Sei sulla pagina 1di 159

-1-

AGRADECIMENTOS

INTRODUÇÃO

PARTE UM:
Dramatis Personae (As Personagens)
01 OS ROMANOS
02 OS PRINCIPAIS SACERDOTES, ANCIÃOS, ESCRIBAS E TODO O CONSELHO
03 JESUS

PARTE DOIS:
O Que Pode Realmente Ter Ocorrido
04 A PRISÃO
05 NA CASA DO SUMO SACERDOTE
06 O JULGAMENTO
07 A FLAGELAÇÃO
08 A CRUCIFICAÇÃO

PARTE TRÊS:
O Que Se Passou Depois
09 PEDRO E PAULO
10 O SEU SANGUE CAIA SOBRE NÓS E SOBRE NOSSOS FILHOS
11 OS ATOS DE PILATOS
12 FONTES NÃO CRISTÃS
13 A PERVERSÃO DA JUSTIÇA

AGRADECIMENTOS

A tese que este livro expõe foi pela primeira vez enunciada na Conferência Anual em Memória de Moshe
Smoira, em 1966, na Universidade Hebraica de Jerusalém. Um texto em inglês baseado nesta conferência
foi publicado na Israel Law Review, Volume 2 (1967), sob o título, "Reflexões sobre o Julgamento e a
Morte de Jesus". Em 1968, uma versão bem mais ampliada em hebraico foi publicada em forma de livro
pela Companhia Editora Dvir de Tel Aviv, com o título Mishpato u-Moto shel Yeishu ha-Notzri. Sou muito
grato à Associação da Israel Law Review e à Companhia Editora Dvir por me proporcionarem toda
liberdade para consultar essas publicações anteriores em proveito do presente livro, muitas passagens do
qual, na verdade, não passam de repetições do que anteriormente escrevi.
Eu não poderia ter esperado produzir um livro aceitável pelo público de língua inglesa, se não tivesse
contado com a ajuda constante que me foi generosamente prestada pelo grande mestre de inglês, Max
Nurock, de Jerusalém. Seu pleno domínio da língua, a perfeição de seu estilo e seu conhecimento técnico
de história antiga e de literatura clássica combinaram-se para dotar o meu humilde esforço de qualidade
não merecidas. E se o presente livro possui algum mérito literário, este pertence a ele, e não a mim.
-2-
Devo também registrar minha dívida para com os escritos do Dr. Paul Winter, de Londres, cuja morte
prematura, ano passado, privou os estudos do Novo testamento de um de seus principais expoentes.
Finalmente, gostaria de exprimir a gratidão que sinto para com meu bom amigo Leo Guzik, de Nova
Iorque, que me poupou das questões comerciais ligadas à publicação deste livro; sem seu incentivo
otimista dificilmente eu teria me aventurado neste ambicioso empreendimento.

INTRODUÇÃO

Dos cerca de sessenta mil livros que se diz terem sido escritos sobre a vida de Jesus, somente no século
XIX,¹ não foram muitos os que dedicaram uma atenção particular ao seu julgamento, como se este relato
não fosse parte da vida dele.² Tampouco foram escritos muitos livros sobre o próprio julgamento, e entre
os que se preocuparam com a investigação e a descrição dos procedimentos judiciais contra Jesus, apenas
uns poucos foram escritos por advogados e abordaram os aspectos legais. Trata-se, na verdade, de um fato
surpreendente. Nenhum julgamento na história da humanidade teve conseqüências tão importantes.
