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A cidade como um jogo de cartas

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Projeto Editores Associados Ltda.


Universidade Federal Fluminense
São Paulo
Editora Universítária - Niterói
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Santos, Carlos Nelson F. dos


S237c A cidade como um jogo de cartas/Carlos Nelson F. dos
Santos. - Niterói: Universidade Federal Fluminense: EDUFF;
São Paulo: Projeto Editores, 1988.
192 p.; il.
ISBN 85-228-0074-X (EDUFF)
, ISBN 85-7165-001-2 (Projeto Editores)
1. Planejamento urbano. 2. Urbanismo 3. Arquitetura e so-
ciedade. 4. Cidades. 1. Título.
CDD 711.4
Este livro iu1 realizado corn base no estudo Seis Novas
Cidades em Roraima (IBAM, Rio, 1985) e na tese para
concurso de professor-titular da Escola de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF,
Niterói, 1985).

Não i eria sido possível fazer este trabalho sem as preciosas


colaborações d e Alberto Costa Lopes, Isabel Cristina Eiras de
Oliveira, Joaquim Castro Aguiar, Maria de Lourdes Menezes e
Maurício Cleimman.

Também contribuíram Arno Vogel, Eduardo Mendes de Vasconcellos


e Sergio Rodrigues Bahia.
Co-edição Editora Universitária - EDUFF
Projeto Editores Associados Lida

Universidade Federal Fluminense


Reitor Hildiberto Ramos Cavalcantti de Albuquerque Junior
Vice-Reitor Aloísio Carlos Tortelly Costa
Editora Universitária - EDUFF
Diretora Ceres Marques de Moraes
Comissão Editorial · Estela dos Santos
Isa Costa
Maria Antonia dos Santos Botelho
Maria Aparecida T. de O. Venturini
Vicente Custódio Moreira de Souza

Supervisão Editorial Isabel Cristina Eiras de Oliveira


Projeto Editores Associados Ltda .
.
Editor Vicente Wissenbach
Execução Editorial PW Gráficos e Editores Associados Lida.
Editor Executivo Eugenio Alex Wissenbach

@) Copyright Carlos Nelson Ferreira dos Santos


É proibida a reprodução, por qualquer meio, total ou parcial desta obra
sem a devida autorização das editoras.

EDUFF - Editora Universitária



Rua Miguel de Frias, 9
lcaraí - Niterói • Rio· de Janeiro
CEP 24220 - Tel. 717-8080 - R. 200

projeto Projeto Editores Associados Lida


Av. Dr. Arnaldo. 1947 Capa

São Paulo - São Paulo "Linhas Coloridas". Milton Machado 1984
CEP 01255 - Tel. 864-7477 • pastel e recortes sobre papel, 70 x 100 cm.
- Coleção Sr. Gérard l oeb. São Paulo.
- da série " 3 Desarranjos": linhas que só loimam desenho
Fotocomposição PW coerente quando ocorrem desarranjos.
Fotolito Argefoto e Linoart - da exposição "Somas e Desarranjos" , Galeria Saramenha,
Impressão/acabamento Bandeirante S/A Gráfica e Ed~ores Rio. 1985.
São Paulo, outubro de 1988 - foto de Pedro Oswaldo Cruz.

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Sumário

11 Um jogo de cartas 105 O princípio da grelha


.
15 Cornos e porquês introdutórios 115 A grelha
21 O espaço e os jogos (do Poder) 127 Perímetro urbano
31 As cidades como foram sendo em todo mundo 131 Formas de ocupação especial
39 As cidades como puderam ser. no Brasil 135 Sobre infra-estrutura e equipamentos urbanos

49 A cidade como um jogo 137 Serviços urbanos


57 Informações sobre o território 157 Equipamentos urbanos
65 Uma estrutura para as cidades 165 Urbanismo como lei
71 Sobre lotes e quarteirões 167 Anteprojeto de lei de urbanismo e edificação

73 O lote 183 O problema fundiário


77 O quarteirão 187 Concluindo
87 Sobre ruas 189 Bibliografia
91 As ruas

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Um jogo de cartas
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Parece que as origens do baralho, contorrne o conhecemos


hoje, estão na China. Lá teria sido inventado, a partir do
l'Ching, o Tarot sagrado. Um jogo de cartas com figuras e
números, onde, através de intrincadas correlações simbólicas,
se procurava restabelecer a harmonia entre o mundo cotidiano
e contingente e a imutabilidade das determinações celestes.
O Tarot pode ter surgido na China em tempos anteriores a
Cristo. Dentro das concepções culturais chinesas, servia, ao
mesmo tempo, a fins profanos e divinos. Através da leitura
das cartas, ganhavam sentido as trivialidades aparentemente
desconexas do dia-a-dia, submetidas às regras de uma
realidade fixa, maior e transcendente. O jogo, em seu
conjunto, propunha uma lógica fechada, apreensível através
de flagrantes correspondentes à grande universalidade da
vida e da história, só perceptível aos homens de forma
descontínua, por meio de fragmentos. A aleatoriedade das
condutas, pôtencial perigo para a sociedade, e a
necessidade de reafirmar regras " artificiais" , estabelecidas
por convenção, encontravam uma contrapartida na seqüência
ideal de figuras, conformando estruturas, hierarquias, ordens -
uma totalidade enfim.
Os atores que exercem a prática social viveriam em grande
angústia se não dispusessem de " chaves-conversoras" do
gênero. Os grandes princípios que orientam o mundo e que
permitem a solidariedade são frágeis, tendem a virar
abstrações. Repousam na memória coletiva e precisam ser
relembrados a todo tempo para que não se dissolvam nas
solicitações prementes e imediatas a que todo indivíduo tem de
atender. O Tarot deveria ser uma das muitas fórmulas que
permitiam a cada chinês se identificar com os outros,
superando e, ao mesmo tempo, explicando a singularidade, de
outra maneira ininteligível, da sua experiência pessoal. Para
tornar aceitáveis destinos e fados caprichosos, havia um código
11
de interpretação comum. Como todo bom simbolismo,
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,/ construído coletivamente, e como toda norma abrangente e
, _, duradoura, situado fora deste mundo, obedecendo a
disposições eternas. Um jogo de conivências, compensadoras

ou, pelo menos, consoladoras do non-sense das perdas e \'

ganhos do dia-a-dia e restauradoras da unidade.


Dubugras (1983), sem citar fontes, diz que o Tarot é divulgado
pela Europa no século XIV. As cartas perambulam por várias
partes e vão se modificando. ·
Na versão primitiva havia 78, das quais 22 especiais,
chamadas arcanos. Cada arcano era único e fazia parte de
uma seqüêncía representativa das ordenações externas da
sociedade e internas do homem (suas virtudes, paixões e
impulsos).
No Ocidente, seja por força de perseguições religiosas, seja
por descontextualização cultural, abandonam-se as figuras
mágicas. Restam apenas os naipes que, antes,
desempenhavam papel secundário, pois não se referiam a
acontecimentos e só forneciam informações complementares às
interpretações.
O baralho vira, então, um passatempo que já não tem nada de
sagrado. É reduzido a 52 cartas, agrupadas em conjuntos de
quatro naipes, onde os números se sucedem em ordem
crescente de um a dez. São complementados pelas imagens
de valete, dama e rei, que, através de outra linguagem,
também expressam ordenamento.
Mantém-se de pé, no entanto, o princípio especular. A
sociedade européia, ao jogar baralho, está "se jogando" ou
"brincando" de repetir seu próprio desempenho. As cartas
representam as diversas formas de oposição ou conjugação.
Cada naipe é uma classe: copas, o clero; espadas,
, a nobreza;
ouros, a burguesia; e paus, os camponeses. E fácil deduzir que,
até que a burguesia pudesse se impor e fazer sua revolução, o
naipe superior era espadas. O predomínio de ouros é recente.
A troca de precedências dá um suporte óbvio ao argumento.

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Cornos e porquês introdutórios

ü µresenI& Uabalho consiste em uma série de reflexões sobre


co,mo se fon11,am e desenv olvem as cídad es, se ordenam e
1 1

controlam os espaços edificados. Os conceitos e formulações,


a título de demonstraçào, são aplicados a uma proposta prática.
Nas úttimas décadas, a sociedade bras~leira te m se esforçad,o
1

bastante para realizar sua vocação histórica, expand'rnd 0 as


1

tronteiiras na direção oeste. As m udanças demográficas em


regiões há pouco tempo vazias têm sido notáveis.
Por outro lado. ao longo do século XX . o país tem demonstrado,
por inú meros exemplos, a associação emblemática da cidade
com anseios por progresso e modernização que embebem
toda a sociedade nacional. Começando pelo Rio de Pereira
Passos, se atinge o cl írnax em Brasília. A ideologia da cidade
1

nova1 matertalização da utopia, que antecipa e rea1liza as


possibilidades do futuro, fica em definitivo legitimada.
O exercício de produção de espaços urbanos] prolongado por
quase cem anos, já está a exigir paradas críticas,
reconsiderações teóricas. Atividade infelizmente rara e difici1
I
para q uemJ como nós arquitetos. esteve tão ocupado
realizando , que não pôde se dar ao luxo de pensar rnu,to. Pior
1

ainda: para q uem conseguiu separar, de modo tão pervers 0 1

frente às propostas mais conseq0entes da arquitetura e do


urbanismo, o ato de pensar de suas conseqüências.
Corremos o risco de ter gente filosofando inutilmente de urn
lado, enquantol do outro, tudo acontece d 1 e qualquer maneira.
1
Nas palavras de Saint-John Perse (s/d), 'as cidades se
constroem enquanto as mulheres sonham n. Já Al do van Eick
1

(1974) nos aconselha a Hapontar as estrelas-alvo antes que os


foguetes partam " . É verdade . é preciso tentá-lo. Aí está a
verdadeira tarefa acadêmica: refazer uma área de domínio
profissionaL propondo novos conceitos, examinando os
resu ltados do que antes era apresentado como verdade. 1
1b
Verdade naturaimente a comprovar, pois, para _o autêntico Nesse particular, os arq1u1tetos costu rnam se fazer de vítimas;
espírito científico q ue deveria comandar todas as ações trata-se de profissão pouco valoriizada, sem chances de levar à
universitárias, certezas, por definição ~ só podem ser transitónas. real ~dade suas teorias transformadoras do mundo~
Em 11982, a União crtou seis novos Municíp~os no Território No século XX , no entanto , os arquitetos b rasilieiros, a 1
p art1r de
Federal de Roraima. Antes só existiam dois. Abre-se assim a um punhado de id ealizações pouco consistentes, fizeram uma
possibi,l,idade de desenvolvimento de meia dúzia de centros grande conquista. Conforme será visto em um dos cap rtulos
urbanos na mai1s longínqua fronteira de expansão do país. que se seguem t introduziram determinados parâmetros
R,e coloca-se 0 tema das cidades-novas. '' novidade-velha' ' no
1
orientadores da forma das cid ades que se impuseram como
cenário da moderna urbanização brasileira. Várias questões são absolutos. A sociedade inteira passou a entender e , p ioc a
pertinentes: mairs uma vez vai se começar do zer 0 , fingindo
1
vi1ver espaços urbanos através de tais fôrmas. Na verdaçfe, a
que não existe toda uma experiência acum1u lada? O q ue tem,
1

p roeza não foi das mais democráticas. Resultou de articulações


de ser revisto? As " c idades do futuro " devem ignorar as bastant,e explícitas com as mais altas expressões d10 poder
práticas correntes e as lógicas de uso do espaço consagradas
1

político e econômico. Com o compensação, sobrou um grande


1
h istorricamente? Vai e a pena correr o risco '', propor um

d~scurso sobre vocações sociais da profissão que na rnaio ria
1
1

d1esenho conformador, quando prestigiados modelos de dos casos, não passa de retórioa emascaradora d,a culpa ou
abordlagem urbana estão privi,legiand,o os enfoques da da impotência.
economia política, fora dos quais tudo não passaria de '-

epifenômenos desprezíveis?2 Modelais e tipologias físicas Mas, afinal~ nas condições atuais, é ou não é possível ,p rop,o r
pod,em escapar às seduções do autoritar1 ismo e, conformar
1 um espaço urbano mais democrático? Nlunca é muito fácil
ringuagens libertadoras? Carm o fazer para que se tornem entender a confusão brasileira,. ainda mais q uando se está
instrumentos de uso e domínio amplo? É possíve~, em lugar m,e rgu Ihado por inteiro dentro dela. É preciso ir por partes,
das habituais utopias onde uma perfeíção congelada e neutra e começando pela tríplice determinação .dos 70%.
perseguida através ,d e um único ·e definitivo esforço, constru ir Desde o censo de 1980 já se sabe que o Brasi~se tornou em
uma cidad,e no presente e com várias possi1 bilidades de defiinitívo um país urbano. Mais de dois terços dos nossos
declinação em outros tempos? oompatriotas vivem em cidades. Desses 70% outros 7010/o se
Aqui é apresentada uma tentativa de resolver tais questões, espremem em não mais do que cinqüenta supercidad,es,
através de um roteiro básico, ao mesmo te,m po conceituai e ag1lomerados ou grandes centros. Para completar, 70% da
prag1mát1co, cujo objetivo é oriientar os planos específicos para popu~ação urbanizada é muito pobre; a renda das fa1 m íl1
ias
cada uma das novas cidades em1Roraima. O roteiro é também oscHa entre um e quatro sallários mínimos.
uma exposição d'e princípios. Está comprometído com a
O quadro se formou pouco a pouco até atingir a chocante
intenção de enyoiver a prática ,d o urb anismo1 a edificação da
1

conformação atua1. Foram necessários quase cerni ano s para


1
1

cidade e dos seus espaços habitáveis, com, a construção, em


que as pinceladas cobrissem toda a superfície da tela. Pouca
outro nível, da identidade dos seus moradores.
gente pára e pensa no enorme dispêndio de energia social
Uma das ma1iores invenções dos pioneiros gregos foi a necessário para fazer a maioria da população rea~izar tamanho
articulação entre cidlade, assembléia e esperança de ·1iberda,d e.3 salt 0 histórico. No que foi, preciso fazer para sair da vi-d a rural,
1

