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Ana Paula
Granzotto de Oliveira &
Clary Milnitsky-Sapiro
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
Artigo
Entre os anos 30 e final dos anos 70, o Brasil de atenção. “Palavra de ordem na época,
constrói um sistema de políticas sociais no qual Os termos “abrigagem” e
sobretudo nos primeiros anos da década de “abrigamento” utilizados ao
o investimento social do Estado é de grande 80, refletia a necessidade de revelar a [...] longo do texto são
empregados pelos
importância, porém, apesar do esforço, o verdadeira situação em que se encontravam profissionais que trabalham
desempenho das políticas sociais fica aquém na área da infância e
as crianças provenientes das camadas pobres juventude, especialmente
das necessidades da população. É só a partir e miseráveis da população” (Rizzini, 1996, com equipamentos da rede
de proteção – dentre eles –
de meados dos anos 70 que o problema p.70). os abrigos. Estes termos, na
popularmente conhecido como menor grande maioria das vezes,
buscam trazer a idéia de
abandonado (termo de conotação pejorativa) O objetivo deste artigo é refletir acerca das processo, de dinamicidade
e de uma nova metodologia
passa a ser assunto presente e foco crescente políticas públicas para a área de abrigagem, de trabalho.
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(Re)Pensando o Crime como uma Relação de Antagonismo entre seus Autores e a Sociedade
ficam “no papel”, pois não há como colocá- infância e adolescência, um instrumento
los em prática, uma vez que as políticas norteador de novos paradigmas no
públicas também vivem um momento de atendimento e atenção a crianças e
reformulação, intensificado com a agenda do adolescentes em estado de abandono social
governo Fernando Henrique Cardoso, a partir ou prestes a ingressarem nessa situação.
de 1993.
Fonseca (2004) adverte que a legislação que
No período que vai de 1995 a 2002, segundo trata do bem-estar da criança e do adolescente
Sposito (2003), as iniciativas federais na área “envolve muito mais do que valores
social foram demasiadamente pequenas, se humanitários consensuais. Longe de ser a
comparadas a outros programas e projetos conseqüência espontânea de uma
governamentais. Já no período que vai de 1999 preocupação objetiva, envolve filosofias,
a 2002, são implementados 18 novos economias e negociações políticas que não
programas, número fecundo quando devem ser subestimadas” (p.111). A autora
comparado ao período anterior. O que se chama a atenção para o viés que pode existir
constata, nesse último período, é um aumento em qualquer documento, uma vez que este
significativo referente à temática dos é, inevitavelmente, fadado a refletir os valores
adolescentes e jovens no âmbito do governo de sua época.
federal.
Desde sua publicação, no início da década de
No entanto, o que se percebe do período é 90, o ECA enfatiza a reflexão fundada no
que o que foi herdado desse governo se paradigma da atenção e proteção integral à
restringiu a uma série de “projetos isolados e criança e ao adolescente enquanto sujeito de
sem avaliação, configurando a inexistência de direitos. Refletir criticamente sobre esse novo
um desenho institucional mínimo que assegure paradigma e sobre esses direitos é um grande
algum tipo de unidade, que nos permita dizer desafio, especialmente no contexto mundial,
1Art. 92. As entidades
que caminhamos na direção da consolidação no qual muitos países, já na década de 80, que desenvolvam
programas de abrigo
de políticas e formas democráticas de estavam reeditando sua legislação sobre o deverão adotar os
gestão”(Sposito, 2003, p.15). bem-estar da criança e do adolescente. Faz- seguintes princípios: I –
preservação dos vínculos
se ainda relevante observar que o ECA surgiu familiares; II – integração
em família substituta,
Não é de surpreender que o ECA tenha surgido em um momento de “reabertura democrática, quando esgotados os
justamente nesse contexto de expansão da visando à promoção dos direitos sociais, recursos de manutenção
na família de origem; III
democracia social, pós-regime militar, e de econômicos e civis dos jovens” (Fonseca, – atendimento
personalizado e em
participação social, voltado para os direitos 2004, p.104), ou seja, ao invés de pequenos grupos; IV –
sociais, neste caso, direitos das crianças e dos simplesmente controlar os jovens, o ECA desenvolvimento de
atividades em regime de
adolescentes. pretende garantir seus direitos. co-educação; V – não-
desmembramento do grupo
de irmãos; VI – evitar,
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Depois de entender o contexto em que surgiu sempre que possível, a
transferência para outras
é uma Lei Federal (nº 8.069), promulgada em o ECA e sua diretriz geral, faz-se importante entidades de crianças e
adolescentes abrigados;
13 de julho de 1990, que se caracterizou destacar alguns pontos da política de VII – participação na vida
como expressão máxima do desejo da atendimento – uma dentre as diversas da comunidade local; VIII
- preparação gradativa
sociedade brasileira de garantir direitos a diretrizes descritas no livro II, parte especial, para o desligamento; IX –
participação de pessoas
crianças e adolescentes historicamente título I – especialmente o que trata de entidades da comunidade no
fragilizados, principalmente os provenientes de de atendimento (Capítulo II – Das Entidades processo educativo.
