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C APÍTUL O 1

Do sofrimento como questão sociológica

Todas as sociedades humanas elaboraram alguma explicação para o sofrimento,

mesmo que em seu cotidiano algumas procurem ocultá-lo e, na medida do possível, esquecê-

lo. Porém o sofrimento como questão de pesquisa sociológica tem sido pouco abordado,

embora existam estudos substanciais sobre sua causa principal – a violência. Abordar as

interações humanas marcadas por conflitos através do estudo da violência, suas causas e

conseqüências é uma das possibilidades, contudo não resolve a questão do sofrimento, que

permanece associada, principalmente na sociologia clássica, à religiosidade, baseando-se no

pressuposto da busca de um sentido para este sofrimento humano.

Depreende-se daí que o sofrimento como fato social se torna eclipsado por estas duas

questões tradicionais na sociologia, ou seja, o estudo da religião e o da violência. O primeiro

se detém principalmente na forma dos rituais e práticas religiosas. O segundo dá maior ênfase

aos algozes e suas práticas violentas. Os estudos sobre o sofrimento social têm seu foco

principal na vítima, no desafortunado, naquele que sofre, nas emoções envolvidas, nas forças

sociais que influenciam ou são suas causadoras, e como se resolvem social e historicamente,

como ocorrem as interações desses sofredores (com os perpetradores, com outras vítimas e

com o mundo) e em como, através destas interações, pode acontecer a reconstrução do seu
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cotidiano.

Um bom argumento em favor do estudo de uma emoção singular, como por exemplo a

vergonha e o embaraço, estudados por Scheff (2003b), e o sofrimento, como no caso desta

pesquisa, é que emoções diferentes têm várias similaridades fundamentais, mas são bastante

diferentes em suas origens, aparência e trajetórias. Por isso, afirmações sobre as emoções ‘em

abstrato’, como acontece nos estudos clássicos da sociologia, têm pouco significado. O que

Durkheim, Mead e Parsons, para citar apenas alguns, disseram sobre as emoções parece

plausível quando aplicado a emoções particulares, como a raiva e o medo, mas não à maioria

das outras (SCHEFF, 2003b).

A sociologia, de um modo geral, tem dado pouca atenção ao estudo sistematizado da

emoção. Porém, como observa Scheff (2003b), alguns dos autores clássicos investigaram,

cada um deles, uma emoção específica e concreta, embora não a houvessem nomeado

explicitamente. Deve-se destacar que o interesse de Scheff é analisar o papel desempenhado

pela vergonha e pelo embaraço nas interações sociais que se desenvolvem no cotidiano. Nessa

perspectiva, Scheff faz uma leitura de autores que ele considera pioneiros no estudo dessa

temática, dentre os quais se destacam Norbert Elias, Richard Sennett e Goffman, e outros.

Considerando isto, discutir-se-á neste capítulo, em primeiro lugar, a questão das

emoções em alguns dos principais autores da teoria sociológica clássica para, em seguida,

tratar-se do conceito de sofrimento social e das diferentes e amplas possibilidades de estudo

que esta temática proporciona.

1.1 Algumas abordagens da sociologia sobre a questão do sofrimento

No desenrolar de suas vidas cotidianas, as pessoas criam laços afetivos como os de

lealdade, domínio, fraternidade etc., sem os quais a sociedade não poderia funcionar. Estes

laços, porém, são instáveis e tal condição é apreendida, segundo Sennett (2001, p. 15), na
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própria etimologia da palavra emoção: movere. Logo, as emoções não são meras sensações

experimentadas pelos seres humanos, são também passíveis de pensamento e reflexão e, desse

modo, permitem a ação dos indivíduos no mundo.

As emoções, como são entendidas hoje, têm como ingredientes o julgamento e o

raciocínio e são um ato de interpretação, ou seja, elas também fazem parte do nosso esforço

de dar sentido ao mundo e às instituições das quais fazemos parte.

A revisitação da sociologia sob a perspectiva da emoção, incluindo-se entre elas o

sofrimento, será iniciada através de um de seus fundadores. Durkheim (2000, p. xvi), ao

estudar o fenômeno religioso em As formas elementares da vida religiosa, argumenta que as

práticas religiosas concretas criam emoções no indivíduo. Portanto, para ele, as emoções se

originam nos indivíduos através de um estímulo externo.

O argumento de Durkheim é que as emoções fundamentais não são biológicas e não se

originam no domínio individual e privado, são criadas coletivamente pelo grupo durante a

encenação das práticas sociais. Estes sentimentos socialmente criados são a base da fé. A

existência de idéias e dos sentimentos compartilhados depende da criação da emoção na

encenação coletiva das práticas, não em sistemas de crenças ou uma mente ideal e mística do

grupo.

Rawls compara as noções de “sentimento” em Durkheim e de “paixão” em Hume para

deixar claro que ambos falavam sobre as emoções como uma forma de conhecimento,

possuidoras de validade empírica e, por extensão, passíveis de serem estudadas pela

sociologia.

Durkheim parte do princípio de que certas idéias gerais – categorias do entendimento –

entram na mente individual como emoções, ou seja, que as emoções podem ser percebidas

direta e perfeitamente pela mente, no desenrolar dos ritos e práticas sociais realizadas
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coletivamente. Sendo assim, deixa claro que no estudo dos fenômenos religiosos existe algo

concreto, empírico, o que permite estudá-los como um fato social (DURKHEIM, 1996, p. 3).

O texto de as Formas Elementares da Vida Religiosa é, na leitura de Rawls, uma

descrição empírica elaborada de como as práticas religiosas podem produzir as emoções

necessárias para trazer à tona as idéias fundamentais de classificação: tempo, espaço, força,

totalidade e causalidade.

Durkheim traz uma contribuição de Hume quanto ao fato de que as paixões

motivariam a ação humana, principalmente o orgulho e a humildade. A resposta emocional

gerada pela mente individual em relação a eventos sociais é uma contingência que mal pode

ser prevista e que pode variar caso a caso. Para Durkheim, algumas práticas são criadas com o

objetivo de produzir as mesmas emoções nas mentes de todos que delas participam

simultaneamente. São os detalhes concretos das práticas encenadas que criam os sentimentos

e emoções (RAWLS, s/d). Estas práticas são fundantes da sociedade porque, sendo revestidas

por um caráter sagrado, criam forças religiosas que se espalham e irradiam com facilidade

entre as pessoas e as coisas que com elas entram em contato e são percebidas como exteriores

aos indivíduos. No entanto, não estão associadas nem se prendem ao seu representante –

pessoa ou objeto. Elas lhe são acrescentadas. Afirma que “elas são apenas forças coletivas

hipostasiadas, isto é, forças morais; são feitas das idéias e dos sentimentos que o espetáculo da

sociedade desperta em nós, não das sensações que nos vêm do mundo físico” ( DURKHEIM,

1996:344).

Embora queira estabelecer uma base empírica para os sentimentos gerados

coletivamente, não centra sua atenção numa somatização desses sentimentos, mas naquilo que

se cria na mente do indivíduo quando em reunião e que é percebido como noções de força

moral, totalidade e causalidade. No desenvolvimento das práticas religiosas, os indivíduos

experimentam sentimentos de bem-estar, respeito e dependência, o que compreende a força


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moral; a força, juntamente com os sentimentos de criação, força moral e unidade gerariam a

causalidade; e o sentimento do sagrado com a força moral criariam as noções de tempo e

espaço.