Política é . sem dúvida, a mais promissora filha d,e polis. Nas sem perspectivas, e entrar em cidades onde se tentava viver
cidades e através ,das oportunidades de conscientização que segundo os mol des da mais moderna cultura capitalista.
1

passam a oferecer,4 reside a esperança desta inédita re,alização


Deixados à revelia, os pobres se vi ram mesmo m uito ocupados
histórica: a existência d,e um, cidadão brasileiro pi ena, seguro
com os problemas prement es que diziam respeito à sua
quanto aos seus d ireitos e generoso quanto aos deveres em
1

relação à sociedade da qual faz parte. sobrevivência e, por extensão, ao processo de urbanização.
Tiveram de enfrentar como puderam a neoessidade de inventar
1

Estamos vivendo um momento em que se discute muito sobre


democracia. Todos tentam abrir as próprias áreas de domínio, - emp,regosl lugares de moradia. transp orte, saneamento,
1

opções de lazer. Não se saíram tão mal: mantiveram vivas


tiransformáelas a partir de piráUcas democráticas. O p,roblema da áre,as centrais1 desprezadas por ocupantes anteriores:
democracia, no fundol é o dile1 m a quanto à repartição de po,der. construíram , de quaJq1uer maneira, fave1as em sítios impossívei s
1

16
e pro1b1dos, lorarr1 para perilerias e para cidades-nova::, e tundarnental é que perrn11arn reavaliações continuas ie1tas por
frentes pioneiras. nós e pelos outros, até que se chegue a um consenso sobre o
que é mesmo o alvo e sobre a direção em que se pode supor
Agora, porém, já v1erarn quase todos. Se antes havia fanta::;,a::;
que esteja.
quanto ao nirvana urbano e ao encontro com o progresso, a
dureza da vida já cuidou de dissipá-las. A cidade não .oferece É mais do que oportuno, portanto. retomar e rever linguagens.
saídas escapistas; só resta enfrentá-la, pois não há mais outro O que vamos dizer a essa enorme massa de
lugar para ir. Nem tudo é negativo, porém. Os crescentes recém-urbanizados que se vê frente à chance histórica de
movimentos de moradores que surgem por todas as partes, reconhecer as cidades e seus lugares dentro dela? De que
com os pobres reivindicando seu quinhão de direitos à maneira vamos transmitir o quê? Eles já não sabem melhor do
urbanização, estão carregados de esperança. É possível que que ninguém transformar na vida possível os infernos e os
as energias, antes gastas em projetos imediatos e, · purgatórios que têm de enfrentar no cotidiano?
obrigatoriamente, individualistas, comecem a se canalizar em
demandas por um meio urbano que só pode melhorar através Se a questão fosse só de experiência não haveria nenhum
de ações coletivas. de interesse geral. Estão a a-prender a sentido para nossas proposições.6 Qualquer morador de
cidade e suas regras. Tentam se apropriar dos lugares, cidade é um conhecedor profundo do que pode e não pode
tornando-os apropriados a seus fins, fazendo-os próprios. fazer. Quando se trata então de classes e de grupos sociais
estranhos à vivência normal do arquiteto, nossa ignorância e
Eis o repto para arquitetos e urbanistas. Para nós, servir à desvantagem ficam patentes. Não compartilhamos mais de
sociedade é atender às necessidades desses ensaios, ajudar a rituais comuns, o que nos permite vê-los como " outros"
firmar tais tentativas. Isso com a condição de não perdermos absolutos e, por conseqüência, distorcidos. 7
nossas características. Temos um método próprio de ação que,
A experiência pessoal, porém, é limitada. Ainda mais quando
ao fim e ao cabo, consiste na passagem, por aproximações
sujeita a contingências que não deixam tempo para a reflexão
sucessivas, das hipóteses à realidade. Segundo os mais
Conosco é o oposto. Na sociedade do saber profissional
rigorosos critérios da teoria do conhecimento, aí está um
estanque e compartimentado, temos , o "lazer" , suficiente para
método científico (Bourdieu e Passeron, 1973). Andamos com
sermos especialistas em espaço. E nosso dever pensar nisso
muito medo de usá-lo nos últimos vinte anos, escaldados com
com prioridade, prever problemas hipotéticos, resolvê-los na
o abuso de projetos oniscientes e arrogantes.
imaginação, representar o mundo para além de sua
O erro, porém , não está em materializar o deseJo de intervir no conformação imediata. Praticamos ou podemos praticar
espaço através de estudos preliminares que viram anteprojetos inferências e ilações, com a preciosa ajuda de nossos
e projetos, se corrigindo suct;)ssivamente. Não é pela renúncia desenhos e de nosso método (dialético ...) de projetar. Em
à responsabilidade de dar formas aos lugares, caindo nas resumo: recorremos a e sabemos (ou deveríamos saber ...) lidar
neutralidades cômodas dos diagnósticos e dos planejamentos com a sapiência. De novo, é adequado lembrar que a ciência
que só cuidam de generalidades, que iremos encontrar saídas. só existe a partir da interação experimentar x saber.
O que está faltando é a ida-e-vinda dos fundamentos
Trata-se, portanto, de encontrar os meios para fazer com que
conceituais, que gerem críticas alimentadoras de conceitos
conhecimento popular e erudito se encontrem e dialoguem. No
revisados, habilitadores, por sua vez, de novas práticas.
caso das cidades de Roraima vale a pena tentar. São centros
Os arquitetos têm a vantagem de possuir uma linguagern que estão começando e que já possuem núcleos de habitantes
própria, adequada à sua matéria-prima de trabalho, carregada instalados. Muitos dos moradores não trarão a memória de
de conotações metafóricas. Nosso desenho, sendo um uma vida urbana prévia. Outros estarão desejosos de superá-la
pro-jectus, é algo que se lança antes, um tiro arriscado a partir O didatismo de que se reveste a proposta só será eficaz se
das informações do que se sabe existente é do que se intui funcionar nos dois sentidos. Polfticos, moradores, empresários
poder existir. O " chute" original, ousado e criativo, nos e eventuais técnicos que venham a viver e exercer atividades
garante para além das razões práticas restritas, estas outras, nesses lugares terão de refletir sobre as sugestões que lhes
também indispensáveis à vida e à dignidade humanas, tão ~stão sendo feitas e, se possível, incorporá-las ao seu cotidiano.
bem sintetizadas pelo termo poética.s É certo que nossos A medida, porém, que executem a cidade, estarão fornecendo
"projéteis" jamais atingirão os alvos em cheio. Não importa; o material para checar as idéias básicas e talvez reformulá-las.
1/
Ser,ã o colaboradores em um desenho fjexível o suficiente para é, aliás a expectativa do,s que já estão no Território. Apostam no
1

absorver suas contr1buíções . . milagre qu,e sabem ter acontec~do em outras partes.
!É claro que· tu,d o tem de ser muito, simples. Ainda que aplicada Se se trata de ens,nar a alguém como deve ser uma cidade e
,em outro contexto, aqui t é de grande validade a máxima de como se 'P0d·e controlá-la, o público ideal são as crianças na
1
Mies van der Rohe: ' menos é mais". 0 processo de
1 1
escola (Vogel e Santos. 1984). Em primeiro lugar! pela relativa
de,p uração .de princíp ios estruturantes pode ser dos mais ausência de pr,eoonceitos e abertura para o aprendizado. Em
1
corilpfexos~ Também não hav,erá nenhum problema em recorrer segundo lugar, pelo seu poder de ''contam inar' os m,ais velhosf
1

ao que a tradição e a ló,g~ca já consagraram. Para os no ambiente doméstico. Por úJtimol porque delas dependerão,
estudiosos da cultura não exístem resíduos de passado no de qual,q uer forma, as possibilidades de prática de cidadan1ia
presente (Da Matta, 1·981). O que se pratica sempre é essencial. em Roraima.
Com a palavra ,outro ilustre arquiteto, Antonio Gaudí: user
As sugestões para as novas cidades foram elaboradas
original é voltar às origens, '.
v~sando à sua utilização p,e·la rede esco,lar. Pretendem ser
Se,n do as cidades de Roraima abertas para gente jovem que se compreensíveis para estudantes de primeiro grau. São
dispõe .a viver a aventura, tudo leva a crer que lá nascerão instrumentos para discutlr cidade e cidadania na escola.
muitas crianças. É possível também que, em al1gumas, se
repi,tam fenômenos já ,aoontecidos em 'Mato Grosso ou Para facilitar a compreensão, ensaios críticos, justificativas teóncasf
Rondô,n ia. Aí houve lugares queJ partindo do zero! chegaram , explicações e conceituações são apresentados a segu ir em págínas 1

em vinte anos, a. abrigar populações de cem mil habitantes. Esta brancas. Na parte que se refere à proposta, as páginas são ,em cinza.

NOTAS

1. Segundo Bourd1eu e Passeron (1973), o pensamento CJentít100 não é o que se de-


1
5. Bachelard (1978) reahza um estudo específico sobre o que chama " poética
tine como mais positivis1a ou idealista, mas o que, a cada ponto de sua trajetória, do espaço' ', demonstrando como, desde, os prim,eiros dias de vida, a percep;r
é capaz de bahzar sua posição. Para o cientista, a prova de seus pensamentos ção e sensibilidade humanas se desenvolvem através de sensações transmiti~
consiste em levá-los à prática e dar à realidade a chance de dízer não. das pelo espaço.
2. ·Manue1
f CasteUs (1974) ,e David Harvey (1980) são bem explícitos a respeito. O 6. Segundo Bobbio (1979)~as propostas científico-políticas coerentes deveriam re-
segundo chega a dassificar de '' idi oss;nc rasi as aleatórias' tudo o que nas ci-
1
I sultar da articulação entre a experiênc;a popular, extraída do cotidiano. e asa-
dades. não passa pelo crivo instrumental da economia política. p iência erudita. necessariamente distanciada.
3. G1otz (1948) articula a inovação do conceito grego de cidade com a invenção 7. Douglas & lsherwood (1979) assinalam que a ignorância sobre a vida e o com-
da assembléia de cidadãos. Weber {1974) diz que a Câmara (ou·'ajuntamento''), portamento dos pobres se deve à eliminação dos rituais de comunnão, típica
que tem suas raízes na Grécia, é elaborada no Renascimento até se def1nir da cu1tura burguesa. Lévi-Strauss (1976). analisando RoussealJ , mostra que o
por completo nas cidades livres burguesas, enfim cidades-plenas. que une todos os seres vivos Qnclusive os da natureza) é a percepção do ·sofri·
m,ento comum e conseqüentes impulsos de compa1xão e solidariedade.
4 . L,efébvre (1'968, 1972) chega, com provável exagero, a identificar um estágio re-
volucionário urbano como etapa de evo~ução da tiistória.

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O espaço e os Jogos (do Poder)

Trecho da entrevista feita pero antropólogo Paul Rabtnow co,m


o fílósof o Michel Foucau lt:
1

P.R. - Você entende qu,e alguim projeto arquitetônico em


i •

particujar - seja no passado, seja no presente - possa ser vísto


como força de liberação ou resistência?
M.F. · Eu não acho que é possivei afi1rmar que uma coisa
pertence à ordem de liberaçã'O e outra à ordem de opressão. (...)
Por outro ~ado, não acho que haja alguma coisa que seja
funcionalmente p,or sua natureza intrínseca ou própria -
absolutamente ii beraHzante. Liber dade é urna prática. P'ortanto,
1 1

poderá sempre existir um determinado núm ero de projetos


1

cujos objetivo,s sejam a modificação de certa restrição, seu


1

relaxamiento ou mesm10 sua etiminação. mas nenhum desses


projetos p·o de, si1mplesmente por sua natureza própriar
assegurar que as pessoas terão a liberdade automaticament,e.
Isso nâ,o será estabelecido pelo projeto em si mesmo. A
liberdade do hom em jamais é assegurada pe,las instituições e
1

l1eis que são feitas para garanti-la. Isso explica po,r que todas
essas le,is e instituições são permeáveis a uma transformação.
Não porque são ambí,g uasJ mias simp~esmente porque a
liberdade precisa ser praticada. ''
(Revista Skyline. março, 1982)
• . .. . H .. ' \

Foucault toma como tema a história, em geral desprezada, do


p!Op\ttUIOft 4"• 91Uet
cotidiano e das instituições que permeiam o dia-a-dia.
Ü were 1810
Interessam-lhe as relações possíveis de estabelecer entre poder
. ...., . 1)40
e conhecimento (Foucault, 1980). Nas suas pesquisas,
descobre que certas propostas arquitetônicas, segundo a
conjuntura, podem servir muito bem como base de estratégias
políticas.