Parágrafo único. O
classes sociais menos favorecidas. O ECA de Atendimento). Os artigos 90 e 91 dirigente de entidade de
explicitam as disposições gerais sobre as abrigo é equiparado ao
constitui o marco legal de um processo prático- guardião, para todos os
1
reflexivo referente a políticas públicas para a entidades de atendimento, e o artigo 92 trata efeitos de direito.”
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Políticas Públicas para Adolescentes em Vulnerabilidade Social: Abrigo e Provisoriedade
diferentemente das experiências dos proteção e provisória [...]Um abrigo, pra mim,
adolescentes na instituição Recriar. é uma medida provisória aonde, no momento,
a criança tem que ser retirada e colocada, até
Adolescente Ana (instituição Renascer, 12 anos): pra ver a situação dela, porque que ela veio
para o abrigo? Na verdade, eu verifico.
Não, não foi transferida, é por causa que a
gente todas se mudaram.[…] Todas que Um dos argumentos utilizados para questionar
estavam lá vieram pra cá. Como era muita a transitoriedade diz respeito à importância da
gente, formou umas casinhas. Eram 25, nós...e continuidade do acolhimento oferecido pelas [...] Os nossos
a... o GB é... tá junto aqui também, o GB e instituições aos adolescentes abrigados. Alguns meninos não, é
algo, eles estão,
o GA. autores, como Winnicott (1999) e Santos
muitos deles, já
(2004), já haviam apontado o quanto um estão assim há
Adolescente Paulo (instituição Recriar, 15 anos): atendimento com características como muito, muito
tempo, muitos
estabilidade ambiental e continuidade dos
anos, eles já estão
Por causa dos cursos, que a T. ia me arrumar, cuidados oferecidos é importante para o viciados no
desenvolvimento emocional de crianças e abrigo, e isso é
um curso em uma escola técnica, daí ela me
ruim. Por ser uma
transferiu pra cá e aí ela falou que ia me adolescentes. Um ambiente capaz de
casa de
arrumar um curso e até hoje eu tô proporcionar segurança e confiança possibilita passagem, não
ao adolescente experienciar um tempo devia acontecer
esperando...[…] Nada, a mesma coisa, só é isso; claro que
singular e ressignificar, com o adulto cuidador,
um pouquinho mais diferente porque lá tinha ninguém é fada
cavalo, tinha onde trabalhar, movimentar o sua história de sofrimento e desesperança. Por madrinha, que
outro lado, o receio de que o abrigo se torne estala os dedos e
corpo, que aqui já não tem. diz: “melhorou, a
algo permanente e, em oposição a um passado
família melhorou;
recente, onde abrigados eram isolados da pode voltar pra
Uma outra constatação sobre a transitoriedade
comunidade indiscriminadamente, é justificado casa”; eu vejo um
é a falta de clareza sobre os objetivos do abrigo crime pros
pela transitoriedade na lei, uma vez que evitaria
por parte da família – comumente familiares meninos…
a possibilidade de que isso ocorresse
requisitam vagas para os filhos em abrigos da
novamente. Muitos adultos cuidadores
mesma forma como solicitam vagas para uma
expressam esse receio.
escola. Por outro lado, essa falta de clareza
também pode ser percebida no discurso dos
Adulto Mateus (instituição Recriar, monitor):
adultos. No fragmento abaixo, pode-se
observar que, quando o adulto fala sobre o
Pela lei, tá ok, porque é a mesma instituição,
abrigo e defende a provisoriedade da medida,
o mesmo diretor, é a mesma... Pode não ser
este se refere apenas às crianças.
a mesma casa, mas pela lei tá, digamos assim.
