos se sociabilizar. O que nós
podemos fazer com isso?” (entrevista com sujeito
05)
150

Por outro lado, alguns sujeitos apenados entendem a pena como


possibilidade de “pagar a dívida”, como merecimento, como aprendizado,
caracterizando, desta forma, a justificação da pena privativa de liberdade pelos
delitos cometidos.

“Aqui nunca dizemos quem é inocente ou


culpado, apenas nos recostamos em nossa
consciência refletindo o passado, esperando que o
tempo passe e possamos retornar às nossas vida e
ao nosso lar...Eu aprendi na prisão que não existem
pessoas ruins, tem muitas coisas a serem estudadas
e explicadas e que muitas vezes a pena „vale a
pena‟... você pode estar em qualquer lugar quando
quiser fazer o mal.” (questionário 1014)

“É que a gente cometeu um crime ... a gente


errou, por isso temos que passar por tudo isso.”
(entrevista com sujeito 13)

Contudo, a grande maioria significou a pena, associando-a à falência do


sistema. Tornou-se possível verificar que essas significações contribuem para
aqueles que operam e vivem dentro do PCPA para a construção de um
discurso desacreditado, expressando sentimentos de injustiça e imobilismo
social.

Muitas vezes, se vêem frente “à necessidade de articular o velho


discurso projetando-o no futuro e, igualmente como os operadores das outras
instâncias do sistema penal, se defendem imputando o impossível ou o
fracasso a defeitos do Estado ou outras agências.” (ZAFARONI, 1991, p.13)

As falas transcritas abaixo ilustram essa situação :

“Quer dizer, as penas de privação de


liberdade no mundo inteiro elas têm implicado num
altíssimo indicador de reincidência criminal. Em
151

geral, nos grandes estabelecimentos prisionais, não


só no Brasil, mas no mundo inteiro, eles mesmos se
transformam nos principais fatores da
criminogênese, eles industrializam o crime,
formam o crime. Então, deveria ser uma medida
adotada com muita parcimônia, com muita
economia, e não é o que acontece. Especialmente
no nosso País, há um modelo penal que privilegia a
pena privativa de liberdade, eu acho isso uma
insanidade absoluta.” (entrevista.sujeito 04)

“O Estado não faz nada para ajudar os


presos como procurar as empresas para oferecer
trabalho dentro da cadeia mas sim tirar o pouco que
restou como a bola, prendedor e cartonagem.”
(questionário-54)

“A cadeia não endireita ninguém. FEBEM é


colégio, presídio é universidade do crime. A
tendência é piorar a situação. A polícia é mais
corrupta que o próprio preso.” (questionário-70)

“Eles acham que estão nos educando. Mas


na verdade estão só nos marginalizando.”
(questionário- 658)

“ Tenho muitas opiniões para achar os pinos


que faltaram nesta engrenagem que quebrou já
alguns anos, que se chama justiça...” (questionário-
733)

“ Gostaria de dizer que o principal


responsável por tantos assaltos, furtos e latrocínios é
o próprio Governo Federal que deixou o Brasil entrar
152

na decadência que está hoje. Famílias inteiras


passando fome, sem empregos para trabalhar,
enquanto eles votam seus próprios salários, fazem
viagens para torrar o dinheiro dos impostos que nós
pagamos.” (questionário-52)

“ Muitas vezes a justiça constrói um


criminoso...” (questionário-197)

“ Eles não mudam o sistema por que aqui é


uma máquina de fazer dinheiro e isso eles fazem
não para melhorar ou reeducar o presos. Eles têm
interesse que o preso volte a delinqüir, assim o
que é deles está garantido, pois a cadeia é feita para
os pobres aqui não tem nenhum rico... Aqui é
faculdade do crime. O promotor deveria passar por
aqui para depois ser promotor...” (questionário-254)

Alguns presos também relacionaram a privação de liberdade com perdas


dos direitos como cidadãos, no sentido de que eles perdem à medida em que
deixam de produzir, de progredir.

É importante contextualizar que, a partir dos anos 60, principalmente na


década de 70 com a obra “Vigiar e Punir” de Foucalt, começa o processo de
decadência dos projetos de ressocialização. As críticas vão crescendo em
relação às políticas criminais reacionárias, aos efeitos deteriorantes da prisão,
os elevados índices de reincidência. Enfim, o discurso da criminologia clínica
entra em crise (LARRAURI,1992), chegando a desmoronar na esfera
acadêmica.

A criminologia da reação social explicita a arrogância epistemológica e a


pretensão de definir e prever os comportamentos dos sujeitos criminalizados
(PIROMALLI,1994) desprezando a dinâmica entre os comportamentos dos
operadores e atores das esferas do sistema penal.
153

Torna-se, nesse momento, é ressaltada a impossibilidade de explicar o


comportamento dos apenados sem considerar fatores condicionantes e a
artificialidade do sistema prisão na interação com outras esferas do sistema
penal em geral.

Entretanto, no contexto atual, novos dilemas reacendem uma questão:


Sendo inviável o discurso do tratamento ressocializador, o que fazer dentro dos
muros das prisões? A utopia da ressocialização deveria ser substituída pelo
realismo retributivo e único da pena? Dever-se-ia, então, deixar a prisão única
e exclusivamente sob o comando dos militares e policiais? Os técnicos das
áreas humanas – Assistentes Sociais, Psicólogos, Médicos, Educadores,
Sociólogos e outros não tem o que fazer nas prisões conforme indica
Thompson (1976).

Esses questionamentos produziram uma crise paradigmática no sistema


punitivo vigente. Para alguns sujeitos pesquisados surge a pena como
expressão dessa crise. Não encontrando sentido para explicá-la ou justificá-la,
eles abordam a questão como perda de sentido, algo injustificável:

“Foi achado um drogado,


foi perdida uma liberdade.
Foi achado um arpão,
Foi perdido um cidadão.
Foi achada uma vassora quebrada,
Foi perdido um faxineiro.
Foi achado um inocente,
Foi perdido 5 anos de vida.
Foi achada uma sala de aula,
Foi perdido um desconhecimento.
Foi achado um sistema penitenciário,
Que parecia ser bom...
A indiferença
Faz com que não notemos
154

O que achamos ou perdemos” (Jornal Arpão,


1999)

“Olha os escritores contemporâneos como


definem a prisão como um mal necessário. Não sei
se dá para ser colocado nestes termos, ou seja,
partem da idéia de que está em crise, mas como
absolutamente nada, nenhum projeto alternativo a
não ser as penas alternativas, que são residuais,
entendem como instrumento ainda necessário. Eu
fico um pouco ainda reticente a concordar com eles
mas acabo concordando. Mas eu acho que o
conceito que mais se aplica à pena privativa de
liberdade é o conceito de crise mesmo, ou seja, algo
que não dá resposta para o que se propõe, e que
não há um novo modelo para ser colocado no lugar.”
(entrevista. 05)

Essa crise do sistema prisional tornou-se tema corrente nos últimos vinte
anos. A leitura dessa crise (CIAPPI, 1997; TUMIM,1996; HERKENHOFF,1987)
vem normalmente vinculada ao fracasso das várias estratégias de
normalização que privilegiaram durante muito tempo a prática do seqüestro
social (PAVARINI, 1996) como um mal necessário.

Entretanto, é importante observar o ponto de vista teórico que utiliza-se


para a leitura da crise do sistema prisional. Essa vem ocorrendo desde sua
gênese54. Muitas são as produções teóricas que acusam o fracasso do projeto
de modernidade da pena de prisão que se expressa através do ideal
ressocializador. (CERVINI, 1995, PAVARINI, 1996, CARVALHO, 2001)

Por outro lado, numa perspectiva estruturalista e crítica, alguns teóricos


demonstram que a prisão é um mal-necessário ou uma instituição bem

54 Segundo Foucault (1997), na França, existem documentos datados de 1820 que constatam que a prisão longe de
modificar os sujeitos criminosos em sujeitos honestos, apenas aprimora o processo da criminalização.
155

sucedida do sistema capitalista (MOSCONI,1982), que vem cumprindo seus


objetivos de reprodução das desigualdades sociais, ou melhor, vem servindo
como estratégia última de extinção dos excluídos sociais (FORRESTER, 1997,
BAUMAN, 1998a, WAQUANT, 2001).

Na polarização de diferentes perspectivas, também o embate entre


abolicionistas55 e reformadores vem se esvaziando pelo caráter “convulsivo”
dado ao primeiro, sem materialidade nas práticas sociais vigentes, e pela
hegemonia do pensamento reformador, isso é, utilizando uma nova roupagem,
o conservadorismo vem reconhecendo a necessidade de limitação das prisões
como meio de impedir a sua ação criminógena e implementar os substitutivos
penais como alternativa à prisionalização, modernizando-se e humanizando-se,
assim, o discurso do controle social através do sistema punitivo (HILTERMAN,
1995). Assim, no reconhecimento de que a prisão está em “crise” aparece uma
noção de prisão como instituição “alienígena” da sociedade:

“(...) A prisão é aterrorizadoramente opressora


e seus muros separam o interno da sociedade e a
sociedade do interno. Esse não apenas perde o
direito à liberdade de deslocar-se, mas praticamente
todos os seu direitos.” (CERVINI, 1995, p.35)

“A prisão é um sistema social relativamente


fechado(...) O mundo dos reclusos é um mundo
confuso, sendo temerário afirmar-se que possua
uma estrutura social claramente definida, posto que
não existem valores e objetivos claros.”
(BITENCOURT, 1993, p.155)

Muitas das reflexões empreendidas sobre a temática são, ainda,


pertinentes para o “estilo” de prisão que vem se configurando a partir da

55 Segundo PASSETI & SILVA (1997), a partir dos anos 60, dentro do Novo Paradigma “Labeling Approach”, surge um
grupo de pensadores que aprofunda a análise criminológica, ampliando a crítica ao sistema punitivo. Destaca-se que,
no bojo de propostas abolicionistas das prisões, encontram-se diversas posições: a abolição da prisão na forma que
existe atualmente e, a substituição da pena privativa de liberdade por outras alternativas punitivas.
156

década de 70. Entretanto, na pesquisa realizada no PCPA, verificou-se que a


complexidade da organização impedia que qualquer análise pudesse dar conta
da totalidade da mesma, pois corria-se o risco de cair num determinismo ou
simplificações analíticas.

Por exemplo, os interacionistas56 alertaram que os presos são sujeitos


selecionados, etiquetados e, posteriormente à prisão, serão estigmatizados
pelo próprio sistema que os selecionou. Porém, é uma atitude analítica que
poderá contribuir para criarem-se “fronteiras” entre nós e eles, demonstrando
em detalhes o processo de construção social de uma identidade marginal,
numa perspectiva mecanicista que vê a sociedade em bloco; de um lado, os
que dominam; no outro, os dominados, um lado do bem e outro do mal.

Contraditoriamente, algumas teorias, ao invés de elucidarem a


problemática em questão, vêm contribuindo para a construção de uma imagem
sobre a prisão que coloca em evidência e dramatiza apenas uma parte de um
problema bem mais vasto. Vem contribuindo para ocultar os problemas da
violência e crueldade da nossa sociedade.

Desse maneira, foi feito aqui um destaque para restituir o que


normalmente foi negligenciado nas diferentes análises da pena de forma linear.
É através da linguagem (PAVARINI,1985), das idéias, enfim, da cultura que se
expressam as diversas mentalidades, sensibilidade e emoções e que
conseqüentemente dão vida às organizações prisionais.

Relembrando, a penalidade é um campo da prática prisional, um fio que


se articula a todos os níveis da estrutura social, é uma instituição social
altamente elaborada, à qual a sociedade confere sentido e trata a
complexidade de necessidades, de relações e conflitos. (GARLAND, 1999)

56 O interacionismo simbólico surge na década de 60 como uma das teorias do novo Paradigma Labelling Approach,
onde rejeitam o pensamento determinista e os modelos estruturais estáticos. Vê a realidade social constituída por uma
infinidade de interações concretas. Portanto, a dinâmica das instituições sociais somente pode ser analisada em
termos de processos de interações. Destaca-se aqui a Escola dramatúrgica de Goffman e a etnometodologia. (DIAS &
ANDRADES, 1984).
157

Atualmente, o sistema prisional está passando por profundas mudanças


estruturais que minam o significado profundo da justiça, na sua base. Essa é a
dinâmica que somente agora está sendo captada: a erosão da ideologia
correcional; o distanciar-se de uma justiça moralmente expressiva; uma
renovada atenção à vítima; a ênfase sobre os temas da segurança pública e
sua gestão de risco; os novos objetivos das instituições de recolhimento; a
politização dos discursos referentes à esfera penal. Todas essas tendências
convergentes parecem mostrar um campo – prisional - amplamente
reconfigurando, assim como nenhuma lógica consegue explicar o que está
acontecendo. Há, sob esse aspecto, uma relação direta entre crises do
paradigma segregativo e o controle social não institucional. Tentou-se refletir
sobre a retórica da cultura criminológica que está distante da realidade das
políticas penitenciárias e de controle social. Por um lado, o fracasso do sistema
prisional com resposta ao modelo de criminalização da desordem do desvio, ou
seja há uma perda da centralização do cárcere na política criminal e de
segurança. Por outro lado, a emergência do seqüestro social da sociedade
(como uma ação qualitativa bem mais do que quantitativa), fora dos muros da
prisão.

Ao indagar sobre o significado da pena, identifica-se uma nova


gramática das formas de controle da criminalidade. Surgem novas estratégias
de segregação punitiva, entre elas os discursos retributivos e moralmente
expressivos da pena que se sobreponham ao rigor crítico do juiz e o seu dever
de recorrer a medidas alternativas e à obsessão da segurança pública.

Mas, ao mesmo tempo, pode-se dizer que há a coexistência no mesmo


campo penal de outra estratégia aparentemente contraditória de atividades de
controle social, advinda de organizações diversas, as ações públicas e
privadas para executar a justiça estatal e criar uma infraestrutura sobre uma
base comunitária para prevenção da criminalidade e gestão da segurança.

Observam-se portanto, ações ambivalentes com as quais os


governantes se deparam atualmente. Em um contexto como o Rio Grande do
158

Sul, onde as altas taxas de criminalidade são consideradas um fato social


comum, as instituições do sistema penal são repetidamente acusadas de ter
falido no compromisso do controle da criminalidade e de assegurar a lei e a
ordem. Os governantes acabam abandonando muitos pressupostos que
orientaram o controle da criminalidade no século XX e experimentam novos
modos de pensar e agir.

Identificou-se que uma parte do discurso político insiste em reformar as


instituições, como está sendo feito no PCPA, com ênfase na contenção, mais
do que na prevenção. Por outro lado, fala-se da importância de criar relações
com a sociedade civil, de investir em novas tecnologias para a gestão dos
grupos de risco, de responder aos interesses da vítima e tentar enfrentar os
efeitos do crime.

Um outro discurso, mais visível que o anterior, procura, ao invés de


negar as situações e saídas radicais que se apresentam, fazer novamente o
recurso a um simbolismo arcaico e à violência do poder punitivo do Estado.
Esta última resposta faz uso de recursos da administração da força punitiva por
não reconhecer a incapacidade do Estado em obter um controle aceitável de
compensar magicamente a falência e nem garantir a segurança da população
em geral.

Parte do fascínio e da frustração do contexto atual do sistema


penitenciário, em específico o do Rio Grande do Sul, deriva do fato de nos
encontrarmos imbricados em um processo de transição. A crise do sistema
prisional contemporâneo não produziu ainda uma penalidade pós-moderna
(GARLAND, 1999). Ao contrário, anuncia uma mudança ambivalente e
desordenada, na qual a mesma duvida dos correcionalistas e dos seus
pressupostos racionalistas e iluministas e é utilizada para escamotear
sentimentos reacionários anti-modernos, com a requisição de uma ordem e de
uma justiça incisiva, o desejo de punir.

A maior parte das críticas quanto à falência da prisão e da


irracionalidade da pena na sociedade moderna faz parecer que o contexto
159

prisional está prestes a ser transformado (ZAFFARONI, 1997). Na esperança


de uma reforma do sistema punitivo, cada crítica soa como um hino ao futuro.
Hoje o sistema punitivo não parece ter um futuro ou uma perspectiva diferente
e preferível ao sistema atual. Nesse sentido, o dominante discurso da falência
torna difícil a gestão das políticas de segurança e penitenciária.

Parece que o grande problema gira em torno de falta de funcionalidade


social, de utilidade. Toda a organização, qualquer que seja, possui um grau de
insucesso mas possui indicadores de avaliação, apresentação de projetos
futuros com maiores recursos, investimento com pessoal, maiores articulações
com outras instituições etc. Isso, no entanto, não se evidenciou no PCPA como
resposta à política penitenciária da SUSEPE. Administra-se somente o
fracasso, a miséria.

Nos últimos tempos, constata-se não somente a falta de confiança nos


princípios basilares da execução da pena, mas também a incapacidade de
resolver os problemas conexos em termos institucionais.

Geralmente, aqueles que administram e vivem no PCPA compreendem


e justificam a ineficácia das próprias atividades a partir de um quadro
ideológico, de uma ideologia que não funciona. É a ideologia própria que
fornece os instrumentos idôneos para explicar a falência e indicar a estratégia
de prevenir a transformação. (ZAFFARONI, 1991)

Como exemplo, por grande parte deste século houve uma preocupação
com os “Res” (reeducação, ressocialização, reinserção), que constituíam-se em
elemento chave na ideologia oficial e na retórica institucional. Hoje o termo está
fora de uso. Constatando-se o quanto seu uso foi sonhador e conservador,
pode-se afirmar que os “Res” aparecem como problemáticos nos melhores dos
casos e inúteis nos piores. Em alguns locais, como no sistema penitenciário
gaúcho, tais termos estão sendo aos poucos abolidos do vocabulário oficial.
(GARLAND,1999) Por conseqüência, observa-se que o sistema prisional
sentiu-se privado de uma linguagem e da mitologia sobre as quais havia sido
fundada.
160

Hoje, uma vez adquirida a consciência de que os princípios correcionais


modernos faliram e que se está numa época em que o modelo de organização
iluminista é fortemente criticado, começa-se a colocar em dúvida os princípios
fundamentais da pena privativa de liberdade.

A sociedade, no século XX, encontra na metrópole a representação dos


efeitos de uma ordem e de um sentido de ordem social perdidos: cidade
caótica, concentradora de sujeitos com diversos costumes, cultura e riqueza.
As grandes metrópoles são o centro do novo interesse das políticas de controle
social: a disciplina da metrópole e qual será a nova ordem dada à cidade, as
estratégias do novo controle da sociedade, tornam-se as grandes
preocupações. A situação que vivem as grandes metrópoles é a da simbiose
(IANNI, 1998). Perde-se, portanto, a centralidade no debate da política criminal
sobre os mecanismos de seqüestro social. A prisão em diversas palavras
atesta sua ineficiência, sai do debate de interesse, seja como objeto de análise,
seja como instrumento de pesquisas ou de disciplinas sociais, seja, enfim,
como representação social de uma ordem a impor. A prisão fenece como
símbolo da ordem social.

A marginalidade da prisão se faz manifesta e isso não tanto em termos


da sua obsolência quantitativa, quanto na residualidade qualitativa
(RUGGIERO,1995), nos confrontos das novas práticas de controle social dos
tipos penais.

Entretanto, a prisão continua viva! E sempre se oferecendo mais como


um momento de violência institucional insuprimível: instância última mas
decisiva porque não quer e não pode ser diversamente
disciplinada.(UGOLINI,1996). Um complicado jogo de palavras surge: „uma
prisão mais dura‟, uma prisão que produza mais medo, porque recebem um
tratamento que muitos não recebem lá fora.

A prisão contemporânea é a pena que não transforma (BAUMAN,


1998a; DE GIORGE, 2000). E por esse aspecto basta ainda refletir sobre o
161

significado da invenção das prisões de segurança máxima. As últimas novas


construções no RGS foram 5 prisões moduladas de segurança máxima. Nos
projetos dessas prisões as celas podem ser isoladas umas das outras. Os
agentes penitenciários podem observar, caminhando sobre uma tela por cima
das celas, não tendo contato direto com o detento. A estrutura arquitetônica é
um espaço transformado em uma trincheira segura contra as eventuais ações
da massa revoltada.

Depois de um longo sonho de tratamento, a prisão que ainda sobrevive


é aquela que não deixa a escolher, confessa abertamente o seu estranhamento
social. Isso é o oposto e radicalmente contrário ao que a sociedade idealizava
como local de reforma e transformação dos sujeitos desviantes.

As penas alternativas surgem, mas fica a prisão como o pano de fundo


simbólico na execução da pena. Conforme texto extraído do jornal Zero Hora
(data/ano) fica a mensagem “Se não fizer direito vai para a cadeia”.

Será que é ainda possível sustentar discursos obscuros e ensaiar


desculpas por não poder materializar tais objetivos que esses discursos
delineiam? Um discurso penitenciário racional e não violento poderia ser
construído sobre os alicerces que garantissem que os danos da prisão fossem
os menores possíveis junto às pessoas que cumprem pena. Uma prática
garantista como nos indica ZAFFARONI (1991, 1997) e CARVALHO (2001),
pautada num tratamento redutor de danos da violência institucional e
vulnerabilidade penal, seriam esforços possíveis e direcionados para que a
prisão fosse o menos deteriorante, tanto para os presos, como para aqueles
que lá trabalham. Redescobrir um novo sentido naquilo que está morto, através
da cooperação com iniciativas comunitárias que se permita elevar o nível de
invunerabilidade penal da pessoa frente ao poder do sistema penal que é
muitas vezes injusto, desigual, seletivo e marginal. Isto posto, requer mudanças
de atitude, de olhar, não só dos gestores públicos, mas daqueles que detêm os
poderes dos diversos discursos sobre a prisão.
“Os presos falam, os jornalistas escrevem, os
reformadores propõem reformas, os criminólogos
criminologizam. Durante esse tempo o gelo
institucional, mais precoce e mais tenaz da Sibéria
penitenciária do que em qualquer outra instituição,
recomeça a congelar as estruturas. É por isso que
falo, antes que eu mesma venha me transformar em
estátua.” (Simone Buffard)
4 OS OLHARES QUE CONGELAM

Nesse item pretende-se demonstrar a premissa II a partir de indicadores


que expressam a violência contemporânea no espaço prisional.

4.1 Dialogando com os Teóricos sobre Violência Contemporânea

Ao delimitar a violência contemporânea para posteriormente focalizar as


múltiplas formas de sua expressão sob o espaço prisional, faz-se, inicialmente,
necessário, para compreensão, reconhecer entre os diferentes teóricos
estudados o seu caráter difuso e polissêmico e também como fenômeno
complexo e heterogêneo, que articula velhas e novas abordagens.

À medida do possível, buscou-se evitar os julgamentos que implicariam


referências religiosas ou patológicas, ou então abordar os conceitos de mal,
pecado, sofrimento, raiva, irracionalidade, loucura, entre outros, uma vez que
todas as pessoas têm, em maior ou menor grau, uma relação com a violência.
E esta, por sua vez, tem relação com a força, potência, energia, poder. Em
última instância, pretende-se trabalhar a violência numa extensão em que
nenhum aspecto da realidade humana deixe de estar presente. Ou seja, trazer
uma noção de violência concebida como uma função estruturante do ser
humano, "homo violens” (DADOUN,1998 e MAFFESOLI, 1987) como fator
importante na organização do social.
164

A palavra “violência” vem do latim – vis - que significa caráter bravo,


violento, força, potência. Vis serve para marcar a essência auto-destrutiva de
um Ser (DADOUN,1998). O verbo violare significa tratar com violência, violar,
profanar, transgredir. Tais termos devem ser referidos a vis, que quer dizer
força, vigor, emprego de força física, potência, mas também abundância,
essência ou caráter essencial de uma coisa, força vital. (MICHAUD, 1989)

Entretanto, foi possível verificar que o fenômeno violência possui


diferentes acepções para pessoas diferentes, vivendo em sociedades
diferentes e mesmo para as pessoas que vivem no interior de uma mesma
cultura. Um comportamento considerado violento e repreensível por um grupo,
pode ser julgado necessário e legítimo por um outro (DIAS, 1996).