Nenhum suscitou tão profundas, decisivas e persistentes afirmações decorrentes de um grande erro
judiciário. Nenhum teve repercussões que nada perderam de seu impacto ou de sua atualidade, mesmo
depois de decorridos quase dois milênios. E nenhum foi tão amplamente e, no entanto, tão inconclusiva e
insatisfatoriamente relatado. O fato de que todos os relatos, expressamente ou por meio de implicações
necessárias, insinuam que o julgamento não passou de justiça travestida e a crucificação de assassinato
judicial deveria ter alertado os observadores da lei, em vez de os deixarem fascinados, como o resto da
cristandade, por uma crença que nenhum argumento legal poderia abalar. É uma crença ainda tão forte e
aparentemente tão imutável, que as maiores concessões que mesmo os grandes liberais na hierarquia da
Igreja Católica se dispusessem a fazer consistiriam em absolver o povo judeu, como um todo, e os judeus
das gerações posteriores de uma culpa que -sustentam eles -prende-se irrevogavelmente aos judeus que os
Evangelhos acusam de ter tomado parte ativa no julgamento. O fato de que a pesquisa legal sobre o
julgamento e seu contexto histórico e político tenha sido empreendida, de maneira mais impressiva e
cabal, por não-advogados, por teólogos e historiadores, deve ter conduzido os estudiosos juristas de
história legal a acreditar que nada havia a ser feito. Não há dúvida de que devemos muita gratidão a
eruditos como Mommsen ou Schuerer, que, trabalhosa mente, e em geral conscienciosamente, o coligiram
material jurídico procedente de fontes romanas ou judias e a ele recorreram amplamente para os objetivos
que tinham em vista; nenhum sucessor pode dispensar o alicerce que firmaram. Mas, para o advogado que
trabalha com esse material, torna-se logo claro que o que ele proporciona é apenas fundamento, matéria-
prima que deve ser trabalhada, analisada e apreciada para que se chegue a uma conclusão válida. Qualquer
desses processos de pesquisa pressupõe, é claro, uma disposição de princípio para avaliar criticamente as
fontes, sem preconcepções quanto ao seu caráter conclusivo ou não. Não é essa, no entanto, a ótica que
encontramos em todos os livros escritos por advogados sobre o julgamento. Mesmo um advogado
moderno, educado na tradição do direito comum de equilíbrio e prudência na avaliação de provas, será,
via de regra, incapaz, se for um filho fiel da Igreja, de se libertar do dogma da "verdade do Evangelho".
Ele achará meios e formas de revestir os relatos do Evangelho de importância e confiabilidade como
provas. Assim, num livro sobre o julgamento, um juiz inglês escreve que partilha a crença cristã
tradicional "de que há ponderáveis provas históricas e outras para justificar a convicção -que ultrapassa
qualquer dúvida razoável -de que os autores dos Evangelhos possuíam informação e conhecimento
pessoais dos assuntos a cujo respeito escreviam; de que seus escritos originais eram lidos e guardados
como tesouros nas Igrejas apostólicas; de que, quando desapareciam os escritos originais, continuavam a
ser usadas cópias autênticas; que a maior parte do Novo Testamento estava redigida antes da queda de
Jerusalém em 70 A.D. e que O resto foi escrito pouco depois daquele acontecimento." Procuraremos
demonstrar que as premissas factuais expostas pelo douto juiz quanto à natureza e às datas dos relatos dos
Evangelhos são equivocadas; mas, pelos menos, ele concorda em que as premissas de que parte são, para
ele, uma questão de "crença cristã tradicional" e, portanto, ainda para ele, inatacáveis.
Outro eminente jurista, um ex-presidente da Suprema Corte de Ontário, diz, no prefácio que escreveu para
o seu recente livro sobre o julgamento, que "o relato tal como consta dos quatro Evangelhos é aceito como
-3-
fato. Onde os autores diferem um do outro, as diferenças são consideradas exatamente como as que se
encontram no que dizem testemunhas honestas. Todo testemunho é afetado pela capacidade que tem a
testemunha de observar, por sua capacidade de expressão e, sempre que a prova dependa do que dizem os
outros, pela exatidão da informação que lhe foi comunicada. Cabe aos eruditos bíblicos debater a
autenticidade dos relatos evangélicos e até que ponto uma versão do mesmo fato deve ser preferida a
outra. O que compete ao leigo é aceitar o que encontra e, ao fazê-lo, tratar os respectivos relatos como
suplementares. Foi isso o que eu fiz. Temos aqui uma reserva muito apropriada quanto aos peritos em
análise puramente exegética e de textos das Escrituras; mas a admissão implícita de que os textos
requerem tal análise, pressupondo-se, como se deve, alguma natural cautela ao avaliá-los, vai
imediatamente pelos ares, sendo os textos aceitos como são, como se fossem o depoimento registrado de
testemunhas oculares fidedignas. Ao aceitar "o que encontra", o autor deliberadamente fecha os olhos para
o fato de que o que encontrou e aceitou pode muito bem revelar-se, ao escrutínio de um especialista,
inautêntico, e, portanto, não confiável. A inautenticidade potencial e a manifesta inconsistência dos relatos
dos Evangelhos deve, portanto, proporcionar ao historiador da lei causa e justificação para rejeitar
narrativas que não podem ser sustentadas pela lei ou pela razão e para aceitar apenas o que é razoável ou
corroborado pelos costumes e práticas legais da época.