As forças sociais podem ser sentidas, pois são forças geradas pelo grupo na encenação

de suas práticas reais e concretas e, por sua vez, criam emoções que formam o indivíduo (o

aspecto individual do ser social), que não existiria de outra maneira. Durkheim destaca que as

emoções não são sentidas com os cinco sentidos separadamente, mas são percebidas como um

todo.

Ter emoções depende da encenação cooperativa de práticas sociais que cria forças

sociais. A sociedade, portanto, é fonte de emoções, pois o núcleo da vida emocional e

intelectual dos indivíduos são estas forças criadas social e coletivamente. Talvez por serem

tão fundamentais e serem uma base sobre a qual se funda a sociedade, é que Mauss (2003a)

descreveu uma outra categoria do entendimento, não citada por Durkheim – a noção de pessoa

e de eu –, como categoria inata.

Para Durkheim, o objetivo de certas práticas religiosas, especificamente, é o de criar

emoções que constituem as categorias de entendimento fundamentais. Argumenta em favor da

relação entre as práticas concretas e os sentimentos particulares que são gerados

necessariamente nas mentes de todos os indivíduos que delas participam simultaneamente.

Essa idéia é confirmada por Mauss quando afirma que todos os tipos de expressões orais dos

sentimentos são essencialmente fenômenos sociais e não exclusivamente psicológicos ou

fisiológicos. E mais ainda, a expressão desses sentimentos têm um formato que é socialmente

aceito (MAUSS, 1979, p. 148).

Para Mauss:

Todas as expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória


dos sentimentos do indivíduo e do grupo, são mais que meras manifestações, são
sinais de expressões entendidas, quer dizer, são linguagem. Os gritos são como
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frases e palavras. É preciso emiti-los, mas é preciso só porque todo o grupo os


entende. É mais que uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de
manifestá-los aos outros, pois assim é preciso fazer. Manifesta-se a si, exprimindo
aos outros, por conta dos outros. É essencialmente uma ação simbólica [grifo meu]
(MAUSS, 1979, p. 153).
O culto religioso, então, teria como objetivo pôr os indivíduos em contato com as

energias superiores e fazê-las parte de suas vidas interiores. A constante repetição do culto

renovaria os efeitos dessas forças morais, suscitando “impressões de alegria, de paz interior,

de serenidade, de entusiasmo”. O culto não sendo mais que um sistema simbólico, signos

através dos quais a fé seria exposta e o meio de sua renovação. São esses sentimentos que

Durkheim (1996, p. 460) se recusa a ver como ilusórios, declarando que seu valor não seria

menor que o das experiências científicas.

Os participantes dessas práticas sentem dentro de si os efeitos do ritual, que são efeitos

sociais reais, empíricos e disponíveis para estudo. São “sen tidos” internamente e

correspondem a forças psíquicas que tomam relevo sobre aquelas que utilizamos nas tarefas

cotidianas (DURKHEIM, 1996, p. 466).

O ritual produz um sentimento de poder e confiança. As pessoas se tornam mais fortes

enquanto grupo. “Duran te a assembléia eles criam, através da encenação das práticas, forças

sociais que sentem como forças morais externas” (DURKHEIM, 1996, p. 461). As relações

entre as práticas e as emoções são específicas, cada rito produz uma emoção diferente. Este

sentimento de criação e unidade é, de acordo com Durkheim, a categoria da causalidade.

Categoria esta que consiste neste sentimento de criação da unidade do grupo e de renovação

periódica desse sentimento de ser grupo.

Portanto, não são as idéias que produzem a eficácia da religião, pois estas são um

elemento dos indivíduos que desencadeiam as forças emotivas neles presentes, mas não as

criam nem as potencializam. A religião, por sua vez não se destina a fazê-los pensar, mas a

pôr em jogo potências espirituais, agindo sobre a vida moral e visando a ação (DURKHEIM,

1996, p. 462-63).
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Essas práticas estimulam disposições mentais, fazem com que se tome consciência dos

sentimentos coletivos, através de sua fixação em objetos exteriores. Tais emoções formam a

base necessária da comunicação intersubjetiva, pois são sentimentos objetivados. A sociedade

não atua individualmente através constrangimentos naturais externos, mas via sentimentos

coletivos produzidos durante a encenação coletiva das práticas, de forma idêntica às

categorias essenciais do pensamento em cada mente individual.

Tudo o que parecia ser individual, justamente porque presente em todo indivíduo,

sendo parte integrante de sua mente, Durkheim argumentou ter uma origem social. “Todos os

indivíduos parecem ter as mesmas emoções e categorias de pensamento não porque são parte

do organismo individual, como argumentou Hume, mas sim porque todos os indivíduos

participam na sociedade e é a participação social que cria estas emoções e categorias”

(RAWLS, s/d, p. 19). Estas categorias são geralmente as mesmas em todo lugar, com poucas

variações, porque existe um conjunto básico de emoções e sentimentos, categorias de

entendimento, criados pela participação nas práticas sociais, e sem os quais a sociedade se

inviabilizaria.

A força moral da sociedade é uma parte essencial de cada pessoa e organiza processos

de pensamento, tornando-se uma parte essencial do ser, pois é sentida concreta e presente

dentro de cada um. É esse sentimento que atua dentro das pessoas que dá a elas a sensação de

que se comunicam com um ser sagrado. O homem transfere poderes excepcionais às coisas

com as quais entra em contato porque não se reconhece, não vê que foi transformado pelas

forças sociais presentes e produzidas por suas práticas, transformando, assim, o meio que o

cerca (DURKHEIM,1996, p. 466).

Se essas forças morais são inerentemente sociais, o respeito por elas é o respeito pela

sociedade, e respeito é uma emoção que desempenha um papel importante na sustentação

dessas mesmas forças morais na sociedade e que é experimentada quando se sente esta
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pressão espiritual interior e plena. O respeito não é uma emoção que as pessoas sentiriam, a

menos que participassem de práticas que produzissem dentro delas um sentimento de força

moral.

Durkheim pensava que fazer das categorias de pensamento uma conseqüência da vida

emocional não as tornaria menos válidas. São empiricamente válidas mesmo sendo emoções,

pois manifestam o estado real das coisas. E ainda segundo ele, é um erro analisar os ritos

religiosos em termos de seus alegados objetivos materiais. O verdadeiro significado dos ritos

religiosos é a ação invisível que eles exercem sobre a mente, a maneira que eles afetam nosso

status mental, ou seja, sempre produzir sentimentos, gerar as idéias essenciais e

periodicamente recriar o ser moral que possibilita a existência da sociedade. As crenças são

apenas um fenômeno secundário, pois antes que a construção da crença seja possível, é

necessário existir a experiência dos sentimentos socialmente criados (RAWLS, s/d, p. 22-24).

A sociedade da qual fala Durkheim não é essa sociedade concreta em que vivemos, o

mundo profano. Pelo contrário, é um mundo que o homem sobrepõe a este e ao qual ele

atribui uma superioridade. Embora presente apenas na mente, produz efeitos concretos sobre

o mundo real, já que é na vida coletiva que o indivíduo aprende a idealizar. Na recorrência de

suas práticas, conseqüentemente, na criação desse mundo ideal, a sociedade se cria e recria

concretamente. Evidencia que essa sociedade ideal não pode ser encarada separadamente da

sociedade concreta, “pois uma sociedade não é constituída simplesmente pela massa dos

indivíduos que a compõem, pelo solo que ocupam, pelas coisas que utilizam, pelos

movimentos que realizam, mas, antes de tudo, pela idéia que faz de si mesma” (DURKHEIM,

1996, p. 467).

