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Casa de Bonecas

Drama em três atos de


Henrik Ibsen
(Tradução de Fernandes Costa).

(zero papel)
EDIÇÕES DIGITAIS
2012
CASA DE BONECAS

DRAMA EM TRÊS ATOS


PERSONAGENS

HELMER, advogado.
NORA, sua mulher.
O DOUTOR RANK.
CRISTINA LINDE.
KROGSTAD, advogado.
Os três filhinhos de Helmer.
MARIA ANA, aia dos filhos de Helmer.
HELENA, criada.
Um moço de recados.

A AÇÃO PASSA-SE EM CASA DE HELMER


PRIMEIRO ATO

(Um quarto mobilado com bom gosto e conforto, mas sem luxo. Ao fundo, à direita, porta da saleta. Ao fundo, à esquerda,
porta do gabinete de trabalho de Helmer. Entre estas duas portas um piano. Do lado esquerdo da cena uma porta e mais à
frente uma janela. Em frente da janela uma mesa redonda, uma poltrona e um sofá. Do lado direito da cena, um pouco para o
fundo, uma porta, e no primeiro plano um fogão, diante do qual estão algumas poltronas e uma cadeira de balanço. Gravuras
nas paredes. Uma «étagère» guarnecida de porcelanas e de outros objetos de arte. Uma estante cheia de livros ricamente
encadernados. O sobrado coberto por uma alcatifa. Lume no fogão. Dia de inverno.)

(Ouve-se na saleta o toque de uma campainha; passado um instante abre-se a porta. Nora entra cantarolando alegremente.
Vem de chapéu e capa e traz muitos embrulhos, que põe em cima da mesa, à direita. Deixa aberta a porta da saleta, onde se vê
um moço de recados, que traz uma árvore de Natal e um cesto. Entrega-os à criada, que abriu a porta.)
CENA I

Nora; Helena; O moço de recados

NORA. — Esconde bem a árvore de Natal, Helena. Não quero que as crianças a vejam antes dela estar guarnecida. (Ao
moço, puxando pelo porta-moedas). Quanto é?

O MOÇO. — Um tostão.

NORA. — Bem; tome lá dois. Guarde a demasia.

(O moço cumprimenta e sai. Nora fecha a porta. Continua a sorrir alegremente enquanto tira o chapéu e a capa.)

NORA (tira da algibeira um cartucho de amêndoas, come duas ou três, depois avança em bicos de pés e escuta, à porta
do gabinete de seu marido). — Ah! Ele não saiu.
CENA II

Nora; depois Helmer, e, no fim uma criada

HELMER (De dentro do quarto). — É a andorinha que chilreia?

NORA. — É.

HELMER. — É a gazela aos pulinhos?

NORA. — É.

HELMER. — Quando foi que ela entrou?

NORA. — Agora mesmo. (Mete o cartucho das amêndoas na algibeira e limpa a boca). Anda aqui, Torvald, anda ver o
que eu comprei.

HELMER. — Não me faças perder tempo. (Pouco depois ele abre a porta, e, de pena na mão, lança um olhar por todo o
quarto). O que compraste, diz? Tudo isto? O meu estorninho achou maneira, aposto eu, de gastar rios de dinheiro?

NORA. — É verdade, Torvald, este ano podemos fazer mais alguma despesa. É o primeiro Natal. depois do nosso
casamento, em que não somos obrigados a economizar.

HELMER. — Pois sim... mas também não devemos ser pródigos.

NORA. — Sim. Torvald, um nadinha, só um nadinha, não faz mal, não? Agora, que vais ter um ordenado tão bom, e que
vais ganhar muito, muito dinheiro!

HELMER. — Pois sim; mas isso é só a partir do ano novo; e ainda assim tem de correr depois um trimestre inteiro,
primeiro que eu receba seja o que for.

NORA. — Ora, o que tem isso? Daqui até lá pede-se emprestado.

HELMER. — Nora! (Chega-se a ela, e puxa-lhe uma orelha, brincando). Sempre a mesma cabeça de vento. Imagina que
nós pedimos hoje emprestadas mil coroas, que tu as gastas durante as festas do Natal, que na véspera do ano novo me cai uma
telha em cima da cabeça e que...

NORA (tapando-lhe a boca). — Cala-te; não digas isso.

HELMER. — Mas imagina que isso sucede... e depois?

NORA. — Se isso me sucedesse... tanto me importava ter dívidas como não as ter.

HELMER. — E as pessoas que nos tivessem emprestado o dinheiro?

NORA. — Essas pessoas? Mas quem pensa nelas? Isso é gente estranha.

HELMER. — Nora, Nora, és mesmo uma mulher... Seriamente, Nora, conheces as minhas ideias a esse respeito. Não quero
dívidas; nada de empréstimos. Introduz-se uma espécie de escravidão, um não sei quê de sombrio em toda a casa fundada
sobre dívidas e empréstimos. Até agora temo-nos aguentado, graças a Deus, e assim continuaremos durante o pouco tempo de
privações, que ainda nos resta.

NORA (aproximando-se do fogão). — Está bem; será como tu quiseres, Torvald.

HELMER (erguendo-se). — Vamos, vamos, a andorinha não deve arrastar a asa. Então? Aí está zangado o estorninho!
(Abre o seu porta-moedas). Nora, o que imaginas tu que está aqui dentro?
NORA (voltando-se com vivacidade). — Dinheiro.

HELMER. — Toma lá. (Dá-lhe algumas notas). Meu Deus! Eu compreendo perfeitamente, que numa casa haja muita
despesa nas proximidades do Natal.

NORA (contando). — Dez, vinte, trinta, quarenta. Obrigado, Torvald. Isto nas minhas mãos vai render.

HELMER. — E bem preciso é.

NORA. — Vou ter muito cuidado, podes estar certo disso. Agora, vem cá. Quero mostrar-te tudo o que comprei, e tudo tão
barato! Olha, fato novo para Yvar, e uma espada. Um cavalo e uma trombeta para Rob, e uma boneca com uma caminha, para a
Mimi. Isto é o que pode haver mais ordinário. Nem ela precisa melhor, que estraga tudo num instante. Isto agora são aventais e
vestidos para os criados. A pobre Maria Ana merecia bem mais do que isto.

HELMER. — E aquele embrulho, que tem?

NORA (dando um gritinho). — Não, Torvald, aquilo não se pode ver senão logo à noite.

HELMER. — Está bem, está bem. Mas diz-me cá, minha gastadora, e tu o que gostavas de ter?

NORA. — Ora! Nem sabes que comigo é com quem me importo menos.

HELMER. — Sei, perfeitamente. Mas, em todo o caso, há de haver alguma coisa razoável, que te tente.

NORA. — Com franqueza, não me lembra nada. Ou então, sim, ouve lá, Torvald.

HELMER. — Vamos lá a ouvir.

NORA (brincando com os botões do seu casaco sem olhar para Helmer). — Se me quisesses dar alguma coisa podia
ser... sim... podia ser...

HELMER. — Diz.

NORA (num repente). — Podias antes dar-me o dinheiro, Torvald. Oh! Uma coisa qualquer, aquilo de que tu pudesses
dispor; que eu depois comprarei para mim aquilo que me agradar.

HELMER. — Mas, Nora...

NORA. — Sim, senhor, hás de me fazer isso, Torvald. Peço-to. O dinheiro dependura-se na árvore, dentro de um
embrulho de papel dourado. Verás como e bonito.

HELMER. — Como se chama o passarinho que desperdiça sem cessar?

NORA. — Ora, chama-se um estorninho, bem sei. Mas faz o que eu te pedi, sim, Torvald? Assim tenho tempo de refletir
em alguma coisa útil. É muito mais razoável, pois não é?

HELMER (sorrindo). — Sim, se tu soubesses empregar o dinheiro que te dou, e na verdade comprar alguma coisa; mas ele
desaparece nos gastos da casa e em mil nadas, que se não veem; e depois, é preciso dar outro.

NORA. — Ora, Torvald...

HELMER. — É positivo isto, minha queridinha. (Passa-lhe o braço pela cintura). O estorninho é bonito, mas... precisa de
tanto dinheiro. É incrível como sai caro a um homem ter um estorninho!

NORA. — Credo! Não sei como podes dizer isso! Eu que poupo em tudo, o mais que posso.

HELMER. — Lá isso é verdade. O mais que podes; mas o pior é que a maior parte das vezes não podes poupar nada.

NORA (cantarolando e sorrindo alegremente). — Tu não imaginas, Torvald, que despesas nós temos, as gazelas e os
estorninhos!

HELMER. — És muito original. Absolutamente como teu pai. Tens mil recursos para arranjar dinheiro, mas, logo que o
arranjas, escoa-se-te por entre os dedos; nunca sabes o que lhe fizeste. Enfim, havemos de te aceitar como Deus te fez. Isto
está no sangue. Sim, Nora, estas coisas são por força hereditárias.

NORA. — Era bem bom que eu tivesse herdado todas as qualidades do papá.

HELMER. — E eu quero-te absolutamente como tu és, minha andorinha querida. Mas ouve lá; está-me a parecer uma coisa:
tens hoje um ar, como hei de eu dizer?... Um ar que me faz ter uma desconfiança...

NORA. — Eu?

HELMER. — Sim, tu. Olha bem para os meus olhos.

NORA (olhando-o).

HELMER. — Está-me parecendo que a minha gulosa fez hoje das suas!

NORA. — Eu, porque dizes isso?

HELMER. — Engano-me se lhe disser que ela foi visitar uma confeitaria?

NORA. — Com toda a certeza, te enganas, Torvald.

HELMER. — Nem assim uns longes de um pastelinho?

NORA. — Absolutamente nada.

HELMER. — Nem ao menos trincar uma ou duas amêndoas?

NORA. — Nada, disso, Torvald; asseguro-te que nada disso.

HELMER. — Bem, bem, estou brincando contigo.

NORA (aproximando-se da mesa à direita). — Eu não era capaz de fazer qualquer coisa que te desagradasse. Podes ter
essa certeza.

HELMER. — Não, bem sei. Pois não me deste a tua palavra?... (Aproxima-se de Nora). Está bem, guarda para ti os teus
misteriozinhos do Natal, minha querida Nora; logo se descobrirá tudo isso quando se iluminar a árvore.

NORA. — Não te esqueceste de convidar o doutor Rank para jantar?

HELMER. — Não convidei, porque era escusado; já sabe que contamos com ele. Em todo o caso, sempre lho direi logo,
quando ele vier. Encomendei bom vinho. Nora, não imaginas como estou satisfeito com a festa desta noite!

NORA. — E eu também. E a alegria que as crianças vão ter, Torvald!

HELMER. — Faz bem pensar que se chegou a uma situação estável, segura, em que os apertos e as privações cessaram.
Pois não é verdade? É uma grande ventura pensar nisto.

NORA. — Oh! É delicioso!

HELMER. — Lembras-te do Natal do ano passado? Três semanas antes, já tu passavas as noites, até depois da uma hora,
fechada no quarto a fazer flores para a árvore do Natal, e mil outras surpresas... É a época mais aborrecida de que me lembro.

NORA. — Aí está! E eu não me aborrecia.

HELMER (sorrindo). — Mas o resultado foi bastante lastimoso, Nora.


NORA. — Bom! Aí vais tu agora, outra vez, mangar comigo, por causa disso! Eu não tive culpa do galo entrar e fazer tudo
em bocados.

HELMER. — Não, minha querida Nora, não tiveste culpa. Tinhas a melhor vontade de nos dar prazer a todos; isso foi o
essencial. No entretanto, é bem bom que esses tempos difíceis tenham passado já.

NORA. — É verdade; ainda me custa a crer.

HELMER. — Agora, não me aborrecerei sozinho, e tu não terás mais necessidade de atormentares os teus queridos olhos,
nem de estragar os teus dedinhos.

NORA (batendo palmas). — Não, pois não é verdade, Torvald? Meu Deus! Que felicidade! (Mete o braço no do
marido). Agora, vou contar-te como hão de ser os nossos arranjos, em passando o Natal... (Toca a campainha). Estão
tocando. (Arruma as poltronas da sala). É alguma visita. Que aborrecimento.

HELMER. — Se forem visitas, lembra-te que eu não estou em casa para ninguém.

A CRIADA (à porta de entrada). — Minha senhora, está ali uma senhora que a procura...

NORA. — Manda entrar.

A CRIADA (para Helmer). — O doutor entrou ao mesmo tempo.

HELMER. — Entrou para o meu gabinete?

A CRIADA. — Entrou, sim, senhor.

(Helmer entra para o seu quarto. A criada dá entrada a C. Linde, que vem com fato de viagem. Depois fecha a porta).
CENA III

Nora; Cristina Linde

C. LINDE (timidamente, com alguma hesitação). — Bons dias, Nora.

NORA (indecisa). — Bons dias...

C. LINDE. — Não me conheces?

NORA. — Efetivamente... não sei... ah! Agora, agora. parece-me... (Exclamando). Cristina! És tu?

C. LINDE. — É verdade, sou eu.

NORA. — Cristina! Ora, eu que te não conhecia! Mas quem havia de dizer?... (Mais baixo). Como estás mudada, Cristina!

C. LINDE. — É verdade. Já lá vão nove... dez anos, bem contados...

NORA. — O quê? Há tanto tempo que nos não vemos? Mas é isso, é exatamente isso. Oh! Estes últimos oito anos, que
época feliz, se soubesses! E tu aqui? Fizeste esta longa viagem, mesmo no coração do inverno. É preciso ter coragem.

C. LINDE. — Vim por mar; cheguei esta manhã.

NORA. — Para passar as festas do Natal, naturalmente. Que prazer! Vamo-nos divertir muito. Mas, tira a tua capa. Não
tens frio, não é verdade? (Ajuda-a). Aí está; agora vamo-nos sentar comodamente diante do fogão. Não, senta-te nesta
poltrona; eu, sento-me na cadeira de balanço; é o meu lugar. (Pega-lhe nas mãos). Ora, já pareces outra; já estás com a cara
que tinhas dantes... foi só naquelle primeiro instante... E daí, estás um pouco mais pálida, Cristina... e também um pouco mais
magra.

C. LINDE. — E muito, muito mais velha, Nora.

NORA. — Sim, um pouco, um poucochinho, talvez... mas não muito. (Para de repente, depois com voz séria). Oh! Mas
que estouvada que eu sou, ponho-me para aqui a tagarelar... Minha querida, minha boa Cristina, perdoas-me, sim?

C. LINDE. — O que queres tu dizer, Nora?

NORA (meigamente). — Pobre Cristina, estás viúva.

C. LINDE. — Estou há três anos.

NORA. — Eu sabia-o; li a notícia nos jornais. Oh! Cristina, podes crer-me, desde então tenho pensado vezes sem conta
em escrever-te... mas sabes como sempre fui, guardei a carta de dia para dia, depois metia-se algum impedimento...

C. LINDE. — Ora, sei tão bem como essas coisas sucedem.

NORA. — Não, Cristina, não quero que me desculpes, que foi uma grande ingratidão da minha parte. Pobre amiga, por
que provações hás de ler passado? E ele não te deixou com que viver?

C. LINDE. — Nada.

NORA. — E filhos?

C. LINDE. — Também não.

NORA. — Então, nada?


C. LINDE. — Nem mesmo um luto do coração, uma dessas saudades que ocupam.

NORA (fitando-a incrédula). — Que dizes, Cristina; como é possível isso?

C. LINDE (sorrindo amargamente e passando-lhe a mão pelos cabelos). — Isto sucede algumas vezes, Nora.

NORA. — Sozinha no mundo. Como isso te deve pesar! Eu, tenho três pequerruchos lindíssimos. Agora, não tos posso
mostrar. Saíram com a criada. Mas vais-me contar a tua vida toda.

C. LINDE. — Depois, depois; conta-me a tua primeiro.

NORA. — Não, a ti é que pertence. Hoje não quero ser egoísta... não quero pensar senão em ti. Há, porém, uma coisa, que
essa preciso dizer-ta. Sabes a grande felicidade, que nos sucedeu um destes dias?

C. LINDE. — Não, o que foi?

NORA. — Imagina lá; meu marido foi nomeado diretor do banco.

C. LINDE. — Teu marido? Mas, que boa fortuna!

NORA. — Pois não é? É tão precário ser advogado, sobretudo quando se não tem génio senão para tomar conta de causas
justas. E era esse exatamente, o caso que se dava com Torvald, e com que eu concordava completamente. Vê lá se havemos de
estar felizes, ou não. Ele há de entrar para o seu cargo no princípio do ano que vem, e começa a vencer logo um belo
ordenado, fora emolumentos. Então, a nossa vida vai passar a ser muito diversa do que tem sido até aqui... poderemos viver
inteiramente à larga. Oh! Cristina, como eu me sinto feliz e com o coração à vontade! É, na verdade, delicioso ter muito
dinheiro, e não estar sempre com cuidados. Pois não é verdade?

C. LINDE. — Com certeza! Em todo o caso, já não deve ser mau ter o necessário.

NORA. — Não, o necessário só, não; ter muito, muito dinheiro.

C. LINDE (sorrindo-se). — Nora, Nora, pois ainda hoje não és mais razoável do que dantes? No colégio, eras uma grande
gastadora.

NORA (sorrindo meigamente). — Torvald é de opinião que ainda o sou. Mas (ameaçando com o dedo) «Nora, Nora»,
não é tão louca como pensam. E em verdade não tive grande coisa a estragar até hoje. Tem-nos sido preciso, a ambos,
trabalhar.

C. LINDE. — A ti, também?

NORA. — Também. Coisas pequenas, trabalho de mão, croché, bordados, etc., (mudando de tom) e outra coisa ainda.
Sabes que Torvald deixou a secretaria, quando casámos. Ali não podia esperar promoção, e precisava ganhar mais dinheiro
do que dantes. Mas no primeiro ano fatigou-se muito. Compreendes bem, via-se obrigado a procurar toda a espécie de
ocupações suplementares e a trabalhar desde manhã até à noite. Isto, por fim, excedeu as suas forças, e caiu mortalmente
doente. Então os médicos declararam que só podia salvar-se fazendo uma viagem ao sul.

C. LINDE. — É verdade, tenho ideia disso. Estiveram um ano na Itália.

NORA. — Estivemos. Partir para lá é que não foi coisa tão fácil, como bem podes pensar... Tinha acabado de nascer o
meu Yvar. Mas, como sabes, era preciso. Que maravilha de viagem, não fazes ideia! E o caso é que salvou a vida a Torvald.
Mas custou um dinheirão, Cristina!

C. LINDE. — Faço ideia.

NORA. — Mil e duzentos escudos. Quatro mil e oitocentas coroas. Já é dinheiro.

C. LINDE. — Pois, sim, filha; mas num caso desses, é uma boa fortuna tê-lo.

NORA. — Eu te digo: foi o papá quem no-lo deu.


C. LINDE. — Parece-me, também, que foi por essa ocasião que teu papá morreu.

NORA. — Foi, Cristina, foi exatamente por essa época. E, vê tu lá, não me foi possível tratá-lo, nem estar ao pé dele.
Estava todos os dias à espera de que me nascesse o meu Yvar, e Torvald, sempre em perigo de vida, a precisar de todos os
meus cuidados. Foi sempre tão bom para mim, o papá. E nunca mais o vi. Foi a dor mais cruel por que passei, depois do meu
casamento.

C. LINDE. — Tu gostavas muito dele, bem sei. E, com que então, partiram para Itália?

NORA. — É verdade. Tínhamos dinheiro, e os médicos instavam pela viagem. Passado um mês, partimos.

C. LINDE. — E teu marido voltou completamente restabelecido?

NORA. — Voltou bom de todo.

C. LINDE. — E... aquele médico?

NORA. — Que queres tu dizer com isso?

C. LINDE. — Lembrou-me agora que a tua criada anunciou como doutor um sujeito que entrou ao mesmo tempo que eu.

NORA. — É o doutor Rank. Não vem cá como médico. É o nosso melhor amigo: vem ver-nos pelo menos uma vez por
dia. Não, Torvald nunca mais teve nem uma hora de má disposição. As crianças passam todas às mil maravilhas, e eu
igualmente. (Ergue-se de um pulo, batendo as palmas). Oh! Meu Deus, meu Deus, Cristina, como é bom e delicioso viver e
ser feliz!... Ah! Mas é horrível o que estou fazendo... não falo senão das minhas coisas. (Senta-se num tamborete ao lado de
Cristina apoiando-se nos joelhos dela). Não te zangas, não? Diz-me cá: é verdade que não gostavas do teu marido? Então
porque casaste com ele?

C. LINDE. — Minha mãe ainda vivia, doente e sem meios. Eu tinha de prover ao sustento dela e ao encargo de dois
irmãozinhos meus. Entendi, que não tinha direito de recusar o seu pedido.

NORA. — Num caso desses, também eu não recusava. E por essa época, ele era rico?

C. LINDE. — Pareceu-me que vivia muito à sua vontade. Mas era uma fortuna mal equilibrada. Por morte dele derreteu-se
tudo, nada resistiu.

NORA. — E depois?

