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OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 1

OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL


Um dispositivo de diferenciação pedagógica
2 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 3

Stephen R. Stoer • António M. Magalhães • David Rodrigues

OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL


Um dispositivo de diferenciação pedagógica
4 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL. Um dispositivo de diferenciação pedagógica


Stephen R. Stoer, António M. Magalhães e David Rodrigues

Capa: DAC
Preparação de originais: Liege Marucci
Revisão: Maria de Lourdes de Almeida
Composição: Dany Editora Ltda.
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Por recomendação dos autores, foi mantida a ortografia vigente em Portugal.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa dos
autores e do editor.

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Impresso no Brasil — julho de 2004


5

SUMÁRIO

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA


José Eustáquio Romão .......................................................................................... 7

PREFÁCIO: Teorizando a Exclusão/Inclusão Social — opções pedagógicas


e metodológicas .................................................................................................. 13

CINCO LUGARES DO IMPACTO DE EXCLUSÃO SOCIAL .................................. 21


Plano Geral .......................................................................................................... 19
Palavras-chave .................................................................................................... 20
Introdução ........................................................................................................... 21
A “Sociedade de Risco” e a Exclusão Social ............................................ 24
A Exclusão Social como um Fenómeno Multidimensional .................. 26
A Exclusão Social e a Inclusão Social como um Único Conceito ......... 28
Cinco Lugares do Impacto da Inclusão/Exclusão Social ...................... 29

O Lugar do corpo .............................................................................................. 30


“O Século do Corpo” .................................................................................... 31
Duas Concepções do Corpo na Teoria Social .......................................... 33
O Corpo e Comunicação .............................................................................. 36
As Imagens Corporais .................................................................................. 40
O Corpo como Lugar dos Processos de Exclusão/Inclusão Social ..... 41
O Corpo como Agência ................................................................................ 51
Conclusão ....................................................................................................... 52
6 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

O Lugar do trabalho ......................................................................................... 54


Trabalho e a Identidade Ocupacional na Sociedade Industrial ........... 56
A Reconfiguração do Trabalho e da Identidade Ocupacional ................ 61
Trabalho, Globalização e Inclusão/Exclusão Social ............................... 69
Conclusão ....................................................................................................... 71

O Lugar da cidadania ....................................................................................... 72


Sintomas de Mudança da Ontologia Social da Modernidade .............. 72
A Ontologia Social da Modernidade ......................................................... 74
A Reconfiguração do Contrato Social Moderno ..................................... 79
“A Diferença Somos Nós” ........................................................................... 89
Conclusão: Exemplos das Novas Formas de Cidadania — os
desafios à gestão política dos sistemas educativos ........................... 91

O Lugar da identidade ..................................................................................... 94


Introdução ...................................................................................................... 94
A Construção da Identidade em Contextos Tradicionais ...................... 98
A Construção da Identidade no Contexto da Modernidade
Capitalista .................................................................................................. 100
A Pluralização da Narrativa do Estado-Nação e os Locais em que a
Identidade se Forma ................................................................................ 105
O Ornitorrinco como uma Metáfora Orientadora .................................. 108
Conclusão ....................................................................................................... 109

O Lugar do território ........................................................................................ 111


Território como Constructo Social ............................................................. 113
O Território Homogéneo ............................................................................. 116
Des/Reterritorialização do Território ....................................................... 121
Conclusão ....................................................................................................... 125

Conclusão ............................................................................................................ 127

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 137


7

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

José Eustáquio Romão

Esta é uma obra sobre exclusão, mormente sobre exclusão social —


temática tão recorrente entre nós. Contudo, não é uma obra que repete
as teses e antíteses de tantas outras já divulgadas por aqui e, por isso,
justifica-se, com muita relevância sua publicação no Brasil.
Seus autores inscrevem-se no campo da reflexão crítica e, portanto,
no correspondente universo da política da resistência. Eles mesmos iden-
tificam a preocupação central da obra com a problematização do par
exclusão/inclusão nos diferentes contextos (sociais e culturais) locais,
nacionais e supranacionais, por meio da análise do que chamam “luga-
res”. E, dentre esses “lugares” — conceito que buscaram em Bernstein1
— escolheram o corpo, o trabalho, a cidadania, a identidade e o territó-
rio. Os autores assumem uma perspectiva analítica que batizaram com o

1. Basil Bernstein nasceu em 1º de novembro de 1924 e faleceu em 24 de setembro de 2000. Foi


professor emérito da cátedra Karl Mannheim de Sociologia da Educação do Instituto de Educação
da Universidade de Londres. Foi um dos mais importantes sociólogos do século XX. De uma
família de imigrantes judeus, depois de ter estudado sociologia, concluiu um doutorado em Lin-
güística, na Universidade de Londres. Da década de 1960 até sua morte, coordenou pesquisas na
área de sociologia da educação, tornando-se uma referência mundial. Dentre suas obras, pode ser
destacada Class, codes and control. (Londres: Routledge y Kegan Paul, 1973), cujos volumes subse-
qüentes (2, 3 e 4) foram publicados, respectivamente, em 1973, 1977 e 1990. Em 1996, publicou
Pedagogy, symbolic control and identity: theory, research, critique (Londres, Taylor and Francis).
8 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

nome de “indutiva”, referenciados em paradigmas que “enquadram”,


segundo eles, as sociedades tradicionais, as modernas e as emergentes
pós-modernas, para verificar os impactos da exclusão/inclusão sobre as
pessoas, os grupos e as formações sociais.
Já na sua primeira parte, percebemos o quanto a obra é inovadora,
na medida em que elege o corpo como um “lugar” de inclusão e de ex-
clusão. E ele não é mais concebido como o espaço de trabalho de agên-
cias de inclusão ou exclusão, mas, ele próprio como uma agência, supe-
rando a concepção da modernidade que, mesmo em suas tendências
“generosas” de compensação de “deficiências” e “anomalias constata-
das”, continuava vendo-o como um espaço de intervenção, continuava
o entendendo-o como mera projeção pública do self.
Parece crucial, especialmente para uma humanidade de início de
milênio que se envelhece cada vez mais, as reflexões que os autores fazem
do corpo como lugar de inclusão ou exclusão dos idosos, que ele, aí, expri-
me a visibilidade da decadência física, se examinado sob a perspectiva
de uma concepção tradicional de plástica e, não como portal de uma
identidade cuja riqueza medra nas rugas do ser humano visualizado.
Na segunda parte do livro, os autores debruçam-se sobre outro “lu-
gar” de inclusão ou exclusão: o trabalho. E, neste particular, avançam na
discussão da transformação do conhecimento em fator de produção, na
sociedade contemporânea pós-fordista. Sugerem aos leitores um avanço
em relação à própria reflexão materialista-dialética, no sentido da mais
revolucionária tradição marxista, apontando que o conhecimento, con-
cebido pelo pensamento neoliberal e neoconservador transforma-se na
sua “crisálida de ouro”, que é a performance, desprezando-se o proces-
so de formação para o avanço do humanismo.
A tal “Sociedade do Conhecimento” — sugere-me a leitura deste
livro — acaba por se tornar a expressão exacerbada da dominação e da
exploração, pois se os processos produtivos capitalistas fordistas-
tayloristas sugavam o corpo humano, os processos pós-fordistas sugam
sua alma. Afirmam os autores:

O conhecimento, neste sentido, em vez de qualificar o indivíduo transfor-


ma-o num conjunto de competências de tipo cognitivo. O conhecimento
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 9

deixa de educar os indivíduos e a sociedade, tornando-se antes num ins-


trumento que permite posicionar os indivíduos (ou excluí-los do) no mer-
cado de trabalho. Uma das conseqüências desta transformação é o proces-
so de individualização em que os indivíduos são reduzidos à sua performan-
ce... (p. 48).

Neste sentido a desqualificação social confunde-se com a desquali-


ficação profissional — no interior do universo de um sistema produtivo
tecnologicamente reconvertido — e esta, por sua vez, tende a confundir-
se com as exclusões do credencialismo do sistema educacional. Por com
adequada e crítica análise, os autores do livro configuram o trabalho e a
educação como lugar da inclusão/exclusão social.
Curiosamente, à medida que o processo de acumulação capitalista
se globalizou, transformaram-se profundamente os processos de denún-
cia e de reivindicação, na medida em que, se antes lutavam contra a ex-
ploração do trabalho pelo capital, agora, os movimentos dos trabalha-
dores são obrigados a lutar pela oportunidade de serem explorados pelo
capital. Dito de uma maneira mais simples: se, na sociedade industrial, o
movimento operário legitimava sua radicalidade na resistência necessá-
ria à extração do sobre-trabalho, ainda que “ilusão mercantil” típica do
contrato de trabalho capitalista camuflasse a exploração aí inerente; na
sociedade neoliberal, com a quase absolutização da mais-valia relativa,
esse movimento é obrigado a lutar pela abertura de oportunidades de
emprego, ou seja, pela re-submissão da massa desempregada à explora-
ção da acumulação capitalista contemporânea. Enquanto a primeira luta
se dirigia à explicitação daquela “ilusão” e à denúncia da verdadeira
cripto-exploração; a segundo se volta para a conquista de um lugar no
alvo da exploração. Se antes se fazia passeata por melhores condições de
trabalho e remuneração, enfim, por menos exploração; agora, se faz pas-
seata por mais vagas nos postos de trabalho, independentemente dos
mecanismos de exploração aí instalados e em operação. Não é assim que
se comportam os concorrentes a esses postos, aviltando suas exigências
em nome da “empregabilidade”?
Neste particular, a História não criou nada de novo no front da van-
guarda capitalista: como sempre, o trabalho alienante continua sendo
lugar de exclusão social. Às vezes, funciona como lugar da inclusão dos
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poucos cooptados e catapultados para os empregos de maior remunera-


ção e prestígio, para servirem de contraprova à tendência estrutural
antidemocrática da sociedade burguesa — ao contrário do que apre-
goam seus intelectuais orgânicos.
Os autores deste livro consideram a cidadania como o terceiro lu-
gar a ser examinado na perspectiva do binômio exclusão/inclusão, aí
considerando que denominam a “ontologia social da modernidade” se
constituiu sobre os conceitos de consciência, de indivíduo e de cidadão.
Iniciam a reflexão sobre este lugar da inclusão/exclusão com a dis-
cussão de reivindicações de identidades aparentemente deslegitimadas
no universo dos valores societários hegemônicos, ainda que legalizadas,
no mínimo como exceções, pelo aparato jurídico-político dos Estados
contemporâneos. Em outras palavras, lançam na arena das idéias as mais
recentes reivindicações de respeito às exclusões, como no caso da comu-
nidade de Barrancos, em Portugal, que conquistou o direito de excluir-
se da “normalidade” sancionada pelo aparato legal do país, ao conquis-
tar o direito, como exceção, à festa do boi que pode ser abatido.
Nesta parte do trabalho os autores retomam o tema da desterrito-
rialização engendrada pela globalização do poder do capital, na medida
em que o lócus das pessoas e das comunidades perdeu substância, pro-
porcionalmente ao esvaziamento dos lugares tradicionais de localiza-
ção: a família, a comunidade imediata, a nação, a sociedade religiosa,
etc.
A desterritorialização é uma tendência estrutural da Sociedade Bur-
guesa, dado que o compromisso histórico da classe social que implantou
o Capitalismo no mundo é com o lucro. Não faz muito tempo, quando se
iniciou a discussão sobre a denominação mais adequada para as gran-
des empresas, que passaram a operar, simultaneamente, em várias par-
tes do Planeta, e não apenas nos países de sua origem, falava-se, inicial-
mente, em “multinacionais”, até que alguém tivesse a lucidez de
denominá-las “transnacionais”, isto é, organizações que se localizavam
além das nacionalidades, sem compromisso com bandeiras de qualquer
cor, com qualquer país, mas, exclusivamente com a acumulação do lu-
cro. Ora, se o lucro é obtido no mercado globalizado, a inclusão, neste
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contexto, se dá pelo consumo, ou pela inserção (de poucos) no sistema


produtivo tecnologicamente reconvertido. Assim, se se puder falar em
nova territorialização, ela dar-se-á no mercado mundializado, ou seja,
ela tenta se localizar em um espaço etéreo. De qualquer modo, esta for-
ma alienada de referência territorial das pessoas passa a determinar as
formas de inclusão e exclusão, como afirmam os autores deste livro.
Neste sentido, acrescentaríamos que, dialeticamente, embora alie-
nante, esta nova forma de “ubicação” das pessoas acaba por potenciali-
zar uma espécie de identidade planetária. De todo modo, a afirmação
das diferenças surge como uma força de resistência a essa pasteurização
mercadológica das identidades.
Os autores deste livro, inclusive, configuram a “metanarrativa da
modernidade”, cujos componentes (Razão, Humanidade, Estado), com
seus correspondentes mediadores narrativos (ciência/filosofia/arte, ins-
tituições sociais e Estado-nação) e identificadores (consciência, indiví-
duo e cidadão), contrapõe-se a esta espécie de “antimetanarrativa pós-
moderna”.
Se, no mundo da Modernidade, as pessoas identificavam-se, tam-
bém, como parte pactuante no pacto social, no atual, no da “Pós-moderni-
dade”, os seres humanos transformam-se em meras partes contratantes e
o Contrato Social transforma-se, enfática e efetivamente, um contrato, em
mero contrato e o segundo elemento da expressão perde relevância.
Curiosamente, neste mundo “mercantilizado” e “globalizado”, sur-
gem duas tendências que, aparentemente, estarão na contramão das lu-
tas da tradição crítica e humanista: de um lado, a reivindicação do reco-
nhecimento das diferenças, não mais das igualdades “homogeneizado-
ras”, como afirmação da cidadania; de outro, a conclamação da regula-
ção como instrumento de garantia da justiça social e, não mais a emanci-
pação, para garantir-se o mínimo de proteção pessoal contra a investida
excludente do capital globalizado.
Nos próximos anos, muito papel e muita tinta ainda serão gastos,
certamente, com a discussão sobre os limites da nova cidadania, afirma-
da no respeito às diferenças, de modo que elas não justifiquem as desi-
gualdades, bem como construída sobre os pilares da igualdade, que não
se identifique com as uniformidades.
12 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

Na discussão das identidades reclamadas, os autores debruçam-se,


de novo, sobre os “lugares” privilegiados, pela metanarrativa moderna,
para a consecução da “cidadania atribuída”. Na cidadania reclamada,
nestes tempos pós-modernos, qual é o papel reservado a esses “lugares”
e, de modo especial, à instituição escolar? Responder a esta questão sig-
nificaria resumir a parte final do trabalho de Steve Stoer, António Maga-
lhães e David Rodrigues. Mas, como não queremos afastar o leitor do
original, mas, pelo contrário, sugerir a leitura dele, vamos ficando por
aqui.
Apenas uma última palavra a respeito de um verdadeiro “achado”
dos autores que, em outra obra o desenvolveram, retomando-o aqui: a
metáfora do bazar, como lugar de confronto de diferenças, de compras,
de negociações. É bom lembrar que o “bazar”, no Brasil, mais recente-
mente, além de designar a loja onde se encontrava tudo, passou a deno-
minar, também, as iniciativas solidárias do que poderia chamar-se o
mercado alternativo dos pobres — não se organizam os bazares benefi-
centes nas escolas, nas creches, nas comunidades religiosas? E, por aca-
so, o bazar, coincidentemente, não é o lugar privilegiado das negocia-
ções do mundo muçulmano?
Estas são algumas, dentre tantas outras, as profundas provocações
desta obra no leitor mais atento. Por isso, pode-se afirmar, com seguran-
ça, que este não é um livro para ser lido “jornalisticamente”, nem didati-
camente — apesar de seu didatismo, no sentido positivo da palavra —,
mas com uma atenção especial às provocações que ele engendra. É uma
obra que interessa a todos e que, certamente, não pode faltar na estante de
qualquer educador, de todo pesquisador de qualquer campo do conheci-
mento e da intervenção política, porque, afinal, é uma obra seminal para
quantos queiram se alistar nas hostes dos que querem manter o proces-
so civilizatório em marcha.
13

Prefácio

TEORIZANDO A EXCLUSÃO/INCLUSÃO SOCIAL —


OPÇÕES PEDAGÓGICAS E METODOLÓGICAS

Este livro foi produzido no âmbito da nossa participação, como


docentes, no Mestrado Europeu de Estudos e de Desenvolvimento em
Ciências Sociais e Educacionais, com especialização em Perspectivas
Europeias sobre a Inclusão Social organizado através do Programa Só-
crates da União Europeia, tendo como objectivo produzir uma qualifica-
ção para as pessoas que trabalham nas áreas de cuidados sociais, justiça
social, educação e outras ocupações aliadas, no sentido de as preparar
para compreender, de uma forma aprofundada, as dimensões de discri-
minação social na Europa. Este projecto resultou da colaboração entre
sete universidades europeias1 que assumiram a credencialização simul-
tânea e mútua dos diplomas respectivos.
Ao escrevermos um livro sobre os Lugares onde a exclusão social
se produz, a pensar num processo de ensino-aprendizagem, sentimos
que a tarefa que empreendemos é, antes de mais, pedagógica, sobretudo
pedagógica porque este livro é escrito por autores oriundos tanto da Edu-
cação, como das Ciências Sociais, que o conceberam como um dispositivo

1. Universidade Técnica de Lisboa; Hochschule Magdeburg-Stendal, Alemanha; Eötvös


Lorand Tudomanyegyetem, Hungria; “Alexandru Ion Cuza”, Roménia; Universidade de Karlstad,
Suécia; Edge Hill University College, Grã-Bretanha e a Universidade do Porto.
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de diferenciação pedagógica. Este conceito implica que o ponto de partida


para o desenvolvimento e uso deste livro é um campo activo de recon-
textualização pedagógica.
O conceito de “campo de recontextualização pedagógica” foi de-
senvolvido por Basil Bernstein (1990) como o espaço que gera os enqua-
dramentos, as possibilidades e os próprios espaços da teoria pedagógi-
ca, da investigação sobre a educação e as práticas educativas. No traba-
lho de Bernstein são teorizados dois campos de recontextualização pe-
dagógica dos sistemas educativos: o campo oficial e o pedagógico. Cons-
tituem o que Bernstein designa o “o quê” e o “como” do discurso peda-
gógico: “O ‘o quê’ envolve a recontextualização daquilo que é o conteú-
do disciplinar (física, inglês, história, etc.), daquilo que é expressivo (as
artes) e daquilo que é manual (trabalhos manuais), enquanto o ‘como’
remete para a recontextualização das teorias vindas das ciências sociais,
normalmente da psicologia” (1990: 196).
Enquanto o campo oficial abrange as instâncias estatais de elabora-
ção e de implementação das políticas educativas, o campo pedagógico
inclui, além dos média da educação (audiovisual, jornais, etc.) e das ca-
sas editoras (incluindo os seus leitores e os seus consultores), as faculda-
des e os departamentos de educação das universidades e dos politécni-
cos e as instituições e fundações de pesquisa e de divulgação educacio-
nais. Também pode incluir campos não especializados em discursos e
práticas educativos, mas que conseguem influenciar a elaboração e a im-
plementação da política educativa oficial. É por meio deste segundo cam-
po de recontextualização, e com base na formação pela investigação, que
se pode, de facto, concretizar este campo. Citando Bernstein,

Podemos definir a autonomia relativa do discurso pedagógico na medida


em que aos campos de recontextualização pedagógica, não só lhes é per-
mitido ter existência, mas também afectar a prática pedagógica oficial. [...]
Onde existem campos de recontextualização pedagógica que são efectivos
e gozam de uma autonomia relativa, torna-se possível para os que actuam
neste campo recontextualizar textos que por si próprios podem considerar-
se ilegítimos, opostos, proporcionadores de espaços contra-hegemónicos
da produção de discurso” (1990: 198; 202).
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 15

De acordo com Basil Bernstein, o trabalho do professor consiste,


pelo menos em parte, na tradução do conhecimento científico numa lin-
guagem mais apropriada,2 que permita às pessoas implicadas na apren-
dizagem captar o conhecimento assim veiculado. Os professores têm por
função seleccionar, simplificar e transferir o conhecimento que eles não
produziram. Tal como Bernstein explica:

Tomando a Física como exemplo, distinguiremos entre a Física como con-


junto de actividades no campo da produção do discurso e a Física como
discurso pedagógico. É perfeitamente possível debruçarmo-nos sobre as
actividades dos físicos no campo em que a Física é produzida e constatar
que é por vezes difícil acreditar que o que todos estão a fazer é do domínio
da Física.
Não é o caso da Física enquanto discurso pedagógico. Um livro de texto
diz o que a Física é e é óbvio que esta definição tem um autor. O interes-
sante é que os autores dos livros didácticos sobre Física são raramente
físicos que trabalham no campo de produção da Física, trabalham, antes,
no campo da re-contextualização.
À medida que a Física é apropriada por agentes de re-contextualização, os
resultados podem não derivar em termos formais da lógica da produção
de discurso. Apesar da lógica intrínseca que constitui o discurso especia-
lizado e as actividades da Física, os agentes de re-contextualização
seleccionarão só alguns da totalidade das práticas a que se chama Física.
Existe, pois, uma selecção.
Existe uma selecção sobre a forma como a Física é explicada a outros indi-
víduos, sobre a sua sequência e aproveitamento (aproveitamento entendi-
do como a taxa de aquisição esperada). Mas estas Selecções não podem
derivar da lógica do discurso da física ou das várias actividades no campo
da produção do discurso. (Bernstein, 1996: 48-9).

Os professores são, na perspectiva de Bernstein, “agentes de re-con-


textualização” que “tomam um texto e o reformulam” (ibid., 193). Ao
fazer isto, os professores empreendem para todos os efeitos uma modifi-
cação. Segundo um aforismo italiano (“traduttore”, “traditore”), o tra-

2. Algumas destas ideias foram desenvolvidas inicialmente por Cortesão e Stoer, 1999; 2003.
16 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

dutor é um traidor, o que significa que quem traduz um texto para outra
língua trai quase inevitavelmente o seu significado original. Um exem-
plo da consciência da “traição” a um texto expressa-se na própria dúvi-
da de saber se é possível captar plenamente o pensamento do autor no
livro que este escreveu. Traduzir um texto exige, por este motivo, um
grande domínio das línguas em presença. No caso do professor, a possi-
bilidade de traduzir um texto científico para uma linguagem pedagógi-
ca depende, dentre outros factores, da capacidade de seleccionar a parte
mais importante do texto, de estabelecer as suas sequências lógicas e de
seleccionar as mais adequadas para os seus estudantes. No entanto, a
maioria dos professores raramente faz este trabalho de tradução. Limi-
ta-se frequentemente a reproduzir textos a partir de manuais, tentando
ser o mais fiéis possível aos textos originais, eles próprios já re-contex-
tualizados. O processo pedagógico implica certamente algum tipo de
alteração do texto por parte do professor, mas ao seguir o manual a ten-
dência mais comum é a de desenvolver um tipo de educação monocul-
tural com efeitos predominantemente reprodutivos (o que Paulo Freire
denomina “educação bancária”).
Se o professor procurar uma grande variedade de materiais educa-
tivos, tentando re-interpretar, re-situar e re-focalizar o manual com o
objectivo de se comunicar com os estudantes provenientes de contextos
sociais e culturais diversificados, existe maior possibilidade de o profes-
sor escapar — pelo menos parcialmente — aos efeitos reprodutivos do
sistema educativo e ainda produzir activamente conhecimento que pode
ser de dois tipos. O primeiro é o conhecimento socioantropológico pro-
duzido a partir da observação cuidadosa do grupo de estudantes. Esta
observação pode permitir a identificação de características psicológicas
e socioculturais dos estudantes. O segundo tipo de conhecimento resul-
ta da fertilização cruzada de conhecimentos baseados no currículo e na
pedagogia em interacção com o conhecimento socioantropológico obti-
do a partir das diferentes formas de observação.3
Em suma, os autores deste livro identificam-se, antes de mais, como
“agentes de re-contextualização”, nos termos que usou Bernstein. Toda-

3. Para mais pormenores, ver Stoer e Cortesão, 1999.


OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 17

via, vêem-se ainda no papel de tradutores que não só têm um controlo


apreciável sobre os textos que re-interpretam — na realidade são, em muitos
casos, os autores de textos que eles próprios estão a “traduzir” —, mas
que também estão activamente implicados na produção dos dois tipos
de conhecimento referidos anteriormente.
Assim, a concepção deste livro é a de um dispositivo de diferencia-
ção pedagógica, o que significa, em primeiro lugar, o reconhecimento de
que existem campos de re-contextualização pedagógica em todos os paí-
ses do mundo ocidental, ainda que nuns de forma mais significativa do
que noutros. Em segundo lugar, significa que os seus autores se envol-
veram num processo de reflexividade pedagógica (que serviu de base
para a opção metodológica) e, em terceiro lugar, significa que se encon-
tra presente um certo número de pressupostos ao longo do livro. Estes
pressupostos foram mobilizados tendo em conta especialmente o perfil
das pessoas a quem este projecto pedagógico se dirigiu em primeiro lu-
gar (assistentes sociais, professores, sociólogos, psicólogos, polícias, ad-
vogados, etc.) e são, em síntese, os seguintes: i) a promoção de uma arti-
culação consciente entre a teoria e a prática; ii) a tensão dinâmica entre o
instituído e o instituinte; e iii) um esforço para criar uma ligação entre o
passado, o presente e o futuro, entre a acção e a investigação e entre a
estrutura e a agência. Propomos, além disso, algo imodestamente, que
se faça uma tentativa de, por um lado, subverter a subversão da acção
pedagógica pela natureza reprodutiva do sistema educativo e, por ou-
tro, promover uma descentração da educação de forma a desafiar o seu
imperialismo cultural e a sua tendência para ser etnocêntrica. Por fim,
este livro propõe-se a:
1. contribuir para a construção — negociada e eventualmente con-
flitual — de uma comunidade de comunidades culturais que im-
pliquem o reconhecimento mútuo e o respeito pela promoção da
interacção entre estas comunidades;
2. contribuir para a realização, pelos estudantes, de um trabalho
que produza simultaneamente uma reflexão autoconsciente e que
promova a valorização do conhecimento baseado nas raízes cul-
turais, enquanto simultaneamente pretende abarcar importan-
tes conhecimentos curriculares.
18 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

A opção metodológica assumida ao longo do livro é, portanto, a de


despoletar, a partir de extractos de textos recolhidos de várias fontes e
campos disciplinares (literatura, filosofia, ciências sociais, história, arti-
gos de jornais, textos da Internet, etc.), a discussão das bases epistemoló-
gicas e sociológicas de que habitualmente se tem partido para pensar e
agir sobre a exclusão/inclusão social.
19

CINCO LUGARES DO IMPACTO DE EXCLUSÃO SOCIAL

Plano geral

A exclusão social e a “inivisibilidade” das pessoas e dos grupos


ignorados ou marginais nos diferentes países europeus tornou-se uma
questão central, cujas causas e implicações são amplamente discuti-
das. Alguns modelos teóricos — dimanados de diferentes disciplinas,
como a medicina, a psicologia, a sociologia, a economia — procuram
“explicar” as razões da exclusão social através da identificação “disci-
plinar” destes; outros centram-se em saber como é que os sistemas pro-
duzem exclusão através da normalização de certas características dos
indivíduos e grupos. Recentemente, a questão da exclusão social tem
sido o objecto de investigação levado a cabo pelos próprios “excluí-
dos”. Este trabalho pretende abordar a problemática da exclusão social
através da análise do par simbiótico exclusão/inclusão social. A sua
preocupação central é a da problematização deste par nos diferentes
contextos (quer sociais e culturais, quer educacionais aos níveis local,
nacional e supranacional) por meio da análise de cinco dos Lugares —
o corpo, o trabalho, a cidadania, a identidade e o território — onde a
exclusão/inclusão social produz o seu impacto. Assim, assumir-se-á
uma abordagem indutiva das teorias da exclusão social (e da inclusão
social), desenvolvendo-a através do estudo dos seus reais efeitos sobre
os indivíduos, os grupos e sobre a sociedade no seu todo, tomando
20 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

como referência os três paradigmas socioculturais, isto é, aqueles que


enquadram as sociedades tradicionais, as sociedades modernas e as
emergentes sociedades pós-modernas.

Palavras-chave
Exclusão social, inclusão social, Lugar, corpo, trabalho, identidade, cida-
dania, território, diferença, contextos, espaços estruturais.

Introdução
Este livro está organizado de forma a ser usado, dentro do possível,
de uma forma indutiva. Assim, cada capítulo, seguindo esta lógica, in-
troduz primeiro pequenos textos que levam o leitor a reflectir sobre os
temas principais ou Lugares, que serão depois analisados de forma sis-
temática. São apresentados, a seguir, “pontos-chave para discussão” com
o objectivo de promover a reflexão tanto individual como de grupo so-
bre estes temas e Lugares. Finalmente, surge uma espécie de “estado da
arte” relativo a esses temas, apresentado numa tentativa tanto de resu-
mir abordagens teóricas sobre a exclusão/inclusão social como de abrir
um debate relacionado com as dimensões políticas que estão em jogo.

Considere os seguintes três textos:

1º texto:
Numa ordem pós-tradicional, a narrativa do self tem, de facto, de ser
continuamente retrabalhada e as práticas de estilo de vida com elas arti-
culadas, como se o indivíduo quisesse combinar autonomia pessoal com
um sentido de segurança ontológica. Os processos de auto-actualização
são muitas vezes, contudo, parciais e restritos, por isso, não é surpreen-
dente que as dependências sejam tão diversificadas na sua natureza. Quando
a reflexividade institucional atingir todos os níveis da vida social quoti-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 21

diana, quase qualquer modelo ou hábito pode tornar-se uma dependência.


A ideia de dependência faz pouco sentido numa cultura tradicional, onde
é normal fazer-se hoje o que se fez ontem. Quando havia continuidade de
tradição e um modelo social particular acompanhava o que estava desde
há muito estabelecido — e era tanto sancionado quanto considerado correcto
e próprio —, dificilmente se poderia falar de dependência ou fazer juízos
sobre características específicas do self. Os indivíduos não podiam esco-
lher livremente, mas, ao mesmo tempo, não tinham a obrigação de se
descobrirem a si próprios nas suas acções e nos seus hábitos.
As dependências são, pois, um índice negativo da forma como o projecto
reflexivo do self se desloca para a boca da cena na modernidade tardia. São
modos de comportamento que penetram, talvez de um modo muito
sequencial, nesse projecto, mas se recusam a submeter-se a ele. Nesse
sentido, todos são nocivos para o indivíduo e é fácil ver por que razão o
problema de os superar percorre actualmente de modo tão amplo a litera-
tura terapêutica. Uma dependência é uma falta de habilidade para coloni-
zar o futuro e, como tal, contraria uma das principais preocupações que os
indivíduos têm agora de gerir reflexivamente. (Giddens, 1995: 75-76)

2º texto:
A exclusão das estruturas de informação e comunicação ocorre para as
novas classes mais baixas e não só no seu trabalho. Os seus locais de
residência são igualmente afectados. Os mapas de comunicações organi-
zados geograficamente, mostram os locais onde se situam os faxes, os
grandes emissores e receptores de satélite, os cabos de fibra óptica, as
redes internacionais de computadores e coisas semelhantes. Quando se
analisa este mapa fica-se chocado com a alta densidade informativa e
comunicacional nos bairros centrais das principais cidades, com as suas
concentrações de escritórios, sedes de empresa, serviços financeiros; os
níveis intermediários nos subúrbios, onde se encontram fábricas e mui-
tos serviços de apoio ao consumidor; e a dispersão que se observa nos
guetos e nas áreas economicamente desfavorecidas. O que se vê é um
mosaico de “zonas vivas” ou “zonas domesticadas” nos centros urbanos
e de negócios e “zonas mortas” ou “zonas selvagens” nos guetos. E,
como sociedade civil, é a própria esfera pública que se torna cada vez mais
sobreposta às estruturas de informação e comunicação (I&C), a exclusão
destas estruturas torna-se a exclusão da cidadania que se torna efectiva ao
nível político e cultural na sociedade civil. Isto é, se na modernidade
22 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

simples as obrigações da cidadania eram direccionadas aos Estados-nação,


na modernidade reflexiva estas obrigações são dirigidas ao “eu”, a uma
auto-monitorização responsável. Os direitos da cidadania na modernidade
simples tais como igualdade perante a lei, os direitos políticos e os direitos
sociais do Estado-providência, foram transformados na modernidade refle-
xiva em direitos de acesso às estruturas de informação e comunicação. A
nova classe baixa da modernidade reflexiva que é, em muitos aspectos,
uma underclass, está privada tanto das obrigações e dos direitos do que
actualmente já não é social mas predominantemente uma cidadania cultu-
ral. (Lash, 1994: 132-133)

3º texto:
Com as novas características e a nova visibilidade que tem ganho recen-
temente o fenómeno de globalização (fala-se, como é sabido, de modos de
ligação entre contextos sociais ou regionais na forma de redes estendidas
pela superfície da terra — cf. Giddens, 1992), o local ganha uma nova di-
mensão, isto é, torna-se simultaneamente global. Um primeiro importante
resultado desta nova dimensão é o facto do espaço se encontrar separado do
lugar. Por outras palavras, devido à reestruturação do espaço, a ausência
predomina sobre a presença (algumas das implicações deste facto para a
formação das identidades são discutidas em Magalhães, 2000). Por outras
palavras ainda, o professor pode estar presente no local — na escola e na
comunidade — sem estar nele fisicamente presente. Esta é uma das condições
necessárias para o que se pode denominar “a relocalização do professor”.
Um segundo resultado da nova dimensão do local, intrinsecamente
ligado ao primeiro, é o facto do processo de globalização introduzir “no-
vas formas de interdependência mundial, nas quais [...] não existem
‘outros’: o facto de ‘Chernobyl estar em toda a parte’ implica o que ele
(Ulrich Beck) designa por ‘o fim dos outros’” (Giddens, 1992: 138-197).
“O fim dos outros” tem implicações tremendas para o local e também
para o trabalho pedagógico que nele se realiza. Pode afirmar-se neste
sentido que a “relocalização do professor” é, ao mesmo tempo, a sua
globalização. Isto é, o sucesso local (que, como tanto tem enfatizado
Raúl Iturra, era muitas vezes num país como Portugal o insucesso escolar
— e, portanto, o pôr em cheque do nível nacional) não pode existir
independentemente do sucesso global. Como resultado, há um simultâ-
neo reforço e esbatimento da tensão que existe entre a chamada escola
meritocrática, identificada com a democracia representativa, e a escola
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 23

democrática e a sua fundamentação na democracia participativa. Por ou-


tras palavras, a “relocalização do professor” envolve, por um lado, um
reencontrar das raízes no encontro e no contacto das experiências quoti-
dianas ao nível da comunidade local e, por outro, a assunção de que essa
comunidade faz parte do processo da intensificação das relações sociais
mundiais. (Stoer, 2000: 10-11)

Pontos-chave para discussão:


• Anthony Giddens identifica a modernidade como uma “ordem pós-tra-
dicional”. Como é que a dependência se relaciona com a sociedade tradi-
cional? O que é que torna a dependência uma fonte de exclusão social
na sociedade moderna?
• Scott Lash afirma que a “underclass” é excluída da sociedade civil por-
que se encontra excluída da “cidadania cultural”. Por que ficaram as
pessoas pertencentes a esta “underclass” em risco ao não lhes ser permi-
tido o acesso à informação e à comunicação?
• Se a localidade é, simultaneamente, global, quais são as implicações para
o sucesso educacional (ou a sua ausência) ao nível do Estado-nação?
Por que é que os resultados dos testes comparativos internacionais se
tornaram uma nova forma de regulação da inclusão/exclusão?