A... em Viamão, estavam separados os dois
Adulto Gilda (instituição Renascer, assistente (querendo se referir a dois irmãos), um numa
social): casa, e um na outra, mas era mais próximo,
claro. [...] Os nossos meninos não, é algo,
Eu acho que eles têm isso como um orfanato, eles estão, muitos deles, já estão assim há
um corretivo... como quem vem pra cá e tem muito, muito tempo, muitos anos, eles já
que ser corrigido...Tem muita mãe que acha estão viciados no abrigo, e isso é ruim. Por ser
que isso aqui é uma creche, tem tanta história uma casa de passagem, não devia acontecer
de assistentes sociais que não sabem o que é isso; claro que ninguém é fada madrinha, que
um abrigo. Já vi várias pessoas dizendo que estala os dedos e diz: “melhorou, a família
não sabem o que é um abrigo, né, na verdade, melhorou; pode voltar pra casa”; eu vejo um
no estatuto, o abrigo está como medida de crime pros meninos…
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Políticas Públicas para Adolescentes em Vulnerabilidade Social: Abrigo e Provisoriedade
Um ponto muito importante que pode ser A preocupação em não produzir uma
destacado da fala desse adulto é a questão dependência tanto do adolescente quanto de
de o abrigo ser visto como uma ‘casa de sua família com o abrigo e possibilitar a
passagem’ – dessa forma, constata-se um não manutenção do vínculo familiar é outra
entendimento de que a medida de abrigo é justificativa para a transitoriedade. Por exemplo,
provisória, e não a modalidade (Carreirão, segundo outro técnico, muitas famílias
2004), ou seja, alguns abrigos são destinados “esquecem” o adolescente no abrigo, muitas
a acolher crianças e adolescentes com ínfimas vezes, não indo visitá-lo, ou não buscando
possibilidades de retorno a curto prazo para a
comunicação. Nesses casos, em
família. Essas instituições deveriam evitar
conseqüência, o abrigo tem dificuldades para
transferências precipitadas de uma instituição
trabalhar o ambiente familiar com o objetivo
para outra.
de prepará-lo para receber novamente o
adolescente. Atualmente tem-se observado
Um outro ponto que merece destaque é o
uma mudança de abordagem com relação às
quanto a abrigagem de adolescentes é algo
complexo. Talvez se possa pensar que o visitas às famílias. Antes, as visitas eram
tempo de demora possa ser proporcional ao condicionadas ao bom comportamento do
tempo de saída do abrigo, ou seja, o retorno adolescente durante a semana; agora, estas
para casa. Contudo, a importância de sentir- acontecem com mais freqüência, e procura-
se pertencente a um lugar parece ser se entender, dentro dos valores do
reconhecida por esse adulto cuidador, apesar adolescente, as possíveis causas para um “mau
de a idéia de se “ter uma referência” – se comportamento”, ou seja, a relação entre
confundir com a idéia do abrigo – a de “levar “bom comportamento” e visita à família nos
o adolescente para o resto da vida”. finais de semana está sendo repensada.
Não, eu usei. Eu usei, não é que tem uma Pra mim, o abrigo deveria ser provisório. Só
Casa de Passagem, eu acho que é uma casa que não acontece isso. A criança vem pra cá...