Rawls [s/d] conclui que Durkheim, ao situar a criação das emoções em práticas sociais

concretas, e não na mente individual ou no sistema simbólico de crenças, traz implicações

importantes para a validade intersubjetiva das emoções e para a maneira que elas podem ser
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estudadas sociologicamente. Se está certo que certos sentimentos básicos precisam ser

socialmente produzidos para que as sociedades existam, deve haver práticas que tenham como

objetivo justamente a produção de emoções necessárias para a solidariedade social e a

inteligibilidade.

O conhecimento empírico é um estado individual e se explica pela natureza psíquica

de cada indivíduo. Entretanto as categorias são representações coletivas e traduzem estados da

coletividade. Dependem de como esta é organizada, de sua morfologia, de suas instituições.

São o produto de uma cooperação através do espaço e do tempo, e de uma combinação de

idéias e sentimentos, do acúmulo da experiência e do saber de gerações (DURKHEIM, 2000, p.

xxiii).

É quando o indivíduo tenta se libertar dessas noções, que sente que não é totalmente

livre, que algo lhe resiste dentro e fora de si. Externamente há uma opinião que julga, mas

como a sociedade é nele representada, ela se opõe fazendo-lhe resistência interiormente. É a

autoridade da sociedade que se alia a determinadas formas de pensar que são como condições

indispensáveis à ação comum (DURKHEIM, 2000, p. xxv).

A sociedade exerce em nós essa força e, ao mesmo tempo, cria uma dependência. Ela

persegue seus próprios fins, mesmo que possa atingi-los por intermédio de cada um de seus

membros. Estes, além disso, esquecem seus interesses e, para servi-la, submete-os a todo tipo

de aborrecimentos, privações e sacrifícios, sem os quais a vida social seria impossível. A todo

instante são obrigados a sujeitar-se a regras de conduta e de pensamento que lhe são

exteriores, sendo, inclusive, às vezes contrárias a suas inclinações (DURKHEIM, 2000, p. 211).

É a sociedade que fala pela boca daqueles que as afirmam em nossa presença; é ela
que ouvimos ao ouvi-los, e a voz de todos tem um acento que a de um só não
poderia ter. A violência mesma com que a sociedade reage, por meio da censura ou
da repressão material, contra as tentativas de dissidência, manifestando com
estrépito o ardor da convicção comum, contribui para reforçar seu domínio. Em
uma palavra, quando uma coisa é objeto de um estado de opinião, a repressão que
cada indivíduo faz dela extrai de suas origens, das condições nas quais ela se
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formou, um poder de ação que é sentido mesmo por aqueles que não se submetem a
ela (DURKHEIM, 2000, p. 213).
A pressão social se realiza através da mente e, por isso, dá ao homem a idéia de que há

uma ou várias forças externas a ele e das quais depende. Alerta, porém, que a ação social não

exige dos indivíduos apenas sacrifícios, privações e esforços, já que esta força coletiva não

lhes é inteiramente exterior. Esta força social se organiza nos indivíduos, tornando-se parte

integrante do ser (DURKHEIM, 2000, p. 214).

A coerção da sociedade e, conseqüentemente, o sofrimento que ela por vezes traz –

categoria não pensada nem sistematizada em sua obra –, seria fruto da própria existência da

vida em sociedade e o preço pago por cada indivíduo por sua pertença. É através do

sofrimento que a sociedade estabeleceria sua ascendência moral sobre os indivíduos. Ela lhes

impõe formas de agir, que são elaboradas em comum, se inscreve em seus corpos e suas

mentes, e o grau em que são pensadas por cada indivíduo particular reflete nos outros, e vice-

versa.

Diferentemente de Durkheim, que coloca a razão do sofrimento na força do sagrado,

Simmel vê nas interações humanas as causas do sofrimento. Na verdade, ele o considera

mesmo necessário para a existência da sociedade. A existência de discordâncias, conflitos e

desacordos e, portanto, as emoções neles envolvidas fazem parte de qualquer interação nas

mais variadas esferas da vida humana.

Para Simmel, o conflito causa e também modifica interesses de grupo, unificações e

organizações, uma vez que afeta ambos os oponentes, tanto em sua relação um com o outro,

mas também em relação ao próprio indivíduo, pois cada um deve concentrar suas energias em

um objetivo, para que sejam usadas a qualquer momento. Podemos concluir daí que os

conflitos e os conseqüentes sofrimentos que sua resolução possa causar ao ser humano são

constantes que fazem parte do próprio fazer-se da sociedade (BARRETO, 2001).

E, de fato, fatores dissociantes – ódio, inveja, necessidade, desejo – são causas de


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culpa e sofrimento: surgem por causa de interesses discrepantes entre os indivíduos no

desenvolvimento da vida em sociedade. O conflito é assim criado para resolver divergências;

é uma maneira de realizar algum tipo de unidade, mesmo através da aniquilação de uma das

partes conflitantes.

O ponto de vista desenvolvido por Simmel a respeito do conflito, embora

reconhecendo como fonte geradora de tensões e infelicidade para os indivíduos, não deve ser

visto apenas como um fator dissociante de grupo, e sim como elemento possuidor de uma

função unificadora, algo que faz parte da vida de todos. Os indivíduos, no entanto, não podem

viver em constante conflito. Deve haver uma relativa paz social e o conflito existir apenas de

forma ocasional na relação entre os indivíduos e grupos, mesmo que não seja raro (BARRETO,

2001).

É nesse sentido que Moore Jr. (1987, p. 25) reconhece a existência de um contrato

social, muitas vezes implícito, através do qual “as pessoas que vivem em qualquer sociedade

devem resolver os problemas da autoridade, da divisão do trabalho e da distribuição de bens e

serviços”. Com esse fim é que são elaborados princípios de desigualdade social e criados

mecanismos através dos quais as pessoas ensinam-se mutuamente, com níveis variáveis de

sucesso, a aceitar e obedecer estes mesmos princípios.

1.2 A voz do sofrimento. Suas formas culturais de expressão.

Seguindo o raciocínio de Durkheim de como os sentimentos podem ser estudados

empiricamente, o sofrimento e a dor – emoção e ao mesmo tempo sensação – assim como

outras emoções que dele fazem parte como a vergonha, o embaraço e o pudor (ELIAS, 1994a);

a humilhação (LINDNER, 1999 e 2000), a injustiça (MOORE JR., 1987), a solidão (SIMMEL,

1979; 1987; 1998) e a banalização dos sofrimentos (ARENDT, 2001), podem ser encaradas

como subcategorias do que Kleinman (1997) chama de sofrimento social.


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O problema do sofrimento social vai além da terminologia e da escassez de

vocabulário para comunicar o que o indivíduo sente a outrem, assim como vai além das

formas químicas de controle da dor. Além disso, muitas emoções, extrapolando sua

comunicabilidade através de palavras, são difíceis de serem externadas, sob pena de diminuir

socialmente quem as expressa. Como é o caso dos portadores de estigma (homossexualidade,

deformação, deficiência ou pobreza), ou mesmo daqueles que têm algum tipo de preconceito,

pois nos dias de hoje expressar preconceitos em determinadas classes sociais é tanto social

quanto politicamente incorreto e censurável, levando muitas pessoas a esconderem suas

emoções, seus pensamentos e sentimentos em tais casos.