C. LINDE. — Recorri a expedientes, conforme pude, que é o que se faz nesses casos. Pus um colégio, sei lá o que fiz! Os
três últimos anos pode dizer-se que foram para mim um longo dia de trabalho sem descanso. Agora, acabou tudo. Minha pobre
mãe já não precisa de mim; já Deus a tem consigo; os pequenitos também não; cresceram, e agora já estão no caso de se
suprir.

NORA. — Deves, então, sentir-te muito aliviada!

C. LINDE. — Não, minha querida Nora: sinto apenas um vazio insuportável. Não tenho mais ninguém por quem me
dedicar. (Levanta-se inquieta). Assim, era-me impossível continuar a viver naquele canto, onde passei tanto tempo da vida.
Parece-me, que me há de ser mais fácil aqui absorver-me numa ocupação, distrair os meus pensamentos. Se eu tivesse a
fortuna de achar um emprego, trabalho num escritório...

NORA. — Pois pensas em semelhante coisa? Isso é uma vida fatigante e tu precisas de repouso. Porque não vais a umas
águas?

C. LINDE (aproximando-se da janela). — Eu não tenho papá para me pagar a viagem.

NORA (levantando-se). — Então! Não te zangues.

C. LINDE. — Tu, minha querida Nora, é que tens de me perdoar, a ti é que eu te peço, que te não zangues comigo. O pior
que há, numa situação como a minha, é a gente tornar-se azeda. Não temos ninguém por quem trabalhar, e no entanto é preciso
olhar para todos os lados para nos sustentarmos: é preciso viver! Tornamo-nos egoístas, por fim. Sabes o que te digo? Quando
me deste parte do feliz estado dos teus negócios, alegrei-me muito, mas ainda mais por mim do que por ti.

NORA. — Porquê?... Ah! Já percebo. Calculaste que Torvald te poderá ser útil.

C. LINDE. — É verdade, que pensei isso.

NORA. — E fizeste bem, Cristina. Vou preparar o terreno delicadamente, fazer qualquer coisa agradável a Torvald, e que
o ponha em boas disposições. Tenho o maior empenho em ser-te prestável.

C. LINDE. — Como isso é amável da tua parte, Nora... duplamente amável, por conheceres tão pouco as misérias e as
sensaborias da vida.

NORA. — Eu?... Crês isso?

C. LINDE (sorrindo). — Meu Deus! Croché, rendinhas, trabalhos de agulha, coisas desse género... És uma criança, Nora.

NORA (abanando a cabeça e atravessando a cena). — Não fales tão ligeiramente.

C. LINDE. — Que ar de seriedade!

NORA. — És tal qual como os outros. Todos imaginam que eu não sou boa para coisa nenhuma séria...

C. LINDE. — Ora, ora...

NORA. — Que não formo a menor ideia do lado difícil da vida.

C. LINDE. — Mas, minha querida Nora, acabas exatamente de me contar todas as tuas dificuldades.

NORA. — Ora!... Essas bagatelas!... (Em voz baixa). Não te contei o principal.

C. LINDE. — Que queres dizer com isso?

NORA. — Tratas-me do alto da tua grandeza, Cristina, mas não devias fazê-lo. És orgulhosa por teres trabalhado tanto e
durante tanto tempo para tua mãe.

C. LINDE. — Não trato ninguém do alto da minha grandeza. Mas é verdade, que sou feliz e altiva quando penso que,
graças a mim, os últimos dias de minha mãe foram descansados.

NORA. — E também tens orgulho em pensar no que fizeste por teus irmãos.

C. LINDE. — Parece-me que tenho algum direito de o ter.

NORA. — E eu sou da tua opinião. Agora, vou contar-te alguma coisa também, Cristina. Também tenho um motivo de
alegria e de orgulho.

C. LINDE. — Não duvido. Diz-me, então, qual é.

NORA. — Fala mais baixo. Deus me livre que Torvald nos ouvisse. Por coisa nenhuma deste mundo eu quisera que ele...
Ninguém o deve saber, ninguém deste mundo, excetuando tu, Cristina.

C. LINDE. — O que sairá daí!

NORA. — Chega-te cá. (Puxando-a para o seu lado, no sofá). Sim... ouve... eu também tenho motivo para ser altiva e
feliz. Fui eu que salvei a vida de Torvald.

C. LINDE. — Salvaste-lhe a vida?... Como?...

NORA. — Falei-te, não é verdade, da viagem à Itália? Torvald não podia escapar, se não tivesse feito essa viagem ao
sul...
C. LINDE. — Mas então? Teu pai deu-te o dinheiro preciso para ela.

NORA. — Aí está o que Torvald e toda a gente acredita; mas...

C. LINDE. — Mas?...

NORA. — O papá não me deu nem cinco réis. Eu é que tive de arranjar o dinheiro todo.

C. LINDE. — Tu? Uma quantia tão grande?...

NORA. — Mil e duzentos escudos. Quatro mil e oitocentas coroas. Que dizes?

C. LINDE. — Não digo nada, Nora. Espanto-me de como pudeste arranjar isso! Só se ganhaste na loteria!

NORA (em tom de desdém). — Na loteria? Que mérito havia então nisso?

C. LINDE. — Mas nesse caso, onde foste buscá-los?

NORA (sorrindo misteriosamente e cantarolando). — Hum! Trá lá lá!...

C. LINDE. — Não te era possível obtê-los emprestados.

NORA. — E porque não?

C. LINDE. — Porque uma mulher casada não pode fazer empréstimos sem consentimento do marido.

NORA (abanando a cabeça). — Ora! Quando se trata de uma mulher um pouco prática... de uma mulher que sabe fazer as
coisas com habilidade...

C. LINDE. — Nora, não entendo ainda bem.

NORA. — Nem tens necessidade de entender. Também te não disse que pedi dinheiro emprestado. Podia tê-lo arranjado
de outra maneira. (Estira-se sobre o sofá). Então, não podia tê-lo recebido de um adorador? Que te parece? Com os meus
atrativos...

C. LINDE. — Estás doida!

NORA. — Confessa lá que és terrivelmente curiosa.

C. LINDE. — Não, minha querida Nora, confessa-me que não fizeste nenhuma doidice!

NORA (endireitando-se). — Pode chamar-se fazer uma doidice salvar a vida ao seu marido?

C. LINDE. — O que eu imagino uma doidice é que sem ele o saber...

NORA. — Mas, justamente, ele não o devia saber! Meu Deus, pois tu não compreendes ainda! Ele não devia conhecer a
gravidade do seu estado. Foi a mim que os médicos vieram dizer que a vida dele estava em perigo, que só uma temporada,
longe, no sul, o podia salvar. Pensas que não empreguei rodeios para conseguir o meu fim? Fazia-lhe ver quanta felicidade ele
me daria levando-me a viajar ao estrangeiro como tantos outros maridos fazem às suas mulherzinhas; chorava, suplicava e
dizia-lhe que ele devia bem pensar no estado em que eu estava e aceder ao meu desejo; enfim, dei-lhe a entender que lhe seria
fácil contrair um empréstimo. Mas, então, Cristina, vi-o em jeitos de se zangar a sério comigo. Disse me que eu era uma
estouvada e que o seu dever de marido era não obedecer às minhas fantasias e aos meus caprichos. «Bom, bom, pensei eu, hei
de salvá-lo, custe o que custar.» Foi, então, que achei um expediente.

C. LINDE. — E teu marido não soube por teu pai, que o dinheiro não provinha deste?

NORA. — Não soube. O papá morreu alguns dias depois. Eu tinha pensado contar-lhe tudo, pedindo-lhe para não dizer
nada, mas ele estava tão mal, e foi piorando tanto... Não tive o trabalho de lho dizer.
C. LINDE. — E depois disso, nunca o confessaste a teu marido?

NORA. — Não! Meu Deus! Eu fazia lá isso! Que estás dizendo? Não imaginas como ele é severo nestes pontos! E depois,
com o seu amor próprio de homem, que eu conheço bem, ficava vexadíssimo. Que humilhação para ele saber que me devia
alguma coisa! Era caso para terem sido transtornadas todas as nossas relações; este nosso viver interior, tão feliz, tão doce,
não seria já o que é.

C. LINDE. — E não tens tenção de lho dizer nunca?

NORA (refletindo um momento e sorrindo levemente). — Talvez... talvez com o tempo; em passando muitos, muitos
anos, quando eu já não for tão bonita como agora. Não te rias! Quero dizer: quando Torvald já não gostar tanto de mim,
quando já não tiver prazer em ver-me dançar, em mascarar-me, e em declamar para ele. Então, talvez seja bom que ele tenha
com que se entreter... (Interrompendo-se). Ora! Mas esse dia não há de chegar nunca!... Então, Cristina, aí tens o meu grande
segredo; que lhe dizes tu? Bem vês que também sirvo para alguma coisa... Imaginas bem que este negócio tem-me dado alguns
cuidados. Dizendo a verdade, não me tem sido possível sempre fazer os pagamentos nas datas fixas. Não sei se sabes que
nestas questões de dinheiro emprestado há uma coisa que se chama vencimento, e outra amortização, e tudo isso é
terrivelmente difícil de combinar. Tenho precisado economizar em tudo um poucochinho. Nas despesas de casa quase que não
tem sido possível diminuir nada; Torvald gosta de viver com comodidade. As crianças também não podiam andar mal
vestidas. Parecia-me que seria roubá-las tirar-lhes alguma coisa do que lhes era destinado pelo pai. Pobres anjinhos!

C. LINDE. — Tem sido então sobre as tuas despesas pessoais, que tens feito todos os cortes, pobre Nora!

NORA. — Naturalmente. E não é mais do que justiça. Todas as vezes que Torvald me dava dinheiro para a minha toilette,
gastava metade só; comprava sempre o que achava mais barato. Como, felizmente, tudo me vai bem, Torvald nunca deu por
semelhante coisa. Contudo, algumas vezes, Cristina, confesso que achei o sacrifício duro. É tão agradável andar bem vestida,
com elegância! Pois não é?

C. LINDE. — Creio bem.

NORA. — Tenho ainda outros proventos. No inverno passado tive a fortuna de arranjar uma grande escrituração à rasa.
Então, fechava-me no meu quarto todas as noites e escrevia até horas altas. Oh! Às vezes estava cansada, cansada! Contudo,
achava divertido trabalhar para ganhar dinheiro. Quase me chegava a convencer de que era um homem.

C. LINDE. — E por esse processo, quanto tens podido pagar?

NORA. — Ao certo, não to posso dizer. É difícil, sabes, a gente desembrulhar-se no meio desta espécie de negócios. O
que sei é que tenho pago tudo quanto tenho podido. Às vezes, quantas!, chegava a dar-me volta à cabeça. Falhava-me tudo.
(Sorri). Então, começava a imaginar que um velho muito rico se apaixonava por mim...

C. LINDE. — Algum velho, certo?...

NORA. — Tolices!... Que ele morria, e que ao abrir-se-lhe o testamento, se via escrito em letras enormes: «Deixo todo o
dinheiro que possuo à encantadora Nora Helmer, com a condição de lhe ser entregue imediatamente».

C. LINDE. — Mas não me respondeste se era algum velho, designado?

NORA. — Ó meu Deus! Então não entendes? O velho não existe; era apenas uma ideia que me acudia todas as vezes que
não achava maneira de arranjar dinheiro. Mas agora, neste momento, tudo isso me é bem indiferente. Pode o velho existir onde
quiser, que eu nem penso nele, nem no seu testamento, pois, graças a Deus, estou bem tranquila, nesta hora. (Levanta-se com
vivacidade). Oh! Meu Deus! Que delícia pensar nisto, Cristina! Tranquila! Poder estar tranquila, inteiramente tranquila,
brincar com as crianças, arranjar a casa com elegância, com gosto, como Torvald a quer ter. Depois, chegar a primavera, o
belo céu azul! Talvez, então, possamos fazer uma viagenzita. Tornar a ver o mar! Oh! Como é adorável viver e ser feliz.

(Tocam a campainha).

C. LINDE (levantando-se). — Tocaram; talvez seja conveniente retirar-me.


NORA. — Não, fica; não vem ninguém; é provavelmente para Torvald...

A CRIADA. — Com licença, minha senhora... está ali fora um sujeito, que quer falar ao advogado...

NORA. — Ao diretor, queres tu dizer.

A CRIADA. — Ao diretor, é isso mesmo; mas como o doutor está lá... eu não sabia se...
CENA IV

Os mesmos, menos criada; Krogstad

KROGSTAD (aparecendo). — Sou eu, minha senhora.

C. LINDE (assusta-se, perturba-se e volta-se para a janela).

NORA (dá um passo para ele e, perturbada, diz a meia voz). — O senhor? Que novidade há? O que tem que dizer a meu
marido?

KROGSTAD. — É a respeito do banco. Sou lá empregado... um bem modesto lugar... e constou-me que o doutor vai ser
nosso chefe...

NORA. — É verdade, que vai...

KROGSTAD. — Sensaborias, minha senhora, sensaborias. Trata-se apenas disso.

NORA. — Então, queira ter o incómodo de entrar no escritório.

(Saúda-o negligentemente, tornando a fechar a porta da saleta, depois dirige-se para o fogão).
CENA V

C. Linde; Nora

C. LINDE. — Nora... que homem é este?

NORA. — É o advogado Krogstad.

C. LINDE. — Então, não me enganei; era ele.

NORA. — Conhece-lo?

C. LINDE. — Conheço-o há bastantes anos. Foi, durante algum tempo, nosso procurador.

NORA. — É exato; dizes bem.

C. LINDE. — Mas, como está mudado!

NORA. — Ouvi dizer, que foi muito infeliz no casamento.

C. LINDE. — Agora está viúvo, não está?

NORA. — Está, e com um rancho de filhos. Bom, mas já me estou queimando.

(Recua a cadeira de balanço).

C. LINDE. — Dizem que hoje vive principalmente de certa espécie de negócios.

NORA. — Sim? É possível; mas disso não sei nada... Não falemos, porém, de negócios; é tão aborrecido.

(O doutor Rank entra, vindo do gabinete de Helmer).


CENA VI

C. Linde; Nora; o doutor Rank

RANK (conversando à porta entreaberta). — Não, não; não te quero incomodar; vou aqui conversar um bocado com tua
mulher. (Fecha a porta e repara na presença de C. Linde). Ah! Perdão! Aqui também incomodo.

NORA. — Absolutamente nada... (Apresentando). O doutor Rank; a minha amiga Cristina Linde.

RANK. — Um nome, que se ouve muitas vezes pronunciar nesta casa. Se me não engano encontrei-me na escada com v.
ex.ª, quando entrámos.

C. LINDE. — E até me passou adiante. Eu já subo as escadas com muito custo.

RANK (motejando). — Há de ser da muita idade, pelo que vejo.

C. LINDE. — Não será da muita idade, mas será, talvez, da muita canseira de trabalho.

RANK (no mesmo tom). — Provavelmente será disso. E veio então à cidade para descansar um pouco, não perdendo uma
das festas do Natal?

C. LINDE. — Vim à cidade procurar trabalho.

RANK. — O quê? Dar-se-á o caso que seja esse o remédio eficaz contra a canseira do trabalho?

C. LINDE. — Então, é preciso viver, doutor.

RANK. — Sim, é essa a opinião geral: todos julgam isso necessário.

NORA. — Oh! Doutor, olhe que eu tenho a certeza que até o senhor faz bastante empenho em viver.

RANK. — Seguramente, que faço. Apesar da vida miserável que levo, quero absolutamente sofrer tanto tempo quanto me
seja possível. Todos os meus doentes têm a mesma vontade. E é igualmente a opinião dos que têm o moral atacado. Justamente
neste momento deixei um deles em companhia de Helmer; é um doente moral, que está em tratamento: há hospitais para eles.

C. LINDE (num suspiro abafado). — Ah!

RANK. — Refiro-me ao advogado Krogstad, um homem que v. exas. não conhecem. Está podre até aos ossos. Pois bem!
Afirma, como sendo uma coisa da mais alta importância, que precisa absolutamente viver.

NORA. — Com efeito! De que estava ele falando com Helmer?

RANK. — Francamente, não sei. Quis-me parecer, apenas, que era questão do banco.

NORA. — Eu não sabia que Krogs... que esse senhor Krogstad tinha relações com o banco.

RANK. — Pois é verdade, que tem; arranjaram-lhe lá uma espécie de emprego. (Dirigindo-se a C. Linde). Eu não sei se
na província, onde v. ex.ª viveu tantos anos, se conhece uma certa espécie de gente, que se compraz em desencantar podridão
moral. Depois, uma vez encontrado o indivíduo doente, é instalado em observação, arranjando-se-lhe este ou aquele lugar
onde vive e goza. Os de boa saúde não têm nada a esperar; já sabem bem que ficam de fora.

C. LINDE. — E devemos convir, que são principalmente os doentes que precisam ser tratados.

RANK (encolhendo os ombros). — Aí está. É um modo de ver que transforma a sociedade em hospital.

NORA (que se tem conservado absorta nos seus próprios pensamentos, põe-se a rir batendo palmas).
RANK. — De que está a rir? Se nem ao menos faz ideia do que é a sociedade?

NORA. — Importa-me lá com a sua maçadora sociedade? Eu estava a rir de outra coisa... duma coisa tão extravagante.
Diga-me cá, doutor... todos os que têm empregos no banco, vão daqui para o futuro depender de Torvald?

RANK. — É isso o que a diverte tanto?

NORA (sorrindo e cantarolando). — Não repare em mim. (Gira pelo quarto). Pois é verdade! Acho tão divertido, tão
incrível que nós... que Torvald tenha agora tanta influência e sobre tanta gente. (Tira da algibeira o cartucho das amêndoas).
Doutor, quer amêndoas?

RANK. — O quê? Amêndoas? Eu pensava que isso era contrabando cá em casa!

NORA. — É; mas estas, foi Cristina quem mas deu.

C. LINDE. — Eu?...

NORA. — Bom, bom, não te assustes. Não podias adivinhar que Torvald mas tinha proibido. Eu te digo: é que ele tem
medo que me estraguem os dentes. Mas, deixa. Foi... uma vez não faz mal. Pois não é assim, doutor?... Tome lá uma! (Mete-lhe
uma amêndoa na boca). E tu, também uma, Cristina. Eu, como só uma muito pequerruchinha... duas quando muito. (Torna a
girar pelo quarto). Sinto-me cheia de felicidade cá por dentro. Só de uma coisa é que eu tinha muita vontade ainda.

RANK. — Vamos lá a ouvir isso. Do que é?

NORA. — É uma coisa, que eu tinha uma vontade imensa de dizer diante de Torvald.

RANK. — E então porque não há de dizê-la?

NORA. — Ah! Deus me livre! É uma coisa muito feia!

C. LINDE. — Muito feia?...

RANK. — Nesse caso, efetivamente, é melhor abster-se de dizê-la diante dele, mas connosco escusa de fazer
cerimónias... Que coisa era essa que tinha tanta vontade de dizer diante de Helmer?

NORA. — Tenho uma vontade imensa de dizer: Caramba!

RANK. — Que falta de juízo!

C. LINDE. — Então, Nora...

RANK. — Pode dizer-lho agora; ele aí vem.

NORA (escondendo o cartucho). — Chiu, chiu, chiu.

(Helmer vem do seu gabinete, de sobretudo no braço e chapéu na mão.)


CENA VII

Os mesmos; Helmer

NORA (avançando para ele). — Finalmente, meu caro, conseguiste ver-te livre?

HELMER. — Finalmente; lá se foi embora.

NORA. — Deixas-me apresentar-te... É Cristina, que chegou hoje mesmo de viagem.

HELMER. — Cristina?... Desculpa-me, mas não me lembro absolutamente...

NORA. — Cristina Linde, meu caro, Cristina Linde.

HELMER. — Ah! Sim! Provavelmente uma amiga de infância de minha mulher?

C. LINDE. — É isso; nós conhecemo-nos muito... outrora.

NORA. — E vê-la, fez toda esta longa viagem para me ver.

HELMER. — Ah sim?

C. LINDE. — Não foi só...

NORA. — Vê lá tu, Cristina é tão habilidosa para o trabalho de escritório, e depois faz tanto gosto em servir sob as
ordens de um homem superior e de adquirir ainda mais experiência.

HELMER. — É muito razoável da sua parte, minha senhora.

NORA. — E assim, logo que ela soube que estavas feito diretor do Banco, — soube-o lá por um despacho, — pôs-se
imediatamente a caminho... diz lá, Torvald?... para me dares prazer, hás de fazer o que puderes a favor de Cristina, sim?

HELMER. — Não é inteiramente impossível. A tua amiga é provavelmente viúva?

C. LINDE. — Sou viúva.

HELMER. — E está habituada a trabalhos de escrituração?

C. LINDE. — Sim, bastante.

HELMER. — Então, é muito provável que eu lhe possa arranjar um lugar...

NORA (batendo as palmas). — Vês!

HELMER. — Veio em boa ocasião, minha senhora.

C. LINDE. — Como lhe hei de agradecer!

HELMER. — Oh! Não falemos nisso. (Veste o sobretudo). Mas hoje hão de me desculpar...