Muitas vezes os discursos sobre a violência são feitos sobre aquele que
pratica a ação violenta - sendo comum o uso da noção de força - ou a partir
daqueles que sofrem a ação-prevalência da noção de privação - onde
determinados direitos estão sendo negados e violados sem razão explícita.
(DIAS, 1996)

A violência é problematizada, também, como “cidadania dilacerada”, pois


evoca o dilaceramento do corpo e da alma, como força, coerção e dano em
relação ao outro. “Assim, violência é um dispositivo de poder, uma prática
disciplinar que produz um dano social, atuando sobre espaços abertos, a qual
se instaura uma justificativa racional, desde a prescrição de estigmas até a
exclusão efetiva ou simbólica” (TAVARES, 1995)

Seguindo essa ótica, outro aspecto interessante reside no papel


desempenhado pela violência na concepção fucoulteana de poder, sem
descartar a importância da utilização do recurso à violência por aqueles que
exercem o poder – não esquecendo que o que se oferece à análise são as
relações de poder – FOUCAULT (1995) vai afirmar que a violência pode ser um
instrumento utilizado nas relações de poder mas não um princípio básico da
sua natureza. A atuação do poder se dá de formas muito mais sutis, não se
exercendo basicamente em aspectos negativos – o poder reprime, obstaculiza,
165

etc., ou através da violência física. Diferentemente, o poder tem um aspecto


produtivo fundamental. Deste modo, o exercício do poder deve ser
compreendido como uma maneira pela qual certas ações podem estruturar o
campo de outras possíveis ações.

Nessa perspectiva o que define uma relação de poder é que ela é um


modo de agir que não atua direta e imediatamente sobre os outros. Atua sobre
suas ações: uma ação sobre outra ação, sobre ações existentes ou sobre
aquelas que podem surgir no presente e no futuro. Uma relação de violência
age sobre um corpo ou sobre coisas; ela força, dobra, destrói ou fecha a porta
a todas as possibilidades (SUZIN, 1991). O seu pólo oposto pode ser apenas a
passividade e, ao se deparar com qualquer resistência, sua única opção é
tentar minimizá-la. Por outro lado, uma relação de poder somente pode ser
articulada com base em dois elementos que são indispensáveis, tratando-se
realmente de uma relação de poder: que o „outro‟ (aquele sobre quem o poder
vai ser exercido) seja plenamente reconhecido e mantido até o fim como uma
pessoa que age; e que, em face de uma relação de poder, todo um campo de
respostas, reações, resultados, e possíveis invenções seja aberto
(FOUCAULT, 1988).

Já na perspectiva de MAFFESOLI (1987,1982) a violência, por


apresentar um caráter ambivalente, nem sempre se reveste de forma negativa -
tendência maniqueísta que é dominante no senso comum - no organismo
social, representando possibilidades de rupturas com o tecido social
normatizado.

“A violência faz parte de um duplo movimento de


destruição e construção, pois é reveladora de uma
desestruturação social e invoca uma nova
construção. Assim, a dissidência (violência) pode ser
analisada, ao mesmo tempo em relação a uma
institucionalização que ela testemunha contestar e
por si mesma como uma forma que tem a sua
própria dinâmica.” (MAFFESOLI, 1987, p.21).
166

Adotando aqui o principio dialógico-pressuposto teórico da complexidade


visto no capitulo 1- considera-se que a violência, por ser poliforme, configura-se
em diferentes significados e dimensões do social. Desenvolve-se na
perspectiva de força, em um ato de excesso presente nas relações de poder,
permeada por uma violência física e/ou simbólica que se exerce mediante a
subjetivação dos agentes sociais envolvidos na relação (FOUCAULT, 1979);
mas também manifesta-se na perspectiva de fratura que possibilita a
passagem a outros dispositivos, a outras formas de possibilidade de
convivência e enfrentamento dos conflitos. Por exemplo, a emergência de uma
prática de “anti-violência” à violência institucionalizada poderiam representar
algumas dessas linhas de fratura no dispositivo da violência. (MAFFESOLI,
1987). Ou seja , trata-se de uma perspectiva que explicita a crise da
modernidade através da ambivalência do caráter da violência (ou dissidência) e
sob forma de destruição/ construção.

Ao analisar, então, as formas da violência na sociedade contemporânea


foi necessário decifrar alguns elementos da crise das relações de
normalização, padronização e poder, as quais se expressam de múltiplas
formas, atravessando os diferentes espaços na estruturação das relações
sociais.

Vale lembrar, inicialmente, que, nas sociedades primitivas, a encenação


ritual da violência permitia que esta fosse exteriorizada (GIRARD,1990) pois,
através da consciência de sua onipresença, aprendia-se a negociação,
tolerância, solidariedade, ser o “Outro”. Entretanto, com a modernidade, seu
monopólio e sua racionalização, houve uma tendência contrária, ou seja,
interiorizar a violência, e o grande paradoxo do racionalismo foi a super-
racionalização da estrutura social da violência (MAFFESOLI, 1982).

Portanto, a violência, mais do que socialmente imanente, tem função


social estruturante e pode assumir diversas modulações. Como só é possível
apreciá-la dentro de um contexto social, serão reunidos elementos que
possibilitem transitar nos meandros conjunturais contemporâneos em busca da
compreensão sobre as características de suas manifestações na sociedade
167

contemporânea, principalmente em suas manifestações no sistema punitivo,


deixando de pronto estabelecido que não está em busca de uma normalidade
perdida.

É válido ainda resgatar que, a partir do que se chama Antigüidade, a


civilização se desdobra, espalhando-se por diversos continentes. A partir do
Século XV, os diferentes povos, em sua expansão guerreira, começam a
descobrir a Terra. Descobre-se que esta não é o centro do cosmo e a Europa
não é o centro do mundo. Eis o que todos chamam de tempos modernos, que
se desenvolvem na e através da violência, da destruição, da escravidão, da
exploração feroz das Américas e da África. “É a idade de ferro, na qual
estamos ainda” (MORIN, 1995, 2000)

A mundialização ocorreu também no plano das idéias. No século XVIII, o


humanismo das Luzes atribuiu a todo o ser humano a igualdade de um espírito
apto à razão, conferindo-lhe, assim, uma igualdade de direitos. Mas a essas
correntes universalistas opuseram-se contracorrentes que valorizavam a
hierarquia, a superioridade de certas nações; a racionalidade do Homo
sapiens, vendo no arcaico, não o bom selvagem, mas o primitivo, o infantil, o
atrasado. (MORIN, 2000)

O nascimento do Estado correspondeu à normatização da vida social.


Conseqüentemente, tornou-se o monopolizador da violência legítima (WEBER,
1994); (ELIAS, 1983; MAFFESOLI, 1982); (RAMIRES, 1983); BUMAN, 1998,
1999), suprimiu a vigência, antes permanente, da imediaticidade imposta pela
violência às interações humanas. Formaram-se e enraizaram-se mediações
institucionais e regras ordenadoras das relações sociais (FOUCAULT, 1997,
1999). Entre as principais conseqüências geradas por este imenso
deslocamento de padrões de comportamento e de estruturas organizativas,
pode-se destacar o desenvolvimento da politização e psicologização das
relações sociais.

Em o “Mal-Estar na Civilização”, FREUD (1920), afirma que o processo


de civilização, a organização social (Estado)- que está a serviço das pulsões de
168

vida- beneficiou-se da pulsão de morte, transformando-a em agressividade


voltada contra o outro (estrangeiros) e em fonte de unidade para o grupo. Ao
mesmo tempo em que eles a frustram e a reprimem, controlam a violência dos
indivíduos entre si. Isto é, a segurança da vida é paga com a repressão dos
instintos. A civilização, portanto, buscou esta repressão, primeiro através da
coação da autoridade que produziu essa consciência; depois essa coação foi
interiorizada no superego, e a culpabilidade aparece como manifestação do
medo que o ego tem dela. A civilização é indissociável do mal-estar da
culpabilidade.

A violência, monopolizada pela estrutura dominante - Estado -, gerou um


esforço para que as zonas obscuras do social fossem eliminadas em benefício
de uma asséptica normalidade, delimitando-se o desvio e disfunção para
melhor tratá-los. (FOUCAULT, 1997, 1999).

Não importava o êxito desse tratamento, mas o que fosse suficiente para
que a população marginalizada servisse de justificativa à tecnoestrutura
contemporânea. Esse controle social (COHEN,1988) operou no âmbito de um
monopólio administrativo e utilitário que se serviu de todos os recursos da
técnica e das ciências (MAFFESOLI, 1982).

Seguindo perspectiva semelhante De GIORGE (1998) cita que somente


reconhecendo a artificialidade da sociedade moderna é possível observar
porque esta produz a si mesma mais igualdade e, ao mesmo tempo, maior
desigualdade, mais riqueza e mais pobreza, mais política e menos controle,
entre outros aspectos. A artificialidade da sociedade moderna constitui-se
através dos sistemas do direito, da política, da educação e da família, que
condensam e sedimenta o operar dessa sociedade. É uma sociedade artificial
porque descreve a temporalidade do seu operar sem uma referência externa. O
artificio é, portanto, o ocultamento do paradoxo da modernidade. Além disso, o
autor traz a universalidade do artifício através das suas formas de inclusão,
onde todos possuem as mesmas possibilidades, não havendo, portanto,
exclusão. As diferenças, então, são relativas ao exterior, mas diferenças que se
169

produzem pela universal exclusão e negação de todas as diferenças. Assim, a


universal inclusão gera a universal exclusão. (DE GIORGE, 1998)

Portanto, a sociedade contemporânea, que é marcada ao mesmo tempo


pela aspiração da fraternidade e unidade pacífica, principalmente no século XX,
é também resultante na mundialização da guerra, que une a humanidade, mas
através da guerra. (MORIN, 1995)

A sociedade contemporânea se desnuda no Século XX, no desenrolar


das duas guerras mundiais. O conflito acirrado dos diferentes interesses,
gestado ao longo do tempo, expõe a verdadeira face ao mundo
contemporâneo. Nunca o imperialismo foi, ao mesmo tempo, tão conservador e
tão violento: por isto, a guerra mundial (MORIN,1995). No holocausto, deflagra-
se a violência institucionalizada e aniquilação perfeitamente planejada racional
e iluminada do diferente. (SOUZA, 1996; BAUMAN, 1998a)

A violência da sociedade contemporânea tem se constituído, em suas


linhas mais amplas, na história dos processos utilizados para neutralizar o
poder desagregador do diferente, e a história da ciência tem sido, quase
sempre, a forma de legitimar, racionalmente, a busca da totalização. (SOUZA,
1996)

A cultura ocidental, no século XX, desde seus centros de definição, a


partir de múltiplas facetas e diferentes olhares, reconhece um fato dado, a
precipitação do processo de rompimento e desagregação de uma totalidade.

O estágio de ruptura e esgotamento dos modelos57 explicativos da


realidade, a desagregação de um sistema de sentido e valores, necessita
corresponder a um modelo de inteligibilidade do universo e da realidade para
que se possa realmente iniciar a construção do sentido não totalizante da
história como um drama ético (SOUZA, 1996).

57 Ricardo Tim Souza (1996) verifica em diferentes modelos teóricos - dentre estes destaca-se, Husserl, Heidegger, Bergson,
Luckas, Bachelar, Satre –uma atmosfera de desconforto, desinstalação, o que chama de “estágio de ruptura” (p.22-29)
170

Portanto, o grande desafio dos dias atuais não é a transformação da


sociedade, mas a sua compreensão. A sociedade atual é fruto de uma
concepção de progresso, que identifica-se com a visão liberal - que a concebe
como caminho, marcado pela continuidade de mudanças cumulativas para
elevação das condições de vida – e a apocalíptica, que identifica-se com a
visão revolucionária que busca a destruição subversiva da ordem social
vigente, para substituí-la por algo melhor. O presente gerava-se, assim, pela
busca do futuro. (SILVA, 1993; BARLANDIER, 1997). A competição agressiva
desses dois sistemas de representação animou por muito tempo o palco
ideológico ocidental, dando vantagem, primeiro, ao 'mito do progresso' ajustado
às democracias industriais expansionistas, adaptado à poderosa subida das
novas classes e expresso pelos meios intelectuais a elas aliados. Hoje são
uma ideologias desbotadas, as imagens que criaram ficaram confusas por
causa das flutuações econômicas e dos choques que afetaram a sociedade e a
cultura em seu todo. ( BARLANDIER 1997)

Verifica-se, então, uma substituição dos papéis representados pelos


atores sociais, onde os horizontes dos projetos políticos coletivos em crise
deixam de ser referências de aglutinação para os deserdados e de temor para
os privilegiados. Abre-se espaço aos embates violentos do cotidiano sem
referências prospectivas e ao crescente medo da violência criminal.

Numa época de mundialização da economia, fenômeno que, segundo


WIEVIORKA (1997), não é novo e já era abordado por vários autores do século
XIX, entre os quais Karl Marx, as tendências manifestas de flexibilização das
fronteiras geopolíticas não são acompanhadas de tendências de diminuição
das fronteiras sociais que se erguem sob os alicerces da desigual distribuição
de renda mundial. Mas, se a aceleração da globalização econômica vincula-se
à expansão de mercados, seus efeitos e reações não se dão apenas no campo
das reivindicações econômicas, mas surgem, também, nos conflitos culturais e
identitários contra ou a favor da homogeneização cultural que vem no seu
rastro.
171

Além disso, o aumento das populações carcerárias nos países


desenvolvidos está relacionado ao fim ou às limitações das políticas
assistenciais dos Estados provedores do bem-estar social (BAUMAM, 1998,
WAQUANT, 2001).

Os delitos penais na Inglaterra e no País de Gales passaram de 2,9


milhões, em 1981, para 5,5 milhões em 1993; os gastos públicos com
policiamento passaram de 2,8 bilhões de libras, em 1971, para 7,7 bilhões, em
1993. E, na mesma proporção em que aumentaram as funções que se ocupam
da repressão, aumentaram os "excluídos da vida econômica e social",
aumentando, em conseqüência, o sentimento de insegurança da população,
considerando resultados que quase se invertem em pesquisas amostrais que
indicam há 30 anos, um percentual de 85% de segurança sobre saídas
noturnas contra 95% que se sentem inseguros nos dias de hoje (quanto a
saídas à noite). Assim, as instituições carcerárias fortalecem-se sobre as ruínas
dos antigos benefícios assistenciais do Estado do bem-estar social (BAUMAN,
1998).

"Dada a natureza do jogo agora disputado, as


agruras e tormentos dos que dele são excluídos,
outrora encarados como um malogro coletivamente
causado e que precisava ser tratado com meios
coletivos, só podem ser redefinidos como um crime
individual. As classes perigosas são assim
redefinidas como classes de criminosos. E, desse
modo, as prisões agora, completa e
verdadeiramente, fazem as vezes das definhantes
instituições do bem-estar” (BAUMAN, 1998).

A questão de fundo dessa realidade é que o desemprego de longa


duração corta as referências identitárias do trabalhador fundadas a partir de
uma cultura do trabalho como produtor de riquezas que teve início no século
XVIII. É possível compreender-se a trajetória do trabalho como dever
obrigatório de caráter religioso, imposto aos desocupados como forma de
172

combate aos vícios para uma situação de direito, a partir da interpretação de


Adam Smith que, ao inserir a compreensão do trabalho no processo de
produção de riquezas, colocou-o no centro das questões sociais. “O trabalho
passa a ser livre e mais do que isso um direito de todos. Essa concepção
alimentará as lutas sociais do século XIX” (LARANJEIRA, 1999).

Nessa visão cultural do trabalho na sociedade industrial, com as novas


noções de empregabilidade e de relações de trabalho que as mudanças
tecnológicas colocam na ordem do dia do mercado de trabalho, percebe-se que
a experiência e a qualificação profissional perdem importância diante da
“importância da qualificação social, cuja aquisição se obtém especialmente fora
do mercado de trabalho” (LARANJEIRA, 1999), com o deslocamento das
ofertas de postos de trabalho do setor industrial para o setor de serviços.

“Diferentemente do que ocorria com os


grupos subordinados e explorados, porém
indispensáveis, da sociedade industrial, os hoje
excluídos são considerados inúteis sociais,
desqualificados também no plano político e cívico, já
que atomizados destituídos de esperança de poder
melhorar as condições de vida e carentes de um
projeto alternativo de sociedade, não apresentam
condições de se organizar em movimentos sociais
autônomos.” (CASTEL, 1995, p. 412).

Entretanto, sob esta aparente ruptura pode ser notada uma continuidade
e uma penetração extrema do espírito de mercantilização, em todas as esferas
da vida, que impulsionou a sociedade industrial. A questão de fundo não é,
portanto, a forma, mas os objetivos que orientam o crescimento econômico
que, por si só, é fator de desregramentos, atuando em todas as esferas da
vida, da biosfera à psicosfera (MORIN, 1995).

“Os efeitos civilizacionais produzidos pela


mercantilização de todas as coisas, justamente
173

anunciada por Marx – depois da água, do mar e do


sol, os órgãos do corpo humano, o sangue, o
esperma, o óvulo e o tecido fetal tornam-se
mercadorias – são a decadência da doação, do
gratuito, do oferecimento, do serviço prestado, o
quase desaparecimento do não-monetário, que
ocasiona a erosão de qualquer outro valor que não o
atrativo do lucro, o interesse financeiro, a sede de
riqueza...” (MORIN, 1995, p.71)

Pode-se notar que a exclusão social com todas as suas conseqüências


de ´periculosidade criminal´ não é um impedimento para que a sociedade de
consumo detenha sua marcha, ao contrário, parece que a exclusão dos não-
consumidores (BAUMAN, 1998) erige-se como justificativa e exigência
heteronômicas dessa sociedade que expulsa para suas margens os elementos
que não são socialmente integrados pela via do consumo.

Inaptos a permanecerem no jogo, obedecendo às regras oficiais, são “a


encarnação dos „demônios interiores‟ peculiares à vida do consumidor”
(BAUMAN, 1998, p.57). Dessa maneira, são estigmatizados como o mal
original que se opõe ao bem supremo representado pela capacidade de
integração, de acordo com as regras do jogo.

Assim, emerge como expressão da violência da sociedade


contemporânea, a “indústria da prisão” (BAUMAN, 1998; WAQUANT, 2001)
como fundada na divisão social entre consumidores e não-consumidores.
Identifica-se esse processo “numa sociedade inteiramente desregulamentada,
privatizada, animada e dirigida pelo mercado consumidor” cuja expressão
máxima encontra seu lugar na sociedade norte-americana, onde os sucessos
eleitorais de democratas e republicanos são proporcionais à eficiência de seus
discursos sobre segurança, reduzidos a propostas de repressão violenta à
criminalidade, junto a “consumidores ostensivamente bem-sucedidos”
(BAUMAN, 1998, p.58).
174

No fim do Estado do bem-estar social, pode-se ver que os desintegrados


do mercado de consumo representam um perigo a ser tratado fora dos limites
da sociedade, sem chances de reintegração. Agora, as fatias orçamentárias,
destinadas outrora às medidas de assistência aos desempregados
temporários, passam a ser empregadas “na construção e modernização
tecnológica das prisões e outros equipamentos punitivos e de vigilância”
(BAUMAN, 1998, p.78). Como prova quantitativa dessa análise, podem ser
examinados os números ascendentes de encarceramentos nos Estados
Unidos.

A incriminação e a brutalização dos "pobres globais" (WAQUANT, 2001)


é anterior à concretização do crime. Se, no plano interno, a estratégia
repressiva dos países ricos volta-se para o reforço do sistema policial e
carcerário, a isso combina-se, no plano externo, uma política comercial de
venda de armamentos que, além de equilibrar a balança de pagamentos da
repressão, serve para manter os conflitos violentos confinados em áreas
distantes, cujos conhecimentos circularão pelo mundo na forma de espetáculos
banalizados pela mídia (BAUMAN, 1997).

"As guerras civis (ou simplesmente de


bandos) infindáveis, cada vez mais devastadoras e
cada vez menos ideologicamente motivadas (ou, sob
qualquer outro aspecto, 'orientadas por uma causa',
no que diz respeito a isso) são, do ponto de vista
dos países ricos, formas inteiramente eficazes,
baratas e com freqüência lucrativas de policiar e
'pacificar' os pobres globais." (BAUMAN, 1997, p.79)

E se o aumento da pobreza em nível mundial não se traduz em


movimentos organizados de contestação ao sistema, isso não atesta sua
eficácia de funcionamento social, mas sim “a eficácia das estratégias
combinadas de exclusão, incriminação e brutalização dos estratos
potencialmente 'problemáticos‟ ” (BAUMAN, 1997, p.81).
175

Especificamente no Brasil, embora os grandes centros urbanos tenham-


se estruturado com recurso constante à violência, esta foi negada com a
instituição do “mito da índole pacífica” do povo brasileiro (CHAUI, 1998).
Entretanto, a história mostra-nos o contrário, ou seja, as relações escravagistas
que marcaram a trajetória brasileira ainda deixam traços profundos nas
representações e prática sociais. A exclusão do pobre, do preso, do subalterno
se expressa na segregação urbana, no racismo latente, na hierarquização das
funções e, principalmente, com o mito da igualdade, expressa-se a intolerância
à diferença.

Nesse contexto, a violência contemporânea no Brasil apresenta duas


facetas ambíguas e contraditórias. Por um lado, expressa-se numa cultura
autoritária, através de uma espécie de linguagem naturalizada que cumpre
perversamente a função de integrar as distintas hierarquias e eixos de poder,
representando um mecanismo no interior do qual se impõe uma ordem
classificatória, que restabelece o equilíbrio frágil entre fortes e fracos,
independentemente da mediação das leis e das instituições. Por outro, essa
mesma cultura autoritária convive com uma cultura política democrática, da
qual é possível condenar a violência em nome de uma racionalidade jurídico-
política e de uma ética, mesmo que frágil, que clama a consolidação do Estado
de Direito (ADORNO,1995).

O esfacelamento atual do Estado brasileiro, que nem chegou a ser de


bem-estar, estaria representando o declínio tendencial da frágil politização e
psicologização das relações sociais (SOARES,1996). Além disso, a exclusão
moral de grupos considerados à margem da sociedade estaria sendo
alimentada pela ausência de exercício cidadania democrática, pela ausência de
poder dos da população governada.

Na sociedade brasileira, a escassez de recursos para que se possa viver


os direitos sociais e econômicos parece encorajar a competição entre os
cidadãos e a percepção de que existem beneficiários merecedores e não
merecedores. O merecimento é julgado em relação àqueles percebidos como
176

hierarquicamente inferiores. Nesse sentido, migrantes, camelôs, favelados,


criminosos são percebidos como recebendo benefícios indevidos.

“A percepção da discrepância entre os que


pensam merecer ter e os que efetivamente têm, não
se transforma em demandas contra os responsáveis
por estas carências, mas contra grupos percebidos
como inferiores e como desfrutando de alguma
vantagem não merecida. Esta exclusão moral
manifesta-se em diferentes níveis e intensidades,
que vão desde a solicitação de controle destes
excluídos até a defesa da eliminação física deles.”
(CARDIA, 1995, p.375)

As experiências individuais de um número cada vez maior de pessoas


vítimas de alguma das formas de violência urbana são confrontadas e
ratificadas por experiências coletivas de tragédias sociais. A exposição pública
de iniqüidade, característica do conjunto social, terminou levando a sociedade
à desmontagem dos mitos civilizatórios, pacíficos e modernizadores que
alimentavam o imaginário social brasileiro.