A cidade européia e as transformações que sofre no século


XVIII merecem atenção. E' quando as técnicas de governo de
sociedades descobrem, através do que, naquela época, eram
tratados de política, a importância da arquitetura e do
urbanismo como instrumentos disciplinadores. São os políticos
e não os arquitetos que impõem reflexões sobre a organização
do espaço das cidades, os serviços coletivos, a higiene e a
construção de edifícios. Em seguida, procuram os modelos e
- ' ' . ..
...
os tipos que materializem suas pretensões. A mudança não se
origina na teoria da arquitetura, 1 não sal das pranchetas.

A consciência dos novos papéis que pode e deve


1 ;~ 1 ~ '1CI- desempenhar a cidade está ligada às espetaculares mudanças
IWI-"" M' Aio•~~ . J ~ ~ -. !. _r a que assistia a Europa. Até o século XVIII, só 2% da
jll/é,, )Q/1 )'- lfUAL,, a:;; ~1"1441«., população estava urbanizada e, mesmo assim, se concentrava
~ ::_;: 1- fl'( :cSIS) em regiões bem caracterizadas como o norte da Itália (Claval,
~,- ' 1981). O desaparecimento do Estado-nação, a hegemonia
burguesa e a evolução do processo de industrialização causam
males e bens. ·Obrigarão os camponeses a se transferirem para
cidades superlotadas para melhor submetê-los e explorá-los.
Mas, pela primeira vez, abrem o privilégio, até então exclusivo,
da vida citadina e suas práticas à grande massa (Benevolo,
1976, cap. 5). Os segredos da política e seu manejo poderão
ser apropriados por todos, já que as cidades deixam de ser
exceções e privilégios.

Como antídoto, surge a idéia de afirrnar, na urbe, o poder do


Estado até as últimas conseqüências e tratar o território
nacional como se fosse uma desmesurada cidade; a capital
fazendo as vezes de praça, as estradas de ruas. A polícia,
criada a princípio para garantir a tranqüilidade urbana, é
estendida a toda a nação. O conceito ideal de ordem é ter
cada recanto vigiado e sob controle. É preciso saber tudo.

Para que existisse o governo, era imprescindível um alter a


quem se contrapusesse, definindo os limites de ambos. Esse
"outro" é a sociedade, "real criado" no século XIX como um
todo complexo e independente, portador de leis peculiares,
capazes de perturbar e reverter os desígnios do mando.
22
Jeremy Bentham não éra arquiteto. Ele se _definia a s1mesmo - . .', . .. .-,,,,•.
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como um filósofo voltado para o atendimento das necessidades .: . .•.·•··· ·~· ::·_. ,.,.'..-·~..'• •. ;
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do mundo. Cuidava de estabelecer princípios morais para /-'.:·:::--~··.~~\-·:·•. ::.·..:,-;,'/ ·:~-...• . •.
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p rodução, privilegiando ordens favoráveis ao novo status quo .


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(Polanyi, 1980). Esse inventor inglês cria, em 1787, o modelo
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de um edifício-síntese, protótipo de todas as propostas da ,. .'·~..... .~:\'-
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arquitetura e urbanismo que, ao longo dos séculos XIX e XX,


consubstanciarão a modernidade (Bentham , 1977).

O edifício de Bentham se chama Panóptíco ou Torre Panóptica.


Como o nome revela, trata-se de um lugar que permite tudo
ver. O autor o define como um edifício-máquina, que produz
disciplina (Benthan:i, 1977). Para Foucault (1977 a: cap.3) , essa
construção não é a essência do poder e não pode ser tomada
como tal: é apenas seu diagrama, reproduzido através de uma
forma ideal.

O Panóptico é uma torre circular oca, com um pátio central,


rodeado por pequenas celas. Todas estão voltadas para o
centro do círculo e daí podem ser vistas. Ainda que façam parte
do mesmo conjunto, não se comunicam entre si , separadas por
paredes estanques . Na parte que dá para o exterior, cada cela
apresenta uma vasta janela, permitindo entrar luz abundante, O
lado oposto é gradeado, deixando quem está dentro
continuamente visível para quem se situe no meio.

Dentro da torre há outra torre, localizada no eixo da composição


cilíndrica. Nesse recinto menor ficam os vigilantes, observando
através de seteiras. O esquema é tal que nunca os confinados 1
sabem se estão sendo vistos ou não. Resultado: na incerteza, se
vigiam a si mesmos. A idéia diabólica não pára aí. A
transparência geral serve para revelar também a efic iência dos
guardas. Qualquer estranho que entre no Panóptico saberá de
imediato se está tudo como deve e poderá avaliar, no mesmo
instante, se os responsáveis cumprem bem suas funções. Disso
resulta que qualquer um, mesmo não sendo especialista, pode
estar lá no meio. O mecanismo funciona até quando não haja
ninguém (Foucault, 1977 a: cap.3 e 1977 b: 23 e 24) .

Bentham propunha sua torre como ideal para prisões. Admite,


porém , que funcionaria da mesma forma para escolas, ...- . .
r
' . . ....
hospícios, ambientes de trabalho. Permite-se até a gracinha de '
·-. -·-- -..
sugerir que seria ideal para haréns (Wright e Rabinow, 1982:3), , ··-. - -~
O estudo 'dos programas oficiais ao longo do século XIX
demonstra o alcance do modelo. Quartéis, hospitais, centros de
educação e reabilitação, construções religiosas, até jardins
zoológicos irão se inspirar no Panóptico. Instados pelos
interesses dos detentores do poder, os arquitetos acabarão por
23
desenhar fábricas panópticas, bem de acordo com as idéias de extrema de materializar o " melhor lugar/nenhum lugar"
Taylor, adepto da vigilância contínua como garantia de (eu/topos, ut/topos) , o resultado é frustrante. Congela-se apenas
produtividade. Também irão projetar e realizar soluções um conceito peculiar de ordem e de felicidade que, por
habitacionais para operários - falanstérios e familistérios -, onde definição, terá de corresponder às aspi~ações e identificações
todos devem ver o que fazem todos como recurso de do poder eventualmente hegemônico. E claro que a liberdade
re-socialização didática. Finalmente, a idéia se estende ao tem relações com o espaço, mas, antes de tudo, seu exercício
conjunto do espaço urbano no final do século XX, quando exige convergência de intenções e não apenas boas intenções.
surgem as cidades contidas do culturalismo, ou os esquemas Foucault (1982:9) considera o familistério de Guise como uma
em "árvores" transparentes do racionalismo (Choay, 1965, e proposta ambígua; poderia produzir uma grande liberação
Alexander, 1979). entre pessoas, possibilitando-lhes uma nova moral, ou poderia
ser usado para impor formas de disciplina e pressão quase
A ilusão de que é possível construir a máquina disciplinadora,
insuportáveis sobre um grupo de indivíduos.
pesadelo que fascina os governos de tendências totalitárias,
encontra sua reversão no sonho da descoberta da máquina Se o espaço é indispensável ao exercício do mando, é bom
libertária sem limites. Mais uma vez adverte Foucault (1982 :8) : lembrar que é também suporte necessário e suficiente para
"a garantia é a liberdade". A arquitetura pode talvez ajudar a que surjam disputas pelo poder. Nã9 existe atiyidade humana._

resolver problemas sociais, mas só sob a condição de que as histórica s,u mític~. gu~ sQeí)§.g,_[§f~J.ê.Dcia a.. um,,J ugar real oy
intenções libertadoras do arquiteto coincidam com a prática (e Ti'naginário que lhe sirva de c.eoári.Q.,Nas cidades, o tempo vira
- " -- r - - ,
o desejo ...) real das pessoas em exercitar sua liberdade. uma espec1e de espaço, mas cada espaço fala de muitos
A separação entre o exercício das relações sociais, a liberdade tempos para leitores distintos. O acionamento das claves de
leitura pode fazer das eventuais " desordens", instrumentos de
individual e o contexto espacial que pode suportá-las é um
artifício arbitrário. Nenhum desses elementos é perceptível sem anti-hegemonia, questionadores da ordem estabelecida. Há
referência aos outros dois. poderes discursivos que desafiam e desequilibram o discurso
do poder oficial urbano (Lefort, 1978, e Santos, 1983).
A construção da máquina da liberdade é o motor que
impulsiona a busca de utopia. Mas quando se faz a tentativa

24
O discurso oficial da arquitetura e do urbanismo foi bastante os postulados modernos em favor do que consideram um
monolítico e simplista ao longo do século XX; pelo menos até frívolo retorno à decoração e aos estilos estará se dando um
as décadas de 50 e 60. Aí, deu-se uma quebra. Prevalecia, até retrocesso civilizatório. Mantêm-se fiéis, portanto, ao
então, o dogma funcionalista de que a forma da arquitetura era evolucionismo funcionalista e à rigidez moralista e jacobina
variável dependente e só podia ser analisada através dos que embebeu todo o campo do conhecimento arquitetônico
processos sociais que lhe serviam de suporte. Hillier e Hanson dos anos 30 aos 50. 2 Enquanto isso, há pós-modernistas
(1982: 15) levantam uma inquietante questão: " há uma relação explicando que as referências históricas são significantes em si
necessária ou contingente entre arquitetura e sociedade?" e protegem do equívoco de fantasiar um mundo
Logo em seguida, argumentam que a "sociedade" não excessivamente racionalizado.
considera que o modernismo racionalista tenha fracassado
porque os arquitetos extraíram a arquitetura das necessidades Foucault (1982:12) acha melhor suspeitar de qualquer coisa
sociais, mas exatamente porque falharam ao fazê-lo. que pretenda ser retorno. A própria história se encarrega de
nos proteger do historicismo; das tendências a recorrer ao
Na verdade, a negação da forma e do estilo foram grandes passado para resolver o presente.
equívocos que acabaram apenas por emascarar uma forma
expressiva que julgava dispensar a expressão (Bonta, 1977). Como então encarar a arquitetura e o urbanismo?
Daí foi só um passo para cair nas perigosas alienações do Considerá-los débeis, submetidos a modelos de pensar Já
international style e da prática urbanística racional, desacreditados, de um lado, ou sem consistência e seriedade,
comprometidos com desenvolvimento e progresso, inimigos de do outro? É bom voltar a Hillier e Hanson. Os dois autores
localismos e tradições. Mas, se hoje tais críticas já se podem (1982:15) sugerem que há três condicionantes da forma
fazer sem que o herege vá para a fogueira, resta uma grande arquitetôniça: o ,espa~Q. a tecnologia e o e.stilo;_ou em
perplexidade: o que deve substituir o racionalismo - 1rnguagem mais antiga (Vitruvio, 1960) comodidade, solidez e
pós-modernismo ou a busca de uma nova racionalidade? Uma bele{'.a,.
.r '
racionalidade menos retórica e mais comprometida com o que
podem ser as noções de liberdade e dignidade para pessoas As pessoas normais são capazes de perceber tudo isso no
de carne-e-osso. mundo construído. Podem "ler" edificações, cheios e vazios,
observando seus efeitos, sempre detectados na sua expressão
Le Corbusier (1977) enunciava com ingenuidade e arrogância: sintética. Já a análise é outra história. Quando se trata de
arquitetura ou revolução. De um brado tão retumbante não saiu técnica e estilo só se faz possível através de pretensiosos
revolução nenhuma, mas muitos programas oficiais comentários sobre o óbvio. Trata-se de revelações baseadas
desenvolvidos com toda voracidade por países que queriam em contingência, não em necessidade. Daí, concluem Hillier e
reinventar sua história e apressar o futuro desejável. A União Hanson, só o espaço é sistematicamente analisável - "a
Soviética logo após a revolução (Palácio de Centrosoyus), o sociedade só pode expressar inteligivelmente sobre arquitetura
Brasil (Ministério da Educação, bairro da Pampulha e Brasília) e se as formas arquitetônicas forem analisáveis (através dos
a Índia (Chandigard) são bons exemplos. espaços que geram e aprisionam) e, por conseqüência,
\ As ideologias racionalistas, as propo9ições r~sultantes do;,, expressarem regras'' .
CIAM foram incapazes de perceb~r que a forma é a maneira
mais direta de § Xpressar e perceber a d·ime_nsão soc,91,da . · Criando espaços para ordenar as relações sociais, os ed1fíc1os /··
\ arquitetura. A reação pós-mOaerna, autonomizando e revestem a sociedade como são de fato, não apenas no que
!
aparentam ou pretendem ser. Eis o equívoco das propostas
r ecüperando o conceito de forma, acabou jogando a criança
fora com a água servida do banho. Hillier e Hanson (1982:15) racionalistas analíticas: elas falharam em passar para o espaço
sustentam que o problema não está na escolha exclusiva real a importância que lhe atribuíam a nível de projeto. A
entre forma e conteúdo social. As duas coisas seriam · clareza, a ordem, a lógica, a liberdade só existiam nas
verdadeiras e, mais ainda, só seriam verdadeiras se intenções que, com toda prepotência, negavam as sínteses
interdependentes. urbanas preexistentes e pretendiam substituí-las por ordens
perfeitas. Como tais ordens careciam de complexidade, nelas
Rabinow (1982 :12) sintetiza bem os dois argumentos. Os não cabia a vida de verdade. Resultado: a forma acabou
defensores do modernismo gritam que se forem abandonados mesmo seguindo o fiasco e não a função (Blake, 1977).
Af1naL o que são construções e cidades? Por certo não apenas própnos termos e pela pertjnênc1a a um complexo (H1ther e
coleções, am ontoados de espaços] mas uma qual idade
1
1
Hanson, 1982: 18).
ordenadora que resulta de sua interação. C,dades só fazem
Que hçôes existem no diálogo entre rua e casa. maténa~pnrr1d
sentido através de padrões (patternsl em inglês) que, ao
para as tensões entre controle e descontrole, ,ooletivo e privado
mesmo tempo, revelam o mundo e permitem percebê-lo. Tais 1

padrões não emergem. Apesar de hdo s e usados por todos]