Pra mim, o abrigo
provisória, que bom se os meninos não o que é muito perigoso. Tem que continuar o
deveria ser
provisório. Só que ficassem muito tempo aqui, que bom que a vínculo familiar. Porque muitas vezes a família
não acontece isso. situação deles em casa, ou que a situação
não procura ... tá lá, tá bem...aí tem que tá
A criança vem pra deles... melhorasse e eles pudessem retornar
cá... o que é muito ligando, a gente tem que tá pedindo; tem
perigoso. Tem que
ao ambiente familiar, mas eu acho que... a
situações assim ó; de que... tem crianças que
continuar o vínculo gente não pode dizer pra eles que eles estão
ficam ... a gente tem exemplo assim dentro
familiar. Porque numa casa de passagem, não pode, aqui é a
muitas vezes a do abrigo de situações de crianças assim, de
casa deles no momento. Temos que trabalhar
família não processos... não, tá o Judiciário também, tem
procura ... tá lá, tá pra que esse momento, mas tem que se
todo um... demora, às vezes demora, e tudo,
bem... trabalhar pra que seja o mais curto possível.
Por exemplo, o Júnior, ele tá apavorado né? o próprio conselho traz, eu acho que... a
porque vai ser desligado, porque o abrigo, pra demanda tão grande que ele acaba
ele, já é uma referência muito grande. É bom, esquecendo, conselho traz...mas essa é
claro, mas o abrigo não vai poder... levar o situação mais do Judiciário, né? Eu trabalhei já
Júnior pro resto da vida; ele tem que com isso e vi questões de largar no abrigo e
caminhar... um pouco culpa nossa de ele ser não visitar, na verdade eu acho que o conselho
acomodado, dado uma vida boa, pras crianças, tem que participar também, seguir, né? Eu
confortável. Não que seja isso, mas eu acho acho... tá faltando, assim... a gente...
que os meninos do abrigo permanecem muito acompanha a família, mas eu acho que.. tem
tempo no abrigo. muita coisa falha, muita coisa falha, assim... tem
PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2007, 27 (4), 622-635
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Ana Paula Granzotto de Oliveira & Clary Milnitsky-Sapiro PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2007, 27 (4), 622-635
que trabalhar com a geração de renda, eu mais complicado, né? Então eu já não invisto
acho... tudo é uma questão de desemprego, tanto em família para o adolescente como se
tá? quando a criança vem pra cá. investe pra criança, né…[…] Porque se o
adolescente ingressa, ele ingressa por uma
A complexidade em avaliar o comportamento situação extrema, né, … porque senão ele
de um adolescente como “bom” ou “mau” sempre vai buscar alguém da família... um tio,
extravasa a manutenção dos vínculos familiares uma tia, madrinha, avô, avó, não é? Então, se
para interferir diretamente na transitoriedade: ele ingressa, é por uma situação extrema. Aí
adolescentes que mostram “mau já fica muito difícil o retorno.
comportamento” costumam ser punidos com
uma transferência (para outra unidade ou Adicionalmente, a ausência de políticas
instituição). públicas adequadas também interfere em
questões delicadas, como a separação de
Adolescente Henrique (instituição Recriar, 15 grupos de irmãos e o desligamento de
anos): adolescentes maiores de dezoito anos. Em
relação à separação do grupo de irmãos, a
Já, mas não me lembro, não me lembro assim crítica, muitas vezes, recai no próprio órgão
como é que era.[…] Em Porto Alegre. […] Por responsável por fazer cumprir a garantia dos
causa...., por causa de uma briga, eu briguei direitos das crianças e adolescentes: o Juizado
lá e eles me mandaram pro DECA, e o DECA da Infância e Juventude.
me mandou vim pra cá, pro Recriar.