Apresentando uma enorme visibilidade empírica e uma forte resistência


à reflexão, as ações violentas reduplicadas e potencializadas em seus efeitos
por um conjunto de redes discursivas e interconectadas, geraram, sobretudo
nos centros urbanos brasileiros, essa modalidade de cultura, onde o medo e o
pânico se naturalizam e a agressão se banaliza e se torna rotina (MADEIRA,
1995).

Com outras configurações, reacende-se, hoje, o mito das classes


perigosas, voltado para pobreza em geral e para as favelas, moradores de rua,
crianças e jovens especificamente58.

58 Ver estudo etnográfico sobre meninos de rua de Silva, H. & Milito, C. Vozes do meio fio, etnografia, 1995.
177

A dinâmica das relações violentas entre agressores, vítimas e


autoridades vem mostrando uma percepção contrária nas manifestações de
alarme: são tratados como fatos rotineiros, cotidianos, com larga aceitação
entre diferentes grupos da sociedade (SOARES,1996). Parece haver uma
inclinação, disposição da sociedade para reconhecê-los como se fossem meios
“normais” de resolução de conflitos, seja nas relações entre os grupos sociais,
seja nas relações intersubjetivas. O tratamento dado à problemática da
violência doméstica59, no Brasil, revela a invisibilidade do fenômeno.

A não indignação frente às violações dos direitos humanos e sociais dos


apenados brasileiros pode ser um indicador da desativação de mecanismos de
autocontrole moral, de um processo de exclusão moral. Observa-se que esta
exclusão ocorre quando pessoas, que normalmente obedecem às leis e as
respeitam, aceitam ações bárbaras contra indivíduos ou grupos. Neste
processo, certos grupos são colocados fora da comunidade moral e, como
conseqüência, as relações com eles não mais envolvem princípios de justiça.
As racionalizações justificam os maus tratos, humilhações, torturas, sem haver
qualquer auto-crítica de que isto viola regras consensuais de justiça. Ao
contrário, muitas vezes estes procedimentos tornam-se expectativas sutilmente
disfarçadas.

Um dos sintomas de desligamento de autocontrole moral é a negação da


responsabilidade pessoal: deslocando-se a responsabilidade para outros
(decisões coletivas em que ninguém é responsável), negando-se as
conseqüências desumanas do comportamento -“não houve massacre”-,
culpando-se as vítimas ou, ainda, desumanizando as vítimas - “são
subumanos, não têm sensibilidade, têm mais é que apanhar...” (CARDIA, 1995,
p.345).

Outra conseqüência observada da violência na sociedade brasileira é a


fusão que esta vem promovendo entre vítima e agressor. Isto é, a pessoa
atingida, ameaçada, humilhada, vive freqüentemente, no momento da

59 Sobre esta temática ver artigos de Bárbara Soares, Jaqueline Muniz e Maria Gregori. In: SOARES,LuisE. Et al. Violência e
política no Rio de Janeiro. 1996.
178

agressão, fantasias de ódio, vingança e terror sobre o agressor. Nivelados na


reação de ódio e na disposição para a violência possível, vítima e agressor,
apenas se distinguem externamente.(SOARES, 1996)

À medida que o Brasil começa a entrar na luta contra o narcotráfico,


acirram-se as disputas pelo controle da distribuição da droga, disputas que
envolvem conflitos entre quadrilhas e entre essas e a polícia. Nesse processo
em que se impõe um padrão organizado e empresarial à criminalidade violenta,
jovens pobres das grandes periferias urbanas são requisitados para entrada no
negócio, que lhes acena com dinheiro no bolso e posse de outros bens
materiais e simbólicos, culturalmente valorizados nesta sociedade industrial.
(ZALUAR, 1985; FORRESTER,1997).

A penetração do crime organizado ligado ao narcotráfico na estruturação


das relações sociais, principalmente nas organizações das periferias
brasileiras, caracteriza a busca de influência e inserção social deste setor que
se organiza em tudo cada vez mais, conforme os moldes de acirrada disputa
capitalista dentro de um complexo segmento de mercado, onde os jovens e
adolescentes são explorados como mão-de-obra descartável.

Ao demarcar essa situação, percebe-se que a dominação dentro de


conceitos weberiano é, aqui, perfeitamente identificável como "probabilidade de
encontrar obediência entre os grupos sociais envolvidos" e da "reivindicação de
legitimidade" (FAUSTO NETO, 1995). Assim, o poder do narcotráfico adota
medidas estratégicas para garantir sua continuação legitimada, combinando
ações de inserção social com ações coercitivas violentas. Ressalvando que a
teoria weberiana circunscreve o recurso à força e à coação física ao uso do
poder e da dominação na associação política do tipo em que o Estado se
legitima pelo monopólio da força . Contudo, no vazio deixado pela arbitragem
institucional do Estado de Direito, a dominação social do narcotráfico se
legitima como poder "autoritário" (IDEM).

Dessa forma, a violenta sociedade da exclusão redefine poder simbólico


do espaços institucionais - escolas, instituições para adolescentes infratores,
179

prisões - de isolamento de excluídos, mantendo ainda o discurso da pretensa


finalidade de reparação e reintegração social, mas a prática da violência não é
senão a continuação da violência imanente à sociedade em que estas
instituições se inserem, sendo, muito freqüente ouvirem-se comentários da
opinião publica e nos meios mediáticos sobre essas instituições como escolas
do crime, redução da minooridade penal, necessidade de penas mais rígidas e
longas, etc.

4.2 Conversando com os Sujeitos da Pesquisa sobre o Poder Simbólico

do Lugar

Um mágico ou juiz, ou réu


Um bandido do céu!
Malandro ou otário, quase sanguinário!
Franco atirador se for necessário!
Revolucionário ou insano. Ou marginal!
Antigo e moderno, imortal!
Fronteira do céu com o inferno!
Astral imprevisível, como um ataque cardíaco do verso!
Violentamente pacífico!
Verídico!
Vim pra sabotar seu raciocínio!
Vim pra abalar o seu sistema nervoso e sanguíneo! (RACIONAIS)
180

Conforme visto anteriormente, a sociedade moderna, através da


constituição do Contrato Social, designou ao Estado a tarefa precípua de
proteção, segurança e manutenção da ordem. Entretanto, a população prisional
atualmente vive um contrato social excludente, onde não só tais
responsabilidades não são cumpridas, como atua-se no sentido contrário.

O controle social formal, manifesto no poder do Estado de punir,


estruturado em um sistema que se materializa através do processo de
criminalização de determinadas condutas conflituosas ou socialmente
negativas, ao mesmo tempo em que reduz o enfrentamento de tais condutas à
simplista reação de impor uma pena a seus responsáveis, produz um enorme
volume de violência e de dor, sob a forma de deterioração moral, privação da
liberdade e morte (KARAN, 1997).
181

Tendo como entendimento que a pena só consegue se explicar em sua


função simbólica de manifestação de poder e em sua finalidade não explicitada
de manutenção e reprodução deste, qual força estaria emergindo com os
novos dispositivos de autoridade que a pena de prisão vem representando?

Conforme foi visto no Capítulo 3, a prisão no Brasil, dos anos 90, volta à
cena não somente simbolizando o aumento da pobreza e do caos social, mas
sinaliza, além de uma sociedade fraturada, uma nova forma de exclusão.

A desintegração da prisão revela a desestruturação na rede de relações


entre presos e os “trabalhadores da tecnoestrutura” (GUINDANI, 2000). Reflete
o fim da idealização da modernidade de um lento mecanismo fundado na
normalização. O projeto da prisão representaria o símbolo da sociedade
perfeita. Entretanto, na determinação da normalidade não aparece a diferença,
e sim produz-se a equivalência generalizada, um nivelamento onde todos são
iguais, o que seria a maior de todas as violências.

As novas configurações do poder punitivo na prisão não se mascaram


cinicamente, não se escondem; mostram-se como tirania levada aos mais
ínfimos detalhes e, ao mesmo tempo é puro, é inteiramente “justificado”, visto
que se pode formular no interior de uma moral que serve de adorno ao seu
exercício.

A violência simbólica aparece na prisão, como experiência consolidada


historicamente e configura-se, de um lado, como problemática global em
expressão de fragmentação e rupturas na organização do social. Por outro
lado, no Brasil, a violência simbólica na prisão, ao mesmo tempo em que se
torna visível, estandardizada pela mídia, é invisível pela ausência de pesquisas
de campo que atualizem o debate público sobre o tema. É tratada como
fenômeno episódico, a despeito da sua magnitude e de estar desconectada
dos demais problemas sociais, excluída, inclusive, do debate sobre outras
formas de violência e da mobilização para enfrentá-la.
182

A prisão, na sociedade contemporânea, torna-se uma instituição e


exemplar para revelar a dinâmica de uma violência simbólica. Sua
complexidade reside na ambigüidade de ser e não ser a imagem da própria
sociedade. É imagem enquanto os mecanismos de dominação na prisão são
transparentes e perpassam toda a organização social com objetivo de
transformar a vida humana em força (im)produtiva. Em contrapartida, aparece
no imaginário social da sociedade como sua anti-imagem, como seu contrário,
pois pelo fato de ser separada, discriminada, permite aos que se encontram
fora de seus muros a sensação de serem livres, honestos e vingados.

Os registros abaixo ilustram a imagem que a sociedade tem do


apenado/prisão:

“Tanto a sociedade que só conhece o que vê


na TV (rebeliões, fugas e tragédias), como o poder
judiciário deveriam reconhecer que existe
recuperação para a maioria dos presos.”
(questionário 178)

“Tem uma questão importante, que a


sociedade não se interessa pelo sistema prisional, a
sociedade não se interessa pela cadeia. Ela quer
que o preso vá para cadeia e que fique na cadeia,
ela não se interessa, de como é que está sendo
tratado aqui dentro, as condições de trabalho aqui
dentro, se ele está sendo ressociabilizado, isto não é
interessante para a sociedade. Então o sistema
prisional, por esta visão da própria sociedade, ele se
torna uma forma de exclusão, isto aí é pacífico, só
que não existe, eu não vejo pelo menos outra forma
da sociedade punir seus agressores, até o próprio
Michel Foucault que é contrário à prisão diz que não
tem outra forma, e não existe mesmo. Então assim,
tem trabalho doutrinário, tem trabalhos(...) a
183

sociabilização, porque a prisão ela tem dois


objetivos, um é a prevenção e outro a sociabilização,
e a questão também (...) mas, na verdade existe a
prevenção e existe a (...), mas a ressociabilização
não existe. Não existe porque a sociedade não tem
interesse, para começar pela verba que manda, a
sociedade não tem interesse, a assembléia não vai
aceitar uma verba grande para o sistema
penitenciário, para dar melhores condições de vida
para o preso. O próprio presídio central é uma
mostra de como é que (...) a estrutura é falha, o
próprio preso, as condições de trabalho, tudo (...)
não é cumprida e não é só aqui no Presídio Central,
ela não é cumprida em quase a totalidade dos
presídios no Brasil, de repente existe um ou outro
que tenha condições estruturais de ser cumprida,
mas não aqui . Por falta de interesse da sociedade
isto acontece, e é uma forma de violência, esta sim,
que a sociedade impõe ao preso. A violência da
exclusão desta mesma sociedade.” (grupo de
discussão com BM).

Conforme apresentado no item anterior, os dados revelam que as


pessoas que apoiam as graves violações dos direitos dos presidiários não
dissociam a imagem da prisão do delito cometido e o efeito que este delito teria
sobre o caráter do criminoso. Quem apoia as graves violações dos direitos dos
presos percebe a vida na prisão como um privilégio em relação a da maioria
dos brasileiros: “Possuem, cama, comida e até assistência para não fazerem
nada o dia inteiro, só vadiar...”.

Essa perspectiva de pena como privilégio também apareceu na fala,


tanto de funcionários como de apenados:
184

“... Me sinto como se estivesse num SPA,


perto de tudo o que já passei isso aqui é uma
Disneylândia. Procuro ocupar meu tempo com
coisas que eu não fazia lá fora.” (entrevista com
preso 11 )

“...O que a prisão simboliza para a sociedade


(...)é muito místico, alguma coisa neste sentido.
Porque a gente recebe até as turmas que vem uns
mais jovens outros nem tanto, de faculdades que
assim e dizem: `Nós imaginávamos isto aqui
completamente diferente. A gente imaginava cela
fechada e tem até cama. Aqui tem cama, cada
galeria, cada pavilhão daqueles tem um local para
esportes, tem médico, tem atendimento psicológico,
Assistente Social.‟ Quer dizer, a sociedade ainda vê
como um depósito de pessoas, tiram da sociedade,
colocam num local por um determinado período, de
preferência não digam nada, não falem nada de
como vai ficar e de como está.” (grupo de discussão
com BM)

Na opinião pública em geral e mesmo para alguns presos, os apenados


são vistos como recebedores de benefícios imerecidos. Esses “ganhos”
causam sentimento de indignação aos outros, pois os recursos utilizados para
manter os presos seria desviado de quem realmente contribui para a ordem
social.

Essa perspectiva de apoio à violação dos direitos dos presos vem sendo
alimentada pela imagem de que o sistema penitenciário não é punitivo; imagem
de que, quem infringe a lei não tem condições de ser regenerado- discurso
despótico sobre violência.
185

Portanto, o silêncio da sociedade, que se cala quanto às condições


subumanas dos presídios, é uma das formas de violência simbólica. Conforme
visto anteriormente, esse silêncio pode estar representando perigosos
espelhamentos simbióticos que abalam a pessoa moral e ética que também
somos. A sociedade agredida, ameaçada e aterrorizada vive fantasias de ódio,
vingança e terror sobre o tema prisão, ocorrendo assim uma fusão entre
agressor e agredidos, violados e violentos (SOARES,1996).

Por outro lado, os presos também não se sentem apoiados no retorno à


sociedade. Conforme dados, 52% dos presos disseram que sentirão rejeição
da sociedade depois que saírem da prisão. Isso reforça a auto-imagem de
vítimas de uma sociedade injusta e desigual. Como pode ser observado que,
para 29,3% dos funcionários do PCPA a maioria das pessoas estão presas
porque são malandros, 27,8% porque são marginalizados, 27,8 % porque são
vitimas da sociedade e 7,6% por uma fatalidade e, 3,6% indicaram outros
motivos. Ou seja, 55,6% estão presos porque são marginais ou vítimas da
sociedade. Em outra questão, 55% afirmaram que a maioria dos presos são
bandidos e 30% vítimas da sociedade, 11% viciados e 4% outros. Ou seja,
41% são vítimas ou dependentes químicos.

Já para os presos, o sentimento de injustiça se agrava pois, para eles, a


grande maioria que está na cadeia é porque: para 53,1%, são vítimas da
sociedade, 30,9% são viciados e apenas 15,7% são bandidos. E ainda, 40,2%
disseram que estavam presos por uma fatalidade, 27,5% porque foram vítimas
da sociedade, 25,5% por um erro da Justiça, 2,4% porque se consideram um
marginal e 2,4% por que se consideravam malandros.

A fala de um apenado ilustra muito bem a auto-imagem dos apenados


do PCPA:

“Eu não acho que os presos não prestem,


para a sociedade são como frutas podres, mas ao
meu ver poderiam ter sido pulverizados antes de
crescer, mas já que adquiriu um fungo, essa parte ao
186

menos deveria ser retirada, aproveitando-se então o


restante da fruta. eu notei que o mais bandido tem
coração, o que ele não teve foi chance de uma
sociedade injusta e um poder corrompido.”
(questionário 551)

A imagem construída dos efeitos “perversos” daquele “mundo


intramuros” associa-se automaticamente ao “medo do crime”, à “insegurança
urbana” e, principalmente, o estereótipo de prisioneiro, legitimando a
reprodução das relações sociais de desigualdade; tornando-se banalizado que
“eles”, os “menos privilegiados”, estejam no lugar que merecem. Tal análise
acaba por favorecer os sentimentos ambíguos de culpa e raiva que aparecem
na relação de espectadores que os demais cidadãos têm para com a prisão.

Assim, prisão e encarcerados tornam-se fenômenos que representam


uma ameaça tão profunda à sociedade que as atitudes revelam o desejo que
sejam excluídos do mundo dos humanos. Observa-se o limite dessa exclusão
ao se negar o direito à vida, quando se evita por exemplo, discutir e enfrentar
os problemas da AIDS e Dependência Química que atingem grande parte da
massa carcerária brasileira, conforme foi sinalizado no capítulo dois.
“o céu mesmo gira continuamente em círculos, o sol
nasce e se põe, as estrela e os planetas mantém
constantes o seu movimento, o ar ainda é levado
pelos ventos, as águas fluem e refluem...ensinando-
nos que devemos estar sempre em movimento”.
(Robert Burton)
5 A AUTO-ORGANIZAÇÃO DO LUGAR

Nesse capítulo pretende-se demonstrar a premissa III a partir de


indicadores que expressam os elementos que configuram a auto-organização
de uma grande prisão tendo como referencia o PCPA.

Inicialmente é importante relembrar que a idealização da prisão como a


pena principal simbolizou, como deveria ocorrer, o processo de normalização
dos sujeitos considerados desviantes. Isto é, para transformar a conduta
destes, as instituições eram organizadas de modo a intervir sobre o corpo
humano, treiná-lo, torná-lo obediente, submisso, dócil e útil. Existia um
esquadrinhamento do corpo, cada pessoa ocupava um determinado lugar,
devendo ficar naquele espaço e não no outro. O tempo era regulado e
distribuído, em certos horários e não outros. As atitudes eram, também,
observadas minuciosamente, vigiadas, registradas. A disciplina encontrava-se
presente nos mínimos detalhes da organização da vida carcerária. O poder de
dominação não era empregado somente para reprimir, mas também utilizado
para produção e reprodução de novos comportamentos sociais através de
esquemas de vigilância, punições e recompensas (FOUCAULT, 1997,1979).

No Presídio Central de Porto Alegre, verificou-se que essa pretensa


“normalização” ocorre pelo avesso. O preso ainda perde sua privacidade e de
modo absoluto está permanentemente exposto a olhares dos outros, no pátio,
no dormitório coletivo das galerias, no banheiro sem porta, na visita íntima
realizada entre as divisórias imaginárias. (GOFFMAN, 1987). Os apenados
189

convivem intimamente com companheiros que não escolheram, muitas vezes


indesejáveis, seus familiares são expostos publicamente, as avaliações
técnicas a que são submetidos e também acompanhadas pelos profissionais
da guarda por questões de segurança.

Na prisão „moderna‟ - até anos 70 - o preso perdia o direito de dispor de


dinheiro e de se manter à custa do próprio trabalho. Sua subsistência estava
garantida pelo Estado, que decidia o que ele deveria vestir, comer, em que
horário, o que deveria ver, ler, fazer ou, simplesmente, nada fazer. Além desse
papel radicalmente submisso, o apenado sabia que estava sendo vigiado em
seus mínimos gestos e qualquer conduta fora das regras possibilitava
punições. Atualmente, permanecem essas “máscaras” do poder institucional;
entretanto, o preso nem sempre estabelece uma relação de submissão direta
com o controle e a vigilância formal. Esse controle é mais sutil, camuflado,
deslocado para aqueles que têm um “bom comportamento”, ou seja, para os
presos trabalhadores. Dessa forma, criam-se novas necessidades de fazer uso
de estratégias de controle da massa carcerária não trabalhadora. Por exemplo,
o controle formal passa a contar com o controle informal dos líderes das
facções, ou seja, aqueles que mantêm o controle das drogas têm o inegável
poder de adormecer e acalmar a massa carcerária, de manter a ordem,
tornando-se, assim, um instrumento da disciplina.

Que a delinqüência e ilegalidade dominadas são agentes para a


ilegalidade de grupos dominantes (FOUCAULT,1997) não é novidade dentro do
PCPA. O tráfico de drogas e de armas feito pelos que detêm o poder formal/
informal demonstra o funcionamento da “delinqüência útil”, a existência de uma
proibição legal, criada a partir do poder formal da prisão, desenvolve, em torno
dessa relação, um campo de práticas ilegais, sobre o qual se exercem novas
formas de controle para tirar um lucro ilícito por meio de elementos ilegais, mas
tornando-se manejáveis por sua organização em delinqüência.

Contudo, nas prisões modernas, a palavra de ordem correspondia à


segurança e disciplina.(FOUCAULT,1997 ;SUTHERLAND, 1996; MELOSSI &
PAVARINI, 1982; MOSCONI, 1982) Assim, ao se proporem a padrões de
190

comportamento adequados ao mundo livre, o sistema de castigos e prêmios


estimulava os presos a adaptarem-se ao mundo da prisão. Atualmente, as
privações são tantas que os privilégios ou prêmios não são quase mais nada
do que a ausência de privações que, geralmente, as pessoas nunca esperam
sofrer. O privilégio máximo é, evidentemente, a progressão de regime: o semi-
aberto (que proporciona algumas saídas periódicas por ano) e o aberto,
domiciliar e livramento condicional, conquistado pela avaliação dos grupos de
profissionais da área técnica que, além de se encontrarem desconectados do
mundo real da prisão, estão com medo e abandonados pelo sistema político
vigente que vem contribuindo para o desmonte do Estado.

5.1 O Controle e os Jogos do Poder

Hoje eu desafio mundo sem sair da minha casa


Hoje eu sou um homem mais sincero e mais justo comigo
Pode os homem vir que não vou me abala. (RAPPA)

A obediência é uma qualidade que é observada, de um jeito ou de outro,


por aqueles que habitam o espaço prisional - presos, familiares, funcionários,
visitantes – no PCPA. Nesta organização, desde a porta de entrada recebe-se
as orientações de como proceder para fazer o que os outros mandam, sem
questionamentos. Essa obediência envolve o aceitar ordens, mentiras, o não
fazer perguntas óbvias, não dizer o que se deseja, não se mostrar com raiva,
tristeza ou algum outro sentimento exacerbado, não exigir ou defender os
direitos previstos na LEP, baixar a cabeça para qualquer estranho e, em termos
gerais, concordar e não criar problemas.

A obediência à autoridade da Brigada Militar, por exemplo, está


profundamente arraigada no comportamento de todos as pessoas que
freqüentam o PCPA. É uma programação básica da qual poucos escapam. A
eficiência de combinar introdução gradual e sutil do abuso de força e o poder,
191

com a falta de opção, apoiada na violência, é amplamente demonstrada na


vida social dessa prisão.

A desobediência, quando surge, aparece como uma característica


rebelde e violenta, embora possa ser e, muitas vezes é, justificada. Refiro-me
principalmente à desobediência “suave” (STEINER, 1984) que provém do auto-
respeito e do compromisso sólido de ser um crítico do sistema vigente, que
vem do não endossar coisas com as quais não se concorda e de perguntar “por
que?” inúmeras vezes.

No PCPA, o controle de um grupo sobre o outro ocorre, principalmente,


através de jogos de poder, bem como dos abusos de poder a que os diferentes
sujeitos estão submetidos nessa prisão. É importante frisar que os jogos de
poder são aqueles utilizados para conseguir, uns dos outros, aquilo que
desejam. Por exemplo, muitas vezes os presos se utilizam de jogos com a
equipe técnica em vez de pedir diretamente o que querem, por não acreditarem
que uma abordagem direta traria os resultados esperados. Usam jogos de
poder para obter informações, objetos, pois pensam serem difíceis de
conseguir sem fazer uso dessas estratégias.

Existem vários de jogos de poder, entretanto, foram selecionados e


categorizados, alguns tipos, a partir da ótica de STEINER (1984), alguns tipos
de jogos para demonstrar como se dá o interjogo entre os microgrupos da
prisão.