Já não se duvida com seriedade do fato de que os autores dos Evangelhos não dispuseram de depoimentos
de testemunhas oculares que estivessem presentes em qualquer das fases da prisão, do julgamento ou da
crucificação de Jesus ou que a relataram diretamente. As tais testemunhas há uma vaga referência nos
primeiros versículos do Evangelho de Lucas: sua tradição oral, que ele busca agora conservar por escrito,
tem como fonte em última instância, mas não como fonte direta, o que "as testemunhas oculares e os
ministros da palavra" nos "haviam transmitido... desde o inicio” (1:1-4). Encontra-se uma segunda
referencia no Evangelho segundo João, quando ele diz que aquele que assim viu "testificou, sendo
verdadeiro o seu testemunho; e ele sabe que diz a verdade para que também vós o creiais” (19:35), o que é
novamente uma garantia de que a tradição esta bem fundamentada, mas é – nem que seja por causa da
identidade não revelada da testemunha demasiado imprecisa para apresentar qualquer valor como prova.
Falta apoio no próprio Evangelho a teorias que foram repetidamente apresentadas de que o próprio quarto
evangelista, ou José de Arimatéia, possam ter presenciado a reunião do Sinédrio. E Pedro tomou-se
inutilizável como testemunha ocular por suas divulga das negações (Marcos 14:66-72; Mateus 26,69- 75;
Lucas 22,55-62; João 18,16-17). Não se registraram os diferentes passos do processo, e, se quaisquer
documentos foram redigidos quanto ao julgamento, nenhum se preservou. Não falta apenas qualquer
semelhança entre os relatos do Evangelho e o depoimento de testemunhas, mas não se pode sequer
conceder a tais relatos o crédito que seria normalmente concedido hoje em dia à versão de um repórter
sobre os procedimentos jurídicos a que este houvesse assistido.
Não cabe estigmatizar essa rejeição dos Evangelhos como prova digna de crédito como sendo arrogância
pretensiosa de advogados notoriamente preocupados com aspectos puramente técnicos. A esse respeito,
junta-se aos advogados a companhia numerosa de teólogos e historiadores que chegaram à conclusão de
que os textos dos Evangelhos não são, nem foram escritos para ser relatos históricos dos acontecimentos
que descrevem. "Os Evangelhos não foram escritos com o objetivo de orientar historiadores", diz um livro
recentemente publicado a respeito do julgamento; "o uso que seus autores pretenderiam conferir aos
Evangelhos foi religioso, e não histórico. Quando os evangelistas redigiram seus relatos do julgamento de
Jesus, eles não O fizeram para preservar um registro destinado à pesquisa histórica, mas para transmitir
uma mensagem religiosa." E um grande teólogo contemporâneo adverte os leitores de sua biografia de
Jesus de Nazaré de que, se quisessem saber pelos relatos do Evangelho o que realmente aconteceu e o que
foi dito e feito então, eles ficariam desapontados: "Se tivéssemos que aceitar sem crítica todas as tradições
registradas nos Evangelhos como se fossem relatos históricos, submeteríamos os Evangelhos a um exame
que é estranho à sua natureza e pressuporíamos uma compreensão histórica que não pretenderam ter".
Mas, ele continua, seria errôneo presumir que, com todo o seu "descuido histórico", os Evangelhos
impeçam uma investigação independente do que realmente aconteceu. Pelo contrário, os problemas
teológicos que suscitam e determinam tornam quase compulsório um exame: o investigador independente
vê-se desafiado por problemas incontáveis para cuja solução os Evangelhos proporcionam perguntas, mas
não respostas, e "não há forma de deter a corrente, por mais que suas águas tenham ingressado em cursos
errôneos: cabe-nos, portanto, construir verdadeiras barreiras e fazer com que essas águas desapareçam
-4-
para que tenhamos diante de nós terra sólida". Em resumo, as tradições dos Evangelhos são “mensagens
de fé e não historiografia"; os autores lançaram mão de qualquer material histórico ao seu alcance "para
acrescentar detalhes e qualidade vívida", mas, no conjunto, deram livre curso a sua fantasia "ao apresentar,
e pretender apresentar, não história, mas teologia”.