RANK. — Espera; eu acompanho-te.

(Vai buscar o seu agasalho de peles à saleta, e vem aquecê-lo diante do fogão).
NORA. — Não te demores, Torvald.

HELMER. — Daqui a uma hora estou cá; não preciso mais para o que tenho a fazer.

NORA. — Também sais, Cristina?

C. LINDE (pondo a capa). — Tenho de ir procurar um quarto.

HELMER. — Então, podemos sair juntos.

NORA (ajudando-a). — Tenho uma pena imensa de vivermos tão apertados... era inteiramente impossível...

C. LINDE. — Não penses nisso. Até à vista, querida Nora, e obrigada.

NORA. — Até à vista. Esta noite voltas, bem entendido. E o doutor, também. O que diz? Ora, está passando agora
otimamente. Que tem isso? Agasalhe-se bem.

(Saem, conversando, pela porta de entrada. Ouvem-se vozes de crianças na escada).

NORA. — Lá vêm elas! Lá vêm elas!

(Corre para abrir. Maria Ana entra com as crianças).

NORA. — Entrem; entrem! (Baixa-se e beija-as). Oh, meus queridos adorados! Vês, Cristina! Não são tão bonitos?

RANK. — Não se demore na corrente de ar.

(O doutor Rank, Helmer e C. Linde descem a escada. Maria Ana entra na cena com as crianças. Nora entra igualmente
depois de ter fechado a porta).
CENA VIII

Nora; as crianças; a criada Maria Ana

NORA. — Que belas caras vocês trazem! Que corados! Olhem para estas bochechas? Parecem folhas de rosa. (As
crianças falam todas a um tempo até ao fim da cena). Então divertiram-se muito? Está muito bem. Sim? Puxaste o trenó com
Emmy e Rob em cima, isso é lá possível? Ambos! Ah! Estás um rapaz muito valente, Yvar. Oh! Deixa-a cá um instante, Maria
Ana. És a minha bonequinha! (Pega na criancinha mais pequena e dança com ela). Sim, sim, a mamã já vai dançar com o
Rob também. O quê? Fizeram bolas de neve? Gostava de ter visto. Não, deixa-os cá, Maria Ana. Eu mesma os dispo. Deixa,
que eu gosto de fazer isso. Vai tomar alguma coisa, que vens gelada. Tens café quente para ti na cozinha.

(A criada das crianças sai pela porta da esquerda. Nora tira as capas e os chapéus das crianças, e espalha-os pelo quarto
ao acaso. As crianças continuam a falar).

NORA. — Ah! Que medo! Um cão muito grande correu atrás de ti? Mas não mordia. Não, os cães não mordem assim
bonequinhos bonitos como tu. Yvar, não queira ver o que está nos embrulhos. Nada, nada; está lá dentro uma coisa muito feia,
que te salta. Sim, minha filha; queres brincar? A quê? Ao jogo das escondidas? Pois, então, vamos lá às escondidas. Quem se
esconde primeiro é o Rob. Eu? Queres que seja eu? Pois está dito, escondo-me eu.

(Nora e as crianças põem-se a brincar, gritando e rindo na cena e no quarto ao lado. Por fim, Nora esconde-se debaixo da
mesa. As crianças chegam em turbilhão, e procuram-na sem a poderem encontrar. Ouvem o seu riso sufocado, precipitam-se
para a mesa, levantam o pano, e veem-na. Gritos de alegria. Ela sai de gatas, como se quisesse meter-lhes medo. Nova
explosão de alegria. Durante este tempo, tocaram à porta de entrada, sem ninguém ter prestado atenção. A porta entreabre-se, e
aparece Krogstad. Ele espera um momento. O jogo continua).
CENA IX

Os mesmos; Krogstad

KROGSTAD. — Queira desculpar-me, minha senhora...

NORA (dá um grito e levanta meio corpo). — O que quer o senhor aqui?

KROGSTAD. — A porta de entrada estava meia aberta. Alguém se esqueceu de a fechar.

NORA (levantando-se). — Meu marido não está em casa, sr. Krogstad.

KROGSTAD. — Bem sei.

NORA. — Então... o que deseja?

KROGSTAD. — Dizer-lhe uma palavra, madame Helmer.

NORA. — A mim?... (Baixo às crianças). Vão ter com a Maria Ana. Que dizem?... Não, aquele senhor não quer fazer mal
à mamã. Quando ele se for embora, vamos brincar outra vez.

(Ela conduz as crianças para o quarto da esquerda e fecha-lhes a porta).

NORA (inquieta, agitada). — Quer-me falar?

KROGSTAD. — Sim, quero.

NORA. — Hoje?... Mas não estamos ainda no primeiro do mês...

KROGSTAD. — Não; estamos na véspera de Natal. Depende de si que o Natal lhe traga alegria ou pesar.

NORA. — O que deseja? Hoje, creia que me é verdadeiramente impossível...

KROGSTAD. — Até nova ordem, não falaremos disso. Trata-se de coisa muito diferente. Pode conceder-me um instante de
atenção?

NORA. — Sim, sim... ainda que...

KROGSTAD. — Muito bem. Eu estava sentado no restaurante Olsen e daí vi passar seu marido...

NORA. — Sim?

KROGSTAD. — Com uma senhora.

NORA. — E então?

KROGSTAD. — Dá-me licença que lhe faça uma pergunta? Aquela senhora era madame Linde, pois não era?

NORA. — Era ela.

KROGSTAD. — Acabada de chegar à cidade?

NORA. — Sim, hoje mesmo.


KROGSTAD. — É uma de suas amigas?

NORA. — É... Mas não compreendo...

KROGSTAD. — Eu também a conheci, há bastante tempo.

NORA. — Bem o sei.

KROGSTAD. — Ah! Sabe-o? Então está ao corrente de tudo. Bem me queria parecer. Permita-me, então, que lhe pergunte
se madame Linde vai ter um lugar no Banco?

NORA. — Como se atreve a fazer-me perguntas a esse respeito, sr. Krogstad? O senhor, que é subordinado de meu
marido? Mas, já que mo pergunta, eu lhe respondo. É verdade, madame Linde vai ter uma colocação no Banco. E é graças à
minha intervenção, sr. Krogstad. Agora, está ao corrente de tudo.

KROGSTAD. — Vejo, pois, que eu tinha acertado nas minhas suposições.

NORA (medindo a cena). — Então, tem-se um bocadinho de influência, creio. Apesar de mulher, não se dirá que...
Quando se está numa situação subalterna, sr. Krogstad, é preciso, em verdade, ter muito cuidado para não molestar alguém
que... sim...

KROGSTAD. — Que tem influência?

NORA. — Justamente.

KROGSTAD (mudando de tom). — Madame Helmer é capaz de ter a bondade de empregar a sua influência em meu favor?

NORA. — Como lhe posso fazer isso? Em quê?

KROGSTAD. — Pedia-lhe que tivesse a bondade de proceder de maneira que eu conserve o meu modesto lugar no Banco.

NORA. — Não sei o que quer dizer! Quem pensa em tirar-lho?

KROGSTAD. — Oh! É inútil simular ignorância. Compreendo muito bem que a sua amiga não tenha prazer em encontrar-
me, e sei agora a quem devo o ser expulso.

NORA. — Mas asseguro-lhe...

KROGSTAD. — Enfim, em duas palavras: ainda é tempo e aconselho-a a usar de toda a sua influência para evitar isto.

NORA. — Mas, sr. Krogstad, eu não tenho nenhuma influência.

KROGSTAD. — Como é isso? Parece-me que ainda há pouco dizia...

NORA. — Mas não era evidentemente neste sentido. Como pode supor que eu tenha semelhante poder em meu marido?

KROGSTAD. — Oh! Eu conheço seu marido desde que fomos estudantes juntos. Não creio que o senhor diretor do Banco
seja mais firme do que outros homens casados.

NORA. — Se fala com desdém de meu marido, faço-o sair.

KROGSTAD. — Madame Helmer é corajosa.

NORA. — Não o receio. Tão depressa passe o ano novo, as nossas contas estão liquidadas.

KROGSTAD (dominando-se). — Ouça-me bem, minha senhora: Se for necessário, combaterei para conservar o meu
pequeno emprego, como se se tratasse de uma questão de vida ou de morte.

NORA. — Efetivamente, parece que assim é.


KROGSTAD. — Não é somente por causa dos honorários; não é isso o mais importante. Mas é que no fundo há outra
coisa... enfim, direi tudo. Madame Helmer sabe naturalmente, como toda a gente, que eu cometi uma imprudência, há já bom
número de anos.

NORA. — Tenho ideia de ter ouvido falar nisso.

KROGSTAD. — A questão não chegou a ir à justiça; mas no mesmo instante todos os caminhos me foram fechados.
Comecei então a ocupar-me no género de negócios que v. ex.ª sabe; era preciso lançar mão de alguma coisa, e posso dizê-lo
que não fui pior que muitos outros. Agora quero sair disso. Meus filhos estão crescendo. Por causa deles, desejo recuperar
tanta consideração quanta me seja possível. O meu lugar no Banco era para mim a primeira escala. E é nesta ocasião que seu
marido me quer fazer descer e recair de novo na lama.

NORA. — Mas, em nome de Deus, sr. Krogstad, não está na minha mão prestar-lhe nenhum auxílio.

KROGSTAD. — É a vontade que lhe falta; mas eu tenho meios para obrigá-la a trabalhar em meu favor.

NORA. — Creio que o sr. Krogstad não ousará ir contar a meu marido que eu lhe devo dinheiro?

KROGSTAD. — Hum; e se eu o fizesse?

NORA. — Seria uma vergonha para si. (Com lágrimas na voz). Esse segredo, que é a minha alegria e a minha altivez:
sabê-lo-ia ele de um modo tão vil... pelo senhor! Expunha-me às maiores sensaborias... então que espécie de homem o senhor
é, e nesse caso é que podia bem ter a certeza de perder o seu lugar.

KROGSTAD. — Eu tinha acabado de lhe perguntar se eram apenas sensaborias domésticas que madame Helmer receava?

NORA. — Se meu marido vier a sabê-lo, quererá naturalmente pagar logo; e então ficaremos desembaraçados do senhor.

KROGSTAD (dando um passo para ela). — Ouça, minha senhora... ou v. ex.ª não tem memória, ou não entende nada de
negócios. É preciso, por conseguinte, que eu a ponha um pouco ao corrente.

NORA. — Que quer dizer com isso?

KROGSTAD. — Na época da doença de seu marido, v. ex.ª veio a minha casa para me pedir emprestados mil e duzentos
escudos.

NORA. — Não conhecia mais ninguém.

KROGSTAD. — Prometi arranjar-lhe a quantia.

NORA. — E arranjou-a.

KROGSTAD. — Prometi arranjar-lhe a quantia, mediante certas condições. Mas v. ex.ª estava tão preocupada então com a
doença de seu marido, e tão apressada em ter o dinheiro da viagem, que me parece não ter dado a atenção devida a todos os
pormenores. Por isso julgo não ser de mais recordá-los agora. É o que vou fazer. Prometi obter-lhe o dinheiro, mediante um
recibo que eu próprio escrevi.

NORA. — Exatamente; e que eu assinei.

KROGSTAD. — Tal e qual. Mas, em baixo, acrescentei umas linhas, nas quais o pai de v. ex.ª se responsabilizava como
fiador. Essas linhas, era ele quem devia assigná-las.

NORA. — Devia, diz-me o senhor? E assinou-as.

KROGSTAD. — Eu tinha deixado a data em branco; isto significava que era ele quem devia indicar a data da assinatura. V.
ex.ª lembra-se disto!

NORA. — Efetivamente, tenho ideia...


KROGSTAD. — Entreguei-lhe então o recibo, que v. ex.ª devia remeter a seu pai pelo correio. Foi assim que tudo se
passou, pois não é verdade?

NORA. — Foi.

KROGSTAD. — E, bem entendido, v. ex.ª fê-lo imediatamente; porque mal tinham passado cinco ou seis dias apresentou-
me o recibo com a assinatura do senhor seu pai. E a quantia foi-lhe entregue imediatamente.

NORA. — Mas onde quer chegar? Não lhe tenho feito todos os pagamentos com exatidão?

KROGSTAD. — Pouco mais ou menos. Mas, para concluirmos o que estávamos dizendo... É fora de dúvida que aqueles
tempos eram difíceis para v. ex.ª, minha senhora.

NORA. — É verdade, que eram.

KROGSTAD. — O pai de v. ex.ª estava muito doente, segundo creio.

NORA. — Estava moribundo.

KROGSTAD. — E morreu pouco depois?

NORA. — Morreu.

KROGSTAD. — Diga-me, minha senhora, lembrar-se-á por acaso da data do falecimento de seu pai? Precisamente o dia do
mês?

NORA. — O papá morreu a 29 de setembro.

KROGSTAD. — Exato. Eu informei-me disso. E é essa a razão pela qual eu não explico a mim mesmo... (tira um papel da
algibeira) certa particularidade...

NORA. — Que particularidade? Não sei...

KROGSTAD. — A particularidade, minha senhora, é que o pai de v. ex.ª assinou o recibo três dias depois de morrer.

NORA (cala-se).

KROGSTAD. — V. ex.ª pode explicar-me isto?

NORA (continua a calar-se).

KROGSTAD. — É evidente também que as palavras: 2 de outubro e o ano, não são escritas com a letra do pai de v. ex.ª,
mas com uma letra que eu julgo reconhecer. Enfim, isto pode explicar-se. O pai de v. ex.ª ter-se-á esquecido de datar a
assinatura, e alguém o fez depois ao acaso antes de saber do falecimento dele. Não é aí que está o mal. O essencial, é a
própria assinatura. V. ex.ª, minha senhora, tem a certeza de que ela é perfeitamente autêntica? Foi o senhor seu pai quem, pelo
próprio punho, escreveu o nome ali?

NORA (depois de um breve silêncio, levanta a cabeça e fita-o com um olhar provocador). — Não, não foi ele. Fui eu
que escrevi o nome do papá.

KROGSTAD. — Não sei se v. ex.ª sabe, minha senhora, que essa confissão é extremamente perigosa?

NORA. — Não sei porquê! Dentro em breve terá o seu dinheiro.

KROGSTAD. — Uma pergunta, se me dá licença. Porque não mandou v. ex.ª o recibo a seu pai?

NORA. — Era impossível. O papá estava muito doente. Se eu lhe tivesse mandado pedir a assinatura, precisava declarar-
lhe para que queria o dinheiro. Ora, no estado em que ele estava, eu não podia dizer-lhe como via ameaçada a vida de meu
marido. Era impossível.
KROGSTAD. — Nesse caso, tinha sido talvez melhor renunciar à viagem.

NORA. — Impossível. Dessa viagem dependiam para mim todas as esperanças de salvar meu marido. Não podia
renunciar a ela.

KROGSTAD. — Mas v. ex.ª não atentou em que era uma burla o que praticava comigo?

NORA. — Eu pensei lá no senhor! Imagina que podia estar a dar considerações a essas coisas? Se eu não o podia suportar
já, cansada de lhe ouvir as razões frias que me dava, sabendo o perigo em que meu marido se via.

KROGSTAD. — Minha senhora, evidentemente v. ex.ª não tem uma ideia bem clara da ação criminosa que praticou. O que
eu posso é afirmar-lhe que o ato que deu causa à perda de toda a minha situação social, não foi mais criminoso do que este.

NORA. — O senhor? Quer, talvez, convencer-me de que seria capaz de cometer qualquer ação corajosa para salvar a vida
de sua mulher?

KROGSTAD. — As leis não se preocupam com os motivos.

NORA. — Pois se assim é, são mal feitas as leis.

KROGSTAD. — Mal feitas ou não... se eu entregar este papel à justiça, é por elas que v. ex.ª há de ser julgada.

NORA. — Não acredito isso. Então uma filha não tem direito de poupar a seu pai moribundo inquietações e angústias?
Uma mulher não tem direito de salvar a vida a seu marido? Eu, talvez, não conheça a fundo as leis; mas tenho a certeza de que
há de estar escrito em alguma parte que essas coisas são permitidas. O senhor não sabe isto? O senhor, que é advogado?
Parece-me que não é muito hábil como homem de lei, sr. Krogstad.

KROGSTAD. — É possível. Porém, dos negócios da ordem destes, de que estamos tratando agora... v. ex.ª admite, com
certeza, que eu entenda alguma coisa? Pois bem. Faça v. ex.ª o que lhe aprouver; o que lhe posso afirmar, é que se eu for
segunda vez expulso, v. ex.ª há de fazer-me companhia.

(Cumprimenta e sai).
CENA X

Nora; depois as crianças; em seguida Helena

NORA (reflexiona um momento; depois abana a cabeça). — Ora! Pensa ele que me assusta! Mas eu não sou tão tola.
(Começa a reunir os fatos das crianças, mas suspende-se passado um instante). Mas?... Nada, é impossível! Se eu procedi
por amor!

AS CRIANÇAS (à porta da esquerda). — Mamã, o senhor já se foi embora.

NORA. — Sim, sim, bem sei. Mas não falem a ninguém naquele senhor. Ouviram? Nem mesmo ao papá!

AS CRIANÇAS. — Não, mamã. Queres brincar agora?

NORA. — Não, não; agora não.

AS CRIANÇAS. — Mas, mamã, tu tinhas prometido.

NORA. — Não posso. Vão-se embora; tenho muito que fazer. Andem, vão-se lá embora, meus filhos.

(Fá-los sair muito meigamente e fecha a porta sobre eles).

NORA (senta-se no sofá, pega num bordado, faz alguns pontos, mas interrompe-se logo). — Não! (Atira com o
bordado, levanta-se, vai à porta de entrada e chama). Helena, traz-me a árvore. (Aproxima-se da mesa da esquerda e abre a
gaveta). Não, é completamente impossível!

A CRIADA (trazendo a árvore de Natal). — Onde quer que a ponha, minha senhora?

NORA. — Ali; no meio da casa.

A CRIADA. — A minha senhora precisa de mais alguma coisa?

NORA. — Não, obrigada; tenho cá tudo o que é preciso.

A CRIADA (sai, depois de ter colocado a árvore).

NORA (guarnecendo a árvore de Natal). — Aqui, são precisas velas... e ali flores... Que horrível homem! Tolices! Isto
não tem importância nenhuma. A árvore há de ficar bem bonita. Estou disposta a fazer tudo o que tu quiseres, Torvald; hei de
dançar, hei de cantar...

(Helmer volta de fora com um rolo de papel debaixo do braço).


CENA XI

Nora; Helmer

NORA. — Ah!... Já estás de volta.

HELMER. — Já. Veio alguém?

NORA. — Cá a casa? Não, não veio.

HELMER. — É extraordinário. Pois eu vi Krogstad sair de cá!

NORA. — Ah! Sim; tens razão. Krogstad esteve aí um momento.

HELMER. — Conhece-se na tua cara; veio, decerto, para te pedir que intercedesses comigo em seu favor?

NORA. — É verdade.

HELMER. — E tu havias de pedir-me isso como coisa tua? E por essa causa ocultavas-me a sua visita. Não é verdade
isto? Não foi ele que to pediu?

NORA. — Sim, Torvald, mas...

HELMER. — Nora, Nora! E prestaste-te a uma coisa dessas? Aguentar uma conversa com semelhante homem, e fazer-lhe
uma tal promessa! E, ainda por cima, dizeres-me uma mentira!

NORA. — Uma mentira?...

HELMER. — Pois não me disseste que não tinha vindo ninguém? (Ameaça-a com o dedo). Ora o meu estorninho nunca
mais deve fazer isso. Um pintassilgo, que sabe cantar tão bem, deve ter o bico muito puro, para chilrear afinado... e não dar
notas falsas. (Abraça-a pela cintura). Não é verdade?... É, eu bem o sabia. (Deixa-a soltar-se). E agora, nem mais uma
palavra nesta matéria. (Senta-se diante do fogão). Como se está bem aqui!

(Helmer folheia os seus papéis. Nora ocupa-se em adornar a árvore. Um silêncio).

NORA. — Torvald!

HELMER. — O que é?

NORA. — Estou contentíssima por ir depois de amanhã ao baile mascarado dos Stenborg.

HELMER. — E eu estou com extrema curiosidade de ver a surpresa que nos preparas.

NORA. — Não tem graça nenhuma!

HELMER. — Não acredito.

NORA. — Não sou capaz de encontrar um fato que me agrade; tudo é absurdo e desengraçado.

HELMER. — Isso é para a surpresa ser maior. Então eu não percebo o jogo da minha querida Nora?

NORA (atrás da cadeira, encostada ao espaldar). — Tens muita pressa, Torvald?

HELMER. — Porquê?...
NORA. — Que papéis são esses?

HELMER. — Negócios do banco.

NORA. — Já?

HELMER. — Recebi dos diretores que saem, plenos poderes para desde já efetuar as mudanças necessárias, no pessoal e
na organização das repartições. A semana do Natal há de ser empregada nesse trabalho. Quero ter tudo em ordem, no ano
novo.

NORA. — É então por causa disso, que aquele pobre Krogstad?...

HELMER. — Hum...