A escassez - tudo é escasso no PCPA, mesmo o que está previsto na


Lei ocorre de forma retraída, por exemplo o acesso a informações sobre a
situação jurídica, ou o acesso à droga, ao sexo – tornam-se objetos de desejos
escassos e, por isso mesmo, valiosos no jogo das disputas entre os grupos.
Em virtude desta escassez as pessoas ficam dispostas a permutar e a fazer
sacrifícios para obter as necessidades básicas. Um exemplo dramático é o
oferecimento da irmã ou namorada como pagamento de dívidas com drogas.
192

Da mesma forma, conseguir as coisas com “jeitinho” é uma necessidade


comum entre os presos. Com freqüência, não é importante estar “certo”, mas
fazer com que as coisas andem de qualquer jeito. O que parece importar é
como esse jeito passa a prevalecer até ser legitimado. Muitas vezes
presenciou-se o grupo dos técnicos freqüentemente discutindo sobre algo que
eles percebiam que estava incorreto e não podiam parar só porque tomaram
uma posição e não poderiam negá-la.

No outro lado da mesma moeda aparece a necessidade de sempre


“estar certo”, independente da questão em causa. Essa é a fonte de muitos
jogos de poder que foram presenciadas entre a BM e o grupo dos técnicos. Os
jogos de poder utilizados para conseguir as informações, direitos e realizar
ações que são artificialmente escassas (como “estar certo” e os direitos) são os
mesmos usados para obter outras ações que são essenciais: ordem e
disciplina.

Essa escassez gera um ambiente de competitividade e avidez entre os


diferentes grupos e pessoas. Os que agem de maneira competitiva estão, em
geral, tentando apenas serem iguais aos outros e não ficar para trás, não
possuir menos que os outros. A avidez envolve o acúmulo de mais do que é
necessário e mais do que os outros possuem. Um exemplo disso é o costume
que alguns apenados têm de fazer estoques de alimentos na sua cela. No
PCPA alguns têm muito, outros, pouco. De uma certa forma, todos são ávidos
porque precisam e vão em busca de coisas que são escassas e se tornam
cada vez mais escassas. A avidez é um dos fatores mais importantes na vida
social do presídio, tanto nos relacionamentos interpessoais como
interprofissionais.

O jogo de poder, quando tem sucesso, é por que se aproveita das


fraquezas dos outros setores, ou o fato de o outro ser menor, mais fraco,
menos rápido ou, de alguma forma física, mental e politicamente, incapaz de
resistir ao uso bruto da força. Os jogos de poder de intimidação descritos até
agora atingem sua eficácia através da criação de culpa. À medida que se
193

tornam mais abertos e grosseiros, mais exploram o medo das pessoas. As


mentiras exploram a credulidade e o medo de confrontação dos sujeitos e
grupos.

O segredo - No ambiente do sistema prisional como um todo, as


pessoas são extremamente vulneráveis aos segredos porque, como forma de
rotina cotidiana, os apenados são submetidos intensamente a segredos, desde
os seus primeiros dias, na triagem. Uma das maneiras mais eficazes de
controlar a “massa” é criando-se segredos, pois uma das primeiras suposições
que se faz, quando se sente superior aos outros, é que não é preciso contar-
lhes toda a „verdade‟.

Em geral, a justificativa é a de que os que desejam controlar acreditam


que um novato não é suficientemente maduro ou inteligente para compreender
as coisas como elas realmente são. Ficariam chocados se soubessem a
verdade ou, então, as coisas são demasiado complicadas para serem
completamente esclarecidas. Estas justificativas para os segredos são usadas
pelos técnicos em relação aos presos, pela BM em relação aos presos e vice-
versa.

Por causa do segredo difuso em todos os lugares da cadeia, assume-se


isso como um fato mais ou menos consumado entre aqueles que convivem no
PCPA, obscurecido pelas outras formas de mentir que se utilizam nesse
cotidiano. Os segredos, mais do que obscurecer a consciência de como se dão
as relações, minam a capacidade de relações mais autênticas e verdadeiras.
Isolam-se da realidade, criando paranóia, invalidando algumas percepções,
desqualificando as emoções, criando curtos-circuitos e desorganizando o
pensamento daquele que quer saber um pouco do lugar, amortecendo os
sentimentos e percepções que, por fim, podem muitas vezes levar à loucura.

O segredo constitui-se no mais potente método de violência


(MAFFESOLI, 1987) que, por si só, destrói a capacidade das pessoas de
entender o mundo prisional e de ter a oportunidade de ser elas mesmas. Os
194

segredos fazem com que haja submissão, obediência e a crença de que o


insucesso e infelicidade são sempre culpa do outro.

Dentro do segredo estão as mentiras. A eficácia da mentira consciente


e descarada vai depender, em grande parte, da confiança e também da falta de
informação da pessoa que a recebe. Existe, ainda, outra forma de mentir
descaradamente. Esta baseia-se, de fato, não apenas na sua ignorância e
confiança, mas também num fator adicional: a mentira é tão grande que não se
pode acreditar que seja assim, embora não pareça verdadeira. Os presos têm
essa reação quando encontram um advogado novato prometendo o impossível
quanto à sua liberdade ou um gestor político da SUSEPE que promete resolver
problemas históricos em situação de motim ou rebelião.

É claro que, como decorrência do segredo e das mentiras, potencializa-


se a fofoca. Esse é um outro jogo de poder que emprega mentiras para sua
eficácia no controle na prisão. É especialmente eficaz em relacionamentos
interpessoais próximos e entre os diferentes grupos do PCPA. As pessoas
acabam introduzindo informações falsas na cabeça dos outros para manipulá-
los;

A fofoca – é, em geral, passada através de sussurros, sugerindo que se


trata de informação confidencial, que não deve ser levada adiante. Na
realidade é dito para ser passado adiante, mas o tom sussurrante implica que
nada está sendo dito, de forma que não se pode ser responsabilizado.

Rumores tornam-se cada vez mais distorcidos e têm a capacidade de


apavorar as pessoas e são utilizados na “desinformação” quando, com a
finalidade de confundir os outros sobre o que está acontecendo, alguém lança
um rumor falso e perturbador através de um assunto misterioso. Por exemplo,
“a BM vai deixar o PCPA até o final do mês...” “A cadeia vai explodir...” “Eles
estão cavando um buraco...” “A mulher do fulano sai com o ciclano...” “O
técnico está querendo ser transferido de casa pois não se dá com o sargento...”
195

Nesse contexto surgem as necessidades de fingimento que se apoiam


na recusa em reconhecer as expectativas dos outros. “Se você quer que eu
faça algo e eu não desejo fazê-lo, poderei usar várias alternativas para
dissuadi-lo de seu intento” O fingimento pode assumir várias versões. Não
ouvir, ler um documentos e tomar muitas anotações, olhar pela janela ou fazer
algo enquanto está falando com um apenado são todos bons exemplos
observados. Quando, no atendimento a um subordinado, é possível atender ao
telefone, ou então, intencionalmente, pedir a alguém que telefone no meio da
conversação e dizer ao interlocutor presente: “Pode falar que estou ouvindo. Só
tenho que atender a este pequeno chamado aqui”. Ou deixar uma pessoa 15
minutos de pé a sua espera para assinar um ofício, pois não é possível
interromper o diálogo com alguma visita importante.

Outra forma de fingimento presenciado é esquecer ou não ouvir. Faltar a


encontros, esquecer as promessas e, geralmente, jogar um jogo débil do tipo:
“Quem, eu?”, “Puxa, desculpe-me” são maneiras de frustrar as expectativas
dos presos, dissimulando ignorá-las ou mesmo não as entendendo.

Outra maneira de jogar com o fingimento é ignorar supostas regras, o


que, segundo os apenados, era prática comum na relação entre agentes
penitenciários e presos. Uma versão particularmente detestável desse jogo e
muito utilizada na prisão é ignorar recusas, na qual a pessoa continua a pedir
algo que já foi negado repetidas vezes.

Esse é um jogo de poder passivo que se baseia na exploração do senso


de obrigação do outro. Os que usam essa manobra estão muito sintonizados
nas culpas dos outros. Os que fazem jogos de poder de culpa criam um clima
ao fazer uma série de coisas para a vítima, todas elas com o objetivo de criar
um senso de obrigação que, depois, será cobrado. Aqueles apenados que
necessitam da segurança da guarda preparam o caminho, criando quantidades
suficientes de culpa ao mostrarem-se dóceis e comportados (POGGI, 1998).

O controle dos seres humanos em geral desenvolveu-se numa


196

tecnologia chamada “modificação de comportamento” (STEINER, 1984) ou


“biopoder” (FOUCAULT, 1997, 1999). Este uso dos poderes do “controle” para
conseguir comportamentos desejados funciona através da força, dividindo-se o
comportamento em duas categorias. Os atos “bons”, “corretos”, “apropriados”
ou “morais” são premiados e os “maus”, “incorretos”, “inapropriados” ou
“imorais” são punidos. Se as pessoas forem confinadas numa prisão ou outra
instituição qualquer (escola, hospital psiquiátrico), onde as recompensas e
punições são estritamente controladas, isso poderá ser usado para moldar, de
maneira eficaz, o comportamento dos seres humanos, sem que eles tenham
consciência disso. Igualmente eficazes são as estratégias sofisticadas
empregadas no controle de pessoas que não estão confinadas em instituições
por parte de pessoas que estão habituadas a dominar os outros.

O controle não é facilmente observável quando desenvolvido de forma


sutil e potente. Assume um papel nos bastidores, de maneira eficaz e
silenciosa, de preferência mascarada por um aparente sorriso. A maioria tem
dificuldade em acreditar que se está sob a constante influência de estratégias
controladoras e consideram que aqueles que são sensíveis a elas são
“paranóides”.

O controle pode descontrolar-se de forma ampla ou ilimitada.


Intimamente, podemos experimentá-lo quando o controle dos nossos próprios
sentimentos nos escapa e não somos capazes de sentir, a não ser uma apatia
dura e fria. As prisões e as organizações militares são ambientes férteis de
controle desenfreado.

Os jogos que pude observar na minha passagem pelo PCPA eram


voltados a conseguir as necessidade básicas (biológicas), e reafirmar um ponto
de vista a respeito de si próprio (existencial) e finalmente, estruturar o tempo da
pena (social) (POGGI, 1998).
197

5.2 O Tempo da Prisão: a Grande Ferramenta do Controle

Acendo um cigarro e vejo o dia passa


Mato o tempo para ele não me matar... (RACIONAIS)

“o dia da sentença eu recordarei como um


dia que vale anos...” (questionário 152)
198

“... qual o motivo de diversos presos estarem


cumprindo pena com tempo para a liberdade
condicional, e continuam em regime fechado? Qual o
motivo que no sistema atual , ... estão amontoados
num depósito de gente? Por que não é automático
regime semi-aberto e condicional quando se está no
direito do benefício?” (questionário 78)

Vem sendo visto e revisto, no decorrer dessa pesquisa, diante da


inevitável constatação da complexidade do atual sistema social
contemporâneo, ocorre uma notável perda da centralidade da estrutura
econômica e reprodutiva que por longo tempo constituiu forte referencial das
análises críticas sobre o sistema penal, destacando-se aqui, os fatores de crise
do sistema prisional. Foi visto que tais referências já não conseguem captar a
imprevisibilidade das variáveis dos jogos, a ingovernabilidade das políticas que
se entrecruzam na esfera punitiva e, portanto, a impossibilidade programática
dos processos de mudanças.

Por isso, a importância de destacar o tempo que vem sendo


estruturado, distribuído, organizado, produzido, simbolizado, transposto,
confuso (GOIFMAN, 1998), aparecendo como uma das expressões de
violência mais importante da atual organização da vida social no Presídio
Central.

O Presídio Central representa notoriamente uma forma de demonstração


caricaturada e extremada dos diversos aspectos que a sociedade industrial
produziu. É possível, contudo, pensar que atualmente a organização social do
tempo nessa prisão e a relação entre tempo social e tempo subjetivo resultem
dramaticamente extremados no interior da prisão na sociedade
contemporânea.

A relação importante na interpretação crítica da sociedade acabou


atribuindo à estrutura do tempo, com particular atenção à relação entre a sua
organização social e a sua percepção subjetiva, elementos cruciais na
199

determinação da mesma. No capitalismo clássico, o trabalho, assim como a


produção de mercadorias, constituem-se em referências interpretativas de
muitos aspectos e um fenômeno do qual a prisão poderá hoje reinterpretar
alguns aspectos desde organização prisional, tendo como referência a
categoria tempo como elemento estrutural normativo da organização social
(MOSCONI,1998).

Uma das primeiras questões que determinaram a idéia de recorrer à


privação da liberdade como pena foi a necessidade que a liberdade e tempo
fossem abstraídos e penalizados em geral como algo que atingisse a todos.
Isto podia dar-se porque todas as formas de riqueza social foram reduzidas a
uma forma mais simples e abstrata de medir no tempo: o trabalho humano.
(PAVARINI, 1996)

O valor econômico da liberdade, a possibilidade de quantificar em


termos objetivos, na transposição temporal, o valor da sua privação,
possibilitou também estabelecer-se a medida de um modelo a partir do “poder
se punir”, em uma sublimação publicista do referente contratual, concebendo,
assim, castigo legal como prestação pos factum, comensurando igualmente o
fato ao crime, retribuindo ao infrator um equivalente quanto a um valor
funcional.

Buscou-se, no contexto do PCPA, captar os conflitos, as tensões que


caracterizam a experiência do tempo externo e (re)considerar que o mesmo se
reflete no tempo dessa prisão quando: a) perpetua em nível simbólico e de
modo deformado seu tempo desejado (aquele quantificado e dominado da
primeira sociedade industrial); b) reproduz em nível estrutural a experiência do
tempo da sociedade pós-industrial, suas contradições e tensões que possa
desenvolver; c) a experiência de vivenciar o tempo da prisão resulta numa
profunda defasagem em relação ao tempo da sociedade externa globalizada.

Por isso, pode-se indicar que a experiência do tempo da prisão está


muito defasada da experiência do tempo externo, tornando-se assim uma
200

expressão da violência no sistema de organização prisional. (ROLIM, 1999,


CARVALHO, 2001)

O tempo na sociedade pós-disciplinar (DE GIORGE, 2000) está mais


complexo e ambíguo, aparece de um lado como reflexo de uma organização
social altamente definida, medida, programável, tecnologicamente controlada.
Do outro lado, o tempo aparece multidirecional, irreversível, descontínuo, com
várias possibilidades de escolha (GAUER,1998).

No tempo observado no PCPA esta alternativa não é substancialmente


vivida. A deformação dos elementos que se joga na temporalidade externa
produz uma anulação do espaço entre o quais as características do tempo
externo não podem jogar a favor deles. As tensões aí caracterizam a relação
entre o tempo social e o tempo subjetivo.

Lá dentro se mantém, de um modo fixo e de uma forma sempre


atrasada, o tempo de duração da pena, como quantidade excessivamente
retributiva do dano social. Como produto do crime, conserva inalterada a
simbologia e a ideologia do tempo como quantidade de valor transformado com
quantidade equivalente, da sociedade pré-industrial na década de 30-40 em
que foi elaborado o último código penal, com as devidas mensurações .

Devido a isso, é importante se fazer uma breve sinalização da


discrepância entre um delito que foi mensurado a uma pena privativa de
liberdade de 10 anos e o quanto esses anos representam, atualmente, uma
pena acessória, além daquela projetada há 70 anos atrás.

Sabe-se que na sociedade contemporânea o sistema dos transportes e


da comunicação tende a encobrir a enorme distância espacial em unidades de
tempo sempre mais limitadas, senão anuladas, da simultaneidade. Isto
comporta um tempo, um processo de contradição e de expansão ilimitada do
espaço (GAUER, 1998). A distância planetária torna-se quase anulada pelos
meios de comunicação telemática e informática e que, sobre uma escala,
201

rapidíssimos deslocamentos físicos se abrem num espaço ilimitado, por entre


os confins perceptíveis do mundo global.

Na sociedade contemporânea, o horário constitui-se a trama das


estruturações normativas do cotidiano, no qual as atividades são fixadas em
horários e essas tendem a impor-se sobre atividades secundárias, optativas
com múltiplas variações e imprevistos, fazendo com que o sujeito vivencie as
tensões contraditórias entre o tempo social e subjetivo, tendo que escolher
entre um deles. No PCPA, constitui-se uma trama fixa substancialmente não
modificável, em que os sujeitos deixam subtrair-se às definições institucionais
que vêm invadidas pela falta de privação e de estímulos e motivações em que
o rígido estranhamento da instituição induz.

Na sociedade contemporânea a relação entre trabalho e não trabalho


assinala os limites e os ritmos da possível manipulação e liberação do tempo.
O não trabalho, o tempo livre, o desejo de liberação do trabalho, a possibilidade
de mudar de alternativa de trabalho ou antecipar o tempo de atividade e
inatividade podem representar elementos de auto-organização do sujeito
contemporâneo e de uma nova significação do próprio tempo (DESAULNIERS,
1998). Algo que pareça improdutivo, segundo os valores tradicionais da
sociedade normatizada, pode revelar a própria produtividade, seja sob o perfil
da dinâmica das relações sociais, seja a partir do crescimento das experiências
subjetivas.

Na instituição prisional, a maioria não trabalha e, quando isso ocorre, há


o trabalho mecanizado, que caracteriza a maioria das relações produtivas e se
traduz em trabalho totalizante, como exposição de um contexto estranho que
impõe ao sujeito o senso da subalternidade à observação social.

A improdutividade forçada que o sujeito constrói, ou também as


atividades puramente correcionalistas que a ele são oferecidas deixam o
apenado complexamente relegado ao âmbito da improdutividade. Tudo o mais
é inserido em ampla e ambígua esfera de intensa produtividade, sob plano
teórico e como controle social geral.
202

A complexidade da estruturação do tempo social se traduz em uma


gama de elementos dinâmicos e descontínuos, de provisoriedade, assincronia,
superposição, e ainda o contexto da pressa. Dentro do PCPA essas dimensões
se escondem num tempo hiper-estruturado, monótono e totalizado, no qual
ocorre uma desestruturação total, como implosão passiva, onde se reflui cada
possibilidade de iniciativa do sujeito.

O tempo externo desenha, de forma complexa, um dinamismo


desregrado e uma miríade de micro-impulsos, que todavia, reflui-se e pode ser
articulado na dimensão da estabilidade que complexamente organiza as
sociedades desenvolvidas (MOSCONI,1998). Na prisão, a monotonia de um
tempo restrito e imposto nos limitadíssimos espaços de um território unitário e a
sua separação induzem à fragmentação da experiência subjetiva e a uma
desagregação do “ser social” dos sujeitos. Assim, é potencializada a exigência
de auto-relegitimação, de sobrevivência psicológica e material interna, de
dificuldade de gestão no sistema de relações internas, de ânsia e
desorientação para as situações futuras e sucessivas à saída do Presídio.

Na sociedade atual, observa-se um contraste entre um tempo que é


liberado da técnica que abrevia o tempo necessário para múltiplas atividades e
que aparece abundante em si mesmo e um tempo em que a necessidade de
desenvolver uma quantidade enorme de incumbências necessárias aparece
sempre mais escasso. No PCPA, o tempo é totalmente abandonado pela
imposição da passividade que se anula a uma total expropriação, em uma
absoluta escassez do que fazer e à espera de como serão as condições da
„minha pena‟. Assim, a contradição entre escassez e abundância é reproduzida
de maneira deformada.

Nos dias atuais, o tempo da sociedade manifesta-se de forma oposta ao


tempo do PCPA, em função do modo como os elementos se movem e se
compõem nas situações do cotidiano. Por exemplo, no mundo externo a
dialógica conflitual entre tempo social e tempo subjetivo tende a desenvolver
técnicas de diferenciações em diversos setores do próprio tempo, a graduá-lo e
organizá-lo, assim como a limitar e selecionar alguns em relação a outros. Na
203

prisão a complexidade existente (incerteza do tempo da pena, pluralidade de


definições e critérios, de funções e significados das mesmas, incertezas das
situações internas e externas, ou seja total incerteza das variáveis que podem
determinar a situação detenção) se move numa esfera de estranhamento e
impossibilidade de controle da parte do sujeito e não deixa o mesmo espaço de
intervenção interativa que não seja a de procurar adequar-se às lógicas dos
diferentes micropoderes para adquirir qualquer vantagem e segurança.

O sujeito se encontra submerso a um universo simbólico, organizativo e


totalizante. Os espaços de iniciativas que sobram, assim como o desfrutar de
pequenas ilegalidades possíveis, acabam sendo autodestrutivas e violentas.
Ocorre uma passividade no vazio, como único espaço próprio, a flutuação da
mente frente a fantasias irrealizáveis, um deixar-se invadir que procura
evasões impossíveis e auto-destrutivas. Portanto, esse conjunto de aspectos
flutua e implode dentro das diferentes instâncias vividas pelo tempo da prisão.

Nem sempre perceptível num contexto explícito, a violência do tempo da


prisão surge como um pano de fundo que invade cada percepção,
condicionando a perspectiva da pena. As diferenças com o tempo externo, de
como ele é vivido e como ele vem sendo imaginado pelo sujeito preso constitui-
se um dos nós da teia da violência da prisão.

O conjunto desses argumentos oferece diversos motivos para levantar a


questão da inadequação da pena privativa de liberdade em relação à
complexidade do tempo social na sociedade contemporânea. (MOSCONI,
1998, ROLIM, 1999, CARVALHO, 2001)

Na raiz das distorções, assinaladas anteriormente, consideradas como


indicadores de violência da prisão, está a distância entre o tempo ideológico
mumificado das instituições e o tempo sempre mais dinâmico e complexo
vivenciado pelo mundo externo. Isso posto, é possível afirmar que o tempo da
prisão atual, em termos de privação de oportunidade e de estímulo, de fratura
de experiências e significados, dos conflitos de identidade e de projetos, induz
maior violência a respeito de um tempo também recente, tanto da pena como
204

da questão de adequação e proporcionalidade, quanto do perfil sociocultural,


mais do que jurídico. O tempo da prisão aparece, então, proporcionalmente
mais lento e, portanto, há uma razão em considerá-lo maior do que qualquer
outro tempo que passa.

Tal violência apresenta a seguinte constatação: hoje, o conceito de


retribuição da pena em relação à sua duração aparece de modo infundado e
inadequado. Não sendo mais o tempo mensurável sobre a base das mesmas
referências do tempo externo da sociedade da década de 30, e, portanto, não
quantificável pela tensão e violência que se cria, o mesmo, consigo mesmo,
perde-se a cada proporção. Determina-se assim, a absoluta incerteza do direito
e possível disparidade de tratamento, em relação às diversas situações
subjetivas de relacionamento entre o tempo externo e o tempo interno. De fato,
tal relação é destinada a uma possível gama de elementos relativos a
experiência do sujeito, aos recursos externos, aos contatos presentes, às
oportunidades possíveis em vários níveis.

Todos esses aspectos, na medida em que se amplificam e se


diversificam na complexidade fragmentada do presente tempo social redundam
nas seguintes considerações a serem ponderadas:

- a fim de evitar tais desproporções e inadequações, a duração da pena


de prisão deveria, em cada caso, ser limitada ao máximo, na perspectiva de um
uso da prisão sempre mais limitada;

- se a resposta ao desvio penal não pretende ficar inadequada e deseja


respeitar o pluralismo dinâmico da atual complexidade da sociedade, essa
poderia pluralizar-se e diferenciar-se também com diversas formas de
experimentação, abandonando a rigidez pré-constituída do tempo.
205

5.3 A Socialidade e a Potência da Massa

Permaneço vivo, prossigo a mística!


