A residência começou a 17 de Outubro e vai até 15 de Dezembro
Como está a correr esta residência em Cascais? Sentiu-se compelido ou
inspirado a escrever sobre a cidade ou este país? Estou a escrever um livro bastante difícil de definir. É uma espécie de mosaico composto de uma infinidade de cenas, experiências que tive um pouco por todo o mundo. Seja com pessoas, lugares, alguns escritores que li… Nada se passou em França, foi tudo nas minhas viagens pelo estrangeiro. Logo, trata-se de um retrato subjectivo do mundo e, por isso, também um retrato meu, mas a partir do que vivenciei. Tenho de citar um texto de Borges, bastante breve, a que cheguei e que se tornou importante já depois de ter iniciado a escrita do livro. Este define precisamente aquilo que eu gostava de fazer. “Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.” No meu caso, e espero que isto não seja indício de que tenho pouco tempo para viver, o meu objectivo não é tanto o de fazer o meu retrato – não tenho o menor interesse na autoficção, nem nada que se pareça –, mas, forçosamente, em todas estas cenas que eu testemunhei haverá qualquer coisa de mim mesmo. No outro dia estava a pensar que talvez venha a chamar ao livro “Peregrinação”. É uma hipótese, não sei se me ficarei por este título. Mas, para responder à pergunta, neste livro há uma série de cenas que têm lugar em Portugal. Isto porque estive cá muitas vezes. E há até cenas passadas aqui mesmo. Quando escrevo gosto de dizer onde estou e mostrar aquilo que tenho diante dos olhos. Saiu recentemente no “Le Monde” um manifesto de alguns autores jovens em que traçam um diagnóstico terrível da literatura e, particularmente, da ficção francesa, como estando limitada ao modelo do romance reality- show, que é uma forma degradada da autoficção, reduzida a testemunhos narcisistas que satisfazem o voyeurismo dos leitores, e o romance convencional, que não faz mais do que contar de forma simplista e de olhos postos no retrovisor, os enredos e modelos que toda a gente já conhece e a que se habituou… Ora, eles propõem que o romance se afirme como uma forma de arte contemporânea, e em face de tempos monstruosos, o romance possa reclamar de novo poderes monstruosos, desafiando a forma como encaramos e pensamos o mundo. A primeira coisa que lhe posso dizer é que nunca me senti parte de nenhuma escola, de nenhum grupo. Até tenho muito bons amigos que são escritores, como Jean Echenoz, que ainda na semana passada aqui esteve comigo, e outros como Emmanuel Carrère, também Antoine Volodine, que é um escritor pouco conhecido por cá, Pierre Michon também… Gosto do que eles fazem mas o que eu faço não se assemelha em nada àquilo que eles fazem. Portanto, esse esforço de buscar linhas entre as quais encaixar a ficção francesa não é coisa que me preocupe. Já é suficientemente difícil fazer uma boa ideia do que é que faço eu próprio… Leio os outros mas não busco teorizar sobre aquilo que eles fazem. Além do mais não tenho como analisar a relação entre a literatura francesa e outros produtos mediáticos, nomeadamente televisivos, porque, desde logo, nem tenho televisão. E mesmo quando fico num hotel nunca me lembro de a ligar. Não sei, por isso, do que estão a falar. E peço perdão se parecer que estou a rejeitar a sua pergunta, mas não sou um crítico literário – eles sim têm de ter um ponto de vista sobre a ficção literária, eu não –, não sou um professor universitário, e não posso falar sobre a literatura francesa actual, apenas posso falar de alguns escritores. Por exemplo, posso falar-lhe daquele que me parece ser o mais importante escritor francês da minha geração, e que é justamente Antoine Volodine, mas, de qualquer modo, ele não é, como eu não sou, representativo de uma escola. E em relação a esta ideia de que estamos a viver tempos monstruosos? Tempos em que talvez até os temores apocalípticos se justifiquem? Não é por desejo de entrar em contradição que lhe digo isto, mas não estou de acordo com essa ideia de que vivemos tempos apocalípticos. De resto, no período em que eu nasci, julgo que se viviam tempos bem mais apocalípticos. Apesar de tudo vivemos num período de paz, de relativa prosperidade… Falo de nós, escritores europeus. É evidente que há hoje problemas graves, mas não me agrada a forma como alguns escritores se posicionam diante de um horizonte absolutamente terrível e ainda crêem que devem assumir uma enorme