1
que têm mantido viva a "realidade construída da cidade
J

durante dez mil anos de história? Hítlier e Hanson (1982:19 e


não se explicitam . Tal como na linguagem falada, os praticante~
do espaço não vivem pensando em regras de giramática e de 20 ensinam que toda sociedade escolhe algumas re~ações
1
)

sintaxe para se expressarem . A palavra não costuma discursar espaciais para controlar. As formas urbanas seriam função ,d e
formas de solidariedade social. Modos e modelos pelos quais
sobre a estrutura da língua que é falada através dela~ discursa
com essa estrutura apenas. As relações esp_aciais, portanto, os grupos humanos reproduzem seus senUdos de ordem.
apesar de reais e indispensáveis! tendem a ser práticas do É tempo de trazer outro autor para o debate. M ichef de
inconscjente (HHlier e Hanson ] 1982: 15). Certeau (t980: cap. Ili) vai, de algum modo, nos levar para as
ruas e para os jogos que abrigam e possibilitam . Ele começa
A maioria das pessoas] portanto, costuma saber mais sobre
por afirmar, de manejra ousada e irreverente para o mundo
seus espaços cotid ianos do que é capaz de reconhecer e
habitüal das cJassíficações definitivas, que não há cortes entre
processar conscientemente. O racionatismo modernista
trabalho e laz~r. São duas atividades que se complementam .
transformou o esp.a ço em descontinuidade, fragmentação,
desc,o nforto e insegurança. Contra a lógica da coietiv,dade e â Certeau (1980:76) é cuidadoso em fazer distinções entre táticas
evidência histórica, pr eferiu destacar todos os e'difíctos urbanos,
1 e estratég,as. As últimas têm caráter tecnocrático sobre
transformand~os em figuras sobre um fundo indíferenctado espaços que são capazes de produzir. enq,uadrar e impor. As
(H olston , 1982). Com o pretexto de ''criar'' 8 aproveitar o
1 primeiras constituem um outro tipo de operação: podem
espaço, acabou por ,destru,r a noção de lugar e por realçar urr1 apenas utilizar o que existe, manipufando-o e revertendo~o.
vazio infinito. erigi do em valor final e uníversalmente desejáveL
1

Como em nteratura é possível distinguir maneiras de escrever ,


O pós-modernismo, tentante reagir contra essa transformação também nas operações cotid ianas podem ser diferenciados
1

do espaço e suas conseqüênc.ias, conseguiu apenas ser contra estilos, maneiras de fazer. Esses ' 'jeitos ' criam um jogo através
uma filosofia de arquitetura; não chegou a ser uma arquitetura. da es1r.atHicação de funcionamentos diferentes e interferentes.
A propósito, HiUier e Hanson (1982: 15) caam Goethe~ os que Os árabes em Paris, por exemplo, podem ser obrigados a
não entendem o passado são condenados a repeti-lo. morar em um conjunto habitacional do governo, mas acabam
1
por fhe impor as formas de • habitar' ' que trouxeram do interior
Continua de pé a questão crucial para o futuro da arquitetura e da Argélia. O processo de superposição cria um espaço de
do urbanismo: após o fracasso de uma pretensa racionalidade jo·g o para os modos de utilizar a ordem restr;tiva do espaço.
que, falando o tempo todo de um ideal de sociedade] não
atingru nem satisfez as sociedades verdadeiras~ pode existir um
1
Os árabes sabem q ue aquele lugar, por inconveniente que seJa.
novo racionalismo? Será viável aquela converg ência entre
1 serve para viver. Sobre a lei que lhes é jmposta de c;ma para
;ntenções do arquiteto e desejo social de liberdade de que baixo instauram a pluralidade e a criatividade, oom efeitos
falava Foucault? imprevisíveis. Fazem viagens, mudanças semi sair do tugar.
Se a resposta esbver nas formas de articulação da linguagern Para Certeau (1980 ~77) tais operações são parte da
11
antjqüíssim,a arte de ~fazer com Chama-as de usanças; ações
1

espac~al. nos padrões e cód;gos e nas maneiras de atuaHzá-loti •

no dia-a-dia, haverá, por certo , algumas categorras-chave a no sentido miritar da palavra. Atos de formalídade e
acionar. f'úblico e privado. por exemRIO. Ch53io e vazio. Rua :ft inventividade próprias, que organizam, sem, chamar a atenção.
1

casa. Antíte~es comR1ementares que 0 racionalisrno_se esforçou


1
o trabalho de formigas do consumo. A idéia se assemelha
por c onfu nd Ir e negar talvez_pQJ irnt2_osição _incantarnáve! do
1
bastante à da reversão da gramática e da sintaxe pelos que
mocfo de vida e cultura cap italistas (Rolnik 1985). A rua em
1
fa~am a língua estruturada por tais códigos sem jamais
1

particular • com tudo o que oferece de troca e mistura~ surge pensarem no assunto.
como elemento fundamental para entendimento da vida uribana É preciso fazer, portantot a d1sbnção entre consu,m o de regras
(VogeL 11982). Elemento que tem de ser entendido em seus e normas, que implica a noção de inércia e passivídad-e, e

26
usança desses estatutos. A ut,ança da colon1zação perrnitiu que e nos Jogos que ele 1ntIltra nas tu nlla~ões do podei( _
Certedu
os índios americanos. mesmo dominados pela força usassem (1980:89) adverte que ··mesmo que os métodos ~rat1c~dos
le~s, práticas e representações para fi ns diferentes do dos pela arte da guerra cotídíana não se apresentem _1ama1s sob
conquistadores. O exempl0 do que os escravos fizeram com a
1
uma forma tão nitida não é menos verdade que Jogadas
1

religião católica no Brasil é bem ilustrativo. No caso ! houve arriscadas sobre o lugar ou sobre o tempo distinguem
uma subversão Hde dentro" a uma determinação a que nem maneiras de agir "
os índios nem os negros poderiam fugir. O jeito foi metaforizar
a ordem dominante; fazê-la funcionar sob outro registro Habitar! circular, falar. ler=faLer corn pras ou cozinhar pare?ern
1
fazer parte de surtidas, de ataques táticos. São boas ' partidas·
(Certeau . 1980:79).
dos fracos sobre a ordem estabeiec,ida pelos fort,es. Certeau
A estratégia (Certeau l 1980:85) é o cálculo ou manipu lação dati (1980 :91) irá classificá-las oomo a arte de dar golpes no campo
relações de força que se torna possível quando um agente do alheio. Astúcias de caçador, mobiHdade de bons ba~larinos da
querer ou do poder (exército, empresa, cidade, instituição corda bambal piruetas de tourei ros, poéticas e guerreiras.
1

científica) é iso,ávef. Toda racionalização estratégica visa


11 Bem a propósito de tamanha terminoil ogia militart Foucault
determinar um " entorno}' ou um p róprío i,, isto é . lugar
(1982:17) lembra que há poucos exemplos, "sim1pl es e
1

apropriadot adequado para a prática daquele pod er ou


1

excepcionais' ', onde a arquitetura pode expressar de forma


vontade. Ela implical portanto, um corte em relação ao ' ·oulro
definit,va a hterarquia social. O melhor exemplo é o
ao que fica de fora e se constitui em potencial ameaça, os acampamento militar. Aí a ordem pode ser lida direto no
concorrentes. os inimigos. o meio rural, o objeto da pesqu ~sa. terreno conforme o assentamento das barracas e o
1

O rompimento que estabelece o ''próprio!] é acompanhado por agrupamento das categorias. O caso. porém, é especiaL O
alguns efeitos consideráveis! segundo Certeau: predomínio absoluto e acabado da estratégia no espaço, sern
~ vitória do espaço sobre o tempo ; chance para táticas desviantes dos fins previstos, só é possíve,i
~ parcelamento do espaço, permitindo uma prática panóprIca; em um ambiente singular. O exército é privilegiado dentro da
que transforma o " outro" em objetos observáveisl socie,dade e só pode existir com base em enormes
mensuráveis e controláveis; simplificações . A cidade é o simétrico exato do acamp,a mento ~
toda feaa por desordens táticas, nelas expressa a
poder do saberj capaz de transformar a história em espaços
complexidade frágil que lhe permite, apesar da mudança .
leg ívels.
1

contínua, se manter fntegra. Ser, no mesmo lugarl o que foi, o


A tática (Certeau 1980:86) só pode ex1st1r a partir da
1
que él e o que poderá seL passado, presente e futuro nos
delimitação exterior, funciona dentro das fronteiras desenhadas tempos indicativo e subjuntivo.
para o noutro' ·. Não tem maneira de se sustentar a si mesma.
A cidade pode, poisl ser entendld'a como uma ··prolifer~ção de
É movimento no interior do campo de visão do ínimigo (von manipulações aleatórias e incontroláveis, no interior de imensa
Bülov, apud Certeau). Só pode existir no espaço controlado por
malha de restrições e ,d e certezas sócio-econômicas'·. Há
1

ele e se realiza g olpe a golpe. A tática se aproveíta da ocas,ão.


1

··miríades de movimentos quase invisíveis sendo jogados sobre


faz ' 'parti,das' mas nào tem como acumular seus benefícros,
J ,
a textura cada vez mais fina de um lugar homogêneo, contínuo
não guarda, não acumula.
e apropriado a todos'' (Certeau , 1980:82).
Assim como a estratégia se organiza a partir de um postulado
Sobre tal mutabilidade caleidoscóp~ca é possível arnscar algum
do poder. a tática é determinada pela ausêncía de pod,er. As
tipo de redução pré-elaborada, mesmo se a proposta é
estratégias são ações que. a partk do estabelecimento d e um
1

experimentar um novo racionalismo? Certeau (1980:175)


lugar de podert elaboram lugares teóricos (sistemas, discursos.
imagina que sim. Para planejar a cidade se deve~ ao m~smo
planos e projetos totalizantes). Estão aptas a articular um tempo, pensar na própria pluralídade do real e tornar ~f1caz
conjunto de sítios físjcos onde se repartem as forças.
essa maneira de pensar. Trata-se de sab er e poder articular.
1

Combinam, assim1 três tipos de lugares.