27 anos, contrariando a estatística!
Seu comercial de TV não me engana,
HÃ! Eu não preciso de status nem fama.
Seu carro e sua grana já não me seduz,
E nem a sua "PUTA" de olhos azuis!
Eu sou apenas um rapaz latino americano
apoiado por mais de 50 mil mano!
Efeito colateral que seu sistema fez,
Racionais, capítulo 4 versículo 3(RACIONAIS)

As transformações pelas quais passa o ser humano na sociedade


contemporânea têm acarretado a revisão de conceitos e dogmas que, até
então, não eram contestados. O desenvolvimento científico-tecnológico fez
migalhas da racionalidade cartesiana. A ilusão do pacto social cristalizou-se
com as relações sociais mais solidárias. O menosprezo pelo poder regente tem
levado o sujeito social, involuntariamente, a buscar a satisfação de seus
interesses junto a grupos marginais, alternativos, diferentes, interligados à
massa social, cada um deles com seus símbolos e rituais próprios.

Fazendo o uso de uma abordagem complexa não totalizante do social


pelas múltiplas formas com que ele se manifesta e não pelo que ele deveria ser
– pode-se (re)conhecer que a socialidade é uma das formas de interligar os
microgrupos, formada por sujeitos que desempenham papéis com espaços
delimitados e com uma ética peculiar.

A cultura dessas neotribos (MAFFESOLI,1997,1998) (DIOGENES, 1998)


tem prevalecido sobre os processos econômico-políticos. Mesmo legitimada,
nota-se, que esse processo não é espontâneo, sendo também de difícil
captação dos substratos que a formam.
206

Fazem-se análises simplistas sem perceber o seu sentido. Por exemplo,


logo se define que as facções nas grandes prisões são expressões do crime
organizado. Ou, por outro lado, silencia-se sem compreender o seu poder ou
subestima-se o potencial de organização (vide a megarebelião em fevereiro de
2001 no Estado de São Paulo). Ao querer captar, na vida cotidiana do PCPA, a
vida quase animal que percorre, em profundidade, as diversas relações da
socialidade, nesse espaço circunscrito. identifica-se que a prisão, ao provocar
efeitos contrários ao projetado pelo pensamento moderno. Ao serem
reconhecidos, os seus efeitos perversos, em que os internos tornaram-se alvo
de um processo de “desculturamento”, esses desenvolveram várias formas de
enfrentamento que permitiram não desafiar abertamente a ordem oficial
imposta e os valores da sociedade, porém mantiveram-se como pessoas
autônomas com algum controle de seu ambiente.

Foi visto anteriormente que, na vida social da prisão, constituía-se entre


os presos um compromisso ético de não revelar os segredos, pois qualquer
informação que escape será utilizada pela tecno-estrutura contra eles. Já
sabem de antemão o tipo de comportamento que deles esperam os juizes, os
guardas, os técnicos, os visitantes, e, assim, esforçam-se por “cumprir” essas
expectativas, assegurando um certo equilíbrio ao sistema.

A grande saída coletiva e mais reveladora da capacidade de resistência-


violência- dos sujeitos apenados foi a criação de um sistema próprio de
interação social e de potência da massa, denominada “sociedade dos cativos”.
(THOMPSON, 1976). A tendência a auto-organização tornou-se visível no
PCPA, onde existe divisão social entre os membros, solidariedade, ética,
hierarquia própria correspondente a vida social. Alguns definem essa
experiência como processo de prisionização (GOFFMAN, 1987), isto é, a
socialização do condenado ao mundo da prisão, de forma que, ao sair dele,
após o cumprimento de uma pena relativamente longa, o sujeito nada mais tem
a ser com o mundo que o excluiu: seus valores não são semelhantes, como
também suas perspectivas, seus interesses e objetivos. Logo, voltar para
207

prisão significa um retorno ao lar e, assim, perpetua-se o entra e sai do


sistema.

Nessa perspectiva, atualmente, novos padrões de (in) disciplina vêm se


configurando como estratégia de manutenção do poder institucional e uma das
alternativas apresentadas e utilizadas pelos presos é o silêncio.

Revela-se aí o “silêncio da massa” (MAFFESOLI,1987) carcerária como


sinal de potência real do poder subversivo, de violência à violência da prisão.
Como elemento estrutural da organização prisão, possui uma “centralidade
subterrânea” na sua existência, ocupando todos os lugares do cotidiano
prisional, apresentando, ao mesmo tempo, modulações paroxísticas e
pequenas manifestações.

No silêncio da massa no PCPA, encontra-se uma seqüência de hábitos,


movimentos, códigos onde a discrição absoluta possibilita abrir brechas
necessárias numa situação de vida que, sem isso, tornar-se-ia asfixiante. Isso
posto, pode-se afirmar que as minúsculas atitudes do silêncio(ORLANDI,1997)
na prisão guardam uma extraordinária carga de subversão como alternativa ao
constrangimento do controle formal da punição.

Também, observa-se como o poder formal da prisão necessita desse


silêncio para a manutenção do mesmo. A única forma de disciplinar a massa
não é mais adestrando os presos - com trabalho, controle da rotina e vigilância
sobre o corpo - mas silenciando-os através de novos mecanismos de
(des)controle -, como por exemplo, o alto consumo de maconha .

Nesse sentido aparece a ambivalência da disciplina, pois a massa


“chapada”, silenciosa, simboliza um controle que depende de micropoderes dos
próprios presos, expressando-se através de uma indisciplina geral.

A relação prisão x cidade sempre foi marcada por uma tentativa de


disciplinarização e higienização de uma população marginal que ocupa um
espaço institucional demarcado, na organização do social, como uma das
“chagas” da sociedade moderna (MOZART, 1997).
208

Ao estabelecerem outras formas de organização física e social no


espaço prisional, os presos não correspondem e nem vivenciam o tempo-
espaço da disciplina e dinâmica da sociedade normalizada. Acabam, portanto,
estabelecendo uma heterogeneidade de hábitos, costumes e tradições (cultura)
representando rupturas simbólicas com a moralidade hegemônica. Constroem
espaços de socialidade (MAFFESOLI, 1982, 1987), indicando a potência da
massa que revelando a impossibilidade de se adequar à igualdade e
homogeneidade projetada; revela a resistência de quem, como excluído e
discriminado, não foi tratado como igual.

Essa socialidade passa a existir em razão de uma saída divina, de uma


religiosidade (sem conotação teológica) capaz de gerar uma potência tribal de
resistência aos poderes que lhe são estranhos e impostos. Isso tudo
desemboca nas facções de que participam os sujeitos apenados. E é essa
centralidade subterrânea informal que assegura a perpetuação da prisão uma
nova ordem institucional.

As diversas facções, ainda que opostas e diferentes, produzem e


reproduzem a vida social na cadeia. Isso, por mais paradoxal que possa ser,
vem revelando o ultrapassado individualismo e confirmando o sentimento
coletivo, de reatualização do antigo mito da comunidade. A fusão da massa
carcerária do PCPA não guarda compromisso com diálogo ou troca, mas
acontece uma verdadeira união em pontilhado (SCHIMIDT, 1999) . Não
existem funções - pois todos são “iguais” porque estão na mesma condição de
presidiários - e sim papéis desempenhados involuntariamente. Descobriu-se
uma idéia de rede numa estrutura aparentemente desordenada, mas acoplada
por um microcosmo espacial que é a cadeia- uma massa indefinida, um povo
sem identidade homogênea, um conjunto de várias tribos (MAFFESOLI,1998).

As facções, opondo-se ao poder político do comando da BM e dos


técnicos da SUSEPE, fazem uso da abstenção, do silêncio, da astúcia, da
ironia e do sarcasmo. Nisso é que consiste a sutil socialidade da massa.
209

Essa socialidade se fortalece em decorrência de uma saturação do


poder e do controle formal, pois cada grupo interligado origina a sua própria
potência, isto é, uma linha de princípios não-ditados e comuns aos
componentes do grupo. A massa carcerária passa, dessa forma, a ser dotada
de uma capacidade de resistência.

O PCPA vem experimentando uma nova organização, aparentemente


desordenada e efervescente. Trata-se de um vácuo referente aos vários
momentos em que a massa não apresenta interação com a guarda, com o
comando; assiste-se à morte da vigilância e do controle biopolítico
(FOCAULT,1997, 1999) em razão do fortalecimento da socialidade. A
demonstração disso é, por exemplo, a falta de contato da guarda com aqueles
presos que estão nas galerias. Essas agregações formadas pelo “estar-junto”
produzem uma tendência ao agrupamento; uma estabilidade estrutural que
supera as particularidades dos sujeitos, uma comunidade de idéias, tudo isso
formando uma certa substância impessoal das facções. Existe na massa que
está no fundo da cadeia um "saber de fonte segura", uma "direção certa" que
torna possível superar as diversas modulações da violência institucional,
fazendo com que as facções prosperem.

Assim, ao lado dos micropoderes que se interligam na instituição, existe


a potência de cada facção, que tem por base a versatilidade vinculatória da
auto-referência das periferias.

O poder da BM se ocupa da gestão e da manutenção da prisão e da


execução da pena; a potência é responsável pela sobrevivência das vidas na
prisão. Cada facção agrega-se através de um tipo mítico, uma emoção coletiva,
ou um divino social.

A família, os modos de receber as visitas, o sexo, a ideologia da cadeia,


são cada vez mais qualificados em termos que superam uma lógica
individualista. Assiste-se, portanto, tendencialmente à substituição de uma
social racionalizada e idealizada pelos diferentes discursos do poder do
210

sistema penal por uma socialidade com dominante empatia advinda da massa
carcerária.

Essa socialidade vai se exprimir numa sucessão de sentimentos, de


emoções, de ideologias, de uma sensibilidade coletiva que ultrapassa a
atomização individual. Evidencia-se, pois, uma ética, originária de cada galeria,
que afasta a imposição de qualquer regra compulsória de moral do poder
formal. E essa moralidade diferente denomina de experiência ética, é o
cimento (MAFFESOLI, 1998) que faz com que os diversos elementos de um
conjunto formem um todo. Em cada facção, vigora uma lei capital que não é
originária da volição individual, mas sim do emocionalmente comum a todos. O
senso de grupo das facções atua mais por contaminação do imaginário coletivo
do que por persuasão de uma razão social dominante por aqueles que estão
no poder formal de decisão sobre a situação jurídica e conseqüentemente a
vida dos presos. A sensibilidade coletiva, originária da forma estética da
cadeia, acaba por construir uma relação ética habitual – sabe-se que o
costume faz a comunidade existir como tal.

Os diversos modos identificados de agregações sociais não têm sentido


senão na medida em que permanecem em adequação com a base que
fundamenta as regras dos presos que lhe serviram de suporte.

As facções impõem o segredo como forma de ordenamento, sem a


presença da Brigada Militar ou SUSEPE. Esse fenômeno tribal é confirmado
pelas diferenças culturais (origem do delito que marca as diferenças) entre os
presos. As antinomias culturais, decorrentes ao outro, acabam por ser
responsáveis pela permanência e estruturação da facção na cadeia. É esse
politeísmo de referência versus uma unidade que cimenta e é o elemento
estruturante dos infinitos corpos sociais existentes.

Torna-se óbvio que é perfeitamente possível acolher o estranho que


entra pela primeira vez na galeria, de modo que ele se vincule a regras e tudo
permaneça na mesma situação de comando.
211

A acolhida instituída ao estranho (com exceção dos Duques - crimes


sexuais) permite a convivência diária da contrariedade e torna dinâmica a ação
entre os presos e os diferentes grupos. A disputa entre os diversos líderes
(deuses), ou pela interpretação das palavras de um só, é o que
verdadeiramente forma a consolidação do corpo social de uma galeria. Em
suma: a superpopulação e a mistura entre os presos tornou-se a responsável
pela consolidação do corpo social da cadeia, mesmo que existam contradições
acarretando crueldades inimagináveis.

A dessemelhança, da mesma forma que a semelhança, pode ser uma


causa de atração mútua. As facções formam-se justamente em razão das suas
antinomias com as facções vizinhas, de modo que o conflito é a própria razão
de ser de cada uma delas. E é essa diferença que põe os modelos
predominantes sistema penal moderno por "água abaixo”. E é essa diferença
que conduz às facções, pois, se a destruição é, ao mesmo tempo, construção,
pode-se concluir que a nova formação pós-destruição irá encampar todos os
aspectos diferentes da força que acabou por prevalecer.

As facções sobrevivem dentro de uma estrutura hierarquizada. Essa


ordem hierárquica permite uma espécie de equilíbrio orgânico que, de maneira
silenciosa corresponde às necessidades de disciplina e ordem da galeria,
formadora, pois, de uma regulamentação espontânea sem questionamentos. E
isso tudo quer dizer que o preso não é o início e o fim de tudo na prisão, mas
que são os diferentes grupos, as facções, o coletivo em sua complexidade que
prevalecem na auto-gestão da organização do PCPA. Todos os atores fazem
parte da mesma cena, mas seus papéis são diferentes, hierarquizados, às
vezes conflituais.

Esta é a socialidade que se esboça hoje no PCPA. Uma socialidade


orgânica, em que o apenado e as histórias factuais significam menos do que a
comunidade na qual se inscreve, bem como as histórias vividas no dia-a-dia -
se cristalizam no espaço.
212

Essa junção forçada acaba originando agrupamentos primários que são


os elementos de base de todas as estruturações sociais. A multiplicidade de
grupos, unidos por uma ética comum, irá estruturar uma memória coletiva
contraditória que assegura a unidade entre os presos.

E aqui novamente falha o individualismo iluminista, pois mesmo a


cidade não é formada por indivíduos livres, mas sim por uma multiplicidade de
pequenos enclaves fundamentados numa interdependência desigual e
absoluta. As facções das prisões são expressões de como essas cristalizações
vêm se formando na massa social dos excluídos.

Observou-se dois elementos essenciais na manutenção das facções : A)


Espaço que é o tempo concentrado. A agregação em torno de um espaço é a
essência de toda socialidade (MAFFESOLI, 1998) . Mas esse espaço vem
sempre ligado a uma simbologia própria, qualquer que seja o seu conteúdo:
crimes, AIDS, sexo, drogas. Cada facção, pois, com o seu conteúdo e território
delimitados, desenvolve o seu ritual peculiar, reconhecido, entretanto, por
outras facções. Não se diga, porém, que esse reconhecimento é pacífico, mas
o fato de não o ser evidencia ainda mais o próprio reconhecimento. Todas
essas facções, seja qual for a sua inter-relação, formam “a massa carcerária”,
formam a na prisão. Ou melhor, formam várias prisões dentro da prisão.

E, agora, pergunta-se: esse convívio é racional e é intencional por um


comando externo? É voluntário? Cada ator - constrangido a ser tal, é menos
agente do que agido. Cada preso se modela às ocasiões e às situações que se
apresentam. A vida social na prisão é como uma cena onde, por um momento,
se operam cristalizações (facções). E a peça, então, pode acontecer. Mas uma
vez apresentada, essa peça se dilui até que surja uma outra nodosidade.
Ocorre então uma sucessão de "presentes" (no futuro) que, de maneira geral,
caracterizam, o melhor possível, a ambiência do momento, o atual "mosaico
prisional". A partir daí, ao invés de interpretar a lógica das interconexões dos
diferentes grupos na cadeia, a partir de um mecanismo um tanto causalista,
pode-se apreciá-la de maneira complexa. Assim, cada sujeito preso vive sua
pluralidade intrínseca, ordenando suas diferentes "máscaras" de maneira mais
213

ou menos conflitual, e ajustando-se com as outras "máscaras" que a


circundam. Existe e existirá cada vez mais um vaivém constante entre as
facções e a massa carcerária e a massa dos excluído socialmente, processo
esse que se fortalece pelos elementos que o constituem.

Desse modo, fica o questionamento se a revalorização da violência,


através da criação de códigos de ética construídos por honra, coragem e
virtudes “guerreiras” não podem estar sinalizando uma das saídas pelo avesso
da ordem, uma saída para a violência institucional da pena de prisão?
“enquanto a sociedade não substituir a discussão de
qual melhor forma de vingar-se do individuo que
infrigiu suas normas, pela discussão de qual melhor
forma de trazer de volta o cidadão infrator à conduta
considerada “normal”, teremos, no sistema jurídico-
penalógico, o verdadeiro arpão”. (Lauri Kruger)
6 O OLHAR RECURSIVO

Hey mano, será que ele terá uma chance,


quem vive nesta porra,
merece uma revanche,
é um dom que você tem de viver,
é um dom que você recebe pra sobreviver,
história chata, mas você tá ligado? (RACIONAIS)

É possível romper com ciclo da violência da/na prisão? Durante a


pesquisa- tese essa questão me acompanhou durante todo o tempo. Para que
serviria demonstrar que:

“A violência da sociedade contemporânea tem, nas grandes prisões, o


lugar privilegiado para se condensar e se expressar através de uma teia de
significados. Para captá-la, é necessário a constituição de um olhar complexo
sobre o fenômeno, o que possibilita analisar a prisão, não somente como um
espaço institucional de manifestação do excesso de força e do poder de punir -
através do controle, vigilância e disciplina, mas também, como organização que
vem produzindo vida social, rupturas com o projeto idealizador da pena e
outras estratégias para combater a violência institucional, como o silêncio e a
potência da socialidade dos apenados, a luta pelos direitos humanos e sociais
via área técnica e sociedade civil. Seriam essas, estratégias que vêm abrindo
brechas para que sejam propostas novas alternativas à violência da própria
pena privativa da liberdade.”

A questão passa a ser: como desenvolver essas brechas?


216

6.1 Uma Abordagem Complexa sobre o Lugar e suas Expressões

A história das prisões (FOUCAULT, 1997) está repleta de fatos que


fornecem dados e quantidades quando se refere a relatos de violência. Na
violência que foi denominada de poliforme foi preciso resgatar os elementos e
nuanças - apresentados nos capítulos precedentes - para especificar as suas
expressões e percursos no PCPA .

Num primeiro olhar sobre o PCPA e o sistema carcerário brasileiro,


conforme o que foi sinalizado no Capítulo 2, pode-se articular violência na
prisão como manifestações de guerra, massacre, genocídio e o terror
(DADOUN,1998).

A violência da pena de prisão, como expressão de uma guerra


(ZAFFARONI, 1997) social, assinala uma violência institucionalizada,
ritualizada. Por mais cruel que seja, ela possui regras e leis que enquadram
condições e supõem a busca do controle e segurança. Passa a ser uma
metáfora da guerra quando vem acompanhada de constantes massacres
(motins, rebeliões, mortes por doenças infecto-contagiosas), que se traduzem
em um estrondo selvagem do ódio, do desprezo, das pulsões destrutivas : os
feridos são exterminados, os prisioneiros, mortos, queima-se, tortura-se, mutila-
se, descuida-se dos doentes. Encontra-se um verdadeiro estado de genocídio,
pois atinge-se o ápice do horror quando as destruições são deliberadas,
sistemáticas e programadas por todos os meios de comunicação, de uma
coletividade inteira cujos sujeitos são acusados e tratados como seres
"inferiores" , "sub-homens". O maior dos objetivos alegados da permanência da
prisão como “mal-necessário”, é a contenção, mas que concretamente
representa a eliminação total dos apenados como resposta ao controle da
criminalidade e inviabilidade de uma ação efetiva devido ao estado de guerra e
falência das idéias da ressocialização. (Premissas I e II)
217

Os dados eloqüentes apresentados no Capítulo 2 dão conta do estado


genocida em que se encontram os vários presídios desse País. Vê-se assim
que, à violência da memória, que se ocupa em preservar a realidade irrefutável
dos acontecimentos em todas as dimensões, opõe-se à violência das
denegações que afasta para o alçapão do esquecimento e do anonimato essa
odiosa realidade.

Na contramão, reforça-se o terrorismo das facções, surgindo de modo


mais organizado como resposta a esse estado de guerra. Surgem como sinal
de auto-organização da massa e dos atos de violência. Concentram-se num
ponto limitado no tempo e no espaço, visando a um foco cuidadosamente
selecionado, ainda que este seja representado por uma multidão anônima de
outros apenados. O terrorismo na prisão é caracterizado por uma violência
dupla: a) uma voltada para o interior da facção, violência densa, nodal,
podendo-se dizer fusionista, que encontra seu fim, sua justificativa, sua razão
de ser no ato em si. B) a outra, voltada para o exterior. Parte do atos realizados
estendem suas ondas de violência a toda a prisão, irradiando-se na população
externa, através da mídia, uma violência nebulosa, cega, difusa de se
compreender. As justificativas são voltadas para uma violência anterior: o
estado de guerra citado acima, o domínio político dos comandos, a exploração
econômica, a opressão social etc. (Premissas III e IV).

A fusão desses elementos gera uma obscuridade no tratamento da


questão e faz com se identifique o círculo vicioso, onde há sempre uma
violência anterior, provocando uma posterior.

Foi visto também que existem três personagens que compõem a


dinâmica organizacional do PCPA: os grupos vinculados ao poder formal
(funcionários e presos trabalhadores), o sistema penal e a massa carcerária.
Formam um triângulo que pode esclarecer a organização do PCPA quando se
traz a sombra à estrutura da luz. Centrado e concentrado em si mesmo,
pretendendo autonomia e identidade, o grupo do poder formal corresponderia
ao "eu ambivalente" pois ora se volta contra a massa e ora está voltado contra
o sistema punitivo, que é distante do dia-a-dia da Casa. Essa percepção leva a
218

comparar o sistema punitivo/penitenciário ao "superego" pois é ele que faz as


proibições, dita as normas, negligencia determinadas regras, detém a
autoridade e impõe a repressão. A massa carcerária representa o
"inconsciente", a força bruta e irracional. Os grupos formais, ao trabalharem em
favor da massa (ingênua, explorada) e essa, por ser violentada pelo sistema
penal (poder, força dominadora), faz alianças e jogos de poder que reproduzem
a lógica do sistema punitivo que tanto criticam. (premissa III)

Além disso, os atos de violência da massa têm por objetivo tirar a prisão
do seu estado de invisibilidade. Eles atingem indiferentemente sujeitos
representantes do sistema penal, dos grupos formais, e elementos anônimos
da massa.

A socialidade das facções seria uma das formas extremas da violência


se expressam na prisão. Ela se expande a partir de um processo auto-
organizado, e se dispersa e se difunde nos inumeráveis atos imperceptíveis
dessa violência (premissa IV).

O sujeito preso recém chegado no PCPA entra no mundo prisional,


depois de ser expulso da sociedade normalizadora que o excluiu através de
uma violência estrutural. Para muitos, estar no presídio é como estar em mais
um lugar de passagem dentre tantos na trajetória da criminalização. É fato
rotineiro. Os dados do perfil dos sujeitos pesquisados, apresentados no
Capítulo 2, confirmam a vulnerabilidade social e econômica ao processo de
criminalização e reincidência. Dentro dessa violência estrutural aparece a
violência institucional da pena em que se acrescenta uma união de
intervenções – jurídicas, administrativas, culturais, morais - que assumem a
organização da prisão „disciplinar‟ e a inscrevem numa rede cheia de
obrigações e proibições, de dependências e alienações, que desapossam e
marcam impressões na carne viva e na alma do sujeito que, dessa forma, terá
abalado, irremediavelmente, seu destino.

Foi descrito que as modalidades de acolhida dos apenados no PCPA


são fundamentadas sobre a percepção do recém-preso como pessoa que tem
219

direito e obrigações, visando a estabelecer as condições concretas - materiais,


corporais, sensoriais, psicológicas - capazes de prepará-lo para as outras
violências que o esperam.

Tratar os sujeitos apenados através da violência legítima do Estado e do


discurso da ressocialização fracassada é a função fundamental da
tecnoestrutura - áreas técnicas como Serviço Social, Psicologia, Saúde e
Educação-. Além das assistências pouco garantidas, existem duas funções
históricas e utilitárias, desenvolvidas pela equipe técnica, que são instância
tradicional do sistema punitivo do PCPA: sua função técnica, que consiste na
transmissão dos comportamentos normalmente idealizados e aprendizagens
julgadas indispensáveis pela sociedade: trabalho, disciplina e subjugação.