Adulto Luiz, monitor da instituição Renascer:
Aqui, antes de mais nada, é importante
salientar que as autoras não são defensoras O próprio Juizado não cumpre. Uma das
do abrigamento prolongado e injustificado, nossas meninas foi retirada daqui pra ir pra
mas acreditam na necessidade de que cada uma outra instituição, sendo que as duas irmãs
dela estão aqui. A K., isso foi uma decisão
caso seja individualmente analisado,
dum juiz, porque, na cabeça dele, ela era a
especialmente quando de trata de
que teria mais possibilidade de ser adotada,
adolescentes. Como já relatado, o retorno de
ou seja, a que venderia mais rápido... a
um adolescente abrigado para a família de
mercadoria mais bonitinha ... então leva pra
origem é normalmente mais complexo do que
outro lugar. É o juiz da Vara da Infância e da
o retorno de uma criança. Acrescenta-se ainda
Juventude, não é qualquer juiz. Não é um
que a internação em um abrigo na
juiz alheio ao conhecimento do Estatuto, ao
adolescência ou pré-adolescência comumente
conhecimento da rotina do trabalho, ao
envolve histórias de situação de rua, uso de trabalho da discussão da filosofia, não... “é
substâncias psicoativas, prostituição e abuso. um juiz da área”, então…
Essa história de uma permanência insustentável
do adolescente no seu lar de referência como Porém, apesar das inúmeras discussões sobre
possibilidade ainda mais remota de retorno é a lei que impõe a preservação dos vínculos
claramente expressa por um dos técnicos: familiares e o não desmembramento de grupos
de irmãos e de autores que mostram a
Adulto Nádia, assistente social da instituição importância da manutenção desse vínculo,
Renascer: como Levisky (2005), Fonseca (2004) e
... É que depende também muito dos motivos Winnicott (1999), especialmente para aqueles
de ingresso, não é, mas o adolescente assim, que já perderam tanto ao longo desse doloroso
eu acho que o retorno dele pra família já é processo, alguns adultos cuidadores
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Políticas Públicas para Adolescentes em Vulnerabilidade Social: Abrigo e Provisoriedade
das instituições até a política macro e inclui “voluntariedade” é, ainda, segundo relato,
todo um contexto marcado por injustiças, praticada por todos os adultos envolvidos –
práticas arcaicas e desigualdades. Dessa forma, dos monitores aos técnicos e diretores.
talvez não seja coerente responsabilizar apenas
uma instância pelo sucesso ou fracasso do Adulto Luiz, monitor da instituição Renascer:
atendimento. Por outro lado, a realidade
sugere que essa possibilidade pode ser um Em tudo, na própria repreensão que tu faz
caminho para que se consiga, pelo menos, pras crianças e pros adolescentes que tu
diminuir as angústias dos trabalhadores da área. atende, não é, o que tu passa pra ele é muito
voluntarioso, é muito do teu e nem sempre o
Adulto Mateus, monitor da instituição Recriar: que tu acredita é o melhor, é adequado.
Então como o juiz, como as pessoas não Apesar dos avanços na lei, a política de
conseguem resolver esse problema, como que atendimento ainda é muito frágil, e essa
não dão um ultimato para um cara desses fragilidade é sentida pelas crianças e
(referindo-se ao padrasto de um adolescente adolescentes abrigados. Um aspecto citado por
abrigado) olha... como uma mãe não consegue adultos de ambas as instituições é a falta de
se impor, pra ter o seu filho. Então, essas coisas capacitação do profissional que atua
que não são nossas, é um sistema todo, é um diretamente com o abrigado e a dos
conjunto todo que atrapalha os processos das profissionais que estão no comando – que,
crianças. muitas vezes, não possuem a experiência
devida para trabalhar a questão macro da
Além dos tópicos explorados até aqui, vale situação da abrigagem junto aos diversos órgãos
ressaltar que, no que se refere à política de públicos.
atendimento à criança e ao adolescente, essa
é uma área ainda, “apesar das boas intenções”
Disso se pode reafirmar que a falta de políticas
–, segundo o diretor da instituição Recriar,
adequadas e a fragilidade do modelo vigente
restrita, pois não há intercâmbio no trabalho,
exercem uma significativa influência no
e o público e o privado não se articulam para
atendimento oferecido às crianças e aos
produzir conhecimento. Em conseqüência, a
adolescentes. A análise aponta uma
falta de experiência das pessoas envolvidas
constatação acerca do desafio de definir
com a gestão das políticas gera atrasos e
políticas públicas na área da abrigagem,
conseqüências.