De qualquer modo, a vivência da dor, que é algo experimentado socialmente, isola,

aquele que sofre, do resto do mundo. Não é à toa que o indivíduo sente sua dor como única e

inigualável, incomunicável aos outros, mesmo que existam no mundo situações iguais (ou

piores) à dele, do mesmo modo como ele não entende completamente a dor alheia. Talvez

para resolver o problema da dificuldade de expressão da dor é que, em diversas culturas,

existe uma “ética de antífona” 1, isto é, uma interação entre acústica, lingüística e orientações

corporais que dão uma definição pública para uma “boa morte”, distinguindo -a de uma

“morte ruim”: a acústica de morte se corporifica no grito e na la mentação, que juntamente

com a presença dos parentes, constroem uma boa morte. A morte silenciosa é a morte ruim,

associal, sem o apoio dos parentes. O silêncio aqui conota a ausência de testemunhas (DAS,

1997, p. 78).

Esse caráter coletivo é grandemente marcado por cerimônias públicas que possuem

regras próprias e também fazem parte do ritual da vendetta e da determinação de

responsabilidades, pondo em ação sentimentos e emoções construídos coletivamente, o que

permite, segundo Mauss (1979, p. 149), entrever a própria coletividade em interação.


1
Cf. Aurélio Buarque de Holanda, curto versículo recitado ou cantado pelo celebrante, antes
e depois de um salmo, e ao qual respondem alternadamente duas metades do coro.
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Os gritos e cantos utilizados nos ritos mais simples não têm esse caráter público e

social tão desenvolvido, mas, por sua vez, “falta -lhes, no mais alto grau, qualquer caráter de

expressão individual de um sentimento experimentado de modo puramente individual”

(MAUSS, 1979, p. 149). No desenvolvimento de suas tarefas cotidianas ou conversas banais,

em horas, datas ou ocasiões prefixadas, membros do grupo, principalmente mulheres,

começam a gritar e injuriar o inimigo ou o demônio e a esconjurar a alma do morto. Depois da

catarse da sua cólera, o grupo volta à sua vida normal, exceto aqueles designados como

portadores do luto.

Os portadores do luto são pessoas designadas para exercer obrigatoriamente as

manifestações do luto, que não são comuns a todos os parentes. Em princípio, essa tarefa é

exercida por mulheres, geralmente as mães, irmãs e, sobretudo, a viúva do defunto (MAUSS,

1979, p. 150-51). Essas expressões de dor (inclusive um número convencional de gritos) e

sofrimento são acompanhadas de auto-flagelações para “entreter a dor”.

Tudo isso é ao mesmo tempo social e obrigatório mas, apesar de tudo, violento e
natural: a busca e a expressão da dor andam juntas. […]
Por inarticulados que sejam, gritos e uivos são sempre de certo modo musicais, a
maioria das vezes ritmados, cantados em uníssono pelas mulheres. Estereotipia,
ritmo, unissonância, são manifestações ao mesmo tempo fisiológicas e sociológica
(MAUSS, 1979, p. 152).
Todas essas expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória

dos sentimentos do indivíduo e do grupo, formam para Mauss (1979, p. 153) uma linguagem.

Só podem ser compreendidas se seus signos são dominados por todo o grupo, e, ao mesmo

tempo, fazem parte das técnicas corporais aprendidas pelos membros de um grupo através de

sua educação (MAUSS, 1971, p. 337).

Por técnicas corporais se entende a forma como os homens, tradicionalmente, em cada

sociedade, utilizam seu corpo. Segundo ele, os gestos são aprendidos lentamente, e cada

técnica e atitude corporais propriamente ditas têm sua forma. Sendo assim, podemos falar de

um jeito cadenciado de andar das mulheres brasileiras (mesmo que isso reforce um
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estereótipo), ou referir a um gestual específico de membros de uma gangue, por exemplo. Diz

Mauss (1971, p. 339): “la posición de los brazos y manos mientras se anda constituye una

idiosincrasia social y no es sólo el resultado de no sé qué movimientos y mecanismos

puramente individuales, casi enteramente físicos”. Desse modo, explicita uma educação da

forma de andar, assim como de outros elementos que fazem parte do gestual de cada

indivíduo. São os “hábitos” que variam em cada indivíduo e sobretudo com as sociedades, a

educação, as regras de civilidade e a moda. As técnicas corporais são, portanto, um trabalho

coletivo, uma prática social ou ainda formas de agir em sociedade:

Se imponen otra serie de hechos, en cualquera de los elementos del arte de utilizar
el cuerpo humano, dominan los hechos de la educación. La noción de educación
podía superponerse a la idea de imitación y aunque otros las tienen muy escasas,
todos reciben la misma educación de tal manera que es fácil comprender los
resultados (MAUSS, 1971, p. 340).
Elias trata das técnicas corporais, ainda que sem se referir a elas exatamente através

desse nome. Discute a formação paulatina do “homem civilizado” na Europa, principalmente

na França, a partir da Idade Média. Cita um tratado, escrito por Erasmo, sobre a arte de educar

os jovens. Neste tratado estão incluídas formas de se olhar, como o olhar fixo, denotando

inércia, o olhar de espanto e de estupidez. As pessoas impudicas tinham o olhar vivo e

eloqüente, sendo mais conveniente, contudo, o olhar demonstrar uma mente plácida e uma

afabilidade respeitosa. O mesmo tratado vai mais longe ao definir os melhores gestos,

posturas e expressões faciais, assim como o vestiário mais conveniente para que o homem

manifeste seu interior. Porém, Erasmo está consciente de que “embora este decoro corporal

externo proceda de uma mente bem constituída, não obstante descobrimos às vezes que, por

falta de instrução, essa graça falta em homens excelentes e cultos” ( ELIAS, 1994, p. 69).

Como demonstração das mudanças sofridas durante esse processo de civilização,

observa:

Em um dos sintomas do processo civilizador é ser embaraçoso para nós falar ou


mesmo ouvir muito do que Erasmo diz. O maior ou menor desconforto que sentimos
com pessoas que discutem ou mencionam suas funções corporais mais abertamente,
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que ocultam ou restringem essas funções menos que nós, é um dos sentimentos
dominantes no juízo de valor ‘bárbaro’ ou ‘incivilizado’. Tal, então, é a natureza
do ‘mal-estar’ que nos causa a ‘incivilização’ ou, em termos mais precisos e menos
valorativos, o mal-estar ante uma diferente estrutura de emoções (ELIAS, 1994, p.
72).
A interação das técnicas lingüísticas com as técnicas corporais podem, então, mostrar

uma estreita associação da dor com o sofrimento – seja ele físico ou moral (espiritual) – e,

obviamente, se apresenta nas definições do que ela seria em diversas línguas, inclusive na

portuguesa. No entanto, o caráter físico ou espiritual da dor não parece ter particular

relevância, pois uma mesma função expiatória o fundamenta e integra às manifestações

contingentes do sofrimento (GUERCI, 1999, p. 61).

Porém, mesmo com essa associação entre dor e sofrimento presente de forma mais ou

menos universal, o conceito cultural particular da dor muda de acordo com expressões

socialmente aceitas em um determinado tempo e lugar, através de práticas que são exercidas

coletivamente, integrando um conteúdo cultural determinado e está presente em todos os

indivíduos sociais que fazem parte de uma mesma rede de relações. Em outras palavras, a dor

e o sofrimento, assim, fariam parte de sociabilidades específicas (KOURY, 1999a, p. 76).