O discurso utópico do urbanismo (Choayl 1973:293/317) se
As estratégias se apóiam na resistência que o estabelec1rnernu
define por uma op,e ração trípfice:
de um lugar oferece ao ataque do tempo. As táticas consistem
na hábil utillízação do tempo, das ocasiões que se apresentam -produção de um espaço próprio~

27

..___
· su bst~u 1ção da resistência tetmosa das tradições por um ··não-tempo J' m,croscóplcas, singulares e plurais que urn sistema urbanist1co
ou sistema s1 ncrônico;
1
deveria controlar ou supd1 mir e que (no entanto) sobrevivem à
. criação ,d e um tema universal e anônimo que é a própr~a ci,d ade sua caduc~dade' '. A própria ad:ministração, panóptica reforça a
ilegitiimidade, eshm ula práticas invisívejs, regulamentos do
Há um preço a pagar. porém r pela racionanzação do urbano. A d,a-a-d~a, criatividades sub-reptícias. Hlá práticas. no e so,bre o
cidade passa ser m}tificada por discursos estratégicos. A espaço que jogam e vencem o jogo viciado da disciplina; que
or,ganização funcionalista, ao privtlegiar o tempo sob a forma
tecem, efetivamente, condições determinantes da vida social.
de progresso, taz esquecer sua única possibilidade ,d e
Nas cidades se, vê, de fat,o. uma contradição contínua entre ·'o
existência: o espaço. Este acaba por cair fora do pensamento
modo coletivo da gestão e o mod,o individual de uma
técnico científico e político (Certeau 1980: 176).
t 1
reapropriação.,_ A anáHse de Foucault aparece aqui retomada ·e
Na ciidadei reduzida a conc,eito, são possíve~1s apropriações e espelhada através de uma reci1procidade (Certeau, 1980:178)+
1

interferências. As táticas indispensávets à sobrevivência


Em que consistem, e,m suma, as rellações entre espaço, jogo e
cotid~ana, porém, crtam sem cessar inovações. Ei1s o meio
p,oder? Certeau (1980:1'97) recorre à :,magem de uma criança
urbano. visto enfim como para,doxo: máquina automática e
em frente ao espei1ho. Ai, ela se reoonhecerá como um e como
1

impiedosa de modernidade; suporte de possíveis nberações. 1


outro (a imagem com qu,e aprende a se 'tdentificar) ' PraUcar o
Para Certeau {1980:177) ~a linguagem do poder se urb,anizat espaço é,, então. repetir a experiência jub1 iilatória e silenciosa da
1

mas a cidade é entregue a movi,mentos contraditórios que s,e


1
infância.. E, sem sair de si, ser outro e passar por outro(...). A
1

1
compensam e combinam fora do poder panóptico' Nas • infância, que det,ermina as práticas do espaço, desenvolve em 1

mít~cas políticas, a cidad e passa a ser o grande tema. Nada de


1 1 seguida. seus ef eitos, prolifera, inund,a os espaços públicos e
1 1

"usões, entretanto. Aí não está o campo ideal para ações privados, a despeito das superfícies leg rveis~ Cria, na cidade
programadas e controladas~ Predominam, sob os discursos pl anejada. urna cidade metafórica ou em movimento. como a
1

q ue ~deo~ogizam imagens ideais, as d i1sputas, as · •su rhdas', sem


1
1 sonhava Kandinsky: uma grande cidade, construída segundo
i,dentidade clara, sem transparênc ia racional. Por baixo, da capa
1
todas as regras da arquitetura e freqüentemente sacudida por
da ordem sobrevive a1lgo impossível de gerir. uma força q.ue desafia os cálculos.·'
Por aí está a saíd.a, quando a crença no prog resso, desilud'i1d a,
1

vira pregação d? catástrofe.- É prec~so '·analisar as práticas

NOTAS
1. Em que pese à intuição gema! de Boulée (1976) desde meados do século 2. A v~são funclonalista evolutiva que embebe suas raízes na visão intelectual
XVIII. Suas propostas conceituais e modelares, no entanto, só irão encontrar típica do século XVIIII mantém-se presente em Gjedion (1941), Benevolo (1976).
condições plenas de inspirar a prática arquitetônica e urbanística no fim do Zevi (1974) e até mesmo em Tafuri (1977).
século XIX.

28
'

··~·

LA·
As ci dades como foram sendo
1

em to do mundo 1

Até o final do século XIX, os assuntos urb,anos não


jnteressavam nem à especulação nem à pràtica c ientífica. Jà
1

existia, e bem definido, o p rofissionaj especjalizado em agir


1

sobre c idades. S,eu domínio, no entanto, é outro. Nos séculos


xv1,, XVUI e XIX faz parte da Academia de Belas-Artes. Sua
preocupação é c,om o que hoje se chamar~a de ·'desenho da
cidade", de ![ boa forma urbana.,.
Os mentores ·d o poder político absolutista e logo burguês, que
encontra sede e símbolo em renovados conce1tos de cidad,es,
querem aplicá-los a espaços concretos. Percebemt com
intel igência, o quanto avenidas. palácios e monumentos
1

contribuem para definir o novo mundo d e relaçôes sociais. Há


1

um grande esforço d,sci1pl~nador que, começando das


cidad elas dos poderosos, che ga, em trezentos anos1 a se
1
1

estender a cidades inteiras,, tornando-as, ao mesmo tempoi


bon itas e 'itransparentes' '. As capitais são usadas com10
1

espel hos d idáticos que servem a seus próprios cidadãos, à


sociedade nacional e a certos objetivos controladores do
Estado para utilização interna e externa.
Na mesma épocaj porém, se firmam na Europa os pr,ncíp10s
do racionaliSimo Hum,inista que desemboca no século XIX na
aplicação prática d,e co,nheci1
mentos transmutados em ciêncja_
É nesse período, por exemplo, que se dá a evolução
modelarm ente bem-sucedida da m,.edtcina; alçada, d•e parente
1

maldita das feit1


içar1as, a saber legitimado) conforme
demonstram Foucault (1972) e IUich (1977). Uma carreira tão
fulminante não poderia deixar de despertar ,emulaç,ões.
Registra-se uma verdadeiira Hcorrida ao ouro' ' científico. H á
1

pressa em inventar ramo,s e sub-ramos de disciplinas que se


propõem a cobrir e a explicar tudo o que possa ser p,e rcebido
pelo cérebro e sentidos humano,s.

31
Os conhecimentos relatívos ao espaço, com forte cunho
simbólico, viviam um estágio de retração hibernal. Há algum
f .
tempo estavam na contracorrente. Quando a Europa não
concebia pensar fora dos princípios escolásticos (séculos XII a
XIV), a arquitetura (e, por extensão, o que dissesse respeito ao
1 • •
• meio ambiente produzido) atingiu um ápice. Panofski (1976)
demonstra, com b rilhantismo, como os mestres construtores.
interpretando um complicado corpo teórico, aos poucos
atingem o status de sábios, executores em pedra de teses e
demonstrações metafísicas. Nessa mesma ocasião, não era
raro que se premiassem físicos e médicos com a fogueira. Nos
quatrocentos anos, subseqüentes, a importância social e
política dos arquitetos foi decli nando, enquanto a estrela dos
antigos charlatães só fez subir. As trajetórias opostas das duas
profissões, uma ascendente, outra decadente, não são alheias
à grande fragmentação de domínios pós-renascentistas. Livres
das restrições da religião, os empiristas tiveram a sua chance
.'
de pensar, de refletir sobre experiências enfim permitidas
(pesquisar em cadáveres, por exemplo) .

'·. 1 •
' Na cidade dos homens, em contrapartida, o construtor não é
. •. mais o intérprete das ordens esotéricas do divino. Vai sendo
., empurrado para uma das muitas seções do novo reino desse
-
..
~!
mundo - a arte - e perde a antiga importância de
elemento-chave para a totalização. Como é lógico, o declínio
;. .
começa no auge. Urbanistas e arquitetos-perspectivistas da
.•
~- .
renascença têm extraordinário prestígio. Justo pela aceitação
de sua supremacia intelectual nos meios em que viviam ,
difundiram parte das idéias que marginalizariam as atividades
.
-·- ·-
----~
--·- de seus colegas no futuro .

.•-7,i.~ •.... \ _•, . '.-\_ .


. 1

..
,,.. _, f~•""'
oe:. ,..·-••·-· ~, •• .. É preciso, entretanto, defender-se do perigo de proceder a
"1 'H ..J ,. ~-,:• {,
••
•• • ,
' ·•,)
'1
1 uma leitura de exagerado esquematismo. Na formação do
~\,.' •~ ,
Estado moderno foram atribuídos a médicos e a
.
. .
,\ .. arquitetos-urbanistas papéis diferentes. Aos primeiros coube, no
início da versão científica da profissão, a tarefa fundamental de
contar as pessoas e identifícar suas condições de saúde. Assim,

as potências que surgiam estavam aptas a programar ações
econômicas (sabiam que força de trabalho podia produzir bens
exportáveis) e políticas (conheciam quantos homens podiam
mobilizar para a guerra). Quanto aos especialistas em espaço,
foi-lhes encomendado expressar, através de um repertório de
símbolos monumentais, o que seria o novo status quo. Para as
nações eu ropéias, preocupadas com questões de definição.
tratava-se de investir em razões práticas ao mesmo tempo que
em signos. Sucede que a própria materialidade e o
pragmatismo são erigidos em simbologia dominante na cultura

32
bu1rguesa. É po r isso que as ciências ap~Icadas ganham . Às
1
casos, a tônica é o autoritarismo esclar,ec1do. Os pensadores
outras formas de conhiecímento só resta converterem-se a elas~ sabem • porque filosofam melhor! o ,q ue convém ao conjunto
sej1a em que nível for. das respect~vas sociedades urbanas e nacionais. Para dar o
toque de convencimento indispensável, travestem suas id éias 1

O urbano começa .a ser r epensado para se aJustar às


com todos os ader eços de ci1ê ncia p ositivista a que têm direito,
1

1 1

condiçõ es do campo intelectual hegemônico muito tardiamente.


1
1

E não são as cabeças de arqultetos ou de urbanístas que se 'É patente o esforço empreendido para críar e dar solidez a
ocuparão primeiro do assunto. São profissionais, técnicos e teorias respeitáveis e de alcance o mais u n,versal possrível. As 1

filósofos, preocupados em1racionruizar o comportamento socialf


1
transform,ações almejadas para cidades e agrupamentos
em criar teor~as para explicá-lo e para lidar com ele . 0 estí1
m ulo 1
humanos desembocam iem intervenções que devem ser
é dad1 0 pel10 próprio meio• em que vivem . As grandes cidades localizadas e se realizar em espaços singulares. Logo,
européi1as no século XIX se tornaram incompreensíveis para os urbanistas, arquiteto,s e engenheiros são convencid,os e
que as representavam segund 0 os velhos modelos. Estavam
1
1
convertidos. A experiêncta concreta deve se 'cientifizaf o que J)

entupidas de traballhadores e, o que é pijor, ,de ameaçad,oras


1
subentende uma ida·&vo:lta: são produzidos concejtos
hordas de desempregados. Cresc~am para .além d 0s limites 1
paradigmáticos que oriientam os executantes; os espaços
que as definiam. Eram destruíd.a s para demonstrar~ em ce,rtos produzido s servem de prova e de modelo da excelêncía das
1

trechos, novas linguagens econôm1 icas e poHticas que! às vezes, idéias. As questões m1uito abrangentes r·elativas à regi1ão, à
não se harmonizavam e suscitavam c,o nflitos ... economi,a e à cu1 ltura sã0 desprezad'aS nas suas versões
1

seculares, de configuração ~1 m,edíata~São encaradas como


Sanitaristas! refarmadores socíais~ utopistas estão embebidos metas prospectivas, algo a moldar não no presente, mas no·
dia sede de saber característica daq1ueles tempos~ Querem futuro, a partir de ações-semente q1ue se fazem aqui, agorat
1

1
"esclarec e( &\limpar" suas ci1dades escuras e sujas. É preciso
1

nesta cidadlel neste l ugar. Perspectivas idealistas se
1

poder v,eir o que acontece por trás das 'fachadas decadentes, tiransformam, sem trans;,ç ãoJ em atos d,e positividade simpl,es e
dentro dos casarõ,es promíscuos, nos pátios e arrabaldes onde cândida, monstruosos na ver,dadel apesar de ou devido à sua
se adivinha instalada a doença física e ,a moral. Trata-sej antes grande pureza. Com eçam a surgir , ,e sponsáveis pela forma de
1

de mais nadaj de deixar entrar ar e luz. E ordem . Quem vê novo,s espaços. Arqudetos e urbanistas visi1onários se fdíam a
1

tudo, controla tudo e pod e tudol conform e esclarece B,e nth,a m


1 1

duas correntes pr1i1ncípais quej dra í por diantet liutarão para


(1977) com sua gaiola panóptic,a . As técnicas disciplinares tran1sfer1 ir o patrocíni,o dos meceryas à ace,tação pelo ensino
através de arranjos espaciais que, com tanto sucesso, of,icial ,e p,e los governos loca~ e nacionais. Trata-se do que
passaram das prisões, internatos e outras instituições tota~s para Choay (1965) designa por CULT U,RALISMQ e 1

as fábri1cas de trabalh 0 metodizad10 , começaram a ser


1

AAC I0~8L1 ISM 0/P:ROG R'ESSl SM Q.dM


1
1
1

sonhadas para c~,dades. Alguns, como os já famosos


rnédicos-hig~enistas (mais soci,ó log 0s e pedagogos que 1 Desd,e o inieio do século XX. aparecerr1,p rofissionais agindo
1

médicos no sentido atual do termo), têm objetivos s0bire, espaço,s urbanos rea~s através do, qu e p,od,eria ser
1 1

conservadores. Querem maior controle do espaço para gaianur chamado de TEORIAS PRATICADAS. Como tallvez todos os
ma1ior produtividade da força de tirab,alho e menor ameaça à seus antecessores na h~stória, são, grandes conversores de 1

saúde das classes ma]s altas. Allém dissoj visam facil,tar a ação utopias. Ocupam-se em transformar e,m cidad,es de p,e dra (ou
dlo poder em ambientes que, po,r patogênico,sl seriam de concreto armado, a sua p,edra... ) as nc idadies de nuvens"
propícios à crimi nalid,a de e à sedição~ à ,explosão dos de fHósofos. refor madores e pifop,osito,res de códig 0s morais.
1

m iseráveis que não tê1 m na,da a perder; mai1or problema uribano Carregado,s de ingenuidade, arrogantes, saudavelmente (?)
do ponto de vista político (Hobsbawn, 1976, e Foucault, 1979)i. louc<:,ls, -~rvoram-s~ em trazer para a p rática cotidiana conjuntos
1
1

9e s:1gn1hcados a 1noorporar como novo, real Para fazê-lo,


1
1
t
1
'.