A “sociedade de risco” e a exclusão social

De acordo com Ulrich Beck, o conceito de “sociedade de risco” de-


signa “uma fase de desenvolvimento da sociedade moderna na qual os
riscos sociais, políticos, económicos e individuais cada vez mais tendem
a escapar às instituições de monitorização e protecção na sociedade in-
dustrial” (Beck, 1994: 5). Neste sentido, Beck defende que:

A “sociedade de risco” não é uma opção que alguém possa escolher ou


rejeitar no decurso de disputas políticas. Surge na continuidade dos pro-
cessos de modernização autonomizados que são cegos e surdos aos seus
próprios efeitos e ameaças. Cumulativa e latentemente este último pro-
duz ameaças que põem em questão, e eventualmente destroem, as bases
da sociedade industrial. (1994: 5-6)
24 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

Deste modo, o conceito de “sociedade de risco”, “no sentido de uma


teoria social e de um diagnóstico da cultura [...] designa um estado de
modernidade no qual as ameaças produzidas até aqui, no âmbito da so-
ciedade industrial, começam a predominar” (ibid., 1994: 6). A este respei-
to, Beck direcciona-se para o que ele próprio designa como “crise ecoló-
gica actual”, definida como “a metamorfose de efeitos secundários invi-
síveis da produção industrial em foci de crises ecológicas globais”. Esta
“crise ecológica” já não surge como um problema do mundo que nos
rodeia — o chamado “problema ambiental” — mas como “uma profun-
da crise institucional da própria sociedade industrial” (ibid., 1994: 8). Em
resumo, a “sociedade de risco” implica o “retorno da incerteza à socie-
dade” o que, por sua vez, como sublinha Beck, significa:

Cada vez mais os conflitos sociais são tratados não como problemas de
ordem (que, por definição, são orientados para a clareza e para a capaci-
dade de decisão) mas como problemas de risco. Estes problemas de risco
são caracterizados por terem soluções ambíguas [...]. Face a uma crescente
falta de clareza (...), a crença na viabilidade técnica da sociedade desapa-
rece quase por necessidade. (Ibid., 1994: 8-9)

A perda de fé, ou de confiança, na viabilidade técnica da sociedade


moderna é também um tema tratado no conhecido trabalho de Anthony
Giddens As consequências da modernidade (1992). Neste trabalho, Giddens
afirma:

Risco e confiança entrelaçam-se, servindo a confiança, normalmente, para


reduzir ou minimizar os perigos a que determinados tipos de actividade
estão sujeitos. Há algumas circunstâncias nas quais estão institucionaliza-
dos padrões de risco, dentro de estruturas circundantes de confiança (in-
vestimento em acções, desportos fisicamente perigosos). [...] Aquilo que é
visto como um “risco aceitável” — a minimização do perigo — varia em
contextos diferentes, mas é geralmente fundamental para a manutenção
da confiança. (Giddens, 1992: 27)

Pode afirmar-se que, para nos protegermos da perda de confiança


nos sistemas periciais (isto é, sistemas de viabilidade técnica sofistica-
da), se exige o desenvolvimento daquilo que Lash (ver acima) designa
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 25

“identidade reflexiva” e “cidadania cultural” e, nas palavras de Giddens,


um “projecto para o self reflexivo”. De facto, a sociedade de risco, para
além dos “riscos globalizados” que afectam todos os indivíduos e todas
as sociedades, torna os indivíduos vulneráveis a uma forma de exclusão
social que tem como veículo a invasão das sociedades e dos “eus” por
relações sociais globalizadas e baseadas na distribuição diferenciada do
poder. Santos (1995: 263) referiu-se a estas últimas como uma regulação
transnacional promovida por dois modos de globalização: “os localismos
globalizados” (“o processo através do qual um determinado fenómeno
local é globalizado com sucesso”) e os “globalismos localizados” (que
consistem “no impacto específico das práticas transnacionais e os seus
imperativos em condições locais”). Giddens capta bem os dois tipos de
“riscos globalizados” no texto que se segue:

Aquilo que designei por intensidade do risco é certamente o elemento


básico na “aparência ameaçadora” das circunstâncias em que hoje vive-
mos. A possibilidade de guerra nuclear, de calamidade ecológica, de ex-
plosão populacional incontrolável, de colapso da troca económica global
e de outras potenciais catástrofes globais oferece um horizonte de riscos
assustador para todos. Como Beck comentou, os riscos globais deste tipo
não respeitam as divisões entre ricos e pobres, ou entre regiões do mundo.
O facto de “Chernobyl estar em toda a parte” implica o que ele designa
por “o fim dos ‘outros’” — as fronteiras entre os que são privilegiados e os
que não o são. [...] Claro que isto não nos deve impedir de ver o facto de
que, nas condições da modernidade, tal como no mundo pré-moderno,
muitos riscos estão diferencialmente distribuídos entre os privilegiados e
os não-privilegiados. (Giddens, 1992: 97)

Assim, a exclusão social na “sociedade de risco” apresenta diferen-


tes dimensões e manifesta-se em lugares diferentes. São essas duas ques-
tões que analisaremos de seguida.

A exclusão social como um fenómeno multidimensional

A exclusão só pode ser pensada como um fenómeno multidimen-


sional não apenas por causa das múltiplas orientações teóricas que ins-
pira, mas também pela forma como “descreve a natureza multifactual
26 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

da privação social nas sociedades avançadas, assim como a forma como


os processos de negligência e marginalização crónicos [...] se tornaram
sintomas de injustiça social” (Bowring, 2000). Desse modo, a natureza
multidimensional refere-se tanto às múltiplas causas como às múltiplas
consequências da exclusão social nas sociedades da modernidade tardia.
Quando nos referimos à exclusão social como campo de debate e
de discussão surgem-nos duas concepções. A primeira é de natureza mais
histórica e relaciona-se à literatura identificada com a sociologia do des-
vio e à sociologia dos indivíduos e grupos marginalizados (incluindo
clássicos da “Escola de Chicago”, como Delinquent boys, de Cohen [1955],
Outsiders, de Becker [1963] e Delinquency and drift, de Matza [1964]; e
também trabalhos de Goffman, como Asylums [1961] e Stigma [1963]).
No Reino Unido, encontramos obras como Deviance and society, de Taylor
(1971), e The drugtakers, de Young (1972). O segundo relaciona-se com a
época actual e o que tem sido designado “pós-fordismo” (Harvey, 1999;
Amin, 1994). Aqui, a exclusão social ganha novo significado resultante
do desemprego de longo prazo, desemprego de jovens, formas de em-
prego precário e do que Paugam denominou “desqualificação social”
(1991). Para além disso, o que Castells (1998) designa por “informacio-
nismo”, no contexto da reestruturação capitalista, produziu novas for-
mas de desigualdade e de diferenciação social que resultaram não só em
exclusão social nas sociedades ocidentais, mas também na exclusão so-
cial de países inteiros e de partes de continentes (a África sub-sariana,
por exemplo). Castells define a exclusão social como:

O processo pelo qual certos indivíduos e grupos são sistematicamente


impedidos de aceder a posições que lhes permitiriam uma forma de vida
autónoma dentro das normas sociais enquadrados por instituições e valo-
res, num determinado contexto. Em circunstâncias normais, no capitalis-
mo informacional esta posição é comummente associada com a possibili-
dade de acesso a um trabalho pago regularmente para, pelo menos, um
membro num agregado familiar estável. A exclusão social é, de facto, o
processo que não permite a uma pessoa o acesso ao trabalho no contexto
do capitalismo. (Castells 1998: 73) (itálico no original)

Nesta citação de Castells, o que está em jogo é a distribuição dife-


rencial de poder nos “novos tempos” das relações sociais globalizadas.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 27

A exclusão social e a inclusão social como um único conceito

Pode defender-se que falar de exclusão social é falar simultanea-


mente de inclusão social. Num artigo recente, Popkewitz e Lindblad
(2000) referem duas formas de questionar a ligação entre “a governação
da educação” e a inclusão e exclusão social. Estes conceitos são enqua-
drados no âmbito da “problemática da equidade” e da “problemática
do conhecimento” e actuam como um mapa para compreender como
as políticas são postas em prática. A primeira, a problemática da equi-
dade, coloca a mudança social na acção racional do actor social. A in-
clusão social e a exclusão social são conceptualizadas como duas enti-
dades diferentes, nas quais o objectivo é produzir inclusão social e eli-
minar a exclusão social “de determinados grupos de actores sociais,
tais como aqueles definidos por classe, sexo, raça ou etnia” (ibid.: 6). O
Estado como poder soberano é responsável por elaborar e administrar
a política.
De forma muito diferente, a problemática do conhecimento, forte-
mente influenciada pelo trabalho de Michel Foucault, coloca a ênfase
nos sistemas racionais que estão incorporados na política e nas refor-
mas. A inclusão social e a exclusão social são concebidas como um úni-
co conceito inseparáveis uma da outra: “a exclusão [...] é permanente-
mente comparada com um cenário de algo que está incluído” (ibid.). O
objectivo é o de estudar “as distinções, diferenciações e divisões que
disciplinam e produzem os princípios que qualificam e desqualificam
indivíduos (e grupos) para a acção e participação” (ibid.). Aqui, o que
está em jogo é a fabricação de identidades e a forma como os sistemas
racionais produzem subjectividades. O Estado é concebido como con-
juntos de relações, em vez de uma entidade soberana que produz es-
tratégias disciplinadoras de forma a promover o cidadão auto-respon-
sável e automotivado.
O conceito de exclusão social integra a dureza e o drama das for-
mas estruturais de desqualificação societal, como se constata tanto no
que diz respeito ao fordismo e à marginalização social de certos grupos
como no pós-fordismo, na medida em que gera formas novas de desi-
gualdade e de diferenciação. Contudo, existe, como Bowring (2000: 319)
afirma, um problema com a interpretação dominante da exclusão social
28 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

como um normalizador do que ele designa a pobreza e a desigualdade


“vulgares”. Citando Levitas, Bowring concorda que esta interpretação
“retira importância” ao carácter essencialmente classista da desigualda-
de e permite “uma visão da sociedade como basicamente benigna para
co-existir com a realidade visível da pobreza” (Levitas, 1998: 188 — cit.
em Bowring, ibid.). Contudo, Paugam (s/d.) responde a esta posição ar-
gumentando que, embora a pobreza em França não tenha aumentado
nos últimos dez anos, a exclusão social aumentou, o que significa que a
desqualificação social resultante do emprego precário é agora prevale-
cente na sociedade francesa. Em jogo neste debate estão, em larga medi-
da, o peso atribuído, por um lado, às políticas de redistribuição e, por
outro, às políticas relacionadas com o reconhecimento da diferença. A
referência a essa distinção é feita em vários dos Lugares discutidos adian-
te. O debate também precisa de ser contextualizado, pois varia confor-
me os espaços territoriais. Nos Estados Unidos, por exemplo, o filósofo
americano Richard Rorty foi ao ponto de acusar a esquerda nos Estados
Unidos de ter deixado de ser esquerda, porque “permitiu que as políti-
cas culturais suplantassem as políticas reais e colaborando com a direita
para colocar os assuntos culturais no centro do debate público” (1988:
50). No contexto muito diferente que é o da União Europeia, pode-se,
contudo, argumentar que se tem passado o oposto, pois só muito recen-
temente a “diferença” começou a ocupar um lugar central, tanto como
uma exigência de identidade como enquanto exigência de cidadania. Na
verdade, só recentemente a construção europeia começou a encarar se-
riamente o desafio da cidadania europeia e a até agora altamente enig-
mática “dimensão europeia da educação” (Stoer e Cortesão, 2000).

Cinco lugares do impacto da inclusão/exclusão social

Neste trabalho, seleccionamos cinco Lugares de impacto da exclu-


são social (o corpo, o trabalho, a cidadania, a identidade e o território)
precisamente para poder explorar as dimensões múltiplas do fenómeno
de exclusão social. Estes Lugares podem ser caracterizados como pro-
víncias de um mapa que se sobrepõem, sendo cada Lugar ligado pelos
contextos nos quais são activados (família, escola, hospital, prisão, tri-
bunal, bairro, etc.) e pelos níveis aos quais funcionam (local, regional,
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 29

nacional e supranacional). Cada Lugar junta e activa o que Santos (1995)


denomina “espaços estruturais” (espaço do trabalho, espaço da cidada-
nia, espaço doméstico, espaço do mercado, espaço da comunidade, es-
paço do mundial), que, por sua vez, são atravessados por variáveis so-
ciológicas tais como classe social, género, etnicidade e idade. Neste sen-
tido, explorar estes Lugares nas suas diferentes dimensões é, com certe-
za, mapear a exclusão/inclusão social.
O processo de mapeamento dos cinco Lugares realiza-se pela con-
solidação da exclusão/inclusão social face a cada Lugar na base de três
paradigmas sócio-culturais: “pré-modernidade” (as chamadas socieda-
des tradicionais); “modernidade” (as sociedades modernas); e “pós-
modernidade” (o paradigma emergente da pós-modernidade/pós-
fordismo). Em cada caso, o que está em causa é a relação entre estrutura
e agência e o modo como tensões presentes nessa relação são traduzidas
nos cinco Lugares. Pensamos que mapear a exclusão/inclusão social desta
maneira é também reflectir sobre a natureza da mudança social e sobre
como é que os actores sociais se posicionam em face dela.
30 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
31

O lugar do corpo

Considere o seguinte texto:


“[...]
Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro


Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante
[...]”

(Natália Correia, Queixa das almas jovens censuradas)

Ponto-chave para a discussão:

• No poema de Natália Correia, o corpo parece surgir como servidor do


espírito; só em morte é que o corpo assume identidade, é que o corpo se
torna num “sujeito”. No desenvolvimento da sociedade ocidental, como
é que o corpo foi concebido e é, actualmente, concebido?

“O século do corpo”

Nas sociedades ocidentais, o século XX foi apelidado “o século do


corpo” (cf.: Ribeiro, 2003). Na história conhecida da humanidade, sem-
32 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

pre houve diferentes valores, práticas, ciências e técnicas corporais que


se desenvolveram nas várias civilizações e que, apesar de espelharem
valores sociais, estabeleceram um diversificado diálogo com as condi-
ções do envolvimento. Mas se sempre existiu esse acervo de culturas
do corpo, por que é que, então, o século XX é chamado “o século do
corpo”?
Antes de mais, cabe dizer que o século XX não foi só apelidado o
século do corpo, nele tendo desabrochado e fortalecido outras realida-
des, fazendo com que viesse a ser chamado também, por exemplo, o
“século da mulher” ou o “século da criança”.
A expressão “século do corpo” pode ser vista em duas dimensões:
pela importância que o corpo assume enquanto objecto de estudo e pela
assunção da consciência da importância dos valores e práticas corpo-
rais. O corpo revelou-se um objecto de estudo surpreendentemente rico
tanto no nível disciplinar, como no multidisciplinar e transdisciplinar.
Inicialmente objecto exclusivo da Medicina, o corpo foi sendo progressi-
vamente objecto de interesse de outras áreas disciplinares, como a An-
tropologia, a Filosofia, a Sociologia, a Educação e muitas outras.
Os valores e práticas do corpo viveram também, sobretudo na Eu-
ropa e nos Estados Unidos, uma intensa proliferação de abordagens que
se verificou sobretudo ao nível da “integração” de práticas de valores
oriundos de outras culturas (por exemplo o kung fu, o judo, a capoeira,
o karaté, mas também a acupunctura, o shiatsu, o ioga...) e na criação de
sistemas novos de gestão do corpo, tais como a Educação Física, o Des-
porto e toda uma multiplicidade de novas “culturas corporais” ou de
novos entendimentos sobre culturas antigas como a massagem, o exercí-
cio, a ginástica, a aeróbica, etc.
O século do corpo deu, pois, a este um valor de estudo “em si” —
mesmo com a consciência da sua realidade multidisciplinar — valor que
hoje se ampliou muito para além da sua dimensão puramente funcional.
Esse estudo dos significados e das influências do corpo tem vindo a ser
designado “corporeidade”. Tomamos, assim, consciência da dimensão
do estudo do corpo, um corpo que é simultaneamente complexo, fonte
inesgotável de sofisticados mistérios, visto como a “suprema máquina”
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 33

que engloba e resume todas as outras, mas também limitado e tornado


insuficiente para fazer frente às exigências que o quotidiano das socie-
dades industrializadas lhe exige. É este, sem dúvida, um dos paradoxos
do corpo: por um lado, a sua complexidade e dimensão ontológica; por
outro, os seus limites e insuficiências. Podemos, nesta matéria, entender
o desenvolvimento de toda a tecnologia como uma superação do corpo
e, consequentemente, um reconhecimento da sua insuficiência em resis-
tência, força, capacidade de armazenar informação, etc. A tecnologia cria,
assim, verdadeiras “próteses corporais”, que expandem as funções de
um corpo encarado como insuficiente e incapaz de desempenhar as fun-
ções para que as novas exigências sociais o desafiam.
Visto com esta latitude, seria impossível que o corpo se mantives-
se à margem dos processos de inclusão/exclusão que tão fortemente
se têm feito sentir nas sociedades europeias (por exemplo: será que
todos têm necessidade de próteses corporais? E será que todos têm
direito a elas?). Pelo corpo passaram, e passam, as marcas que determi-
naram a categorização e a valorização desigual das pessoas. No corpo
não só seguiram e se reproduziram os caminhos da exclusão, mas tam-
bém foram criadas formas particulares, por vezes discretas e capcio-
sas, de exclusão. Há, assim, tipos de exclusão que encontram a sua ra-
zão principal no corpo. Por exemplo (e isto será explorado em mais
pormenor adiante), a presença corporal de um filho de um trabalhador
rural aparecerá na escola como “fora de lugar” no que diz respeito às
normas que se relacionam com a postura do corpo, os gestos, as atitu-
des do corpo, etc.
Neste capítulo, vamos levantar algumas das questões que nos pa-
recem proporcionar um contributo mais estimulante para entender as
formas como, através das culturas e práticas corporais, manifesta-se a
inclusão ou exclusão (na verdade, a exclusão e a inclusão são como a
parte de dentro e de fora de uma mesma linha que forma a espiral da
identidade). Estas formas são extremamente diversas e a sua análise re-
vela-se complexa. Talvez porque, citando o filósofo fenomenologista
François Chipraz: “O espírito não está atrás do corpo, ele habita-o; o
corpo não serve o espírito: exprime-o, insere-o no mundo e fá-lo comu-
nicar com este” (1969: 33). Haverá maior complexidade para estudar?
34 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

Duas concepções do corpo na teoria social

Está fora do âmbito deste texto traçar, mesmo em linhas gerais, uma
história do corpo. Este campo, aliciante e complexo, pode ser estudado
em múltiplas obras que descrevem e que interpretam os entendimentos,
significações, controlos e regulações impostos ao corpo nas diferentes
civilizações e culturas. Uma destas contribuições que se assume como
incontornável é a de Michel Foucault, em particular nos seus ensaios
História da loucura, O nascimento da clínica, e Vigiar e punir. Foucault apre-
senta uma concepção sócio-histórica do corpo em que este se apresenta
“totalmente influenciado pela história” e determinado pelos valores so-
ciais e modo de organização económica de cada sociedade. Em particu-
lar, no ensaio Vigiar e punir este autor apresenta em detalhe a emergência
histórica de práticas sociais complexas que influenciam a conduta hu-
mana moldando-a e forçando o portador dessas condutas a assumir res-
ponsabilidade por elas. Na perspectiva de David Levin (1989: 123),
Foucault vê o corpo como um receptáculo passivo de forças históricas e
políticas quando afirma, por exemplo, que “o corpo é moldado por um
grande número de regimes distintos”.
A perspectiva de Foucault é muitas vezes colocada em confronto
com a posição de Maurice Merleau-Ponty. Analisando estas duas pers-
pectivas, Crossley (1996) afirma que se está a gerar uma divisão nas teo-
rias sociais sobre o corpo alicerçadas nestes dois autores. Por um lado,
um corpo historicamente “inscrito” a partir do exterior, que
consubstanciaria a posição de Foucault; por outro, uma concepção de
corpo veiculada por Merleau-Ponty, em que o corpo é apresentado como
tendo uma certa autonomia, como corpo “vivido” e activo. Na verdade,
para Merleau-Ponty, o corpo está em permanente e activa relação com o
seu envolvimento e cria um “espaço funcional” à sua volta. O corpo é
visto como uma entidade activa que usa os esquemas e hábitos que ad-
quiriu para lidar e negociar com o mundo que habita, constituindo uma
unidade de sentido indissociável que se designou por fenomenológica.
Um bom exemplo das diferenças de perspectiva das concepções destes
dois autores poderia ser encontrado na forma como é pensado o espaço.
Para Merleau-Ponty, o espaço é uma construção que o indivíduo faz a
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 35

partir da sua experiência e da acção no seu envolvimento, isto é, o corpo


constrói o espaço à sua volta; para Foucault, diferentemente, o corpo é
posicionado no espaço e não torna o espaço funcional, pelo contrário, a
função do corpo depende e é condicionada pelas propriedades do espa-
ço em que está (“enformado”, por exemplo, pelas regras e valores que
são dominantes nas prisões, escolas, fábricas, etc.)
Talvez, como nos alerta Crossley (1996), não exista uma verdadeira
oposição entre estes dois autores ou, dito de outra forma, entre uma pers-
pectiva mais fenomenológica ou mais centrada no que se designa
construccionismo social. Por um lado, Foucault alerta-nos para a signifi-
cação social das culturas corporais e para uma causalidade que, sem o
entendimento mais profundo dos valores das sociedades em que elas se
verificam, nos escapariam. Por outro lado, Merleau-Ponty, sem rejeitar a
grande influência que os valores sociais exercem sobre as culturas do
corpo (e dá como exemplo a aquisição dos hábitos motores e da sua de-
terminação social), outorga ao corpo uma propriedade que poderíamos
comparar ao conceito de “autonomia relativa” de Gramsci. Na verdade,
o corpo “escapa”, muitas vezes, a estritas determinações sociais e apre-
senta manifestações autonómicas. Radley (1995) dá como exemplo desta
autonomia do corpo o jogo infantil, que considera como irredutível a
relações de poder e controlo. O jogo testa as possibilidades do jogador,
fazendo-o ir mais além, levando-o a assumir riscos tornando o seu corpo
um desafio não redutível à obediência a normas sociais e em frequente
divergência com códigos morais estruturados.
Outros exemplos dessa “autonomia” do corpo poderiam ser usa-
dos. As manifestações populares, como o Carnaval, as manifestações re-
ligiosas, a dança, etc., desenvolvem-se muitas vezes nas margens da so-
ciedade, no “claro-escuro” do que é permitido ou proibido e por isso nos
mostram exemplos de como o corpo se pode assumir como portador de
códigos próprios que lhe dão um carácter de “fora do poder” e mesmo
de “contra-poder”. São práticas em que o corpo desafia, pela sua negli-
gência, caricatura, distorção, manifestação de sexualidade, criação de
novos significados, etc. uma não aceitação, uma não conformação com
os valores que dele seriam esperados. O corpo é, assim, não só a sede da
experiência no mundo mas muitas vezes o lugar da resistência a uma
36 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

ordem social que a pessoa ou os grupos não querem aceitar. O que dis-
tingue a actual centralidade do corpo como “resistência” identitária, do
corpo transgressor de Sade, é, por assim dizer, a sua descriminalização,
isto é, o corpo já não é locus do pecado a perseguir nem a simples emana-
ção de um determinismo social, mas sim o locus do desejo pluralizado e
mesmo uma manifestação de autonomia, de que falaremos mais adiante.

Considere as seguintes situações:

1ª situação:
Entraram num café dois homens um andando e outro em cadeira de ro-
das. Dirigiram-se ao balcão e perguntaram se podiam usar a casa de banho.
Foi dito que sim. Quando regressaram à sala, o empregado ajudou a encon-
trar espaço para acomodar a cadeira de rodas na mesa e dirigiu-se ao homem
em cadeira de rodas e disse: “Sabe, fizemos recentemente obras aqui no
restaurante para o tornar acessível a cadeiras de rodas. Mudámos a porta de
entrada, as casas de banho e até o espaço interior. Podemos agora receber as
pessoas em cadeira de rodas que vêm a tratamento ao hospital ortopédico
que existe do outro lado da rua”. De seguida o empregado voltou-se para o
homem que andava e perguntou-lhe: “Então, o que vai tomar?” O homem
disse “Quero um café com leite”. “E ele?” perguntou-lhe o empregado...

2ª situação:
Hora de ponta num banco. Várias filas paralelas de pessoas esperam aten-
dimento. Numa dessas filas, uma mulher idosa procurava incessantemente
uma caneta para preencher um impresso. Voltou-se para a pessoa que estava
atrás — uma mulher com um traje árabe — e perguntou-lhe se lhe podia
emprestar uma caneta. A mulher tirou uma caneta da mala e emprestou-lha.
A mulher idosa verificou então que se tinha esquecido dos óculos e, com a
caneta na mão, dirigiu-se às pessoas da fila ao lado: “Por favor alguém me
podia ajudar a preencher este impresso que me esqueci dos óculos?”.

3ª situação:
Um gabinete de apoio à inclusão de alunos com necessidades educati-
vas especiais recebeu um pedido de ajuda de uma escola. Um técnico des-
locou-se à escola para se inteirar da natureza do pedido. O caso foi-lhe
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 37

colocado como havendo numa determinada classe vários alunos que ne-
cessitavam de terapia de fala. “Porquê tanta concentração de casos a ne-
cessitar terapia?” perguntou ele. A resposta: “Talvez porque estes alunos
são imigrantes de um país africano e a língua da escola não é a sua primei-
ra língua...”.
Ao consultar os processos dos alunos dessa classe, o técnico de apoio
verificou que existia um aluno que tinha frequentado até ao ano anterior
a escola obrigatória de outro país europeu. O técnico perguntou: “E este
aluno não tem dificuldades de linguagem semelhantes aos outros?” E a
resposta foi: “Não, este é um caso diferente: é um caso de bilinguismo”.

Pontos-chave para discussão:


• Que papel representa o corpo em comunicação?
• Como é que o poder está presente na linguagem do corpo? Quais são as
implicações para exclusão/inclusão?
• Quais são as relações que existem entre o corpo e cultura? Entre o corpo
e identidade?
• Pode a comunicação não-verbal ser uma fonte potencial de exclusão
social?

O corpo e comunicação

Algumas considerações de ordem da psicologia do desenvolvimento


podem contribuir para entendermos melhor o papel do corpo nos pro-
cessos de inclusão/exclusão. A importância do corpo e a sua “autono-
mia relativa” verifica-se e aprofunda-se ao longo do percurso de desen-
volvimento da pessoa. Logo a partir das primeiras idades, encontramos
no corpo características de comunicação e de relação que o tornam dife-
rente das formas usualmente consideradas de comunicação.
Em primeiro lugar, a característica de precedência da comunicação
corporal. O corpo nos seus movimentos, imobilidade, simetria, assime-
tria, silêncios, expressões, sinais variados, etc. é a primeira forma de co-
municação da criança com o seu envolvimento. Essa comunicação é an-
38 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

terior em relação a outras formas de comunicação como a linguagem.


Muito antes de a criança falar já o seu corpo “fala”. Essa precedência dá
ao corpo uma importância fundamental na sobrevivência e permite o
estabelecimento de esquemas precoces de comunicação entre a criança e
o envolvimento. É ainda essa característica que inspira muitos métodos
de reeducação da linguagem escrita a regredir a estádios de acção ou
comunicação não-verbal procurando “intervir na fonte” ou, por outras
palavras, procurando melhorar a vivência das primeiras formas de co-
municação (não-verbal) de molde a influenciar a qualidade das formas
subsequentes (verbal e escrita). Cabe aqui citar a frase de Marcel Mauss
no seu ensaio Body techniques (1979): “O corpo é o primeiro e mais natu-
ral instrumento. Ou mais precisamente, para não falar de instrumentos,
o seu primeiro e mais natural objecto técnico sendo que técnico quer
dizer o seu corpo”.
Um segundo aspecto a realçar é a permanência da comunicação cor-
poral na comunicação humana. Mesmo em face da utilização predomi-
nante da comunicação verbal, esta apoia-se sempre na comunicação cor-
poral. A linguagem verbal pode ser intermitente, mas o corpo está sem-
pre a emitir sinais que comunicam o seu interesse, desinteresse, cansaço,
atenção, empatia, etc. Essa comunicação corporal apresenta, ainda, uma
característica importante: em caso de incoerência entre a mensagem ver-
bal e a comunicação não-verbal, a mensagem não-verbal irá prevalecer
(Miller, 1985). Assim, em caso de conflito entre as duas (por exemplo,
um orador que profere um discurso em que pretende incutir confiança
aos ouvintes, mas a sua expressão corporal não é coerente com esse
objectivo), os destinatários da comunicação tendem a dar mais impor-
tância à comunicação corporal do que à verbal.
Outro aspecto que convém referir quanto à permanência é o que se
refere à função da linguagem corporal como suporte da comunicação
total. Vários autores (cf.: Banbury e Hebert, 1992) têm realçado, por exem-
plo, o papel que a linguagem corporal tem na memorização da comuni-
cação verbal. Na verdade, é mais difícil reter a informação transmitida
sem suporte de comunicação corporal do que com ela. O corpo é, assim,
importante não só para transmitir um significado, mas também para a
configuração de um determinado significado.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 39

Um terceiro aspecto distintivo da comunicação corporal é a visibili-


dade. A comunicação corporal tem um carácter de imediatismo. O corpo
não só está sempre a comunicar, mas a sua comunicação é de imediato
emitida para os interlocutores. Também aqui a comunicação corporal
revela-se uma fonte fundamental da comunicação, dado que endossa
permanentemente mensagens de que a pessoa pode ou não estar cons-
ciente e que podem ser critério de maior ou menor sucesso da comunica-
ção. A visibilidade da comunicação corporal assume-se como um “car-
tão de visita”, um conjunto de dados que permitem ao interlocutor fazer
um juízo de valor que obviamente nem sempre é coincidente nem coe-
rente com os valores que a pessoa pretende transmitir. Um exemplo dentre
muitos poderia ser o de uma pessoa que, procurando fazer-se passar por
membro de uma classe social diferente, “treina” a sua linguagem, mas é
“atraiçoado” pelo seu corpo, isto é, por detalhes do vestuário, pela sua
postura ou por seus gestos.
Finalmente a expressividade. A comunicação corporal pode ter um
curso, uma fluência e uma finalidade próprias; não é um mero suporte
da comunicação verbal. O corpo é comunicação para além da linguagem
verbal. É conhecida a frase da bailarina Isadora Duncan que dizia: “Se
pudesse dizer o que sinto não precisava de dançar”. Determinados ges-
tos podem ser quase intraduzíveis por palavras ou, então, prestar-se a
uma multiplicidade de interpretações. A comunicação não-verbal tem
uma semiótica própria e que não é um mero reforço da linguagem ver-
bal. Pode funcionar como alternativa, como um modo de expressão dife-
rente, como a transmissão de significados diferentes. É nessa potenciali-
dade alternativa da comunicação não-verbal que se fundamentam as te-
rapias expressivas, como a Musicoterapia, a Dançoterapia, a Dramotera-
pia ou a Arteterapia.
Vimos que o corpo está sempre a comunicar e que a sua comunica-
ção é visível. Comunica antes de existir linguagem falada e é capaz de
comunicar conteúdos que não podem ser transmitidos de outra manei-
ra. Mas de que forma comunica o corpo? A investigação sobre a comuni-
cação não-verbal é um campo que carece ainda de muita investigação.
Radley (op. cit.) sustenta que “a experiência corporal das pessoas é reco-
nhecida como tendo uma importância central mas também muito signifi-
cativa na forma como desafia a nossa maneira de a estudar e conhecer”.
40 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

O corpo comunica, antes de mais, pela proxémia, isto é, pelo esta-


belecimento e gestão da distância interpessoal durante a comunicação.
A proxémia depende de aspectos interculturais e intraculturais. Exis-
tem, assim, culturas em que o espaço de comunicação entre dois inter-
locutores é menor do que em outras. Por exemplo, o que se considera
uma distância interpessoal adequada numa cultura norte-europeia pode
ser entendido com distante e afectado numa cultura do Sul da Europa,
enquanto uma distância adequada no Sul pode ser entendida como
intrusiva e demasiado íntima por habitantes do Norte. Dentro de cada
cultura podemos também ser confrontados com características
proxémicas entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre
empresários e trabalhadores, entre professores e alunos (Banbury e
Hebert, op. cit.).
Outros factores da comunicação não-verbal são determinantes: a
expressão facial — que veicula uma grande parte da comunicação verbal,
a expressão corporal — que inclui a orientação, isto é, o ângulo em que
as pessoas se sentam ou falam em relação ao interlocutor (Argyle, 1972)
bem como as atitudes corporais, que podem significar, por exemplo, maior
ou menor aceitação do discurso — ou a cinesia constituída pelos movi-
mentos e os gestos que podem, por exemplo, ser entendidos como mais
ou menos agressivos.
Há ainda a realçar as designadas “componentes não-verbais da lin-
guagem” (CNVL). Essas CNVL referem-se a todo o conjunto de infor-
mação veiculado pela comunicação verbal para além do significado es-
trito das palavras. A entoação, a prosódia, a ênfase, o ritmo, as marcas de
pronúncias regionais são factores que influenciam igualmente a recep-
ção do discurso. Como exemplo, poderíamos citar a estranheza que cons-
titui ouvir uma personalidade com notoriedade pública falar com um
acento fortemente “regional” ou com uma prosódia ou ritmo de fala de
tipo “popular”.