Sugere-se -e com boa autoridade -que eles tinham em mente não apenas esse propósito teológico, mas
também um propósito apologético. O mais antigo dos Evangelhos, o de Marcos, foi escrito entre 70 e 72
A.D. uns quarenta anos depois do julgamento e da crucificação; seguiu-se-lhe o Evangelho de Lucas,
escrito por volta de 85; comumente atribui-se ao Evangelho de Mateus a data de 90, e ao de João mais ou
menos a de 110. Durante a segunda metade do primeiro século e o início do segundo, os cristãos eram
uma pequena comunidade, que lutava desesperadamente para lograr alguma medida de tolerância por
parte de seus dominadores romanos, que encararam a recusa crista em adotar seu imperador deificado e a
insistência cristã em adorar Deus e seu - Messias, o Cristo, como um crime capital. Já era bastante grave
negar a divindade imperial e orar a um Deus invisível, como o faziam os judeus; mas era sobretudo
imperdoável adorar "um malfeitor crucificado pelo governo de Roma e ao qual se atribuía uma autoridade
superior à do imperador de Roma." Enfurecidos pela "obstinação inflexível" dos cristãos, por sua
"submissão a uma superstição depravada",!B os romanos perseguiram-nos cruelmente. É certo que, de
qualquer ponto de vista de "relações públicas", não pode ter havido preocupação mais urgente ou
importante para os atormentados cristãos do que procurar aumentar seu prestígio e melhorar a imagem de
sua religião e do Cristo, tanto aos olhos do governo como do público romanos, enquanto admitir que o
Cristo fora crucificado pela autoridade romana por um crime ou, a fortiori, dirigir a menor crítica ou
reprovação aos romanos por havê-lo julgado e crucificado teria equivalido a alimentar as chamas da
opressão. Era, portanto, questão de interesse vital para os cristãos, na época, representar as autoridades
romanas contemporâneas como favoravelmente inclinadas para o Cristo, para suas atividades e
ensinamentos, sem qualquer participação no seu julgamento e no que se seguiu. Desde que se pudesse
estabelecer que o governador romano de Jerusalém ficara convencido da legitimidade e da
inofensibilidade das obras e doutrinas de Jesus, não haveria sentido ou justiça em perseguir os cristãos de
Roma por adotá-las e segui-las. E esse, nós sustentamos, o motivo que levou os evangelistas a retratar a
história da paixão de uma forma calculada para inocentar o governador romano de qualquer
responsabilidade pela crucificação, pondo a culpa inteiramente sobre os judeus, que, de qualquer forma,
eram alvo de um ódio intenso e igual por parte dos romanos e dos cristãos.
Já se sugeriu a idéia de que, enquanto os cristãos judeus devem ter divisado a glória do martírio no Cristo
precisamente porque ele fora sentenciado e crucificado pelo detestado governador romano, os cristãos
gentios que viviam em Roma, "que agora estavam bem conscientes de que muitos milhares de rebeldes
judeus haviam padecido mortes semelhantes por contestarem o direito de Roma dominar sua terra", nunca
poderiam ter associado a crucificação de um rebelde ou outro criminoso pelo pretor de uma província de
além-mar com o alegado ato divino de salvação.2o Assim, foi pelo bem da cristandade gentílica, não
menos do que para consumo oficial ou externo, que o governador romano teve de ser inteiramente
absolvido e foi preciso mostrar que uma crença no Cristo, na sua inocência e na sua integridade era
totalmente compatível com a lealdade a Roma . e com a confiança na justiça romana.
Vistas sob essa luz, todas as "fantasias" e o "descuido histórico" dos autores do Evangelho assumem novas
qualidades: na situação dada, teriam causado o maior prejuízo à sua fé -na verdade, podem ter-se
persuadido de que teriam comprometido a própria sobrevivência da mesma -se relatassem a verdade de
que Jesus fora julgado culpado do crime capital de lesa-majestade (crimen maiestatis) e corretamente
julgado e crucificado, de acordo com o direito romano. Mesmo que estivessem conscientes dessa verdade,
não desejariam nem poderiam admiti-la e divulgá-la, sentiram-se compelidos não a servir como escrivãos
ou cronistas neutros, mas antes a fazer o possível para promover sua fé e salvá-la da perdição. Mesmo sem
se levar em conta o perigo físico que corria todo cristão e sua decisão lícita e inteiramente compreensível
de preservar a vida e a liberdade, o problema puramente religioso era bastante candente para justificar uma
ação de emergência. Não foi a primeira vez nem -infelizmente! -a única, na história das religiões, em que,
para glória de Deus e vitória da verdadeira fé, foram descartadas todas as inibições de outra forma
pungentes, e em que a justiça foi suprimida, e a verdade foi pisoteada. Em comparação com os crimes e as
atrocidades cometidos nos séculos posteriores por essas causas gêmeas, as falsificações de fatos históricos,
tais como aquelas em que os evangelistas podem ter incorrido, poderiam parecer, ao observador de fora,
-5-
bastante inócuas. Não apenas houve deturpações ditadas pela necessidade, mas ninguém realmente sabe
em que medida eles -ou alguns deles - não aceitaram de boa-fé a veracidade das histórias que lhes foram
contadas ou -mesmo que não sem desvios -que eles copiaram de textos anteriores.