Já uto p~stas e reforrnad ores renunciam à ordem existente. por


1 1
percebem que têm à mão um modelf1 0 excepcional: mais do
~rrecuperáve~ ~ e enunciam pro,p ostas iné,d itas de re~ações que qualquer outro especialistai entendem as cidades com10
sociais que ex~ gíriam c idades e e,dificações adequadas. Essas,
1
metáforas exemplares de modos de vi1 d a. Saltam~lhes à vista~Jâ
por sua vez, seriam1tão expressivas que induziriam, pela que se d ispõem a ver tão de perto todas as contradiç,õ es e
própria forma e dispo sição, a inovação no trabalho, na famima,
1 1

conUi tos mil,imétric,os inerentes a esses DISrCURS,QS


1

na religião e no lazer. N em é preciso dizer que. em ambos os


1

SINTÉTIC 0 S q ue são as cidades. Guiados pelo, faro} pr evêem


1 1
1

33
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34
o seu progressivo efeíto impositivo no dia-a-dia de milhões de Do ~nício do século XX até hoje vão se sucedendo as explicações
1

pessoas. Tentam corrigi-lo, transformando o que é exe~plar ern eco~ngistas, m orf olog istas, neoclássicas, economicistas,
disciplinar. Inventam assim os planos locais e setoriais de neomarxístas. neopolíticas. que formam escolas, campos de
desenho urbanístico. P_rojetarn no mun do uma realida•d e que
1
interpretação autolegítímados que se respondem uns aos outros.
DEVE existir porque JA EXISTE construída na cabeça de querr1 A década d,e 80 apresenta u1 m arsenal de idéias sobre o urbano
é capaz de lê-la. Naturalm ente, não se tratai como se acreditava
1
como nunca houve antes. como aponta com ar gúcia Farret
1
1

antes, de mero exercício inspirado die criadores geniais, mas de (1985). Configura-se~no pleno sentido da expressão, uma
diálogos entre indivídluos mu~to perceptivos com os campos PRÁT~CA TEORICA das mais avançadas. São pensamentos se
intelectua~s ,d e que fazem parte e, por extensão, com os opondo e respondendo a pensamentos, tudo em c,ma de um
momentos histórico-culturais que lhes sustentam. objeto de referência oríg1ínal - o es,paço intra-urbano. 1

Mas a academia científica! que se apoderou das excelências do Os úttimos modos de pensar têm sido valorizados, no Brasi1I ,e
pensamento da cultura ocidental e industrialista! produzi u outro
1

no exterior! como os mais "sérios • Sacra,mentam-nos os


j .

tipo de experts: ge6 grafos, eco,nomistas, cientistas soci1ais. Poir


1
centros acadêm~cos superiores. onde se gera 8 se gerencja a 1 1

caimínhos distintos! esses senhores tam1bém acabaram chegando cultura erudita of ~cial. Servem portanto, de referênci,a a toda a
l

aos mesmos meios urbano,s onde seus colegas de outras áreas comunidade especializada. Converti~os 0u céticos que
1

exerci1am suas ações empíricas. Como eles, também estavam dese·je1


m ser ouvidos não podem de_ixar de ~sá-los em
1

muito empenhados em leg,itimar suas opiniões e seus domínios referências im ptícitas ou expHcitas. Tornaram-se ~ndj,spensá veis
de saber. D ~spunham de outros recursosj como dados
1 a análises e reflexões. São os fornecedores, por excelência,
estatís1icos e demográficos que lhes permitiam métodos de dos MÉTODOS DE ANÁLISE E REFLEXÃO CRIÍTICA.
estudos distintos e de outros enunciados para aplicar ao mesmo Adquiriram autonomia específica: se multiplicam ,e se1

objeto. A.larm1ados e pessimistas, frente às explosões urbanas aprofundam a partir de si 1 m,esmos.


que sabiam inéd ~tas, construíram e trataram de validar, comi foros
1

mais ou mein 0s científicos, uma séri~ de teorias explicativas das


1

razões de crescimento e mudança nas ci1,dades.

36
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As cidades como puderam
ser no Brasil

Nós não gostamos mesmo de passado e v~vemos corno se não


tívéssemos memória e eil.a não serv~sse para nada. Este país,
que nos habituaram a acreditar produzido por casual1 idades,
nasceu pro,nto, foi ocupado a partir de decisões de governo
1

pré-elaboradas. Basta pensar nas pri,meiras tentativas de


concil~ar administração e território; aquelas capitani.as
heredi1tárias. ~lnhas para1
lel1as feitas a esq1uadro s,o bre uma terra
que nem se sabia como era nem o que continha. Mas que S•e
queria discip1 l~nada e sob controle, aumentando glória e riqueza
dos colonizadores.
E as pri,m,eiras cidades? São Vicente. Salvador, Olinda...
pedaços de Lisboa no trópico, concebidas prontas. Os
fu nc~onáhos ,que vinham fu ndá-~as traziam orientaç,ões estritas;
Casa da Câmara aqui, igreja ai i, adiante fortaileza e colég ,o.
Com os padres a mesma coisa. A primeira at1v1dade dos
jesuftas era ''r eduzir' · os índios. Isto é. transferi-los da
1

r•desordem'' de suas aldeias, para aldeias racionalizadas à


manei1ra ,d a contra-reforma, ato que, sozinho, correspondta a
uma lavagem cerebral completa (Baeta Neves, 1977).
Durante muito tempo nossos exphcadores de,. fenômenos de
urbanização acreditaram no espontaneísmo. A diferença dos
irmãos hispano-americanos que bveram as cidades cerUnhas,
retilíneas das ordenações reais, as nossas surgíram e se
desenvolveram ao deus·dará. Hoje, muitos autores sérios
duvidam disso. Os portugueses trouxeram regras c laras para
definir público e privado, para localjzar equip,arnentos para
sep,arar as terras particulares doadas hierarquicamente aos
pioneiros das ind,ispensáveis ao atendimento de necessidades
coi etivas. No que diferrrarn to, na escolha dos -sítios. A mesetas
1

e planícies preferiram sua trad,ição de ocupar morros. 1


1
Pa:ra as
finalidades que perseguiam, foram , aliás, b,astante intelig,entes.
Rio e Salvador são para ninguém b,otar defeito em matéria de
1

bom aproveitamento de um suporte ns~co cornpficado.


39
Remexedores de mapas e papéis velhos conseguiram provar investimento em beleza; aumento de funcionalidade; desafogo
que muitas cidades disseminadas pelo Brasil afora cruzaram o de áreas congestionadas; compatibilização com novas
Atlântico sob a forma de " riscos" (traçados reguladores) e atividades econômicas. Por trás de tudo, a grande razão
regulamentos que ordenavam a boa disposição espacial, o escondida: desejo de um espaço bem arrumado que seja, ele
abastecimento e a defesa, muito antes que se lançasse sua mesmo, um discurso de ordem . Pessoas, atividades e usos
pedra fundamental. Foi assim, por exemplo, que se conquistou devem ser bem classificados e discriminados nos devidos
a .Amazônia. Pois é, planejamento físico-territorial e urbano não lugares. As misturas incomodam.
são novidades no Brasil. 1
Como se mantêm sempre vivas aquelas escaramuças entre as
Todo mundo sabe que, desde as origens. sempre houve abstrações idealizadas e as práticas de vale-tudo, é preciso
tensão por aqui. Tensão entre as boas intenções abstratas que conviver com muita coisa fora dos trilhos. Escritas certas nos
nos trouxeram, do tudo certinho e sob controle para agradar a lugares errados, erros tipográficos como as favelas. Ou escritas
el-rey, e o salve-se quem puder das práticas possíveis. Se os anacrônicas para as novas edições de luxo, como comércio
bandeirantes, por exemplo, fossem ligar para as restrições pobre ou cabeças-de-porco em avenidas abertas para outros
burocráticas que constavam nos mapas oficiais, nunca fins. Ou escritas pouco elegantes que têm de ser afastadas dos
chegaríamos aonde chegamos. O malfeito e o errado olhos requintados, como subúrbios distantes,
trouxeram resultados bem lucrativos. Vai ver que é daí que vêm cidades-dormitório, loteamentos de periferia, centros pioneiros
nossas habilidades em tirar proveito da junção do muito rígido, permitidos nas localizações mais desagradáveis, onde gente
do que se pauta por normas ideais, com o que se faz de "civilizada" jamais poria os pés.
qualquer jeito, como dá na hora e sem previsão nenhuma.
As propostas de desenvolvimento a partir do fim do século XIX
Antes do final do século passado, as cidades no Brasil eram apontam uma trajetória retilínea, cheia de determinação, que
raridade. Quase todos viviam fora delas. Com a abolição da passa pelas cidades. Passa só, sem se importar muito com os
escravatura e o advento da República, surgem novos ideais e efeitos não desejados que causa. Não há novidade: é um
novas necessidades. Deseja-se uma outra ordem e, para tempo em que tradições antigas estão sendo superadas,
implantá-la e preservá-la, as cidades são imprescindíveis. O Rio enquanto são propostos novos modelos de articulação da
já estava pronto para i"sso mesmo. Viramos o século com a sociedade. A tendência é usar tudo o que já existe à maneira
capital do país figurando entre as mais populosas do planeta. de suporte. É assim que vão se armar quase cem anos de
Logo outras se aproximaram do seu tamanho, obedecendo a conivências rumo ao "progresso".
um processo de urbanização sem precedentes. Não vai muito
longe o tempo em que ainda tínhamos orgulho dos centros que Elites, classes médias, massa, instituições e grupos passam a
"mais cresciam no mundo" . Hoje não deve haver muita gente se embalar no mesmo sonho. Proclamada a República. o que
achando todos parecem querer é deixar para trás o passado morno,
.. graça nessa história.
onde não são encontrados motivos para orgulho. Desenha-se o
Se já havia contradições nos albores da colônia, elas só projeto de um futuro grandioso, ao qual não escapa ninguém,
aumentaram ccim o uso funcional das cidades como nem mesmo esquerdas ou intelectuais críticos. A nação, em
impulsionadoras do desenvolvimento e sedes do capitalismo à busca de uma identidade que terá de possuir, que está
brasileira. O Rio, bom exemplo por ser modelo urbano para o predestinada a possuir, define seus mitos para ter como se
país em todo o período, sofre intervenções sem parar. E apresentar. A harmonia racial, a cordialidade, as riquezas
reconstruído e embelezado por Pereira Passos para que naturais inconcebíveis e inexploradas, o novo modelo de orden,
tivéssemos uma capital que não nos envergonhasse frente aos e progresso... (Da Matta. 1981 ). Idéias reveladas ou implícitas
países progressistas e civilizados, Um pouco adiante, vai ser no positivismo do ensino oficial, reafirmadas nas promessas
entregue à sabedoria de ilustres europeus que vêm aqui dos que empolgavam o poder, repetidas pelos meios de
desenvolver idéias sobre planos diretores urbanísticos comunicação que aumentam seu âmbito, presentes nas
recém-saídas do forno e testar suas teorias.2 Tem pedaços conversas cotidianas e coerentes com anseios e fru strações
inteiros feitos e refeitos no Estado Novo e nos períodos dos indivíduos. Superados quatro séculos onde tudo parecia
subseqüentes. Tamanho afã de ampliar e reorganizar a cidade bem situado dentro de seu lugar hierárquico, quando era fácil
vai se justificando por muitas razões: garantia de salubridade; saber o que cada um era, segundo estruturas verticais
40
evidentes e bern conr1ec1dasl aparece urn povo inteiro torça de rr abalho li berada, a busca de uma nova art~cuiaçào no
querend,o REconhecer-se.3 sistema p rodutivo. Pessoas potencialmente úteisl que logo iriam
equilibrar a expansão da demanda de ma.o-de-obra no terciário
No país, marcado desde as ongens por diferenças soc1a1~
e no secu ndário , evitando a ,d ependência d,e uma casta
ríg~das (nascença) cor da pe,e f privilégio de não teir de
exclusiva de operários indispensáveis. Mas eram também a
trabalhar) ! igualdad1e e dire~tos do indi1víduo surgem corno
massa indesejável, os penetras na festa de polis que, pela
p,a râmetros d,e snorteantes. É preciso algo que una todos. por
primeira vez, ti nham acesso aos seus privi~égios.
cima dos paradoxos e das d ~vergências de interesses. Cumpre
esse papel a vontade comum de fazer coincidfr extensão Vinham, tolerados é verdade, mas sem ser chamados)
11
territorial e desbno. Ambos serão grandiosos. Serv~u 'p ara unir desejosos de ·ver o movimento e, logo! de fazê-~ 0 eles
1
1