NORA (passando-lhe as mãos nos cabelos). — Se não estivesses com muita pressa, pedia-te um grande favor.

HELMER. — Vamos lá a ouvir. O que vem a ser?

NORA. — Não há ninguém que tenha tão bom gosto como tu. Eu gostava imenso de parecer muito bem no tal baile
mascarado. Torvald, ocupa-te um bocadinho de mim, e decide como há de ser o meu costume?

HELMER. — Ah! Ah! Tem graça! O diabretezinho já pede socorro!

NORA. — Sim, Torvald, não posso decidir nada sem ti.

HELMER. — Bem, bem, há de se pensar nisso, e há de encontrar-se alguma coisa.

NORA. — És muito bom. (Volta à árvore de Natal. Um silêncio). Como estas flores fazem bom efeito! Mas, diz-me cá, é
na verdade uma coisa tão horrível o que Krogstad fez?

HELMER. — Fez uma falsificação. Compreendes o que isto quer dizer?

NORA. — E não seria levado a isso pela miséria?

HELMER. — Sim, em muitos casos, atua-se por ligeireza. Eu não sou tão cruel, que vá condenar impiedosamente um
homem só por um facto desse género.

NORA. — Não, não é verdade, Torvald?

HELMER. — Há mais de um, que pode levantar-se moralmente, com a condição de confessar o seu crime e de sofrer o seu
castigo.

NORA. — O seu castigo?...

HELMER. — Mas Krogstad não seguiu esse caminho. Procurou tirar-se das dificuldades com expedientes e destreza; foi
isso o que o perdeu moralmente.

NORA. — Tu crês isso?

HELMER. — Pensa um bocadinho: uma tal criatura, com a consciência do seu crime, deve mentir e dissimular
incessantemente. É obrigado a trazer máscara, mesmo na sua própria família: sim, diante da sua mulher e dos seus filhos. E
quando a gente pensa nos filhos, isso é espantoso.

NORA. — Porquê?

HELMER. — Porque uma tal atmosfera de mentira está carregada de princípios nocivos e contamina a vida inteira da
família. Cada vez que os filhos respiram, absorvem gérmenes do mal.

NORA (aproximando-se dele). — Estás seguro disso?


HELMER. — Sim, minha querida. Tive muitas vezes ocasião de o verificar como advogado. Quase toda a gente depravada
cedo, é porque teve mães mentirosas.

NORA. — E logo justamente mães?...

HELMER. — Nos casos mais frequentes aquilo provém das mães; mas o pai atua naturalmente no mesmo sentido. Todos os
advogados sabem isto. Pois, apesar de tudo, Krogstad, durante uns poucos de anos, envenenou seus próprios filhos, na sua
atmosfera de mentira e de dissimulação. É por isso que eu o chamo um homem moralmente perdido. (Estende-lhe as mãos). E
é por isso, também, que a minha querida Nora me vai prometer nunca mais falar-me em seu favor. Dá-me a tua palavra. Então,
que é isso? Estende-me a mão! Assim. Está combinado. Asseguro-te que me seria impossível trabalhar com ele. Sinto,
literalmente, um mal estar físico ao pé de semelhante gente.

NORA (retira a sua mão e vai colocar-se do outro lado da árvore). — Que atmosfera pesada está aqui! E eu que tenho
tanto que fazer!

HELMER (levantando-se e juntando os seus papéis). — Tenho por força de percorrer parte disto, antes do jantar. Depois
vou pensar no teu costume. E é possível que também eu já tenha arraigado alguma coisa para suspender na árvore em papel
dourado. (Põe-lhe a mão na cabeça). Meu bonito estorninho!

NORA (baixo, depois de um silêncio). — Oh! Não! Não é isso. É impossível. Há de, por força, ser impossível.

MARIA ANA (à porta da esquerda). — Os meninos querem por força vir para ao pé da mamã.

NORA. — Não, não, não, não os deixes vir agora para aqui. Deixa-te lá estar com eles, Maria Ana.

MARIA ANA. — Sim, minha senhora.

NORA (pálida de espanto). — Depravar os meus filhinhos!... Envenenar a casa!.. (Levanta a cabeça). Não é verdade. É
falso, tão certo como eu estar aqui!

FIM DO PRIMEIRO ATO


SEGUNDO ATO

A mesma decoração. A árvore do Natal, despojada, está colocada a um canto próximo do piano. Atirados para cima do
sofá estão o chapéu e a capa de Nora.
CENA I

Nora; depois Maria Ana

(Nora sozinha, caminha dum para outro lado com agitação; por fim para junto ao sofá e pega na capa).

NORA (largando a capa). — Entrou alguém!... (Chega-se à porta, e presta o ouvido). Não, não é ninguém. Não, não, não
é para hoje, dia de Natal; para amanhã também não... Mas talvez... (Abre a porta e olha para fora). Não, não está nada na
caixa das cartas; está vazia. Que loucura! A ameaça dele não era séria. Uma coisa dessas não pode suceder. Eu tenho três
filhinhos.

(Maria Ana, trazendo uma grande caixa de cartão, entra pela porta da esquerda).

MARIA ANA. — Até que finalmente achei a caixa onde estava guardado o costume.

NORA. — Está bem; põe-na em cima da mesa.

MARIA ANA (obedecendo). — Mas provavelmente ele não está em estado de servir.

NORA. — Deixa! Por vontade minha fazia-o em mil bocados.

MARIA ANA. — Isso, também não; pode arranjar-se facilmente; é preciso apenas um bocadinho de paciência.

NORA. — Sim, eu vou pedir à minha amiga Cristina que venha ajudar-me.

MARIA ANA. — O quê? Sair outra vez? Com este mau tempo? A senhora vai apanhar algum resfriamento... ficar doente.

NORA. — Não era o pior que me podia acontecer... Como estão os meninos?

MARIA ANA. — Coitadinhos! Estão a brincar com os bonitos de Natal, mas...

NORA. — Falam muitas vezes em mim?

MARIA ANA. — Estão tão acostumados a estar com a mamã.

NORA. — É verdade, Maria Ana; mas, bem vês, para o futuro não poderei estar tantas vezes com eles.

MARIA ANA. — As crianças habituam-se a tudo.

NORA. — Crês isso? Crês que eles esqueceriam a sua mamã se ela se fosse embora... para sempre?

MARIA ANA. — Para sempre!... Deus Nosso Senhor nos livre disso!

NORA. — Ouve cá, Maria Ana... uma coisa em que eu tenho pensado tanta vez. Como foi que tiveste a coragem de confiar
tua filha a estranhos?

MARIA ANA. — Então, foi preciso, para ser ama da Norinha.

NORA. — Sim; mas para te decidires a isso?

MARIA ANA. — Era um lugar tão bom que se oferecia! E depois, era uma felicidade para uma pobre rapariga a quem
tinha sucedido uma desgraça. Porque ele não se importava comigo para coisa nenhuma, o indigno.
NORA. — Mas a tua filha naturalmente já te esqueceu.

MARIA ANA. — Isso é que não, com toda a certeza. Ela escreveu-me, primeiro quando fez a sua primeira comunhão, e
depois quando casou.

NORA (deitando-lhe os braços em volta do pescoço). — Minha velha Maria Ana, foste uma boa mãe para mim quando eu
era pequenina.

MARIA ANA. — A pobre Norinha não tinha outra mãe senão a mim.

NORA. — E se os pequeninos também não a tivessem, bem sei que tu... Tolices que estou dizendo! (Abre a caixa de
cartão). Vai para ao pé deles. Agora eu preciso... hás de ver amanhã como eu hei de estar bonita.

MARIA ANA. — Em todo o baile, não há de estar ninguém tão bonita como a minha senhora, tenho a certeza disso.

(Sai pela porta da esquerda).


CENA II

Nora; e depois Cristina Linde

NORA (abrindo a caixa de cartão, mas atirando imediatamente tudo para longe dela). — Ao menos se me atrevesse a
sair! Se tivesse a certeza que não vinha ninguém! Se soubesse que não acontecia nada em casa durante este tempo! Que tolice!
Não vem ninguém. Deixemo-nos de reflexões. Vou alisar o regalo. Onde estão as luvas bonitas, as bonitas? Que ideias! Um,
dois, três, quatro, cinco, seis... (Dá um gritinho). Ah! Cá estão elas...

(Quer dirigir-se para a porta, mas fica indecisa. C. Linde entra, depois de ter deixado a capa e o chapéu na antecâmara).

NORA. — Ah! És tu, Cristina. Não vem mais ninguém, não? Como chegas a propósito!

C. LINDE. — Soube que tinhas ido procurar por mim.

NORA. — Sim, tive de passar mesmo por defronte de tua casa. Então lembrei-me de te ir pedir, para vires ajudar-me.
Vamos sentar-nos no sofá. Ora, eis do que se trata. Amanhã à noite há um baile mascarado, cá por cima de nós, em casa do
cônsul Stenborg. Torvald faz muito empenho em que eu vá de filha de pescador napolitano e em que dance a tarantella que
aprendi em Capri.

C. LINDE. — Então, só pela tua parte, é quase uma representação.

NORA. — É. Torvald quer isso por força. Aqui está o meu fato; foi ele quem o mandou fazer quando estivemos na Itália.
Mas agora está tão estragado, que em verdade não sei...

C. LINDE. — Isso arranja-se depressa; só as guarnições é que estão despregadas em alguns sítios. Dá-me linha e agulha.
Ah! Aqui está tudo.

NORA. — És muito boa para mim.

C. LINDE (cosendo). — Então, Nora, vais-te mascarar amanhã? Olha! Hei de vir cá um bocadinho para te ver. Já me ia
esquecendo de te agradecer a boa noite que me fizeste passar ontem.

NORA (levantando-se e atravessando a cena). — Parece-me que ontem não se estava em minha casa tão bem como o
costume. Havias de ter vindo aqui há mais tempo, Cristina... É verdade que Torvald tem o grande talento de tornar a casa
agradável e bonita.

C. LINDE. — E tu também, parece-me... vê-se que és digna filha de teu pai. Mas, diz-me cá, o doutor Rank esta sempre tão
abatido como estava ontem?

NORA. — Não, ontem era um pouco mais evidente que o costume. Coitado, é muito infeliz, tem uma doença terrível. Sofre
da espinha. O pai dele era um homem pervertido. Tinha amantes e... ainda mais coisas; por isso é que o filho é doente desde
criança, compreendes.

C. LINDE (deixando cair a costura). — Mas, minha querida Nora, quem te conta semelhantes histórias?

NORA. — Ora!... Quando já se teve três filhos... recebem-se visitas de certas damas, que são quase médicas, e que nos
contam muitas coisas.

C. LINDE (pega outra vez na costura). — O doutor Rank vem todos os dias a tua casa?

NORA. — Todos os dias. É o melhor amigo da mocidade de Helmer, e meu amigo também. O doutor Rank é, por assim
dizer, de casa.
C. LINDE. — Mas, diz-me tu, esse homem é completamente sincero? Quero dizer... não gosta de dizer amabilidades?

NORA. — É exatamente o contrário. Onde foste buscar essa ideia?

C. LINDE. — Quando ontem mo apresentaste, assegurou-me que tinha ouvido muitas vezes o meu nome aqui; ora, depois
disso, notei que teu marido não tinha a menor ideia de mim. Como pôde então o doutor Rank?...

NORA. — Tens razão, Cristina. Torvald tem uma grande adoração por mim; quer que eu seja dele, só dele, como ele diz.
Nos primeiros tempos tinha uns ciúmes impossíveis, só de me ouvir nomear um dos entes queridos com quem eu vivia dantes.
Naturalmente, fui-me abstendo de o fazer depois; mas com o doutor Rank falo neles muitas vezes, vês tu; ele gosta muito de me
ouvir.

C. LINDE. — Ouve bem o que eu te digo, Nora; tu, a mais de um respeito, és muito criança ainda; eu, sou mais velha que
tu, e tenho mais um bocado de experiência. Vou dar-te um conselho a respeito do doutor Rank: é preciso que procures pôr
termo a tudo isso.

NORA. — Pôr termo a quê?

C. LINDE. — A muitas coisas. Falaste-me ontem de um adorador rico que devia arranjar-te dinheiro.

NORA. — É exato; mas não existe... infelizmente. E depois?

C. LINDE. — O doutor Rank é rico?

NORA. — Sim, tem fortuna.

C. LINDE. — E não tem família?

NORA. — Ninguém; mas?...

C. LINDE. — E vem aqui todos os dias?

NORA. — Bem sabes que sim.

C. LINDE. — Mas, como é que um homem, que tem obrigação de ser fino, pode ser tão indelicado?

NORA. — Agora é que eu te não compreendo...

C. LINDE. — Não representes comigo, Nora. Imaginas que eu não adivinho a quem pediste emprestados os mil e duzentos
escudos?

NORA. — Perdeste completamente o juízo? Pois tu podes, na verdade, acreditar semelhante coisa? A um amigo, que vem
aqui todos os dias? Que torturante situação seria essa!

C. LINDE. — Então, com franqueza não foi ele?

NORA. — Não, podes estar convencida. Nem um momento tive nunca semelhante ideia. E demais, nessa época ainda ele
não tinha dinheiro para emprestar; só mais tarde é que ele herdou.

C. LINDE. — Pois creio que isso foi uma felicidade para ti, minha querida Nora.

NORA. — Não, eu nunca podia ter a ideia de pedir ao doutor Rank... Estou, porém, bem certa que se lhe pedisse...

C. LINDE. — Mas naturalmente não fazes semelhante coisa.

NORA. — Não, bem entendido. Não prevejo essa necessidade. Mas estou bem certa que se falasse ao doutor Rank...

C. LINDE. — Sem teu marido saber?

NORA. — É preciso sair deste negócio. Ele também se fez às escondidas de meu marido. É preciso acabar com isto.
C. LINDE. — Eu bem to dizia ontem; mas...

NORA (andando de cá para lá). — Um homem pode mais facilmente desembrulhar-se nestas questões do que uma
mulher...

C. LINDE. — Se te referes a um marido, é verdade isso.

NORA. — Tolices! (Para). Quando a gente acaba de pagar tudo, dão-nos o nosso recibo, não é verdade?

C. LINDE. — Naturalmente.

NORA. — E a gente pode rasgá-lo em mil bocados e queimá-lo... o asqueroso, o nojento papel!

C. LINDE (fita-a com fixidez, larga a costura e levanta-se lentamente). — Nora, tu ocultas-me alguma coisa.

NORA. — Conheces isso na minha cara?

C. LINDE. — Passou-se aqui alguma coisa desde ontem de manhã. Nora, diz-me o que foi?...

NORA (voltando-se para ela). — Cristina! (Prestando o ouvido). Chiu! É Torvald que volta. Vai para o quarto das
crianças. Torvald não pode suportar ver coser. Diz à Maria Ana que te ajude.

C. LINDE (juntando uma parte dos artigos de costura). — Está bem;, mas não me vou embora sem tu me teres com toda a
franqueza contado tudo.

(Sai pela porta da esquerda; ao mesmo tempo Helmer entra pela da antecâmara).
CENA III

Nora; Helmer

NORA (indo ao encontro dele). — Com que impaciência te esperei, meu caro Torvald!

HELMER. — Era a costureira?...

NORA. — Não, era Cristina; veio ajudar-me a arranjar o fato para o baile de amanhã. Verás que efeito vou produzir.

HELMER. — Estou convencido que tive uma brilhante ideia.

NORA. — Uma ideia soberba. Mas eu também mereço louvores por te fazer a vontade.

HELMER (afagando-lhe o queixo). — Louvores?... Por fazer a vontade a seu marido? Vamos lá, vamos lá, tontinha, eu
bem sei que não era isso que tu querias dizer. Mas não te quero incomodar; vais prová-lo, não vais?

NORA. — E tu, vais trabalhar?

HELMER. — Vou. (Mostrando papéis). Vês. Fui ao Banco...

(Vai para entrar no quarto).

NORA. — Torvald.

HELMER (parando). — O que é?

NORA. — Se o estorninho te pedisse com muito empenho uma coisa?

HELMER. — Que coisa?

NORA. — Tu fazia-la? Diz-me lá!

HELMER. — Primeiro preciso saber de que se trata.

NORA. — Se tu quisesses ser muito bom e muito dócil, o estorninho ficaria tão contente, faria tanta doidice...

HELMER. — Diz depressa.

NORA. — A andorinha havia de chilrear em todos os tons.

HELMER. — As andorinhas não fazem outra coisa.

NORA. — Havia de dançar para ti como os elfos ao luar.

HELMER. — Nora... espero que se não trate daquilo em que falámos esta manhã?

NORA (aproximando-se). — É disso, Torvald... Peço-to!

HELMER. — E tu tens coragem de me falar em semelhante coisa outra vez!

NORA. — Tenho, sim, tenho; é preciso que tu consintas, é preciso que Krogstad conserve o seu lugar no Banco.

HELMER. — Minha querida Nora, eu destinei esse lugar à tua amiga Cristina Linde.
NORA. — Foste muito bom em fazê-lo; pois bem! Agora o remédio é despedir outro escriturário em lugar de Krogstad.

HELMER. — Isso é um capricho que excede os limites! Lá porque ontem fizeste uma promessa irrefletida, queres agora
que...

NORA. — Não é por isso, Torvald. É por ti. Tu mesmo me disseste que esse homem escreve nos piores jornais... pode
fazer-te tanto mal! Inspira-me um receio tão grande...

HELMER. — Ah! Já entendo; são recordações de outrora que te acodem agora e que te assustam.

NORA. — Que queres dizer com isso?

HELMER. — Estás, evidentemente, a lembrar-te do teu pai.

NORA. — É verdade, é. Lembra-te de tudo o que certa gente escreveu nos jornais contra o papá... de todas as calúnias
que levantaram contra ele. Estou convencida que o demitiam, se o ministério te não tivesse incumbido do inquérito, e se tu não
tivesses sido tão indulgente para ele.

HELMER. — Minha Norinha, há uma grande diferença entre teu pai e eu. Teu pai não era um funcionário inatacável. E eu
sou-o, e espero conservar-me assim enquanto tiver a minha situação.

NORA. — Oh! Quem sabe o que as más línguas podem inventar! Podíamos estar tão bem, tão quietos, tão felizes, no nosso
ninho pacífico, tu, eu, e os nossos filhos! É por isso que te peço com tanta instância.

HELMER. — É exatamente por falares em favor dele que me é impossível conservá-lo. No Banco já todos sabem que
tenciono despedir Krogstad. Se agora soubessem que a mulher do novo diretor o fez mudar de parecer...

NORA. — E o que tinha isso?

HELMER. — Não tinha nada, era uma coisa insignificante, contanto que tu fizesses triunfar a tua vontadinha. Pois passa-te
pela ideia, que eu iria tornar-me ridículo aos olhos de todo o pessoal?... Fazer crer que dependo de toda a espécie de
influências estranhas! Podes ter a certeza que as consequências logo se fariam sentir. E depois... há ainda uma razão que torna
Krogstad impossível no Banco, enquanto eu for diretor.

NORA. — Que razão é?

HELMER. — Pelo seu valor moral... rigorosamente ainda eu podia ter indulgência.

NORA. — É verdade que podias, Torvald!

HELMER. — Sobretudo, dizendo-me, como me dizem, que é um bom empregado. Mas o pior é que é para mim um velho
conhecimento. Um desses conhecimentos de mocidade, começados ligeiramente, e que tantas vezes nos incomodam mais tarde
na existência. Para te dizer tudo, tratamo-nos por tu. E ele é um sujeito de tal modo desprovido de tato, que não tem a menor
reserva em presença doutras pessoas. Pelo contrário, crê que isso lhe dá o direito de empregar um tom familiar comigo, e a
cada instante é um tu, um a ti, Helmer. Juro-te que isso me é desagradável, no último ponto. Tornar-me-ia intolerável a minha
situação no Banco.

NORA. — Torvald, tu não pensas uma palavra do que estás dizendo.

HELMER. — Não penso? Essa é muito boa! Então porque não?

NORA. — Porque esse motivo seria mesquinho.

HELMER. — Que me dizes? Mesquinho? Tu achas-me mesquinho?

NORA. — Não, pelo contrário, meu caro Torvald, e é por isso mesmo que...

HELMER. — Não me importa; dizes que os meus motivos são mesquinhos; nesse caso também eu o sou. Mesquinho?
Achas isso? É preciso que estas coisas acabem. (Chamando). Helena!
NORA. — Que vais fazer?

HELMER. — Tomar uma decisão.

(Entra Helena).

HELMER. — Toma esta carta. Imediatamente. Chama um moço para a levar. Depressa. Que a entregue onde diz o
sobrescrito. Aqui tens dinheiro.

HELENA. — Sim, meu senhor.

(Sai com a carta).

HELMER (tornando a enrolar os seus papéis). — Ora aí tem! Senhora teimosa...

NORA (com a voz embargada). — Que carta é aquela?

HELMER. — É a demissão de Krogstad.

NORA. — Reconsidera, Torvald! Tens tempo ainda. Ah! Torvald, reconsidera! Faz isso por mim... por ti mesmo, pelos
nossos filhos! Ouve-me, Torvald... faz-me isso! Não sabes o que daí pode resultar para nós todos.