As imagens corporais

Cada pessoa tem um conceito e uma percepção do seu corpo. Du-


rante muitos anos, usou-se para designar esse conceito e percepção o
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 41

termo “imagem corporal”, que procurava fazer uma distinção entre


uma noção mais cognitiva sobre o corpo designada por esquema cor-
poral e o nível de satisfação de no âmbito afectivo e emocional com o
seu corpo: a imagem corporal. Mais recentemente, tem vindo a ser usa-
do o termo “imagens corporais”, designação que procura precisar que
não existe uma imagem corporal única e constante em todos os mo-
mentos e envolvimentos, mas que, dependendo de vários factores, po-
deremos constatar a existência de várias imagens. Assim, a noção e o
sentimento que temos sobre a aparência e a competência do nosso cor-
po pode ser completamente distinta em contextos diferentes (cf.: Clash
e Puzinsky, 1990).
As imagens corporais são, no entanto, experiências subjectivas, não
havendo coincidência entre a opinião que a pessoa faz de si e a que é
veiculada por outras pessoas. Outro aspecto muito interessante é a pos-
sibilidade de alteração da imagem corporal tanto por iniciativa do pró-
prio como por factores exteriores. Neste aspecto, as imagens corporais
podem ser alteradas por acções rápidas (ex.: cirurgia estética, alterações
de peso, traumatismos, tatuagens, etc.) ou por acções lentas, como, por
exemplo, o envelhecimento ou a deficiência adquirida.
Existe, em termos psicológicos, uma forte ligação entre as imagens
corporais e a forma como a pessoa se avalia e percepciona em geral. Essa
constatação não é obviamente formulada em termos absolutos: pessoas
que negligenciam a sua imagem corporal e têm mesmo uma ideia desfa-
vorável sobre ela podem sentir-se competentes e seguros no seu desem-
penho social, mas se encontra frequentemente uma ligação próxima en-
tre as imagens corporais e o sentimento geral de competência.
As imagens corporais que as pessoas fazem de si próprias têm, en-
fim, uma forte determinação social. Estas mudanças procuram criar uma
convergência ou divergência com padrões de beleza socialmente aceites
e em constante mutação (Fallon, 1990). Neste aspecto, é interessante, por
exemplo, consultar o gráfico do peso médio das candidatas ao concurso
de “Miss América” de 1958 a 1978 e verificar como o peso foi sucessiva-
mente diminuindo de molde a que as candidatas se adaptassem a um
padrão social de beleza que elegia a magreza como um sinónimo de dis-
tinção e elegância (Garfinkel e Garner, 1982).
42 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

O corpo como lugar dos processos de exclusão/inclusão social

O corpo é um lugar de exclusão e de inclusão social. A comunicação


que veicula aproxima ou afasta as pessoas de determinadas realidades
sociais. Existem diferentes factores de inclusão/exclusão social do cor-
po. Uns podem ser, em grande parte, desencadeados e controlados pela
pessoa, tais como o uso do vestuário, o cuidado do corpo, a impressão
de identidades corporais como os piercings e as tatuagens. Outros dizem
respeito a condições dificilmente alteráveis, tais como a deficiência e a
idade. Em ambos os factores o corpo pode ser visto como um sinal de
pertença e de identidade assumido na aceitação, e consequente recusa,
de certos valores sociais.
São múltiplos os factores corporais que podem conduzir a esta per-
tença ou identidade. Os factores corporais, como a moda e as identida-
des corporais impressas, proporcionam uma diferenciação e um corte
com os valores estéticos do seu meio e a identificação com realidades e
projectos diferentes. Vamos analisar quatro destes factores: moda/ves-
tuário, identidades corporais impressas, a deficiência, a idade.

Moda/vestuário
Pela sua natureza a moda é instável, efémera e superficial: sendo exacta-
mente estas as características das relações nas democracias políticas con-
temporâneas. Tal não surge como motivo para grande preocupação, na
opinião de [Gilles] Lipovetsky. Quanto menor for o cuidado ou os senti-
mentos que dedicarmos uns aos outros, melhor nos relacionaremos. Uma
estrutura social impessoal é um dispositivo ideal para a tolerância mútua
e para a redução do conflito. Um brilhantemente original argumento tor-
na-se deslumbrante quando os princípios da moda — obsolescência, se-
dução, diversificação — são alargados para analisar a sociedade de con-
sumo onde a inovação é central, e a identidade dilacerada em fragmentos.
Longe de nos homogeneizar, como muitos autores inicialmente profetiza-
ram, a cultura de massas acelerou o processo de individualização. E isso
pode ter aumentado a capacidade para a integração social. New Statesman
& Society
(http://pup.princeton.edu/quotes/q5535.html)
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 43

A moda é um conjunto de regras temporárias sobre cores, formas,


tipos de vestuário que tendem a criar um determinado tipo de identifi-
cação e de “pertença”. Nas sociedades de economia de mercado, os dita-
mes da moda são provenientes de grandes interesses comerciais que, de
ano para ano, vão introduzindo inovações cujo interesse imediato é “da-
tar” (leia-se desactualizar) o vestuário dos anos anteriores e, dessa for-
ma, criar novas necessidades de consumo. Outras sociedades usaram a
“moda” com outros objectivos, já não de lucro, mas como formas de nor-
malização e de identificação com um líder ou com uma ideologia (lem-
bre-se, a propósito, o omnipresente vestuário azul durante o regime de
Mao Zedong, na China, ou os penteados “Eva Perón”).
Uma assunção na base do consumo das regras da moda (a sua
actualidade, o uso de roupa com a assinatura de marcas dispendiosas,
etc.) constitui um sinal no sentido de a pessoa procurar identificar-se
com camadas mais prósperas ou com um status cultural mais elevado do
que o que ela tem actualmente. Da mesma forma, o uso de roupa
desactualizada ou de proveniência fora de casas comerciais caras trans-
mite igualmente uma mensagem que pode oscilar entre menor status
económico ou simplesmente uma recusa de participar no jogo comercial
das “marcas”. Esse culto da “marca” não tem a ver (só?) com a qualida-
de da roupa, mas com o status que a ostentação da etiqueta implica. A
esse respeito, devemos notar que as etiquetas das marcas de roupas são
cada vez mais visíveis no vestuário, quer pelo tamanho, quer pelo lugar
em que são colocadas (cabe lembrar a história verídica de um adolescen-
te que queria comprar umas calças de certa marca prestigiada. Encon-
trou-as num saldo. Como a etiqueta das calças era retirada por as calças
estarem em saldo, o comprador desistiu da aquisição). Pode ainda se
tornar uma espécie de tecnologia de fabricação da identidade, quer di-
zer, aquilo que se veste, que se mostra ou que se consome pode consti-
tuir formas de auto e de hetero-identificação. Esse tipo de relação com a
moda é muito visível nas culturas juvenis, mas não só. O vestuário pro-
porciona identidades que se delimitam em face de outras identidades.
Um jovem que se veste no estilo rastafári, um funcionário público que se
veste de motard (motociclista), uma pessoa que se veste com um traje
tradicional do seu país procuram simultaneamente recusar uma homo-
44 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

geneização mainstream e identificarem-se com outros valores e eventual-


mente com outras pessoas.
Ainda sobre a moda, é interessante verificar que, nesse afã de criar
essa diferença de vestuário, os conceitos estéticos e de qualidade sofre-
ram grandes alterações: por exemplo vende-se roupa propositadamente
envelhecida e rasgada que procura acentuar o carácter de naturalidade,
de familiaridade e de um falso não investimento no vestuário, com esté-
ticas “retro” ou “kitch” que proclamam a diferença e a originalidade ou
ainda com uma estudada negligência que procura convencer os demais
das qualidades do corpo mesmo em face das condições adversas oriun-
das de um vestuário supostamente pouco cuidado.
O vestuário e a manipulação do corpo são, pois, um factor de inclu-
são/exclusão social e o seu uso é um indicador de uma identidade social
mais ou menos procurada, mas sempre presente na interacção da pessoa
com o seu meio.

Identidades corporais impressas


Outro factor de inclusão/exclusão social são as Identidades Corpo-
rais Impressas (ICI). Designamos por ICI as modificações relativamente
estáveis que se operam no corpo sem significado funcional óbvio. Existem
múltiplos exemplos: a cirurgia plástica com intuitos puramente estéticos
(e não de remediação) (as lipoaspirações, os implantes de silicone nos lá-
bios ou nos seios, etc.), os piercings, as tatuagens, etc.

Eu sou mãe de dois filhos, divorciada de 27 anos e tenho andado a pensar


em colocar um piercing na língua desde que a minha grande amiga Lori
colocou um em 1997. [...]
Acabei por colocá-lo. Depois tive que tornar a aprender a falar outra vez.
Deram-me uma solução oral chamada Tech 2000 para usar. Algumas pes-
soas sobre quem li usam sal marinho e água. Até agora não tive problemas
e parece que a ferida está a cicatrizar rapidamente.
Mostrei o meu piercing à minha melhor amiga, que pensa que eu estou com-
pletamente doida, mas ficou bastante intrigada. A minha filha de 7 anos
pensa que é “muit’a fixe!”. Ela reagiu exactamente assim: “Meu Deus!! Fixe
Mãe!! Meteste um piercing na língua!” O meu filho de 3 anos quer saber
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 45

como é que a coisa foi lá parar. E eu? Eu adoro! Acabei por o colocar em dois
dias. O incómodo foi mínimo. Ouvi dizer que todos têm experiências dife-
rentes no processo de cicatrização. Eu não tive problemas. Quase não se
sente dor, o pior foi quando hoje comi comida sólida e mordi o piercing. Aiii!
Forçou um bocado, mas vi depois que não tinha sangrado nem nada.
Já tive a experiência daquele esgar embaraçoso que, pelos vistos, faço en-
quanto durmo. Mas se tudo correr bem vou acabar por rapidamente corri-
gir isso. Penso que só preciso de me habituar a tê-lo. Lavar os dentes e a
boca não oferece qualquer problema. Contudo, quando tenho que dizer um
preço, tenho de facto algumas dificuldades a dizer “Three” ou “Six” (“Six”
soa como se eu dissesse SEXO. Os homens ficam sempre surpreendidos
com isso). A maior parte das pessoas com quem trabalho acham graça à
ideia de eu ter um piercing. O meu patrão acha giro. (GRAÇAS A DEUS).
Se está a pensar em colocar um piercing, deve fazê-lo. Eu gosto da ideia de
me saber diferente dos outros, porque tenho os meus dois piercings e ta-
tuagens, e que posso expressar a minha individualidade através de jogos
de arte/corpo.
(http://www.bmezine.com/pierce/02tongue/A30104/tngohmyg.html)

A cirurgia estética procura proporcionar à pessoa uma aproxima-


ção com padrões estéticos generalizados, mas com que a pessoa, por
razões congénitas ou adquiridas, não se encontra satisfeita. Uma cirur-
gia que elimine o nariz adunco, que aumente e molde os seios, que eli-
mine as rugas, uma lipoaspiração para diminuir o diâmetro abdominal,
não tendo um carácter funcional evidente, imprimem na pessoa uma
nova identidade corporal que procura um melhor desempenho e “ima-
gem” no seu meio social.
De dimensão diferente parecem ser outras formas de ICI, como os
piercings ou as tatuagens. Os piercings têm múltiplas formas que talvez
se possam organizar em termos de maior ou menor visibilidade. Os
piercings que se praticam em lugares mais visíveis do corpo (por exem-
plo, orelhas, sobrancelhas, nariz, queixo, umbigo, etc.) parecem apon-
tar para a criação de uma identidade restrita pessoal e cultural. A visi-
bilidade desses sinais funciona como uma marca distintiva e como um
aviso de uma filiação cultural, de um modo de vida diferente. Existem
também piercings que se praticam em lugares menos expostos do corpo
(ex.: língua, órgãos genitais, etc.). Estes piercings, para além de meios
46 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

de construção de uma identidade diferenciada, têm frequentemente


um carácter de ostentar resistência à dor e a consequente certificação
aos demais de coragem e superação. Encontramos frequentemente igual
motivação de superação da dor em pessoas que realizaram tatuagens
permanentes.
As identidades procuradas encontram um nível de explicação an-
tropológico, na medida em que as tatuagens e os piercings representa-
vam, em muitas sociedades não-industriais, um critério de diferencia-
ção social, de beleza e de comprovação de resistência ao sofrimento
(Titiev, 1963). Ainda nesse âmbito antropológico, as funções dos piercings
e das tatuagens podem também assumir um papel social activo, na
medida em que, ao mesmo tempo que criam uma identidade, procu-
ram inibir eventuais agressores intimidando-os com a ostentação de
marcas de “coragem” e estoicismo. Como exemplos desse papel social
das ICI, poderíamos citar a mutilação de dedos como ritual de inicia-
ção em gangs no Japão e as incisões cutâneas ostentadas por grupos de
jovens em guettos nos Estados Unidos. No entanto, Identidades Corpo-
rais Impressas podem também implicar uma gestão do corpo mais re-
flexiva, no sentido de que a intervenção sobre o corpo não é determi-
nada por um desejo racional (ou não-racional) de moldar o corpo como
o objectivo de o alinhar com um propósito exterior ao corpo, mas, an-
tes, como veremos mais abaixo, pelo desejo do próprio corpo de activar
significados.

A deficiência
Direitos Constitucionais das Pessoas Portadoras de Deficiência

I. O Direito a Protecção Igual Perante a Lei


II. O Direito de ser Reconhecido como Pessoa de Valor
III. O Direito de Deter Propriedade Pessoal
IV. O Direito de Escolher Alojamento
V. O Direito de Escolher Companheiros
VI. O Direito a Serviços de Assistência de Qualidade
VII. O Direito de Escolher a Intervenção Médica
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 47

VIII. O Direito a Escolher Intervenção Médica Selectiva e Limitada e de


Especificar o Método de Cuidado Paliativo
IX. O Direito de Designar Pessoas para fazer Escolha Médica
X. O Direito de Continuar a Viver como a Natureza Determina
Preparado como Guia para Cidadãos com Incapacidades Mentais ou Sensoriais
(http://www.geocities.com/Athens/Styx/6756/)

“O meu corpo”, como diria François Chipraz (op. cit.), “sou eu no


mundo”. Esta perspectiva de totalidade e permanência é particularmen-
te útil para analisarmos a “exclusão/inclusão” social de uma pessoa com
uma condição de deficiência.
As marcas da deficiência encontram-se presentes no corpo. É o cor-
po que, por sua imobilidade, tipo de mobilidade, assimetria, rigidez, tre-
mor, controlo, descontrolo, integridade, amputação, forma, expressão
não-verbal, etc. anuncia o que podíamos designar como uma deficiên-
cia. A definição de deficiência disponível (Who, 2001) menciona explici-
tamente que esta é uma alteração nas funções e estruturas do corpo, ain-
da que encarada na relação que essas funções ou estruturas do corpo
estabelecem com as actividades e com a participação social. Essa visibi-
lidade da deficiência proporciona um imediatismo de identificação que
contrasta com a “invisibilidade social” que as pessoas com condições de
deficiência têm tido.
O corpo é, assim, um lugar primordial da deficiência, e é nele que
se alicerça a avaliação que conduz à exclusão. A exclusão de pessoas
com condições de deficiência radica em três razões principais. Em pri-
meiro lugar, por se considerar que a deficiência é uma condição imutá-
vel e uma “tragédia pessoal” que não é possível melhorar. A visibilidade
da deficiência origina também uma ingenuidade de análise que leva as
pessoas a crer que, pelo facto de a deficiência não se poder “curar”, ela
resulta numa condição inalterável e solicitando uma intervenção de tipo
assistencial, caritativo ou ocupacional. O chamado modelo médico da
deficiência, na verdade, via a deficiência como um defeito da própria
pessoa situando nela todos os esforços de “recuperação” ou “reabilita-
ção”. Actualmente, analisa-se a deficiência com base num modelo social
que, ao contrário do modelo médico, reconhece que a deficiência é cau-
48 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

sada pelas barreiras sociais e estruturais criadas pela sociedade e sabe


da necessidade de participação das pessoas com deficiência na tomada
de decisões sobre si próprias (Johnstone, 2001). Este modelo social da
deficiência encontra-se muitas vezes articulado, na acção e na teoriza-
ção, com o modelo afirmativo. O modelo afirmativo “enfatiza uma pers-
pectiva não dramática da deficiência, realçando as identidades sociais
positivas tanto individuais como colectivas, baseadas em eventuais be-
nefícios do estilo de vida e da experiência de vida de ser deficiente”
(Swain e French, 2000).
Em segundo lugar, radica no facto de não se reconhecer às pessoas
com deficiência, autonomia e cidadania. Contra esta perspectiva pater-
nalista, desenvolveu-se o chamado modelo de direitos que, ao consagrar
na legislação os direitos da pessoa com condições de deficiência e ao
prever sanções para qualquer acto discriminatório, muda o eixo da rela-
ção do nível da “boa-vontade” do Estado para o nível das suas obriga-
ções constitucionais e legais. A pessoa com condições de deficiência é
assim reconhecida como uma pessoa com autonomia, com direito a parti-
cipar nas decisões e políticas e cujos direitos de cidadania são invioláveis.
A terceira razão para a exclusão de pessoas com deficiência rela-
ciona-se a atitudes em que se encaram as pessoas com condições de
deficiência como improdutivas e permanentemente devedoras à socie-
dade. O desenvolvimento de programas de formação e integração pro-
fissional, a utilização sistemática de tecnologias de apoio e o inerente
sucesso de processos de autonomia profissional são a comprovação de
que é um erro perspectivar quem tem condições de deficiência como
um eterno devedor, como consumidor de subsídios ou como cidadão
improdutivo.
A exclusão social com base no “corpo deficiente” é assim uma for-
ma ingénua e pouco sociológica de considerar a deficiência imutável, e
pessoas com condições de deficiência permanentemente dependentes e
improdutivas. Como veremos mais adiante, em tempos recentes, a defi-
ciência se tem relacionado mais com a construção de identidades e com
novas formas de cidadania baseadas na diferença. Como resultado, quer
a exclusão, quer a inclusão, são reconfiguradas na sua relação com a
deficiência.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 49

A idade
O que é “ageism”? O termo “ageism” foi criado em 1969 por Robert Butler,
o primeiro director do National Institute on Aging. Ele ligou o termo a outras
formas de estreiteza de espírito como o racismo e o sexismo, definindo-o
como um processo de estereotipização e de discriminação contra pessoas
porque estas são velhas. Hoje, é mais amplamente definido como qualquer
preconceito ou discriminação em favor de ou contra um grupo de idade.
(http://istsocrates.berkeley.edu/~aging/ModuleAgeism.html#anchor)

O corpo, como vimos, é valorizado nas sociedades de economia de


mercado pelo seu desempenho, pela sua eficiência e pela posse das suas
plenas capacidades. É a apologia de um corpo “eternamente jovem”, sau-
dável e capaz de resistir mesmo às mais duras condições de trabalho e
stress. Não é assim de estranhar que seja o arquétipo do corpo adulto o
mais valorizado em face de outras idades e períodos da vida, tais como a
infância e a velhice. Na infância, o corpo anuncia uma imaturidade e uma
“incompletude” que conduz à rejeição produtiva, e a uma desvalorização
da sua voz (Prout, 2000). Na velhice, pelo facto de o corpo ser julgado
como menos produtivo ou improdutivo, as pessoas são conduzidas para
ilhas segregadas, como, por exemplo, lares de idosos, e o seu estatuto de
participação e actividades sociais é depreciado e grandemente diminuído.
A tentativa de escapar à segregação provocada pelas marcas da idade
no corpo alimenta prósperas indústrias e comércios de medicamentos,
estética, vestuário, manutenção física, etc. Não basta só ser jovem, é pre-
ciso parecê-lo...

Considere os seguintes textos:

1º texto:
A festa para que fui convidado era uma miserável petting party de jo-
vens despidas e universitárias impúberes. A luxúria inflexível daquelas
raparigas indesejadas, a oferta negligente que faziam dos seios através da
blusa desabotoada no impulso de um passo de dança, desgostava-me. Esta-
va a pensar já em escapar-me rapidamente daquele local de vulgar comér-
cio de virilhas ainda intactas, quando um som agudíssimo, quase estriden-
50 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

te [...], um lamento trémulo de mulher velhíssima mergulhou no silên-


cio os circunstantes. E na moldura da porta, eu vi-a, com o semblante da
longínqua parca1 do cheque pré-natal, marcado pelo entusiasmo canden-
te da cabeleira encanecidamente lasciva, o corpo encarquilhado que vin-
cava com ângulos agudos a fazendo do vestido liso e negro, as pernas
flébeis que o tempo emagracera e curvara inexoravelmente em arco, a
linha frágil do fémur vulnerável, perfilando-se por baixo do pudor anti-
go da venerável saia.
A rapariguita insípida que nos recebera exibiu um gesto de cortesia enfa-
dada. Ergueu os olhos para o céu e disse: “É a minha avó...” (Eco, 1984)

2º texto:
Crash é uma adaptação do livro com o mesmo nome de J. G. Ballard, e
tem a ver com uma seita secreta de vítimas de acidentes automóveis que
realizam prazer sexual do facto de testemunharem e de se envolverem em
intensos desastres com carros.
O filme é marcado por um conjunto de cenas de sexo em cenários onde
os automóveis são motivo central. Muitas das cenas são de sexo explícito,
sendo algumas delas de tipo homossexual. O filme foi considerado bastan-
te controverso quando foi publicitado. A seguir encontra-se um excerto de
uma entrevista feita ao realizador, o canadiano David Cronenberg.
Bem, o outro lado de “Crash” — o que é que pode haver de erótico em
cicatrizes, intervenções médicas, ou ferimentos?
[...]
Quando olho para a personagem de Rosanna Arquette, é-me muito mais
fácil pensar nisso, porque me recorda o tempo em que eu era um adolescen-
te e trabalhava numa loja de fotocópias e um tipo levou para fotocopiar uma
revista artesanal com pequenos desenhos de mulheres amputadas ou de
desastres, por aí adiante, e com pouca história acerca desses desenhos, acer-
ca de como é que ele as salvava e depois as comia. E a sua vulnerabilidade e
a sua fraqueza têm esse intenso erotismo — e a sua timidez combinada com
o couro preto ou seja lá o que for que ela usava.
Trata-se de uma coisa do género, mas é também bastante agressiva. Em
Inglaterra, onde a cobertura do Crash pela imprensa escrita foi completa-

1. No texto de Umberto Eco, “parca” é identificada com mulheres idosas por quem a perso-
nagem tem verdadeira preferência sexual.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 51

mente louca — mas, bem sabe, é uma doença inglesa — um crítico escre-
veu, “Entre as coisas mais nojentas, repugnantes que acontecem neste
filme é um homem a manter relações sexuais com uma aleijada”. E eu
pensei, espera lá, significa isto que se o teu marido ou a tua mulher forem
ou se tornarem aleijados deixas de ter sexo com ele ou com ela? Por que é
que nos havemos de des-sexuar apenas porque somos aleijados?
Realmente, este é o filme do ano sobre os direitos dos aleijados.
Absolutamente. Quer dizer, neste ponto tornei-me acidentalmente po-
liticamente correcto — embora não o tivesse pretendido. Mas parte do
filme diz que todos se pretendem transformar de uma forma ou de outra.
Uma mulher que foi transformada por um acidente, que diz “vou incorpo-
rar o meu novo corpo na minha sexualidade”, e efectivamente tudo o que
ela tem a fazer é encontrar um amante que lide com isso, porque ela não
vai esconder partes suas que estão deformadas ou aleijadas. Ela diz, “Não,
tudo isto sou eu, este é o meu novo eu, isto é o que eu realmente sou, queres
comer-me? Come isto, sou eu que sou isto”. É assim basicamente que eu vejo
a personagem e penso que foi assim que Rosanna a desempenhou.
(http://www.salon.com/march97/interview970321.html)

Pontos-chave para discussão:

• No extracto do livro de Umberto Eco, aparece de uma maneira metafóri-


ca o exercício de uma sexualidade que desafia os canônes do que é defini-
do como o “corpo desejável”. Por que é que o corpo que é desejado se
pluraliza? Serão os desejos que se pluralizam ou as identidades dos cor-
pos que se pluralizam?
• No segundo texto, uma nova relação parece desenvolver-se entre a iden-
tidade e o corpo. Quais são as características principais dessa relação?
O que é que mudou?

O corpo como agência

Pode defender-se que há três momentos principais na cultura oci-


dental no desenvolvimento fundador do corpo: um primeiro momento
52 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

em que o corpo é a fonte do pecado, do mal, da decadência; um segundo


momento em que o corpo se torna naquilo que precisa ser disciplinado
(retomando o velho aforismo de “corpo são em mente sã”); e um terceiro
momento em que o corpo não só se revela a si como também se rebela
contra a tirania da alma e da razão, para aludir ao poema de Natália
Correia no início deste capítulo. Como parte da rebelião do corpo, é crucial
a recusa deste em ver o seu desejo normalizado e predefinido. Pelo con-
trário, não só o desejo se tornou múltiplo como também os objectos de
desejo se tornaram pluralizados. Assim, o corpo desejável não pode ser
predeterminado, nos moldes do concurso de Miss América nos anos 1950
e 1960. Para além da dimensão metafórica, a personagem de Umberto
Eco, referida acima, investe no corpo das mulheres idosas com a mesma
intensidade com que, anteriormente, por exemplo, os trabalhadores mas-
culinos investiam na Marilyn Monroe enquanto símbolo sexual.
De facto, até recentemente, nas sociedades ocidentais, o corpo era
definido pelas identidades sociais que lhe eram atribuídas. Por exem-
plo, o corpo do advogado era o corpo do advogado. O advogado andava
como um advogado, fumava como um advogado, adoptava a postura
de um advogado e amava como advogado. O corpo era a extensão pú-
blica do self. O que parece acontecer hoje em dia é que a distinção entre o
self (selves) público(s) e o self (selves) privado(s) encontra-se cada vez mais
difusa. O corpo, neste sentido, exprime cada vez mais, em todos os do-
mínios — quer públicos, quer privados — o projecto reflexivo de que faz
parte. Assim, o advogado gay deixa cada vez menos partes do seu self
dentro do armário; em vez disso, desenvolve estratégias em função do
seu projecto de identidade em que o corpo representa um papel central.
Nesse sentido, o corpo exprime agência, isto é, não é um mero anexo do
self, mas, antes, um dos ingredientes principais do self.

Conclusão

O que nos parece importante reter é que o corpo pelas suas caracte-
rísticas é um Lugar de exclusão e de inclusão. Pela intensidade e visibi-
lidade das marcas da sua origem social, estatuto económico, integrida-
de, pertença a uma subcultura e idade é como que um portal de entrada,
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 53

uma anunciação da identidade da pessoa. E a questão é que este imedia-


tismo, esta “primeira impressão” frequentemente não proporciona uma
segunda oportunidade de apreciação. As pessoas são sumariamente
julgadas e identificadas por características corporais eivadas de pressu-
postos de lugares comuns, de ideias ultrapassadas e de concepções so-
ciais elitistas, hierarquizadas e reprodutoras de valores sociais competi-
tivos e elitistas (Rodrigues, 1998).
Os modelos de inclusão social exigem outra visão sobre o corpo e
sobre a sua diversidade e identidade. Perspectivas em que exibição da
diferença do corpo, a diferença visível, não seja encarada como uma ca-
tegorização, como uma normalização ou um rotular, mas que, pelo con-
trário, os diferentes corpos e as diferentes imagens corporais constituam
um convite para iniciar um puzzle de conhecimento das capacidades da
pessoa, das suas identidades e valores de vida e trabalho. Diz-se que a
primeira impressão das imagens proporcionadas pelo corpo pode enga-
nar e, assim, pode ser reducionista se for imediatamente aceite. Contu-
do, pensar o corpo como uma identidade significa descobrir e compreen-
der os valores que tornaram possível tal primeira impressão. Pode ser
verdade dizer que “ao ver o corpo dos outros, também vemos o nosso”,
que o corpo constitui um facto que obriga a um certo grau de auto-refle-
xão, mas mesmo o nosso próprio corpo não é mais o instrumento dócil
dos nossos próprios desejos.
Na verdade, para levar o argumento mais longe, o corpo, ele pró-
prio, rebelou-se contra estas categorizações mais ou menos sábias. Não
só recusa ser o “outro” das nossas identidades pessoais e colectivas, como
também aparece, cada vez mais, como e com agência (ver acima). Por
outras palavras, o corpo começou a exigir, em nome de si próprio, um
lugar importante nas narrativas identitárias (ver adiante Lugar da iden-
tidade) e no que diz respeito à cidadania (ver O Lugar da cidadania). Já
não aparece como um mero reflexo do self pessoal, cognitivo, assumindo
a racionalidade da norma, nem aparece como o self do cidadão, higiénico,
são, fisicamente em forma, mas, antes, como o projecto plástico da refle-
xividade. No seu limite, esta rebelião do corpo em relação à sua con-
cepção de corpo invisível, pecador ou disciplinado (concepções que his-
toricamente foi assumindo), parece apontar na direcção da sua
54 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

reconceptualização como qualquer coisa “para além” da humanidade


(tal como foi concebida até agora). A transplantação de órgãos e doutras
partes do corpo, a manipulação genética, a transfiguração plástica dos
corpos, a introdução de elementos estranhos no corpo com o fim da sua
reconstrução, etc., aparecem como indicadores da eventual transforma-
ção daquilo convencionalmente designado como humano, como o cor-
po inclusivo, no sentido de um modelo que se anuncia como, nalgum
sentido, pós-humano.
A modernidade, embora tivesse trazido o corpo para o centro da
cena, concebeu o corpo na base, sobretudo, de biologia, medicina e saú-
de. Na verdade, o corpo era o objecto dos discursos e das manipulações
de um Estado educador, um corpo dócil perante os olhos e as actividades
das ciências e das mais variadas técnicas. O que aparentemente aparece
agora como novo é a recusa pelo corpo ele próprio deste estatuto de “corpo
dócil”. Sendo integrado cada vez mais nas estratégias da identidade e da
cidadania, o corpo constitui-se não só um lugar de agência, mas sobretu-
do um Lugar da sua própria afirmação.
O imediatismo das imagens proporcionadas pelo corpo não deve,
assim, ser julgado em termos de uma localização, mas em termos da
sugestão de uma identidade que não devemos apreciar fora de uma re-
flexividade sobre os valores próprios que conduziram à criação destas
imagens. É que ver o corpo dos outros é também ver o nosso…
Esta transformação parece ser plena de consequências para a ques-
tão de exclusão e inclusão social. No modelo de modernidade, o corpo
era o objecto de estratégias que pretendiam (de uma maneira mais ou
menos generosa) produzir a inclusão, erradicando, assim, a exclusão. O
sistema educativo, o sistema de saúde, o sistema de segurança social
tinham como objectivo central cuidar e proteger, no sentido de garantir
que os corpos dos cidadãos reflectissem o zelo e a preocupação do Esta-
do (providência) que os queria bem e em boa forma. No modelo de pós-
modernidade, ainda emergente, a inclusão/exclusão depende de estra-
tégias que já não têm o Estado e as instituições que promoveram a enge-
nharia social da modernidade no seu centro, mas, em vez disso, baseiam-
se nos guiões dos próprios indivíduos e grupos. O corpo aparece, por-
tanto, com as características de sujeito da sua própria enunciação. As-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 55

sim, a inclusão social e a exclusão social articulam-se com o corpo na


construção de identidades e na reivindicação de novas formas de cida-
dania. Os Lugares do trabalho, da cidadania, da identidade e de territó-
rio convergem no lugar do corpo, não como um Lugar privilegiado, mas
como um espaço em que a inclusão e a exclusão são, de uma forma cada
vez mais concreta, o projecto do próprio self.
56 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
57

O lugar do trabalho

Considere os dois textos seguintes:

1º texto:
Numa área semirural como esta (noroeste de Portugal, perto da cidade
de Barcelos), é também de salientar que, no conjunto de 151 alunos do 6º
ano, aproximadamente 1/3 fala do seu desempenho de actividades agríco-
las, e destes um número apreciável trabalha aí entre 10h e 35h. Também
no 8º ano, 1/3 dos seus alunos aparece envolvido no trabalho nesse sector,
embora aqui o grupo com cargas mais elevadas apresente uma latitude
menor (entre 10h e 25h). É este grupo de crianças e adolescentes que
constitui, em parte, na terminologia de Madureira Pinto (1985: 343), “um
exército agrícola de recurso”, “[...] tão dependente como [o exército in-
dustrial de reserva] do processo global de acumulação económica que tem
na dominação do espaço urbano sobre o espaço rural um dos traços mais
salientes da sua lógica e que permite a preservação da maior parte das
explorações familiares locais”. É este facto que leva Ferreira de Almeida a
concluir que, constituída por velhos, mulheres e crianças, se trata de uma
força de trabalho de reservistas “[...] cuja missão está longe de ser fácil
quer porque a idade avançada já lhes roubou boa parte da energia quer
porque acumulam as tarefas agrícolas às suas actividades normais, escola-
res ou domésticas” (Almeida, 1986: 192).
Que “a missão está longe de ser fácil” é extremamente visível quando se
percorrem muitos dos diários, como o daquele rapaz que, com os seus 14
anos (frequentando o 6º ano de escolaridade), levantando-se todos os dias
às 6h30 (mesmo sábados e domingos), trabalha antes da escola (onde
entra pouco depois das 8 da manhã) a carregar erva para alimento das
vacas e a limpar a vacaria, e quando volta da escola vai trabalhar com o pai
durante toda a tarde (quando não há aulas na escola) a cortar erva, a
carregá-la e a descarregá-la do tractor, a limpar novamente a vacaria, a
58 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

fazer a cama ao gado, a dar-lhes de comer, a tirar o leite às vacas, a tratar


dos vitelos e a podar; e depois de comer à noite, vai estudar uma hora para
se deitar às 10h da noite, concluindo no final desse dia: “[...] fui para a
cama, não vi televisão; e assim passou mais um dia da minha vida”. (Stoer
e Araújo, 1992: 93)

2º texto:
O movimento dos testes financiado pelas fundações empresariais ajudou
a responder às necessidades de “medição contínua” e de “prestação de con-
tas”. Foi também um instrumento vital dos mecanismos que ajudaram a
moldar a meritocracia específica desse Estado (Corporativo Liberal). [...]
Entre 1907 e 1928, 21 Estados (norte-americanos) praticaram a esterilização
eugénica em mais de 8500 pessoas. A Califórnia, sob a influência da Funda-
ção para o Aperfeiçoamento Humano, que contava com Lewis B. Terman e
David Star Jordan como membros destacados, foi responsável por 6.200 es-
terilizações. A lei de esterilização de Califórnia baseava-se na pureza da raça
e também na criminologia. Aqueles que eram “moral e sexualmente depra-
vados” podiam ser esterilizados. Através do movimento de esterilização na
América corria um Zeitgeist que reflectia o pendor dos reformadores piedo-
sos, que defendiam uma vida limpa, a temperança, escolas com ar puro e a
esterilização. O uso da esterilização como castigo atingiu um ponto tal que
foram introduzidas leis reclamando a esterilização por roubo de galinhas e
de carros, assim como por prostituição. (Karier, 1977: 224-6)

Pontos-chave para discussão:

• A escola pública foi inventada pela modernidade. Como é que se tornou,


então, o trabalho agrícola uma fonte de exclusão?
• De onde provém a motivação para o trabalho industrial? Sob que condi-
ções se pode desenvolver um trabalho na indústria? O trabalho na in-
dústria encontra-se sempre disponível nas sociedades industriais?
• Por que necessita o Estado de saber com quem “pode contar”?
• No segundo exemplo é sugerido que uma “ética laboral” resultou em
práticas racistas e de discriminação. Que relação poderá existir en-
tre esta “limpeza étnica” e a construção de uma economia capitalista
dinâmica?
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 59

Trabalho e identidade ocupacional na sociedade industrial

Se existe um Lugar decididamente identificado pelo público como


fonte de exclusão social é o do trabalho. Certamente que este facto se
relaciona com formas mais frequentes e novas de desemprego que ga-
nharam terreno nos últimos trinta anos. O trabalho foi o Lugar privile-
giado de discussão para as pessoas que se identificaram com o projecto
da modernidade, tanto para os que promoveram o trabalho como forma
de acumulação de riqueza (conhecidos historicamente como “burgue-
sia”), como para aqueles que foram mobilizados para este processo e
que sofreram a maior carga das suas consequências negativas (as classes
trabalhadoras). Ser incluído neste processo significa ser incorporado no
processo de trabalho e numa relação salarial. O exercício da própria ci-
dadania tornou-se dependente do facto de se ter um trabalho e ser ex-
cluído, significou, em larga medida, não ter lugar no processo de traba-
lho. Ao mesmo tempo, ser parte do processo pressupunha certas formas
de inclusão, quer dizer, ser incluído como engenheiro era bem diferente
de ser incluído como trabalhador não-especializado na indústria. A dis-
tância entre estas duas formas de inclusão no sistema laboral, isto é, a
sua diferente localização no processo produtivo, constituiu o que é nor-
malmente designado por desigualdade, cuja matriz foi determinada pela
propriedade e mais tarde pela gestão dos meios de produção.
O trabalho, tal como o entendemos hoje, encontra-se ainda larga-
mente identificado com a sociedade industrial, significando isso que se
reconhece o trabalho enquanto processo produtivo que transforma ma-
térias-primas em mercadorias acabadas. Os próprios trabalhadores tor-
naram-se mercadorias no sentido do poder laboral, como Marx tão bem
demonstrou, e destinavam-se a ser integrados e vendidos no mercado
sob a forma de “trabalho livre” oferecido ao “melhor preço”. No início
do século XX, Henry Ford e Frederick Winslow Taylor revolucionaram o
processo de trabalho na economia capitalista: o primeiro, introduzindo
a relação assalariada e o consumo modernos, o segundo, através de uma
nova organização dos processos de trabalho, incluindo a ideia de que a
fábrica se devia mover à volta do trabalhador e não o contrário.
Reiterar, em termos sociais, ser alguém, significa, portanto, estar
incluído no processo de trabalho, o que indica que a identidade depende
60 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

em muito dos lugares que se ocupa na estrutura ocupacional derivada


da organização do processo laboral. Neste sentido, até a própria cidada-
nia parece ter as suas origens no processo de trabalho e na relação sala-
rial. Todavia, é o Estado que atribui ao indivíduo a qualidade de ser cida-
dão (ver O Lugar da cidadania). Esta cidadania só se torna “real”, isto é,
concreta, quando é articulada com o processo de produção cujas condi-
ções básicas são outorgadas pelo próprio Estado (Lenhardt e Offe, 1984).
Em alguns países europeus, no início do século XX, o direito de votar
estava ainda condicionado à obrigatoriedade de ter um rendimento fixo.
O trabalho era definido, até há bem pouco tempo, como estando
intimamente ligado à categoria social de profissão ou à ocupação.1 O
trabalho era um conjunto de gestos técnicos e atitudes individuais e
grupais normalmente desenvolvidas no âmbito de uma instituição (em-
presa de negócios, companhia, etc.), na qual estas actividades de traba-
lho têm lugar. Unificado sob o rótulo de uma ocupação, o trabalho mos-
trou-se também central para a construção da identidade dos indivíduos.
Os tempos modernos sob o capitalismo aumentaram essa tendência de
identificar os indivíduos por sua profissão/ocupação (por exemplo, quan-
do se pergunta a uma pessoa “Quem és?”, a resposta é dada frequente-
mente em forma de uma identidade ocupacional: “Sou padeiro”) e o
trabalho encontra-se profundamente ligado com estratégias de classe.