responsabilidade perante isso. Não acredito que os escritores sejam profetas, também não acredito que sejam faróis em termos políticos. É claro que podemos escrever sobre os problemas do nosso tempo. Hoje, um em cada dois escritores franceses escrevem sobre os migrantes, mas também não é algo que me convoque muito. Não vejo os escritores como uma espécie de super-sociólogos, ou sociólogos-artistas. Não acho que tenham de se ocupar daquilo que chamamos “os problemas da sociedade”. Que o façam se querem, mas que imponham isso aos demais. O seu passado maoísta comparece em alguns dos seus livros, seja neste “Porto-Sudão” ou, mais ainda, em “Tigre de Papel”, a memória das lutas estudantis do Maio de 68… Em Portugal tem sucedido um fenómeno que julgo que em França terá ocorrido muito antes que é vermos alguns pensadores conservadores que saíram do armário a proceder a uma espécie de revisionismo que balança entre um certo menosprezo ou até ressentimento, num tardio ajuste de contas. De resto, o protagonista de “Porto-Sudão”, referindo-se a esses acontecimentos, às ilusões que teve na juventude, diz: “Jamais desprezarei esses tempos, ou me associarei aos que riem deles. Apesar das coisas graves ou dolorosas que soubemos ver depois, ignorávamos o medo, a inveja, a cobardia (…) Éramos extremamente audaciosos e ternos. Isso basta para que não insultemos a nossa juventude.” Uma vez que a sua obra tantas vezes se debruçou, reviu esses tempos, volvidos 50 anos do Maio de 68, como é hoje a sua relação com esses eventos? Nunca fui, com excepção daquilo que vivi nessa época, um admirador incondicional nem do Maio de 68 nem do meu próprio passado ou passado da minha geração. Acreditámos numa série de imbecilidades – por exemplo, pensar que a China poderia trazer a libertação para o mundo; o sermos a favor da violência política; o sermos contra as eleições... Enfim, lembro-me das tantas e tão perigosas cogitações a que nos entregávamos que não posso ter uma atitude de admiração incondicional pelo espírito de que estávamos tomados naqueles dias. É claro que foi um momento grandioso para a libertação da pensamento... Apesar de tudo representou uma grande mudança no mundo, ou, pelo menos, do nosso mundo. O país em que eu havia crescido, em que passei a infância, era um país muito arreigado às suas tradições, que não tinha mudado quase nada desde o início do século XX, e o modo de vida que é hoje o nosso começa aí, nos eventos do Maio de 68. Portanto, a influência que teve foi enorme. Mas como não gosto do mundo em que vivemos hoje, não estou muito satisfeito com essa herança. Se acho que as relações entre os homens e as mulheres, ou entre os pais e os filhos estão um pouco mais equilibradas do que naqueles tempos, e reconheço que houve a esse respeito algum progresso, mas, em compensação, parece- me que a minha geração contribuiu grandemente para a destruição do ensino, por exemplo. De resto, esse era precisamente um dos nossos objectivos, e pelos vistos fomos bem sucedidos. Não é, no entanto, uma coisa de que me orgulhe particularmente. Assim, encaro o papel que tive como o de um soldado raso numa mudança da sociedade, e se esta está melhor nalguns aspectos, em tantos outros piorou. Tenho uma leitura um pouco herética do Maio de 68. Um pouco herética e um pouco marxista, também. Penso que podemos analisá-lo como o momento em que o velho capitalismo deu lugar a um novo capitalismo. No velho capitalismo, o que se produziam eram bens materiais: fossem os caminhos de ferro, os comboios, carros, barcos, edifícios... Já no novo capitalismo, o que se fabrica é apenas vento. Instituiu-se esta ordem publicitária que abarca tudo, eu cria os fenómenos de massa, através de meios como a televisão, a internet, e em que o desporto, a moda, uma série de outras manifestações, no fundo, não passam de vento. Este grande corte foi um prenúncio de uma passagem de um capitalismo material a um capitalismo virtual. Tudo isto leva a que só guarde simpatia por uma parte das coisas que vivi; desde logo pela juventude, que é uma coisa em relação à qual sempre guardamos alguma nostalgia, mas, por outro lado, também olho para ela com uma certa frieza. No meu livro “Tigre de Papel” parece-me que consegui expressar esta ambiguidade, e os sentimentos contraditórios em relação ao passado e ao seu legado. De um modo geral, gosto de assumir por esse período uma simpatia irónica.