São idealizações e projeções de um futuro impossível e que são


exigidas do sujeito preso - atenção, saber entrar, jogar entre os microgrupos –
o que remete a uma violência cultural que visa a preparar o sujeito com
modelos de comportamento, sensibilidade e compreensão, graças aos quais se
efetuará sua integração no universo prisional: uma violência cultural, multiforme
e de pressão constante.

A entrada na prisão é a matriz onde ficam gravadas as violências da


cadeia em que são relembradas, reproduzidas e produzidas as violências
familiares, domésticas, da cultura das privações, dos mitos, de rituais de
desapropriação, que acabam ficando entranhadas na alma do sujeito apenado.

A fase da familiarização no espaço da prisão, do reconhecimento e da


identificação, por si só é uma outra violência, se levar em conta as mudanças
físicas e psicológicas que acontecem nesse período. A descoberta de novas
estratégias para se conquistar a comunicação, o sexo, o prazer e a proibição. A
mudança na linguagem, no corpo, as doenças de pele, o cheiro forte do
ambiente, a troca de atitudes. É uma transformação onde o próprio corpo é
expressão da violência, além da sociedade que exige, oprime, cobra e dita "os
caracteres do sujeito perigoso", ou seja, aproveita o momento da sensibilidade
220

social para exercer um domínio decisivo e colocando sua marca definitiva,


institucional.

Tem-se ainda, a violência do sujeito apenado voltado para si mesmo -


drogas, suicídios, problemas mentais, atitudes de fracasso - ou contra a massa
- „vassouradas‟, fofocas, intrigas, desrespeito, agressões, estragos etc.

Pode-se comparar, assim, a iniciação na cadeia com o início de uma


estrada de longo percurso e a imersão no lugar, como a chegada em uma
encruzilhada com várias trilhas que se pode percorrer.

Pode-se observar uma relação muito estreita entre a violência e a


sexualidade, trabalho e racionalidade. Consiste principalmente em um
complexo jogo de trocas, substituições, alianças, rejeições e compromissos,
onde cada um dos elementos investe, apodera-se do outro, para trabalhá-lo e
retrabalhá-lo, num processo interminável de transfigurações mútuas.

A violência é sempre uma resposta à outra violência - é assim que


normalmente as coisas são significadas (princípio recursivo) no PCPA. É a
partir do outro (sistema punitivo, o poder, o preso trabalhador, a massa, as
facções etc) que ameaças, agressões, hostilidades e duros golpes atingem e
legitimam o discurso da “culpa é sempre do outro !” Traça-se, desta forma, uma
definição fraca, evidentemente sutil e "não-violenta" da violência : ela é aquilo
em que não se faz outra coisa senão replicar. Sabe-se que, mesmo na
violência do apenado voltada contra si, os outros estão implicados de uma
maneira forte e comprometedora.

Aqui é importante fazer uma ressalva. O Outro na prisão inflige uma


dupla violência : violência da alteridade como tal, e violência da totalização
porque tenta identificar, porque corrói ou soterra a identidade de qualquer
sujeito.

Imagina-se que, para resistir às diferenças e contrastes violentos seja


necessário um eu forte, uma identidade segura. Mas será que existe alguma
noção de identidade do sujeito pós-industrial? A que parâmetro deve firmar-se
221

para se fortalecer? Os valores e idéias cultuados pelo sistema punitivo


dominante se manifestam de forma contínua, exigindo a forma de identidade
que ela mesma determina, identidade social montada a partir de diversas
peças: origem, profissão, aparência, estrutura familiar, cultura, raízes etc, e na
qual se consegue imprimir, e nunca de forma sucinta, a alteridade pesada da
coletividade que compõe o PCPA.

A falta de identidade com o social normalizado, de um sujeito único e


universal que caracteriza a nossa sociedade contemporânea - que não
consegue desenvolver uma compreensão satisfatória sobre um sistema de
valores que inclua a reciprocidade que satisfaça a arte da troca por si própria,
desvinculada da compulsão consumista e cumulativa - manifesta-se na prisão,
através de relações autofágicas que levam à destrutividade.

A violência do tempo da espera da pena a ser recebida e do término


da pena a ser cumprida encrava-se na alma com perdas irremediáveis -
memória rompida, desabada; da mesma forma ela encrava na carne, com
uma eficácia precisa e cega, com a marca do envelhecimento (DADOUN,
1998). Observa-se, como resultado dessa violência, a velha reflexão “tudo
passa, é só ter um pouco de paciência”. Quanto a isso, ninguém tem dúvida.
Permanecer totalmente prisioneiro a essa dimensão absoluta do tempo, que
é “tudo passa” - não seria também uma violência?

Um acontecimento se foi, a sentença foi pronunciada, um gesto foi


executado - o tempo os arranca sem demora e o tempo os leva sem contudo
passar - ou corre-se em direção à morte ou espera-se a possível chegada
da liberdade. É assim. Para terminar com a interminável violência do tempo
na prisão, surge, muitas vezes, a morte – pois que, em relação a isto, não há
mais o que fazer - é a derradeira e suprema - e sem dúvida também a
primeiríssima - violência infligida à massa carcerária. A morte na prisão
aparece como uma das saídas à violência do tempo da pena, da espera.

Nos atos de extrema violência- o terror - das facções, e cuja principal


característica seria tomada emprestada do que a morte exibe com evidência
222

absoluta, inexorável - aterrorizante : a transformação de outro apenado em


pó. O princípio do terror marcaria o limite extremo, absoluto, do
desaparecimento do sujeito no mundo. (DADOUN, 1998)

Não é simples captar a violência na e da prisão através de um


instrumento privilegiado e de eficácia duvidosa: o poder político da punição .
O poder e violência são vínculos tão estreitos, presos de tal maneira às suas
estruturas, que se chega a pensar que o único problema real do poder
punitivo seja a inerência da sua violência, e que a única e verdadeira
finalidade da violência na prisão é o poder político.

Foi observado no PCPA que a violência do poder punitivo instaura o


poder da violência, que visa a criar "um mundo de medo, de traição, de
tormento. Um mundo de agressores e vitimizados. Constituem-se as tramas
de um sistema totalitário que é estruturado para e pela violência, presente
em toda parte da prisão e de todas as formas. No centro desse aparato
totalitário reina o poder da BM e, nas galerias- como partes do todo,
princípio hologramático- dos “líderes”- dos brasas, dos manos, dos abertos.
São personalidades carismáticas porque fascinam o coletivo da prisão como
imagem do controle e segurança para o poder formal e perante a massas,
como imagem de comando e força.

Os diferentes líderes nesse sistema totalitário são a própria violência :


pela sua "estrutura de caráter", no sentido reichniano do termo, até onde é
possível distinguí-la. O carisma que se identificou foi uma dominação do tipo
hipnótico, sobre massa passiva. O líder permanece o mestre absoluto de
tomada do poder e de organização do terror que é a guarda ou as facções.
Impondo uma disciplina de ferro, ele exige dos súditos uma obediência cega
, um investimento absoluto levado até ao sacrifício e à morte. É a violência
se estruturando através de um regime totalitário.

Crimes, massacres, genocídios, assim como angústias e terrores sem


fim - nada do que há de pior na violência é estranho ao sujeito apenado.
Balanço aterrorizante que proporciona nas almas uma desesperança infinita.
223

A violência passa - não pára de passar e repassar, não importa o que


se diga ou o que se faça, por todos, por tudo! É preciso, portanto, efetuar
uma espécie de desprendimento e ver a violência com outro olhar: o da
forma, passando assim do campo das forças, percorrido até aqui, para o
campo das ELIformas (MAFFESOLI, 1987 e DADOUN, 1998 )

Ao longo dos séculos, éticas, filosofias, políticas, terapêuticas e


exorcismos de todas as naturezas esforçaram-se para romper a engrenagem e
desprender-se do domínio soberano da violência - para conseguir os poucos e
irrisórios resultados que se conhece.

A antropoética60 seria uma ética da compreensão que constituiria uma


primeira tentativa de controle da violência. Para tanto, alguns caminhos
poderiam ser trilhados. Lá onde sutilmente se constrói o totalitarismo e se
manifesta como atuação da violência, compulsiva, sistemática, insaciável,
surge também, um movimento ético humanista que tem como tarefa - filosófica
- interrogar e cercar o fenômeno da violência na prisão, analisar sua estrutura,
origem, finalidades - é também, tarefa política, que define as condições de um
uso racional, se não sempre irracional, visando aos equilíbrios sociais regrados
em sistemas de valores, tais como justiça, liberdade, direitos do homem,
autonomia etc , e que teriam como característica comum manter a sociedade
aquém do limite que marca o abandono ao sistema totalitário.

Aos olhos da violência, a ética da compreensão é o regime de todos os


desafios - em todos sentidos. Desafios do exterior que produzem uma ameaça

60 Para MORIN(1999, 19970 a ética da compreensão é a arte de viver que nos demanda, em primeiro lugar, compreender de modo
desinteressado. e pede que se compreenda a incompreensão. o que favorece a compreensão é: o bem pensar, modo que permite
apreender em conjunto o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional, o complexo, isto é, as
condições do comportamento humano; o auto-exame crítico que permite não assumirmos a posição de juiz de todas as coisas. para
tanto devemos assumir consciência da complexidade humana e desenvolver simpatia e tolerância.
A antropo-ética, levando em conta o caráter ternário da condição humana, que é ser ao mesmo tempo individuo/sociedade/espécie e
instrui-nos a assumir a missão antropológica do milênio: trabalhar para humanização da humanidade; vida; alcançar a unidade
planetária na diversidade; respeitar no outro, ao mesmo tempo, a diferença e a identidade quanto a si mesmo; desenvolver a ética da
solidariedade; desenvolver a ética da compreensão; exercitar a democracia pois favorece a relação rica e complexa
indivíduo/sociedade, em que os indivíduos e a sociedade podem ajudar-se, desenvolver-se, regular-se e controlar-se mutuamente. a
democracia é complexa envolve política, economia, sociologia, não pode ser definida de maneira simples. o desenvolvimento das
complexidades nutre os avanços da individualidade e esta se afirma em seus direitos e adquire liberdades existenciais. assim, todas
as características importantes da democracia têm um carater dialógico que une de modo complementar termos antagônicos:
consenso/conflito, liberdade/igualdade/fraternidade, comunidade nacional/ antagonismos sociais e ideológicos.
224

de morte ao sistema totalitário da prisão, lutando constantemente contra os


mais profundos desejos de aniquilar as garantias individuais e sociais dos
sujeitos que convivem nesse espaço prisional.

É necessário, ao mesmo tempo, afrontar os desafios internos. Todas as


instituições, organismos, ou componentes do sistema prisional e penal,
procuram afirmar-se e desenvolver-se às custas dos outros, a função útil e a
autoridade competente transformando-se, então, em autoridade de comando.

Na sua própria estrutura, a ética humanista e da compreensão deveria


se desafiar e desafiar a violência. Deve ser : tolerante; livre; pluralista; solidária;
aberta e pacífica. Assume, assim, o maior risco, restabelecendo o desafio
crucial de uma multiplicidade de violências parcelares, necessárias e toleráveis,
suscetíveis de mais mal do que bem, proporcionarem mutuamente equilíbrio -
no "belo risco". Até hoje essa postura ética parece ser a única forma que vale a
pena percorrer, com sã consciência de que não passa de uma utopia, um norte
a ser buscado, pois se está sempre vivendo a ameaça e sendo sustentado na
lâmina afiada da própria violência.

O que fazer então, sem necessariamente ficar-se numa posição fatalista


que gera o imobilismo social e reproduz a violência estrutural dentro da prisão?
O que fazer, sem necessariamente entrar numa postura messiânica e
onipotente que logo desembocará num sentimento de incompetência pelas
dificuldades estruturais em se lidar com o caos do sistema prisional?

Acredita-se que um movimento metodológico para intervir nessa


realidade, a partir dela e com ela, poderia ser através de uma:
225

 DA CONSTRUÇÃO SOCIAL DA SENSIBILIDADE A UMA ÉTICA


HUMANISTA

O crime e a punição são elementos que suscitam uma resposta emotiva


no público em geral e entre aqueles que não são diretamente envolvidos. Os
conflitos que nascem entre sentimentos opostos, sejam eles medo, hostilidade,
agressividade, raiva de um lado, pena, compaixão e perdão do outro, ajudam a
definir uma resposta adequada nos conflitos com a questão criminal. Em outra
parte, o empenho da violência (ou influência do sofrimento e da dor que a pena
comporta) é condicionado pelos níveis de violência e sofrimento toleráveis da
sensibilidade e da cultura dominante. Por exemplo, a visão da violência do
suplício, da dor do sofrimento físico desencadeou uma enorme reação na
sensibilidade moderna. A supressão dessa violência explícita dependeu de um
Estado capaz de recorrer a outras violências longe do lugar público, de modo
mascarado, limpo e monopolizado, através de grupos especializados de
profissionais.

Não é, portanto, possível pensar numa análise social sobre a prisão que
não trabalhe os fenômenos culturais na ótica da sensibilidade (GARLAND,
1999) A questão é identificar a mudanças da sensibilidade e o caminho da
modalidade de punição que a sociedade contemporânea vem indicando. A
discussão sobre motivações e emoções são sempre inconclusivas e de difícil
demonstração. Por isso, para atribuir-se um valor - no processo da auto-
organização da prisão - a uma mudança na sensibilidade da população, pode-
se recorrer a vários argumentos manifestados pelos os observadores (esfera
do saber acadêmicos e institucional -jurídico e das ciências humano social) que
produzem significações.

“Contemporaneamente, a percepção e o
desenvolvimento de uma maior sensibilidade que
mostra em sua nudez execrável a visão da violência,
possibilita pensar uma antropologia na qual a
dignidade dos desprotegidos não esteja presente por
226

uma „concessão‟ especial de justiça, mas que seja a


base absoluta.” (GAUER, 1999, p.11 )

É importante relembrar que, com a “civilização da sensibilidade”


(ELIAS, 1990) a partir do séc. XVII verifica-se um progressivo aumento da
aversão nos confrontos da violência, uma crescente repulsa sobre os tipos
de crueldade. Em lugar do suplício público se estrutura uma rede de
instituições fechadas que constituem um lugar a parte fazendo com que as
atuações de punição dos criminosos seja relegada a especialistas. Então,
encontram-se formas de violência mais abstratas com a privação da
liberdade. Por outro lado, quem administra a pena nega a agressividade (ver
questionários) e a hostilidade que essa contém, e se consideram o
“funcionário”, o dirigente de uma instituição e não o executor de um
sofrimento. Analogamente, as significações da pena vêm carregadas de tons
brutais, e reformulados em forma menos agressiva: a prisão por “casa de
custódia” , o prisioneiro” por “reeducando” termos que tendem a sublimar
uma atividade altamente odiosa, e torná-la mais tolerável. Naturalmente
outros fatores contribuíram para civilidade da pena como de caráter político,
econômico, organizativo. Mas parece inegável o nexo desse com as novas
situações de natureza psíquica e cultural da sociedade contemporânea.

Acredita-se que a sensibilidade sobre a pena pode ser (re)modelada e


influenciada por processos políticos e de forças sociais. Se de uma parte as
instituições sociais estão em condições de promover os modelos de referências
para a população, contribuindo para um refinamento do sentir e uma maior
sensibilidade para os direitos, as políticas mais reacionárias podem vice-versa,
ativar um processo de desejo oposto ao da civilização, para o sofrimento,
desencadeando hostilidade, agressividade e egoísmos pela a esfera pública.
227

 A ÉTICA HUMANISTA E O ABOLICIONISMO

Haveria então, possibilidade de, eticamente, continuar a sustentar um


tratamento indigno aos presos, no novo milênio? Qualquer ser humano, tendo a
ética por referência, pode admitir um desrespeito completo à legislação como o
que vem ocorrendo no sistema penitenciário ?

Essas questões podem encontrar diferentes respostas. Na realidade,


pouco importam os caminhos que são trilhados para se atingir o fim. Parece
que o mais importante é circunscrever melhor o conceito de ética associando-o
à “ética da compreensão” que permitiria o surgimento de um espaço público de
diálogo tecido numa intersubjetividade racional, cujo pressuposto seria o
caráter incondicional e incondicionado da palavra ética (SCHECAIRA, 1999)

Deve-se reconhecer que espécie de atos são objetivamente certos e


coerentes para a realidade em questão. O problema reside no fato de que uma
ação reconhecida como objetivamente certa deveria constituir um motivo que
incite sua execução. Parece, entretanto, que os fatos são controversos. Por
que nossos Governos não cumprem o que prometem? Por que os magistrados
envolvidos na execução se preocupam eticamente em garantir determinados
preceitos legais, de forma rigorosa, e outros preceitos não cumpridos passam a
ser justificados e repassados para o sistema político?

Todas as violações legais apresentadas no decorrer deste trabalho, o


seu reconhecimento abstrato incita a reflexão. Não basta denunciar os fatos,
pois a denúncia é condição necessária, mas não suficiente para a realização
ética. A discussão sobre a ética e o seu alcance deve ser levada com cada
cidadão, especialmente os operadores jurídicos, para que o paradigma ético
humanista, seja preponderante na execução da pena privativa de liberdade.

No âmbito da formulação de propostas abolicionistas da prisão podem


se encontrar diversas posições: a abolição da prisão na forma que existe
atualmente, e a substituição da pena privativa de liberdade por outras
alternativas punitivas. A primeira, tem o objetivo estratégico, em benefício de
228

considerações éticas e táticas políticas, conduzindo a defesa não só da


abolição da prisão, como também, melhores condições para o atual sistema
carcerário. A segunda posição, a da substituição da prisão por outros
mecanismos disciplinares, já que o uso destes mecanismos punitivos não são
suposto de uma diminuição do uso do cárcere e, ademais, implicariam um
controle maior do Estado.

Nas décadas de 60 e 70, a partir de complexos fatores políticos, parecia


ter se criado um contexto favorável para uma crítica radical do sistema prisional
e que a abolição das prisões seria uma meta possível. Durante a primeira parte
da década de 70 a estatística parecia comprovar uma diminuição da população
das prisões de vários países ocidentais. Porém no final da década de 70 e
início da de 80 ocorreu uma inversão, os números aumentaram e, na década
de 90, o índice elevou-se ainda mais na população carcerária, tida como o mais
alto de todos os tempos.

A proposta abolicionista propõe-se a questionar a validade e utilidade do


discurso e da ação do sistema penal em sua totalidade (MATHIESEN, 1997).
Seus questionamentos são voltados a quatro questões: junto às pessoas
condenadas, às vítimas, à sociedade em geral e especificamente, com os
profissionais que mantêm e reproduzem o funcionamento desse sistema.
Abolicionismo nesta ótica, tem como fundamento metodológico “uma atitude
antireducionista frente às situações problemáticas” (HULSMAN, 1993).

Por exemplo, dentro do conceito de criminalidade são agrupados vários


aspectos, muitas vezes antagônicos: violência na família, poluição do meio
ambiente, recebimento de mercadoria ilegal, tráfico de drogas, etc. O que se
tem em comum é a forma como o sistema judiciário toma suas providências,
que, na maioria das vezes, causa “sofrimento” para ambos os envolvidos, o
causador e a vítima. Devido a isso muitos eventos considerados “crimes sérios”
são resolvidos por outras instâncias do contexto social, (família, sindicato,
hospitais, etc.), defendendo, assim, que não há uma realidade ontológica do
crime. Deve-se desjuridicizar certos conceitos para poder-se chegar ao sujeito,
229

conceitos como de ato punível para reencontrar o acontecimento e a situação


realmente vividos.

Sugere-se, assim, a eliminação do conceito de “crime” e de todo o


discurso chamado em torno do fenômeno criminal. Seria preciso se habituar a
uma nova linguagem não estigmatizadora sobre as pessoas e situações
vividas. Livre da comportamentalização institucional, uma linguagem aberta
facilitaria o surgimento de novas formas de enfrentar tais situações.
(HULSMAN, 1993)

Há importância em distinguir que quando se fala em alternativas para a


justiça criminal, não se está falando em sanções ou penas alternativas, mas
sobre alternativas para os processos de justiça criminal. Estas alternativas
podem ser de natureza legal ou não-legal. Essas alternativas seriam uma
postura alternativa ao comportamento criminal. Propõe-se buscar alternativas
de eventos que podem incorrer em processo de criminalização; uma resposta a
uma situação que tem uma “forma” diferente e uma “dinâmica” diferente dos
eventos como esses surgem num contexto de justiça criminal.

Nas considerações de Carvalho (2001), o abolicionismo surge como


uma “teoria sensibilizadora” que congrega autores que:

“partilhando do modelo sociológico crítico das


décadas de sessenta e setenta, comungam
propostas político-criminais estruturadas na
premissa da radical contração/substituição do
sistema penal por outras instâncias resolutivas dos
conflitos sociais” (CARVALHO, 2001, p. 263-264).

Já no garantismo penal, vamos encontrar

“um esquema tipológico baseado no máximo


grau de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e
da legislação, limitando o poder punitivo e
garantindo a(s) pessoa(s) contra qualquer tipo de
230

violência arbitrária, pública ou privada” (...) se propõe


a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à
intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo
de controle social maniqueísta que coloca a „defesa
social‟ acima dos direitos e garantias individuais”.
(CARVALHO, 2001, p. 17-19)

Portanto, pode-se conferir que as várias matrizes do abolicionismo (a)


são extremamente úteis e importantes para a avaliação fenomenológica da
(in)eficácia do sistema penal; (b) seus fundamentos teórico-doutrinários,
ancorados no paradigma da reação social, são irreversíveis, do ponto de vista
acadêmico, na ciência criminológica; e (c) algumas de suas propostas,
fundamentalmente aquelas que dizem respeito à abolição da pena privativa de
liberdade, cumprida em regime carcerário fechado, aos processos de
descriminalização e à negativa da ideologia do tratamento são viáveis como
projeto político-criminal. (CARVALHO, 2001, p.273) Além disso, tem um caráter
de movimento social mais amplo. Nega-se a legitimidade de atividades
desenvolvidas na organização cultural e social da justiça criminal. Esta sugere
o cessar as atividades num modelo de justiça criminal e envolver-se em lidar
com eventos criminalizáveis fora da justiça criminal; há um olhar crítico na
maneira de se abordar essa justiça.

A abolição concentra-se, também, nas universidades e na criminologia e


nas áreas técnicas e operadores do sistema prisional. Refere-se aos valores
acadêmicos que garantem autonomia para permitir uma avaliação mais
objetiva das práticas sociais. Esta forma abolicionista rejeita as leituras
dominantes do crime e justiça criminal.

A Abolição, nessa perspectiva, é a abolição da linguagem prevalecente


no campo do saber penal e criminológico e a substituição dessa linguagem por
outra que permita submeter o sistema punitivo e as políticas criminais à
perspectiva crítica; isto é, se esta for invalidada a linguagem tem de ser
desconstruída. Há uma dupla tarefa: a) descrever e analisar os processos de
criminalização de uma maneira que permita avaliar suas conseqüências e sua
231

legitimidade; b) ajudar as pessoas (profissionais e outras) que tentam dar conta


de situações-problema que são o objeto da criminalização secundária ou
alegações de criminalização primária. (HULSMAN, 1993)

É dentro dessa tarefa se dá um destaque à contribuição do Serviço


Social na esfera jurídico penal.

 A CONTRIBUIÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL

Ao defender-se um esforço de reflexão crítica sobre os sujeitos


apenados, sobre suas vulnerabilidades socioculturais e penais, não se está
pretendendo uma análise em nível puramente intelectual. Está-se
convencionando, pelo contrário, que a reflexão conduz a uma prática instituinte,
a uma nova forma de intervenção.