Considere os seguintes textos:

1º texto:
Num trabalho recente, o actual Ministro da Economia, Augusto Mateus,
afirma o seguinte:

Tal como se fala de “desemprego latente”, para referir a situação de empresas


ou sectores de actividade condenadas a desaparecer por não terem operado em
tempo útil as nessárias adaptações ou reestruturações, é possível falar de “ex-
clusão social latente”, para os indivíduos e grupos sociais que não alcançarem o

1. Inicialmente o conceito de “profissão” só se aplicava ao que hoje se designa “profissões


liberais”. Todavia, ao longo do tempo o conceito alargou-se, incluindo conhecimentos e aptidões
relativas a áreas especializadas, como construção civil, electricidade, panificação, etc.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 61

nível mínimo crítico de educação, formação e qualificação que lhes possa permi-
tir percorrer com êxito uma trajectória de adaptação ou protagonismo nos pro-
cessos de inovação [...] (Mateus, 1994)

[...] As palavras do Ministro Augusto Mateus assinalam uma nova situa-


ção, uma nova relação entre a escola e o mercado de trabalho. No essen-
cial, as suas palavras implicam que a escola não simplesmente reproduz
mas antes produz activamente a exclusão social latente. Esta realidade nova
tem implicações importantes. Em primeiro lugar, significa que houve uma
mudança qualitativa nos sistemas de produção, nos processos de trabalho.
No auge do Fordismo e do Estado de Bem-Estar, a escola oficial, pública,
obrigatória, encontrava-se articulada com um sistema produtivo que pro-
porcionava o emprego para todos. Assim, a escola tinha, além da sua fun-
ção de socialização, uma função de selecção, a função de colocar cada
indivíduo numa estrutura ocupacional hierarquizada. Nestas condições, o
Estado actuava como um Estado Educador em nome de uma democratiza-
ção social na base do princípio de igualdade de oportunidades. O insucesso
escolar era combatido através de programas de educação compensatória
onde a justiça social seria garantida pela fiscalização do direito de acesso
à escola. As críticas direccionadas a esta escola enfatizavam a sua cumpli-
cidade com um sistema económico baseado na desigualdade.
Com a passagem para o chamado pós-Fordismo e a época da crise do
Estado de Bem-Estar, a escola para todos (des)articula-se com um sistema
produtivo que desenvolve o desemprego estrutural (e outras formas do
desemprego como o subemprego, o emprego clandestino, etc.), assim iso-
lando, excluindo até, aquelas pessoas que não beneficiam do emprego
oficial, estável, duradouro. De repente, a escola oficial, obrigatória, torna-
se, ela própria, numa fonte de injustiça social. Torna-se numa fonte de
injustiça social porque deixa sair das suas portas indivíduos que não estão
em condições para competir no mercado de trabalho oficial, condenando-
os assim às formas variadas de desemprego. Nestas condições, o Estado
transforma-se num Estado Regulador, no mediador de um novo processo de
concertação social que passa pela preocupação de garantir a competitivi-
dade do país num mercado cada vez mais mundializado. Faz parte deste
processo de regulação a promoção de programas de educação multicultural
que através da sua preocupação com o sucesso de todos os alunos tentam
garantir trajectórias para todos os indivíduos de “adaptação e desenvolvi-
mento”, nas palavras de Augusto Mateus. (Stoer, 1998: 31-3)
62 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

2º texto:
O trabalho de um electricista já não é concebido como uma ocupação
que implica formação como uma forma de socialização num conjunto de
atitudes, valores, e competências técnicas, mas, antes, como um conjunto
mais ou menos agregado de competências (no campo da manutenção, ilu-
minação de exteriores, etc.), adquiridas directamente através dos proces-
sos de formação e que constituem especializações que não identificam o
indivíduo como um electricista tout court.
Richard Sennett, num trabalho recente (2001), compara uma padaria de
Boston tal como funcionava nos anos 70 e vinte anos depois: “[...] A padaria
unia conscientemente os seus padeiros. O local parecia-se mais, de certo
modo, como a fábrica de papel de Diderot do que a fábrica de alfinetes de
Smith, sendo o fabrico do pão um exercício de bailado que exigia anos de
treino para ficar bem. Todavia, a padaria estava cheia de barulho; o cheiro
de fermento misturava-se com o suor humano nas salas quentes; as mãos
dos padeiros estavam constantemente mergulhadas em farinha e água; os
homens serviam-se do nariz e também dos olhos para avaliar quando o pão
estava feito. O orgulho profissional era forte, mas os homens diziam que não
gostavam do seu trabalho, e eu acreditei. Frequentemente, os fornos quei-
mavam-nos; a batedeira de massa primitiva puxava pelos músculos huma-
nos; e era trabalho nocturno, o que significava que aqueles homens, tão
centrados na família, raramente viam as suas famílias durante a semana”.
Quando regressou à padaria 20 anos depois, Sennett diz que “[...] ficou
espantado com a maneira como tinha mudado. Um conglomerado alimen-
tar gigantesco é actualmente dono do negócio, mas não se trata de uma
operação de produção em massa. Trabalho de acordo com os princípios da
especialização de Piore e de Sabel, utilizando máquinas sofisticadas,
reconfiguráveis. Num dia os padeiros podiam fazer um milhar de cacetes,
no dia seguinte um milhar de argolas, dependendo da procura imediata do
mercado em Boston. A padaria já não cheira a suor e é espantosamente
fresca, enquanto frequentemente os trabalhadores tinham que fugir do
calor. [...] A padaria computadorizada mudou profundamente as actividades
físicas de bailado da oficina. Agora os padeiros não têm contacto físico
com os materiais nem com os pães, acompanhando todo o processo atra-
vés de ícones num ecrã que representam, por exemplo, imagens da cor do
pão provenientes de dados sobre a temperatura e o tempo de cozedura dos
fornos; poucos padeiros vêem realmente os pães que fabricam. Os seus
ecrãs de trabalho estão organizados à maneira familiar do Windows; num,
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 63

aparecem ícones para muito mais espécies diferentes de pão do que as que
eram preparadas no passado — pães russos, italianos, franceses, simples-
mente tocando no ecrã. O pão tornou-se uma representação no ecrã.
Como resultado de trabalhar desta maneira, os padeiros já não sabem,
na realidade, fazer pão [...]. (Sennett, 2001, 101-4)

3º texto:
A entrada massiva de mulheres no mercado de trabalho assalariado deve-
se, por um lado, à informatização, ao estabelecimento de redes e globali-
zação da economia e, por outro lado, à segmentação de género no mercado
de trabalho, tirando vantagem de condições específicas das mulheres para
melhorar a produtividade, o controle da gestão e os lucros. [...] Penso que
se encontra bem documentado na literatura que a socialização do género
no trabalho das mulheres as torna, em geral, mais atractivas para o merca-
do de trabalho. Isto não tem certamente nada a ver com condições bioló-
gicas: as mulheres provaram que podem ser bombeiros e trabalhadores
portuários em todo o mundo [...]. Quero realçar que, na maioria dos casos,
as tarefas manuais não estão a ser reduzidas para as mulheres e menos
ainda estas se encontram delas dispensadas; é exactamente o contrário.
Elas são frequentemente promovidas para empregos com tarefas que im-
plicam múltiplas competências, que requerem iniciativa e educação, tal
como a procura em novas tecnologias implica uma forma de trabalho
autónoma, capaz de se adaptar e reprogramar as suas próprias actividades
[...]. Mas existe algo mais que eu creio que é o factor mais importante na
expansão do trabalho feminino nos anos 90: a sua flexibilidade como tra-
balhadores. Na verdade, as mulheres contribuem para a massa de trabalha-
dores em tempo parcial e temporário e para uma percentagem ainda pe-
quena, mas em crescimento, de auto-emprego. (Castells, 1997: 162-73)

Pontos-chave para discussão:

• Fará sentido falar na escolaridade como fonte de exclusão social?


• Como mudou recentemente a relação entre o mundo do trabalho e o
mundo da educação?
• Com base no exemplo dado por Sennett, sugira alguns dos aspectos prin-
cipais na organização e realização do trabalho nos dois períodos referidos.
64 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

• Como se pode caracterizar o fordismo? O que significa pós-fordismo?


(cf. Harvey, 1989).
• Como se articula o crescimento do emprego no sector terciário com a
posição das mulheres no mercado de trabalho?
• Quais são as implicações dessa mudança para a inclusão/exclusão social?
• Em que medida é possível relacionar a exclusão social com a instabilida-
de da identidade ocupacional?

A reconfiguração do trabalho e da identidade ocupacional

Hoje se reconhece que a natureza do trabalho está a mudar, e este,


no sentido de profissão, parece dissolver-se:
1. como consequência dos efeitos da crescente “leveza” das empre-
sas (i.e., quanto maiores são mais parecem tender para a dissolu-
ção nos paraísos fiscais off shore);
2. como consequência da crescente fragilidade das relações sala-
riais; e
3. como consequência da sua dissolução em competências.

Até muito recentemente, as pessoas identificavam-se através da


sua ocupação profissional, da instituição onde trabalhavam e do con-
junto de actividades que definiam o seu “emprego”. Actualmente,
torna-se cada vez mais difícil as pessoas identificarem-se pelo “traba-
lho”, pois este está a assumir formas cada vez mais voláteis. O que
parece restar, eventualmente, sob a forma residual são, efectivamente,
as competências.
Braverman (1974) defendia que a desqualificação do trabalho nas
sociedades capitalistas derivava da separação do trabalho nos seus ges-
tos e momentos pela divisão e redução dos processos e gestos técnicos às
suas partes constituintes. Efectivamente, o que estava em jogo não era
uma redistribuição e reorganização dos saberes dos artífices, mas uma
subdivisão sistemática do trabalho que forneceu a base sobre a qual o
trabalho artesanal se volatizou em competências. Ao mesmo tempo,
Braverman argumentava que as origens do management poderiam ser
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 65

encontradas no esforço para conseguir os meios mais eficazes para asse-


gurar o controlo do trabalho pelo empregador.
A emergência de formas pós-fordistas de produção, distribuição e
consumo parece estar a impor importantes transformações na natureza
do trabalho que aparentemente contradizem as teses de Braverman da
desqualificação a longo prazo do trabalho no quadro do capitalismo.
Não nos referimos aqui às abordagens managerialistas de “enriquecimento
da tarefa” (job enrichment), mas à aparente recomposição das competên-
cias que a nova economia do conhecimento parece exigir. Ser criativo,
inovador, capaz de comunicar, ser flexível, com capacidade de adapta-
ção e, talvez acima de tudo, capaz de ser formado continuamente (i.e.,
nas palavras de Bernstein, ser capaz de “responder eficientemente a pe-
dagogias concorrentes, subsequentes e intermitentes”, 2001), etc., são as
exigências pós-fordistas que parecem ultrapassar a divisão taylorista-
fordista entre concepção e execução e a consequente desqualificação do
trabalho. Contudo, como Thompson argumenta,

a desqualificação mais ampla é frequentemente acompanhada por uma


maior “qualificação” de pequenos estratos de trabalhadores envolvidos
em tarefas de planeamento, programação e tarefas do género. Mas a ten-
dência geral tende imediatamente a afirmar-se à medida que as tarefas
assim enriquecidas são sujeitas a uma subespecialização semelhante e as
qualificações são re-articuladas num mecanismo mais complexo. A prova
que Braverman dava para a progressiva desqualificação — a dos progra-
madores de computadores — constitui o melhor exemplo deste tipo de
desenvolvimento. (Thompson, 1989: 81)

De acordo com esta perspectiva, não nos encontramos perante uma


recomposição do trabalho na qual este pudesse ser re-apropriado pelos
trabalhadores (a desalienação do trabalho, portanto), mas, antes, peran-
te um desenvolvimento da tendência para a desqualificação. Contudo,
Thompson reconhece que a realidade é mais complexa e afirma que, nos
sectores económicos com uma maior proporção de investimento em ca-
pital do que em trabalho, existe um “mercado de trabalho dual para traba-
lho qualificado e desqualificado no interior da tendência mais ampla
para a desqualificação” (ibid: 83). Pensamos que é para este mercado de
trabalho dual que as estratégias educacionais das classes médias se diri-
66 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

gem e que é dentro deste quadro que a ênfase nas noções de “qualifica-
ções”, “competências” e “excelência académica” pode ser melhor com-
preendida. É interessante sublinhar, a este propósito, o argumento de
Castells segundo o qual

Neste novo sistema de produção, o trabalho é redefinido no seu papel de


produtor e claramente diferenciado de acordo com as características dos
trabalhadores. Uma diferença central é aquela que se refere àquilo a que
eu chamo trabalho genérico versus trabalho auto-programável. A qualida-
de crítica na diferenciação entre dois tipos de trabalho é a educação e a
capacidade de aceder a níveis elevados de educação; quer dizer, a incor-
poração de conhecimento e informação. [...] A educação (enquanto forma
distinta de formação de crianças e de estudantes) é o processo pelo qual as
pessoas, isto é, o trabalho, adquirem a capacidade de constantemente re-
definir as competências necessárias para o desempenho de uma dada ta-
refa, e para aceder a essas competências de aprendizagem. Quem for edu-
cado no ambiente organizacional adequado pode reprogramar-se a si pró-
prio no sentido de acompanhar as mudanças intermináveis do processo
produtivo. (Castells, 1998: 361)

Em suma, os efeitos da reconfiguração do trabalho e da identidade


de ocupação tendem a ser, por um lado, a ascensão do desempenho como
uma cultura da aprendizagem, significando que as novas classes mé-
dias, sentindo o seu estilo de vida presente e futuro ameaçados pela frag-
mentação do trabalho e pela reestruturação das profissões em que as
“aptidões transferíveis” começam a desempenhar um papel cada vez
mais importante, procuraram retomar a supremacia num contexto em
que o “desempenho” se tornou a palavra-chave tanto ao nível político
como pedagógico. Como Giddens (1994) e Apple (1998-2000) sublinha-
ram, o colocar a ênfase no abaixamento dos padrões académicos e nos
disfuncionamentos dos modelos progressistas de ensino-aprendizagem
é a base dos argumentos da coligação — algo contra natura — entre neo-
liberais e neoconservadores no seu ataque ao ensino público. O conceito
organizador desta aliança parece ser o de performance, como diria Dale, a
pedra-de-toque da “modernização conservadora” (1989). Esse conceito
surge como colocando a tónica no produto (output) do processo pedagó-
gico contra a tónica colocada no próprio processo. Quer dizer, o proces-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 67

so de ensino-aprendizagem deve ser tendencialmente avaliado pelo de-


sempenho (ou performance) que proporciona aos jovens em contexto aca-
démico e no mercado de trabalho, e não a partir das idiossincrasias for-
mativas que o próprio processo lhes possa proporcionar.
O conceito de performance emergiu no contexto dos discursos
legitimadores do pós-fordismo. O conhecimento, nesse contexto, surge
como um factor de produção crucial e como um meio para o funciona-
mento das relações no âmbito do mercado. Efectivamente, Bernstein re-
fere-se a

um novo conceito quer de conhecimento, quer da sua relação com aqueles


que o criam. [...] O conhecimento deve fluir como dinheiro para onde quer
que possa criar vantagens e lucro. De facto, o conhecimento não é apenas
como o dinheiro: é dinheiro. [...] O conhecimento, depois de quase dois
séculos, divorciou-se da interioridade e literalmente desumanizou-se. Uma
vez separado o conhecimento da interioridade, do comprometimento e da
dedicação pessoal, então as pessoas podem ser levadas de um lado para o
outro, substituídas umas por outras e excluídas do mercado. (1990: 155)

O conhecimento, neste sentido, em vez de qualificar o indivíduo


transforma-o num conjunto de competências de tipo cognitivo. O co-
nhecimento deixa de educar os indivíduos e a sociedade, tornando-se
antes um instrumento que permite posicionar os indivíduos (ou excluí-
los do) no mercado de trabalho. Uma das consequências desta transfor-
mação é o processo de individualização em que os indivíduos são reduzi-
dos à sua performance (à semelhança da noção de “indivíduo privatiza-
do” de Castoriadis [1998]). A regulação pelo mercado reconhece apenas
indivíduos sobre os quais fica colocado o ónus quer dos seus excessos,
quer dos seus défices.
Por outro lado, a precariedade da ocupação e as novas formas de
desemprego ou de semi-emprego criaram uma situação em que muitas
pessoas sentem-se cada vez mais isoladas, sob o ponto de vista social, e
sentem que se encontram em risco de cair em situações de marginaliza-
ção e desqualificação social (Paugam, 1991). Investigadores a trabalhar
sob a orientação de Paugam (1996) referem três orientações básicas quanto
à noção de exclusão:
68 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

• “trajectória”, que com base em dados longitudinais nos permite


compreender melhor as razões pelas quais certas pessoas se sen-
tem socialmente excluídas e outras não;
• “identidades”, que se refere aos efeitos da crise sócio-económica
sobre as identidades das pessoas e à sua capacidade de resistir a
esses efeitos e/ou reconstruir as suas próprias identidades (ver
O Lugar da identidade):
• “território”, que procura olhar para a exclusão social através das
lentes da segregação espacial (ver O Lugar do território).

Considere os seguintes textos:

1º texto:
Capitalismo no contexto da globalização

No domínio das relações económicas, Frobel, Heinrichs e Kreye falam


de uma nova divisão internacional de trabalho decorrente da globaliza-
ção da produção levada a cabo pelas empresas transnacionais (ETNS)
que, mais do que nunca, são os verdadeiros protagonistas da nova econo-
mia mundial. Esta nova economia mundial caracteriza-se essencialmente
pelo seguinte: acesso mundial aos recursos, sistemas de produção flexí-
veis e baixos custos de transporte que permitam o fabrico de componen-
tes na periferia e a sua subsequente exportação para o centro; apareci-
mento de três grandes blocos económicos: os EUA, assente nas relações
privilegiadas com o Canadá, o México e a América Latina; o Japão, as-
sente nas relações privilegiadas com os quatro “tigrezinhos” e o restante
Leste asiático; e a Europa assente na União Europeia e nas relações pri-
vilegiadas com o Leste da Europa e o Norte de África. Estas transforma-
ções foram disseminadas por todo o sistema mundial, sobretudo pelos
países periféricos e semiperiféricos juntamente com uma nova economia
política, e a que Barbara Stallings muito apropriadamente chama “mode-
lo de desenvolvimento orientado para o mercado”. As consequências des-
tas transformações na política económica podem resumir-se de seguinte
forma: economias abertas ao comércio internacional e preços internos
determinados pelo mercado mundial; política monetária e política finan-
ceira cautelosamente dirigidas para a estabilidade dos preços e equilí-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 69

brio da balança de pagamentos; direitos de propriedade privada garanti-


dos e invioláveis; privatização das empresas públicas; modelos nacionais
de especialização, afectação de recursos e rendimento de factores dita-
dos por decisões do sector privado, assentes em preços não distorcidos,
com uma intervenção mínima do governo ou de políticas sectoriais; apli-
cação do residual do orçamento do Estado a objectivos de política educa-
tiva e social. (Santos, 1995: 253-4)

2º texto:
Exclusão social e capitalismo

A exclusão social é, na realidade, o processo que desvincula as pessoas


enquanto força de trabalho no contexto do capitalismo. (Castells, 1998: 73)
Certamente não é a informação tecnológica per se (que é responsável
pela exclusão social). É, de facto, a relação entre este novo meio de desen-
volvimento, que posso chamar desenvolvimento da informação, e o pro-
cesso de integração no seu todo. Tentei identificar alguns dos mecanismos
que parecem estar a ligar os dois processos. Por um lado, temos a criação
desta nova economia a uma escala global e, por outro lado, o processo de
exclusão social e o aumento da sua polarização. [...] Em primeiro lugar, a
rede de trabalho e de flexibilidade do sistema torna possível ligar as pes-
soas, firmas e territórios com valor e descartar os desvalorizados, condu-
zindo a uma noção de sistema dinâmico que não necessita nem requer
todos estes elementos da nossa espécie. Em segundo lugar, existe um ex-
tremo subdesenvolvimento da infra-estrutura tecnológica na maior parte
do mundo. A difusão da Internet aconteceu muito rapidamente: mais de
45% das casas nos Estados Unidos e na Escandinávia estão ligadas, cerca
de 40% no Reino Unido e 25% na União Europeia. Dentro de 5 anos a
ligação será quase universal, digamos acima de 75% em todos os países
desenvolvidos. Mas no mundo em geral, somente 3% da população mun-
dial está ligada e, em áreas que têm sido estudadas com mais precisão,
como a Ásia do Sul, este número é inferior a 1%. [...] Em terceiro lugar,
toda a gente concorda que no novo sistema a educação, a literacia tecno-
lógica, a investigação e o desenvolvimento são fontes-chave da produção
e da capacidade para beneficiar dessa produção. A educação, a literacia
tecnológioca e a I&D, encontram-se extremamente mal distribuídos no
mundo. Actualmente sabemos que foi feito um grande esforço na escolari-
70 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

zação das crianças no mundo; por exemplo, o Brasil tem feito um esforço
extraordinário. Na educação básica, neste momento, 96% das crianças es-
tão na escola. Mas cerca de 40% dos professores não completaram a educa-
ção primária. Por outras palavras, aquilo a que estamos a assistir no mun-
do é ao que eu chamo a armazenagem das crianças mais do que educação
das crianças. [...] Em quarto lugar, a volatilidade da integração financeira
conduz a crises recorrentes que têm efeitos duradouros e devastadores nas
áreas mais vulneráveis. [...] Em quinto lugar, os governos, que costumam
compensar os desequilíbrios do sistema, são muitas vezes ultrapassados
por fluxos de capitais e de tecnologia, e estão cada vez mais restringidos
pelas instituições financeiras internacionais e credores privados. Em sexto
lugar, numa situação de crise, desenvolve-se uma economia criminosa que,
além de retirar a legitimidade aos governos, cria uma economia paralela
que beneficia da globalização. [...]
Será, então, este sistema sustentável? Este processo de globalização
cria valores e taxas sem precedentes num dos extremos das redes e ao
mesmo tempo não consegue integrar uma percentagem substancial da
humanidade? Será isto sustentável? Bem, acredite-se nisso ou não, muitas
pessoas pensam que sim. [...] Penso que o sistema construiu no seu inte-
rior contradições que tornam muito improvável a sua sustentabilidade.
[...] A volatilidade financeira é sistémica e não temos sistemas para a
regular. O comércio electrónico torna isto muito difícil e os governos não
o conseguem controlar de todo. [...] A noção de que este sistema pode
continuar para sempre, apesar de excluir dois terços da humanidade, é
simplesmente ingénua. (Castells, 2001: 17-20)

3º texto:
O paradigma da informação e as epistemologias concorrentes

Por causa da preocupação de Castells com a informação existe um estra-


nho silêncio em relação ao conhecimento. A sociedade em rede de Castells é
uma sociologia do paradigma da informação sem uma sociologia ou teoria
do conhecimento. [...] Por consequência, a sociedade em rede de Castells é a
personagem central da nova narrativa cívica da mutação do paradigma tec-
nológico, constituindo uma nova relação entre o mapa e o território. O que
falta é uma política do conhecimento e uma política das teorias do conheci-
mento concorrentes. O paradigma de Castells veria as epistemologias alter-
nativas como um “ruído”. Por exemplo, África faz obrigatoriamente parte do
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 71

Quarto Mundo em consequência das suas falhas de desenvolvimento. Mas,


para lá da falência do Estado e do crescimento de uma elite predatória, estas
falhas poderiam ser o resultado dos modelos de ciência que foram aplicados.
Argumenta-se muita vezes que os modelos agrícolas africanos podem indu-
zir noções diferentes de comunidade e ciência. É esta comunidade de
pericialidade que a aplicação oficial do desenvolvimento pode ter destruído.
Neste enquadramento, a agricultura africana e os sistemas de medicina tra-
dicional podem ser paradigmas alternativos, considerados pelos modelos
correntes de ciência como falsos e inconsequentes. Assim, o Quarto Mundo
torna-se não um vazio ou uma caixa negra, mas uma lista alternativa de
diversidades, possibilidades, epistemologias. (Visvanathan, 2001: 38-9)

Pontos-chave para discussão:

• Sousa Santos refere-se às Tecnologias da Informação e Comunicação


(TIC) como factores-chave na economia global. Pode também pergun-
tar-se que papel desempenham as organizações internacionais (o que
pode igualmente conduzir à discussão das ONG e dos movimentos so-
ciais) nesse contexto?
• Como é que o “modelo de desenvolvimento orientado para o mercado”
(Barbara Stallings, citada por Santos) relacionará o processo de desen-
volvimento da informação sublinhado no trabalho de Castells?
• Qual é o novo papel do conhecimento na economia e como se relaciona
com a transição de uma sociedade industrial para uma sociedade pós-
industrial?
• No paradigma de informação de Castells, quais serão os mecanismos
através dos quais alguém é incluído/excluído? Quais são as implicações
da inclusão/exclusão no modelo de Castells?
• Como poderá uma política de conhecimento dar origem a um paradig-
ma de desenvolvimento alternativo?

Trabalho, globalização e inclusão/exclusão social

Num trabalho recente sobre “A economia europeia do conhecimen-


to”, David Guile identifica os seguintes quatro factores-chave no proces-
72 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

so de reestruturação económico. Todos eles parecem contribuir para a


reconfiguração do trabalho:

• “a velocidade de evolução da inovação científica e tecnológica resultou


em conhecimento que se tornou mais importante para o desenvolvi-
mento económico do que factores tradicionais de produção tais como a
terra, o capital e o trabalho (Drucker, 1933);
• a emergência de um novo paradigma técnico-económico que tem sido
referido, algumas vezes, como ‘um modelo de desenvolvimento infor-
macional’ (Castells, 1996) [...];
• a escala e o impacto da actividade multinacional global, que ocasionou
a emergência de organizações mais focalizadas no consumo, com ou-
tros modelos de divisão de trabalho, menos hierarquizadas, com novos
perfis ocupacionais e novos requisitos de competências (Bartlett e
Ghoshal, 1993);
• o processo global de convergência industrial que ajuda a confundir as
linhas que separaram as indústrias tradicionais (as telecomunicações,
por exemplo) das indústrias mais recentes tais como os media e os com-
putadores e criam novas oportunidades de crescimento como tecnolo-
gias e convergência de mercados (Yoffe, 1996)” (Guile, 2002: 252-3)

Um quinto factor que se poderia juntar à lista é a emergência e o


rápido crescimento de mercados globais, em particular os desenvolvi-
dos no âmbito das actividades da organização Mundial do Comércio
(em relação à educação ver Bonal, Robertson e Dale, 2001). Todos esses
factores apontam para o papel das organizações internacionais como uma
nova forma de regulação global no sentido que frequentemente assume
o carácter político das corporações transnacionais. Na verdade, pode-se
afirmar que as organizações internacionais, que actuam maioritariamente
como “veículos” da política económica hegemónica, se implicaram numa
nova forma de governação a nível mundial (ver por exemplo Bonal [2002];
Dale [2000]; Samoff [1996]; Santos [2000]).
No que respeita à exclusão social, o Lugar do trabalho pode ser
pensado enquanto ponto de convergência de riscos globalizados, que
afectam todos por igual, e os riscos globalizados, que expressam uma
distribuição diferente de poder. A citação de Santos, acima, coloca o real-
ce nesta última, na forma de um “modelo de desenvolvimento orienta-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 73

do para o mercado” que promove a inclusão na base do consumo e ex-


clui todos aqueles que ou têm um fraco acesso ao mercado, ou se encon-
tram desapetrechados para tirar o melhor partido dele. As relações glo-
bais de mercado tendem, então, a desvincular, tal como Castells diz, tan-
to as pessoas como os espaços geográficos, ao mesmo tempo que produ-
zem ou demasiado pouco, ou o tipo errado de trabalho necessário para a
integração no capitalismo global.
Castells realça ambos os tipos de risco, ao mesmo tempo que subli-
nha que o desenvolvimento da sociedade em rede pode proporcionar
integração nesta sociedade e constitui, assim, uma forma de luta contra
a exclusão social. A rede torna-se, nesse sentido, um sistema uniforme
fora do qual todas as formas alternativas de desenvolvimento se tornam
impossíveis. Daí que Castells tenha saudado o movimento “zapatista”
como o “primeiro movimento de guerrilha informatizado” capaz de cap-
tar a imaginação do povo e dos intelectuais através do mundo,
catapultando “um grupo insurreccional local e fraco para a linha da frente
da política mundial” (1997: 79). A oposição à nova ordem mundial só
pode tomar lugar numa rede em que, por um lado, as consequências de
exclusão da modernização económica sejam desafiadas e, por outro, a
inevitabilidade da nova ordem geopolítica, sob a qual o capitalismo é
universalmente aceite, seja questionada. Pode-se discutir se a visão algo
optimista de Castells sobre a sociedade em rede e o capitalismo da infor-
mação, apesar do seu conhecimento rigoroso dos desequilíbrios do mun-
do que podem fazer gorar a sua realização, são capazes de providenciar
o que é necessário para transformar riscos diferenciais numa forma de
luta contra os riscos globalizantes que ameaçam todos por igual.
A crítica de Visvanathan à grand sociology (“uma das narrativas fun-
damentais do século XX” em que o herói do século XXI “não é o Estado,
nem as ONGs, nem os partidos, nem as uniões comerciais, mas sim a
rede” [2001: 35]) dá ênfase à necessidade de criar modelos alternativos
de desenvolvimento fora da rede. A rede (“um fragmento da imagina-
ção democrática”) ao desenvolver a sua própria lógica torna-se uma nova
forma de totalitarismo, fixando as regras de jogo de tal modo que todos
os outros jogadores estão condenados a jogar de acordo com essas re-
gras, eliminando dessa forma a possibilidade de desenvolvimento de
outros paradigmas que não sejam baseados no “informacionismo”.
74 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

A questão que se levanta é que, se a rede tornou-se coincidente com


o “sistema”, ou seja, com a nova economia global, será possível falar de
um lugar exterior a ela? Por outras palavras, pode ser inventado um
novo jogo? A preocupação com a inclusão e a emancipação humanas
parece tornar o conhecimento e as práticas inerentes mais legítimas. É
como se Visvanathan estivesse a falar de um lugar transparente, tão trans-
parente que se torna invisível mesmo para aqueles que nele habitam. Tal
transparência permite uma inquestionável liberdade de falar de alterna-
tivas que se tornam mecanismos essenciais de análise sociológica, mas
que conduzem a um lugar absolutamente exterior ao chamado “siste-
ma” (“rede”) dentro da qual encontraram a sua origem. Neste sentido,
pode-se argumentar que é necessário desmistificar e desvendar o Lugar
do qual se deseja propor as alternativas.