Para Durkheim (2000), no estudo do papel da dor no campo religioso, as abstinências

e as privações são inseparáveis do sofrimento e o culto negativo é indissociável do

sofrimento. A dor é tida como libertadora e lhe é atribuído um poder santificador quando

utilizada como elemento de determinadas práticas sociais. Confere à dor o poder de gerar

forças excepcionais e através da maneira como o homem a enfrenta é que se tem noção de sua

grandeza.

Apesar dessa observação e da freqüência do sofrimento, ainda existe, em nosso

cotidiano, um silenciamento a respeito da dor: de fato, a existência da própria sociedade

também depende de um certo desprezo por ela, mesmo em meio às relações mais íntimas:

Embora exaltando as forças do homem, ela com freqüência é rude para com os
indivíduos: exige deles perpétuos sacrifícios; não cessa de reprimir nossos apetites
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naturais, precisamente porque nos eleva acima de nós mesmos (DURKHEIM, 2000, p.
336).
O silenciamento também se estende a coisas que nos causam vergonha, ou, como

dissemos acima, o discurso sobre tais assuntos está confinado a esferas muito bem definidas

da vida social e das quais a imprensa, tomada em sua acepção geral e parte integrante.

Guerci (1999) afirma, entretanto, que esta ausência, ou abstenção, do discurso coletivo

sobre a morte é uma resposta cultural específica da sociedade ocidental. Do mesmo modo que

os relatos de dores infligidas a mulheres (vítimas de estupro e seqüestro), na ocasião da

Partição na Índia2, também é marcado pelo silêncio ou pelo uso de uma linguagem metafórica,

evitando uma descrição específica de qualquer evento que capture a particularidade de suas

experiências, ou pela descrição de eventos periféricos, apenas tangenciando a experiência real

causadora do sofrimento (DAS, 1997).

Koury, comentando Mauss, afirma que essa “personificação” ( embodiment) ou

objetivação da emoção se dá em um nível mais profundo e inconsciente. Os significados

culturais da dor seriam aprendidos pelo indivíduo mesmo antes de uma vivência concreta de

noções de dor, sofrimento e vergonha, e de outras emoções, construídas, implícita e

inconscientemente, nas práticas sociais e, ao vivenciá-las, atualizaria seus conteúdos e

significados coletivos, impregnando-os com um novo e próprio significado. Isso ocorreria

através de um processo de “sedimentação intersubjetiva” que se objetiva socialmente por

intermédio das experiências que ficam retidas na lembrança e em um sistema de sinais que,

2
Momento do colapso do Império Britânico, acontecido em agosto de 1947, que causou a
divisão de sua colônia mais importante na Ásia – a Índia – em duas nações independentes: a Índia,
de maioria hindu, e o Paquistão, de maioria muçulmana. Esta separação foi seguida de tumultos
bastante violentos, principalmente na Caximira, Punjabi e Bengala, cujas raízes repousam na
hostilidade entre essas duas religiões e na disposição dos estados autogovernados. Esta separação
provocou uma desagregação social e teve um alto custo em termos de vidas humanas, estupros e
pilhagens. As mulheres, principalmente, foram utilizadas, tanto por hindus quanto muçulmanos, como
instrumentos de poder. Cerca de 15 milhões de refugiados cruzaram fronteiras para regiões
totalmente estranhas a eles de acordo com a religião professada, apesar de suas identidades serem
construídas a partir das regiões de origem de seus ancestrais. Acessado em janeiro de 2004 e
disponível em http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/south_asia/1751044.stm e
www.emory.edu/ENGLISH/Bahri/Part.html.
30

sendo repetidos, podem ser compartilhados e transmitidos coletivamente, principalmente, pela

linguagem (1999a).

Nessa perspectiva, os meios para objetivação de novas experiências são fornecidos

pela linguagem, que assim permite sua incorporação ao estoque de conhecimentos já

existente. Este é o meio mais importante pelo qual as sedimentações objetivadas são

transmitidas na tradição da coletividade em questão (BERGER E LUCKMANN, 1985).

Para que todo esse processo seja objetivado, existiria um conjunto de práticas sociais

cuja meta seria reintegrar, através de rituais integradores, purificadores e expurgadores dos

males que causaram o sofrimento, expondo o que fica encoberto nas experiências rotineiras e

cotidianas, colocando a pessoa, tida como noção e representação social, acima e além da

coletividade vendo nela e através dela a configuração do seu próprio sofrer. Em outras

palavras, haveria lugares comuns de expressão das emoções do indivíduo e da coletividade,

para reintegrá-los ou desintegrá-los potencialmente, assim orientando as ações dos sujeitos,

permitindo a eles expressarem os significados de suas emoções, dolorosas, de vergonha ou de

luto, mesmo sem as terem vivido pessoalmente, criando uma “etiqueta social” que orientaria

os sujeitos sociais tanto diante de um sofrimento vivenciado por si mesmo, como de um

vivenciado por outro (KOURY,1999a). Através da “designação lingüística [ …] [o indivíduo]

abstrai a experiência de suas ocorrências individuais biográficas”. Estas experiências

individuais se tornam, então, “uma possibilidade objetiva para todos, ou pelo menos para

todos os objetivos de certo tipo […]”, integrando -se ao acervo comum do conhecimento

(BERGER E LUCKMANN, 1985, p. 97).

É assim que

a ação orientada, deste modo, permitiria uma certa prática comum esperada e ou
desejada por cada membro do grupo social em interação, seja no sentido da
vivência ou experiência de um processo, seja no sentido da expectação do outro de
sua ação frente ao mesmo processo. O como se comportar teria assim um leque
informativo, ou um livro de etiquetas comuns ao conjunto societário e à disposição
31

dos indivíduos que nele se orientariam na condução de suas ações (KOURY, 1999a,
p. 79)
Considera ainda que,

os sentimentos seriam constructos sociais, simbólicos, integrativos dos atores a uma


dada sociabilidade ou modo de vida, e integrativos dos sujeitos para consigo
próprio, mediatizados pela tradição social. Quanto menor e menos complexa uma
dada rede social, maior a capacidade social integrativa dos sujeitos nas
expectações e cumprimentos das ações desejáveis, social e individualmente (p. 79).
Essa ritualização da vida, como pressuposto lógico da existência de uma sociabilidade,

seria mais marcante e menos tolerante quanto às individualizações nas sociedades relacionais.

Essas esferas de ritualização seriam mais compactas, com a tradição exercendo um papel

fundamental na integração dos indivíduos. Os indivíduos em interação seriam, portanto,

informados das ações possíveis e desejáveis através dessa “ordem ritual organizada”, havendo

pouca flexibilidade para atuações que não se enquadrem na lógica da tradição, notadamente

em algumas esferas da vida social, como se verifica com o luto.

Esse ocultamento e resistência em falar de coisas dolorosas e/ou constrangedoras têm

como origem um elemento fundamental nos processos nucleares do eu e nas relações sociais,

que é a vergonha. Segundo Ratzinger e Scheff (2000), a vergonha é um componente tão

crucial que, na maioria das vezes, permanece escondido. A proibição de demonstrar vergonha

é tão intensa que nos tornamos inibidos de observar, ou mesmo falar sobre a vergonha nos

outros e também em cada um de nós. A proibição é tão forte que perdemos a habilidade de

descobrir a vergonha escondida.