O Assistente Social, através de suas múltiplas intervenções, pode


conquistar um espaço fundamental, ao desenvolver o fortalecimento das
relações entre sujeitos estigmatizados e despertando a comunidade, para a
necessidade de mudar o rumo das proporções assumidas pela
violência/criminalidade, promovendo, com isso, o processo de inclusão social
dos apenados, como também a desmitificação da identidade socialmente
construída.

Através do paradigma de correlação de forças FALEIROS (1997), define


a “concepção da intervenção profissional - implicam correlações de forças
(mediações econômicas, políticas, culturais, psicológicas, ideológicas, etc.) que
se articulam com outros efeitos como pressionar o poder, poder ter o direito à
sobrevivência ou questionar a instituição”.(p.43-46)

Segundo o autor, é no contexto das relações de força mais amplas e nas


particularidades das relações institucionais, nas mediações do processo de
fragilização/fortalecimento do sujeito apenado que se definiria o trabalho
profissional do Serviço Social, onde, estratégias, técnicas e instrumentos de
232

intervenção seriam elaborados por sujeitos reconhecidos e legitimados, para


isto, num plano de Tratamento Penal.

Ao ter-se como pressuposto teórico e epistemológico que o real é uma


rede de relações, de correlações de forças e de contradições, o processo de
investigação e intervenção junto aos apenados, pressupõe a constituição das
redes ou seja (FALEIROS, 1997, p. 57):

- redes culturais: trabalha-se a identidade sociocultural, a representação


social; - redes familiares: trabalham-se as relações de afetividade, de apoio, de
vínculos; de abandonos e vitimização; - redes de solidariedade: trabalham-se
as relações de apoio sociais, de intersubjetividades e interinstitucionais; - redes
produtivas: trabalham-se as relações de trabalho, do processo de produção e
reprodução material, as estratégias de sobrevivência; - redes políticas:
trabalha-se o exercício da cidadania, dos direitos e deveres sociais.

A constituição dessas redes de relações possibilitaria trabalhar o


fortalecimento da identidade e autonomia (FALEIROS,1997), ou seja , que o
próprio apenado fosse capaz de descobrir suas próprias forças, controle de si e
as formas de divergências. As estratégias de mediações utilizadas, por
exemplo, seriam o respeito, o estímulo, a reflexão sobre as redes primárias de
produção e reprodução dos mitos, normas, da vulnerabilidade aos processos
de vitimização/ criminalização. Questionar a imagem negativa: revalorizar a
identidade de um sujeito de direitos e de deveres, trabalhando na tensão e
“naturalização da violência”, das discriminações, dos estigmas (IDEM).

Por exemplo, alguns Indicadores sociais que poderia contribuir na


elaboração de laudos em Serviço Social61. A sistematização de um laudo é
basicamente uma prática investigativa que deve ser orientada pelas dimensões
ético-política (saber Ser profissional), teórico-prática (saber Saber profissional),
técnico-operativa (saber Fazer profissional). Esta investigação deve estar
centrada na Pessoa, e não na coleta de dados.

61 Estes indicadores foram elaborados para fins didáticos no Curso de Extensão SUSEPE /PCUS-FSS pelas Profas. Ma. Palma
Wolff e Miriam Guindani- 1997.
233

Ao problematizarmos a realidade social do apenado, necessitamos usar


um conhecimento teórico-prático que vai além da “classificação” (perspectiva
etiológica) ou enquadramento, demonstrando consistência teórica e uma base
argumentativa nos aspectos da vida social do preso.

Na perspectiva da complexidade, a construção de um conhecimento


sobre a realidade social do preso deve ter um caráter mais descritivo do que
interpretativo. E, ao delimitar o objeto de investigação (problemática central do
apenado) descrever as diferentes expressões da Questão Social como fator no
processo vulnerabilidade social, de criminalização e inclusão do preso (por
exemplo, como aparece a questão do desemprego, exclusão social, maus
tratos, violência, acesso aos mínimos sociais etc).

Além de indicar as fontes dos dados, é importante manter o sigilo


profissional de determinados aspectos irrelevantes para a construção do
parecer social. Entende-se que o apenado tem o direito e a responsabilidade
de participar ativamente no processo de avaliação. Por isso, torna-se
fundamental contextualizar o espaço institucional (prisão) como fator relevante
na análise da trajetória do preso e execução de sua pena. Exemplo de alguns
questionamentos que poderiam ser elaborados.: como você percebe a sua
passagem pelo sistema penitenciário? ; quais as possibilidades oferecidas e os
limites enfrentados na execução da sua pena?

Percebe-se que é através de um (re) direcionamento das bases que


fundam a prática profissional do Serviço Social no Sistema Penitenciário que se
poderia almejar contribuir para as mudanças no rumo das proporções
assumidas pala violência /criminalidade. Isso implica o reconhecimento de que
a prisão, como mecanismo de controle, está em crise, sendo necessário uma
nova abordagem do Assistente Social que possa captar o seu sistema, de auto-
organização.

Defende-se a construção de um novo olhar que seja capaz de captar a


complexidade do espaço prisional articulado à rede de relações de violência
que emergem neste novo milênio . Implementar pesquisas científicas (através
234

da constituição de razão experimental) que investiguem a forma de


organização complexa na qual se vem estruturando a prisão na sociedade
global, seria uma das vias possíveis para desconstruir a linguagem que
naturaliza e normaliza a violência social (SILVA H,1999) e para revelar as
novas configurações do poder simbólico que representa a instituição prisão.

Assim fazendo, acena-se para o Serviço Social a construção de outra


linguagem que nega atributos que prevalecem na cultura política autoritária,
ou seja, que as diferenças não se convertem em desigualdades naturais entre
fortes e fracos; que o poder não se dissolve em puras relações de força; que
o direito não aparece como mera exigência formal e que a justiça não é
cultivada tão somente como valor abstrato. Trata-se, enfim, de uma
sociedade que se recusa a perpetuar infinitamente o divórcio entre o mundo
das leis e o mundo das relações sociais (ADORNO,1995).

Sugere-se que o Tratamento Penal, desenvolvido pelo Serviço Social


seja construído a partir do aprofundamento sobre o processo de criminalização
- entendido como o processo de fragilização, marginalização, que vivencia o
sujeito apenado por diferentes determinantes psico-sócio-econômico-culturais -
, que o torna vulnerável à realização de atos considerados criminosos pelo
Sistema Penal.

Defende-se que na base da compreensão do processo de criminalização


encontra-se um contexto histórico-sóciocultural perverso: as formas de “
enfrentamento” da Questão Social.

O Serviço Social nas suas intervenções poderia constituir-se num


espaço reflexivo, ao voltar-se, não só às questões do delito e da pena, mas
para as questões cotidianas, a fim de desvendá-las, trabalhando-as ao
apresentar propostas viáveis frente às situações trazidas pelos sujeitos
apenados ou pelo estabelecimento prisional.

A ação junto aos apenados tem de ser uma ação político-cultural e


sócio-educativa para a liberdade, e por isso mesmo, ação com eles e não
235

sobre eles! A vulnerabilidade emocional e social, fruto da situação concreta da


dominação e exclusão em que se encontram, gera uma visão inautêntica,
ingênua e violenta que serve para realimentar a dependência/rejeição de um
mundo opressor, nesse caso, o próprio contexto que o exclui e o estigmatiza.

A luta por novas atribuições ao Serviço Social e também, aos demais


técnicos do Sistema Penitenciário do RS, significa que, além de estar no
debate sobre as novas diretrizes da Política de Execução Penal do Estado,
busca-se reconhecer que o Assistente Social, almeja criticamente abordar e
dar respostas aos problemas sociais, vinculando-os simultaneamente a
objetivos humanizadores, constituindo-se assim, numa das contribuições à
cidadania e justiça social.

6.2 Uma Trilha Especial: uma Experiência no Lugar

Em fevereiro de 2001, assumi a gestão da Direção do Centro de


Observação Criminológica (COC) - Órgão de perícia e referência no
Acompanhamento Técnico (Tratamento Penal) . Tinha-se como meta principal
ajudar na constituição de novas bases de intervenção dos profissionais e
sensibilizar os diversos órgãos que interagem no sistema penitenciário – Poder
Judiciário, Conselho Penitenciário, Diretores de estabelecimentos prisionais,
Comissão dos Direitos Humanos e os próprios apenados e familiares - às
novas diretrizes. A minha trajetória profissional e militância nesse campo
sinalizava a necessidade de um novo fazer técnico, voltado à redução de
danos da violência institucional, através da humanização dos mecanismos de
execução da pena e a redução da vulnerabilidade penal.

Para tanto, constituí uma equipe multiprofissional que congregou


diferentes tipos de competência, garantindo não só a heterogeneidade dos
saberes (Direito, Psicologia e Serviço Social), mais a pluralidade de
perspectivas políticas e de experiências dentro do próprio sistema. O ponto em
comum desses profissionais era o compromisso ético em querer reinventar o
236

cotidiano da prática profissional. Não foi tarefa fácil, exigiu-nos muitas reuniões,
diagnósticos, planejamentos e seminários temáticos.

É importante relembrar que, desde 1985, período da implantação da Lei


7210/84 no Estado do Rio Grande do Sul, o atendimento dos técnicos do
sistema penitenciário do Rio Grande do Sul vem se direcionando,
principalmente, à demanda do Poder Judiciário; centrando sua ação
principalmente na elaboração de pareceres/laudos e, secundariamente, em
intervenções isoladas de Tratamento Penal. Com isso, estes profissionais
acabaram produzindo e reproduzindo uma ação alienante e alienada,
provocada pela própria violência institucional do sistema punitivo brasileiro.

O principal fator estrutural inerente à essa situação decorre da histórica


opção do direcionamento das políticas penitenciárias em se voltarem somente
aos mecanismos de contenção e retribuição da pena privativa de liberdade.

Mesmo dentro dessa crise estrutural do Estado/ SUSEPE, a nova gestão


do Centro de Observação Criminológica, desde de fevereiro de 2001, buscou
abrir um espaço de discussão e reconstrução desse fazer técnico, no sentido
de torná-lo um agente de humanização da pena, entendendo que a ação junto
aos apenados tem de ser uma ação político-cultural e sócioeducativa para a
liberdade, e por isso mesmo, ação com os presos. Foi proposta, então, uma
discussão da imagem construída e atribuída aos técnicos, questionando os
fundamentos da lógica da (re)socialização e dos diferentes “Res” que orientam
suas ações e seus discursos, que, muitas vezes encontram-se deslocados da
realidade social mais ampla.

É importante lembrar que tal imagem foi construída no decorrer da


história de um Estado autocrático-burguês, favorecendo o hiato existente entre
os profissionais do sistema prisional e o movimento das categorias
profissionais e dos direitos humanos, civis e sociais.

Em contrapartida, no interior do próprio sistema, o técnico foi assumindo


uma função simbólica de ser o representante da sociedade controladora e
237

punitiva; de ser o “protetor” desta sociedade e de ser guardião da “segurança”


externa. Ou seja, este profissional incorporou, no decorrer do tempo, a missão
de ser aquele que detém o “poder” da avaliação e de retardar a saída de mais
um “bandido que ameaça a sociedade”, mesmo não tendo, competência
técnica, legal e ética para desempenhar tal missão.

Com esta postura, além de tornar-se uma pessoa “não grata” pelos
diferentes agentes sociais do sistema penal- já que tudo gira em torno da
morosidade dos “exames” e da situação jurídica- desencadeava-se uma crise
de identidade e ética entre os próprios técnicos quanto à possibilidade de
finitude dessa função dentro do sistema punitivo atual. Pode-se ver
principalmente a discussão que vem sendo colocada na proposta do novo
Código Penal, de restrição da atuação técnica junto às decisões judiciais, no
que tange às progressões de regime.

Portanto, o desafio de construir um novo perfil de atendimento técnico


prestado pelos Psicólogos, Assistentes Sociais, Advogados e Psiquiatras, era
urgente, “uma mudança dos operadores das agências penitenciárias,
incumbindo a máxima responsabilidade aos profissionais das áreas das
Ciências Sociais que operam nos sistemas penitenciários e que têm atuação
sobre presos e pessoal. Essa nova atitude se impôs na medida em que o
próprio pessoal tomava consciência do efeito deteriorante de sua conduta em
relação aos presos e a si mesmos”. (ZAFFARONI, 1991).

Considerando a lógica da inclusão social, redução de danos e da


vulnerabilidade penal, o momento era de descontinuidade e ruptura como
discurso do tratamento ressocializador, fundamentado na criminologia
etiológica e matriz positivista. A fase atual requeria a construção das bases
técnico-operativas que fundamentam a filosofia de tratamento humano redutor
da vulnerabilidade penal.

Um programa concebido sobre esta perspectiva teve um amplo objetivo:


exaurir os esforços para que a prisão fosse o menos deteriorante possível,
tanto para o preso como para o pessoal penitenciário; permitir, em cooperação
238

com iniciativas comunitárias, que se elevasse o nível de invulnerabilidade da


pessoa frente ao poder do sistema penal.

Dentro desta concepção, ZAFFARONI (1991) refere que há prisões que


são mais deteriorantes que outras; logo, a primeira conseqüência a tirar disto,
em nível de decisões que são próprias da administração penitenciária, e a mais
condizente com os Direitos Humanos (SOARES,1998; MAIA NETO,1999),
seria a de reduzir ao mínimo as características que fazem da prisão uma
instituição deteriorante, sem pretender com isso que a prisão fizesse o que não
pode fazer.

A partir do exposto, a proposta que foi apresentada como novas


Diretrizes do COC visava a abrir espaço para um fazer técnico como um dos
agentes de humanização da Política Penitenciária do Estado do RGS, bem
como otimizar os recursos humanos e materiais existentes, integrando-os a
outras Políticas Públicas de Saúde e Assistência Social, no sentido de tornar-
se um garantidor dos direitos individuais e sociais, não só do homem preso,
mas dos operadores das agências de controle.

Para implantar, agilizar e qualificar tal proposta junto aos atendimentos


realizados pela área técnica no Sistema Penitenciário como um todo, o COC foi
reestruturado em 3 (três) Núcleos que se interligavam:
239

DEPARTAMENTO DE TRATAMENTO PENAL

Centro de Observação Criminológica e

Referência do Acompanhamento Técnico

Núcleo da Núcleo de Núcleo de


Perícia Acompanhamento Formação,
(“exames Técnico Pesquisa e
criminológicos”) (“Tratamento Extensão
penal”) Comunitária

O Núcleo da Perícia teve como propósito construir um NOVO


PARADIGMA de avaliação baseado “no olhar” da criminologia crítica e da
vulnerabilidade penal. Fazia-se necessário, inicialmente, redefinir a função
simbólica do laudo como instrumento que legitimava o fracasso da lógica da
ressocialização, passando a ser um outro instrumento que legitimasse agora a
humanização da pena. Ou seja, que subsidiasse o acompanhamento
psicossocial das equipes dos técnicos das casas no que tange à redução de
danos da violência institucional e da investigação da vulnerabilidade penal.

Para tanto, elaborou-se os indicadores abaixo que deveriam nortear as


avaliações da perícia no COC e interior do Estado:

Nas análises Jurídicas seria importante considerar: Delito(s), pena


(tempo), regime; Início /término da pena (contando detração, remissão e/ou
comutação); Incidentes da pena: remissão, conduta, faltas (nos últimos 12
meses); Pareceres (CTC, Conselho Penitenciário).

Nas análises feitas pelos Assistentes Sociais peritos seria importante


considerar: História de vida e a representação social de si e da sociedade;
240

Construção da rede de relações e da identidade social do apenado; (sujeito x


contexto familiar/social x prisão); - processo de socialização e formação da
cidadania (indicando as diferentes fases da vida); - relação com o processo de
produção e reprodução da vida social e material: (emprego, estratégias de
sobrevivência, relação com o mundo do trabalho); - relação com o processo de
participação social (convivência social e política) nos grupos formais e
informais, como escola, igreja, sindicatos, gangues, amigos, mundo da rua e
etc; - exercício da cidadania e acesso aos direitos sociais (educação, saúde,
alimentação, habitação, etc.); - vínculos sociais, antes e depois da prisão
(famílias, amigos, parceiros de cela, etc); - processo de criminalização
(exclusão social, seleção do sistema punitivo, estigmatização, falta de
possibilidades de inserção social); - vulnerabilidade social ao sistema punitivo;
participação nas redes de apoio oferecidas na prisão - grupos de auto-ajuda,
de voluntários, de trabalho, saúde e educação; quando a participação não se
efetivasse pela falta de oferta do estabelecimento penal, seria importante
registrar como falta de acesso aos direitos sociais previsto na LEP e outras
Leis (ex. SUS, LOAS, Constituição Federal, etc.)

Nas análises feitas pelos psicólogos peritos seria importante considerar:


Descrição do tipo de personalidade (ênfase nos aspectos saudáveis e na
vulnerabilidade emocional ao ato infracional / sistema punitivo); - aspectos
cognitivos e comportamentais, auto-imagem; - relações de conflitos
interpessoais e intrapessoal (reações emocionais, atitudes de passividade,
opressão, dominação, depressão, fatalismo, messianismo, etc); - percepção de
si (incluindo o delito) da prisão e sociedade (importante relativizar a partir dos
valores sócio-culturais em que o sujeito se insere); - perspectivas e proposições:
- projeto de vida;

O parecer deveria se construir a partir da interação das três análises,


sendo importante considerar, de forma sintética: as condições objetivas da
execução da pena(analise jurídica); a relação apenado, delito, cumprimento da
pena e sociedade (análise social e psicológica).
241

Também era chamada a atenção para os limites e as possibilidades do


apenado progredir no regime e Livramento Condicional, tendo como pressuposto
que o abrandamento da pena não significaria liberdade total, e que, a falta de um
acompanhamento técnico antes e após a avaliação, não deveria recair sob a
responsabilidade do perito julgar, mas sim, apresentar tal contexto analisado que
se desenvolveria à execução da pena e apenado.

Outro aspecto que se buscou foi romper com a função julgadora do perito,
pois que não era responsabilidade da perícia julgar, e sim auxiliar a decisão do
juiz, bem como subsidiar Acompanhamento Técnico que deveria ser oferecido,
ou seja, um Tratamento Penal mais digno e humano ao apenado, reduzindo os
níveis da vulnerabilidade psicossocial e da violência institucional.

Nessa gestão ainda houve a preocupação com a devolução dos


resultados dos exames criminológicos, bem como o acesso às informações
relativas às datas das entrevistas de avaliação e elaboração final dos resultados.
Antigamente tudo era mantido em sigilo por questões de segurança, fazendo
com que se realimentassem as fantasias, medos, a desconfiança na relação
entre técnicos e apenados.

Para tal fim, criou-se um plantão de atendimento, disponibilizado todas


as quartas-feiras, das 8:30 hs às 10:00 hs, sendo que era o próprio perito que
realizava a avaliação quem forneceria o resultado. Também as equipes de
Acompanhamento Técnico das casas poderiam buscar os resultados junto às
Equipes de Peritos, a fim de serem o elo de comunicação e devolução direta
aos presos que não possuíssem familiares e/ou que desejassem receber o
retorno nas próprias casas prisionais.

O núcleo de Acompanhamento Técnico- NAT – tinha como propósito


geral: orientar e supervisionar as ações dos profissionais de direito, Psicologia
e Serviço Social, visando a construir um fazer técnico como agentes
humanizadores da pena, deixando de lado a abordagem positivista e
funcionalista, que, como vários autores referem e a prática diária demonstra,
tem sido a fundamentação que norteia uma prática de exclusão e
242

estigmatização. Também havia aí uma pressão para zerar os pareceres de


CTCs (através de mutirão), para que se pudesse trabalhar com as CTCs
motivadas pelas próprios estabelecimentos prisionais e dar início aos
Programas de Acompanhamento Técnico (Programa de Preparação para a
Liberdade – PPL - ver proposta em anexo) e Programas Temáticos de
Redução da Vulnerabilidade (grupos de adesão a medicação psiquiátrica e
clínica, grupos de familiares, grupos de prevenção às DST/AIDS, grupos de
alcoolistas, entre outros).

Buscou-se estimular e coordenar a implantação de Projetos Especiais,


tais como “Projeto Casa Miguel Dario” e “PROMETEO”, Acompanhamento do
egresso e articulação com Rede de Apoio Externa do Município de Porto
Alegre;

Por outro lado, existia a preocupação de não engessar e totalizar de


forma homogênea as ações em cada estabelecimento prisional (104 em todo
Estado). Buscou-se respeitar as condições e realidade de cada casa prisional.
Contudo, foram definidas prioridades nas ações abaixo:

1. Atendimento individual e grupal de presos e familiares, visando à


preparação nos últimos 3 meses que antecedem a progressão de regime,
ultrapassando o modelo avaliativo da tradicional “dupla” que no passado
orientou as ações profissionais;

2. a Equipe Técnica deveria elaborar um Programa de Preparação


para Liberdade (como equipe) e produzir, após 3 meses de atendimento,
um Relatório Psicossocial e Parecer, onde o relator seria o técnico
responsável pelo Acompanhamento Psicossocial;

3. o técnico responsável pelo Acompanhamento Psicossocial


deveria juntar todas as diferentes ações referentes ao Tratamento Penal
desenvolvidas na casa, tais como Educação, Trabalho, Saúde, e agregá-las
ao seu Relatório Psicossocial e Parecer;
243

4. o profissional da outra área faria o papel de revisor do parecer.


Caso não houvesse consenso quanto ao parecer do profissional que
realizou o Acompanhamento Técnico, solicitar-se-ia uma avaliação por
outro profissional;

5. para compor a reunião da CTC, iriam no mínimo 2 (dois)


representantes da Equipe Técnica (Assistente. Social/Psicólogo/outro).

6. coordenar, se necessário, grupos de adesão ao tratamento


psiquiátrico, neurológico e clínico;

7. participação efetiva e sistemática na REDE DE APOIO


EXTERNO, composta principalmente pelos Conselhos Municipais de Saúde
e Assistência Social;

8. dar continuidade ao Programa de Prevenção às DST/AIDS. No


momento, há uma Comissão que está sendo constituída por membros da
Escola de Serviços Penitenciários, do Núcleo de Acompanhamento Técnico
(COC), da Divisão de Segurança e Disciplina (DSV) e de membros da
Secretaria de Justiça e Segurança, que irá ampliar e sistematizar este
atendimento, não só com um banco de dados, mas com rotinas claras de
ações;

9. deveria existir, em cada casa prisional, um grupo de auto-ajuda


para dependência química funcionando (nas grandes casas, onde são
divididas por galerias, sugeria-se que cada galeria tivesse seu grupo);

Foi proposto, em caráter provisório, até que a nova proposta de


Acompanhamento Técnico fosse oficialmente implementada, que os critérios
para avaliação de Progressão de Regime e Livramento Condicional adotados
pelos técnicos das Equipes de CTCs fossem baseados:

- na vida do preso na instituição; (quando se fala na instituição não se


refere apenas à casa prisional onde o mesmo cumpre pena no momento, mas
desde o primeiro dia de prisão);
244

- em dados relevantes da vida pregressa no referente às potencialidades


, às relações de trabalho e conexões com seu projeto de vida .(Quando o preso
vem de uma outra casa prisional, mesmo que por um período menor de 30
dias, o técnico deve dar escuta a essa pessoa e avaliar o que vem ocorrendo e
porque o mesmo não está conseguindo manter-se em uma casa prisional. Esse
é um conteúdo importante que deve constar no Parecer.)

-na adesão aos Programas existentes (escola, trabalho, grupos –


quando existirem na casa), tentando identificar de que forma isso ocorreu;

-na constituição das redes de relações psicossociais construídas no


decorrer da execução da pena.

Deveria ficar claro para o Técnico (tanto do Serviço Social como da


Psicologia) que a relação crime/ apenado não seria o foco central da avaliação,
e sim: as condições pessoais do homem preso para o novo regime:
habilidades, aptidões, expectativas, propostas de vida, relações familiares, com
vistas ao novo momento de pena que estava sendo proposto.