HELMER. — Agora é tarde.

NORA. — Sim... é tarde.

HELMER. — Minha querida Nora, perdoo-te esta angústia, embora no fundo ela seja uma injúria para mim. Porque é uma
injúria, crê! Pois então que nome tem, acreditar que eu possa ter medo da vingança de um rábula perdido? Mas, apesar de
tudo, perdoo-to, pois é prova do grande amor que me tens. (Aperta-a nos braços). Assim é preciso, minha querida Nora.
Suceda o que suceder. Nos momentos graves, verás que tenho força e coragem, e que tomo sobre mim a responsabilidade de
tudo.

NORA (assustada). — Que queres tu dizer?

HELMER. — Tudo, é o que te digo...

NORA (com um acento de decisão). — Nunca, nunca farás o que dizes!

HELMER. — Bem; então partilharemos um com o outro, Nora... como marido e mulher. É assim que deve ser. (Afagando-
a). Estás contente agora? Então, então, deixemo-nos desses olhares de pomba amuada. Isso tudo, não passa de puras fantasias.
Agora, o que tu devias fazer era ir tocar a tarantella, e exercitar-te no pandeiro. Eu vou meter-me no meu escritório, e de lá
não ouço nada. Podes fazer a bulha toda que quiseres, e quando Rank vier, diz-lhe onde estou.

(Faz-lhe um sinal de cabeça, entra para o seu quarto levando os papéis, e fecha a porta sobre si).

NORA (semimorta de angústia, fica pregada no lugar onde está e diz a meia voz). — Ele era capaz de fazê-lo. Fá-lo-á
apesar de tudo. Nunca, oh, isso nunca! Antes seja o que for! Socorro!... Um meio qualquer... (Tocam). O doutor Rank! A isso
prefiro tudo; não me importa, seja o que for!

(Passa a mão pela testa, procurando recompor-se e vai abrir a porta de entrada. Vê-se o doutor Rank pendurando no
cabide a sua peliça. Durante a cena seguinte desce o crepúsculo).
CENA IV

Nora; o doutor Rank

NORA. — Bons dias, doutor. Reconheci-o pelo seu modo de tocar. Não procure Torvald; creio que ele está agora muito
ocupado.

RANK. — E aqui?

NORA (enquanto ele entra, e ela torna a fechar a porta). — Oh! Bem sabe... para si, eu tenho sempre um momento.

RANK. — Muito obrigado. Pois hei de aproveitá-lo tanto tempo quanto puder.

NORA. — Que significa isso? Tanto tempo quanto puder?

RANK. — Sim, isso mesmo. Assusta-a a ameaça?

NORA. — A expressão com que o diz é que eu acho estranha. Está para acontecer alguma coisa?

RANK. — O que eu tinha previsto há muito. Não pensava, porém, que chegasse tão cedo.

NORA (agarrando-lhe o braço). — O que há? Que lhe disseram? Doutor, vai-me dizer tudo.

RANK (sentando-se próximo do fogão). — Isto chegou ao fim. Já não há nada a fazer.

NORA (aliviada). — Trata-se de si?

RANK. — Então de quem havia de ser? Para que servia eu estar a mentir a mim mesmo? Sou o mais infeliz de todos os
meus doentes, minha senhora... Nestes últimos dias, tenho empreendido o exame geral do meu estado. É uma bancarrota. É
bem provável que antes de um mês, eu esteja a apodrecer no cemitério.

NORA. — Cruzes! Como é feio falar assim!

RANK. — É porque a coisa, em si mesma, é feia como o demónio. O pior, no entanto, são todos os horrores que devem
preceder. Só me resta um exame. Logo que o tenha feito, saberei pouco mais ou menos quando começa o desenlace. Há uma
coisa que eu desejo dizer-lhe: Helmer tem na sua fina natureza uma aversão tão pronunciada por tudo quanto é feio, que eu não
quero tê-lo à minha cabeceira.

NORA. — Mas, doutor...

RANK. — Não o quero. Por pretexto nenhum. Mandava-lhe fechar a porta. Logo que eu tenha a certeza da catástrofe,
mandarei a v. ex.ª o meu cartão de visita, marcado com uma cruz preta: ficará então sabendo, que principiou... a abominação
da desolação.

NORA. — Olhe, doutor, que hoje está excessivamente extravagante! E eu, que estava com tanto desejo de o encontrar de
bom humor.

RANK. — Com a morte diante dos olhos?... E pagar por causa de outrem? É justiça, isto? E dizer que em todas as famílias
existe, por uma ou por outra forma, uma liquidação deste género...

NORA (tapando os ouvidos). — Chiu! Vamos estar alegres, muito alegres!

RANK. — Efetivamente, vamos estar alegres, isto presta-se ao riso. A minha espinha dorsal, pobre inocente, tem de sofrer
por causa da vida alegre que meu pai levou, quando era rapaz, quando era tenente.

NORA (à esquerda, próximo da mesa). — Ele gostava muito de espargos e de foie gras, não é assim?
RANK. — Gostava; e de trufas.

NORA. — É verdade! E de trufas! E gostava de ostras, também?

RANK. — De ostras, já se entende.

NORA. — E tudo regado com ondas de Porto e de Champanhe... É pena que todas essas coisas tão boas ataquem a espinha
dorsal.

RANK. — E sobretudo que ataquem uma pobre espinha dorsal que jamais as gozou.

NORA. — Ah! Sim; essa é que é a parte mais triste do caso!

RANK (olhando-a atentamente). — Hum...

NORA (depois de um instante de silêncio). — Porque sorriu?

RANK. — V. ex.ª é que sorriu.

NORA. — Não, doutor, juro-lhe que foi o senhor.

RANK (levantando-se). — V. ex.ª é mais... irónica do que eu pensava.

NORA. — Estou hoje tão disposta a dizer loucuras.

RANK. — Bem se vê.

NORA (pondo as duas mãos nos ombros do doutor). — Meu caro, meu caro doutor. É preciso não morrer, não nos
deixar, a Torvald e a mim.

RANK. — Há de ser um pesar de que se consolarão depressa. Os que se vão não levam muito tempo a esquecer.

NORA (fitando-o com inquietação). — Pensa isso?

RANK. — Criam-se relações novas e então...

NORA. — Quem é que cria relações novas?

RANK. — V. ex.ª e Helmer; hão de fazê-lo ambos, quando eu tiver partido. V. ex.ª até, por sua parte, já começou. O que
tinha que fazer ontem à noite aqui, aquela sua amiga, Linde?

NORA. — Ah!... Vai ter agora ciúmes da pobre Cristina?

RANK. — Sim, tenho. Há de suceder-me aqui em casa. Quando o meu prazo estiver vencido, ela...

NORA. — Chiu! Não fale tão alto, que ela está aqui ao lado.

RANK. — Hoje também? Então, bem vê.

NORA. — Veio para me arranjar o meu fato. Meu Deus, como o senhor hoje está absurdo! (Sentando-se no sofá). Agora é
preciso ter muito juízo. Amanhã verá como vou dançar bem, e pode dizer que o faço por si... sim, e por Torvald, isso era
escusado dizer-se. (Tira diferentes coisas de dentro da caixa de cartão). Doutor, venha sentar-se, que eu quero mostrar-lhe
umas coisas...

RANK (sentando-se). — O que vem a ser?

NORA. — É melhor ver... Olhe!

RANK. — Meias de seda.


NORA. — Cor de carne. Não são bonitas? Agora está muito escuro; mas amanhã... Nada, nada, nada; não pode ver senão
os pés. Também... o senhor não faz mal... pode ver mais para cima.

RANK. — Hum...

NORA. — Porque faz esses ares de dúvida? Imagina que me não servem?

RANK. — Em que posso eu basear a minha opinião?

NORA (fitando-o um instante). — Feio! Isso não se diz! (Batendo-lhe ligeiramente numa orelha com as meias). Aqui
tem, o que o senhor merece.

(Mete-as dentro da caixa).

RANK. — Que outras maravilhas há ainda para ver?

NORA. — Não há de ver mais nada, porque não tem juízo.

(Procura entre os objetos, cantarolando).

RANK (depois de um breve silêncio). — Quando estou aqui, consigo, familiarmente, não posso compreender... Não, não
compreendo o que teria sido de mim se eu não tivesse vindo nunca a esta casa.

NORA (sorrindo). — Eu creio, efetivamente, que no fim de contas o senhor não passa mal aqui, connosco.

RANK (baixando a voz e olhando fixamente em frente de si). — E ter de deixar tudo isto...

NORA. — Não torne a essas coisas! Não nos há de deixar...

RANK (como antecedentemente). — E não ter a mínima prova de reconhecimento a deixar... apenas uma mágoa
passageira... nada mais do que um lugar livre, que poderá ser tomado pelo primeiro que apareça.

NORA. — E se eu lhe pedisse?... Não...

RANK. — Se me pedisse o quê?

NORA. — Uma grande prova da sua afeição.

RANK. — Diga-a; o que havia de ser?

NORA. — Quero dizer, um enorme serviço.

RANK. — Será possível que finalmente me queira dar essa grande alegria?

NORA. — Queria; mas o senhor mesmo não pode fazer ideia do que se trata.

RANK. — Vamos a ver; diga.

NORA. — Não, não posso, doutor; é uma coisa tão enorme; é ao mesmo tempo um conselho, um socorro e um serviço.

RANK. — Tanto melhor. Não imagino o que possa ser. Mas fale. Não mereço, não tenho a sua confiança?

NORA. — Ninguém mais a tem assim. Eu bem sei que é o meu melhor, o meu mais dedicado amigo. É por isso que lhe vou
dizer tudo. Pois bem! Doutor, é preciso que me ajude a evitar uma coisa. Sabe quanto Torvald gosta de mim; não hesitaria um
momento em dar a sua vida por minha causa.
RANK (inclinando-se para ela). — Nora... crê que ele seja o único que o fizesse?

NORA (com um pequeno movimento). — O quê?

RANK. — O único que desse alegremente a vida por sua causa.

NORA (com tristeza). — É verdade... isso?

RANK. — Eu tinha jurado que lho havia de fazer saber, antes... de partir. Não podia encontrar melhor ocasião. Sim, Nora,
agora sabe-o. Isto é dizer-lhe que pode confiar em mim, como em mais ninguém.

NORA (levantando-se simples e tranquilamente). — Deixe-me passar.

RANK (abre-lhe passagem mas fica sentado). — Nora!

NORA (à porta de entrada). — Helena, traz luz. (Dirigindo-se para o fogão). Oh! Meu caro doutor, foi mal feito o que
fez.

RANK. — Foi mal feito, amá-la tão profundamente quanto é possível neste mundo?

NORA. — Não; mas tê-lo dito. Não era preciso...

RANK. — Que quer dizer? Já o sabia?...

(A criada Helena entra com o candeeiro, que põe sobre a mesa, depois sai).

RANK. — Nora... minha senhora... pergunto-lhe se o sabia?

NORA. — Eu sei lá... Não posso em verdade dizer-lho... Como foi possível ser tão desastrado, doutor? Ia tudo tão bem!

RANK. — Enfim, agora tem a certeza de que estou à sua disposição, corpo e alma. Fale.

NORA (encarando-o). — Depois do que acaba de me dizer?

RANK. — Peço-lho, diga-me o que é?

NORA. — Acabou-se tudo. Não há de saber nada.

RANK. — Isso é impossível! Diga, diga! Não me castigue desse modo. Deixe-me auxiliá-la em tudo quanto eu
humanamente puder.

NORA. — Agora, já não pode nada por mim... Demais, eu não preciso de ninguém. Verá, que tudo isto eram puras
fantasias, e nada mais. É evidente! (Senta-se na cadeira de balanço e encara-o sorrindo). Doutor Rank, olhe que o senhor
acaba de fazer uma bonita figura. Não tem vergonha, agora que está o candeeiro aceso, diga?

RANK. — Para lhe dizer a verdade, não tenho. Mas provavelmente tenho de me retirar... para sempre?

NORA. — De modo nenhum. Há de continuar a vir naturalmente como até aqui. Bem sabe que Torvald não pode dispensar
a sua companhia.

RANK. — Sim, Torvald... e Nora?

NORA. — Eu? Parece-me tudo tão divertido quando o doutor está cá!

RANK. — Pois foi justamente isso que me fez cair no meu erro. Nora é um enigma! Muita vez me pareceu que era tão
grande o prazer que tinha em estar comigo, como o que sentia em estar com Helmer.

NORA. — É que o doutor não distingue: há aqueles que se ama, e aqueles com quem se gosta de estar.
RANK. — Diz bem.

NORA. — Quando eu era solteira, em casa, gostava naturalmente do papá acima de tudo. Amava-o como pai. Mas não
havia para mim outro prazer maior do que descer às escondidas para o quarto das criadas; não me pregavam sermões de
moral, e contavam sempre umas às outras histórias tão divertidas!

RANK. — Ah! Sim, muito bem! Eu substituí-as.

NORA (levantando-se com vivacidade e correndo para ele). — Não, meu caro doutor, não é isso que eu queria dizer.
Mas é-lhe fácil compreender que se dá com Torvald a mesma coisa que com o papá.

A CRIADA (vindo da antecâmara). — Minha senhora!

(Fala-lhe ao ouvido e dá-lhe uma carta).

NORA (olhando para a carta). — Ah!

(Mete-a na algibeira).

RANK. — Algum aborrecimento?

NORA. — Não, senhor: é... é o meu fato novo para o baile...

RANK. — Que diz? Mas o seu fato está ali.

NORA. — Sim, aquele; mas é que há outro. Encomendei-o... Torvald não deve saber nada...

RANK. — Ah! Aí está o grande segredo.

NORA. — Exatamente. Ande, tenha paciência, vá para o gabinete dele. Não o deixe vir para cá...

RANK. — Esteja descansada; fica ao meu cuidado.

(Entra para o quarto de Helmer).


CENA V

Nora; a criada Helena

NORA (à criada). — E ele está à espera na cozinha?

A CRIADA. — Está, sim, minha senhora; subiu pela escada de serviço...

NORA. — Não lhe disseste que estava cá gente?

A CRIADA. — Disse, mas não serviu de nada.

NORA. — Não se quis ir embora?

A CRIADA. — Não quis, e diz que não sai senão depois de ter falado com a minha senhora.

NORA. — Pois bem, manda-o entrar; mas sem bulha. Helena, não digas nada disto a ninguém; é uma surpresa para meu
marido.

A CRIADA. — Sim, minha senhora, já entendo...

(Sai).
CENA VI

Nora; em seguida Krogstad

NORA. — Prepara-se o horror! Ei-lo que chega. Não, não, não, isto não pode ser; isto não deve suceder!

(A criada faz entrar Krogstad e torna a fechar a porta. Ele traz peliça de viagem, botas grossas e boné de pelo).

NORA (avançando para ele). — Fale baixo, meu marido está ali.

KROGSTAD. — Falarei.

NORA. — O que deseja?

KROGSTAD. — Um esclarecimento.

NORA. — Fale depressa! O que vem a ser?

KROGSTAD. — Oh! Sabe que eu recebi a minha demissão.

NORA. — Não pude evitá-la, senhor Krogstad. Pelejei pela sua causa até ao último extremo; mas nada valeu.

KROGSTAD. — Seu marido tem-lhe tão pouco amor? Sabe o que pode suceder e apesar disso, ousa...

NORA. — Como pode o senhor imaginar que ele o sabe?

KROGSTAD. — De facto, nunca o pensei. Era preciso que o meu bom Torvald Helmer estivesse bastante mudado para
mostrar tanta coragem.

NORA. — Sr. Krogstad, eu exijo que respeite meu marido.

KROGSTAD. — Concordo com isso. Consagra-se-lhe todo o respeito que lhe é devido. Mas como v. ex.ª põe tanto cuidado
em ocultar este negócio, é-me lícito supor que estará hoje melhor informada do que ontem sobre a gravidade da sua ação.

NORA. — Melhor informada do que o teria sido pelo senhor.

KROGSTAD. — Efetivamente, tão mau jurisconsulto...

NORA. — Agora, o que pretende de mim?

KROGSTAD. — Nada, minha senhora. Saber simplesmente como v. ex.ª está. Pensei em v. ex.ª o dia todo. Pode-se ser um
pobre escrevente, um advogadozinho, um... numa palavra um sujeito como eu, e nem por isso, findas as contas, deixar de ter
uma coisa qualquer, que se chama coração.

NORA. — Dê provas disso; pense nos meus filhinhos.

KROGSTAD. — E o marido de v. ex.ª pensou nos meus? Mas pouco importa. Eu queria simplesmente dizer-lhe que não
tomasse estas coisas sob um ponto de vista excessivamente trágico. Em primeiro lugar não farei queixa judicial.

NORA. — Sim; agradeço-lho; eu já contava com isso.

KROGSTAD. — Pode perfeitamente terminar-se este negócio por uma forma amigável. Não é preciso que mais ninguém o
conheça. Isto pode ficar entre nós três.
NORA. — Meu marido não deve nunca sabê-lo...

KROGSTAD. — Como quer v. ex.ª evitar semelhante coisa? Pode, por acaso, pagar o restante?

NORA. — Imediatamente, não posso.

KROGSTAD. — Achou, talvez, maneira de arranjar dinheiro por estes dias?

NORA. — Não achei. Isto é, não achei maneira que eu quisesse empregar.

KROGSTAD. — E antes que assim fosse, não lhe tinha servido de nada. V. ex.ª podia oferecer-me agora fosse que soma
fosse, que eu não lhe restituiria a sua declaração de dívida.

NORA. — Mas explique-me então como pretende servir-se dela?

KROGSTAD. — Quero unicamente guardá-la, tê-la em meu poder. Nenhum estranho saberá nada. Assim, para o caso em
que v. ex.ª tenha pensado em qualquer resolução desesperada...

NORA. — Pensei nisso.

KROGSTAD. — ... ou então em abandonar tudo e em fugir...

NORA. — Pensei nisso.

KROGSTAD. — ... ou ainda em fazer qualquer coisa pior...

NORA. — Como adivinha o senhor?

KROGSTAD. —... pode abandonar essas ideias.

NORA. — Mas como sabe que as tenho?...

KROGSTAD. — Quase todos nós as temos ao princípio. Eu também as tive como os outros; mas, confesso, faltou-me a
coragem.

NORA (em voz surda). — E a mim também!

KROGSTAD (aliviado). — Pois não é assim? Também lhe falece o coração.

NORA. — Também.

KROGSTAD. — E no fim de contas era um disparate. Uma vez passada a primeira tempestade conjugal... Aqui, na minha
algibeira, tenho eu uma carta para seu marido...

NORA. — Diz-lhe tudo?

KROGSTAD. — Com expressões tão atenuadas quanto possível.

NORA (com vivacidade). — Ele não deve ver essa carta. Rasgue-a. Eu lhe arranjarei dinheiro.

KROGSTAD. — Desculpe-me, minha senhora, mas creio ter-lhe dito há poucos instantes...

NORA. — Oh! Eu não falo do dinheiro que lhe devo. Diga-me a soma que pede a meu marido, e eu lha darei!

KROGSTAD. — Eu não peço dinheiro a seu marido.

NORA. — Mas então que quer?

KROGSTAD. — Eu lho vou dizer, minha senhora. Quero avançar, quero subir; e nisso quem me há de ajudar, será seu
marido. Durante ano e meio não cometi nenhuma irregularidade; durante todo esse tempo debati-me nas mais agitadas e
miseráveis dificuldades. Estava contente com a esperança de subir passo a passo. Agora fui expulso, e não me basta já
simplesmente o ser readmitido por favor. Quero subir, repito. Quero voltar para o Banco... em melhores condições que as
anteriores; seu marido há de criar expressamente um lugar para mim...

NORA. — Isso nunca ele o fará!

KROGSTAD. — Há de fazê-lo; eu bem o conheço... não se atreverá a pestanejar. E uma vez ali, v. ex.ª verá. Antes de um
ano hei de ser o braço direito do diretor. Há de ser Nils Krogstad e não Torvald Helmer, quem há de dirigir o Banco.

NORA. — Eis uma coisa que nunca há de suceder.

KROGSTAD. — Então v. ex.ª preferia antes...

NORA. — Agora tenho coragem para isso.

KROGSTAD. — Oh! Não me assusta. Uma dama delicada e distinta como v. ex.ª...

NORA. — Verá, verá!

KROGSTAD. — Debaixo do gelo, talvez? No abismo húmido, escuro e frio? E quando chegar a primavera reaparecer à
superfície desfigurada, impossível de reconhecer, sem cabelos...

NORA. — Não me assusta.

KROGSTAD. — Também v. ex.ª não. Não se fazem essas coisas, minha senhora. E depois para quê? Com que utilidade? Se
a tenho na algibeira do mesmo modo.

NORA. — Quando eu já cá não estiver?...

KROGSTAD. — V. ex.ª esquece que, nesse caso, até a sua memória estaria nas minhas mãos.

NORA, fita-o interdita.