Essa proibição fica menos rigorosa em algumas instâncias sociais como os Alcoólicos

Anônimos, por exemplo, e poder-se-ia dizer, nos meios de comunicação. Nesse último caso,

os interesses comerciais interfeririam e restringiriam essa vergonha em prol de uma maior

lucratividade. Por essa razão, os meios de comunicação se tornaram um lugar socialmente

legitimado e aceito em que coisas interditas para as relações particulares são amplamente

tratadas, consumidas e mesmo discutidas na esfera pública, com o escudo do distanciamento e

da ilusão do “isso não acontece comigo ” e do direito de informação.


32

É por esse aspecto que a imprensa de sensação pode investir em imagens de dor, de

morte e de violência e ser aceita socialmente. Angrimani (1995, p. 57) afirma que “cada

público […] de acordo com sua medida de sofisticação, aceita (ou exige) formas diversas que

sejam uma projeção de sua violência”. Essa hipótese por ele formulada coloca a dor e a

violência como parte integrante de uma sociabilidade necessária em nossa sociedade, como

uma descarga de pulsões agressivas, contrariando àquelas que instituem a mídia como

fomentadora destes mesmos problemas. Poder-se-ia citar, no decorrer da história, fartos

exemplos de formas de descarga dessas pulsões “agressivas de natureza inconscientes” e que,

em cada época, encontram sua forma cultural de serem canalizadas. A imprensa seria, então,

uma das formas contemporâneas de se atender a essa necessidade de violência, de testemunho

da dor e de “destruição do outro” por parte dos leitores, ao mesmo tempo que se manifestaria

em sentimentos de vergonha, embaraço e, muitas vezes, humilhação para os personagens

desses dramas cotidianos (BAUDRILLARD apud ANGRIMANI, 1995, p. 57).

1.3 O sofrimento social e os meios de comunicação.


Young (1997) observa que existem duas formas de se entender o significado do

sofrimento. A primeira está associada à dor somática e aos momentos de consciência que

acompanham ou antecipam esta dor. A outra se relaciona com estados que são descritos como

psicológicos, existenciais ou espirituais e que são identificados com palavras como

‘desilusão’, ‘desespero’ e ‘desolação’. Este último tipo de sofrimento tem também uma

dimensão social, no sentido de que é entendido localmente por grupos e comunidades

identificáveis e está baseado em códigos sociais.

O sofrimento de que falamos aqui é o resultado das injúrias que a força social inflige

na experiência humana, ou seja, mais concretamente, é o produto de uma ampla gama de

problemas sociais impingidos sobre uma população pelos poderes político, econômico e
33

institucional e inclui também suas respostas a estes poderes. Incluídos sob a categoria de

sofrimento social estão condições que são quase sempre divididas em campos separados e que

envolvem simultaneamente temas como saúde e bem-estar, além dos aspectos legais, morais e

religiosos. O sofrimento social, raramente, está dissociado das ações dos poderosos, e fatores

de gênero, etnicidade e status sócio-econômico podem ser, cada qual, a seu turno, solicitados

a desempenhar um papel em levar indivíduos e grupos vulneráveis ao sofrimento humano

(KLEINMAN, 1997, p. ix).

Em uma perspectiva antropológica, portanto, o sofrimento social é o efeito das

violências que a ordem social (local, nacional ou global) traz para as pessoas. Doenças e

morte prematura são distribuídas injustamente, já que as instituições protegem alguns,

enquanto expõem outros aos vetores dos poderes econômico e político. A vida cotidiana é, em

grande parte, violenta para o corpo e para a experiência moral, notadamente para os pobres,

embora a violência e, por extensão, o sofrimento atinjam membros de todos os estratos

sociais.

Diante disto, podemos dizer que o estudo do sofrimento social põe em xeque a noção

de cotidiano como o lugar do ordinário e questiona não apenas os atos de violência explícita,

mas as violências mais invisíveis causadas por instituições como, por exemplo, a ciência, os

meios de comunicação e o estado. Kleiman e Kleinman (1997, p. 4) chamam a atenção para

um elemento que é o da apropriação profissional das imagens de sofrimento e analisa a

atuação dos fotojornalistas e dos profissionais de saúde pública.

O primeiro caso envolve o fotógrafo sul-africano Kevin Carter, ganhador do prêmio

pulitzer pela foto de uma criança sudanesa, abandonada no chão, sendo vigiada com atenção e

paciência por um abutre pousado próximo a ela (Reprodução 1). Todo um questionamento a

respeito da ética (ou sua ausência) que repousa por trás do exercício profissional dos

fotojornalistas, que pode ser sintetizado neste caso e também pode ser estendido para uma
34

prática cotidiana dos fotógrafos, dos profissionais de saúde, de cientistas sociais e, de forma

mais contundente, da mídia, em especial aqueles meios que se propõem a utilizar os

sofrimentos humanos como sua principal matéria-prima.


        "! #%$'&(*)+,! - .0/12/43 5768:9<; =>?15 >A@CBED DFHG

Ao mesmo tempo, uma fotografia de uma atrocidade dá um testemunho que pode levar

as pessoas a agirem. Sob qualquer ponto de vista, a tensão permanece e o sofrimento da

pessoa que representa e o do representado se misturam, em outras palavras, nessa situação se

leva ao extremo a dicotomia sujeito/objeto que subjaz notadamente nas ciências humanas.

Boltanski (1999) trata desta questão do espectador de imagens de sofrimento dentro do que

ele denomina uma “política de p iedade”. A política de piedade consiste em, primeiramente,

diferenciar os sofredores daqueles que não sofrem e também em colocar o foco sobre o

espetáculo do sofrimento. Espetáculo sendo aqui utilizado no sentido de dar maior ênfase na

observação em detrimento da ação: observação do desventurado por aqueles que não

compartilham seu sofrimento, que não o sentem diretamente e que, como tal, podem ser

considerados pessoas de sorte. A política de piedade, no entanto, observa os sofredores como

um conjunto, em massa, o que a diferencia, portanto, da mídia que tem necessidade (e o faz
35

com freqüência) de singularizar as infelicidades, destacando-as da massa para dar um caráter

humano à notícia (1999).

O que a mídia algumas vezes desperta são atos compassivos, que se diferenciam da

política de piedade pelo seu caráter local e prático de comprometimento de um ou vários

espectadores, em favor de desafortunados. A forma particular como a mídia muitas vezes

comunica o sofrimento afeta a sensibilidade de parcela dos espectadores, que se sentem

compelidos à ação (BOLTANSKI, 1999, p. 11). Por outro lado, o sofrimento na mídia pode

também ser encarado através da política de piedade, através da qual o receptor percebe tanto a

pluralidade das situações de infortúnio quanto suas particularidades. Os sofredores que

desfilam através dos objetos de mídia não são nem amigos, nem inimigos, são homens e

mulheres ordinários em que é um em um evento determinado, mas poderia ser qualquer outro.

Nesse sentido, Boltanski (1999) trabalha com a hipótese de que o espetáculo do

sofrimento, incongruente quando visto à distância pelas pessoas que não sofrem, não é apenas

uma conseqüência técnica dos modernos meios de comunicação, mesmo que o poder e a

expansão da mídia tenha trazido a miséria para a intimidade dos lares afortunados com

eficiência sem precedentes. Mas afirma que é inerente a uma política de piedade lidar com o

sofrimento do ponto de vista da distância uma vez que ela deve repousar sobre a massificação

de uma coleção de desafortunados que não estão ali.

Esse espetáculo de um sofrimento distanciado promovido pela mídia, de um modo

geral, realiza uma disjunção entre as possibilidades de informação e possibilidades de ação e

uma crescente incerteza no que se refere a ação necessária.