Sendo assim, eram traçados alguns elementos importantes para


elaboração do Parecer que seriam fruto de entrevista com familiares, entrevista
com professor, chefe de serviço, contato com outros profissionais, caso o preso
fizesse uso de medicação controlada (psiquiátrica, clínica, neurológica) ou já
tivesse estado em atendimento técnico em outras casas prisionais.

Esperava-se, principalmente como ação inovadora, que os profissionais


interagissem com as redes de atendimento na comunidade que tivessem
relação direta com as necessidades dos apenados, tais como CAES Mental,
ONGS, Pastoral Carcerária, Grupos de auto-ajuda, Programas de Atendimento
à família, Movimento dos Direitos Humanos, entre outros que existem no
Município onde está inserido o presídio. Ou seja, deveriam participar
ativamente das Políticas Públicas de atenção à saúde, ao social, enfim à
cidadania do homem preso. Pretendia-se que os mesmos voltassem suas
práticas para uma análise das áreas de vulnerabilidade penal e propusessem e
245

desenvolvessem ações de acompanhamento técnico no sentido de minimizar


esses fatores.

Todas essas diretrizes pressupunham uma revisão de conteúdos, um


repensar valores, rever pontos de vista, enfim, uma auto-revisão das condições
que favoreceriam a constituição de um novo discurso de uma nova linguagem
na esfera da execução penal advinda da área técnica. Para tanto, o Núcleo de
Formação tinha como propósito geral: realizar programas de aperfeiçoamento
técnico dos Psicólogos, Assistentes Sociais e Advogados que prestassem
serviços no Sistema Penitenciário do Rio Grande do Sul.

Foi organizado o Fórum Mensal sobre Tratamento Penal, criando, com


os técnicos do interior e da Capital do Estado, um espaço democrático e
construtivo de leituras e discussões acerca da prática, com o objetivo de
auxiliar a construção das novas propostas de avaliação e tratamento penal.
Passou-se a incentivar, fiscalizar e supervisionar pesquisas, trabalhos e
estudos realizados no e sobre o Sistema Penitenciário do Rio Grande do Sul.
Estabeleceram-se parcerias e convênios com órgãos da Sociedade Civil,
ONGs, Prefeituras e Comunidades Universitárias para prestação de serviços
junto aos técnicos e apenados. Elaborou-se convênio com Universidades,
visando a uma busca de abertura nos processos de trocas institucionais e de
fomento à pesquisa e à produção de novos conhecimentos acerca do Sistema
Penitenciário. Implementou-se, com isso, estágios nas áreas da Psicologia,
Serviço Social e Direito, através da realização de convênios com diversas
Universidades do Estado.

Enfim, esse breve relato visa a ilustrar a ação de uma equipe que
acredita não ser mais possível sustentar discursos obscuros e menos ainda
ensaiar desculpas por não poder materializar tais objetivos que esses discursos
delineiam. Um discurso penitenciário racional e não violento poderia ser
construído sobre os alicerces que garantam que os danos da prisão sejam os
menores possíveis junto às pessoas que cumprem pena. Uma filosofia como
nos indica ZAFFARONI (1991, 1997) pautada num tratamento redutor de danos
institucionais e da vulnerabilidade penal. Ou seja, os esforços seriam
246

direcionados para que a prisão fosse o menos deteriorante possível, tanto para
os presos como para aqueles que lá trabalham.

Enquanto o cárcere não é abolido como pena principal, um movimento


paralelo e interno ao sistema pode ser assumido pelos gestores da política
penitenciária. Pode-se redescobrir um novo sentido naquilo que está morto, por
exemplo, através da cooperação com iniciativas comunitárias, em que se
permita elevar o nível de invunerabilidade penal da pessoa, frente ao poder do
sistema penal que é seletivo, injusto, desigual e marginal. Isto requer
mudanças de olhar e postura, não só dos gestores, dos operadores (técnicos e
guarda) mas também daqueles que detêm os poderes dos diversos discursos
sobre a prisão, vinculados ao campo do saber acadêmico.
“trate as pessoas como se elas fossem o que
poderia ser e você as ajudaria as ajudaria a se
tornarem aquilo que são capazes de ser” (GOETH)

“Isto sabemos.
Todas as coisas estão interligadas
Como sangue
Que une uma família...

Tudo o que acontece com a Terra


Acontece com os filhos da terra.
O homem não tece a teia da vida;
ele é apenas um fio.
Tudo o que faz à teia,
Ele faz a si mesmo.” (TED PERRY)
TRILHA FINAL

Doces dezembros

Dezembro de 1997. O ano letivo estava terminado e as férias estavam


por chegar. Nesse momento, minha mente estava presa a um sentimento:
aceitar o desafio que a pesquisa/tese impunha. O mês não teve nada de
especial, a não ser a expectativa da confirmação do Doutorado. Enquanto
esperava, sentia o vento forte que anunciava os bons fluidos do futuro. Mas o
futuro era muito incerto. Dependia de muito esforço e eu sentia um cansaço por
antecipação. Era tempo de partir e não tinha mais volta. Aconteceram, nesse
percurso, muitas surpresas, descobertas e inconvenientes pela ânsia de
conhecer, de querer terminar a pesquisa sem antes começar. Foi em um trem,
um avião, uma cama de hotel, um táxi, na rua, que as idéias surgiram em forma
de turbilhão. Tudo o que fora programado, algumas vezes foi esquecido, outras
idéias foram adiadas e outras ainda concretizadas. Tive flashes de iluminação
que minha mente não conseguia armazenar, a cada leitura sobre o tema ou a
cada depoimento dos sujeitos pesquisados.

Então, somente quando assumi a minha condição humana de ser


incapaz de fazer tudo e escrever sobre tudo é que a pesquisa teve um avanço.
Deixei os problemas de lado para que, com toda força, dezembro de 2001 se
realizasse.

Em alguns instantes parecia despertar de um pesadelo, pois era


invadida por uma sensação de que a pesquisa nem havia começado. Depois
voltava a dormir. O tempo parecia não passar e houve muita falta de tempo.
249

Olhava o relógio que me mostrava os poucos minutos que pareciam


eternidade, pelo peso do trabalho. Olhava o relógio que me mostrava o
adiantado da hora e as poucas páginas produzidas. Tudo voltava à cabeça em
forma de ventania. Tese. Prisão. Viagem. Presídio. Texto. Premissas. Leituras.
Pesquisa. Objeto. Sujeitos. Imagens. Violência. Hipótese. Significado. Raiva.
Achados. Pena. Fracasso. Prazer. Alternativas. Ruptura. O que fazer? Término
da Viagem.

Quando o final já não parecia tão distante, levando em conta alguns


milhares de minutos atrás, a estrada parecia que não terminara. Algumas
vezes pensei que havia errado o caminho, mas era pura ânsia de finalizar o
trajeto e de chegar ao recanto especial do silêncio. Durante todo o tempo, um
mapa me orientou, além dos diferentes sujeitos pelos quais cruzei e que
enriqueceram com diferentes tons essa experiência. Isso fez com que eu não
me perdesse, apesar das várias perdas que aconteceram durante a pesquisa.

Ao trabalhar durante todo o trajeto com o tema da violência, uma


questão me orientou: identificar a complexidade, os elementos, formas e
percursos, apesar de tudo parecer tão óbvio quando se pensa naquela prisão,
e que se sabe o que se quer dizer com violência. Encaminhá-la como objeto de
minha tese foi com o intuito de não deslizar facilmente para o percurso da
naturalização dos fenômenos prisão - violência onde todos sabem das suas
causas, falam da crise do sistema prisional e possuem as explicações e
soluções mágicas para esse nó social que não se consegue desatar.

Ao tentar constituir esse olhar a partir do meu lugar como Assistente


Social, busquei orientação nos pressupostos teóricos da complexidade, que
estiveram nos substratos das minhas observações e análise do PCPA, na
minha trajetória profissional e, principalmente, nos modos sutis e difusos em
que são referenciadas a concepção de violência da pena e as dinâmicas dos
grupos internos e das estratégias para sua auto-organização.

As modalidades que foram destacadas no tratamento do fenômeno da


violência, nesse espaço delimitado de pesquisa (as significações da pena - da
250

justificação à falência - e da violência prisional; a violência simbólica com que a


sociedade trata a prisão; a auto-organização da violência no PCPA),
produziram amplificações e simplificações que algumas vezes se
sobrepuseram como obstáculos epistemológicos ao objeto da tese. Explico,
afirmando que, algumas vezes, maniqueisticamente, senti-me agredida pela
violência contra os apenados, ou melhor, pela violência exercida pelo poder
punitivo do Estado sobre as pessoas, tratando-as com violação de princípios
éticos e de normas jurídicas específicas. Desenvolvi, nesse contexto, uma
forma romântica de solução. Em muitos momentos, acreditei que não havia o
que fazer além de crer na utopia abolicionista do sistema prisional. Porém, a
cada aproximação com o objeto de estudo, percebia que a violência da prisão
não se reduzia somente a isso. Muitas vezes, os excessos dessas denúncias
acabavam por obscurecer as outras faces do fenômeno.

Por isso, a opção por desmembrar em cinco premissas as formas de a


violência se expressar, mesmo correndo o risco de mutilações que todo saber
comporta. Nesse sentido, foi necessário delimitar a violência da sociedade
contemporânea para poder observar a violência na base de uma estrutura
dessa sociedade: a prisão.

Constato, então, a partir dos diferentes resultados e transitando pelas


diferentes fontes, que: não se consegue olhar a diferença que certamente
existe entre a violência da prisão contemporânea (tendo como referência o
estilo PCPA) e a violência das prisões de outros tempos. E que esse olhar está
ligado ao espectro de possibilidades da visão e às deformações do ver, em que
se constróem conexões redutoras entre situações, conexões que levam à
determinação de causalidade simplificadora. Esse olhar julga que, eliminando
algum dia as causas, seria possível, também, eliminar os seus efeitos.

Esse ver causal, na trajetória das grandes prisões da sociedade


contemporânea, abriu um caminho a horizontes de projetos e de intervenções
que apontaram para a cura das patologias, para programar novos futuros sem
problemas, desenhar as alternativas pelas quais se poderia chegar a eliminar
as formas da violência, enfim, apontaram para a possibilidade de que se
251

acabasse com esse mal-estar, diminuindo os riscos e os perigos que o “mal –


necessário” produzia. Esse modo de ver transforma a prisão numa instituição
alienígena, onde os problemas permanecem condensados e os caracteres
estruturais permanecem inobserváveis.

As novas modalidades de um cárcere mais “duro” servem para legitimar


as necessidades de novas demandas de ordem e segurança que surgem do
caos do sistema prisional. Confirmo então que, devido à falência do Estado e
ao agravamento da questão social, a prisão perde seu poder simbólico de
representar o espaço de normalização e produção simbólica da recuperação do
“Outro”. A sensibilidade está à flor da pele por outras vias, como o medo e a
insegurança, em que emerge o desejo de que as “classes perigosas” sejam
eliminadas da sociedade consumidora. Não se espera mais o retorno do
desviante. As significações da sociedade em geral se expressam em novas
formas de violência simbólica sobre a prisão. Através do silêncio sobre a
violação dos direitos humanos e sociais, ocorre uma manifestação do desejo
de que a massa carcerária seja eliminada da humanidade.

Essa tendência histórica de referenciar as explicações em um enfoque


causal e maniqueísta sobre a crise prisional (principio retroativo) pode, por
outro lado, tornar-se uma espiral (principio recursivo), quando se permitir olhar
a complexidade do fenômeno da violência da prisão na sua concretude,
atualidade e manifestações. Busquei, no decorrer desse trabalho, demonstrar
que a violência, por ser uma construção social com múltiplos sentidos,
significados e manifestações, só se torna realidade a partir das conexões feitas
pelo observador, que pode descobrir outras formas de sua manifestação, ou
melhor, as suas manifestações podem ser vistas por múltiplos ângulos.

Problematizar a questão da violência pelo olhar complexo permite


racionalizar alguns dos medos, verificar as expectativas, ampliar as
probabilidades de alternativas que sejam dinâmicas, flexíveis e de menos risco
de um fracasso de um projeto idealizador, assumindo que a ilusão de uma
solução causal pode levar a outras desilusões.
252

Para considerar a visibilidade da violência da prisão como um elemento


estruturante da organização do PCPA, foi necessário trazer as descrições,
análises, referências e interpretações fornecidas pelos diferentes sujeitos que
circulam nesse lugar. Por isso, a dimensão de auto-organização foi
fundamental para captar o processo de organização, suas formas e percursos
no PCPA.

A partir do estudo de um caso exemplar de uma grande prisão, foi


possível constatar que o sistema penal (sistema punitivo em geral que
congrega as várias polícias e o poder judiciário), nas formas atuais de
execução da pena privativa de liberdade praticadas, revela a negligência do
Estado em relação a políticas de segurança pública e de enfrentamento da
questão do crime/castigo como problema social. Se o teor característico das
políticas de disciplina social, adotadas anteriormente pelo Estado moderno,
tiveram como paradigma penal a institucionalização da prisão disciplinar como
mecanismo simbólico de resolução dos conflitos criminais, a política do Estado
contemporâneo, principalmente nos anos 90, tem sido de ampliação das
populações carcerárias e aumento das formas da violência institucional.
Revela-se a total falta de políticas de inclusão social aos sujeitos apenados e
falta de compromisso com as formas democráticas de descentralização e
municipalização das atividades estatais, como ocorre com outras políticas
públicas.

Na área da política penitenciária gaúcha especificamente, esse


processo atua como um movimento “tesoura”, separando duas tendências
contrapostas: por um lado existe um movimento que clama pela
desinstitucionalização do sistema prisional e por outro uma concentração de
sua prática em estruturas de segurança máxima para os sujeitos que,
impossíveis de serem recuperados, sofrem processos de contenção por serem
considerados “perigosos”.

É possível, entretanto, sugerir nas fissuras dessa política ambivalente


uma tendência autônoma para surgimento e fortalecimento de propostas de
descentralização administrativa dos processos penais, diante da inoperância e
253

falta de eficiência das políticas de controle social centralizadas. Atuações


descentralizadas, próximas aos segmentos e movimentos sociais da base
comunitária poderiam ter como primeira conseqüência a eliminação dos efeitos
da rejeição social, que dificulta ou compromete qualquer tentativa de inclusão
desse segmento à dinâmica da sociedade (DUPONT, 1993; FOLGHERAITER,
1995; KEGLER, 1993).

Novas posturas administrativas nessa direção dependem, porém, da


criação de uma rede que articule tanto as instituições e autoridades do poder
central às organizações e peculiaridades locais onde o estabelecimento
prisional está inserido, sob o risco de resultarem em propostas ineficazes de
delegações verticais de poder sem comprometimento dos atores sociais,
qualquer que seja sua situação.

Por outro lado, ações apenas sobre os efeitos dos processos de


marginalização social que causa a prisão, sem amplo debate e discussão sobre
os fatores nos processos de criminalização e vulnerabilidade à punição,
tendem ao continuísmo (principio recursivo).

Em relação aos sistemas penais, a descentralização administrativa que


possibilitasse a promoção de melhores relações das comunidades carcerárias
com a vida social externa aos muros da prisão, poderia conferir tons mais
naturais e autônomos aos processos de inclusão social dos sujeitos apenados.
Nessa perspectiva, a prisão passaria a ter um papel verdadeiramente de
inclusão social, ao invés de desempenhar uma função de mero isolamento,
com aumento da estigmatização e degradação social dos indivíduos. Além
disso, com a criação e fortalecimento de novos canais institucionais de
participação comunitária na vida da prisão, o sistema prisional deveria tornar-se
um recurso último e extremo de controle social punitivo (GALLO, 1995).

Na prática, e contando com a contribuição de bases comunitárias, poder-


se-ia otimizar a utilização de recursos públicos, com fins educativos e de
assistência à saúde, por exemplo, através de uma articulação das
disponibilidades regionais; além do que possibilitaria melhor aproveitamento
254

das potencialidades locais para retorno ao convívio social do ex-apenado ao


mercado de trabalho, que já poderia ser preparado, na fase de reclusão, o
processo de preparação para liberdade para atender às carências da economia
local.

Há que se considerar, porém, que a sensibilidade social (Capítulo 6),


através de mecanismos culturais e emocionais da exclusão, se reproduz
socialmente. Assim, o risco de que a sociedade civil responda emotivamente
aos problemas e reclame o exercício de práticas excludentes existe e não deve
ser subestimado. Não se deve, portanto, dar fé às capacidades inatas do social
para absorver e mediar, dentro de si, aquelas situações de mal-estar e de
conflito, que provocam as novas estratégias de controle punitivo. O que se
poderia fazer era promover e programar certas intervenções focalizadas que se
entendam como viáveis e necessárias e possam ser realizadas por certas
instituições representativas da comunidade na condição de entes locais,
entidades que de algum modo representam a sociedade, ou por qualquer outra
organização, como associações comunitárias, capazes de impulsionar
intervenções e de buscar soluções positivas aos problemas que geram os
processos de criminalização da população mais vulnerável ao sistema punitivo.

Outro aspecto que deve ser considerado, na adoção de medidas locais,


dentro de uma situação que depende de definições de abrangência geral para
a consolidação de processos transformadores, é que mudanças focalizadas,
experiências pilotos localizadas podem se expandir por analogia para outras
regiões.

Nessa perspectiva, fica clara a relação entre o sistema


penal/penitenciário e o trabalho do Serviço Social. O que quero trazer nessa
questão é a redefinição de competências e de relações entre as áreas de
intervenção no controle social. A esse respeito é necessário frisar que entendo
o controle social não somente como coerção. Em que pese o caos do sistema,
que coloca a intervenção punitiva como fundamento a priori no controle dos
delitos, o Serviço Social poderia, em suas propostas, não manter-se numa
posição maniqueísta de representante do bem, em que a condição de fazer o
255

bem exclui as razões de justiça. Isso apenas o reforça ao imobilismo técnico e


fatalista em que encontra-se a área técnica em geral.

Por exemplo, no que se refere a abordagens do delito, como expressão


da questão social, dentro dessa ótica do trabalho em rede que aqui sugiro,
como serviços de natureza de contato direto com a comunidade, o Serviço
Social teria um papel primordial a desempenhar na compreensão e na
discussão sobre os processos de vulnerabilização penal, que, por enquanto,
recebem tratamentos primordialmente punitivos, desvinculados de medidas
preventivas ou reparadoras voltadas para o enfrentamento do delito como
reação ou divergência social.

É claro que não somente o Serviço Social, mas todas as instâncias de


aplicação do sistema penal, sofrem de uma grande carência de compreensão
dos aspectos sociais mais amplos que ultrapassem a lógica delito/pena,
crime/castigo. Tanto a polícia, no primeiro contato do sistema penal com
comportamentos puníveis, como a administração da justiça e as penitenciárias,
nas fases posteriores de relação do sistema com os acusados de prática
delituosa, seus familiares e vítimas, revelam sua ineficiência, despreparo e
ausência de recursos para enfrentar o conflito em dimensões que fogem aos
aspectos punitivos e que estão envolvidas na origem das situações que
demandaram suas intervenções.

Contudo, pouco a pouco, um caminho alternativo pode ser trilhado numa


outra tendência de abordagem do delito, não como questão vinculada à
natureza do autor, mas como ato originado de nexos sociais, desvinculado de
naturezas patológicas dos sujeitos. É preciso, nessas novas condições, que se
compreendam as causas estruturais e históricas do delito, além de suas
manifestações conjunturais, peculiares a cada cenário urbano, espaço comum
de atuação dos diversos atores sociais envolvidos nos conflitos, que devem ser
compreendidos como fenômenos de origem social.

A partir dessa vigem passo a defender a tese de que A violência da


sociedade contemporânea tem, nas grandes prisões, o lugar privilegiado
256

para se condensar e se expressar através de múltiplas formas. Para


analisá-la, faz-se necessária a abordagem complexa sobre o fenômeno, o
que possibilita captar a prisão não somente como um espaço que
manifesta o excesso da força e do poder de punir - através do controle,
vigilância e disciplina-, mas também, como auto-organização que produz
vida social, rupturas com o projeto idealizador da pena e outras
estratégias para combater a violência institucional. A potência da
socialidade dos sujeitos apenados, dos defensores dos direitos humanos
e dos abolicionistas, seriam estratégias de não-violência à violência da
própria pena privativa da liberdade.

Para tanto, implementar pesquisas científicas que investiguem a forma


de organização complexa na qual se vem estruturando as grandes prisões na
sociedade atual, seria uma das vias possíveis para desconstruir a linguagem
que naturaliza e normaliza a violência simbólica sobre esse lugar e, revelar as
novas configurações do poder simbólico que representam a instituição prisão.

Assim fazendo, há necessidade de construir uma outra linguagem que


nega atributos que prevalecem na cultura política autoritária, brasileira. Ou
seja, que as diferenças não se convertem em desigualdades naturais entre
fortes e fracos; que a vontade de poucos não se impõe sobre a vontade de
muitos, agora colocados em situação de autonomia e não de heteronomia; que
o poder não se dissolve em puras relações de força; que o direito não aparece
como mera exigência formal e a justiça não é cultivada tão somente como valor
abstrato. Trata-se, enfim, de uma sociedade que se recusa a perpetuar
infinitamente o divórcio entre o mundo das leis e o mundo das relações sociais
(ADORNO, 1995)

Sugiro que se desenvolva um conhecimento ético sobre a problemática


em questão. Uma ética da tolerância (SOARES,1996), da compreensão
(MORIN, 1997a) ofereceria possibilidades de nos tornarmos capazes de curar,
antes de tudo, as feridas de nossas próprias culpas. Dessa maneira,
sentiríamos pouca necessidade de limpar a sociedade de seus pecados
purificando o Outro, ou em ultima instancia eliminando o Outro.
257

É preciso pensar a violência como uma atitude menos armada, mais


aberta e consciente das próprias responsabilidades de cada um nas suas
diferentes expressões. Essa postura exige de todos nós, “uma reflexão sobre
como é que nós, as vítimas potenciais da criminalidade, nos relacionamos com
as significações e os fenômenos envolvidos nos dramas perturbadores da
violência” (SOARES, 1996, p.63).

Dezembro de 2001. De muitas maneiras esse viagem-tese tornou-se


uma colcha de retalhos que fui tecendo sobre o próprio movimento da minha
vida pessoal e profissional. Em seus diversos estágios vivenciei a inocência e a
dor da infância, o entusiasmo e a rebeldia da adolescência, a desilusão e a
descoberta da irreversibilidade do tempo na meia-idade e a sabedoria da
maturidade em lidar com o fim, mesmo com o sentimento de que faltava
alguma coisa. Dizem os outros que passam por tal experiência que os que
sobrevivem à viagem-tese tornam-se “sábios”, talvez... Aprendi, pelo menos,
um pouco da pesquisada vida e agora reconheço, um pouco mais, tanto as
minhas falhas como as minhas forças.
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A N E X O S
Anexo 1 – Modelo de instrumentos e exemplos das
informações coletadas
271
272
273
274
275
276
277
278
279
280
281
282
283
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285
286
287
288
289
290
291
292
293
294
295
296
297
298
299
300
301
302
303
304
305
306
307
308
309
310
311
Anexo 2 – Organização dos dados
313
314
315
316
317
318
319
320
321
322
323
324
325
326
327
328
329
330
331
332
333
334
335
336
337
338
339
340
341
342
343
344
Anexo 3 – Documentos estatísticos
346
347
348
349
350
351
352
353
354
355
356
357
358
359
360
361
362
363
Anexo 4 – Exemplo Jornal Arpão
365
366
367
368
Anexo 5 – Material extraído da mídia
370
371
372
373
374
375
376
377

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