especialmente no que se refere à produção
de uma prática distinta das vigentes, e a
Um ponto adicional é destacado por um
transformação de uma cultura ainda fundada
monitor da instituição Renascer e refere-se a
em um modelo institucional repleto de
uma profunda fragilidade, dada a falta de um
estigmas, como o da situação irregular. Além
projeto pedagógico que delimite como o
disso, faz-se urgente adotar uma postura de
trabalho deve ocorrer e o quanto esse trabalho
maior clareza referente às definições de papéis,
acontece de forma “voluntariosa”. Essa forma
funções e valores das instituições, pois só
“voluntariosa”, utilizada para expressar a
então a sociedade, através das instituições,
maneira como os adolescentes são acolhidos,
poderá cumprir uma função organizadora
é um aspecto que parece ir além do
sentimento do adulto para interferir (Levisky, 2005). Do contrário, continuaremos
diretamente na prática no acolhimento a observar a triste situação de crianças e
oferecido e, posteriormente, no momento de adolescentes tornando-se agentes e vítimas
desabrigar o adolescente. Essa desse processo.
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Políticas Públicas para Adolescentes em Vulnerabilidade Social: Abrigo e Provisoriedade
Santos, (2004)). Constata-se, dessa forma, o constatou-se também, nesta pesquisa, que
quanto a transitoriedade interfere na prática os profissionais encarregados do processo de
cotidiana e no estabelecimento de um desligamento freqüentemente experienciam
profícuo vínculo entre adultos cuidadores e dúvidas e angústias em relação a como as
adolescentes e ainda pode ser utilizada como decisões institucionais poderão afetar as vidas
explicação para a falta de compromisso da dos “jovens desligados”.
permanência do adolescente no abrigo e com
o processo e a experiência com o cuidado. A falta de perspectiva para o adolescente que
completa os dezoito anos é apontada como
Acredita-se ser imprescindível refletir acerca um dos principais aspectos ansiogênicos para
de outras possibilidades de acolhimento para os adultos cuidadores. Porém, o que parece
crianças e adolescentes em situação de não ser levado em consideração, quando se
abandono distintas do modo de abrigo que reporta ao futuro, são as experiências do
se conhece até o momento. Uma certa passado e a sempre presente constatação de
prudência com a efetivação da transitoriedade um contexto social carregado de depreciação,
também deve ser contemplada, pois verifica- injustiças e falta de oportunidades para os
se que, em muitos casos, essa medida é jovens; especialmente para os jovens das
indiscriminadamente aplicada, simplesmente classes menos favorecidas.
para números promissores aparecerem nas
estatísticas sobre o abrigamento. Um outro Uma das sugestões oferecidas por alguns
modelo pode nascer quando os receios das técnicos para esse dilema é uma forma de
institucionalizações massificadas abrirem continuação do atendimento através de
espaço para levar em consideração que, parcerias com outras secretarias – como o
algumas vezes, o abrigo é a última opção Demhab, por exemplo – nas quais se poderia
para inúmeras crianças e adolescentes que tentar garantir a continuação do trabalho.
não estão em trânsito e que têm o direito
de ser bem acolhidos. E, se isso se der junto É imperativo que se adote uma postura de
a um familiar, tanto melhor. maior clareza frente às definições de papéis,
funções e valores de instituições de abrigo,
Normalmente, a medida de abrigo tem o seu pois só então a sociedade, através dessas
fim no momento do desligamento de um instituições, poderá cumprir uma função
adolescente. As normas institucionais realmente organizadora (LEVISKY, 2005). Do
precisam ser revisadas por seus atores na contrário, continuaremos a observar a triste
medida em que priorizam “o desligamento” situação de crianças e adolescentes como
como elemento principal da agentes e vítimas desse processo. Para
institucionalização. Mesmo quando – e isso alcançar essa meta básica, um ponto é
é o que infelizmente acontece, na grande fundamental – existência de uma
maioria das vezes – os adolescentes não “metodologia que respeite a importância dos
possuem um lugar para ir e deverão deixar vínculos afetivos e não apenas faça uso de
para trás, mais uma vez, uma vida, uma um discurso de aparência e conveniências,
história - que muitas vezes já estava sendo mas que conduza a um encontro sincero,
(a duras penas) ressignificada. Por outro lado, realista e de esperança...”(Levisky, 2005).
Clary Milnitsky-Sapiro
Instituto de Psicologia/UFRGS, PHD
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