Outra circunstância que impugna a historicidade e a fidedignidade dos relatos do Evangelho é uma
tendência natural dos autores, que, cumpre lembrar, não eram, nem pretendiam ser historiadores, de
transplantar situações de sua própria experiência e personalidades que conheciam pessoalmente para
aquele passado relativamente distante em que os acontecimentos que descrevem haviam ocorrido. Para
eles, era coisa por si mesma evidente que "rabinos", "escribas" ou "anciãos" de Jerusalém no tempo de
Jesus eram réplicas daqueles que eles próprios encontravam na generalidade das comunidades judias em
Roma ou Alexandria, duas ou três gerações depois. E seu erro crucial consistiu em presumir que a atitude
dos rabinos contemporâneos ante o cristianismo e seu fundador deve ter sido idêntica à de seus
precursores de Jerusalém ante Jesus. Faltou-lhes considerar que o cristianismo, como um credo rival, só
surgiu muito depois da morte de Jesus e que a atitude do judaísmo para com o seu rival apostático, desleal
e cada vez mais popular devia ser, naquela altura, inteiramente diversa do que fora para com um pregador
e profeta individual surgindo do seu próprio meio. Quanto mais quantitativamente se arraigou a fé cristã e
quanto mais ampla se fez a incompatibilidade entre as doutrinas judias e a doutrina cristã principalmente a
paulina - maior se tornou o desprezo e a franqueza da reação judia ortodoxa. E se, enquanto os Evangelhos
estavam sendo escritos, os cristãos eram aparentemente muito mais perseguidos pelos romanos do que os
judeus, isso apenas aguçava o desprezo judeu pela heresia deles e seu desapontamento com ela.
Assim, os autores dos Evangelhos estavam acostumados com rabinos, escribas e anciãos que -para dizer a
verdade -eram corroídos por veneno e ódio aos cristãos e não se pode presumir que outra coisa houvesse
ocorrido com o conselho de sacerdotes, anciãos e escribas (Marcos 14,53). É por isso que vemos os
evangelistas retratar conselhos e multidões de judeus tal como os conheciam por sua própria observação
local, pouco se incomodando em investigar se de fato havia qualquer similaridade, quanto à atitude para
com o Cristo, entre eles e seus precursores de Jerusalém. Não é de espantar que se supusesse que os judeus
de Jerusalém no julgamento de Jesus houvessem agido de acordo com o caráter que se lhes atribuía em
imaginação e que se modelasse a conduta do conselho de sacerdotes e de anciãos de acordo com a
hostilidade aberta que os evangelistas haviam encontrado por parte dos rabinos nos seus próprios dias.
Presumindo, portanto, a questionalidade dos relatos do Evangelho à luz de seu objetivo e orientação,
cumpre-nos ainda perguntar se os evangelistas não podiam confiar e se de fato não confiaram em tradições
válidas orais ou escritas no caso de pelos menos alguns dos acontecimentos que narraram e, sendo assim,
se não seria possível identificar tais acontecimentos, estabelecer sua validade, e singularizá-los para uma
confiabilidade especial. A busca de tais tradições vem agora, faz mais de um século, ocupando os eruditos,
com o resultado de que parece "praticamente certo" que os Evangelhos foram "precedidos de alguns
relatos escritos, mais ou menos fragmentários, da tradição do Evangelho". Lucas testemunha que "muitos
houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós são acreditados com mais
segurança" (1,1), mas, das muitas apresentações, só foram preservadas as dos quatro evangelistas, e
ignoramos se outras as antecederam e serviram de fontes aos evangelistas. Pensa-se em geral que uma
coleção dos ditos de Jesus (os chamados Logia) existira e estivera à disposição de Lucas e Mateus, pelo
menos, e tentou-se reconstruí-la, mas os ditos constantes dessa coleção não se podiam relacionar com os
relatos do julgamento e da crucificação de Jesus. Quanto aos acontecimentos que nos preocupam, a
existência e o conteúdo de qualquer literatura anterior ao ano 70 são matéria de pura especulação. Em
última análise, tudo se resume ao seguinte: as tradições eram presumivelmente orais, da primeira geração
de discípulos de Jesus; mas tem sido dito corretamente que foram transmitidas em "pedaços separados,
circuladas independentemente e reunidas por compiladores que adotam um ponto de vista de todo
estranho ao próprio material”. Na opinião de um historiador do segundo século, Pápias, "Marcos teve
razão ao escrever algumas coisas exatamente como ele se lembrava delas", sem atentar muito para sua
autenticidade; e o próprio Pápias, "diferentemente da maior parte das pessoas", "sentia-se à vontade não
com os que tinham muito o que dizer”, mas com aqueles que joeiravam seu material e, com isso,
"ensinavam a verdade". Devemos essa informação a Eusébio (260-340), que comenta que "Pápias adquiriu
essas idéias interpretando mal relatos apostólicos, sem compreender o que havia neles em linguagem
mística e simbólica. Ele parece ter sido um homem de inteligência muito pequena, a julgar por seus
livros", É esclarecedor que as fontes e os métodos dos evangelistas e dos apóstolos já tivessem, naqueles
-6-
primeiros séculos, suscitado dúvidas e discussÕes, não surpreendendo que essa dubiedade tenha persistido
até os nossos dias.