Um efeito da distância é certamente que a responsabilidade moral através da


omissão torna-se mais incerta e assim mais difícil de estabelecer quando a cadeia
causal é prolongada. A pessoa que vê de longe não está ciente de outras pessoas
que recebem as notícias, do quão perto elas estão relativamente ao caso, de sua
prontidão a agir e se elas têm pré-compromissos ou não (BOLTANSKI, 1999, p. 16)
(Tradução da autora).
Chama a atenção para o fato de que o espetáculo sofrimento é o único que coloca um
36

dilema especificamente moral para alguém exposto a ele:

De fato, quando um espectador se defronta com qualquer outro espetáculo que


julgue ser sem interesse, ou mesmo indecente, ele tem a opção fácil de desviar sua
atenção: deixando a sala, parando de ler, desligando a tv etc. Mas quando ele se
depara com o sofrimento, tal comportamento não se torna auto-evidente porque
neste caso ele poderá ser acusado, ou poderia acusar a si mesmo, de indiferença.
Agora, […] ter o conhecimento do sofrimento acarreta uma obrigação de dar
assistência (p. 20) (Tradução da autora).
A resolução fornecida para este dilema moral é que é através da fala que o espectador

mantém sua integridade ao se deparar com o espetáculo do sofrimento e é chamado à ação.

Não é suficiente, porém, que seja apenas um sussurro de indignação para si mesmo. É preciso

que haja a criação de um discurso público, que o isente de ser acusado de indiferença ou

pessoalmente interessado na visão do sofrimento alheio.

O critério do discurso ou conversação públicos é precisamente o que nos capacita a


distinguir entre uma forma de ver que pode ser caracterizada como desinteressada
ou altruística, uma que é orientada para fora e que é motivada pela intenção de ver
findo o sofrimento, e uma posição egoísta de olhar que é totalmente tomada com os
estados internos surgidos pelo espetáculo do sofrimento: fascinação, horror,
interesse, excitação, prazer etc. (p. 21) (Tradução da autora).
Afirma ainda que existe uma linha tênue na denúncia do espetáculo do sofrimento à

distância que mistura, parcialmente, o real e o ficcional. A comunicação do sofrimento de um

desafortunado a um espectador distante que está seguro, abrigado, aumenta a probabilidade de

ser apreendido no modo ficcional, principalmente quando o horizonte de ação desse

espectador nos elos causais retrocede dele até o sofredor.

É por isso que destaca a necessidade de um discurso público e uma atitude ativa como

condição mínima de uma relação apropriada com a realidade. Porém, seria inaceitável uma

narrativa por demais objetiva dessa realidade, sem ponto de vista evidente, por mais que hoje

seja esta a regra na mídia para garantir a seriedade e uma versão que aspira o status de

verdade. O sofrimento de terceiros sendo também objeto de uma descrição realística em

excesso coloca o domínio da narrativa completamente em favor daquele que descreve,

tornando assimétrica a humanidade de diferentes parceiros.


37

O profissional de mídia parece se transformar no que chama de “espectador puro” 3,

independente da cena que vê, sem laços nem pré-compromissos, características que lhe

conferem credibilidade, capacitando-o a informar “sem deformação”, fazendo observações de

qualquer lugar na esfera pública, na exterioridade de relações disponíveis a qualquer um. A

esfera pública pressupõe a existência desse observador distanciado e casual que pode ficar

atento às peculiaridades da sociedade (1999).

A análise de Boltanski, porém, não se esgota nesse espectador puro, supostamente

isento de qualquer filtro ou condicionamento cultural. Este observador não apenas reporta e

circula opiniões divergentes, como também constrói esta esfera pública em torno de causas, e

é através delas que a política de piedade e a esfera pública estão conectadas. A consideração

do sofrimento modifica a condição de debate especialmente por impor sobre ele uma urgência

que demanda um compromisso de pessoas por uma causa. Este compromisso, porém, para ser

válido na esfera pública tem que ser livre de interesses e de laços comunais anteriores. A

esfera pública seria uma rede de compartilhamento de informações que não repousa em

caminhos pré-existentes e na qual as pessoas poderiam se agrupar em torno de causas:

Assim no ideal da esfera pública um sofrimento local pode ser informado sem
deformação de tal maneira que está lá para que qualquer um o examine, ou seja,
para todos aqueles que, do fato de sua receptividade surgir de sua falta de
compromisso anterior, estejam livres para examinar este sofrimento e se
considerarem suficientemente afetados por ele para se comprometerem e tomá-lo
como sua causa (p. 31) (Tradução da autora).
Numa esfera pública, como é a mídia, o sofrimento é informado de forma radicalmente

diferente do que ocorre nas relações comunais. Nestas, o sofrimento é geralmente informado

face a face e com o custo de uma reapropriação e usualmente pela transformação da narrativa

recontada, na presença de um público particular, por alguém envolvido e afetado pelo

sofrimento daqueles próximos a ele. São importantes nessa situação, a voz e seus tons, as

emoções. Além disso, a presença do locutor envolve o público em uma cena compartilhada

3
Esse espectador puro que separa a contemplação da ação tem caráter histórico e recente.
38

em que cada membro poderia estar no lugar da pessoa que conta a história, através de

manifestações expressivas destes corpos afetados informarão o sofrimento a outro que, por

sua vez, será levado para dentro dele.

Informar o sofrimento em uma esfera pública toma uma forma diferente porque se

constitui contra uma esfera comunitária. Em contraste deve estabelecer uma representação do

sofrimento que é apresentado como falsificável (através da eliminação dos rumores e

apresentações “ mentirosas” ) e deve informar esta representação com as mínimas

modificações possíveis ao maior número de pessoas. O espectador real ou potencial do

sofrimento seria nesse caso qualquer um: suas reações não são mais motivadas por um

compromisso natural de forma que há incerteza em relação à identificação do desafortunado

que pode, inclusive, levantar controvérsias.

Na mídia, no entanto, é comum e não raro necessário entrar em casos particulares,

entrar em detalhes, para provocar piedade, envolver o espectador e, talvez, chamá-lo a ação.

Mas ainda persiste a questão do quão longe é apropriado ir na descrição de detalhes sórdidos

para provocar piedade que entra em conflito com a necessidade contrária de respeito pela

pessoa do desafortunado. Um quadro que ultrapassa os limites na descrição realística de

detalhes, um lado que deve ser descrito como repulsivo, pode na verdade ser denunciado por

um lado como redutivo, visto que a pessoa é inteiramente definida por seus sofrimentos, e por

outro lado, como levando para longe o sofrimento da pessoa que o sofre, para exibir este

sofrimento para aqueles que não sofrem (BOLTANSKI, 1999).

Existem ainda outras implicações morais e políticas na utilização de notícias e

imagens de sofrimento no mercado midiático mundial. A primeira delas é a de que os

indivíduos pertencentes a comunidades locais, muitas vezes, não são capazes de se

defenderem nem de falarem por si mesmos. É entendimento comum que estes indivíduos

devem ser protegidos e representados por outros, reforçando uma imagem de subalternidade
39

que remete a uma idéia de colonialismo, fracasso, passividade, fatalismo e inevitabilidade.

Por outro lado, o testemunho e a mobilização parecem funcionar melhor quando levam em

conta as complexidades das situações locais e quando são implementados por intermédio das

próprias instituições locais.