KROGSTAD. — Bem, está prevenida. Nada de disparates. Logo que Helmer tenha recebido a minha carta, espero a sua
resposta. E lembre-se v. ex.ª bem, que foi seu marido quem me obrigou a dar este passo. Isso não lhe perdoarei eu nunca.
Adeus, minha senhora.

(Sai).

NORA (entreabrindo com precaução a porta da saleta e prestando o ouvido). — Saiu. Ele não lhe manda a carta. Não,
não, é impossível! (Abre a porta cada vez mais). Que é aquilo? Parou. Está refletindo. Decide-se...

(Ouve-se cair uma carta na caixa, depois os passos de Krogstad, cuja bulha se vai extinguindo a medida que ele desce a
escada).
CENA VII

Nora; depois Cristina Linde

NORA (Reprime um grito e desce a cena correndo até à mesa colocada ao pé do sofá. Um momento de silêncio). —
Está na caixa! (Volta a passos sumidos à porta da saleta). Está ali!... Torvald, Torvald... agora estamos perdidos!

C. LINDE (entra pela porta da esquerda, trazendo o vestido para o baile). — Foi o melhor que eu pude arranjar. Queres
prová-lo?

NORA (baixo, com a voz estrangulada). — Cristina, chega aqui.

C. LINDE (atirando com o vestido para cima do sofá). — O que tens tu? Estás com uns modos transtornados.

NORA. — Chega aqui. Vês aquela carta? Ali, pela fenda da caixa?

C. LINDE. — Vejo-a, perfeitamente.

NORA. — Aquela carta é de Krogstad.

C. LINDE. — Nora!... Foi Krogstad quem te emprestou o dinheiro?

NORA. — Foi. E agora Torvald vai saber tudo.

C. LINDE. — Acredita-me, Nora, é o melhor que pode suceder, para ambos.

NORA. — Mas não sabes tudo: eu fiz uma assinatura falsa.

C. LINDE. — Meu Deus!... Que estás dizendo?

NORA. — Isso mesmo! Escuta, pois, uma coisa, Cristina! Escuta o que te vou dizer: é preciso que me sirvas de
testemunha.

C. LINDE. — Testemunha de quê? Diz!

NORA. — Se eu endoidecesse... e pode bem suceder...

C. LINDE. — Nora!

NORA. — Ou se me acontecesse outra coisa... e eu não estivesse neste mundo para...

C. LINDE. — Nora, Nora, estás fora de ti!

NORA. — Se houvesse então alguém que quisesse tomar a responsabilidade toda, sim, tomar todo o peso da falta sobre
si... compreendes.

C. LINDE. — Mas como podes tu acreditar...

NORA. — Nesse caso, deves testemunhar que é falso, Cristina. Não estou fora de mim; tenho todo o meu bom senso e
digo-te: Ninguém mais o soube, eu procedi sozinha, inteiramente só. Lembra-te disto.

C. LINDE. — Está bem, lembrar-me-ei. Mas não alcanço ainda.

NORA. — Ah! Como compreenderias tu isto? É um prodígio que vai operar-se.

C. LINDE. — Um prodígio?
NORA. — Sim, um prodígio. Mas, é tão horrível; Cristina, isto não deve acontecer; não o quero por preço nenhum.

C. LINDE. — Eu vou imediatamente falar a Krogstad.

NORA. — Não vás a casa dele: pode fazer-te mal.

C. LINDE. — Houve tempo em que ele teria de boamente feito todo o possível para me ser agradável.

NORA. — Ele?

C. LINDE. — Onde mora?

NORA. — Não sei!... Ah! Sim. (Procura na algibeira). Aqui está o seu bilhete de visita. Mas a carta, a carta!...

HELMER (do seu quarto, batendo à porta de comunicação). — Nora!

NORA (com um grito de angústia). — O que é? Que me queres tu?

HELMER. — Bem, bem! Não tenhas medo. Não podemos entrar; fechaste bem a porta. Estás provando, não é assim?

NORA. — Sim, sim, estou provando. Vou ficar tão bonita, Torvald.

C. LINDE (depois de ter mirado o cartão de visita). — Mora aqui mesmo ao pé, à esquina.

NORA. — Sim; mas para que serve isso? Estamos perdidos... A carta está na caixa.

C. LINDE. — E teu marido tem a chave?

NORA. — Tem-na sempre.

C. LINDE. — Krogstad pode reaver a carta antes dela ser lida. Pode encontrar para isso um pretexto qualquer.

NORA. — Mas neste momento é exatamente a hora em que Torvald costuma...

C. LINDE. — Entretém-no, vai ter com ele. Eu volto o mais depressa que puder.

(Sai vivamente pela porta da saleta).


CENA VIII

Nora; Helmer; depois Rank

NORA (aproximando-se da porta de Helmer, abrindo-a, e olhando para o interior). — Torvald!

HELMER (do seu quarto). — Bom! Ora até que enfim se pode entrar! Anda daí, Rank, vamos ver... (Aparecendo). Mas,
então, que vem a ser isto?

NORA. — O quê, meu caro Torvald?

HELMER. — Rank tinha-me preparado para assistir a um ensaio geral, já com o teu fato.

RANK (aparecendo). — Era o que eu tinha entendido: mas parece que me enganei.

NORA. — Com certeza: ninguém me há de ver em todo o meu esplendor, senão amanhã.

HELMER. — Mas, minha querida Nora, que parecer tão fatigado tens agora! Ensaiaste a dança?

NORA. — Não, não a ensaiei nem uma só vez.

HELMER. — Mas crê, que é muito preciso.

NORA. — É, sim, Torvald; é indispensável. Mas não posso fazer um passo, sem que me ajudes. Esqueci tudo.

HELMER. — Nesse caso, ajudar-te-ei.

NORA. — Ajudas-me, não é verdade? Enfim, vais ocupar-te de mim, Torvald. Prometes-me, sim? Estou tão inquieta. Esta
gente que nos convidou... Hoje, não há mais negócios, não há mais escriturações! Diz-me cá: fazes isso?

HELMER. — Prometo-o. Esta noite estou inteiramente ao teu dispor... minha tímida, minha esquecidinha. Ah! É verdade!
Já me ia esquecendo... deixa-me primeiro ver uma coisa...

(Dirige-se para a porta da saleta).

NORA. — Que vais fazer?

HELMER. — Vou somente ver se vieram cartas.

NORA. — Não, Torvald, não vás.

HELMER. — Porquê?

NORA. — Torvald, peço-to... não há.

HELMER. — Deixa-me ver.

(Faz um movimento para a porta).

NORA (ao piano, toca os primeiros acordes da tarantella).

HELMER. — Ah!
NORA. — Amanhã não posso dançar, se não ensaiar hoje contigo.

HELMER (aproximando-se dela). — É verdade, isso de estares com tanto medo, minha Norinha?

NORA. — É verdade, é; tenho um medo terrível. Deixa-me ensaiar já; temos tempo ainda, antes de irmos para a mesa.
Senta-te ali, meu querido Torvald, e toca. Emenda-me, dá-me conselhos, como costumas fazer.

HELMER. — Com todo o gosto, com todo o gosto, visto que o desejas.

(Senta-se ao piano).

NORA (abre uma caixa, tira de dentro dela com vivacidade um pandeiro e um xaile de riscas vistosas, embrulha-se
nele rapidamente, e depois, num salto, coloca-se no meio do quarto e exclama): — Vamos! Toca! Eu quero dançar.

(Helmer toca; Nora dança; Rank coloca-se atrás de Helmer, e segue-a com os olhos).

HELMER (tocando). — Mais devagar, mais devagar.

NORA. — É impossível.

HELMER. — Menos entusiasmo, Nora.

NORA. — Pois é justamente o que se precisa.

HELMER. — Não, assim não vai bem; não acertamos.

NORA (rindo e agitando o pandeiro). — Então, que dizia eu?

RANK. — Deixa-me ir para o piano.

HELMER (levantando-se). — Com todo o gosto: assim posso dirigi-la melhor.

(Rank senta-se ao piano e toca. Nora executa uma dança cada vez mais louca. Helmer, junto ao fogão, dirige-lhe uma
observação de quando em quando, que ela parece não ouvir. Os cabelos desprendem-se-lhe e caem-lhe sobre os ombros. Ela
não repara e continua a dançar. C. Linde entra).
CENA IX

Os mesmos; C. Linde

NORA. — Cais em plena loucura, Cristina.

HELMER. — Mas, minha querida Nora, estás dançando como se dependesse daí a tua vida.

NORA. — É tal e qual.

HELMER. — Para, Rank. Isto é furor. Para, já te disse.

(Cala-se o piano e Nora para subitamente).

HELMER (a Nora). — Eu não era capaz de acreditar semelhante coisa: esqueceste tudo quanto eu te tinha ensinado.

NORA (atirando com o pandeiro para longe de si). — Já vês.

HELMER. — Precisas muito ser guiada.

NORA. — Conheces que é muito preciso. Hás da guiar-me até ao fim: está prometido, Torvald?

HELMER. — Confia em mim.

NORA. — Hoje e amanhã não quero que tenhas nenhum pensamento senão para mim; não hás de abrir nenhuma carta...
nem a caixa das cartas.

HELMER. — Bom! Lá vem outra vez ainda o receio desse homem.

NORA. — Não o nego, Torvald; há um pedaço desse receio em tudo isto.

HELMER. — Conhece-se no teu parecer, Nora; tenho a certeza que ali na caixa está uma carta dele.

NORA. — Não sei, mas creio-o; entendo, porém, que não deves fazer leituras dessas, agora. Nem uma sombra se deve
atravessar entre nós, antes de estar tudo acabado.

RANK (baixo a Helmer). — É preciso não a contrariar.

HELMER (passando-lhe o braço em torno da cintura). — Sim, minha filha, faço o que tu quiseres. Mas amanhã, depois
de teres dançado...

NORA. — Amanhã serás livre.

A CRIADA (aparecendo à porta da direita). — O jantar está na mesa.

NORA. — Helena, hás de servir champanhe.

A CRIADA. — Sim, minha senhora.

(Sai).

HELMER. — Está bem! Está bem! Temos banquete, ao que parece.


NORA. — Das festas as vésperas. (Gritando para a criada). E põe na mesa, também, algumas amêndoas, Helena;
algumas, não, muitas; uma vez é sem exemplo.

HELMER (pegando-lhe nas mãos). — Bem, minha filha, bem. É preciso não ter esses sustos. É uma loucura. Quero que
sejas sempre a minha cotovia chilreira.

NORA. — Sim, Torvald, sim. Mas vão entrando, que eu já vou; ande, doutor, também. Tu, Cristina, ajuda-me a pôr o meu
penteado em ordem.

RANK (baixo, a Helmer, passando com ele para a casa de jantar). — Estranho tudo isto!... Parece-me ver em tudo... um
presságio... especial!

HELMER. — Não é nada disso, meu caro. É apenas aquela angústia pueril de que te falei.

(Saem pela direita).


CENA IX

Nora; C. Linde; depois Helmer

NORA. — E então?

C. LINDE. — Partiu para o campo.

NORA. — Já tinha lido isso na tua cara.

C. LINDE. — Volta amanhã à noite; deixei-lhe um bilhete.

NORA. — Não devias tê-lo feito. O melhor é não evitar nada. No fundo, já percebi que era um gozo esperar o que nos
espanta.

C. LINDE. — E o que esperas tu?

NORA. — Deixa, Cristina, não me compreenderias. Vai ter com eles; eu já lá vou.

(Nora fica imóvel um momento, como para se concentrar, depois consulta o seu relógio).

NORA. — São cinco horas. Daqui à meia-noite vão sete. Depois vinte e quatro horas até à outra meia-noite. Então, já
deve estar dançada a tarantella. Vinte e quatro e sete? Tenho trinta e uma horas a viver.

HELMER (à porta da direita). — Mas então que é feito da minha cotovia?

NORA (lançando-se-lhe nos braços). — Aqui a tens!

FIM DO SEGUNDO ATO


TERCEIRO ATO

(Mesma decoração. Os móveis, mesa, cadeiras e sofá, têm sido transportados para o meio do quarto. A porta da saleta
está aberta. Ouve-se música de dança vinda do andar superior).

(Cristina Linde, sentada próxima da mesa, folheia distraidamente um livro. Tenta ler, mas parece não poder fixar o seu
pensamento. De instante a instante, lança um olhar para a porta de entrada, e escuta atentamente).
CENA I

C. Linde; Krogstad

C. LINDE (consultando o relógio). — Não vem. Já era tempo de mais, se tivesse de vir. Contanto que ele... (Torna a
escutar). Ah! É ele. (Sai à saleta e abre vagarosamente a porta do exterior ; ouve-se subir a escada com precaução. Baixo).
Pode entrar; estou só.

KROGSTAD (à entrada). — Recebi um bilhete seu. Que quer isso dizer?

C. LINDE. — Preciso absolutamente falar-lhe.

KROGSTAD. — Sim? E é forçosamente aqui que tem de fazê-lo?

C. LINDE. — Não podia recebê-lo em minha casa: não tenho entrada separada. Pode aproximar-se, estamos sós; os
Helmer estão no baile cá em cima.

KROGSTAD (entrando). — Gosto de saber isso. Com que então os Helmer esta noite dançam? É verdade o que me diz?

C. LINDE. — Não sei de que se admira!

KROGSTAD. — De nada.

C. LINDE. — Deixemos os Helmer, Krogstad. Precisamos conversar.

KROGSTAD. — Nós ambos? Pois ainda temos alguma coisa a dizer?

C. LINDE. — Temos muitas coisas.

KROGSTAD. — Não o pensava.

C. LINDE. — É porque nunca me compreendeu bem.

KROGSTAD. — Não era difícil de compreender; sucede o mesmo todos os dias: uma mulher sem coração despede um
homem, quando se apresenta um partido mais vantajoso.

C. LINDE. — Imagina-me absolutamente privada de coração? Julga que me não custou também muito a romper?

KROGSTAD. — Assim o julguei sempre; digo a verdade.

C. LINDE. — Pois realmente acreditou semelhante coisa, Krogstad?

KROGSTAD. — Se assim não era, porque me escreveu nos termos em que o fez?

C. LINDE. — Não podia proceder de outra maneira. Querendo romper, o meu dever era arrancar do seu coração tudo
quanto sentia por mim.

KROGSTAD (esfregando as mãos). — Ah! Assim é!... E tudo isso, não foi mais do que uma questão de dinheiro.

C. LINDE. — Não deve esquecer, que eu tinha de sustentar minha mãe, e dois irmãos pequenos. Não podíamos esperar
por si; o senhor, então, não tinha mais do que esperanças muito remotas.

KROGSTAD. — Admitamos isso: no entretanto não tinha o direito de me repelir por causa de outro.

C. LINDE. — Não sei. Essa pergunta tenho eu feito muita vez a mim mesma.
KROGSTAD (baixando a voz). — Quando eu a perdi, foi como se o chão se me furtasse debaixo dos pés. Olhe para mim:
sou como um náufrago agarrado a uma tábua.

C. LINDE. — Talvez não esteja longe a salvação.

KROGSTAD. — Estava ali, e a senhora veio e tirou-ma.

C. LINDE. — Foi sem eu o saber, Krogstad. Só hoje me disseram que era a si que eu ia substituir no Banco.

KROGSTAD. — Acredito-a porque o diz. Mas agora que o sabe, não renuncia?

C. LINDE. — Não; isso não lhe servia de nada.

KROGSTAD. — Não?... Deixá-lo; eu no seu lugar fazia-o, apesar disso.

C. LINDE. — Aprendi já a proceder razoavelmente. Ensinou-mo a vida, e a áspera necessidade.

KROGSTAD. — E a mim, a vida ensinou-me a não me fiar nas palavras.

C. LINDE. — Nisso, deu-lhe ela uma prudente lição. Mas as ações, confia nelas?

KROGSTAD. — Não entendo a pergunta.

C. LINDE. — É, segundo disse há bocado, um náufrago agarrado a uma tábua.

KROGSTAD. — Tenho boas razoes para falar assim.

C. LINDE. — E eu também, sou uma náufraga agarrada a uma tábua; não tenho ninguém a quem dedicar-me, ninguém que
precise de mim.

KROGSTAD. — Assim o quis.

C. LINDE. — Não podia escolher.

KROGSTAD. — Diga-me onde quer chegar?

C. LINDE. — Se os dois náufragos estendessem a mão um ao outro? Que lhe parece, Krogstad?

KROGSTAD. — Que está dizendo, Cristina?

C. LINDE. — Não era melhor reunirem-se ambos na mesma tábua?

KROGSTAD. — Cristina!

C. LINDE. — Que razão imagina que me trouxe aqui?

KROGSTAD. — Quer-me fazer acreditar que pensou em mim?

C. LINDE. — Preciso trabalhar para poder suportar a existência. Todos os dias da minha vida, desde as mais remotas
lembranças que tenho dela, passei-os trabalhando. Foi sempre essa a minha melhor e a minha única alegria. Agora, aqui me
tem sozinha no mundo; sinto um abandono, um isolamento horrível. Não pensar a gente senão em si, isso destrói todo o encanto
do trabalho. Ouça-me, Krogstad; encontre-me para quem e por quem trabalhar.

KROGSTAD. — Não a acredito: nisso tudo só vejo um orgulho de mulher que se exalta, e quer sacrificar-se.

C. LINDE. — Conheceu-me alguma vez exaltada?

KROGSTAD. — Diga-me, em verdade, se se sente com forças de fazer o que diz? Conhece todo o meu passado?

C. LINDE. — Conheço.
KROGSTAD. — Conhece a minha reputação, o que se diz de mim?

C. LINDE. — Se o compreendi bem, há pouco, está convencido que eu tinha podido salvá-lo.

KROGSTAD. — Tenho a certeza.

C. LINDE. — Não é possível voltar atrás?

KROGSTAD. — Cristina! Refletiu bem no que está dizendo? Refletiu; estou a lê-lo no seu rosto. Desse modo, teria a
coragem?...

C. LINDE. — Preciso de um ente a quem sirva de mãe; e seus filhos precisam de uma. Nós, também, somos impelidos um
para o outro. Eu tenho fé no que constitui o fundo da sua alma, Krogstad... consigo nada me mete medo.

KROGSTAD (agarrando-lhe as mãos). — Obrigado, Cristina, obrigado... agora trata-se de me levantar aos olhos do
mundo, e saberei fazê-lo. Ah! Mas já me esquecia...

C. LINDE (escutando). — Chiu! A tarantella! Saia, saia depressa!

KROGSTAD. — Porquê?

C. LINDE. — Ouve esta música? Em a dança acabando, os Helmer voltam para casa.

KROGSTAD. — Bem, retiro-me. E tanto mais que isto não serve para nada: bem entendido, ignora o meu proceder atual
para com os Helmer.

C. LINDE. — Engana-se, Krogstad: sei tudo.

KROGSTAD. — E tinha a coragem de...

C. LINDE. — Eu sei até onde o desespero pode levar um homem como o senhor é.

KROGSTAD. — Se eu pudesse desfazer o que fiz!

C. LINDE. — Pode-o: a sua carta está ainda ali, na caixa.

KROGSTAD. — Tem a certeza do que diz?

C. LINDE. — Tenho: mas...

KROGSTAD (encarando-a com provocação). — Ah! Aí está explicado tudo. Queria salvar a todo o preço a sua amiga.
Não era melhor dizê-lo com franqueza? Responda-me.

C. LINDE. — Ouça-me, Krogstad: quem se vendeu uma vez para salvar alguém, não se vende segunda.

KROGSTAD. — Vou pedir que me restituam a minha carta.

C. LINDE. — Não; não vai tal.

KROGSTAD. — Já se vê, que vou: não há que discutir. Esperarei que Helmer volte, e dir-lhe-ei que ma entregue.. que ela
trata apenas da minha demissão... que não vale a pena lê-la...

C. LINDE. — Não, Krogstad, não há de pedir a carta.

KROGSTAD. — Não entendo: em verdade, diga-me, não foi para isso que me chamou aqui?

C. LINDE. — Foi, no primeiro momento de sobressalto. Mas já passaram vinte e quatro horas, e durante esse tempo tenho
visto sucederem-se coisas incríveis. É necessário que Helmer saiba tudo; deve dissipar-se este mistério fatal. É preciso que
eles ambos se expliquem: que acabem todas as reservas, a posição falsa em que se encontram.
KROGSTAD. — Bom, se toma essa responsabilidade a si... Mas há uma coisa que em todo o caso eu posso fazer, e que é
preciso fazer imediatamente...

C. LINDE (escutando-o). — Avie-se! Saia!... Acabou a dança, já não estamos seguros.

KROGSTAD. — Espero-a lá em baixo.

C. LINDE. — Pois sim: acompanhar-me-á à minha porta.

KROGSTAD. — Nunca em minha vida fui tão feliz.

(Sai pela porta de entrada. A da saleta fica aberta até ao fim).


CENA II

C. Linde, só

C. LINDE (arranja um pouco o quarto, e prepara a capa e o chapéu). — Que futuro, que nova perspetiva! Tenho para
quem viver, para quem trabalhar, a quem ser útil. Não compreendo a vida sem missão! (Escutando). Descem; lá vêm eles:
depressa, a capa.