Ainda que desesperançados quanto à possibilidade de validar qualquer tradição dada com base em provas
externas, talvez não devamos abandonar a possibilidade de fazê-lo por outros meios. Um critério de prova,
por exemplo, consistiria em que a tradição é comum a todos os evangelistas: se cada um deles a repetiu e
adotou, poder-se-ia presumir que contavam com uma fonte satisfatória e conclusiva.Outro meio consistiria
em que é objetivamente razoável que os acontecimentos de fato podiam, nas circunstâncias dadas e
conhecidas, ter ocorrido da maneira e no ambiente descritos - Qualquer um desses meios pode ser
expressado negativamente. Uma tradição relatada num Evangelho anterior e que todos os evangelistas
ulteriores, ou qualquer um deles, acharam apropriado pôr de lado, por contradição ou exclusão, como não
verdadeira ou indigna de confiança, pode bem ser vista como suspeita. Ou acontecimentos que não
podiam, nas circunstâncias dadas e conhecidas, ter realmente acontecido da maneira e no ambiente
descritos podem com segurança ser antes atribuídos à fantasia do que à tradição sóbria.
Seja como for, não é tarefa fácil determinar qual das tradições que encontrou expressão nos Evangelhos
tem o aval de todos os evangelistas: as discrepâncias são muitas e variadas, por momentos, dizendo
respeito a problemas tão fundamentais que, à primeira vista, poder-se-ia pensar que os evangelistas
falaram de acontecimentos e personalidades totalmente diversos. Dir-se-ia que o Jesus que está em Marcos
não é a mesma pessoa que o Jesus que está em João: "Falam diferentemente, agem diferentemente,
morrem diferentemente."
Para nossos fins, não há nada tão relevante quanto as tradições em torno dos acontecimentos que
conduziram à crucificação, mas é exatamente nesse contexto que os Evangelhos estão cheios de
contradições, e muitas das incongruências não se prestam a uma reconciliação. Confrontam-nos as opções
de um julgamento noturno perante o Sinédrio (Marcos 14,55-64 e Mateus 26,59-66), um julgamento ao
romper do dia (Lucas 22,66-71) e nenhum julgamento diante do Sinédrio João 18,19-21; e há diversas
variações quanto aos detalhes do que se passou diante de Pilatos. O dilema só se tornaria menos fácil se,
como foi sugerido, procurássemos num dos Evangelhos relatos provenientes de outro; ³¹ na verdade, isto
não seria legítimo, e causaria antes confusão do que esclarecimento. Os exegetas bíblicos e os críticos do
texto dizem que podem joeirar aquilo que é fidedigno daquilo que não o é, ou o que é mais do que é
menos, aceitando uma versão como original e autêntica, pondo de lado a outra como corrupção e
interpolação -um método que não está aberto ao leitor leigo não tendencioso nem é por ele invejado,
porque este está, a priori, inteiramente disposto a conferir a todas as versões que encontra o mesmo crédito
e uma oportunidade imparcial de autenticidade. Nem pode ele ser grandemente encorajado pelos
resultados da exegese crítica, vendo que, às inconsistências originais nos relatos do Evangelho, são
acrescentadas as que provêm das diferenças de opinião, demasiadas vezes irreconciliáveis, entre os
exegetas. De preferência a confiar nessa ou em outra teoria exegética, invocaremos o benefício da
condição de leigo e procuraremos considerar cada versão de acordo com seus próprios méritos, não
deixando de considerar qualquer uma delas, por mais que possa ter sido refutada.