mandões e explorados, pobres e ricos sobre 8,5 milhões de mesmos. Tornam-se agentes dlo p,a radoxo inevitável na
quilômetros quadrados o consenso d,e qu ef à falta de suportes
1
perversa ci,dade-m1ercado do capitalísmo. Rompidas as
no passado, iríamo nos destacar por chegar antes.
9
tota~1zações anteriores podem existir em diversos planos. í\Jo
Realizaríamos o futuro pdmeiro, passando à frente das demais campo econômico m.antêm-se dominações e dependências. A
nações quef por enquanto, só por enquantol nos hurnHhavam~ situação antiga parece piorar. Não têm rna~s amos e senhores,
fazendo-nos engo l\r seus modelos. Pois bem, iríamos eng1oli-1 0s
1 1
responsáveis por sua existência, por pior q ue ela seja. L,ivr,esl
sim . sern reagir, para incorporá-los potenciados adiant,e. Como vão consbtui,r a :m assa de desempregados a quem é entregue
já o fariam t por exemplo t o,s ' jcavalos" das entida,d es nos ., o total arbiitri10 sobre a própria sobrevivência, sem que lhes
rituais de umbanda. Segu~ríamos os moldes antropo:f ágioos que tenham, sid,o dados os instrumentos necessários para provê-la.
sempre nos souberam bem . Mas! como indivídu 0s, no campo político, são iguais. Po,dem e
1

devem se representar e reivindicar. É preci1s0 ouvi-los e, em


O clima ide,o~ógico a partir da Pnme1ra Re,pú1blica sugere um,a
alguns casos, cortejá-los e esboçar soluções específicas para
sacudida nervosa. Hâ um ativismo apressado depo~s d1 e tanta seus problemas. Passa a ser uma questão fundamental para o
letargia. Em lugar de Hé assim porque é assim mesmo" ,
governo tomar med idas que exorcizem o velho fantasma das
1

aposta-se em uma socied,a de d,e utopias. Vale dizer: de cidades.


grandes aglomierações urbanas: o peri go de se,dição da turba
1

A cidade, cheia de proposições civilizadoras • vira emblema e


{HobsbawnJ 1'970, e Foucault 19i79).
meta do progresso. Não é, no entanto, uma c idade qual,qu,er.
Trata-se do esperto modelo ellab•o rado na Europa dos séculos Para os pobres d'o fim do século passador corno paira os de
XVUI e XIXI quando. para dar lugar às voracidades da agora, a v,nda para a cidade rep,resenta a possibilidade de
expansão capital ista, o conceito de ágora, determinantie para entrarJ de repente, em outro mundo. Em q1uase um século de
os ajuntamentos urb,a nos do ocidentel4 foi stmpli1ficado, para mig raç,ões, a s,tuação demográfica se inverteu~ hoje é a minoria
1

mercado de trocas materiais. As cidades b rasileiras, produto de


1 ,q ue não está em grandes ci,d ades. Do ponto de vista das
uma fase já arcaíca da expansão burguesa européia~abrem-se int enções ~tudo continua igual. Não importando as grandes
1

para um novo assalto, são sujeitas a grandes convulsões. raz,ões estruturais que se querem determinantes. há crenças,
agora vistas oomo tngênuas pe~as elites do pensamento, que
Os -escravos libertos pela Lei Áurea vêm para o Rio. Os vi,abiilizaram as transformações.
ex-comb,ate ntes de Canud:o s também . Uustres precursores dos
milhares de favelados que virão depois. Gente se1 m alternati,vas, !Da República Velha aos tempos atuai1s abnu-se uma espécie de
é verdade. Mas ,g ente que estava conv~cta de que essa era sua hiato no mundo urbano bras,leiro. El,e ficou se reformulando:
grande chance. A atitude preconceitu,o sa dos cronistas da1
não era mais o que· foral mas nunca cheg1ou a ser o q1ue se
época que chegaram a prestar atenção ao fenõmeno 5 deve ter queria que fosse . É significativo que, bem no iníc io desse
marcado todo o pensam·e nto que se desenvolveu depoi s. Os1
perío.do, se t,e nha tentado constru ir um núcleo artifici al que
1

habaantes das primeiras 'áreas urbanas desviantes" eram


1
funcionaria como uma espécie de cidade-padrã 0 rnode1
1
1
lo, das
assustadores. Chusma de ociosos, m1alandros e desordefros\ novas expectativas p ara ocupação do território, mudança dia
1

focos patológicos de contam~nação· física e mora1I. Não economia, gestão administrativa e política. Surg1e Belo Horizonte.
difeririam em nada. aliás] dos que moravam nos casarões proposta espacial de disciplina (de ordem para o pro,gressô... )
decadentes ou nos cortiços do centro . Ninguém estava logo superada. Nova versão dos velhos dilemas do poder que
interessado em vê-los para além da superfície. De ·fato, erarn se trai até no nome: dá as costas p ara os horizontes ant,gos e
1

41
vai ao encontro das fronteiras do futuro, por força belas. A
capita~ de Minas, virada pelo, avesso justo em uma das regiões
mais tradici1o nais do1país. só inaugura uma série de tentativas
que culmina com a experiência de Brasília.
Cidade artificial foi uma expressão bastante usada até o final
dos anos 50. Além de Beto Horizonte, Volta Redonda, Goiânia!
Lo,ndrina, Brasília... Mefhor seria considerá-Jas experiências que
casavam filosofia, sociologia e polítiica com a prancheta.
Centros urbanos que tentavam apressar o futuro,
apresentando-o em sua versão acabada. Expressavam o
considerado desejável e procuravam ,e liminar o que se preferia
que não existisse. Propostas que sem,pre despertaram grandes
entusjasmos. Afinall, estavam afinadas com o sonho da
sociedade que buscava seu grand,e futuro.
O que estragava tudo é que a própria situação de transiçào era
tão forte que fazia os modelos idea~s só serem puro,s no papel
ou na data da inauguração. Em seguida se ,rm,e lavarn " , tantos
eram os paradoxos e contradi1ções que tinham de conciliar. Os
planos pensados como disci,plinadores é que terminavam se
adaptando. Em vez de linguagens prenunciadoras do dia que
viráj acabavam por se render à única possibilidade do presente.
quebravam e ao mesmo tempo continuavam tudo o que estava
acontecendo. Apesar de carregarem uma retór~ca de futuroj
puseram bem a nu urn1a atualidad,~ dramática, tensa.
O governo brasileiro, desde os primórd;os republicanos. teve
de enfrentar ,o d iilema - ordem exasperada do autoritarismo ou
bagunça ,g eral de popu laçõ es jamais suficientemente
1

preparadas para a democracia? Para comandar uma


1
soctedade tão ambígua, ora severa e moralista, ora 'malandra' ',
era preciso encontrar fórmu las corretas para traduzi-la. Estavam
invadindo as ci1dad,es, comiam-lhes os frutos , perigavam virar
cidadãos sem qu,e fossem educados e postos à prova.. . As
práticas do poder revelavam enorm1e picardia. Se tanta gente
devia e queria vir para as cidades! havia que prepará-las,
!"----- prever ,e organ1izar os impactos. Seriia preciso 'p reencher um
.,i ·--~

' .... -·- ..


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-. mínimo de pré-requisitos! o que acabou acontecendo em parte
r -- -
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A:ERO ·'
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;: PORTO
.
Os recursos disponíveis eram estruturalmente escassos. Foram
aplicados segundo duas prior1dades: facítlitar o acesso de bensl
' .- matérias-primas e pessoas: e fornecer bases que permitissem a
maximização dos núcleos urbanos como m1áquinas produtivas.
São propostos planos que desprezam as vocações críativas
das cidades. preferindo o direcionamento explícito das razôes
materiais d1e produção. As fac~lidades de consumo coletivo
urbanístico foram oferecidas de fo rma tão parca e concentrada
1

que viraram privilégios distintivos.

42
\ Aqui, as propostas de urban1srr10 racionalista ou culturalista
l trazidas da Europa separaram-se de forma curiosa. Cada uma
l
~
das duas escolas ganhou um respeitável patrono. A empresa
Qrivada unidades de capital envolvidas com a rodu ão e
ocupação does aço ur ano ~u com o cultura~mo.6 Foi a
nme1ra a materializar seus princípios nas cidades do país.
,A;proveitando-se da on9 a aé
r~õoííffiçãâ :aõã gfãõdês ç~nt~QS...
8romovida pelo governa. cameça11 a disseo:ünaC...:.'.J,ac.dins:~ Q.elo. ~
Rio, por São Paulo, or Belo Horizonte ... Bairros novos,
esenvolvimentos urbanos virgens, oferecidos ao consumo das
classes emergentes (burguesias e pequeno-burguesias). Locais
onde são evidentes os interesses e iniciativas do capital que
podem incluir desde o parcelamento básico da terra segundo o
modelo formal escolhido (características de densidade e
ocupação), até investimentos em infra-estrutura, equipamentos
urbanísticos e transportes.

Um pouquinho mais tarde, a partir· dos anos 30, será a vez de


o Estado começar a intervir no cenário urbano com novas
proposições. Os projetos de Volta Redonda e Goiânia se
assemelham ainda aos das garden cities e das new towns. Os
conceitos racionalistas, 7 porém, vitoriosos em uma obra
arquitetônica - o Ministério da Educação e Cultura -, farão
carreira rápida. Os governos locais e estaduais, bem como a
União, adotarão o modernismo progressista como o seu estilo
oficial. Aqui se pode estabelecer uma correlação óbvia com o
"desenvolvimento" , proposto como programa nacional, que vai
desembocar em Brasília. É providenciada uma capital síntese,
símbolo e paradigma de uma fórmula de poder autoritário e Em torno das grandes cidades vai se cornpondo um estranho j \
ufanista, tão cara aos brasileiros, enfim consolidada no espaço. padrão morfológico de ocupações distintivas do solo. Apesar l\
de servirem aos mesmos usuári_os e de se tangenciarem, . 1\
coniuntos e loteamentos falam linguagens opostas. O resultado, / 1
Até os anos 70, os domínios se mantêrn mais ou menos a despeito dos contrastes, é monótono. A tônica dos dois / '
estanques: para os agentes do capital , urbanizações à moda
culturalista; para os estatais, à moda racionalista. As
_modelos é a mesma - redu.ções cªricaturais. Em vez de ~ i1
diversidade, o ue há é confusão e indefinição do espaço.
intervenções não ficaram restfifas aos investimentos nobres Suprimidos l eq1.üntes..e..ru.xos,...o._gue so ra as.. l,i
para as elites. Desde a década de 50, os empreendimentos · ffiacroidealizações urbanísticas é lamentável.
imobiliários, esgotado o filão dos mais ricos, se dirigem para as
periferias. A terra barata começa a ser retalhada em novos A construção de Brasília, porém, não deixou em brancas
" jardins", parentes já muito distantes dos originais ingleses. nuvens os praticantes de teorias, tais como definidos no
Versões mesquinhas que se oferecem aos pobres. O governo capítulo anterior. Depois daquele apogeu , ficaram bastante
não vai fazer por menos. Construída Brasília, falácia desconcertados. Perderam quase toda auto-suficiência que os
democrática oferecida ao consumo da parcela mínima da levava a sugerir, com candura, soluções que pareciam
população brasileira que podia assumir a " cidadania" proposta genialmente simples para problemas que, só muito depois,
pelo Plano-Piloto, dedica-se s anos 60, a oferecer os descobriram que eram complicadíssimos. Começaram a
mesmos esquemas\rac analistas ara os de mais baixa renda. recorrer às práticas teóricas, influenciados pela crise de
Financia, através do BNH , os Conjuntos Habitacionais consciência dos colegas europeus e americanos, também
43
passando por haurnas sernelhantes sem teren1 talvez tantas com bons resultados. Meia dúzia de idealizaçàes bastavam
culpas no cartórjo,. para faz,e r sínteses simplificadoras! uma vez qu,e não possuiam
mesmo domínio sobre as variáveis determinantes.
Os ecolog~smos, os morfologismos, os economicismos
neoclássicos e os neomarxismos se situavam nos domínios O dilema se arma entre dois extremos. De um lado~ estão
mais puros do pensamento. Tinham status acadêmíco. Eram ANÁLISES que não querem ou nào conseguem interferir nas
cientfficos. GairantiriafT) contra qualquer possibilidade de erro O práticas urbanas cotidianas. Do outro estão SINTESES
1

que é engraçado é que isso em nada alterou seus métodos de impostas como corpos estranhos à vida real das cidades que
1