Há uma bifurcação na sua obra, sendo que de um lado temos obras
absolutamente ambiciosas, quase megalómanas, como “A Invenção do Mundo”, e depois, do outro lado, temos romances testemunhais e reflexivos, como “Tigre de Papel”. E nesta senda, há também livros que não deixam de reflectir a sua vivência, e uma visão crítica do próprio meio literário e da sociedade, mas parece que, através da dor e da perda, de umas mulheres que se tornam tão mais presentes quanto arrasam os seus personagens pela ausência, é quase como se tocasse um requiem, uma literatura em memória daquilo que se perdeu, e como se isso permitisse um renascimento, como se, testemunhando a perda, a literatura fosse uma forma de redenção. Uma balada redentora, um prémio ao alcance daqueles que têm coragem de aceitar até às últimas consequências a sua derrota. Sim, concordo. Vou citar novamente Borges... (É um autor que estimo muito, ainda que não seja o meu autor de eleição.) “... um número infinito de coisas morre com cada agonia (...) O que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou inconsistente perderá o mundo?” Penso que a literatura uma tentativa de resposta a esta pergunta. Penso que a literatura é, entre outras coisas, uma forma de fazer sobreviver as coisas que morrerão connosco. Logo, os escritores tendem a ter uma relação privilegiada com o passado, e ponderam incessantemente sobre aquilo que se perderá para sempre. Podemos escrever ficção científica, podemos voltar-nos para certos aspectos da história, no sentido de tentar guardar uma memória de certos incidentes que quase imploram para não ser apagados, mas penso que devemos escrever sobretudo sobre as coisas que nós conhecemos e que, para os outros, são desconhecidas. Acho que essa é a nossa matéria de trabalho. Por isso, é verdade que há esse sentido de um requiem na minha obra, e isto não se deve a que o meu temperamento seja particularmente triste, mas porque entendo que essa é a matéria de que somos feitos: o passado e as coisas que irão morrer com cada um de nós.
Lendo um livro destes é difícil não se pensar nele em termos de poesia. Há
aqui páginas que dirão mais à poesia do que a quem busca ler uma história romanceada. Quem tenta aqui puxar pelo fio da história dá com uma frase que parece querer marcar um tempo próprio, e impedir o leitor de prosseguir. Páginas que não se deixam voltar. Sei que não está muito preocupado com o destino da literatura, nem com as escolhas dos seus contemporâneos, mas gostava de saber se assume que o que escreve está do lado do desejo mais do que da busca do prazer. Num livro como este, é evidente a condição erótica da sua escrita... Chegamos ao fim de um homem, só recolhemos o seu rastro, e dentro dos seus passos, das pegadas que deixou, vamos recolhendo souvenirs daquela mulher que o deixou e o condenou, assim, à morte. Para ser franco, para cumprir com um plano qualquer, para conduzir o leitor ao longo de uma história, mas o que diz é verdade. Descreveu bem o que acontece nos meus livros. O desejo, se o tomarmos de uma perspectiva proustiana ou mesmo freudiana, é aquilo que nos escapa, que não conseguimos nunca atingir. O prazer ocupa-se da satisfação de certos impulsos ou necessidades, ao passo que o desejo é via através da insatisfação, o que nos ensina é a persistir em direcção a algo inatingível. A insatisfação motiva-nos. Há uma distinção que Roland Barthes faz entre os livros que nos dão prazer, dentro dos quais nos sentimos consolados, e aqueles que nos perturbam, e se colocam do lado do desejo. Livros que nos põem num estado de insatisfação e perda. Aquilo que, inconscientemente, tento fazer, e que me parece que a literatura faz, ou até a arte em geral, é tomar esta segunda opção, que provoca um estado de desorientação, de dúvida... E queria dizer outra coisa. Falou da poesia. Se não posso sempre atingir esse nível, creio profundamente , como foi defendido já por tantos escritores, como Flaubert, como o disse à sua maneira Mallarmé, que não há uma diferença fundamental entre prosa e poesia. Flaubert defendia que devemos buscar a frase perfeita, exacta, bela em si mesma. É uma ideia que desenvolvi num artigo, e que vem de Claude Simon (um escritor mais relevante do que eu)... Há uma antiga forma da escrita e da leitura, que alguns hoje ainda praticam, e que passa por querer saber o fim da história, como é que se saldam os elementos da intriga, e, depois, uma forma moderna, que surge com alguns autores do século XX, que pretende, pelo contrário, interromper o curso das coisas; o texto deve obrigar o leitor a ficar parado diante da frase. Quando leio um livro que realmente me impressiona, que se me impõe, páro e penso: “Cabrão... como é que fizeste isto? Esta porra é realmente um espanto! Como raio é que deste com isto? Que maravilha!” Não me interessa tanto, por isso, aqueles que me fazem virar as páginas para saber o que vai acontecer a seguir, mas aqueles que me fazem ajoelhar no caminho, diante da beleza de uma frase. Aqui vemos bem a ligação que pode haver entre a prosa e a poesia. Mas, obviamente, estou a descrever um estado que tenho diante de mim como horizonte. Quando escrevi “A Invenção do Mundo”, um amigo poeta disse-me que pus a fasquia demasiado alto: “e, naturalmente, passaste por baixo”, disse-me ele. “Mas foi bom que tenhas sido suficientemente audaz para te colocares um desafio perante o qual não podias senão sair frustrado”. Logo, o que eu escrevo não me surge na busca do de que sei que sou capaz mas daquilo que gostaria de ser capaz de fazer.