Há, é certo, um bom número de tradições que tiveram o consenso de todos os evangelistas, sendo por isso
aprovadas no nosso primeiro teste. Daquelas que nos interessam diretamente, as seguintes gozam dessa
unanimidade: Jesus foi preso à noite; alguns judeus estavam presentes no momento da prisão e dela
participaram; depois da prisão, ele foi levado à casa do sumo sacerdote; na manhã seguinte, os judeus o
apresentaram a Pôncio Pilatos; à pergunta de Pilatos "És tu o rei dos judeus?", ele replicou: "Tu o dizes"
(ou "Tu dizes que eu sou rei"); Pilatos o "entregou" para ser crucificado; ele foi crucificado, juntamente
com dois outros condenados, por soldados romanos; e se colocou um título na cruz com as palavras "Rei
dos Judeus". O nosso exame mostra que essas tradições também satisfazem nosso segundo critério de
prova: o que elas contam é objetivamente razoável porque, nas circunstâncias e nas condições que
prevaleciam tais como as conhecemos, o fato podia, na realidade, ter ocorrido. Nesse particular, elas
diferem de outras tradições sobre as quais os evangelistas também são unânimes: mostrar-se-á que os
episódios de Judas Iscariote e de Barrabás, por exemplo, não poderiam ter acontecido da forma descrita,
não podendo, portanto, ser aceitos como "objetivamente razoáveis". Partiremos, portanto, da premissa de
que acontecimentos descritos por todos os evangelistas substancialmente da mesma maneira e que, nas
circunstâncias e nas condições que prevaleciam tais como as conhecemos através de fontes independentes
e indubitáveis, podem perfeitamente ter ocorrido dessa maneira, assim ocorreram de fato. A estrutura
-7-
assim moldada terá de ser transcrita com tantos detalhes quanto o material original de que dispomos possa
proporcionar. O fato de que, nas circunstâncias como as conhecemos, qualquer desses acontecimentos
relatados pode concebivelmente ter acontecido não significa necessariamente que, de fato, aconteceu. Não
nos preocupamos tanto com a historicidade dos acontecimentos quanto com o valor da tradição como
prova. Uma vez aceita como testemunho potencialmente válido, cada tradição será o ponto a partir do qual
poderemos avançar em nossa investigação, o núcleo em torno do qual a história, potencialmente
verdadeira terá de ser recontada. Por exemplo, o fato de Jesus ter sido preso, desde que aceito como um
ponto de partida praticamente incontestado, fará logo que se pergunte por quem, por ordem de quem e
com que finalidade. Ou o de que ele teria sido levado à casa do sumo sacerdote, embora o aceitemos, é em
si mesmo inconclusivo até que saibamos por que e o que realmente aconteceu, ou poderia ter acontecido
lá, antes que fosse entregue às mãos do governador romano. Convém ainda evitar nos envolvermos na
discussão, que data de séculos, quanto à historicidade ou não do próprio Jesus, de seu ministério ou de
quaisquer episódios particulares da sua vida ou da vida de Pôncio Pilatos e do governo deste na Judéia. Os
defensores judeus da não-historicidade têm, por vezes, tentado anular não apenas a escatologia cristã, mas
a cristologia como um todo, mediante o simples expediente de negar que Jesus tenha jamais existido ou
tenha sido crucificado. Protagonistas não-judeus da teoria têm citado a incerteza inerente da tradição do
Evangelho e a ausência de qualquer prova externa.³² Mas Rousseau já advertia que a negação da
historicidade de Jesus não passa de relutância em lidar com as dificuldades suscitadas pelas
inconsistências do Evangelho, e não uma solução para elas; além disso, "coisas como estas não são apenas
inventadas". É possível concordar com um grande erudito protestante contemporâneo que lamentava que
"não podemos conhecer o caráter de Jesus, sua vida ou sua personalidade; não se pode considerar qualquer
de suas palavras como puramente autêntica", tendo confessado que, em sua opinião, "podemos resumir o
que sabemos da vida e da personalidade de Jesus como sendo simplesmente nada', afirmando contudo, de
maneira inequívoca, que "não há fundamento para qualquer dúvida quanto à existência real de Jesus; na
verdade, a idéia de sua historicidade não precisa ser defendida". A crença na historicidade de Jesus não
contradiz a aceitação das imperfeições e mesmo da falta de valor de grande parte do material de fonte,
assim como a crença em sua não-historicidade não é uma conseqüência necessária ou inescapável da
conclusão de que as fontes com que lidamos não são autênticas ou fidedignas. Transparecerá que, por mais
crítica e cética que seja a abordagem das fontes, . o que emerge da análise dessas tradições, que se verifica
serem objetivamente prováveis e portanto potencialmente válidas, é mais que suficiente para fazer Jesus
aparecer -mesmo àqueles com suas predileções emocionais ou religiosas -como uma personalidade muito
viva, e digna de ser admirada.