O testemunho moral deve comportar uma sensibilidade para com o outro e as imagens

de trauma não devem se transformar em uma forma de entretenimento ou fazerem parte de

uma política econômica. Muitos se beneficiam destas imagens: jornais, programas de tv,

algumas carreiras são promovidas, empregos são criados e prêmios são concedidos através da

apropriação das imagens de sofrimento (KLEINMAN E KLEINMAN, 1997).

Kleinman e Kleinman, porém, fazem uma crítica da sociedade a que pertencem e que

encara o sofrimento de países do Terceiro Mundo como algo distante e exótico. Apontam a

globalização massiva das imagens de sofrimento, a maioria produzida por grandes agências de

fotógrafos, como causadoras de fadiga moral, exaustão de simpatia e desespero político.

Identificam a presença de um horror das imagens quando nos conscientizamos que as vítimas

dos infortúnios estão cercadas de fotógrafos, cuja participação ajuda a determinar a direção

que os acontecimentos podem tomar. Segundo eles, o fotógrafo é uma transformação

profissional na vida social, uma retórica politicamente relevante, uma forma construída que

ironicamente naturaliza a experiência. Essa idéia é defendida por Shapiro quando observa que

a representação é uma ausência da presença. O real nunca é inteiramente representado para

nós, pois é sempre mediatizado através de alguma prática representacional. Assim, sempre

perdemos algo quando pensamos a representação como uma imitação do real. O que

perdemos, em geral, é percebido dentro das instituições, ações e episódios através dos quais o

real foi moldado, uma moldagem que não tem sido tanto uma questão de atos imediatos de

consciência das pessoas na vida cotidiana, mas um tipo de imposição historicamente

desenvolvida, e agora largamente institucionalizada nos modos dominantes de significado


40

profundamente inscritos nas coisas, pessoas e estruturas (apud KLEINMAN E KLEINMAN,

1997).

Uma outra forma de apropriação profissional é a patologização do sofrimento social,

ou seja, as memórias das vítimas que são transformadas em histórias de trauma e capital

simbólico através dos qual eles entram na negociação por recursos.

Em um número crescente de vezes, as histórias dos percalços humanos são reduzidas a

um núcleo de imagens culturais de vitimização e são utilizadas por profissionais das mais

diversas áreas para reescrever a experiência social. A pessoa que passa por dificuldades

primeiro torna-se uma vítima, uma imagem de inocência e passividade, alguém que não pode

representar a si mesmo, que deve ser representado. Essas vítimas são descritas, em termos

médicos por exemplo, como paciente de tensão pós-traumática, doença surgida em fins do

século passado. Na verdade, para receber mesmo uma modesta assistência e atenção públicas,

deve ser necessário se submeter a uma transformação substancial daquele que experimenta,

que sofre, para aquele que é a vítima. Por causa da importância política e financeira de tais

transformações, os próprios violados podem querer, e mesmo procurar re-elaborar a imagem

da sua condição, pois assim podem obter tanto os benefícios morais quanto os financeiros de

serem vítimas4 (KLEINMAN & KLEINMAN, 1997).

Em meio a tudo isto, a mídia se configurou, principalmente no decorrer do século 20,

como um imenso poder cultural na ordem mundial, capacitando-a a se apropriar de imagens

de violência para alimentar a mercantilização global. Ao mesmo tempo, esse excesso de

exposição da violência normaliza o sofrimento e transforma o olhar empático em voyeurismo.

Mas o sofrimento social é também visto como resposta para os problemas humanos por

instituições de política social e programas que são, em princípio, organizados para melhorar o

4
Os autores estão tratando especificamente de casos de refugiados da violência política e
ideológica e atendidos por entidades humanitárias internacionais.
41

problema (KLEINMAN, 2000, p. 226).

Alguns tipos de sofrimentos adquirem uma espécie de “exotização” na mídia, já que os

produtores de notícias e também os leitores estão freqüentemente distanciadas espacial, social

e culturalmente de alguns deles. Estas circunstâncias, porém, não ocorrem nas notícias locais.

A “exotização”, no entanto, é uma técnica jornalística bastante utilizada para gerar interesse

sobre notícias aparentemente banais ou tão freqüentes que já não geram curiosidade. Exotiza-

se o texto, o discurso da violência e de experiências de dor e o sofrimento (FARMER, 1997, p.

272).

Nestes textos de mídia aparece nitidamente algo que Moore Jr. (1987, p. 31) chamou

de sociedade:

o termo sociedade diz respeito ao corpo mais amplo de habitantes num território
específico que tem um sentido de identidade comum, vive sob um conjunto de
arranjos sociais distintos e o faz , na maior parte do tempo, em um nível de conflito
que exclui a guerra civil.
As normas sociais e a ira que elas despertam em não poucos indivíduos e setores da

sociedade, principalmente aquelas em que a norma é a desigualdade, têm, de acordo com este

autor, uma origem dual: tanto da natureza humana inata quanto da dinâmica social. Chama a

atenção de como essa “natureza humana” parece ser flexível, pois o homem tem grande

capacidade de suportar o sofrimento, o abuso, por mais trágico que seja, e é essa capacidade

que cria os temas, pois “a resposta ao abuso é algo imensamente maior que o simples reflexo”

(p. 32).

Sendo algo quase que incomunicável, só é compreensível em sua verdadeira extensão

por quem o vivencia, pois o conhecimento do sofrimento não pode ser conduzido em puros

fatos e impressões, em relatos que objetivam o sofrimento de incontáveis pessoas. O horror do

sofrimento não é apenas sua imensidão, mas as faces das vítimas anônimas que têm pouca

voz, para não dizer direitos, na história (FARMER, 1997).

É preciso levar em consideração que notícias sobre o sofrimento humano são um


42

componente fundamental dos jornais na atualidade, assim como o são do cotidiano dos

habitantes das grandes cidades, e que não se limitam a “fatos” ocorridos localmente, mas

englobam todas as espécies de percalços e misérias humanos acontecidos no planeta, pois

todos são notícias ou passíveis de se tornarem “acontecimento”.

A imprensa, principalmente a aqui analisada, é uma amostra contundente de que vida e

dor estão irremediavelmente imbricadas. A dor, assim como formas de vergonha e embaraço,

é parte integrante da visão de mundo de cada sociedade, possuindo um sentido e um valor. A

dor se constituiria, então, no conjunto de práticas materiais, mentais e simbólicas, aliado a um

processo psicológico expresso na mente, no corpo e no mundo externo (CORDEAU,

1993/1994, p. 135). Essa interface das sensações corporais e mentais do indivíduo com o

mundo externo é o que permite que estes sejam mutáveis de uma cultura para outra,

explicando-se não só através da fisiologia e biologia, como também pelo contexto histórico-

cultural.

Diante da discussão feita até agora de como a emoção e, mais especificamente, a dor e

o sofrimento são construídos, aprendidos socialmente e personificados nos indivíduos através

de gestos, atitudes e comportamentos, poderemos pensar em como isso pode ser expresso nas

notícias e fotografias da imprensa.

O fotógrafo de jornal, por sua vez, não capta apenas o real, mas ele utiliza a lente

como um filtro para o seu olhar, para uma linha editorial seguida pelo jornal para o qual

trabalha e, ainda, de acordo com uma pauta que é fornecida a ele pelo editor geral e/ou por

uma equipe de redação. Não é apenas uma, mas inúmeras lentes que trabalharão sobre o

“real” para que este seja transformado em matéria jornalística. Podemos incluir entre elas,

retóricas já consolidadas e que são amplamente debatidas pela história da fotografia e pelos

estudiosos da imagem.

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