Conclusão

A transformação do trabalho e da sua organização está enquadrada


no que hoje se chama “capitalismo flexível” (Harvey, 1989), que se mani-
festa através do processo de flexibilização do processo produtivo, dos
contextos e de toda a organização do trabalho. Por outras palavras, tra-
ta-se de uma transformação que resulta de uma sociedade cada vez mais
“programada”, nos termos de Touraine (1981), baseada nos fluxos de
informação e de conhecimento, em suma, uma “sociedade em rede”
(Castells, 1996). Desse modo, surge como necessário proporcionar aos
indivíduos uma educação não assente em aptidões fortemente estrutu-
radas, mas sobretudo em competências que os tornem flexíveis. A flexi-
bilidade torna-se sinónimo de empregabilidade (muitas vezes expressa
sob a forma de uma lista de competências instrumentais e mesmo... emo-
cionais!). A ocupação baseava-se em competências organizadas em con-
juntos de gestos técnicos e cimentadas por atitudes (portanto, de forte
teor “formativo”), enquanto a emergência da empregabilidade parece
basear-se na (insustentável) fragilidade das competências organizadas
frequentemente em termos do curto e médio prazo (portanto, sem forte
teor “formativo”) (ver Stoer e Magalhães, 2003). Ser flexível é uma con-
dição para ter sucesso no mercado de trabalho emergente. Ser “inflexí-
vel” é quase sinónimo de ser excluído/a.
75

O lugar da cidadania*

Sintomas de mudança da ontologia social da modernidade

Considere os seguintes textos que parecem indiciar que os princi-


pais identificadores da ontologia social moderna, fundados nas figuras
da consciência, do indivíduo e do cidadão, podem estar a sofrer grandes
transformações:

1º texto:
“Um casal de lésbicas surdas concebeu um bebé intencionalmente
surdo”

Vários meses antes do seu nascimento, Sharon e Candy — duas mulhe-


res independentes na casa dos trinta, licenciadas, pós-graduadas, profis-
sionais na área da saúde mental — sentaram-se na cozinha tentando ima-
ginar como seriam as suas vidas se o filho não fosse surdo.
Quando procuravam um dador, contactaram um banco de esperma local,
pedindo que este fosse surdo. Mas esta é precisamente uma das caracterís-
ticas que, no mundo da tecnologia reprodutiva comercial, elimina um dador.
Por isso, as duas pediram a um amigo surdo para ser o dador, e ele aceitou.
Apesar de quererem um bebé surdo, isso não significa que não gostem do
filho se ele for capaz de ouvir. Como diz Sharon: “Um bebé que ouça será
uma benção. Um bebé surdo será uma benção especial”. Uma benção espe-
cial que é, neste caso, uma deficiência que afecta um entre mil americanos.
“Acho que todos reconhecemos que os bebés surdos podem ter vidas
maravilhosas”, diz a professora de lei e bioética na Universidade de
Wisconsin Alta Charo, sobre a procura activa de um bebé surdo. “A questão

* Uma primeira versão deste capítulo foi publicado no livro de David Rodrigues (2003).
76 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

é se os pais violaram o dever sagrado da parentalidade, que é maximizar,


até ao razoável, as vantagens para as suas crianças. Lamento dizê-lo, mas
acho uma vergonha limitar o potencial de uma criança”.
Desde 1980, muitos surdos foram galvanizados pela ideia de que a surdez
não é uma incapacidade ou problema médico mas uma identidade cultural.
Chamam-se surdos com S maiúsculo. [...] Sharon e Candy partilham esta
ideia da surdez como uma identidade. Mas um aspecto interessante da sua
tentativa é que faz parte de uma corrente mais vasta na reprodução artifi-
cial. É que ao mesmo tempo que os pais procuram eliminar características
que não querem, outros procuram características específicas. Não é um bebé
superior, é a procura de um bebé específico. (Mundy, 2002)

2º texto:
No Sul de Portugal, perto da fronteira espanhola, há uma pequena vila
chamada Barrancos que, recentemente, foi, por assim dizer, colocada no
mapa. Todos os verões acontece na vila uma festa que culmina com a lide
de um touro até à morte. Em Portugal, diferentemente do que acontece em
Espanha, é ilegal matar os touros na arena durante a lide. A tradição
portuguesa manda que o touro seja apenas lidado, sem mais nada aconte-
cer. Durante muitos anos as autoridades fecharam os olhos a esses aconte-
cimentos. Numa vila isolada e pequena como Barrancos não havia necessi-
dade de proibir aquilo que, sendo ilegal, constituía uma importante tradi-
ção local. Nos anos 1990, contudo, os jornalistas e os mass media em geral
começaram a focar a sua atenção nas festas de Barrancos, devido, pelo
menos em parte, à crescente visibilidade e influência de grupos que pre-
tendem preservar os direitos dos animais. Subitamente, a morte do touro
em Barrancos tornou-se numa questão nacional, já não sendo apenas o
terreno onde activistas dos direitos dos animais e tradicionalistas locais se
confrontavam. Passou a ser algo mais do que isso, tornou-se um problema
colocado à própria soberania nacional, pelo menos enquanto esta é
corporizada pelo Estado. Por um lado, defendia-se que a morte do touro
era algo de legítimo devido ao facto de ser parte da tradição local e, por-
tanto, da identidade daquele povo. Por outro lado, tratava-se de preservar
o princípio segundo o qual todo o território nacional deve estar sujeito à
mesma lei, a base da identidade nacional. Este conflito entre identidades
atingiu o seu ponto mais alto no final dos anos 1990. A solução, por parte
do Estado, foi, de facto, reconhecer o carácter excepcional do evento,
justificando-o precisamente como uma excepção. (Exemplo dos autores)
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 77

Pontos centrais para discussão:

• Estes dois exemplos mostram sinais de eventuais mudanças na ontologia


social da modernidade?
• Em que medida estes dois exemplos chamam a nossa atenção para aqui-
lo que se pode denominar as “rebeliões das diferenças” (questão desen-
volvida adiante)?
• Em relação ao primeiro exemplo, como é que uma “deficiência” se pode
transformar em identidade? Será que a consciência reflexiva dos actos
coloca em questão a reclamação da diferença?
• Relativamente ao segundo exemplo, com que base o local se pode tornar o
suporte de reclamação de soberania? E, por sua vez, em que base o Esta-
do-nação assume ter legitimidade para decidir sobre práticas locais?
• Como é que o casal de lésbicas, no primeiro exemplo, e o povo de Barran-
cos, no segundo, afirmam a sua identidade? Ver-se-ão a si mesmos como
indivíduos ou como membros de um grupo? Ou ver-se-ão a si mesmos
como os detentores de uma identidade?

A ontologia social da modernidade

É paradoxal que numa altura em que toda a ênfase parece ser colo-
cada na questão da inclusão, na educação inclusiva e na chamada “so-
ciedade inclusiva”, a exclusão surja como sendo a norma. E isto parece
ser verdade, a menos que se assuma como ponto de partida a ideia de
que o Mercado é que define a inclusão, substituindo-se dessa forma as
funções do Estado-nação e o seu paradigma de protecção social, sobre-
tudo sob a bandeira do Estado Providência ou État Providence. Naquele
sentido, a inclusão pode ser vista como um dos discursos que permite ao
Mercado desterritorializar as relações sociais ao nível do Estado-nação
para as re-territorializar depois em nível supranacional. Assim, em vez
de regular práticas de exclusão, foi-se criando um espaço global onde
todas as pessoas, independentemente das suas diferenças, são incluídas
como consumidores. O paradoxo reside, é claro, no facto de a inclusão
ser promovida com base na erradicação das diferenças e não com base
nelas mesmas. Este processo é semelhante àquele que é levado a cabo
78 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

pelo Estado-nação durante os séculos XVIII, XIX e XX, pois também nesse
caso era aquilo que as pessoas possuíam em comum (território, lingua-
gem, religião, grupo étnico, história) que se tornava o factor determinante
para a definição dos incluídos no espaço nacional e, assim, aptos para o
exercício da cidadania. Antes de o Estado-nação ser o organizador central
da inclusão, as igrejas desempenharam esse mesmo papel com base, des-
sa feita, na comunidade da fé. Assim, a ontologia social das sociedades
pré-modernas ocidentais fundava-se na ideia de que todos eram criaturas
de Deus e, como tal, eram incluídas e organizadas no corpus social.
Consequentemente, pode-se argumentar que tanto a concepção
medieval como a moderna de ontologia social definiam a inclusão ba-
seando-a na exclusão — ou mesmo na erradicação — da diferença. Tanto
os infiéis como os sem-pátria eram empurrados para as margens da so-
ciedade como aqueles a quem não era possível considerar legítimos par-
ticipantes na sociedade. Essa construção da inclusão com base naquilo
que as pessoas partilham, no que têm em comum, conduziu inevitavel-
mente a diferentes formas de exclusão económica, social, política, social
e cultural.
No que se segue, procura-se explorar a ontologia social da moder-
nidade, no sentido de a contrastar com a nova ontologia social que apa-
rentemente se encontra a emergir e no âmbito da qual a afirmação das
diferenças torna-se um dispositivo para compreender as formas novas
de cidadania, em que a exclusão social também assume novas formas.
Por ontologia social entendemos a forma como as relações sociais, os
grupos e os indivíduos são, enquanto tal, legitimados, aceites e reconhe-
cidos, quer dizer, a forma como são conceptualizadas e vividas as rela-
ções sociais no âmbito de um dado corpo social.
O contrato social, tal como a modernidade o desenvolveu, funda-
va-se na cidadania delimitada pelo Estado-nação. Este era a base da
arquitectura política, que garantia aos indivíduos e aos grupos um con-
junto de deveres e protecções sociais e políticas em troca da sua desis-
tência das identidades desenvolvidas em nível local. Isto é, a sua lealda-
de já não se baseava em pertenças étnicas, familiares, religiosas e em
outras teias da tradição, mas naquilo que se assumia como algo comum,
como a cultura nacional, o território, a língua, etc.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 79

O projecto moderno de construção dos Estados-nação fundava-se


no princípio segundo o qual a pertença nacional era tão “natural” ao
indivíduo como este “ter duas orelhas e um nariz” (Gellner, 1983: 6).
Todavia, esta “naturalização” da pertença nacional é mediada pelos
processos identitários. A modernidade fez assentar o processo de for-
mação de identidades em três esteios: (1) a identidade nacional: “Tu
és/Eu sou um súbdito de tal país”; (2) a identidade jurídica ou legal:
“Tu és/Eu sou um detentor de direitos e deveres”; (3) a identidade
subjectiva: “Tu és/Eu sou uma unidade consciente, racional e afecti-
va”. A legitimidade da nacionalidade-cidadania-individualidade era
assegurada pela metanarrativa da modernidade que localizava o Eu
no cruzamento dos seus três eixos fundadores: a Razão, o Homem e o
Estado. Estes três eixos desdobram-se, por seu turno, em mediadores
narrativos como a ciência, a filosofia, a arte, as instituições sociais e o
Estado. A Razão articula as narrativas da ciência, da filosofia e da arte
que, assim, surgem como os dispositivos discursivos, que, no projecto
da modernidade, enquadram a formação da subjectividade/individua-
lidade. Quer dizer, a modernidade faz assentar o seu projecto de racio-
nalidade no facto de a razão, à maneira cartesiana, ser a coisa mais bem
distribuída no mundo. Esta universalidade da capacidade de distin-
guir o verdadeiro do falso faz da ciência um empreendimento ao mes-
mo tempo dos indivíduos enquanto subjectividades e, por maioria de
razão, da humanidade. A expressão das idiossincrasias pessoais en-
contrará, eventualmente, mais espaço de expressão nas artes, todavia
no projecto da modernidade — e não cabe no objectivo deste trabalho
uma discussão mais aprofundada dessa questão — não parece haver
contradição paradigmática entre a deriva romântica e a corrente do
Iluminismo eventualmente mais racionalista. A História, com letra
maiúscula, desenvolve-se como o processo cuja finalidade (no sentido
de telos) surge como o palco em que a máxima autoconsciência do indi-
víduo no Homem, ele próprio Razão, deve acontecer ao realizar-se no
Estado. É em Hegel que esta identificação (Homem [indivíduo/
subjectividade] = Razão = Estado) parece ter atingido quer o máximo
de consciência possível, quer a melhor consciência possível. A huma-
nidade e o indivíduo, e este enquanto sujeito/subjectividade, reúnem-
80 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

se e realizam-se no Estado, “onde a liberdade [individual] adquire a


sua objectividade e vive na fruição de si mesma” (Hegel, 1965: 11).1

Figura 1

Metanarrativa da modernidade Mediadores narrativos Identificadores

Razão Ciência/Filosofia/Arte Consciência

Humanidade Instituições sociais Indivíduo

Estado Estado-nação Cidadão

É na figura do cidadão que os três identificadores referenciados se


parecem cruzar com mais profundidade, consistência e legitimidade. A
universalidade da Razão só se realiza pela organização da humanidade
em Estados e estes configuram os indivíduos como cidadãos. A cidada-
nia, assim, funda-se no contrato social como ontologia social, quer dizer,
o contrato social é o que constitui o corpo social como cidade e os indiví-
duos como cidadãos.

O que o homem perde pelo contrato social é a sua liberdade natural e um


direito ilimitado a tudo o que tenta alcançar; o que ganha é a liberdade
civil e a propriedade de tudo o que possui. Para não haver enganos sobre
estas compensações, é preciso distinguir a liberdade natural, que só tem
por fronteiras as forças do indivíduo, da liberdade civil, que está limitada
pela vontade geral, e a posse, que é apenas o efeito da força do primeiro
ocupante, da propriedade, que apenas se pode fundar num título positi-
vo. (Rousseau, 1981: 26)

Os Estados-nação que se desenvolveram no decurso da moderni-


dade encontram, nesse tipo de concepção, a legitimação última da sua
tutela sobre os seus súbditos-cidadãos. Os indivíduos prescindem da

1. Foi talvez Nietzsche quem pela primeira vez, de uma forma radical, questionou a moder-
nidade a partir da crítica à Razão feita com base em valores (Nietzsche, 1976), isto é, a partir de
uma instância (a moral) exterior à razão. Tal permitiu desalojá-la da sua centralidade e desvelá-la
enquanto discurso não universal, mascarado pela abstracção e universalidade.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 81

acção a partir das suas “inclinações” (ibid.: 25) e das suas pertenças mais
imediatas (étnicas, locais) e entregam-se, enquanto acto fundador da sua
cidadania, à justiça do Estado civil, isto é, prescindem da sua soberania
para a endossarem ao Estado-nação. Em compensação, é garantido aos
indivíduos a máxima utilização das suas capacidades.
Estas capacidades são constituídas pelos seus talentos próprios, a
realizar pelo empenho de cada um nos diferentes contextos do Estado,
da comunidade e do mercado. O valor social dos indivíduos é, assim,
pensado a partir da igualdade de oportunidades de exercício dos seus
talentos (cuja realização terá como instrumento e lugar de eleição a esco-
la pública), da liberdade de desenvolver a sua capacidade empreende-
dora no mercado e da participação fraterna na comunidade.
A cidadania enformada por esta forma de legitimação encontra a
sua concretização mais cabal no modelo de democracia representativa.
A atribuição de cidadania aconteceu, num primeiro momento, sobretu-
do em nível formal, pois a determinação de quem se incluía no âmbito
do contrato era feita a partir da posição dos indivíduos no mundo do
trabalho, primeiro restringindo-se ao patronato, alargando-se, depois,
na sequência de um século de lutas políticas em torno da reivindicação
do reconhecimento da importância do trabalho no desenvolvimento do
capitalismo, aos trabalhadores. Num segundo momento, a democracia
representativa torna-se, por assim dizer, “real”, na medida em que o le-
que dos representados alarga-se substancialmente, sendo visível a pre-
sença (representada) de quase todos aqueles que se viram excluídos dessa
representação. Esta “realização” da democracia representativa não acon-
teceu em todo o Ocidente ao mesmo tempo. Por exemplo, os negros dos
Estados Unidos só tiveram a sua representação garantida em meados
dos anos sessenta, e as mulheres de alguns cantões suíços só muito re-
centemente, nos anos 1970, alcançaram esse direito.
A educação no modelo que estamos a analisar fica, assim, essen-
cialmente atribuída à escola, desenhada como a instituição socializadora
por excelência dos indivíduos, dado que é o lugar onde as capacidades
destes se libertam das peias da tradição e onde, ao mesmo tempo, se
reforçam os valores da comunidade, agora dimensionada em termos de
nação. Da escola, contudo, espera-se, além da formação de cidadãos, tam-
82 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

bém a preparação de trabalhadores aptos para a estrutura ocupacional,


conceptualizadas ambas como potencialmente em harmonia. Esta “es-
cola da sociedade” (Touraine, 1997) tem o seu auge, no pós-guerra, no
processo de realização da “escola para todos”.

A reconfiguração do contrato social moderno

É frequente atribuir-se o actual questionamento do contrato social


moderno ao final das grandes narrativas, sobretudo ao esgotamento da
metanarrativa da modernidade (Lyotard, 1989). Nessa perspectiva, tudo
se parece passar como se o Ocidente se abatesse sob o peso do questio-
namento de si próprio enquanto forma de organização política, civiliza-
cional e cultural. Isto é, o Ocidente é implicitamente uma forma de Esta-
do e um conjunto de valores e normas culturais que foi apresentado como
modelo a perseguir e como meta de desenvolvimento. Este modelo, so-
bretudo a partir de meados do século XX, foi sendo posto em causa ex-
terna e internamente pelos intelectuais e pela acção política que o foi
denunciando como etnocêntrico, colonialista e falocêntrico. Esta denún-
cia do modelo do Ocidente enquanto modelo de desenvolvimento foi
dinamizada sob o impulso daqueles a quem ele recusava o papel e a
acção como sujeitos das suas próprias escolhas: as mulheres, as outras
culturas, as sociedades outras (por exemplo, os povos indígenas) e esti-
los de vida que escaparam à normatividade das sociedades modernas.
O mundo Ocidental, sobretudo na segunda metade do século XX, exibiu
claros sinais de descrença em si mesmo.
Esta descrença em si mesmo, não nos parece, todavia, explicar tudo o
que está a acontecer em termos do aparente esgotamento da modernida-
de. Primeiro, porque nunca, como hoje, o Ocidente (os Estados Unidos e a
União Europeia e todos aqueles blocos económicos e políticos que assu-
miram a modernidade como modelo sociocultural) foi tão “único” em ter-
mos económicos, políticos e culturais; segundo, porque a desconstrução
do Ocidente como modelo não surge apenas como resultado da sua auto-
crítica, mas também como o resultado daquilo que noutro trabalho
chamámos as “rebeliões das diferenças” (Stoer e Magalhães, 2001).
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 83

No que diz respeito ao primeiro aspecto, os diversos trabalhos e


investigações sobre as formas de globalização hegemónicas esclarecem
o suficiente sobre o eventual fim da história (Fukuyama, 1992) como
mistificação da perpetuação da hegemonia das formas económicas, cul-
turais e políticas inventadas pelo Ocidente (e.g., Santos, 1995; Dale, 2002).
Esta mistificação materializa-se na identificação de globalização com o
capitalismo enquanto forma de organização económica e com a demo-
cracia representativa, enquanto forma de organização política.
No que diz respeito ao segundo aspecto, a assunção da voz e do
protagonismo de acção por parte daqueles e daquelas que, no decurso
da modernidade e do desenvolvimento dos Estados-nação, viram a sua
“soberania” (quer dizer, a afirmação de si) entregue aos mecanismos ci-
vis destes, parece marcar uma importante reconfiguração do contrato
social e, por maioria de razão, da cidadania. Neste caso, são as investiga-
ções das formas contra-hegemónicas de globalização que têm oferecido
explicações sobre a emergência de uma postura activa por parte das di-
ferenças num mundo onde se está “condenado” a coabitar com elas.
Quando falamos em rebeliões das diferenças queremos com isso
significar que estas rebelaram-se não só contra o jugo cultural e político,
mas também epistemológico da modernidade ocidental. Recusaram-se
como “objectos” passivos do conhecer, como o “primitivo” que a antro-
pologia fixava como seu domínio de estudo, como o “sem história” que
a História determinava enquanto tal, como o “sem Estado” que urgia
trazer ao desenvolvimento político, como o pensador mítico-mágico a
que há que levar as benesses intelectuais do pensamento científico, e
como o pensamento prisioneiro do concreto a que a psicologia opõe as
riquezas do pensamento abstracto. Tudo ao mesmo tempo que denun-
ciam o ideal normativo do “normal” epistemológica e socialmente legi-
timado (e.g., a revolta das mulheres, das minorias sexuais, etc.).
As diferenças assumiram-se como agência e deixaram de aceitar
passivamente os discursos sobre elas, mesmo os mais generosos, sendo o
essencial dos seus programas a sua assunção como sujeitos da sua enun-
ciação, isto é, sujeitos do discurso sobre si próprias. E, o que é mais, esse
discurso (da diferença e não sobre a diferença) não é unificável numa
narrativa coerente, em que todos os outros se pudessem reconhecer e ver
84 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

afirmados como uma unidade. O que caracteriza actualmente as diferen-


ças e as suas relações é precisamente a sua heterogeneidade, a sua incon-
tornável resistência a qualquer domesticação epistemológica ou cultu-
ral. É por isso que se deve falar de rebeliões das diferenças e não no
singular, como se as diferenças fossem Um. Algum pós-modernismo
parece mesmo sugerir que, dada a perda dos centros (civilizacionais,
éticos, estéticos, políticos), o jogo se joga apenas em termos de diferen-
ças. Quer dizer, o carácter relacional das diferenças é definido não em
relação ao Mesmo, mas em relação às próprias alteridades, tratando-se
assim de jogar um jogo (conflito-negociação) entre si. A cultura ociden-
tal surge aí, então, como ela própria diferença e não como o padrão a
partir do qual a alteridade mesma é definida.
Efectivamente, indivíduos e grupos cuja diferença foi durante esse
período delimitada, dita e activada a partir da cidadania fundada no
Estado-nação assumem-se crescentemente como alteridade, com
assunção da sua própria voz e de voz própria. E fazem-no para além do
“direito” da cidadania configurado pela modernidade e para além da
moral e da política da “tolerância” (quem está em posição de tolerar
quem?). Estas diferenças, baseadas umas na etnia ou na raça, outras na
preferência sexual ou estilo de vida, outras ainda na religião — para
mencionar apenas estas —, irrompem do interior das próprias socieda-
des ocidentais. Não são uma “ameaça” que do exterior se impõe; sur-
gem, antes, no nosso interior como reivindicação de soberania: o direito
de gerir a vida individual e colectiva de acordo com um quadro de refe-
rência próprio, o direito de educar os filhos segundo as suas convicções,
de tratar as doenças segundo determinados quadros de conceptualiza-
ção da clínica, etc. As condições de realização destas reivindicações de
soberania serão consideradas adiante.
A reconfiguração da cidadania individual e colectiva, efectivamente,
parece estar a escapar inelutavelmente ao Estado-nação, quer enquanto
território, quer enquanto narrativa identificadora, quer ainda enquanto
dispositivo protector (em relação a este último, a questão é saber como é
que o Estado-nação pode lidar com a promoção da “qualidade” que de-
riva de formas de organização económica, que, paradoxalmente, consti-
tuem um risco para o bem-estar dos indivíduos, contexto em que, como
nos lembra Beck [1992], a individualização se sobrepõe à individuação).
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 85

A soberania, enquanto poder exercido por delegação pelos órgãos


do Estado, em nome dos indivíduos-cidadãos, encontra-se mitigada de
duas formas principais. Por um lado, as unidades supranacionais debili-
tam a soberania dos Estados, que voluntariamente a cedem a troco de
bem-estar económico e de estabilidade política, o que, por sua vez, en-
fraquece o sentimento de pertença dos indivíduos aos espaços nacio-
nais. A título de exemplo, Castells, num trabalho recente, afirma:

Veja-se, por exemplo, o caso de dois países que conheço bem, França e
Espanha: 80 por cento da legislação em França e em Espanha tem de ir
para aprovação da União Europeia. Nesse sentido, elas não são Estados
soberanos. (2001: 121)

Por outro lado, o local, os modos de vida alternativos e o factor étnico


parecem estar a emergir como importantes estruturadores da cidadania:
em nome do local e da pertença étnica ou a partir de dadas escolhas de
estilo de vida ou outras, os indivíduos reivindicam formas renovadas de
cidadania, a qual, então, passa a ser pensada a partir das diferenças, isto é,
daquilo que distingue e não através das características comuns.
Sobretudo este último aspecto configura uma re-significação da ci-
dadania activa, como se os indivíduos e os grupos reivindicassem de
volta a soberania individual e colectiva de que haviam prescindido pelo
contrato social moderno. Esta transformação, como acima referimos, é
notável em comparação com as formas de cidadania resultantes desse
mesmo contrato que se fundavam precisamente no património comum.
A atribuição de cidadania, pelo contrato social moderno, era um acto
fundado na legitimidade dos aparelhos do Estado enquanto guardião
da nação. Esta, em termos básicos, era assumida como uma comunidade
de língua, território e/ou religião. Essa “comunidade imaginada”
(Anderson, 1983) outorgava ao Estado o poder legítimo de, em nome
daquilo que a todos era “comum”, atribuir direitos e deveres. Para se ser
cidadão bastaria nascer no âmbito desta comunidade.2 As implicações

2. Reconhecemos que nem todas as “comunidades” são do mesmo tipo. Morris (1994), por
exemplo, faz a distinção entre “comunidades de consentimento” (uma espécie de associação vo-
luntária) e “comunidades descendentes” (baseadas, por exemplo, na descendência matrilinear).
86 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

da nova forma multicultural de cidadania só agora começam a tornar-se


visíveis e induzem a uma urgente reconceptualização do conceito de ci-
dadania, dos direitos e dos deveres dos actores sociais.
O contrato social da modernidade que exprime a troca acima referi-
da (da pertença local pela lealdade nacional) parece estar, pois, em via
de reconfiguração. Esta está a ser levada a cabo na tensão entre factores
de ordem económica (como a restruturação do mercado de trabalho), de
ordem cultural (como o confronto entre modos de vida, por exemplo, de
origem étnica e aqueles fundados na universalidade normativa do Esta-
do-nação) e de ordem política (como, por exemplo, os efeitos sobre as
soberanias nacionais da construção europeia).
No contexto europeu, o contrato social emergente encontra-se deli-
mitado por três dimensões, que também são exigências: empregabilidade
(que implica ser “formável” continuamente), a identidade local (que im-
plica poder exprimir diferenças) e a cidadania europeia (que envolve a
construção de uma nova “comunidade imaginada”). Tudo se parece pas-
sar como se a cidadania fosse determinada e ao mesmo tempo activamen-
te se articulasse com a recomposição do tecido económico europeu e glo-
bal e com o reposicionamento do Estado-nação neste contexto.
As formas de cidadania emergentes caracterizam-se por uma forte
marca de reflexividade social (Giddens, 1992), quer dizer, já não é só da
ordem do atribuído, não resultando imediatamente da pertença a qual-
quer categoria social nacional, surgindo, antes, na ordem do reclamado.
A soberania que os indivíduos e os grupos cediam no contrato social
moderno é agora reclamada de volta, isto é, eles querem decidir acerca
do modo como vivem, como se educam, como cuidam de si, como se
reproduzem, etc.
No fundo, esta reclamação baseia-se num apelo no sentido de uma
redistribuição económica que é combinada, em doses variáveis, com um
reconhecimento da diferença. Desta forma, o que está em causa é o possí-
vel surgimento de uma forma de cidadania “reclamada” pelos indivíduos
e pelos grupos contra as instituições e respectivas racionalidades. Toda-
via, esta forma de cidadania emergente, fundada em factores culturais,
tem como pressuposto a satisfação da realização da cidadania de tipo so-
cial (tal como T. H. Marshall a teorizou). Não que o reconhecimento das
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 87

diferenças assim expressas seja dependente de uma “etapa” em que a ques-


tão da igualdade económica fosse assegurada, mas que, nos actuais con-
textos, a reivindicação do reconhecimento cultural da diferença acontece,
ao mesmo tempo, da reclamação de igualdade económica.
A cidadania social de Marshall (1950) desenvolve-se na base de uma
redistribuição económica normalmente identificada com o Estado de
Bem-estar. A justiça social depende de um Estado pró-activo no, que diz
respeito a uma redistribuição da renda baseada no princípio de igualda-
de de oportunidades, um dos pilares da democracia representativa. O
problema que se coloca hoje com a restruturação do mercado de traba-
lho é o de saber até que ponto a inclusão no contrato de trabalho (condi-
ção-base do contrato social moderno) significa, de facto, acesso à cidada-
nia. Por outras palavras, como tem enfatizado Bauman (1992), a “liberta-
ção” do capital em relação ao trabalho, resultante, pelo menos em parte,
de um processo de re/desterritorialização em que o próprio território
do capital é desterritorializado (Santos [2001] dá o exemplo da bolsa de
Nova Iorque), parece implicar, por parte do Estado, um alijar das suas
preocupações com a realização de políticas redistributivas e, portanto,
um pôr em causa do princípio de igualdade de oportunidades que se
encontra na base dessas políticas.
As implicações deste processo também podem ser vistas pela evo-
lução do “individualismo possessivo” para “um individualismo de
despossessão” (Santos, 1995b). Como já se disse acima, no contrato so-
cial moderno a essência da liberdade do homem encontra-se na sua ca-
pacidade de procurar satisfações. Defende McPherson que

(e)sta liberdade é devidamente limitada apenas por um princípio de utili-


dade [...] que proíbe a violência contra os outros. A liberdade é, portanto,
restrita à, e identificada com, dominação das coisas, e não a dominação
dos homens. A forma mais clara de dominação das coisas é a relação de
propriedade ou posse. A liberdade é, portanto, posse. Toda a gente é livre,
porque todos possuem pelo menos as suas capacidades. (1973: 199)

No entanto, a erosão do princípio de igualdade de oportunidades


pela restruturação e re/desterritorialização do mercado de trabalho pro-
duz uma situação em que, segundo Santos,
88 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

Esta metamorfose do sistema de desigualdade em sistema de exclusão


ocorre tanto a nível nacional como a nível global. [...] A nível nacional, a
exclusão é tanto mais séria quanto até agora não se inventou nenhum subs-
tituto para a integração pelo trabalho. [...] (T)raduz-se num individualis-
mo extremo, oposto do individualismo possessivo, um individualismo de
despossessão, uma forma inabalável de destituição e de solidão. A erosão
da protecção institucional, que sendo uma causa, é também um efeito do
novo darwinismo social. Os indivíduos são convocados a serem respon-
sáveis pelo seu destino, pela sua sobrevivência e pela sua segurança,
gestores individuais das suas trajectórias sociais sem dependências nem
planos predeterminados. [...] O indivíduo é chamado a ser o senhor do
seu destino quando tudo parece estar fora do seu controle. A sua respon-
sabilização é a sua alienação; alienação que, ao contrário da alienação
marxista, não resulta da exploração do trabalho assalariado mas da au-
sência dela.3 (1995b: 27-8).

Trata-se, em suma, do indivíduo despossuído das suas capacidades


de posse, porque se encontra num território em via de descontratualiza-
ção. Essa descontratualização está a ter lugar no terreno da economia e no
terreno cultural. No lado da economia, o processo de re/desterritorializa-
ção, na sua criação de novos territórios em que o trabalho não está presen-
te, põe em causa o contrato social através da restruturação do mercado de
trabalho (Magalhães e Stoer, 2001). No lado da cultura, não é o contrato
social moderno que a cidadania reclamada pretende, mas um novo em
que a diferença, dita nas primeiras pessoas do singular e do plural, encon-
tra-se vinculada. Para se armar perante esta nova situação, o indivíduo é
obrigado a preparar-se permanentemente para o trabalho, adquirindo as
competências necessárias para um mercado de trabalho volátil (sobretu-
do, ao nível do trabalho genérico, cf. Castells, citado em Magalhães e Stoer,
2001) baseado no curto prazo, e sabendo que “nunca saberá o suficiente
e jamais desenvolverá todas as capacidades e competências necessárias”
(Bernstein, citado em Bonal, 2002). Assim, o indivíduo torna-se vulnerá-
vel a uma injustiça social que condiciona a sua própria cidadania.

3. Robert Castel (1995) referiu-se a este fenómeno como “a nova questão social” no âmbito da
qual os excluídos já não são aqueles que, sendo explorados, são indispensáveis, mas, antes, aque-
les que estão em excesso, a mais. Neste sentido, ser explorado torna-se quase um privilégio.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 89

A conclusão principal que se pode tirar desta análise é a necessida-


de de pensar as políticas de redistribuição na base não só dos “novos”
territórios (local, regional, supranacional), mas também com base nos
territórios desterritorializados. Isto é, pode defender-se, na sequência
do nosso argumento, que a cidadania social depende da regulação polí-
tica de todos os territórios, sem excepção. Mesmo os territórios desterri-
torializados (aqueles em que, por exemplo, e como acima se disse, flui o
capital financeiro) são politicamente marcados e, como tal, exigem regu-
lação. Na verdade, o facto de a cidadania social requerer regulação polí-
tica dos territórios sugere que a regulação pode ser também pensada
como emancipação (e não simplesmente como o seu pólo oposto). Nesse
sentido, é interessante o trabalho de M. Kaldor (1995), que tem proposto
um modelo de construção europeia baseado em temas (tais como, direi-
tos humanos, segurança, ambiente, gestão económica e financeira) e não
em território, e o de J. Habermas que, no seu apelo para a elaboração de
uma Constituição Europeia, defende que é necessário “encurralar os
mercados” e “enfrentar a tendência do capitalismo para produzir o caos
ecológico” (Habermas, 1999-2001). A proposta de Sousa Santos para uma
globalização “de baixo para cima”, com base no “cosmopolitismo” (como
alternativo aos “localismos globalizados”) e no “património comum da
humanidade” (como alternativo aos “globalismos localizados”), também
vai nesse sentido. Assim como na mesma direcção parece apontar o con-
ceito de “relação de extraterritorialidade recíproca” proposta por Giorgio
Agamben (1993). Em vez de conceber a construção europeia como “uma
impossível ‘Europa das Nações’” propõe o espaço europeu como não
coincidindo com os territórios nacionais homogéneos, nem com a sua
soma topográfica, mas como “a redescoberta da ancestral vocação das
cidades europeias” organizadas no âmbito de “uma relação de extrater-
ritorialidade recíproca” (1993: 24-5).

Considere os seguintes textos:

1º texto:
O homem branco é tão culpado da supremacia branca que não pode
esconder a sua culpa procurando acusar o Honorável Elijah Muhammad
90 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

de ser culpado de ensinar a supremacia dos negros e do ódio! Aquilo


que o sr. Muhammad está a fazer é erguer a mentalidade do homem
negro e a condição social e económica do homem negro no seu país.
[...] O culpado, o homem branco das duas caras, não pode decidir aqui-
lo que ele quer. Os nossos antepassados escravos teriam sido condena-
dos à morte se advogassem a chamada “integração” com o homem bran-
co. Agora que o sr. Muhammad fala em “separação”, o homem branco
chama-nos “professores do ódio” e “fascistas”. [...] O homem branco per-
guntar ao negro se ele o odeia é o mesmo que o violador fazer a quem é
violado a mesma pergunta, ou o lobo perguntar à ovelha, “odeias-me?”. O
homem branco não tem condição moral para acusar alguém de odiar.
(Malcolm X,4 1966: 342)

2º texto:
Enquanto a primeira declaração pública da NOW (National Organization
of Women) (1966) começava por dizer “Nós HOMENS e MULHERES (com
letras maísculas no original) que agora se constituem como a Organização
Nacional para as Mulheres, acreditamos que chegou o momento para a
criação de um novo movimento no sentido de criar uma igualdade total de
parceria entre os sexos, como parte integrante de uma revolução mundial
ao nível dos direitos humanos que está a acontecer nacional e internacio-
nalmente”, o Manifesto de Redstockings de 1969, que fez emergir o femi-
nismo radical em Nova Iorque, afirmava: ‘Identificamos os agentes da nos-
sa opressão como sendo homens. Todas as outras formas de exploração e
opressão (racismo, capitalismo, imperialismo, etc.) são extensões da su-
premacia masculina, os homens dominam as mulheres, alguns deles domi-
nam o resto”. (Castells, 1997: 177-8)

4. “Malcolm X, baptizado Malcolm Little, em 1925, era filho de um professor baptista. [...]
Abandonou muito cedo a escola e foi para Nova Iorque onde trabalhou durante algum tempo
como criado no Harlem. Em breve envolveu-se com o submundo, começando a traficar marijuana
e tornado-se mesmo viciado em cocaína. Acabou por ser preso por roubo e, em 1946, foi condena-
do a 10 anos de cadeia. Na prisão conheceu a seita muçulmana negra de Muhammad e converteu-
se à sua visão utópica e claramente racista. Saiu em liberdade condicional em 1952 e tornou-se um
conhecido defensor das doutrinas muçulmanas, e, ao contrário de Muhammad, procurou e con-
seguiu grande publicidade. Em 1963, Muhammad afastou-o do movimento Black Muslim e
Malcolm X formou o seu próprio grupo de protesto, a Organização de Unidade Afro-America-
na. O grupo tinha começado a dar os primeiros passos quando, em 1965, Malcolm X foi assassi-
nado” (Haley, 1966).
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 91

Pontos-chave para discussão:

• Em que medida estes dois exemplos ilustram uma alteração do discurso


sobre a diferença para um discurso da própria diferença?
• Como é que se pode reagir à “arrogância política” eventualmente pre-
sente nestes dois exemplos? Quando o “outro” assume a sua própria
voz, de onde dimana essa dita arrogância? Trata-se mesmo da voz do
“outro” ou apenas um reflexo das nossas próprias vozes? Como é que se
poderão interpretar, neste contexto, os discursos fundados na tolerân-
cia? Quem é que se encontra na posição de tolerar quem?
• A diferença é o produto de uma relação. Quem é que determina a subs-
tância dessa relação? Terá o mundo ocidental criado continuamente uma
falsa relação com a “alteridade”?
• Ao procurar compreender a inclusão/exclusão social, pode argumentar-
se que há diferentes modos ou abordagens para conceptualizar e legiti-
mar a diferença. O primeiro, e mais antigo, poderia ser designado como
etnocêntrico, no sentido em que a alteridade é tematizada com base na
segurança civilizacional do ocidente. O segundo poderia ser designado
o “modelo da tolerância”. Este, apesar de partir da consciência que tem
do “outro”, exclui com base de um quadro cultural socialmente estrutu-
rado que define aquilo que pode ser, ou não, tolerado. O terceiro modelo
baseia-se na consciência crítica do desenvolvimento na história da rela-
ção com a diferença. Como consequência dessa crítica, tornamo-nos res-
ponsáveis pelos efeitos negativos dessa relação. Designamos este mode-
lo como “o modelo da generosidade”. O quarto modelo não é, de facto,
um modelo, mas uma abordagem relacional que, assumindo a referida
consciência critica do terceiro modelo, recusa ver a diferença como
dimanando de qualquer centro ou fonte que não da própria relação que
existe entre as diferenças em presença. Adiante, nesse texto, poderão
procurar exemplos que ilustram cada um desses modelos/abordagens.