(Pega no chapéu e na capa. Ouvem-se as vozes de Helmer e de Nora; abre-se a porta e Helmer faz entrar Nora quase à
força. Esta traja à italiana, embrulhada numa espécie de xaile grande: ele em trajo de soirée, com um dominó preto pelos
ombros).
CENA III

Nora; Helmer; C. Linde

NORA (à entrada, resistindo), — Não, não, não, não quero vir já para casa; quero tornar a subir; não quero retirar-me tão
cedo.

HELMER. — Então, minha querida Nora...

NORA. — Ah! Peço-te, Torvald, suplico-te... apenas mais uma hora!

HELMER. — Nem mais um minuto, minha Norinha. Sabes as nossas convenções. Anda, entra, olha que arrefeces.

(Faz com que ela entre, apesar da sua resistência).

C. LINDE. — Boas noites.

NORA. — Cristina!

HELMER. — O quê! É a tua amiga? Ainda por aqui, tão tarde?

C. LINDE. — Desculpe-me: tinha uma vontade tão grande de ver Nora com o seu fato de napolitana.

NORA. — Esperaste-me aqui este tempo todo?

C. LINDE. — Esperei; mas infelizmente cheguei muito tarde, tu já tinhas subido e não quis ir-me embora sem te ver.

HELMER (tirando o xaile a Nora). — Nesse caso, veja-a bem. Parece-me que vale a pena. Está bonita, não acha?

C. LINDE. — Realmente está.

HELMER. — Maravilhosamente bonita, não é assim? Foi a opinião de toda a gente, lá em cima. Mas que teimosinha, que é
esta minha lindeza! Custou-me a resolvê-la. Foi quase preciso empregar a força para ela deixar o baile!

NORA. — Olha o que te digo, Torvald! Hás de arrepender-te de não me teres concedido pelo menos mais meia hora.

HELMER. — Não ouve isto, minha senhora? Ela dança a sua tarantella, tem um êxito louco e bem merecido, — ainda que
talvez lhe tenha dado uma naturalidade excessiva, quero dizer um pouco mais do que o comportado pelas exigências estritas
da arte. — Mas, enfim, o principal é que teve êxito, um êxito colossal. Havia de deixá-la ficar depois disso? Era ir de
propósito diminuir o efeito. Muito obrigado! Dei o braço à minha formosa rapariga de Capri, — à minha caprichosa
napolitana, devia eu dizer; em seguida, uma volta rápida pela sala; cumprimentos para a direita e para a esquerda — e, como
se diz nos romances... a bela sombra desvaneceu-se. Nos desenlaces é preciso sempre um certo efeito, minha senhora; mas isto
é que eu não consigo que Nora chegue a compreender. Mas que calor faz aqui! (Atira com o dominó para cima de uma
cadeira e abre a porta do quarto). O que é isto? Não há luz? Ah! É verdade. Peço desculpa.

(Entra e acende duas velas).


CENA IV

Nora; C. Linde

NORA (muito baixo, precipitadamente). — E então?

C. LINDE (baixo). — Falei-lhe.

NORA. — Então?...

C. LINDE. — Nora... é preciso, dizeres tudo a teu marido.

NORA (com desalento e muito baixo). — Já o sabia.

C. LINDE. — Não tens nada a temer de Krogstad, mas é preciso que fales.

NORA. — Não falarei.

C. LINDE. — Então a carta falará por ti.

NORA. — Obrigado, Cristina; sei agora o que me resta fazer. Chiu!...


CENA V

Nora; C. Linde; Helmer

HELMER (entrando). — Então, minha senhora, já admirou bastante a Norinha?

C. LINDE. — Já; e agora vou dar-lhes as boas noites.

HELMER. — Não nos acompanha mais tempo? É seu este serão?

C. LINDE (pegando num bocado de obra de meia que Helmer lhe estende). — Muito obrigada: já me esquecia.

HELMER. — Faz meia?

C. LINDE. — Com certeza.

HELMER. — Ora, mal empregado! Devia antes bordar.

C. LINDE. — Parece-lhe? E porquê?

HELMER. — É mais bonito. Veja lá: pega-se no bordado com a mão esquerda, assim; e faz-se mover a agulha com a mão
direita, assim... não repara na curva longa e ligeira que se forma? Não é verdade?

C. LINDE. — Estou vendo...

HELMER. — Ao passo que fazer meia... não tem beleza nenhuma. Os braços pregados ao corpo... as agulhas de cima para
baixo e de baixo para cima... faz lembrar um trabalho chinês... Era bom o champanhe que serviram lá em cima!

C. LINDE. — Boas noites, Nora, e não tornes a ser teimosa.

HELMER. — Apoiado, apoiado, minha senhora.

C. LINDE. — Boas noites, senhor diretor.

HELMER (acompanhando-a até à porta), — Boas noites, boas noites; espero que se não há de perder no caminho. Eu, por
minha vontade... mas é tão perto. Boas noites, boas noites. (Cristina sai; ele fecha a porta e volta). Muito bem! Até que
enfim. Farta-se de ser aborrecida esta criatura.
CENA VI

Nora; Helmer

NORA. — Não estás cansado, Torvald?

HELMER. — Não, absolutamente nada.

NORA. — E também não tens sono?

HELMER. — Nenhum; até pelo contrário, sinto-me bastante esperto. E tu? Efetivamente, tens cara de quem está fatigada, e
de quem tem sono.

NORA. — É verdade, estou muito cansada. Agora, sinto que não levava muito tempo a adormecer.

HELMER. — Então, já vês. Eu tinha razão em não querer ficar mais tempo.

NORA. — Tu tens sempre razão em tudo o que fazes.

HELMER (beijando-a na testa). — Graças a Deus, que já a cotovia principia a falar como um homem. Mas, diz-me cá,
reparaste como Rank estava alegre esta noite?

NORA. — Sim? Não tive ocasião de lhe falar.

HELMER. — Também eu, quase que lhe não falei; mas há muito tempo que o não via tão bem disposto. (Fita-a um
momento, depois aproxima-se-lhe). — Hum... como é bom, no fim de tudo, voltar para casa, estar sozinho contigo... Oh! Que
bonita, que deliciosa mulherzinha tu és!

NORA. — Não olhes assim para mim, Torvald.

HELMER. — Então eu não hei de olhar para o meu mais querido tesouro? Para este esplendor de mulher, que é minha, só
minha, inteiramente minha!

NORA (passando para o outro lado da mesa). — É necessário que me não fales assim esta noite.

HELMER (seguindo-a). — Pelo que vejo, ainda tens tarantella no sangue. E ainda ficas mais sedutora. Ouve! Lá se vão
embora os convidados. (Mais baixo). Nora, dentro em pouco tudo cairá em silêncio.

NORA. — Tudo, assim o espero.

HELMER. — Pois não é assim, minha bem amada Nora? Oh! Quando nós estamos na sociedade, como esta noite... sabes
porque te falo tão pouco, porque me conservo afastado de ti, contentando-me em dirigir-te algumas vezes um olhar disfarçado,
sabes porquê? É porque gosto de estar imaginando que és o meu amor secreto, a minha jovem, a minha misteriosa noiva, e que
todos ignoram os nossos laços.

NORA. — Sim, sim, sim, bem sei que todos os teus pensamentos são para mim.

NORA. — E à saída, quando ponho o xaile nos teus ombros finos e juvenis, quando cubro essa maravilhosa nuca, imagino
que és a minha jovem desposada, que voltamos da igreja, que, pela primeira vez te conduzo a minha casa e que enfim vamos
estar sós... vou estar só contigo, minha adorada beleza palpitante! Ainda hoje, todo o tempo que durou a soirée, não fiz outra
coisa senão suspirar por ti. Quando te vi, na tarantella, tão fascinadora, tão provocante... fervia-me o sangue, não podia
conter-me, e foi por isso que te trouxe para casa tão depressa...

NORA. — Deixa-me, Torvald. É preciso que me deixes. Não quero isso.


HELMER. — Que estás dizendo? Estás brincando comigo, Nora? Não queres isso, disseste? Não te lembras que sou teu
marido?

(Batem à porta de entrada).

NORA (estremecendo). — Ouviste?...

HELMER (passando à saleta). — Quem está aí?

O DOUTOR RANK (de fora). — Sou eu. Posso entrar um bocado?

HELMER (em tom enfastiado). — Bom, faltava agora este. (Alto). Espera, que já vou abrir. (Vai abrir a porta). Sim,
senhor; é muito amável da tua parte, não passares pela nossa porta sem bater.
CENA VII

Os mesmos; Rank.

RANK. — Pareceu-me ouvir a tua voz; foi por isso que me lembrei de entrar um instante. (Lançando um olhar em torno
de si). É este, pois, o lar para mim tão querido, tão familiar. São felizes, meus amigos; têm aqui, em sua casa, o bem estar, a
tranquilidade.

HELMER. — Também não parecias estar muito mal lá em cima.

RANK. — Estava perfeitamente. E porque não? Porque não há de a gente gozar de tudo cá neste mundo? Ao menos, tanto e
por tanto tempo quanto seja possível. O vinho era bom...

HELMER. — O champanhe sobretudo.

RANK. — Também reparaste nele? Chega a ser incrível o que bebi!

NORA. — Torvald também bebeu muito champanhe esta noite.

RANK. — Pareceu-lhe?

NORA. — Com certeza, e isso faz-lhe sempre efeitos tão esquisitos!

RANK. — Ora, porque não há de a gente passar uma boa noite, depois de um dia bem empregado?

HELMER. — Bem empregado? Infelizmente, hoje não posso gabar-me de semelhante coisa.

RANK (batendo-lhe no ombro). — Pois gabo-me eu, fica-o sabendo.

NORA. — Dr. Rank, o senhor estudou hoje, por força, algum caso científico.

RANK. — Justamente, acertou, minha senhora.

HELMER. — Olha, olha, a Norinha a falar de casos científicos.

NORA. — E podemos felicitá-lo pelo resultado?

RANK. — Aceito as felicitações.

NORA. — Um êxito completo?

RANK. — O melhor para o médico, bem como para o doente: a certeza.

NORA (com vivacidade, interrogando-o com os olhos). — A certeza?

RANK. — Uma certeza completa. Depois disso, não tinha direito a passar uma noite alegre?

NORA. — Sem dúvida nenhuma, doutor.

HELMER. — É, também, a minha opinião: contanto, que o não pagues caro amanhã.

RANK. — Tudo se paga neste mundo.

NORA. — Doutor... o senhor deve gostar muito de mascaradas.

RANK. — Gosto, sobretudo quando há nelas muitos trajos grotescos.


NORA. — Diga-me lá: que fatos havemos nós ambos de escolher para a outra vez?

HELMER. — Tontinha! Já ela está pensando na mascarada próxima.

RANK. — Nós ambos? Eu lhe digo: há de vestir-se de mascote.

HELMER. — É boa ideia; mas como há de ser o fato de mascote?

RANK. — Como há de ser? Basta que tua mulher se apresente como nós a vemos todos os dias.

HELMER. — Muito amável! E tu, já tens ideia para a tua máscara?

RANK. — Essa, meu caro amigo, está bem escolhida já.

HELMER. — Vamos lá a ouvir.

RANK. — Na próxima mascarada, hei de vestir-me de invisível.

HELMER. — Estás brincando.

RANK. — Há um chapéu muito grande... Nunca ouviste falar de um chapéu que torna a gente invisível? É pô-lo na cabeça,
e imediatamente ninguém nos vê.

HELMER (reprimindo um sorriso). — Está bem, está bem, tens razão.

RANK. — Mas, já me tinha esquecido completamente a razão porque entrei. Helmer, dá-me cá um charuto, um dos teus
havanos escuros.

HELMER. — Com o maior prazer.

(Apresenta-lhe a charuteiro).

RANK (pegando num charuto e cortando-lhe a ponta). — Obrigado.

NORA (acendendo um fósforo). — Eu é que lhe quero oferecer lume.

RANK. — Muito obrigado. (Ela aproxima o fósforo aceso; ele acende o charuto). — E agora, adeus!

HELMER. — Adeus, adeus, meu caro.

NORA. — Durma bem, doutor Rank.

RANK. — Agradeço-lhe esse cuidado.

NORA. — Deseje-me o mesmo.

RANK. — A si? Ora! Mas se faz muito empenho... Durma bem. E outra vez, obrigado pelo lume.

(Despede-se com um sinal de cabeça e sai).


CENA VIII

Nora; Helmer

HELMER (reprimindo a voz). — Bebeu deveras.

NORA (distraída). — Talvez que...

(Helmer tira as chaves da algibeira e entra na saleta).

NORA. — Torvald, que vais fazer?

HELMER. — Vou despejar a caixa das cartas: está completamente cheia; não há lugar para os jornais amanhã de manhã...

NORA. — Vais trabalhar esta noite?

HELMER. — Bem sabes que não... O que vem a ser isto? Mexeram na fechadura!

NORA. — Na fechadura?...

HELMER. — Não há dúvida nenhuma. O que quer dizer isto? É impossível que as criadas... Cá está ainda, um bocado dum
gancho. E olha, Nora, é um dos teus ganchos da cabeça.

NORA (vivamente). — Foram talvez as crianças...

HELMER. — É preciso tirar-lhes esse costume, Bem... já está aberta. (Tira o conteúdo e chama). Helena?... Helena!
Apaga o candeeiro da entrada.

(Volta para a sala. fechando a porta da saleta).

HELMER (com as cartas). — Olha: que quantidade delas. (Examina os sobrescritos). O que vem a ser isto?

NORA (à janela). — Essa carta! Não, não, Torvald!

HELMER. — Dois bilhetes de visita... de Rank.

NORA. — Do doutor?

HELMER (examinando-os). — Rank, doutor em medicina. Estavam em cima das cartas... foi ele que os deitou quando saiu.

NORA. — Têm alguma coisa escrito?

HELMER. — Têm uma grande cruz preta por cima do nome. Olha. Para brincadeira é de péssimo gosto! É como se ele nos
desse parte da sua própria morte.

NORA. — Pois é, na realidade, o que ele faz.

HELMER. — O quê? Sabes isso? Ele disse-te alguma coisa?

NORA. — Percebe-se. Os bilhetes significam que ele se despediu de nós para sempre. A sua intenção é encerrar-se e
morrer.
HELMER. — Pobre amigo! Eu bem sabia que não tinha de vê-lo por muito tempo. Mas não esperava que fosse tão
depressa. E vai esconder-se, como um animal ferido.

NORA. — Se isso tem de fazer-se, antes se faça sem se dizer uma palavra. Pois não o entendes assim, Torvald?

HELMER (passeando na cena). — Tinha-se tornado da família. Não posso admitir a ideia de não tornar a vê-lo. Com os
seus sofrimentos, com o seu génio solitário, constituía como um fundo de sombra ao quadro cheio de sol da nossa felicidade...
Enfim, talvez seja melhor. Pelo menos para ele. (Para). E, talvez, para nós também, Nora. Daqui em diante, eis-nos
exclusivamente consagrados um ao outro. (Enlaça-a nos braços). Ah! Minha bem amada, minha mulher; parece-me que nunca
te aperto tanto a mim quanto era a minha vontade. Não sabes, Nora... muitas vezes queria ver-te ameaçada dum perigo, para
poder expor a minha vida, dar o meu sangue, arriscar tudo, tudo para te proteger.

NORA (soltando-se dele com a voz firme e resoluto). — Agora, lê as tuas cartas, Torvald.

HELMER. — Não, esta noite, não... Quero ficar contigo, minha querida, minha querida mulherzinha.

NORA. — Não pensas nesse morto, no teu amigo?

HELMER. — Tens razão. Isso veio incomodar-nos, a ambos. Qualquer coisa de repelente parece ter-se insinuado entre
nós; a ideia da morte e da dissolução. Havemos de removê-la. Mas até lá... Vamos cada um para o nosso quarto.

NORA (deitando-se-lhe ao pescoço). — Boas noites, Torvald... boas noites!

HELMER (beijando-a na testa). — Boa noite, minha ave cantadora. Dorme sossegada, Nora. Eu vou percorrer as cartas.

(Entra no seu quarto, levando as cartas, e fecha a porta sobre si).


CENA IX

Nora, só

NORA (tateando em torno de si, com os olhos desvairados, pega no dominó de Helmer e embrulha-se nele, dizendo em
voz breve, surda e sacudida). — Nunca mais tornar a vê-lo! Nunca mais, nunca mais. (Põe o xaile pela cabeça). E as
crianças: também não tornar a vê-las, nunca mais. Oh! Aquela água gelada, negra. Oh! Essa coisa... essa coisa sem fundo... Se
ao menos tudo tivesse passado já! Agora, neste momento, pega nela, está-a lendo. Não, não, ainda não. Adeus, Torvald, tu e os
meus filhos.

(Precipita-se para a porta de entrada. No mesmo momento Helmer abre com violência a do seu quarto e aparece, com
uma carta aberta na mão).
CENA X

Nora; Helmer

HELMER. — Nora!

NORA (soltando um grito de aflição). — Ah!

HELMER. — Que é isto?... Tu sabes o que esta carta contém?

NORA. — Sim; sei. Deixa-me ir embora! Deixa-me sair!

HELMER (detendo-a). — Onde vais?

NORA (procurando livrar-se). — Não poderás salvar-me, Torvald.

HELMER (recuando). Com que então é verdade? Esta carta não mente? Horror! Não, não, é impossível, isto não pode ser.

NORA. — É a verdade. Amei-te mais do que tudo neste mundo..

HELMER. — Cala-te, basta de impertinências.

NORA (dando um passo para ele). — Torvald!...

HELMER. — Desgraçada! Que foste fazer?

NORA. — Deixa-me sair. Não suportarás o peso da minha falta, não responderás por mim.

HELMER. — Deixa-te de comédias! (Fecha a porta da saleta). Não sais daqui; e vais dar-me conta dos teus atos.
Compreendes o que fizeste? Diz-me, compreende-lo?

NORA (encara-o com uma rigidez crescente na expressão e diz em voz lenta e profunda). — Sim, agora começo a
compreender o fundo das coisas.

HELMER (andando, agitado, na cena). — Oh! Que terrível despertar! Há oito anos que ela, a minha alegria e o meu
orgulho... é uma hipócrita, uma mentirosa... pior do que isso, uma criminosa! Que abismo de perversão é isto tudo! Que horror!

NORA (muda, continua a encará-lo com fixidez).

HELMER (parando diante dela). — Eu devia ter pressentido que havia de suceder alguma coisa deste género. Eu devia ter
adivinhado isto. Com a ligeireza de princípios de teu pai... e esses princípios herdaste-los. Ausência de religião, ausência de
moral, ausência de todo o sentimento do dever... Oh! Como eu estou castigado por ter lançado um véu sobre a sua conduta. Foi
por tua causa que o fiz. E aqui está como me recompensas.

NORA. — Sim, aí está.

HELMER. — Agora destruíste a minha felicidade, aniquilaste todo o meu futuro. Não posso pensar nisso sem estremecer.
Eis-me nas mãos de um homem sem escrúpulos! Pode fazer de mim tudo quanto quiser, pedir-me seja o que for, mandar,
ordenar à sua vontade, sem eu ter direito de dizer uma palavra. Assim pude ser reduzido a nada, metido a pique pela ligeireza
de uma mulher.

NORA. — Quando eu tiver deixado este mundo, ficarás livre.

HELMER. — Basta de grandes palavrões. Teu pai também tinha uma grande provisão deles. De que me servia, se
deixasses este mundo, como dizes? De nada. Apesar disso, ele podia divulgar as coisas, e, nesse caso, suspeitar-me-iam
talvez de ter sido cúmplice da tua criminosa ação. Poderiam crer que fui eu o instigador dela, que fui eu que te impeli. E é a ti
que devo isto, a ti com quem andei nos braços através de toda a nossa vida comum. Compreendes agora o que fizeste?

NORA (com sossego e frieza). — Compreendo.

HELMER. — Tudo isto é tão incrível, que eu não sei deliberar-me. Mas e necessário resolver alguma coisa. Tira esse
xaile. Tira-o, já te disse! É preciso que eu o contente por qualquer forma. Do que se trata é de atabafar este negócio a todo o
preço. E, no que respeita ao nosso viver interno, não deve conhecer-se mudança. Bem entendido, que se não trata senão das
aparências. Continuarás, portanto, a habitar aqui: assim deve ser. Mas não te será permitida mais a educação das crianças...
não tas confio. Ah! Ter de falar assim àquela que eu tanto amei e que ainda...! Vamos, tudo isto passou, tem de ser. De hoje em
diante não se trata já de felicidade. Mas unicamente de salvar restos, aparências...

(Tocam à campainha da porta de entrada).

HELMER (estremecendo), — O que é isto? Tão tarde! Horror. Será já?... Será ele?... Esconde-te, Nora! Diz-te doente.

(Nora não se mexe, Helmer vai abrir a porta).

A CRIADA (meia despida, na saleta). — Uma carta para a senhora.

HELMER. — Dá-ma. (Pega na carta e fecha a porta). — Conheço a letra; é dele. Não ta dou. Vou eu mesmo lê-la.