Algo que se sente em “Veracruz”, ou muito e antes em “O Bar da
Ressaca”, e em que tantos dos seus livros reincidem, é este olhar sobre a mulher que é alguém que passou e provocou danos. Para o leitor, este apaixona-se pela perda dos seus protagonistas, pela mulher que se tornou uma terrível ausência. As mulheres são como fantasmas na intimidade destroçada dos seus protagonistas. Como é que o amor ou as mulheres, na sua vida, o levaram a esta poética da decepção? O que posso dizer sem ser demasiado indecente? (Ri-se) É que o amor teve realmente um papel muito importante na minha vida. (Parece subitamente amiudado, nervoso, hesitante...) Tive relacionamentos que acabaram algumas vezes de forma dramática. Assim, a perda e o luto foram também vivências decisivas para mim. Por exemplo, escrevi “Porto- Sudão” depois de uma perda amorosa e há muitas coisas autobiográficas nesse livro. Também o “Veracruz” foi escrito em circunstâncias algo parecidas. Mas neste existe em compensação momentos de alegria, ainda que seja na sequência de uma perda. Creio que não me seria possível escrever num estado de plenitude, e só posso fazê-lo depois de a ter perdido. Assim, posso dizer que há alguma correspondência entre aquilo que escrevo e a minha vida íntima... mas prefiro fazer um desvio. Então, estou a escrever o tal romance que se organiza como uma forma de mosaico e, de repente, põe-se-me o seguinte problema: tenho uma centena de pequenos retratos de mulheres, mas de que me ficaram apenas impressões colhidas de relance. Uma empregada num bar em Helsínquia, uma outra com que me cruzei numa rua em Xangai... e tiveram em mim um efeito suficientemente forte para que eu tenha tomado nota delas. E pergunto-me o que irei fazer com estes retratos. Gostava de ter um capítulo composto por estes pequenos esquissos de mulheres, mas, ao mesmo tempo, tenho medo que isso pareça uma coisa meio donjuanesca. Não é, porque nem as conheci. Há um poema célebre de Baudelaire que descreve bastante bem uma parte de mim. Chama-se “A Une Passante”. Ele descreve uma mulher que por ele passa na rua com o vestido esvoaçante e diz às tantas: “Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté/ Dont le regard m'a fait soudainement renaître,/ Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?” (“Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade/ Cujos olhos me fazem nascer outra vez,/ Não mais hei de te ver senão na eternidade?”, na tradução de Ivan Junqueira)... E no último verso diz: “O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!” (“Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!”). Isto descreve uma parte de mim, porque há, por outro lado, uma parte de mim que precisa cumprir o amor na carne. Não sou apenas um sonhador que vagueia pelas ruas e se contenta com estas divagações. Mas que tudo isto teve um papel importante na minha vida e naquilo que escrevo, disso não duvido.
Quando escrevi “A Invenção do Mundo”, perguntaram-me como é que ia
estruturar tudo aquilo, e uma das coisas que pensei foi que, em todos os jornais que recolhi de vários países, tendo recorrido à ajuda de amigos, havia fotografias de jovens mulheres, e a ideia que tive foi que o narrador poderia dirigir-se-lhes, a estas mulheres que existem de facto. Eram 48 essas mulheres. E entre estas musas, havia uma jovem actriz chilena, e um dia, eu estava no Chile para falar precisamente desse livro e a pessoa que me tinha convidado disse-me: “Olha, a Amparo, de quem falas no livro, está aqui na sala.” Fique um pouco atrapalhado, e ela estupefacta, tentando perceber como é que aparecia no livro de uma pessoa que nunca conhecera. Acabei por conhecê-la um pouco melhor. Uns anos mais tarde tornou-se uma actriz bastante célebre no seu país. Na última vez que estive no Chile vi-a na capa de uma revista, e o título era: “O que tem ela que falta às outras?” (Ri-se)
E o que lhe parece que têm estas mulheres que o seduzem e que falta às outras?
De cada vez que me acontece é algo de novo. Não há regras, felizmente.