“A diferença somos nós”

De facto, já não existe um lugar institucional suficientemente legiti-


mado para enunciar o que são as diferenças e quais os seus limites de
92 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

expressão. As cidadanias surgem, assim, elas próprias como diferenças


cuja legitimidade reside nelas mesmas (“como diferentes, temos o direi-
to de ser iguais”). A questão está em saber qual o limite dessa coincidên-
cia da cidadania com a diferença. Por exemplo, até que ponto pode-se
justificar que o Estado exija o cumprimento da escolaridade obrigatória
por parte das crianças ciganas de sexo feminino ao mesmo tempo que
pretende reconhecer as práticas culturais de um grupo étnico? Ou, outro
exemplo ainda, até que ponto é socialmente legítimo que o que tem sido
reconhecido como “deficiência” (por exemplo, a surdez) seja
reconfigurado como diferença e, portanto, como identidade (diz uma
mulher, surda e lésbica, empenhada no processo de ter um filho surdo
através de inseminação artificial, “para mim a surdez é uma identidade
e não uma deficiência”, Público, 14 abr. 2002).
O contrato social moderno legitimava-se, diga-se mais uma vez, na
pertença comunitária e na imaginação daquilo que de comum unia os
indivíduos e grupos nacionais. Numa primeira fase, a saga nacional não
só dava centralidade ao Estado como regulador, mas também colocava a
nação e os nacionais num etnocentrismo legítimo: eram os nacionais, a
partir da sua indiscutível ontologia, quem determinava quem eram os
seus “outros”. Os “outros” externos e os “outros” internos. Por exem-
plo, os “outros” externos dos portugueses foram os espanhóis, os fran-
ceses e os ingleses, ora como inimigos fundadores, ora como aliados
incontornáveis. Os “outros” internos foram, por exemplo, os ciganos,
que desde o século XVI pontuam no território nacional e os povos “des-
cobertos”, para falar apenas destes. O discurso da modernização
económica encontrará, porventura, outros “outros” (por exemplo, o cha-
mado “homem tradicional”), cuja diferença cultural os tornava um obs-
táculo ao processo de “civilização” interna. Todavia, é sempre através
do Estado-nação ou em torno dos seus motivos que os “outros”, os “eles”,
são delimitados.
A metanarrativa da modernidade, por seu turno, baseada na Ra-
zão, na Humanidade e na História, fundava, como acima se disse, a pró-
pria narrativa nacional. O que teve como consequência que os “eles”, os
“outros”, fossem também delimitados pelas formas dominantes de ra-
cionalidade, de organização social e de representação do passado e do
futuro, pelo menos tal como as sociedades ocidentais as desenvolveram.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 93

Esta grande narrativa da modernidade, portanto, legitimava, por um


lado, a acção dos Estados nacionais na sua centralidade, por outro, a
determinação de quem são os “eles”, de quem são os “outros”.
Actualmente, mesmo os discursos e as práticas mais envolvidas com o
respeito pela diferença, pela alteridade, são frequentemente vítimas da
matriz moderna de que partem. Continuam a ser estes discursos o locus
em que se determina o que é a diferença, o que é a diferença aceitável
(tolerada) e quem é verdadeiramente o Outro e o eventual “bom” inter-
locutor. Com quem é que se deve dialogar? Será Le Pen um interlocutor
menos válido do que Malcolm X? Será que é possível distinguir entre a
prática cultural da excisão e a decisão de ter um filho surdo (ver acima)?
Com a emergência da “cidadania reclamada”, e dado que esta
dimana, em última instância, do carácter incompleto da “cidadania atri-
buída” do contrato social moderno, o locus de determinação de quem é a
diferença pluralizou-se de tal forma que já não há, aparentemente, modo
de recompor um acordo “nacional” ou mesmo “inter-nacional” sobre
esta questão. A incompletude da cidadania atribuída deriva do facto de
ser intrinsecamente incapaz de traduzir o reconhecimento em cidadania
participada. Os ciganos, por exemplo, se forem reconhecidos como cida-
dãos no sentido universal, vêem a sua participação limitada pela igno-
rância da sua diferença cigana. Ao pluralizarem-se as vozes dos indiví-
duos e dos grupos fazem com que a diferença surja reivindicada nas
primeiras pessoas do singular e do plural: “a diferença somos nós”; a
“diferença sou eu”.

Conclusão: exemplos das novas formas de cidadania — os desafios à gestão


política dos sistemas educativos

A recomposição do contrato social moderno e as formas emergen-


tes de cidadania, a que nos temos vindo a referir como cidadania recla-
mada, colocam subtis dilemas a todos os envolvidos, aos diversos ní-
veis, na gestão política da educação, sobretudo da educação pública.
Principalmente para aqueles que veêm na educação uma forma privile-
giada de mecanismo emancipatório, isto é, os que vêem nos sistemas
educativos instrumentos que podem contribuir (mais ou menos) para a
94 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

autonomia dos indivíduos e dos grupos. O dilema consiste em que o


próprio projecto educativo é uma proposta de “Nós” para “Eles”, e to-
dos os projectos partem, de uma forma ou de outra, da assunção optimista
de que as suas premissas são justas e os seus fins desejáveis. Quando
“Eles” resistem ao projecto, não por dificuldades de teor pedagógico,
mas por opção (“nós não queremos a ‘vossa’ educação!”), os políticos e
os educadores — principalmente os mais generosos — ficam cada vez
com mais frequência esmagados sob o peso dessa resistência que é, por-
tanto, uma recusa.
Veja-se o caso, para exemplificar, da relação entre as comunidades
ciganas e a escola em Portugal. Nos últimos anos, houve um aumento da
frequência da escola por parte das crianças daquela etnia. Muitos analis-
tas referem esse incremento ao teor do contrato no qual se baseia a atri-
buição do rendimento mínimo, isto é, este subsídio só é atribuído às fa-
mílias que encaminhem os seus filhos para a escola. A finalidade (e a
bondade) desta política seria a de que, assim, se torna possível integrar,
pela escolarização, as crianças ciganas tornando-as, por seu turno, po-
tencialmente, adultos mais integrados nos “nossos” grupos sociais e nos
mercados de trabalho. A integração no mercado de trabalho através de
escolarização constitui, como têm enfatizado Lenhardt e Offe (1984), o
primeiro passo na transição de “proletarização passiva” (situação da
destruição progressiva das condições de utilização da força de trabalho)
para “proletarização activa”, isto é, o primeiro passo num processo de
contratualização que inclui como componentes centrais quer a motiva-
ção para o trabalho assalariado (o “querer trabalhar”), quer a atribuição
das condições e das competências necessárias para que o trabalho assa-
lariado possa realizar-se (o “poder trabalhar”). O que acontece é que
algumas vozes na comunidade cigana se erguem no sentido de enfatizar
que a troca “escola pelo rendimento mínimo” é não só uma forma de
chantagem cultural, como também a imposição de uma forma (e ética)
de trabalho, e que as comunidades ciganas têm o direito de educar os
seus filhos de acordo com o seu modo de vida e as normas, valores e
preceitos (dentro dos quais se encontra o impedimento da frequência da
escola por parte das meninas a partir da sua primeira menstruação) que
estão na sua base. A experiência de home schooling nos Estados Unidos
(ver Apple, 2000) mostra que existe uma variedade importante de indi-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 95

víduos e grupos sociais que prefere educar os seus filhos em casa em vez
de arriscar efeitos eventualmente negativos da escola sobre as suas cren-
ças, valores e modos de vida locais. Também é verdade que esse movi-
mento de escolarização doméstica se relaciona com e, em muitos casos,
simboliza uma frustração não tanto com o que existe na escola, mas mais
com aquilo que (diriam eles) não existe, por exemplo, a disciplina, o es-
forço, a avaliação selectiva, etc.
Tudo se parece, então, passar como se os “outros” já não tolerassem
sequer a “tolerância” e a generosidade de que são objecto, precisamente
por se recusarem como objecto e pretenderem assumir a voz de sujeitos
de si. Há nessa atitude uma evidente ligação com a revolta de grupos
sociais que, no passado, punham em causa o desenvolvimento da eco-
nomia capitalista e que reclamavam políticas de redistribuição basea-
das, sobretudo (e como acima já se afirmou) no princípio de igualdade
de oportunidades. Como vimos, a resposta (ainda hoje não só muito in-
completa como ameaçada de novo por um capitalismo de casino indivi-
dualista e imprevisível) desenvolveu-se através da atribuição, pelo Esta-
do-nação, de uma cidadania que era sobretudo social. Mas o que é de
sublinhar aqui é a reclamação agora baseada numa política de reconhe-
cimento da diferença, na reivindicação de uma justiça que não seja sim-
plesmente sócio-económica, mas também cultural. Esta reclamação, ela-
borada com base na(s) identidade(s), repõe uma exigência local que, na
recusa de ser identificada com o território nacional, se assume como iden-
tificável com múltiplos locais estendidos pelo mundo fora.
Apanhados entre o olhar generoso e aparentemente descentrado
face ao “outro” e a recusa deste em ser alvo dessa preocupação, os polí-
ticos e os educadores parecem algo desarmados e desorientados. Desar-
mados porque o sistema de ideias que suportava a sua intenção e as suas
acções parece abater-se sob o seu próprio peso; desorientados porque no
terreno confrontam-se com um sistema educativo cheio de “outros” e de
“outras” aparentemente surdos e indiferentes à generosidade das finali-
dades da educação.
As eventuais saídas dessa situação parecem passar por três consi-
derações. Em primeiro lugar, a “cidadania reclamada” só se pode sus-
tentar sobre a consolidação da cidadania moderna ou “atribuída”. Isto é,
as condições da realização das reivindicações de soberania inerentes à
96 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

“cidadania reclamada” dependem (e são simultâneas) de políticas de


redistribuição: a razão é que não há ‘qualidade’ sem que as questões de
“quantidade” sejam minimamente resolvidas. Em segundo lugar, o pró-
prio “outro” tem de reconhecer a “nossa” alteridade, pois neste conflito
(diálogo) a diferença também somos nós. Todos nos encontramos num
lugar simultaneamente público e privado de transacções comerciais, de
lazer, de prazer, pleno de cores, de odores e de ruídos insubmissos (Stoer
e Magalhães, 2000), pelas mais variadas razões, como diferentes, e é en-
quanto tal que lá nos encontramos (ver adiante, O Lugar do território e a
discussão da metáfora do bazar). A “cidadania atribuída” não pode ofus-
car este facto, o que tende a fazer quando as questões de “quantidade”
não são minimamente resolvidas, isto é, quando não há efectivas políti-
cas de redistribuição. Em terceiro lugar, a educação escolar tem que ser
colocada nos guiões dos actores sociais e culturais e não o contrário. Isto
significa que a escola, ela própria, também tem que se tornar “reclama-
da” e não simplesmente “atribuída”. Por outras palavras, a escola como
meritocracia constitui talvez a mais importante política redistributiva
da sociedade democrática. Mas como política redistributiva, há já algum
tempo parece ter ficado enleada nas suas próprias malhas e ter estanca-
do o seu desenvolvimento. A sua renovação depende da sua capacidade
de descentração, da sua assunção de lógicas de desenvolvimento que
não sejam restritas à lógica do território nacional. Assumir essas outras
lógicas é, por todos os efeitos, refundar a escola, e é aí que o apelo da
“cidadania reclamada” pode constituir uma das suas vertentes principais.
97

O lugar da identidade

Introdução

A questão da identificação e da identidade surge crescentemente


como central na cultura ocidental. Neste trabalho, focaremos a questão
da construção das identidades, tendo como pano de fundo a aceleração,
flexibilização, informacionalização (Castells, 1996-1997) e globalização
dos sistemas de produção, distribuição e consumo e a reflexividade que
vêm emergindo como características centrais das sociedades e institui-
ções contemporâneas (Giddens, 1992; Beck, 1992). Assim, procuraremos
esclarecer quer o carácter relacional dos processos de construção da iden-
tidade, quer a natureza não essencialista dos selves contemporâneos. A
identidade é um processo de criação de sentido pelos grupos e pelos
indivíduos. Neste sentido, o self — tanto o individual como o colectivo
— é um processo no qual a narração e a narratividade assumem um
papel central.
Realçaremos, então, as diferenças que existem no processo de cons-
trução de identidade de acordo com os contextos em que este processo
tem lugar, por exemplo, em contextos tradicionais e contextos pós-tradi-
cionais. Simultaneamente, exploraremos a hipótese que desenvolvemos
num outro trabalho (cf. Magalhães, 2001) relacionada com o hibridismo
das identidades e com a crescente reflexividade que se encontra nas
actuais trajectórias biográficas.
As (im)possibilidades da construção de identidade encontram-se
delimitadas por aquilo que Santos (1995) denomina “espaços estrutu-
rais”, que incluem o espaço doméstico, o espaço de trabalho, o espaço
da cidadania, o espaço comunitário, o espaço do mercado e o espaço
98 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

mundial e que representam, ao mesmo tempo, tanto um lugar relativo


como central na construção da identidade. O que quer dizer que estes
espaços, ao mesmo tempo que proporcionam as matérias-primas para
com as quais, tanto os indivíduos como os grupos constroem as suas
identidades, são também relativos devido ao facto de os “espaços estru-
turais” se encontrarem sempre, eles próprios, num contexto específico
(isto é, variam de acordo com o tempo e com o espaço). Procuramos,
neste trabalho, desenvolver a ideia segundo o qual os cinco “Lugares”
(corpo, trabalho, cidadania, identidade e território) igualmente activam
e, ao mesmo tempo, (des)activam as (im)possibilidades proporcionadas
pelos “espaços estruturais”. Por exemplo:

Danilo é cantoneiro. Falamos com ele enquanto, com a sachola, vai rapan-
do as ervas daninhas nas bermas ao longo do macadame: “[...] não che-
guei a acabar a terceira classe... Não tinha capacidade... para a escola... O
professor embicava comigo... E eu com ele... Não tinha capacidade... Mas
também trabalhava mais que ele... Desde moço pequeno que o meu pai
me punha ao serviço... Ele era com ovelhas, ele era dar o penso aos coe-
lhos... Carregar o carro com o milho... Fazer as mêdas... Trabalhava mais
que o professor... Se — sei lá? — tivesse tido outra vida...’”. (Entrevista com
Danilo in Magalhães e Stoer, 2003)

Danilo, por um lado, assume que “não era nada bom na escola” um
“facto” que ele utiliza para justificar a sua vida de trabalho árduo desde
tenra idade. Por outro lado, levanta a possibilidade de que, se tivesse
tido oportunidade de escolher, a sua vida teria sido outra... Como desen-
volveremos a seguir, a história que conta sobre si mesmo transporta fre-
quentemente a sua história em negativo, a sua anti-história, a que inclui
as possibilidades impossíveis de surgir como tal.
Os “Lugares”, por sua vez, dado que são abstracções das possibili-
dades enquadradas pelo tempo e pela espaço, só ganham vida, enquan-
to tal, em contextos concretos. Estes contextos incluem, como dissemos
na “Introdução”, a família, a escola, o hospital, a prisão, o tribunal, a
vizinhança, etc. É nestes contextos que as possibilidades e as impossibi-
lidades, traduzidas por “Lugares” são activadas ou desactivadas. Este
processo implica a gestão das escolhas disponíveis para os indivíduos e
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 99

grupos e as estratégias para assumir que algumas das escolhas se encon-


tram para lá das nossas possibilidades. Cabe, neste âmbito, recordar o
caso do cantor Michael Jackson, que parece ter feito todo o possível para
se tornar “branco”, o que teve, aliás, como efeito realçar a sua “negritude”.
Outro exemplo, numa direcção oposta, refere-se àqueles que, recusando
a generosidade dos que lhes oferecem acesso à sociedade branca, procla-
mam que são “negros por escolha”.
Os “contextos” que activam os “Lugares” e que, por sua vez, activam
os “espaços estruturais”, são, como dissemos antes, configurações
espacio-temporais que apresentam possibilidades que fazem nascer es-
colhas, tanto para o indivíduo como para os grupos. O contexto da esco-
la é um excelente exemplo deste processo: ao mesmo tempo que delimi-
ta possibilidades, estas encontram-se, elas próprias, limitadas tanto em
natureza como em número. Por exemplo, um estudante que herdou um
capital cultural apreciável (para usar a expressão de Pierre Bourdieu)
não só tem maior gama de oportunidades à sua frente, mas também,
como resultado destas oportunidades, um número mais elevado de es-
colhas reais.
Os Estados-nação modernos atribuíram a este contexto — a escola
— um lugar privilegiado na concretização do processo de formação da
identidade. Como vimos em O Lugar da cidadania, espera-se da escola
que produza indivíduos com uma ligação forte ao grupo nacional iden-
tificado como sendo os cidadãos de um Estado-nação. Este processo de
aculturação, com as suas componentes diferenciadas — o processo de
aprendizagem para ser um bom trabalhador, um bom pai, um bom cida-
dão, aprender a ser disciplinado, a ser cosmopolita — fizeram da escola
um contexto central para a unificação de todas as lógicas inerentes aos
“espaços estruturais”. Neste sentido, a escola tornou-se o contexto privi-
legiado da inclusão, o que levou certos autores, à luz da realidade da
tendência para a exclusão inerente à escola de massas — ligando ainda
esta tendência à reprodução de desigualdades sociais e culturais —, a
falar em “ideologia da inclusão” que, apesar de surgir aparentemente
fundamentada na promoção da igualdade, serve, de facto, às finalida-
des do mercado (Correia, 2001).
100 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

Considere os seguintes textos:

1º texto:
Sentia-me melhor na estrada e nas fazendas. Mas, que poderia realmen-
te compreender? Seria possível explicar a alguém que eu apenas procurava
tornar a ver algo que já vi em tempos? Ver carroças, ver montes de feno,
ver uma pipa, uma persiana, uma flor de chicória, um lenço azul aos qua-
drados, uma cabaça para beber, um cabo de enxada? Também os rostos me
agradavam assim, como sempre os vira: velhas enrugadas, cautos bois,
raparigas na flor de idade, pombais. Para mim haviam passado estações
mas não anos. Quanto mais as coisas e as conversas eram as de então —
mormaças, feiras, histórias de tempos idos, do começo do mundo — mais
me agradavam. Tal como as sopas, as garrafas, as podadeiras, os troncos
depositados na eira. (Pavese, 2002: 52)

2º texto:
[...] sempre vivi aqui. Trabalhava nos campos, nos nossos e nos dos
outros. Aprendi costura, trabalhei como costureira, mas sempre aqui. Tra-
balhei em casa do senhor Conde. Como costureira da senhora Condessa.
Mas trabalhei sempre no campo. Desfolhava, plantava, vindimava, tratava
do gado da casa... O meu pai era lavrador e nós, eu e os meus irmãos fomos
lavradores. Mesmo o meu irmão A, que foi trabalhar para os caminhos de
ferro, era lavrador à mesma. Todos lavradores, tudo gente da terra. (Entre-
vista com M. de Lurdes, in: Magalhães e Stoer, 2003)

Pontos-chave para discussão:

• Pode-se falar de identidades tradicionais? Se sim, quais são as suas ca-


racterísticas principais?
• De onde provêm as identidades tradicionais? Pode-se distinguir entre
identidades formadas no espaço doméstico de formadas no espaço de
trabalho ou no espaço comunitário? (Ver a este respeito o quadro: Mapa
da estrutura-agência das Sociedades Capitalistas no Sistema Mundial,
por Boaventura Sousa Santos, em que este autor identifica seis espaços
estruturais [Santos, 1995: 417]).
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 101

• Que relação existe entre o tempo e o espaço? Como influencia essa rela-
ção a construção da identidade?
• Que significa ser parte de uma comunidade ou ser excluído dela?

A construção da identidade em contextos tradicionais

Em contextos tradicionais, a identidade parece depender de redes


de nomes e de lugares. Identificar-se é referir-se à sua genealogia e des-
vendar o seu lugar de origem. Dubar, refere-se a essas formas de identi-
ficação comunitárias como sistemas de nomes e lugares (2000). O facto
de espaço e tempo serem inseparáveis em contextos tradicionais tornam-
nos ainda mais fortes enquanto lugares identitários. Transmitem uma
plenitude de significado sem momentos vazios. Na verdade, todos os
momentos e lugares possuem um sentido de plenitude, permitindo às
pessoas que passam por eles e que sejam dirigidos por eles, uma forte
segurança de identidade. Determinado lugar é sempre um lugar onde
alguma coisa aconteceu, a propriedade de alguém, que leva a outro lu-
gar, sagrado ou profano e, por esta razão, encontra-se confundido com a
história de alguma pessoa. Acontece o mesmo com o tempo: é sempre
tempo para alguma coisa; é sempre “antes” ou “depois” da plantação,
da procissão de São Miguel o Anjo, da colheita do trigo, da matança do
porco, o tempo das vindimas, etc. O espaço e o tempo descontextualizados
são produtos da modernidade, da urbanização, do relógio mecânico e
do seu tempo universal.
As narrativas identitárias num contexto tradicional parecem cons-
truir e parecem estruturar-se na base do espaço doméstico incluindo a
propriedade e a própria pessoa nas necessidades familiares.

Considere os seguintes textos:

1º texto:
Lembra-te de que o tempo é dinheiro. Aquele que, podendo ganhar dez
xelins por dia a trabalhar, se passeia ou fica no seu quarto a preguiçar
metade do tempo, embora os seus prazeres, a sua preguiça lhe custem seis
102 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

pence, o mesmo não deve limitar-se a contabilizar só esta despesa. Ele


gastou além disso, desperdiçou muito, cinco xelins.
[...] O dinheiro é, por natureza, gerador e profícuo. [...] Aquele que
mata uma truta, destrói a descendência até à milésima geração. O que
assassina uma moeda de cinco xelins, destrói tudo que ela poderia produ-
zir: montes de libras esterlinas.
[...] Depois da assiduidade ao trabalho e da frugalidade, nada contribui
tanto para a progressão dum jovem no mundo como a pontualidade e a
equidade nos seus negócios.
É preciso salvaguardar-se de que as acções mais insignificantes possam
influenciar o crédito de uma pessoa. O barulho do seu martelo às cinco
horas da manhã ou às oito da noite, tornará o teu credor amigável mais
seis meses; mas se ele te vir a jogar bilhar, ou se ouvir a tua voz numa
taverna enquanto deverias estar a trabalhar, isso incitá-lo-á a exigir-te o
seu dinheiro logo pela manhã.
Isto prova, além do mais, que tu te lembras das tuas dívidas; aparecerás
como um homem escrupuloso e honesto, o que aumentará ainda mais o
teu crédito. (Benjamin Franklin, 1748, Advice to a Young Tradesman)

2º texto:
Na barreira o patinhar do rebanho continuava no frio da manhã. Distin-
guiam-se os serralheiros pelos seus casacões azuis, os pedreiros pelas ves-
tes brancas, os pintores pelos seus casacos, debaixo dos quais apareciam
longas blusas. Essa multidão apresentava, de longe, um aspecto confuso,
um matiz neutro onde dominavam o azul pálido e o cinzento sujo. De vez
em quando um operário parava para acender o cachimbo, enquanto ao seu
lado outros continuavam a caminhar sem um sorriso, sem uma palavra
dita a um camarada, as faces terrosas, olhando sempre em frente para
Paris que, um a um os devorava, pela rua escancarada do bairro Poissonière.
(Zola, 1977: 9-10)

3º texto:
Segundo esta doutrina fundamental, todas as nossas especulações, quais-
quer que sejam, estão inevitavelmente sujeitas, quer no indivíduo, quer
na espécie, a passar sucessivamente por três Estados teóricos diferentes
que as habituais denominações de teológico, metafísico e positivo pode-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 103

rão precisar suficientemente, pelo menos aos olhos dos que tiverem com-
preendido bem o seu verdadeiro significado geral. Ainda que, sob todos os
aspectos indispensável, o primeiro Estado deve ser sempre considerado, de
hoje para o futuro, como puramente provisório e preambular; o segundo,
que não constitui, realmente, senão a dissolução daquele, nunca compor-
ta senão um destino transitório, a fim de gradualmente conduzir ao tercei-
ro; é neste, único totalmente normal, que sob todos os aspectos consiste o
regime definitivo da razão humana. (Comte, 1947: 46)

Pontos-chave para discussão:

• Como vimos antes tanto no Lugar do Trabalho como no Lugar da Cida-


dania, a modernidade e o capitalismo relacionam-se progressivamente a
partir do sec. XIX. Quais são as consequências desta relação para a
formação de identidades?
• Quais são os efeitos do aforismo “tempo é dinheiro” para os indivíduos
e grupos (por exemplo para o proletariado)?
• Se nas sociedades tradicionais o espaço doméstico, o espaço comunitário
e o espaço de trabalho coincidem, isto também se passa nas sociedades
capitalistas modernas? Em que lugar predomina a razão?
• Como se formam as modernas identidades e como se legitimam pela
razão?
• Que características identitárias definem a inclusão/exclusão nas socie-
dades capitalistas modernas?

A construção da identidade no contexto da modernidade capitalista

A modernidade é uma forma de pensar e de organização de vida


que, desde o século XVII, espalhou-se da Europa para espaços cada vez
mais vastos. No século XIX, este paradigma sociocultural relacionou-se
com o capitalismo e os indivíduos/cidadãos foram progressivamente
reconfigurados como empregados ou trabalhadores, como assalariados
em geral. Para o ideal emancipatório e para a imagem da caminhada
heróica do indivíduo moderno no sentido da emancipação pelo direito
104 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

da Razão, foram sendo desenhados cenários mais realistas como aque-


les descritos por Zola (ver acima).
A identificação por via do lugar do trabalho, através da actividade
laboral, tornou-se progressivamente central para os discursos de identi-
dade. As actividades laborais evidenciaram-se como parte importante
do sistema de produção capitalista; pressupõem um operário desquali-
ficado, um artesão sem arte, um mestre sem mister, o trabalho como
mercadoria. Os discursos de identidade surgem cada vez mais organiza-
dos à volta desta actividade ocupacional (“sou um electricista”, “sou um
padeiro”, etc. — ver O Lugar do trabalho). Cada indivíduo e as suas
estratégias de vida desenvolvem-se progressivamente na base de uma
identidade criada dentro e através da actividade laboral e no lugar que
cada qual ocupa no mundo da produção como se este último moldasse
as características de cada um.
No romance Mulheres apaixonadas, de D. H. Lawrence, a persona-
gem Birkin afirma que mesmo os desejos dos indivíduos se expressam
na base da sua situação de classe:

[...] temos o ideal dum mundo perfeito, correcto, eficaz e decente. Mas, em
seguida, cobrimos a terra de imundíces; a vida é um pântano de insectos
debatendo-nos no charco, a fim de que o mineiro tenha um piano na sala
e você um mordomo e um automóvel na sua casa modernizada; e todos,
como nação, podemos divertir-nos no Ritz ou no Empire, com a Gaby
Deslys e com os jornais de domingo. É lúgubre, meu amigo!
[...]
— Não considera você o piano do mineiro (segundo a sua expressão) como
o símbolo de uma ambição verdadeira, o desejo de qualquer coisa mais
alta na vida do operário?
— Mais alta? Sim. Perturbadoras alturas da grandeza absoluta! Eleva-o bas-
tante aos olhos do mineiro seu vizinho. Vê-se refractado no conceito deste
último, como que aumentado através da neblina... umas poucas de vezes o
comprimento do piano... e fica satisfeito. Vive para manter essa ilusão, que
é a sua própria imagem reflectida na opinião pública. Você não faz diferen-
ça. Se, aos olhos dos seus semelhantes é pessoa de importância, não é de
menor importância com relação a si mesmo. Eis a razão pela qual trabalha
tão afincadamente nas minas. Se for capaz de extrair carvão suficiente para
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 105

cozinhar cinco mil jantares por dia, é cinco vezes mais notável do que se
produzisse apenas para o seu próprio jantar. (Lawrence, 1970: 63-4)

O espaço do trabalho estruturado pelo industrialismo é dúbio no


que concerne à formação dos selves. Por um lado, ao organizar a activi-
dade ocupacional sob a forma de carreiras, dá à pessoas uma dimensão
“a longo termo” (Sennett, 2001), dado que elas poderiam articular com
relativa segurança as suas narrativas identitárias. Por outro lado, pela
via do fordismo-taylorismo vista como uma forma de organização do
processo de trabalho, proporciona um contexto no qual o trabalho é sig-
nificativamente desvalorizado (cf.: Lugar do trabalho).
Efectivamente, a função das carreiras como um tipo de “casulo
protector”, como “uma defesa de protecção que filtra os perigos poten-
ciais” (Giddens, 1991: 127) são cruciais para a construção de segurança e
de sentido. Proporcionam uma confiança básica, isto é, a confiança na
continuidade dos outros e do mundo objectivo, uma confiança que fun-
ciona na base da garantia da possibilidade de narrativas de identidade
consistentes. Sennett, a partir de uma entrevista com um americano em
1970, afirma:

O que mais me impressionara em Enrico e na sua geração fora a


lineraridade do tempo das suas vidas: ano após ano a trabalhar em em-
pregos cujo dia-a-dia raramente variava. E ao longo dessa linha de tempo,
os resultados eram cumulativos: Enrico e Flavia verificavam todas as se-
manas o aumento das suas poupanças e mediam a sua domesticidade pelos
melhoramentos e pelos acrescentos que tinham feito à sua casa rural. Fi-
nalmente, o tempo em que viveram era previsível. As grandes convulsões
da Grande Depressão e da Segunda Grande Guerra tinham desaparecido,
os sindicatos protegiam-lhes os empregos; embora tivesse apenas quaren-
ta anos quando o conheci, Enrico sabia exactamente quando se reformaria
e quanto dinheiro teria. (Sennett, 2001: 26)

O outro aspecto, a desqualificação do trabalho através da sua redu-


ção a um número mínimo de gestos, parece, em compensação, corroer a
segurança ontológica proporcionada pela estabilidade da carreira pro-
fissional. O trabalhador industrial não assume a narração como quem
controla o seu trabalho. Na verdade, o carácter de muito do trabalho in-
106 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

dustrial encontra-se ameaçado pela repetição estupidificante e quase


totalmente sem sentido. No entanto, a falta de interesse resultante da
rotinização das tarefas de produção nas manufacturas parece ser com-
pensada por algum tipo de capacidade de previsibilidade que a inserção
numa carreira proporciona aos sujeitos.
Quando o Lugar de trabalho passou do doméstico — onde se en-
contrava situado nas sociedades pré-modernas — para o espaço indus-
trial —, o seu lugar próprio numa sociedade capitalista industrial —, esta
mudança reconfigurou fortemente as identidades dos que habitam este
lugar. Todavia, as narrativas familiares encontram-se frequentemente es-
truturadas à volta da história do trabalho de outros membros da família.