NORA. — Lê.

HELMER (aproximando-se do candeeiro). — Nem sei como tenho coragem. É possível que estejamos, em breve, presos
ambos. Seja o que for; é necessário sabê-lo já. (Abre a carta com vivacidade, percorre algumas linhas, examina o papel
incluso no sobrescrito, e dá um grito de alegria). — Nora!

NORA (interroga-o com o olhar).

HELMER. — Nora!... Não, deixa-me ler outra vez!... É isto, é, não me iludo! Estou salvo! Nora, estou salvo!

NORA. — E eu?

HELMER. — E também tu, bem entendido. Estamos salvos ambos. Olha. Restitui-te o teu recibo. Lastima, diz ele, está
arrependido... tendo vindo um feliz acontecimento mudar a sua existência... ora! Pouco importa o que ele escreve. Estamos
salvos, Nora. Já ninguém te pode fazer mal. Ah! Nora, Nora... não, destruamos primeiro todos estes horrores. Deixa-me ver...
(Lança um olhar rápido para o recibo). Não, não quero ver mais nada; faço de conta que foi um mau sonho que tive; não
pensarei mais nele. (Rasga as duas cartas e o recibo, atira tudo para o fogão, e vê arder o papel). Aí está! Desapareceu
tudo. Escrevia-te que, desde a véspera do Natal, tu... Oh! Esses três dias, que tormento devem ter sido para ti, Nora!

NORA. — Sustentei durante eles uma luta violenta.

HELMER. — E tinhas chegado ao desespero; não vias outra saída senão... Não, não guardaremos lembrança nenhuma de
todos estes dissabores. Vamos festejar a nossa libertação repetindo incessantemente: Acabou-se, acabou-se. Mas, ouve-me,
Nora; pareces não compreender; acabou-se. Mas que quer dizer essa frieza? Oh! Minha pobre Norinha, entendo... Pareces não
acreditar que te perdoei. Olha que é verdade, Nora; juro-to: tudo está perdoado. Bem sei que tudo quanto fizeste, foi por amor
de mim.

NORA. — É verdade.

HELMER. — Amaste-me como uma mulher deve amar o seu marido. O que te sucedeu foi não acertar na escolha de meios.
Mas imaginas que te quero menos, por não poderes guiar-te a ti mesma? Não, não, apoia-te em mim: encontrarás auxílio e
direção. Eu não seria um homem se a tua incapacidade de mulher te não tornasse duplamente sedutora aos meus olhos.
Esquece as palavras duras que te disse nos primeiros momentos de pavor, quando cheguei a crer que tudo ia desabar sobre
mim. Perdoei-te. Nora, juro que te perdoei.
NORA. — Agradeço-te o teu perdão.

(Sai pela porta da direita).

HELMER. — Não te vás; deixa-te ficar... (Segue-a com os olhos). Para que vais para o quarto?

NORA (do seu quarto). — Para despir este fato de mascarada.

HELMER (perto da porta, que ficou aberta). — Bem; descansa, procura acalmar o espírito, refaz as tuas forças, pobre
avezita espantada. Repousa sem medo, eu tenho asas para te proteger. (Andando, sem se afastar da porta). O interior da nossa
casa é um ninho delicioso e tranquilo, minha querida Nora! Aqui, estás ao abrigo de todo o mal; guardar-te-ei como se fosses
uma pomba recolhida depois de a haver tirado sã e salva às garras de um abutre. Saberei apaziguar teu coração que palpita.
Hei de consegui-lo a pouco e pouco, acredita-me, Nora. Amanhã já hás de ver tudo isto com outros olhos. Tornará tudo a ser
como era dantes. Não há de ser preciso estar sempre a afirmar-te, que te perdoei. Tu própria o hás de sentir, sem sombra de
dúvida. Talvez imagines que eu seja capaz de repelir-te ou mesmo de te fazer censuras! Ah! É porque não sabes o que é um
verdadeiro coração de homem. Oh! Nora, Nora! Há para um homem uma tal doçura, um tão grande contentamento na
consciência, em ter perdoado verdadeiramente, no fundo da sua alma! É como uma segunda posse, como uma criação nova;
não se vê só a nossa mulher no ente perdoado, vê-se também a nossa filha. É assim que tu me hás de parecer no futuro, minha
pobre mulherzinha assustada, sem bússola. Não te inquietes por coisa nenhuma, Nora; quero somente que sejas franca para
comigo, e eu serei a tua vontade, a tua consciência. Mas que vem a ser isso? Não te deitaste? Vestiste-te outra vez?

NORA (que vem vestida com o seu fato ordinário). — Sim, Torvald, tornei a vestir-me.

HELMER. — Mas para quê, a esta hora?

NORA. — É que esta noite não tenciono dormir.

HELMER. — Mas, minha querida Nora...

NORA (consultando o seu relógio de algibeira). — Ainda não é muito tarde. Senta-te, Torvald. Temos que conversar.

HELMER. — Nora... o que quer dizer isso? Que modos são esses?...

NORA. — Senta-te. A conversa tem de ser comprida. Temos muita coisa a dizer.

HELMER (sentando-se em frente dela). — Estás-me inquietando, Nora. Não te compreendo.

NORA. — Dizes bem: não me compreendes. E eu também, nunca te compreendi... antes desta noite. Não me interrompas.
Ouve o que te digo: Trata-se de regular as nossas contas.

HELMER. — Onde queres tu chegar?

NORA (depois de um instante de silêncio). — Eis-nos aqui, um em frente do outro. Não estás impressionado com uma
coisa?

HELMER. — Mas, que queres tu dizer, Nora?

NORA. — Há oito anos que somos casados. Reflexiona um pouco: pois não é esta a primeira vez que nós ambos, tais
como somos, marido e mulher, conversamos seriamente juntos?

HELMER. — Seriamente, sim... Mas, porque há de ser seriamente?

NORA. — Passaram oito anos... e mesmo mais, se contarmos desde o nosso primeiro encontro, e nunca trocámos um com
o outro uma palavra séria, sobre um assunto grave.

HELMER. — Então, havia de estar incessantemente a iniciar-te nas minhas inquietações, que tu não terias podido aliviar?
NORA. — Eu não falo de inquietações. O que quero dizer é que nunca, fosse no que fosse, procurámos ver em comum, no
fundo das coisas.

HELMER. — Mas, repara, minha querida Nora: seria isso uma ocupação para ti?

NORA. — Estamos na questão. Tu nunca me compreendeste... Foram muito injustos para comigo, Torvald; primeiro, o
papá; tu, depois.

HELMER. — O quê? Nós ambos!... Mas quem foi que te amou tanto como nós?

NORA (abanando a cabeça). — Eu nunca fui amada, nem por um, nem por outro. Gostavam de estar em adoração diante
de mim, e mais nada.

HELMER. — Nora, atende bem; que linguagem é essa?

NORA. — É assim mesmo, Torvald: quando eu vivia com o papá, ele expunha-me as suas ideias, e eu seguia-as. Se
acontecia eu ter outras diversas, ocultava-as. Ele não gostaria que eu as tivesse. Chamava-me a sua bonequinha, e brincava
comigo, como eu brincaria com as minhas bonecas. Depois, vim para tua casa...

HELMER. — Acho singulares as expressões com que falas do nosso casamento.

NORA (sem mudar de tom). — O que eu quero dizer é que, das mãos do papá, passei para as tuas. Arranjaste tudo a teu
gosto, e eu tive o mesmo, ou afetei que o tinha, pois ao justo não sei bem como era; talvez fossem ambas as coisas, ora uma,
ora outra. Lançando agora um olhar para o passado, parece-me que tenho vivido aqui como vivem os pobres de
entendimento... sem pensarem no dia seguinte. Vivi das piruetas que fazia para te dar gosto, Torvald. Era isso o que te
convinha. Tanto tu como o papá foram muito culpados comigo. É de ambos a falta, se eu não sirvo para nada.

HELMER. — Estás sendo absurda, Nora, absurda e ingrata. Não tens sido feliz aqui?

NORA. — Nunca. Julguei que o era, mas não o fui nunca.

HELMER. — Tu não foste... tu não foste feliz!

NORA. — Não: fui alegre e mais nada. Foste muito amável para mim: mas a nossa casa nunca foi outra coisa senão uma
casa de recreio. Eu fui mulher-boneca em tua casa, como tinha sido criança-boneca em casa do papá. E os nossos filhos, esses,
por sua vez, têm sido bonecas para mim. Eu achava graça quando brincavas comigo, como eles achavam graça quando eu
brincava com eles. Aí está o que tem sido a nossa união, Torvald.

HELMER. — Há alguma coisa de verdade no que dizes... ainda que exageras e amplificas muito. Mas para o futuro tudo
isso há de mudar. Passou o tempo do recreio, agora chega o da educação.

NORA. — A educação de quem, a minha ou a das crianças?

HELMER. — Uma e outra, minha querida Nora.

NORA. — Ah! Torvald, tu não és homem para me educares, fazendo de mim a verdadeira esposa de que precisas.

HELMER. — És tu que dizes isso?

NORA. — E eu... como é que estou preparada para educar as crianças?

HELMER. — Nora!

NORA. — Ainda há pouco o disseste... que era esse um encargo que não ousavas confiar-me.

HELMER. — Disse-o num momento de irritação. Queres agora tornar a pôr isso de pé?

NORA. — Meu Deus! Disseste-o muito bem. É um encargo acima das minhas posses. Tenho outra tarefa a cumprir
primeiro. Antes de tudo preciso pensar na educação de mim mesma. Tu não és homem que me facilites esse dever. Tenho de
empreendê-lo sozinha. É por isso que te vou deixar.

HELMER (levantando-se de um pulo). — Que dizes, Nora?

NORA. — Preciso estar só para me entender a mim mesma e a tudo quanto me rodeia. É por isso que não posso continuar
mais a viver contigo.

HELMER. — Nora! Nora!

NORA. — E vou-me embora, já, no mesmo instante. Para esta noite encontrarei asilo em casa de Cristina...

HELMER. — Estás perdendo a razão! Não tens direito de sair daqui. Proíbo-to.

NORA. — Desta hora em diante não podes proibir-me nada. Levo comigo tudo quanto é meu. De ti não quero coisa
nenhuma, nem agora, nem nunca mais.

HELMER. — Mas que loucura é essa?

NORA. — Amanhã parto para minha casa; isto é, para a terra onde nasci... Terei lá mais facilidade em viver.

HELMER. — És cega de todo; és uma pobre sem experiência!

NORA. — A experiência há de vir com o tempo, Torvald.

HELMER. — Abandonar a tua casa, o teu marido, os teus filhos! Não pensas no que se há de dizer?

NORA. — Não posso preocupar-me com isso. Unicamente o que eu sei, é que para mim é indispensável.

HELMER. — O que dizes é revoltante! Desse modo, atraiçoas os deveres mais sagrados!

NORA. — O que consideras tu como os deveres mais sagrados?

HELMER. — Precisas que to diga? Pois não são os teus deveres para com teu marido e para com teus filhos?

NORA. — Tenho outros tão sagrados como esses.

HELMER. — Não tens tal. Diz-me quais são, se és capaz!

NORA. — Os meus deveres para comigo mesma.

HELMER. — Antes de tudo, és esposa e mãe.

NORA. — Eu já não creio nisso. O que eu creio é que, antes de tudo, sou um ser humano, com o mesmo direito que tu... ou
que pelo menos devo tentar sê-lo. Bem sei que a maior parte dos homens te hão de dar razão, Torvald, e que estas ideias estão
impressas nos livros. O que eu preciso é formar por mim própria ideias sobre isso tudo, e procurar perceber todas as coisas.

HELMER. — O que dizes? Pois não percebes qual é o teu lugar aqui? Não tens nessas questões um guia infalível? Não tens
a religião?

NORA. — Ah! Torvald! A religião, nem eu sei ao justo o que seja.

HELMER. — Não sabes o que seja a religião?

NORA. — Não; a esse respeito não sei senão o que me ensinou o cura Hausen, quando me preparou para a confirmação. A
religião é isto, é aquilo. Quando eu estiver só e livre, tratarei de examinar essa questão como as outras. Verei, então, se o cura
dizia a verdade, ou pelo menos se aquilo que ele me dizia era verdade com respeito a mim.

HELMER. — Tudo isso é inaudito da parte de uma mulher tão nova! Mas se a religião não pode guiar-te, deixa-me ao
menos sondar a tua consciência. Porque suponho que, pelo menos, possuis o senso moral? Ou talvez sejas desprovida dele:
responde-me.
NORA. — Vê, Torvald, é-me difícil responder. Não sei nada disso. Não posso reconhecer-me no meio dessas coisas. O
que sei, é apenas isto: que as minhas ideias diferem completamente das tuas. Sei, também, que as leis não são o que eu
imaginava; agora que essas leis sejam justas, isso é que me não pode entrar na cabeça. Uma mulher não ter o direito de poupar
um desgosto a seu velho pai moribundo, ou de salvar a vida a seu marido! Isso não pode ser!

HELMER. — Falas como uma criança: não compreendes nada da sociedade de que fazes parte.

NORA. — Não, não compreendo nada. Mas quero chegar a isso, e assegurar-me bem qual de nós tem razão: se a
sociedade, se eu.

HELMER. — Estás doente, Nora, tens febre; chego a crer que não estás em teu juízo.

NORA. — Pois crê que nunca me senti mais lúcida e mais segura de mim do que esta noite.

HELMER. — E é com essa esperança e com toda a lucidez, que abandonas teu marido e teus filhos?

NORA. — É.

HELMER. — Isso só tem uma explicação possível.

NORA. — Qual?

HELMER. — Já me não amas.

NORA. — É isso mesmo; aí está a explicação de tudo.

HELMER. — Nora!... É verdade o que estás dizendo?

NORA. — Custa-me muito dizê-lo, Torvald: porque foste sempre muito bom para mim. Mas não posso negá-lo: já te não
amo.

HELMER (esforçando-se por mostrar tranquilidade). — E estás, também, perfeitamente convencida disso, não é
verdade?

NORA. — Absolutamente. E é essa a razão porque não quero mais habitar aqui.

HELMER. — Podes, então, explicar-me como foi que eu perdi o teu amor?

NORA. — Certamente, que posso. Foi esta noite, quando não vi cumprir-se o prodígio por mim esperado. Vi, então, que
não eras o homem que eu julgava.

HELMER. — Explica-te: não compreendo.

NORA. — Esperei, com paciência, durante oito anos. Eu bem sabia, meu Deus, que os prodígios não acontecem todos os
dias. Chegou, finalmente, esta hora de angústia. Pensei, então, convencida: eis o prodígio que chega. Enquanto a carta de
Krogstad estava ali, na caixa, não pensei um instante que pudesses dobrar-te às condições desse homem. Acreditava
firmemente que lhe dirias: Vá, e publique tudo. E quando isso tivesse sucedido...

HELMER. — Sim!... Diz antes, quando eu tivesse entregue minha mulher à vergonha e ao desprezo...

NORA. — Quando isso tivesse sucedido, eu tinha a íntima convicção que te apresentavas, tomando a responsabilidade
toda sobre ti, e dizendo: Sou eu o culpado.

HELMER. — Nora!

NORA. — Vais dizer que eu não teria aceite semelhante sacrifício. Sem dúvida, que não. Mas que importância teria a
minha afirmação ao lado da tua?... Pois bem! Era esse o prodígio que eu esperava, aterrada. E era para obstar a isso, que eu
queria morrer.
HELMER. — Nora, eu sentiria felicidade em trabalhar para ti noite e dia. Por ti, suportaria tudo, cuidados e privações.
Mas não há ninguém que dê a sua honra por aquele a quem ama.

NORA. — Há milhares de mulheres que o têm feito.

HELMER. — Falas como uma criança, e pensas como elas.

NORA. — Pois admitamos que seja. Tu, porém, não falas como o homem de quem me fosse possível ser a companheira.
Tão depressa tranquilizado, não sobre o perigo que me ameaçava, mas sobre aquele que tu próprio corrias... esqueceste tudo.
Tornei logo a ser a tua avezinha constante, a tua boneca, que já estavas inteiramente disposto a tomar nos braços como dantes,
apenas com mais precauções depois que a tinhas reconhecido mais frágil. (Levantando-se). Ouve, Torvald; naquele momento,
pareceu-me que tinha vivido oito anos nesta casa com um estranho, e que tinha tido três filhos... Ah! Nem posso sequer pensar
nisso. Tenho vontade de me dilacerar a mim mesma em mil pedaços.

HELMER (surdamente). — Bem vejo, Nora, bem vejo. Cavou-se entre nós um abismo. Diz-me, porém, se não há maneira
de o encher outra vez?

NORA. — Tal como eu sou agora, não posso ser tua mulher.

HELMER. — Eu tenho forças para me transformar.

NORA. — Talvez... se te tirarem a tua boneca.

HELMER. — Separar-me... separar-me de ti! Não, não, Nora, não posso aceitar semelhante ideia.

NORA (dirigindo-se para a porta da direita). — Razão de mais para acabar com isto.

(Sai, e volta com a capa, o chapéu, e um saquinho de viagem, que põe sobre uma cadeira perto da mesa).

HELMER. — Ainda não. Nora, ainda não! Espera para amanhã.

NORA (pondo a capa). — Eu não posso passar a noite em casa dum estranho.

HELMER. — Mas não podemos continuar a viver juntos como irmão e irmã?

NORA (pondo o chapéu). — Bem sabes, que isso não duraria muito tempo. (Pondo o xaile por cima dos ombros). Adeus,
Torvald. Eu não quero ver as crianças. Sei que estão em melhores mãos do que as minhas. Tal como sou agora... não posso ser
mãe para elas.

HELMER. — Mas um dia, Nora... um dia?

NORA. — Como te hei de responder? Sei eu, por acaso, o que ainda serei?

HELMER. — Mas tu és minha mulher, seja o que fores ou o que vieres a ser.

NORA. — Ouve, Torvald. Quando uma mulher abandona o domicílio conjugal, como eu faço hoje, as leis, dizem-me,
desligam o marido de toda a obrigação para com ela. Em todo o caso, eu, pela minha parte, desligo-te de tudo. É preciso que
te não sintas preso, como eu própria o não fico. Liberdade inteira de parte a parte. Bem; aqui está o teu anel: restitui-me o
meu.

HELMER. — Também isso?

NORA. — Também.

HELMER. — Aqui o tens.

NORA. — Obrigada. Agora, acabou-se tudo. Ali ficam as chaves. Pelo que respeita à casa, Helena está ao facto... está até
melhor do que eu. Amanhã, depois da minha partida, Cristina virá arranjar em uma mala tudo o que eu trouxe comigo quando
vim para aqui. Quero que mo remetam.

HELMER. — Acabou-se tudo! Não queres nunca mais pensar em mim, Nora?

NORA. — Com certeza, que hei de pensar muitas vezes em ti, e nas crianças, e em casa.

HELMER. — Posso escrever-te, Nora?

NORA. — Não! Nunca. Proíbo-to.

HELMER. — Oh! Mas decerto que te posso mandar...

NORA. — Nada, nada.

HELMER. — ... ajudar-te, se tiveres necessidade.

NORA. — Não, já te disse! Não aceito nada de um estranho.

HELMER. — Nora... e eu nunca mais hei de ser senão um estranho para ti?

NORA (pegando no saco de viagem). — Ah! Torvald, para isso era preciso o maior dos prodígios.

HELMER. — Designa-mo, esse prodígio.

NORA. — Era necessário para nós ambos, que nos transformássemos a tal ponto... Ah! Torvald, eu não acredito nos
prodígios.

HELMER. — Mas eu quero acreditar neles. Diz-mo. Precisávamos transformar-nos a tal ponto que?...

NORA. — A tal ponto que a nossa união se tornasse num verdadeiro casamento. Adeus.

(Sai pela porta da escada).

HELMER (deixando-se cair numa cadeira, próximo da porta, e cobrindo o rosto com as duas mãos). — Nora, Nora!
(Levanta a cabeça e olha em torno de si). Foi-se embora! Foi-se! (Com uma esperança nascente). O maior dos prodígios...?!

(Ouve-se fora a bulha da porta da casa, que se fecha).

FIM

Ficha técnica

Título: Uma casa de bonecas.


Autor: Henrik Ibsen.
Tradução: Fernandes Costa.
Edição digital: (zero papel), dezembro de 2012.
Ortografia usada: Variante europeia. Em conformidade com o acordo ortográfico da língua portuguesa de 16 de
dezembro de 1990.
Índice
CASA DE BONECAS
PERSONAGENS
PRIMEIRO ATO
CENA I
CENA II
CENA III
CENA IV
CENA V
CENA VI
CENA VII
CENA VIII
CENA IX
CENA X
CENA XI
SEGUNDO ATO
CENA I
CENA II
CENA III
CENA IV
CENA V
CENA VI
CENA VII
CENA VIII
CENA IX
CENA IX
TERCEIRO ATO
CENA I
CENA II
CENA III
CENA IV
CENA V
CENA VI
CENA VII
CENA VIII
CENA IX
CENA X

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