agir e gerar planos concretos (desenhar). Os pJanejadores não alcançam decompor em seus elementos e mecanismos
continuaram usando os modelos de sempre, enquanto aderiam fundamentais. As duas vertentes não têm conseguido
intelectualmente às críticas sem modelo. Daí resultaram articulações orgânicas. Ambas tendem a posições totalizantes.
cruzamentos estranhos. Culturalistas marxistas, por exemplo, definitivas. Por isso mesmo fízeram boa carreira no Brasil. Os
podem fazer análises de caráter pirofundamente dtferente das analistas , livres do incômodo embaraço de terem de verificar a~
dos cu1tu ral istas ecológicos. Acabam , porém, propondo, nos respostas das formações urbanas reais ao que pensam sobre
seus empregos públ icos ou nas empresas de consultoria em elas, podem ficar mais e mais inati ngíveis. Os últimos anos
que trabalham, soluções urbanísticas assemelhadas ou os foram pródigos em uma boa safra de experts e tecnocratas do
mesmos edjfícios de sempre ... tipo. Seu maior problema é, no momento1 limitar os raci,o cinios
exageradamente estruturais e abrangentes q ue primam por
Como é fácil deduzir~as correntes ligadas à prática teórica
escapar ao modesto âmbito das cidades e por ficarem
sobre o urbano ganharam muito prestígio, a partir do início dos
pairando nos éteres confortàve·is das urealidades" regionais,
anos 60. Seus mentores se notabi lizam por uma contrad1~ção já
nacionais e internacionais.
apontada a níve~ internacional e que se repete no Brasil. São
todos mais para ~dealistas que para positivístas. Já os desenhadores, que devenam ser responsáveis pela
Prreocuparam~se sempre em afirmar, apesar d ísso , que produção de espaços de verdade, sonham com repertórios de
percebem o espaço através de sua mater~alidade únirna e; conceitos e certezas científicas legitimadores. Tomam-nos de
portanto, '4mais verdadeira' São cheios de pressuJ?OSições
J.
empréstimo como preâmbulos para seus planos. É por ísso
sobre valores materia~s seja de uso, seja de troca. E que costumam ficar enormesl gordos de tantos rodeios
extraordinário que nunca tenham se detido sobre as introdutórios. Na hora de concluí-los, o que se precisa, com
alternativas de aheraçào e intervenção concreta nas cjdades . toda a hum ildade, é indicar onde abrir uma rua, que largura
deve ter, a densidade de ocupação do solo , o trânsito que
Preferiram investir em análises que, como demonstram H illier e
pode suportar e coisas que tais. A í, a saída é recorrer aos
Hanson (1982). não vão além do óbvio. Assim, esperavam
estereótlpos de síntese, os únicos conhecidos, para enfrentar
1nfluenc1
iar nas forças tidas como realmente dinâmicas: os
situações locais enquadradas em marcos conjunturais. Os
interesses ,e conômicos; os conflitos sociais; a vocação
resultados são umas poucas páginas de leis e outros tantos
coordenadora e gestora do Estado.
rn1apas e plantas com as "culturahces,' e lC racionalicesH de
Os urbanistas praticantes de teorias também sempre tiveram a~ sempre. Arremates malfeitos , farnrnares a quem quer que
questões relativas ao uso e ao mercado como fundamentais conheça a recente atividade de planejamento urbano no país.
nos espaços urbanos. Só que, a d,espeito do acentuado desde os pretensiosos planos metropolitanos até os projetinhos
positivismo, ndava1m com repertórios simbólicos, julgados para Prefeituras pobres.
preferíveis às real~dades mais óbvias (e menos agradáve~s...) do
presente histórico a enfrentar. Suas realizações se sustentavam O capital ismo em versão brasileira {desenvolv1menbsmo) gerou
através de príncfpios paradigmáticos projetados sobre o real. uma quantidade íncalculáve1de problemas para as cidades.
1

As cidades teriam de se configurar pelo código racionalista Empurrou para e~as multidões demandando habitação,
porque todos os brasileiros, não importando as enormes infra-estrutura e serviços. além. naturalmente, de empregos. Os
diferenças interclasses, teriam em comum uma só razão. A grandes responsáveis, o governo e as unidades hegemônicas
história do futuro haveria de confirmá-lo ... Ou . então, sob outra do capital monopolista, nem ligaram para o assunto. Por um
11
óptica teriam de ser humanizadas" e postas sob controle
1
gentJeman 's agreement fingiu-se q ue as demandas por
porque ~sso corresponderia a formas culturais já testadas (?~) consumo decorrentes seriam atendidas pelos poderes locais.

44
Puro eufem1sn1 0. As Prefeituras que Já nâo podiam com urn gato sóc10-espac1a1s específicas~ preferem escapar para
morto pelo rabo foram esvazia,das por reformas políticas e generalizaçõ<0s. Abstraem tanto que podem se ,dar ao luxo de
tributárias d1e cunho central ista. A ausência de poiíhcas urbanas descorn promisso.
efetivas da parte de poderes tão fortes como os que
comandaram o pais nos últimos vinte anos não foi obra do acaso. De fato, nas cidades jamais serão encontradas distinções
rígidas entre análises e sínteses, entre usos e trocas, sejacJl
Seja por in,c1at1va pública ou privada, a configuração g lobal do materiâ1sõu-stmtrõtrcas. exp 1cação não é di-ficil: misturar tudo
espaço sempre resulta da ação do governo. O exemplo ma,s isso e usar passagens
e lim~naridades de forma ambígua faz
difundido de produçã,o de áreas urbanas - o 1oteamento - parte das estratégias do cotidiano (Certeau, 1980). A menos
decorr,e da omissão e da permissivi,d ade intencionais. É fruto que se q ueira tomar como real um metafísico conceito de
de uma escolha. de uma não alocação. Atitude lógica por parte estrutura, é preciso adm,tir que, se existe algo parecido com
de autoridades que preferiram atuar em setores básicos, isso, resulta de seqüências de atuações muito vivas e
favorecedores da acumulação de certo tipo de capitalt em vez conjunturais. A referência é o espaço em s~, que a par de
1

de cu idar do bem-estar dos cidadãos. Decisão só aceitável]


1
mat,erial, é também a representação mais acabada de como é
sem g randes controvérsias e conf~itos j na moldura de um e~. . . . aterialidade.
autoritarismo bastante despótico. Já o outro grande padrão
Jd"ctt""M.'.::#-,4.Ue está CA, ::l---f'"t'CJ'CI-C~n,a no mundo é percebido como o
urbano brasdeiro - o conjunto habitacional - evoca intenções
,.;n..u:i,t,-~,..,a vida · éa S1MBOLO· AQUELE TIPO O,E VtDA que a
d isciplinadoras e populistas. Nenhuma novidadet portanto.
sTfüaem ação a o ss1bilida,des. É por isso mesmo que
Os espaços urbanos e arquitetônicos no Brasil estão sendo os mais diferentes autores concordam quanto à...essência sacia~
gerados sobre representações artificialmente separadas. Os do espaço. E~e é classificatório. o que quer dizer que, n'essa ,.
conceitos utilizados são esquematizáveis da seguinte forma: equação, não há binômios purosj invenção da perversa
vocação dualista ocidental, no dizer de Leeds (19r7B) e Du,mont
(1977). Há pohnômios, composições múritiplas de todos os
elementos em todos os sentidos.
O que arquitetosl urbanistas e exp,erts em cidades teimam em
separar é juntado pela cultura do dia-a-dia! pelo senso comum
U50 u~o da população. Para ela, o mode1o conveniente é :
t~ t'
"TROCA TROCA ....
flEPRt ltHTAÇÕE~ f\tPf\ Eí,~NTAÇO E~
~IMB,ÓL\tA~ MATERtAI~
VALORE~
~INTf,~E ANÁir6t
V V ifM&ilCO~
Pf\ÁTliCA PO~lllVA: PAATltA T€ÓRICA- (RtPR&~,tN·
GULTUMl l!rMO (l.01E.At-1f..Nl~} NWtLA~~' CISMOj TAç,06~)
AACIONAU~MO p)NJUN10i) N~OLCOUXl l5'MO,
NtOMARXl~M0 1 in;~ U60
Sínteses posiüvas dos urbanistas ou anáhses ideaiistas dos
1l tl
experts se aphcam a objetos cornpl,exos. Os meios urbanos TROCA TROCA
reais estão sobrepassando em muito o simphsmo com que são
tratados. As propostas de interv,e nção concreta tentam investir
sobre situ,a ções que não pod,e m resolver. Resulta,d o: são
confeccionadas roupas que saem curtas , estrangulam . As
análises, incapazes de explicar cornos e porquês de formações
45
Não é preciso que os fluxos apresentados na ftgura se1an1 n 1e10ti urbano~ reajs so se Jusuhcd se , voltando a ele&, tor
equilibrados. Para muitos, a maioria das potencialidades negado e superado. Quem pensa ou quem atua terá de
representadas nunca se concretiza. Mas. pelo recurso e pe10 perceber que lida com representações . descrições que têu 1
crença nesse esquema de valores. a 1 multidão dos pobres tern tanto valor quanto muitas outras de natureza djstinta, neste tipo
consegui1do se manter viva. Melhor ainda, tem sustentado a especial de sistema de símbolos chamado ciência. Aprenderá
própda dignidade e esta vírtude que, no fim das contas, é o então, com humíldade, as muitas lições que lhe podem
combustível da história · a esperança. Nada mal para quem oferecer carn pos tão inusitados como o rei ig ioso, o fam illar. o
enfrenta condições tão adversas e, em gerafl só pode contar dos comportamentos etários, o do trabalho , o do lazer, o da
consigo. política etc. Verá que há muitas fontes de conhecimento e
percepção das relações sociais. Se conseguir fazê-lo, usará o
O que podem fazer ~ afinal, os arquitetos e os urbanistas qu e: 1

privilégio da análise sistematizada como um instrumento de


com as melhores intenções, tentam levar à prática teor;as? E os
ida-e-vinda entre a sua lógica limitada el por conseguinte.
pensadores que, por definição, têm o direito de praticar
ilusoriamente clara] e as lógicas aparentemente absurdas das
teorizando? As respostas são simples: têm de romper as
sínteses finais urbanas.
separações absolutas entre si ntese e anál ise1 se o o,bjetivo é
uma atua ão ret,etida e consciente sobre cidadês. 1 N o seu
fiãbal o te rão de entender que cuidam1 e co nJunturas, As respostas simples sãot na verdade, compl~cadíss1mas. Só
expressas através de uma síntese das mais elaboradas que podem ser sustentadas dentro de um pro,p ósito muito mais
amplo de politização e democratização do conhecímento e de
comunica e ensinaJ com sua linguagem direta. muito mais do
suas aplicações objetívas. Sem ~ssa aliás~ nem vale a pena a
que um milhão de discursos eruditos. 1

abordagem da temática urbana. Reflexões sobre espaço que


Corno jamais terão ~ugar (ou cabeças ...) para abrirem seus não sejam capazes de atingi-lo e transformá-lo são puro
mapas em escala 1 :1 serão ob rigados a fazer análises de
j diletantismo. Centros urbanos são, em si mesmos, fontes
estruturas arb itráda e toscamente estabelecidas. Até aí nada abertas e inesgotáveis de idéias que saltam de seu simbolismo
de mais. Nisto consiste o método intelectual. O perigo é que. do escancarado e são todos os dias decodificadas, absorvidas e
exercício. result e um emascaramento mistificador. O desenho
1
re-elaboradas. nas ruas, nas praças, nos meios d e transporte 1
1

pobre das supostas estruturas que suportam ou d1eterminam nos locais de trabalho] em todo canto.

NOTAS

1. Sobre a posição não convencIona1relativa a n1slona do desenvolv1n 1ento u rtiano 5. Macnaoo dtj Ass1& t1967) 1a se revela muito sensível. Em João do Rio l 1981J
no Brasil , ver Morse (1974). Delson (1979) e Goulart Reis (1977). e Lima Barreto (1983) há referências indispensáveis.
2 Segundo o prof. Paulo Santos {1981} estes europeus são Alfred Agache. 6. Corrente inspirada nas 1dé1as de Camilo Sitte e Ebenezer Howard . cuJas
introdutor das idéias culturalistas no fínaJ da década de 20. e Le Corbusier. primeiras realizações foram as garden-c1ties na Inglaterra (Choay, 1965. e
difusor do progressismo no início dos anos 30. Benevolo, 1969-5).
3 Os dilemas do reconhecimento estão muito bem registrados na farnosa trilogia 7 O raclonahsmo progressista resu,ta de longa ,elaboração íl a Eu ropa do hnal
de Gilberto Freyr,e : Casa grande & senzala (1975}; Sobrados & mocambos do século XIX e encontra sua plena rormulaçào nas idéias e propostas
( 1968): Ordem & progresso (1962). desenvolvidas pela Bauhaus e por Le Corbusier (Choay, 1965, e Benevolo
1969-5).
4 São úteis sobre o assunto as explicações de W,eber (1974) e Polany1 (1980)

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