Considere os seguintes textos:

1º texto:
Cissako gosta de viver aqui (em Paris). Mas, se pudesse escolher, vivia
no Mali, junto da sua família gigante que partilha a mesma casa: três
mulheres e onze filhos entre os dois e os vinte e três anos. Por ele, a
família não era tão grande, uma mulher bastava-lhe. Mas os pais insistiam
para que casasse de novo e ele, bom filho, não quis contrariá-los: casou
uma vez, mais outra e mais outra. “No Mali é assim, temos de seguir a
tradição e respeitar a palavra dos mais velhos”, diz Cissako. Este africano
que chegou a Paris em 1979 é um fiel seguidor da tradição africana que
aprendeu e nem estes vinte anos em França o fizeram mudar de opinião
em relação a temas como a excisão. Ele mandou excisar as oito filhas uma
semana após o nascimento e explica o porquê: “se as mulheres não forem
excisadas em pequenas, desejam os homem e, aí, nós já não conseguimos
ter três mulheres [...] Temos de manter a nossa tradição familiar e conju-
gal” [...].
O tema da excisão é quente em França como em qualquer país que
acolha no seu seio comunidades com práticas culturais que violem o que
está definido como “direitos humanos”. Cissako sabe-o e é por isso que
defende que, em França, as comunidades estrangeiras não devem praticar
a excisão. “Quem tenha filhas em França deve ir imediatamente ao seu
país fazer a excisão, enquanto elas ainda são pequenas, e depois voltar.
[...] Em França, devemos viver como os franceses”, remata. E é isso mesmo
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 107

que faz sempre que sai do foyer: despe a longa túnica azul com que nos
recebe e enfia umas calças claras, com camisa bem engomada e blusão
beige. “Sempre que ando na rua, visto-me como os ocidentais, porque não
tenho que dar nas vistas, devo ser como a maioria. No foyer é outra coisa,
é como se estivesse em minha casa”, explica. (Godinho, 2002)

2º texto:
Desde que deixei o Líbano, em 1976, para me instalar em França, per-
guntam-me muitas vezes, com as melhores intenções do mundo, se me
sinto “mais francês” ou “mais libanês”, respondo invariavelmente: “Um e
outro!” Não por um qualquer desejo de equilíbrio ou equidade, mas por-
que, se respondesse de outro modo, estaria a mentir. Aquilo que faz que eu
seja eu e não outrem é o facto de me encontrar na ombreira de dois países,
de duas ou três línguas, de várias tradições culturais. É isso precisamente
o que define a minha identidade. Tornar-me-ia mais autêntico se amputas-
se uma parte de mim mesmo?
Aos que me fazem a pergunta, explico pois, pacientemente, que nasci
no Líbano, aí vivi até aos 27 anos, que árabe é a minha língua materna,
que foi na tradição árabe que descobri Dumas, Dickens e As viagens de
Gulliver, e que foi na minha aldeia das montanhas, a aldeia dos meus
antepassados, que conheci as primeiras alegrias de menino e ouvi certas
histórias em que me iria inspirar, mais tarde, para os meus romances.
Como poderia esquecê-lo? (Maalouf, 1999: 9)

3º texto:
Maya é uma japonesa nascida em Tóquio que, “aos quinze anos já
tinha aprendido como ser japonesa”. Foi para os Estados Unidos de onde
o seu pai era natural, depois foi dois anos para Taiwan, apaixonou-se por
um inglês e foi viver para Londres. Elegeu Paris entre todas as cidades
que conhecia por lhe parecer a que melhor enquadrava as suas múltiplas
vidas:
Agora, entre todas as cidades do mundo, Maya escolheu Paris, onde
“tudo o que faço está bem. Em França vale tudo!” Claro que as coisas são
assim porque não tentou ser francesa. “Gosto de me considerar uma ciga-
na... Sinto que sou feita de cores diferentes. Não sei dizer que parte é que
sou: a americana ou a japonesa. Sou a soma, sou o total”. Passou a ser
apresentadora para a televisão japonesa. Quando entrevista um ocidental
108 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

em inglês, é completamente ocidental, mas quando coloca a maquilhagem


e apresenta a entrevista em japonês, na NHK, os seus olhos iluminam-se
de uma maneira diferente, a linguagem transforma as suas expressões faciais
e parece ser uma pessoa diferente. “Sou um camaleão”, diz. A vantagem
está em que se sente confortável numa muito maior gama de caracteres.
(Zeldin, 1996: 48)

Pontos-chave para discussão:

• Cissako, no primeiro texto, parece identificar-se com dois contextos de


identidade completamente diferentes e conflituosos: a sociedade france-
sa e o seu lugar de origem no Mali. Como concilia ele os efeitos desses
contextos diferentes de identidade?
• Maaluf, no segundo texto, afirma que a sua identidade o coloca na en-
cruzilhada de vários contextos de identidade (países, língua, religião,
etc.). Será que a sua identidade resulta desta mistura? Ou é esta mistu-
ra a sua identidade?
• Maya, no terceiro texto, levanta a questão de um novo Lugar para a
formação da identidade: o Lugar do mundo. O que quererá ela dizer
quando afirma: “Eu sou um camaleão?”.
• Em contextos tradicionais, ser excluído significava ser identificado fora
das redes da família e da comunidade; nos tempos modernos, ser excluí-
do significou, acima de tudo, ser identificado fora do Lugar da cidada-
nia, do Lugar do trabalho. Que significará ser excluído em contextos
ocidentais pós-fordistas contemporâneos?

A pluralização da narrativa do Estado-nação e os espaços em que a identidade


se forma

A modernidade, tanto no que respeita à emancipação como à regu-


lação, prometeu a desalienação dos indivíduos e a sua transformação
em cidadãos com uma “consciência esclarecida”. Dessa forma, ser in-
cluído na sociedade moderna pressupunha ser um indivíduo conscien-
te, membro de uma nação e súbdito de um Estado. Ter uma identidade
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 109

era pertencer a si próprio e ao Estado-nação. Existia uma forte relação


entre as autonarrativas e as narrativas do Estado-nação, isto é, o self cor-
respondia aos desejos do Estado-nação e vice-versa (ver O Lugar da ci-
dadania).
Nos contextos contemporâneos, a correspondência entre a
autonarração e a narrativa do Estado começou a enfraquecer. A narrati-
va do Estado-nação tem vindo a implodir por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, os Estados-nação ocidentais através da reflexão so-
bre acontecimentos históricos — frequentemente realizada por intelec-
tuais (ver, por exemplo, os excelentes trabalhos de Immanuel Wallerstein
e de Michel Foucault bem como o trabalho inovador de Benedict
Anderson, de 1983, em que ele cunha o termo “comunidades imagina-
das”) — desvelaram as narrativas do Estado-nação como dispositivos
de legitimação dos seus aparentemente gloriosos feitos, mas que foram,
muitas vezes, e na prática, pouco mais do que a justificação da escrava-
tura, da colonização, da exploração capitalista, etc. Em resultado disto, o
Estado-nação enquanto mecanismo discursivo capaz de reorganizar to-
dos à volta da sua bandeira, começou a perceber a sua crescente fragili-
dade. Em segundo lugar, como é dito antes em O Lugar da cidadania, as
próprias “diferenças” começaram a rebelar-se contra os ditames episte-
mológicos, sociológicos e políticos do Estado-nação. Com base na locali-
dade e na diferença, as narrativas nacionais foram desafiadas por outras
narrativas, sendo elas ecológicas, feministas, referentes a preferências
sexuais, estilos de vida, populações indígenas, etc. O resultado da con-
fluência destas duas razões foi um processo de enfraquecimento da nar-
rativa nacional como instrumento de legitimação para actos de violên-
cia, redistribuição da riqueza e poder. Por outras palavras, a pluraliza-
ção das narrativas no interior do Estado-nação teve lugar sem ter desa-
parecido a própria narrativa do Estado-nação.
A autonarração sentiu, por outro lado, o processo de pluralização
dos espaços estruturais onde se forma a identidade. Neste sentido, cada
lugar é mais heterogéneo e eventualmente fragmentado. Como disse-
mos antes em O Lugar da cidadania, o espaço estrutural delimitado pela
acção do Estado está a ser reconfigurado pelo que nós designámos “a
cidadania reclamada”, isto é, a cidadania cujos contornos se desenvol-
110 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

vem com base na diferença (por isso, a cidadania pode ser reclamada
não só pela afirmação “sou francês”, mas também pela afirmação “sou
homossexual”) (ver também Magalhães e Stoer, 2003). Este processo de
reconfiguração apresenta claras implicações para o processo de plurali-
zação dos indivíduos: por exemplo, é mais ou menos importante para a
estruturação do self ser francês ou ser homossexual?
Como vimos em O Lugar do trabalho, o trabalho, tal como é con-
ceptualizado no capitalismo moderno, é um processo que se está a
reconfigurar. Ao se tornarem flexíveis e imprevisíveis, as carreiras pro-
fissionais já não constituem, como anteriormente, uma base sólida sobre
a qual a identidade se podia construir. As profissões articulam-se com
trajectórias de vida, mas não definem os indivíduos. No espaço domés-
tico, criam-se também condições para a pluralização dos selves. Isto acon-
tece, por exemplo, das seguintes formas: desafios à “estrutura feudal”
(Beck, 1992) da família; crescente complexidade do que é considerado
família, diferenças que invadem a família (ver a esse respeito o exemplo
do casal de lésbicas surdas em O Lugar da cidadania) e a despenalização
dos corpos na família (ver O Lugar do corpo).
É ainda crucial para a formação de identidades a crescente impor-
tância daquilo a que nós nos referimos (na linha de Santos, 1995) como o
lugar mundial. Por um lado, as identidades do Estado-nação são aspira-
das para cima (sem necessariamente perderem a sua soberania) por gran-
des identidades regionais em formação (tais como a União Europeia);
por outro lado, ao mesmo tempo que isto acontece, as identidades locais
são também afectadas e recompõem-se em relação às identidades mais
amplas (frequentemente “a favor” ou “contra”). O crescente protagonis-
mo do Lugar mundial não reduziu forçosamente o papel das comunida-
des locais. O poder da comunidade, em vez de ser paradoxal (no que se
refere à globalização) torna-se, pelo contrário, uma das consequências
do próprio processo de globalização, quer dizer, é simultaneamente lo-
cal e, neste sentido, está a lidar com um processo de “glocalização”. To-
memos, por exemplo, o caso das estátuas de Buda no Afeganistão que se
tornaram o centro de uma crise mundial devido à expressão das identi-
dades religiosas locais que quiseram, assim, fazer valer a sua diferença
face à hegemonia ocidental.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 111

O ornitorrinco como uma metáfora orientadora


Um dos companheiros do capitão Cook ofereceu um exemplar ao zoólo-
go Blumenbach que lhe deu o nome, que significa precisamente “bico de
ave”. Um “erro da natureza!”, um “erro de Deus!” disse-se então. O
Ornithorhynchus é um mamífero da ordem dos monotrematos que pode
ser encontrado em pequenos cursos de água e nos lagos do sudoeste da
Austrália e da Tasmânia. Com cerca de 40 a 50 cm de comprimento é um
ovíparo. Tem, aliás, um bico córneo semelhante ao do pato, patas
espalmadas e o rabo chato, o que lhe permite cavar galerias e comparti-
mentos perto da água. Aliás, por isso os autóctones lhe chamavam “tou-
peira-de-água”. (Magalhães e Stoer, 2003: 2)

O ornitorrinco não é a combinação de um pato atarracado com um


castor que, por sua vez, é atarracado como uma toupeira. Não é uma
colagem, mas, antes, uma entidade própria. Neste sentido, é interessan-
te distinguir entre Cissako, Maalouf e Maya. A identidade de Cissako
parece ser uma bricolage de diferentes selves: está perfeitamente cons-
ciente que o seu self mali existe independentemente do seu self francês.
Parece, no entanto, manipular os contextos de acordo com os seus dese-
jos, isto é, parece “usar” os contextos para construir a sua própria iden-
tidade. Todavia, poder-se-ia argumentar que o que se passa neste caso é
exactamente o contrário: podemos analisar o caso em termos de serem
os contextos que determinam que self é que Cissako assume num deter-
minado momento. Não é Cissako que manipula os contextos; são antes
os contextos que manipulam Cissako.
Maalouf, por sua vez, considera-se também produto de um proces-
so de bricolage. Declara veementemente que, em todos os contextos, todo
ele está presente. Mais: insiste que nenhuma parte de si pode ser aliena-
da sem ele perder a sua identidade. Podemos afirmar, assim, que Maalouf
manifesta a existência de uma luta com os diferentes contextos e está
ansioso por impor o seu controlo sob estes contextos.
Finalmente, Maya afirma ser um “camaleão”, assumindo natural-
mente que a sua aparência muda em conformidade com o contexto. Neste
sentido, vive todos os contextos como se não houvesse tensões entre o
contexto e os seus diferentes selves. Todavia, não existem “selves verda-
112 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

deiros”, como algumas teorias psicanalíticas parecem sugerir. Pelo con-


trário, é o grau de reflexibilidade de Maya que aqui está em jogo. Pode-
mos entender esta posição de Maya através da afirmação de teor psica-
nalítico: “em lugar do Id colocar o Ego”. Assim, a pluralização de identi-
dades não pode ser reduzida à existência de personalidades múltiplas,
um fenómeno do foro do Id e não do Ego: Podemos, dessa forma, argu-
mentar que a identidade múltipla de Maya parece ter sido por ela leva-
da a tal ponto que se tornou, não um camaleão como ela diz, mas sim
um ornitorrinco!

Conclusão

Em contextos pós-fordistas, podemos argumentar que a construção


da identidade acontece “de baixo para cima”, no sentido em que ela é
determinada menos pelos espaços que contextualizam essa construção e
mais pela iniciativa dos que proporcionam agência a esses espaços. A
construção de narrativas de identidade activa e/ou integra espaços
identitários no projecto do self como um fornecedor de sentido. No outro
lado desse processo, encontra-se a construção das “identidades de ex-
clusão” que conscientemente rejeitam esses espaços. Em nome de uma
narrativa identitária. Por exemplo, Malcolm X, como vimos antes em O
Lugar da cidadania, declara a sua identidade com base na sua negritude,
que ele considera superior à identidade branca apesar de ter sido essa a
base da sua exclusão como negro da sociedade americana. Outro exem-
plo pode ser encontrado no caso dos ciganos em Portugal, que deseja-
vam produzir um dicionário da língua Caló (uma variante ibérica do
romeno). O dicionário deveria servir para facilitar o diálogo entre duas
comunidades falando línguas diferentes — a comunidade cigana Romani
e a comunidade portuguesa —, ainda que partilhando o mesmo espaço
de cidadania. Um grupo de ciganos criticou, no entanto, o projecto por
ele pôr em risco as estratégias de sobrevivência ciganas. Disse um mem-
bro deste último grupo: “O secretismo da linguagem Caló é vital para a
sobrevivência do grupo. O que está em jogo não é só uma questão de
diálogo e comunicação”. Em resultado disto, o estatuto de “não-cida-
dão” (Agamben, 1993) ou o estatuto de cidadão não participante foi con-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 113

siderado melhor opção do que autorizar o grupo dominante a ter acesso


aos meios de comunicação do grupo subordinado.
Argumenta-se aqui que todas as identidades construídas em con-
textos pós-fordistas correspondem a uma relação reflexiva que os selves
mantêm uns com os outros e, neste sentido, o indivíduo e/ou o grupo é
a história que cada self conta a respeito de si próprio. Estas histórias de-
sempenham um papel fundacional e, por isso, ontológico, dado que dão
sentido e legitimidade à posição e à acção social dos indivíduos.
Esta afirmação poderia ser vista como profundamente idealista se a
entendêssemos como a redução de um contexto e das suas respectivas
determinações estruturais (através das quais os indivíduos se confron-
tam a si próprios) à sua tradução em discurso. No entanto, as determina-
ções e constrangimentos surgem dos contextos, ao mesmo tempo como
elementos narrativos e como o lado “negativo” da narrativa. Este facto é
particularmente evidente nas justificações dadas pelos sujeitos nas suas
narrativas para as escolhas que fizeram. Como Sarup sugere, as histó-
rias que contamos sobre nós próprios e acerca das escolhas que fizemos
deixam por detrás, como que um negativo de uma fotografia, todas as
outras histórias e escolhas que nós não contamos, que não fizemos e que
nem sequer surgiram como possibilidades:

[...] penso que se pode dizer que a identidade não é auto-suficiente; é neces-
sariamente completada por uma certa ausência, sem a qual não existe. Pare-
ce útil perguntar às identidades o que é que elas implicam e o que é que não
dizem. Ou à volta ou no limiar, o explícito requer o implícito. Tal como no
discurso, para se dizer alguma coisa, há outras coisas que não devem ser
ditas; poderíamos dizer assim: para se ser alguma coisa há outras que se
não pode ser. O que é importante na identidade não é aquilo que se pode
dizer, mas sobretudo aquilo que se não pode ser. (Sarup, 1996: 24)

O que faz da identidade um assunto tão central como “Lugar” é a


sua crescente reflexividade. Os indivíduos e os grupos parecem estar
cada vez mais conscientes do processo de formação identitária e das suas
possibilidades de intervir sobre ele. Por outro lado, onde antes encontrá-
vamos certezas — “Sou da classe média, branco, anglo-saxónico, protes-
tante, sexo masculino e urbano” — tornou-se agora mais incerto. “Sou
114 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

da classe média?”, “Sou anglo-saxónico?”, “Sou branco?”, “Sou urba-


no?”. Quer dizer, sou, ou quero ser, alguma dessas identidades ou todas
elas? A pluralização de identidades, que referimos antes, leva-nos a uma
situação em que é necessário “(h)abitar pelo menos duas identidades,
falar (pelo menos) duas línguas de cultura, traduzir e negociar entre elas.
As culturas do hibridismo são um dos tipos distintivos das identidades
que se produzem na era da modernidade tardia [...]” (Hall, 1992: 310).
115

O lugar do território

Considere os seguintes textos:

1º texto:
O leitor actual pode pegar numa tradução de A República, ou da Política
de Aristóteles; verá Platão a dizer que a sua cidade ideal deve ter 5000
cidadãos, e Aristóteles, que cada cidadão deve poder conhecer de vista
todos os outros; e com certeza que há-de sorrir com estas fantasias filosó-
ficas. Mas Platão e Aristóteles não são fantasistas. Platão idealiza uma
polis segundo a escala helénica normal; de facto, esta afirmação até impli-
ca que muitas das poleis gregas existentes são demasiado pequenas —
muitas tinham menos de 5000 cidadãos. Aristóteles diz, no seu divertido
estilo [...], que uma polis com dez cidadãos seria impossível, porque não
seria auto-suficiente, e que outra com cem mil seria um absurdo, porque
não poderia governar-se convenientemente. (Kitto, 1980: 109)

2º texto:
Para o homem religioso, o espaço não é homogéneo: o espaço apresenta
rupturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das
outras. [...] há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”,
significativo — e há outros espaços não sagrados, e por consequência sem
estrutura nem consistência, em suma: amorfos. [...] Em contrapartida,
para a experiência profana o espaço é homogéneo e neutro: nenhuma
ruptura diferencia qualitativamente as diversas partes da sua massa. O
espaço geométrico pode ser cortado e delimitado seja em que direcção for,
mas nenhuma diferenciação qualitativa, portanto nenhuma orientação é
dada da sua própria estrutura. [...].
Tal como o espaço, o tempo também não é, para o homem religioso,
nem homogéneo nem contínuo. Há, por um lado, os intervalos de tempo
116 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

sagrado, o tempo das festas (na sua grande maioria, festas periódicas);
por outro lado, há o tempo profano, a duração temporal ordinária na qual
se inscrevem os actos privados de significação religiosa. Entre estes dois
tipos de tempo, existe, bem entendido, solução de continuidade, mas por
meio de ritos o homem religioso pode “passar”, sem perigo da duração
temporal ordinária para o tempo sagrado. (Eliade, s/d., 35-36; 81)

3º texto:
O estranho e o forasteiro, nas sociedades tradicionais, acabam por se
identificar, surgindo frequentemente com a marca do caos e do não desejá-
vel. Por exemplo, numa entrevista realizada com um cantoneiro, ex-imi-
grante na França, obtivemos o seguinte: “Estive emigrado, eu, a minha pa-
troa, o meu cunhado e a minha irmã. Eu e ele trabalhámos nas obras. Elas
foram servir. Perto de Paris... A maior parte do tempo vivemos perto de
Paris... Sempre mortinho para me vir embora. Nem franceses nem france-
sas. As francesas então... eram umas porcas... A minha mulher e a minha
irmã bem contavam... Lá não há mulheres sérias... Às vezes, à noite dava
a minha voltinha... Uma podridão. Vim em 1980... Deixa ver... Sim, em
1980. Trouxe os filhos... Eles não queriam, já eram meios franceses... Mas
vieram... E vão à missinha como manda a Lei.” (Magalhães e Stoer, 2003b)

Pontos-chave para discussão:


• Nas sociedades pré-modernas, como é que o território se relaciona com a
comunidade?
• Como se estrutura a relação temporal entre o tempo sagrado e profano
nas sociedades tradicionais?
• Por que o espaço é considerado não-homogéneo nas sociedades tradi-
cionais?
• Qual é a fonte principal de exclusão social nas sociedades tradicionais
vista da perspectiva de espaço-tempo?

Território como constructo social

Ao abordar o Lugar do território, parece importante encarar o terri-


tório como um construção social. Isso significa, em primeiro lugar, que
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 117

não estamos perante um conceito neutro, como se se tratasse de um con-


ceito universal e único para aqueles que o enunciam. Por exemplo, os
gregos concebiam o seu território como um espaço delimitado pela polis.
A dimensão da cidade e o número dos seus habitantes deveria ser tal
que, do seu ponto mais elevado, pudessem ser abarcados com o olhar.
Na Idade Média, o território, nas sociedades ocidentais, foi visto do ân-
gulo da identidade com o cristianismo. A palavra de Deus e a cidade de
Deus eram território cristianizado. O trabalho de Santo Agostinho De
Civitate Dei defende que a história da humanidade se fez da luta entre
duas cidades ou reinos: a cidade da Terra e a da cidade de Deus, o reino
da carne e o reino do espírito. Em ambos os casos — para os gregos e
para os tempos medievais —, o território é determinado pela sua apro-
priação por parte da comunidade e é, pois, político nesse sentido.
O tempo e o espaço em sociedades tradicionais foram organizados
na base de dualidades tais como o tempo/espaço sagrados e o tempo/
espaço profanos. A sociedade determinaria, então, certos momentos e
certos espaços como centrais para a vida da comunidade. A própria vida
dos indivíduos estava organizada à volta de momentos especiais (segmen-
tos de tempo) e espaços (segmentos de espaço). Neste sentido, o tempo e o
espaço estavam estruturalmente organizados na base de rituais que ti-
nham a repetição como a sua finalidade. É a repetição do acto fundador,
tanto da sociedade como dos seus sistemas de crenças, que sublinha o
tempo e o espaço sagrados. O tempo e o espaço profanos são definidos
com base no que não é sagrado, isto é, o que é profano é o que constitui o
outro lado do sagrado e é definido em relação a ele. Tanto o espaço e o
tempo sagrados como os espaços e os tempos profanos ocupam todo o
tempo e todo o espaço, o que significa que, nas sociedades tradicionais,
não existem momentos nem espaços vazios. O território, neste sentido,
encontra-se impregnado de significações simbólicas para a comunidade
que, pelo seu lado, converte o território na “nossa” terra.
Nesse contexto, o estranho e o território exterior à comunidade são
uma ameaça, por exemplo, de caos, e são entendidos na maioria dos
casos como tendo um estatuto inferior. Ser incluído é ser parte da árvore
familiar, da comunidade, parte da sua história genealógica e, desta for-
ma, identificável com um lugar e com um nome. Deste modo, nas socie-
dades sedentárias, os nómadas são vistos como uma ameaça potencial
118 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

que, mais tarde, no Estado-nação sofreram pressões de um Estado


normalizador, que os quis integrar no seu ímpeto regularizador. Os po-
vos nómadas foram frequentemente vistos como perigosos, não só por-
que eram inidentificáveis em termos de nome, mas também em termos
de espaço. A inclusão/exclusão na comunidade verifica-se pela atribui-
ção de um Lugar hierárquico ao indivíduo ou ao grupo. Assim, o territó-
rio não-homogéneo é, em si próprio, uma fonte de inclusão/exclusão.
Desde que se nasce num determinado Lugar, existe a expectativa de que
lá se permaneça ou se seja obrigado a lá ficar.

Considere os seguintes textos:

1º texto:
O tempo continuou a estar ligado ao espaço (e ao lugar) até que a
uniformidade da medição do tempo pelo relógio mecânico foi igualada
pela uniformidade na organização social do tempo. Esta mudança coinci-
diu com a expansão da modernidade e só foi completada no século presen-
te. Um dos aspectos principais deste processo é a estandardização dos
calendários à escala mundial. Todos nós seguimos, agora, o mesmo sistema
de datação [...]. Um segundo aspecto é a estandardização do tempo de
umas regiões para as outras. Mesmo nos finais do século XIX, regiões dife-
rentes de um mesmo Estado tinham “tempos” diferentes, enquanto entre
as fronteiras dos Estados a situação era ainda mais caótica.
O “esvaziamento do tempo” é em grande medida a pré-condição para o
“esvaziamento do espaço”, tendo, por isso, uma prioridade causal sobre
este. [...] a coordenação através do tempo é a base do controlo do espaço.
O desenvolvimento do “espaço vazio” pode ser entendido em termos da
separação do espaço em relação ao lugar. [...] Nas condições da moderni-
dade, o lugar torna-se cada vez mais fantasmagórico: quer isto dizer que o
local é completamente penetrado e modelado por influências sociais muito
distantes. (Giddens, 1992: 14) (Grifos no original)

2º texto:
A identidade política é baseada na cidadania que se encontra ligada ao
território. Esta assumpção implica dois aspectos. Antes de mais, a cidada-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 119

nia implica algum tipo de controlo democrático assumido, mesmo em mui-


tos Estados-nação que são na prática autoritários e repressivos; o que
contrasta com os sujeitos que identificam a relação dos indivíduos com
regimes dinásticos. A soberania provém, pelo menos em teoria, do cidadão
e não reside no monarca em funções. Em segundo lugar, o cidadão é o
habitante de um território particular; ao contrário das cidades-Estado gre-
gas onde a cidadania era baseada na estratificação social (isto é, os cida-
dãos livres opunham-se aos escravos). Os conceitos baseados na cidadania
étnica opõem-se aos conceitos de cidadania baseados no território. De
facto, as características dos Estados-nação são que todos os conceitos de
cidadania estão baseados no território. Nos lugares em que a cidadania se
baseia na origem étnica, como na Alemanha, o direito à cidadania num
determinado território é baseado na etnia. Noutros casos (como, por exem-
plo, a França) todos os habitantes de um território particular têm direito
à cidadania desde que adquiram a cultura nacional. O significado de con-
ceitos étnicos de cidadania não se encontra no contraste com os conceitos
baseados no território, mas, sim, na ligação da etnicidade com o territó-
rio. (Kaldor, 1995: 71) (Grifos no original)

3º texto:
[...] as identidades não são aleatórias; encontram-se limitadas por fron-
teiras e limites. Quando os emigrantes atravessam uma fronteira, existe
hostilidade e acolhimento. Os emigrantes (e eu sou um deles) são incluí-
dos e excluídos de várias formas. Enquanto alguns muros são derrubados,
outros ficam ainda mais fortes para manter o emigrante e o refugiado no
exílio. Uma distinção que eu acho útil é a de separar a acção baseada no
espaço — a acção em que a pessoa se pode mover — e a acção limitada ao
espaço que é um agente limitador. (Sarup, 1996: 3)

Pontos-chave para discussão:


• Como se relacionam tempo, espaço e território nas sociedades mo-
dernas?
• Quais são as implicações da separação do Lugar do espaço no contexto
da modernidade?
• Quais são as consequências da regulação territorial do Estado-nação?
120 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

• A mudança de um território para outro é uma forma de promover a


auto-exclusão? Por que parece que a exclusão social é baseada no medo
de uma ameaça aos limites da nossa própria sociedade e às margens da
sociedade dos outros?

O território homogéneo

Nos tempos modernos, o território era equivalente ao que era de-


terminado pelas fronteira físicas do Estado-nação. Este conceito de terri-
tório estruturou, durante mais de dois séculos, a relação entre o tempo e
o espaço nas sociedades ocidentais, particularmente quando o capitalis-
mo se entrelaçou com a modernidade. Não só o tempo se tornou dinhei-
ro, como também o próprio dinheiro acabou por circular internacional-
mente, ligando territórios, descontextualizando, como Giddens afirma,
o tempo do espaço.
Na verdade, as narrativas nacionais atribuem ao território um pa-
pel fundador que se encontra ilustrado na referência comum feita ao
território nacional como “território paterno” ou “terra-mãe”. É interes-
sante notar como o patriotismo — o amor pelo seu país — opõe-se à
reivindicação das nações modernas de ser racionalmente construídas e
etnicamente plurais. O caso dos Balcãs realça esta contradição entre o
Estado-nação racionalmente construído e o desejo de eliminar grupos
étnicos competidores. Neste sentido, pode-se argumentar, por exemplo,
que a Sérvia, em nome da diferença dos sérvios, desejou “limpar” o seu
território dos “outros” competidores.
No paradigma sócio-cultural da modernidade, o espaço global é
concebido como um “espaço nações”, isto é, não existe território que
não possa ser concebido como território nacional e, neste sentido, todo o
território é totalmente incluído. Por outras palavras, não existe espaço
para as designadas “terras de ninguém” — e quando elas existem, por
exemplo, sob a forma de “zonas desmilitarizadas” constituídas por zo-
nas entre as fronteiras de Estados-nação, deixam de ser território dos
Estados-nação sob a condição de se tornarem efectivamente “terras de
ninguém”. Mesmo a Lua, tocada pelo primeiro homem em 1969, foi ime-
diatamente reivindicada através do símbolo da bandeira americana. De
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 121

facto, é interessante verificar como o território tornou-se tão importante


na modernidade: ao recebermos um bilhete-postal do estrangeiro, a pri-
meira pergunta que fazemos é: “de onde veio?” significando: “que país
controla esse território?”.
A segunda característica importante do território no contexto da
modernidade é a sua natureza homogénea. Por acção do Estado, através
do seu aparelho e agentes, o território nacional e tudo o que constituiu a
sua superfície são homogeneizados pelas normas judiciais, educacionais,
de saúde, de habitação e de ambiente que constituem a base e as suas
regras de governação. A nacionalização do território corresponde à ter-
ritorialização do Estado em dois sentidos: em primeiro lugar, o Estado
apropria-se simbólica e efectivamente do território e, em segundo lugar,
o que é local é convertido em nacional (ver O Lugar da cidadania).
Ser homogéneo significa, enquanto projecto político e no sentido
republicano: (i) ser o mesmo em todos os locais, portanto os espaços e
edifícios públicos, assemelham-se intencionalmente por todo o territó-
rio (“o mesmo Estado, para todos os cidadãos no mesmo território”); (ii)
ser geométrico, significando que em todos os pontos do território nacio-
nal encontra-se uma equidade qualitativa (a diferença entre Londres e
Manchester tem a ver, em termos matriciais, com a diferença em
quilómetros e não com a qualidade dos serviços estatais). Neste sentido,
todos os locais no território nacional são equivalentes. Finalmente, sig-
nifica que a organização racional do território nacional é como se de um
todo se tratasse e não na base de considerações locais.
No que respeita à inclusão/exclusão, o território nacional define a
fronteira entre o que é exterior — e, logo, estranho — e o que é interior —
e, por isso, pertencente ao espaço nacional. Quanto ao primeiro aspecto,
a regulação pelo sistema inter-estadual atribui ao Estado-nação o papel
de lidar com os que são actualmente cidadãos de outros Estados-nação e
formalmente “estrangeiros” e, assim, potenciais criadores de caos. Em
relação ao segundo aspecto, a acção homogeneizadora do Estado e dos
seus agentes (professores, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, po-
lícia, juízes, etc.) tenta assegurar uma distribuição racional (que implica
uma mobilidade interna) (ver Gouldner, 1970). A regulação do fluxo e a
distribuição da população no território nacional implica o controlo de
todos os que podem potencialmente escapar ao amplexo de cuidados
122 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

por parte do Estado; por exemplo, aqueles que cometem “más acções” e
crimes, aqueles que circulam erraticamente (os ciganos, por exemplo),
os que chegam ilegalmente do estrangeiro (refugiados e migrantes) e os
que questionam o que, na verdade, é importante para a vida (por exem-
plo, os doentes mentais). Esse controlo implica a criação de territórios
internos, ainda que marginalizados (asilos, prisões, alojamentos sociais,
hospitais psiquiátricos, etc.), de forma a reabilitar os indivíduos enquan-
to cidadãos “saudáveis” e assegurar o ordenamento racional das rela-
ções sociais. Todos os territórios, como territórios potencialmente homo-
géneos, vêm a diferença e a diversidade como uma ameaça que, no mí-
nimo, deve ser disciplinada. Esta disciplina da diferença é articulada, de
uma forma mais ou menos evidente, com as necessidades do mercado
de trabalho e com as preocupações com o crescimento económico. As-
sim, não chega ser um bom cidadão nacional, é necessário ser também
um bom trabalhador (ver O Lugar do trabalho).

Considere os seguintes textos:


1º texto:
Ouvimos falar muito sobre a crise do romance moderno. O que isto
implica é fundamentalmente a mudança na forma de narração. Já não é
possível contar uma história simples desenrolando a sua sequência no
tempo. Isto porque estamos demasiado conscientes do que atravessa con-
tinua e lateralmente a linha da narrativa. Quer dizer, em lugar de estarmos
conscientes de um ponto como uma parte infinitamente pequena de uma
linha recta, estamos conscientes do ponto como uma parte infinitamente
pequena de um numero infinito de linhas, como se fosse o centro de uma
grande confluência de linhas. Esta consciência, é o resultado da nossa
necessidade de permanentemente levar em linha de conta a simultaneida-
de e a extensão dos acontecimentos e possibilidades.
Existem muitas razões pelas quais isto acontece: a variedade dos meios
de comunicação, a escala moderna do poder, o grau de responsabilidade
pessoal e política que deve ser assumida por acontecimentos à escala mun-
dial, o facto que o mundo se tornou indivisível, a desigualdade do desen-
volvimento económico no mundo, a escala da exploração. Todos estes as-
pectos têm a sua importância. A profecia envolve actualmente uma projecção
geográfica em lugar de uma projecção histórica: é o espaço e não o tempo
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 123

que esconde de nós as consequências. Para profetizar, hoje, só é necessário


conhecer os homens (e as mulheres) tal como eles são por todo o mundo e
toda a sua desigualdade. Qualquer narrativa contemporânea que ignore a
urgência desta dimensão é incompleta e adquire o carácter simplificado de
uma fábula. (Romancista John Berger citado por Soja [1989: 22] (Grifos
acrescentados por Soja)

2º texto:
A América não é nem um sonho nem uma realidade. É a hiper-realidade.
É uma hiper-realidade porque constituiu uma utopia que se comportou
desde o início como se tivesse realmente tido sucesso. Tudo aqui é real e
pragmático, e mesmo assim, é igualmente o resultado de sonhos. Pode ser
que a realidade verdadeira da América possa ser somente vista pelos euro-
peus, dado que só eles descobrirão aqui o simulacro perfeito — a imanência
e a transcrição material de todos os valores. Os americanos, pelo seu lado,
não têm sentido de simulação. (Baudrillard, 1988: 28)

3º texto:
O caminho mais rápido entre o Céu e o Inferno na América contemporâ-
nea é provavelmente a Fifth Street, na Baixa de Los Angeles. A oeste do
renovado Hotel Biltmore, e estendendo-se ao longo da Harbour Freeway,
um arranha-céus feito de vidro e aço construído depois de 1970, assinala
a chegada à capital da terra de Pacific Rim a quem vem do centro da
cidade. Aqui, mega-construtores japoneses, banqueiros transnacionais e
salteadores de companhias bilionárias conspiram a reestruturação da eco-
nomia da Califórnia. Uns poucos de quarteirões para Leste, através da
terra-de ninguém de Pershing Square, a Fifth Street metamorfoseia-se em o
“Centavo”: uma famosa rua com 750 metros de construções de betão “pato-
bravo” onde vários milhares de pessoas sem abrigo — eles próprios apa-
nhados nas malhas de um inferno de Dante — se tornaram peões de uma
vasta luta local pelo poder. Intersectando estes extremos de ganância e de
miséria encontra-se o eixo de uma terceira realidade: el gran Broadway o
esfusiante centro comercial da burguesia de língua espanhola que vive
numa cidade dentro da cidade e cujos barrios (interpenetrando o gueto na
parte sul) formam actualmente um denso anel à volta da área central de
negócios. Um passeio de dez minutos ao longe da Fifth Street, faz-nos
assim atravessar as divisões abruptas de existências e classes, uma mini-
124 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

viagem através da polarização social na era do pós-reaganismo. (Davis,


1987: 65-6)

4º texto:
A maior cidade da América do Sul, com perto de 10 milhões de habitan-
tes, é famosa pela presença das formas mais avançadas de desenvolvimen-
to tecnológico e pelo volume de capital financeiro que movimenta. Abriga
bairros ajardinados, mansões suntuosas, edifícios arrojados, centros de
ensino excelentes e hospitais de primeira linha. Por suas avenidas circula,
ou fica parada nos congestionamentos, numerosa frota de automóveis de
luxo e importados. Entretanto, São Paulo convive também com as mais
graves modalidades de privação e sofrimento humano. Uma população ca-
rente e desempregada refugia-se em favelas e cortiços, quando não perma-
nece abandonada nas ruas. É vítima cotidiana da violência e não tem
acesso aos direitos e à Justiça. Pendura-se em ônibus e trens superlotados
e, se adoece, encontra precário atendimento. Seus filhos, quando conse-
guem, freqüentam escolas deterioradas, que abandonam muito cedo. O
Mapa da Exclusão/Inclusão Social da Cidade de São Paulo foi elaborado
para que os habitantes de São Paulo, olhando essa imagem paradoxal de
sua metrópole, refletida nos mapas e tabelas como num espelho, alimen-
tem a vontade de transformá-la. Para isso, o Mapa procura estabelecer
novas relações entre os dados da cidade, de modo a tornar possível uma
nova percepção sobre as condições de vida da população das várias re-
giões. Assim, ao expor a cidade em seus detalhes e contornos, ele preten-
der ser um instrumento que, desvelando a imagem obscura da diferença,
ajude a vencer a indiferença. (Sposati, 1996: 7)

Pontos-chave para discussão:

• Pense a propósito de Moçambique. Como se tornou o espaço o modo de


narrativa dominante neste país?
• A tradição relaciona-se com a organização do tempo e, portanto, do es-
paço. A globalização também, mas em sentido contrário. Quer dizer,
numa perspectiva distanciada, a ausência predomina sobre a presença
devido à re-estruturação do espaço. Por exemplo, um professor pode es-
tar presente numa escola através do seu computador ou outras formas
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 125

avançadas de comunicação sem estar, na verdade, fisicamente presente.


Aponte algumas das implicações dessa mudança no que respeita às rela-
ções sociais.
• Como se relaciona a opinião de John Berger sobre a exclusão como desi-
gualdade com a exclusão como diferença?
• A hiper-realidade é um território? Como se encontra ocupado? E por quem?
• Não existe espaço mais heterogéneo do que a cidade. Assim, pode-se
argumentar que as identidades locais, e a cidadania são construídas de
uma forma heterogénea e conflitual (ver Os Lugares de cidadania e de
identidade). Como vivem em conjunto a inclusão e a exclusão, lado a
lado, no espaço urbano?
• De que forma poderá ser o mapeamento da exclusão social uma forma de
intervenção social?

A des/reterritorialização do território

Podemos afirmar que o que tem sido designado “globalização neo-


liberal” implica um processo de desterritorialização, especialmente, como
lembra Santos (2001), no que respeita às relações sociais (ver O Lugar da
cidadania). Como vimos antes, a chamada “economia do conhecimen-
to” funciona mais na base da informação e da comunicação e menos na
base de produtos materiais. Santos sugere que a “economia do conheci-
mento” usa meios sem materialidade e, por isso, é independente dos
territórios. Todavia, ao mesmo tempo que isto deve ser reconhecido, é
também verdade que se verifica uma nova afirmação das relações so-
ciais baseadas na territorialização.

Com a intensificação da interdependência e da interacção globais, as rela-


ções sociais parecem, de modo geral, cada vez mais desterritorializadas,
ultrapassando as fronteiras até agora policiadas pelos costumes, o nacio-
nalismo, a língua, a ideologia e, muitas vezes, por tudo isto. Neste proces-
so, o Estado-nação, cuja principal característica é, provavelmente, a terri-
torialidade, converte-se numa unidade de interacção relativamente obso-
leta, ou pelo menos, relativamente descentrada. Por outro lado, porém, e
aparentemente em contradição com esta tendência, assiste-se a um desa-
126 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

brochar de novas identidades regionais e locais alicerçadas numa revalo-


rização do direito às raízes (em contraposição com o direito à escolha).
Este localismo, simultaneamente novo e antigo, outrora considerado pré-
moderno e hoje em dia reclassificado como pós-moderno, é com frequência
adoptado por grupos de indivíduos “translocalizados”, não podendo por
isso ser explicado por um genius loci ou um sentido de lugar único. Contu-
do, assenta sempre na ideia de território, seja ele imaginário ou simbólico,
real ou hiper-real. A dialéctica estabelece-se, portanto, entre territorializa-
ção e desterritorialização. (Santos, 1993: 18)

Com o advento da “sociedade em rede” e do “capitalismo informa-


cional”, o tempo e o espaço são, em larga medida, absorvidos por uma
realidade electrónica que se estende para lá de um território físico: o
território é um espaço virtual em que circula o dinheiro não como enti-
dade física cujo valor é garantido por sistemas bancários nacionais, mas,
pelo contrário, como bytes de informação circulando a uma velocidade
enorme. Neste sentido, o próprio dinheiro deixa de ser palpável. Esses
não-territórios obtêm a sua consistência máxima como “não-lugares”,
tais como os paraísos off-shore.
A reconfiguração em curso do território actual, não só cria territó-
rios desterritorializados (identificados acima como espaços virtuais), mas
também remodela a natureza e a significação da soberania definida na-
cionalmente (ver O Lugar da cidadania). Por sua vez, a organização do
tempo, inicialmente baseada no império (por exemplo o “tempo médio
de Greenwich”), torna-se actualmente muito importante para o horário
de abertura e de encerramento dos principais mercados bolsistas pelo
mundo afora. Esta nova organização do tempo é articulada com novas
formas de regulação do Estado-nação que, quanto mais estão em sinto-
nia com a globalização da circulação do capital, mais permitem a certos
Estados-nação dominar não só os seus vizinhos, mas também a cena in-
ternacional. Com a criação de um espaço virtual e territórios desterrito-
rializados, surgiram novas formas de exclusão/inclusão territorial, como,
por exemplo, o acesso ao mercado bolsista e à capacidade de nele inves-
tir, ou àqueles capazes de circular de um território para o outro como
“trabalhadores autoprogramados”, enquanto outros se encontram con-
finados ao “trabalho genérico” e ficam prisioneiros dos territórios nacio-
nais mesmo locais (ver O Lugar do trabalho).
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 127

A remodelação do conceito de território do Estado-nação é baseada


na emergência de identidades novas, reforçadas e muitas vezes re-in-
ventadas e de reivindicações expressas ao nível local. Neste sentido, o
que era um território nacional, republicano e homogéneo, transforma-se
numa bricolage de locais diversos, competitivos e potencialmente sepa-
rados, não necessariamente organizados na base de um território físico,
mas de, por exemplo, identidades e estilos de vida partilhados (a comu-
nidade gay). Sem dúvida, o aumento da imigração desempenha, neste
processo de heterogeneização, um papel central devido ao seu efeito sobre
a organização do espaço nacional do Estado-nação. Espaços como China
Town (e el gran Broadway, referidos por Mike Davis, dentre outros exem-
plos), que sob a regulação do território pelo Estado-nação não ocuparam
um papel central, assumem agora o papel crucial de eixo organizador
do espaço. Este fenómeno tende a transformar os antigos territórios
“modernos” em espaços fragmentados que diferentes identidades ten-
taram ocupar (São Francisco é tão ou mais conhecida como a “capital
gay mundial” do que como uma grande cidade norte-americana). Tam-
bém, neste sentido, o espaço europeu e a própria construção política da
Europa aumentam a pertinência deste processo de heterogeneização,
apanhado entre duas lógicas, uma baseada na “moderna” homogenei-
dade — que implica pensar a Europa como um grande Estado-nação
(em competição com outros grandes Estados-nação) — e a outra basea-
da no que poderíamos chamar um conceito-bricolage de unidade, em que
a Europa é pensada como uma unidade com base na diversidade.
Esta última lógica aponta para uma Europa na qual as diferenças
são entendidas como inerentes e tentam comunicar na base da sua apa-
rente incomensurabilidade e não na base de uma aparente igualdade de
uma herança europeia partilhada. Em outro trabalho (Stoer e Magalhães,
2001), referimo-nos a esta acção comum por uma metáfora do bazar como
um território. O bazar não é um mero lugar de troca de mercadorias,
ainda que seja obviamente importante sob esta perspectiva. Esta troca é
só um dos motivos para a existência do bazar; ele é também um lugar de
encontro para as diferenças e para a negociação entre elas. Neste proces-
so de negociação, não existe nenhum actor nem diferença privilegiados.
Todos os actores constituem diferenças, inclusive nós próprios (ver O
Lugar da cidadania).
128 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

O bazar e a própria Europa são simultaneamente territórios físicos


e virtuais. Castells refere-se assim à Europa como um Estado em rede:

[...] existe um Estado europeu. Não é constituído pela Comissão Europeia.


A Comissão Europeia é uma burocracia que muitas pessoas detestam e des-
confiam e que claramente não tem poder. O poder encontra-se no Conselho
Europeu de Ministros, chefes de Governo de todos os países que se encon-
tram todos os 3 meses, tomando decisões para serem assuimidas pela Co-
missão Europeia. Funciona como um Estado em rede. É, até ao presente, o
único Estado claramente organizado em rede. (Castells, 2001: 121)

Outros como Nóvoa e Lawn (2002) referem-se à “fabricação da Eu-


ropa” através de um processo de formação de redes, “ligando estruturas
sociais, redes e actores a nível local, nacional e europeu” que podem
“descrever e explorar a formação de novas entidades europeias com
políticas emergentes de redes, conduzindo ao surgimento de um espaço
educativo europeu, um conceito indiferenciado mas significativo em
política educacional” (ibid., 4). O bazar é, então, um centro de reunião e
de múltiplos e diversificados poderes que não se baseiam só em poderes
emanados dos territórios nacionais (e das suas hierarquias globalmente
informadas), mas, pelo contrário, definindo-se a si próprios com base
em identidades. Estes poderes são, pois, conflituais, não só entre si, mas
também em relação às lógicas previamente estabelecidas, tais como aque-
las definidas pelos territórios dos Estados-nação (por exemplo, o proces-
so de “um consumidor ambientalmente consciente” pode entrar em con-
flito com os processos estabelecidos de produção, distribuição e consu-
mo da economia nacional).
A fragmentação dos territórios do Estado-nação, no sentido em que
nos referimos aqui, e a criação de territórios desterritorializados são evi-
dentes na clivagem entre inclusão e exclusão. No que respeita à primei-
ra, a inclusão resulta aparentemente de processos de identidade locais
que se desenvolvem na base da proclamação da diferença como única, o
que constitui de facto, o ponto de apoio para um processo voluntaria-
mente induzido de exclusão — por exemplo, quando na base da tradi-
ção cultural uma comunidade decide desafiar a lei do Estado-nação (ver
o exemplo de Barrancos em O Lugar da cidadania). Existem também
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 129

formas de exclusão resultantes do processo de fragmentação do Estado-


nação independentes do controlo da comunidade, por exemplo, os efei-
tos do desemprego originados pela transferência de firmas de uma área
para outra em demanda de maiores lucros. Finalmente, existem for-
mas mistas de inclusão/exclusão territorial que combinam os dois pro-
cessos já referidos acima: el gran Broadway, tal como os das favelas do
Rio de Janeiro, podem ser vistos simultaneamente como “exclusão refle-
xiva” (baseada na identidade) e exclusão estrutural (baseada em factores
económicos, incluindo os processos de migração economicamente de-
terminados).
Desta forma, o valor do mapeamento da exclusão social, tal como é
proposto por Aldaíza Sposati, reside, antes de mais, em tornar conscien-
te que cada um está representado no mapa e, ainda, em conseguir ace-
der às realidades da desigualdade e da diversidade cultural, isto é, os
mapas são instrumentos de reflexividade institucional, cujo objectivo é
implicar os cidadãos, decisores políticos e actores sociais chave em pro-
cessos de desvelamento e acção sobre a exclusão social. Todavia, o ma-
peamento da exclusão social não deve ser confundido com actos de “en-
genharia social”, nos quais as pessoas são vistas como cidadãos cuja ci-
dadania lhes foi outorgada, mas, antes, como parceiros pró-activos no
processo de negociação que associamos à metáfora do bazar (ver Maga-
lhães e Stoer, 2003).

Conclusão

Nas sociedades pré-modernas, o território era definido pela comu-


nidade local. A exclusão social resulta do facto de não se pertencer a essa
comunidade. Assim, o que provém de fora da comunidade e do seu ter-
ritório é encarado como uma ameaça. As sociedades tradicionais apro-
priaram-se do tempo e do espaço da mesma forma que se apropriaram
dos indivíduos por meio de processos de socialização. Por outras pala-
vras, os indivíduos são, nas sociedades tradicionais, definidos pelo seu
enquadramento cultural, sendo este expresso por símbolos sociais que
significam a sua comunidade. Ser incluído é reconhecer esses símbolos
como organizadores do tempo e espaço, e a vida dos indivíduos como
130 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

parte dos rituais diários da sociedade. Isso significa que a inclusão tende
a ser ou total ou o seu oposto, isto é, exclusão. Não existe posição
intermédia. Os territórios são independentes uns dos outros, porque o
que os define são as comunidades locais. Na polis, no caso dos gregos, as
mulheres, os estrangeiros (os que nasceram fora da cidade) e os escravos
não eram cidadãos não porque fossem excluídos tout court, mas, antes,
porque tinham um estatuto inferior. Ser excluído era ser um marginal,
desconhecido ou “bárbaro”.
Com o advento do Estado-nação, o território torna-se nacional em
escala global. O espaço do Estado-nação é homogéneo no sentido de que
as particularidades são sacrificadas, de forma a que o universalismo possa
assumir um papel de liderança no projecto de desenvolvimento da mo-
dernização. O que contribui para este projecto é visto como válido, tal
como acontece com a escola pública baseada no princípio da igualdade
de oportunidades. As instituições do Estado-nação, tal como a escola
pública, esforçam-se por se tornarem universais e por se promoverem
na base do que Dale refere como “uma cultura mundial comum” (2000).
O que, pelo contrário, sai fora da norma nacional é visto como ameaça-
dor para o território e, dessa forma, disfuncional. Como resultado, o es-
tranho tende a ser empurrado para as margens da sociedade, para terri-
tórios “especiais” construídos com o objectivo de reeducar, recuperar e
reintegrar indivíduos no território depois de terem reconhecido e de te-
rem aceitado que se desviaram da norma.
Nos territórios heterogéneos e hiper-reais da sociedade em rede,
ser incluído é fazer parte de uma rede. O acesso à comunicação e à in-
formação decide o território — o território físico nacional confunde-se
com territórios fragmentados e virtuais desenvolvido na base de identi-
dades locais e culturais e no fluxo do dinheiro. Dado que se encontra
cada vez mais baseado neste fluxo de dinheiro e no capital financeiro, o
capitalismo desterritorializa radicalmente, por um lado, a produção, a
distribuição e o consumo e, por outro, identidades, o que significa que
vão sendo criadas condições para que as identidades já não sejam poten-
cialmente baseadas num local, mas, antes, cada vez mais fundadas nos
estilos de vida e nas crenças partilhadas. Assim, a re-localização que a
desterritorialização aparentemente implica não é um retorno ao lugar
do território tradicional. É, antes, um lugar re-inventado sem território.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 131

O regresso dos intelectuais da classe média aos espaços rurais e o seu


empenho ambiental, visível, por exemplo, em Portugal, mas não só, não é
o regresso a um lugar tradicional. É, pelo contrário, uma filiação em prin-
cípios ecológicos na forma de um estilo de vida partilhado pelos que fa-
zem parte da rede de simpatizantes do “verde” (Castells, 1997). Nas pala-
vras de Giddens (1990), trata-se de uma “reinvenção da tradição”.
Em suma, a definição de território é determinada pelo paradigma
do qual ele faz parte e a partir do qual é interpretado. Nas sociedades e
culturas pré-modernas, o território era a comunidade local e o sistema
de crenças que a constituem. No paradigma de sociedade e de cultura
modernas, o território é o Estado-nação, é o sistema de trabalho e de
emprego assalariado que se encontra na sua base. O território emergen-
te das sociedades pós-modernas é virtual, heterogéneo, “glocal” e de-
senvolvido por meio de sistemas em rede. A exclusão social é, no pri-
meiro caso, estar fora dos valores e símbolos partilhados; no segundo
caso, é ser incluído num processo de reabilitação, porque o Estado sem-
pre “recupera” os seus súbditos quer como cidadãos quer como traba-
lhadores assalaridos, e, no terceiro caso, ser excluído é, para dizer de um
modo simples, não fazer parte das redes.
132 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
133

CONCLUSÃO

Os Lugares são as instâncias em que o impacto dos espaços estrutu-


rais acontece, isto é, o corpo, o trabalho, a cidadania, a identidade e o
território são os Lugares em que potencialmente se activa a agência so-
cial e os constrangimentos sociais que a delimitam e a inspiram. Neste
sentido, são Lugares onde os projectos individuais e sociais interagem
entre si, fornecendo, dessa maneira, quer a capacidade desses projectos
se desenharem, quer os limites que inevitavelmente influenciam a sua
eventual realização. Os Lugares são, então, acima de tudo, o ponto em
que a agência individual e social acontecem, dado que são precisamente
o ponto de onde dimana aquilo que torna os sujeitos efectivamente su-
jeitos (e, nesse sentido, e por seu turno, os espaços estruturais são o pon-
to de onde dimana aquilo que torna as estruturas estruturas). São os
Lugares onde os projectos nascem e vivem, onde a mudança social assu-
me a forma de agência, quer essa mudança aconteça quer não. Por exem-
plo, um militante ecologista não deixa de permanecer “verde” apenas
porque a possibilidade de realizar políticas fundadas na preservação am-
biental estão, num dado momento e lugar, para além do alcance da so-
ciedade. De facto, a preservação do ambiente manifesta-se sob diferen-
tes formas. No âmbito do paradigma moderno, era eventualmente vista
como um projecto político susceptível de ser gerido sob a forma do mo-
delo da engenharia social. Nas sociedades pós-fordistas, “ser verde” é,
em si mesmo, uma postura identitária, quer dizer, é uma escolha social
e/ou individual que não tem que ter necessariamente uma base históri-
134 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

ca ou científica que a justifique. É esta postura que está no cerne daquilo


a que se vem chamando os “novos movimentos sociais”. Por outras pa-
lavras, os contextos sociais estão impregnados pelas posturas reflexivas
daqueles e daquelas que promovem novas formas de identidade, novas
formas de cidadania, novas formas de posicionamento no mundo do tra-
balho, novas formas de pensar e de viver o território e novas formas de
assunção do corpo por parte dos indivíduos e dos grupos. Tudo se parece
passar de acordo com o enunciado de Giddens (1990), segundo o qual
nós, ocidentais, vivemos numa sociedade crescentemente sociológica.
Os cinco Lugares que organizam este trabalho só se tornam reais
nos contextos — família, escola, prisões, fábrica, igreja, bairro, lazer, etc.
— nos quais se manifestam. Por exemplo, a cidadania reclamada só acon-
tece em dados contextos, precisamente naqueles em que a cidadania atri-
buída é reflexivamente questionada pelos actores sociais, exigindo, no-
meadamente no caso da educação, que esta aconteça de acordo com as
normas e os valores do grupo étnico ao qual as crianças pertencem ou de
acordo com os valores considerados fundadores para os cidadãos que
reclamam (veja-se, a título de ilustração, o caso das lésbicas surdas, aci-
ma referenciado, que assumem a surdez como uma forma de identida-
de). Os Lugares, efectivamente, apenas têm significado sociológico nos
contextos onde são, por assim dizer, vividos.
Madan Sarup, como já se mencionou em Lugar da identidade, com-
para as determinações estruturais com o negativo de uma fotografia,
como se se tratasse do negativo das possibilidades de escolha que, nos
diferentes contextos sociais, se oferecem aos actores. É este fundo “nega-
tivo” que torna algumas possibilidades realizáveis e outras irrealizáveis
e, mesmo, impossíveis de conceber. A formulação de um desejo, para
dizer de outra forma, não garante a sua realização, nem há qualquer
garantia de que o próprio desejo seja formulado. (E se esta formulação
for válida tanto para a dimensão individual como para a social, traz inte-
ressantes matizados à ideia de Marx segundo a qual nenhuma época
levanta um problema que não possa resolver...). O desejo de uma família
da classe trabalhadora de que o seu filho ou filha se torne um cientista
nuclear pode nem sequer se assumir como enunciado do desejável. Nes-
te trabalho pensamos que ficou claro que adoptamos os seis espaços es-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 135

truturais propostos por Santos (1995) — o espaço doméstico, o espaço


do trabalho, o da cidadania, o do mercado, o da comunidade e o mun-
dial — para desenvolver a metáfora do negativo fotográfico de Sarup.
Aliás, o próprio conceito de Santos de estrutura social como sendo a
sedimentação da acção bem-sucedida — isto é, “estruturas são apenas
sedimentações provisórias de cursos reiterados de acção bem-sucedidos”
(1995: 404) — foi também central no desenvolvimento do conceito de
agência social presente nos cinco Lugares.
A seguir, apresenta-se um quadro que pretende sumariar as rela-
ções entre os Lugares e os fenómenos exclusão/inclusão no âmbito dos
três paradigmas que nos serviram de referência ao longo do texto.
Os Lugares articulam, nos três paradigmas socioculturais identifi-
cados, formas diferentes de inclusão/exclusão. Assim, o Lugar do cor-
po, no paradigma que aqui designamos pré-moderno, delimita o pro-
cesso de inclusão/exclusão a partir da comunidade. Ser incluído signifi-
ca um corpo apropriado pela comunidade, sendo a exclusão aquilo que
escapa ao controlo desta, isto é, aquilo que se perfila como o estranho.
No paradigma moderno, o corpo é normalizado no sentido médico e no
sentido social, sendo a exclusão um fenómeno que surge como da or-
dem da reabilitação, isto é, o corpo é potencialmente recuperável. No
paradigma emergente, identificado como pós-moderno, o corpo incluí-
do é o corpo que se agencia a si próprio, enquanto o excluído é aquele
que surge como não plástico, não moldável, isto é, como inactivo em
relação a si próprio.
O Lugar do trabalho, no paradigma pré-moderno, delimita a inclu-
são de uma forma dupla: por um lado, ser incluído significa participar
no trabalho como artesão, nos ofícios; por outro, significa articular-se
com a comunidade. Essas duas formas de inclusão podem estar, ou não,
conexas entre si. A exclusão, por seu turno, parece resultar da não parti-
cipação em nenhuma das duas instâncias referidas, como é o caso de
invalidez absoluta. No âmbito do paradigma moderno, já a inclusão sur-
ge ligada ao processo de trabalho assalariado, quer dizer, ser incluído
significa estar integrado na estrutura ocupacional, sendo a exclusão, en-
tão, o estar fora dessa estrutura. No contexto da pós-modernidade, a
inclusão surge, frequentemente, como a integração no trabalho em rede,
136 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

Quadro 1
Os cinco Lugares de impacto da inclusão social/exclusão social

Lugares Paradigma Inclusão Exclusão

Pré-modernidade Comunidade Estranho

Corpo Modernidade Normalizado Reabilitável

Pós-Modernidade Corpo como agência Inactivo


Pré-modernidade Artesão/comunidade Invalidez

Trabalho Modernidade Assalariado Não-assalariado

Pós-Modernidade Trabalho em rede Fora da rede

Pré-modernidade Da cidade Estrangeiros

Cidadania Modernidade Atribuída Etnicidade fictícia1


Pós-Modernidade Reclamada Despossessão

Pré-modernidade Local Sem identidade

Identidade Modernidade Individual/papel Estilos de vida

Pós-Modernidade Estilos de vida Despossuídos

Pré-modernidade Comunidade Caos

Território Modernidade Estado-nação Terra-de-ninguém

Pós-Modernidade Virtual/hetero Fora da Rede

isto é, o que funda a relação com o trabalho não é tanto a relação salarial
que define o “empregrado”, mas o potencial de empregabilidade que as
relações, os conhecimentos e os contactos proporcionam aos indivíduos.
A exclusão, em contrapartida, surge marcada pela situação inversa, es-
tar fora da rede.

1. “Etnicidades fictícias” são aquelas que, segundo Balibar (1991), são próprias de meros
súbditos, permanentemente “em desenvolvimento”, e não de cidadãos em pleno dentro do espa-
ço da União Europeia (por exemplo, a comunidade turca na Alemanha ou a comunidade portu-
guesa em França, até muito recentemente). Assim, a etnicidade dos imigrantes é confundida com
a sua menoridade em termos de direitos e deveres, surgindo o reforço da etnicidade não como
algo de real, mas como reflexo de uma situação de exclusão.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 137

No que diz respeito à cidadania, em verdade a pré-modernidade


define a inclusão mais em termos da cidade do que em termos do que
chamamos hoje a cidadania. De facto, ser incluído na cidade (polis) tem
um significado ligado à localização desta, o local, e ao facto de o cidadão
(polites) ter voz activa no governo da cidade. Ser da cidade, neste senti-
do, é ser incluído; a exclusão era da ordem da não pertença à cidade no
sentido político da palavra (da polis e do polites). No paradigma moder-
no, a inclusão através da cidadania dimana do contrato social; por este o
Estado atribui um conjunto de direitos e de deveres aos indivíduos no
acto pelo qual estes se tornam cidadãos. Por seu turno, a exclusão surge
ligada àquilo que Balibar (1991) chama “etnicidades fictícias”, isto é, al-
guns “cidadãos” não são cidadãos na sua plenitude porque ainda se en-
contram, por assim dizer, “em desenvolvimento” (ver nota 1). É impor-
tante dizer-se que a inclusão como cidadão está, nesse paradigma, liga-
da ao posicionamento dos indivíduos na estrutura salarial, não bastan-
do por isso a atribuição de cidadania pelo Estado pelo contrato social,
sendo também crucial a sua articulação com o mercado de trabalho. Na
pós-modernidade, a cidadania surge crescentemente ligada à reclama-
ção dos direitos e exercício dos deveres a partir da assunção das inco-
mensurabilidade das diferenças por parte dos indivíduos e dos grupos.
A inclusão, neste contexto, corresponde à assunção de uma forma de
cidadania que dimana dos próprios actores sociais e não já da sua atri-
buição por parte do Estado. A exclusão está, por seu turno, ligada à
despossessão, quer dizer, se não forem os indivíduos e os grupos a dese-
nhar os guiões sociais e políticos próprios, ninguém o fará por eles.
Em contextos pré-modernos, as identidades sugiam construídas em
torno do local; ser alguém era estar incluído numa rede de sociabilida-
des e numa pertença local (ser de algum sítio). A ausência de identidade
é estar fora dessa rede de sociabilidades e não ser de sítio nenhum. Dife-
rentemente, a modernidade delimita as identidades pessoais e colecti-
vas em torno da organização estatal e nacional das sociedades. A identi-
dade dos indivíduos e dos grupos passa, então, pela sua identificação
com o exercício de papéis e de funções que articulem necessidades so-
ciais. A exclusão, por sua vez, está no desafiar da homogeneidade iden-
titária impressa pela lógica nacional. Em termos modernos, tudo o que
desafie a norma médica e social e assuma a incomensurabilidade de um
138 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

dado estilo de vida é colocado na ordem da exclusão. Ao contrário, a


assunção e a reclamação desta incomensurabilidade das diferenças pa-
rece ser o que emerge como lógica de construção identitária no paradig-
ma pós-moderna. Ser alguém é verberar a sua diferença e agir social-
mente a partir dela. Ser excluído, em compensação, é não assumir essa
diferença específica e, em muitos casos, ficar condenado à condição de
despossuído, despossuído de identidade e das potenciais que permitem
a reclamação.
No que diz respeito ao Lugar do território, a comunidade, em ter-
mos pré-modernos, surge como o princípio de inclusão. O território é
sempre o território que a comunidade define como o “seu”, sendo o ter-
ritório excluído aquele que é do âmbito do inorganizado, do caos, o alheio
à comunidade. A modernidade introduziu uma lógica fundada no Esta-
do-nação para a definição do território. O território nacional é o único
que tem sentido claro, sendo difícil sequer imaginar territórios que não
sejam de dado Estado. Neste sentido, a exclusão territorial tem a sua
melhor expressão nas terras-de-ninguém. No paradigma pós-moderno,
o terrtório parece estar a ser reconfigurado de duas formas. Primeiro,
pela sua virtualização; segundo, pela sua heterogeneização. Por um lado,
o espaço criado pelos dispositivos tecnológicos, postos à disposição dos
indivíduos e dos grupos, torna-se fortemente virtual. Por outro lado,
assiste-se a uma forte heterogeneização desses espaços e territórios, dado
que, ao contrário da lógica da homogeneidade nacional, são produzidos
a partir da e para difundir e afirmar a diferença (eventualmente) inco-
mensurável dos seus criadores. A inclusão consiste, pois, na inserção
num desses espaços diferenciados, e a exclusão num posicionamento
fora da rede das diferenças e das suas interacções.
Os cinco Lugares estruturam-se pelas tensões que os constituem e
pela simultaneidade que caracteriza a sua leitura na nossa época. Con-
sequentemente, a activação destas tensões é, por excelência, política, no
sentido de que a simultaneidade de opções e de raízes está presente em
todos os processos em que a emancipação/regulação, agência/estrutu-
ra e o self como sujeito/tecnologia-do-self são potencialidades/limites
mobilizados, sobretudo, pelos processos políticos. Na medida em que
estamos inseridos nestas dualidades, somos obrigados a lidar com elas,
sendo impossível vivê-las como se não fossem nem uma coisa nem outra.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 139

A natureza política dos Lugares é particularmente evidente no pa-


radigma emergente da pós-modernidade/pós-fordismo devido ao facto
de que, aí, as tensões parecem ser maximamente activadas. Tal parece
ficar a dever-se à natureza sociológica da época e da sociedade em que
vivemos, quer dizer, quanto mais sabemos acerca dos processos indivi-
duais e sociais, maior é a nossa tendência para construir os guiões da
acção social. É este facto que provoca, de uma forma sem precedentes, as
tensões entre estrutura e agência. Estas tensões traduzem-se nos cinco
Lugares das seguintes formas:
• Corpo: a tensão é entre o corpo enquanto foco de agência e o
corpo enquanto tecnologia do self. Isto significa que, por um lado,
o corpo é, enquanto parte indeslindável do próprio self, senhor
de si próprio e não um destino imposto aos indivíduos. Por ou-
tro lado, significa que o corpo enquanto agência é apenas outra
forma de controlo do corpo, por exemplo, quando o mercado de-
termina e configura as necessidades individuais como mercado-
rias (“é exactamente esse nariz que condiz com a minha auto-
imagem!!”);
• Trabalho: a tensão, neste Lugar, acontece entre aquilo a que
Castells chama “trabalho autoprogramável” e a dissolução do
trabalho em competências. Por outras palavras, posicionar-se no
Lugar do trabalho como trabalhador assume hoje em dia um sig-
nificado bastante diferente do de há três décadas atrás, dado que
já não se é educado e socializado para se ser membro de uma
ocupação tipificada, mas, antes, para se ser, desejavelmente, de-
tentor de um conjunto de competências transferíveis em que a
principal competência é a competência de continuamente adqui-
rir novas competências (trainability). Quem ocupa uma posição
no mundo do trabalho autoprogramável detém um lugar privi-
legiado, sobretudo quando comparado com quem está colocado
no Lugar do trabalho no âmbito do trabalho genérico.
• Cidadania: a tensão, aqui, é entre a afirmação e reclamação de “a
diferença somos nós” e a fragmentação e a incomensurabilidade
das diferenças que têm de viver em conjunto num mesmo mun-
do. Essa tensão sublinha o carácter relacional da forma como as
140 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES

diferenças são correlativas, dependentes, portanto, entre si. Sem


pretender ignorar as tensões derivadas da desigual distribuição
social do poder, esta tensão traduz-se na exigência aparentemen-
te paradoxal segundo a qual somos simultaneamente obrigados
a viver entre diferenças e a viver a nossa própria diferença;
• Identidade: neste Lugar, a tensão é entre a crescente hibridização
das identidades e o risco de aniquilação dessas mesmas identi-
dades. Na medida em que os diferentes selves se tornam hetero-
géneos de acordo com projectos mais ou menos reflexivos, as iden-
tidades parecem distender-se entre dois pólos: o pólo esquizóide
e o pólo narcisista. Por exemplo, a tensão entre aqueles indiví-
duos que organizam a sua diferença em torno de apenas um úni-
co eixo (ser gay ou ser de “esquerda”, para dar apenas dois exem-
plos) e aqueles outros que a organizam em torno de múltiplos
eixos (o indivíduo que, durante o dia, se envolve no cuidar de
uma criança, que, à tarde, é presidente de uma associação de
emigrantes, e que, à noite, assume a identidade de um pastor
evangelista, sem solução de continuidade);
• Território: a tensão que estrutura este Lugar é aquela entre terri-
tórios virtuais e territórios heterogéneos, sendo que, no primeiro
tipo de territórios, as diferenças tendem a ser diluídas no
hiperespaço da comunicação/informação e, no caso do segundo
tipo, as diferenças são instaladas nos seus “próprios” territórios.
A possibilidade de comunicar de uma forma eficiente para além
dos territórios físicos não dilui a diferença real que esses territó-
rios contêm em si mesmos e entre si. A luta política dos índios
Chiapas assumiu a Internet como uma das suas estratégias cen-
trais, permitindo-lhes divulgar a sua diferença, as suas exigên-
cias e a sua luta a nível mundial. Contudo, dado que ter mais
informação não corresponde a saber mais, o reconhecimento dessa
luta não conduz, necessariamente à sua compreensão.

Estas tensões que atravessam os cinco Lugares estão na base da for-


ma como, contemporaneamente, a exclusão/inclusão social se revelam.
Também enfatizam a dimensão política destes fenómenos e o facto de
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 141

que não há fórmulas universais nem soluções-receita para a acção, mas,


antes, que todos os indivíduos, todos os cidadãos, são chamados a agir no
sentido de assumir a sua parte na construção dos seus próprios mundos.
Em conclusão, a nossa noção de agência, que constitui um dos con-
ceitos fundamentais deste trabalho, baseia-se em quatro considerações.
Primeira, a agência política surge cada vez menos como “engenharia
social”, no sentido de que não é possível já conceber a existência de um
engenheiro social que possa com clareza, com “brancura” social e com
transparência epistemológica traçar um mapa referindo direcções uni-
versalmente consensuais. A nossa experiência histórica de engenharia
social parece ter frequentemente conduzido a efeitos perversos, como a
vitimização dos excluídos, em vez de ter suscitado a assunção por parte
dos excluídos o processo de os tornar sujeitos da sua própria inclusão.
Em segundo lugar, a agência política não se encontra predeterminada
por um projecto que generosamente inclua todos os indivíduos no seu
âmbito, inclusive aqueles que tenham sido excluídos. Por outras pala-
vras, os processos de exclusão/inclusão devem ser geridos com base na
própria diferença e não em quaisquer discursos sobre ela, sobretudo
aqueles que estabelecendo o projecto político com vista a corrigir as in-
justiças sociais, sacrificam no mesmo passe as exigências das próprias
“diferenças” (inclusive a nossa própria diferença). Em terceiro lugar, a
agência política depende da assunção de uma certa modéstia no que diz
respeito à questão da mudança social. Com alguma frequência, o mun-
do que generosamente queremos construir para os outros é precisamen-
te o mesmo em que nós próprios queremos ser incluídos. Assim, lutar
pela inclusão é lutar pela afirmação da diferença própria e não por um
“mundo” próprio. Em quarto lugar, e finalmente, se o enunciado “a di-
ferença somos nós” tem o efeito de reduzir a diferença entre as diferen-
ças pela recusa de reconhecer que as próprias diferenças são desiguais,
em vez de fazer o contrário, tudo aquilo que defendemos ao longo deste
trabalho cairia pela base.
142 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
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