Seremos forçados a emitir uma opinião negativa quanto à historicidade de certos acontecimentos,
mostrando que nunca poderiam ter acontecido tal como foram relatados. Em nosso critério de
"razoabilidade objetiva" está implícita uma negação do que objetivamente não é razoável e, por isso, não
se pode acreditar: desde que possa ser determinado que a descrição ou a interpretação de um certo
acontecimento diverge ou discorda de fatos satisfatoriamente estabelecidos, ou da tendência. Natural e
lógica da maneira contemporânea de raciocinar, ou de dados conhecidos de conveniências e necessidades
religiosas ou políticas, não se deveria, em boa razão e equidade, presumir que, embora assim retratados
nos relatos do Evangelhos, as pessoas na verdade comportaram-se anormal e não - naturalmente contra o
seu maior interesse. Se partirmos da premissa de que os relatos foram feitos com preconceitos e
tendências, será apenas verificando cada detalhe contra o contexto da condição de vida na época, inclusive
leis e costumes tais como os conhecemos de fontes independentes, que poderemos ser bem-sucedidos em
separar o que é fidedigno do que é incerto, o que é aceitável do que é inadmissível. É verdade que esse
exame e a conseqüente rejeição de um relato particular podem implicar, ao mesmo tempo, a aceitação de
tradições que se verifica serem potencialmente válidas e na rejeição, como coisa pouco razoável, de
interpretações aparentemente autênticas delas. Se, por exemplo, aceitamos a tradição de que Jesus, depois
da prisão, foi levado à casa do sumo sacerdote, poderemos ter de rejeitar o relato do Evangelho quanto ao
motivo pelo qual ele foi levado até lá. Mas, no que diz respeito aos motivos e intenções por trás de
atitudes abertas, as interpretações -inclusive as de historiadores formados -estão sempre sujeitas à dúvida e
à revisão, sendo, na realidade, sempre abordadas interrogativamente por críticos que possuem seus
próprios meios de informação. E, quando se sabe que um relato foi escrito com algum propósito
tendencioso, essas interpretações são altamente suspeitas em qualquer caso, por mais exato que seja o
-8-
relato dos acontecimentos aparentes. Se isto se aplica à história contemporânea, deve-se aplicar ainda mais
a acontecimentos descri'- tos depois de decorrido meio século; e se se aplica à história escrita em nossos
próprios dias, contando o relator com todo o moderno aparato de pesquisa, deve com maior razão ser
aplicado à "história" escrita há dois mil anos. Mesmo quando uma interpretação de intenção ou de motivo
se fundava ela própria em alguma tradição, quer dizer, mesmo quando os evangelistas contavam com uma
tradição para nela se apoiarem não apenas no que diz respeito à ocorrência de um acontecimento, mas
também relativamente ao que levou os atores de um acontecimento a agirem como fizeram, o elemento
interpretativo da tradição pode legitimamente ser abandonado, embora não se abandone o elemento
factual. Pondo-se de lado opiniões e conclusões pessoais, também as tradições podem buscar sua origem e
idéias preconcebidas e em orientações tendenciosas. Para descobrir e compreender o verdadeiro
significado e a verdadeira importância de acontecimentos descritos, e as considerações e os objetivos que
estavam por trás deles, é melhor considerar antes os atores do que os relatores. Orgulhamo-nos de saber
hoje em dia muito mais sobre os atores do que sabiam os relatores: possuímos provas neutras e críveis de
suas leis e costumes, da maneira pela qual pensavam e reagiam, de sua luta interna, de suas aspirações e
frustrações políticas, de seus envolvimentos religiosos e intelectuais. É à luz desse conhecimento que
tentaremos compreender sua conduta e desnudar seus motivos e chegar assim a uma reconstrução dos
acontecimentos como, nas circunstâncias e com tais dramatis personae, eles podiam bem ter acontecido.
Isso pode, é claro, equivaler a uma conclusão de que, uma vez que só podiam ter acontecido de uma certa
forma, não podiam ter acontecido de qualquer outra e que, se aconteceram, foi apenas daquela forma.
É privilégio do advogado nunca aceitar como certo um fato relatado; correta ou erroneamente, ele se sente
compelido a mergulhar nas provas, verificar sua fonte e validade, e assegurar-se de sua credibilidade antes
de julgar que o fato está estabelecido satisfatoriamente. Nem a reputação de historiadores e eruditos
ilustres e antigos, nem a autoridade e o caráter sacrossanto da Escritura pode desviá-lo de sua tarefa de
ponderar e avaliar, por seus méritos, cada fragmento de prova. Não há qualquer desrespeito numa
investigação dessa natureza: mesmo o maior gênio, mesmo o mais santo dos homens, quando empreende
interpretar fatos relatados, provoca implicitamente uma avaliação crítica de suas opiniões. Foi apenas
pelos canonizadores posteriores que alguns desses livros foram elevados à categoria de indisputabilidade e
intocabilidade. A verdadeira erudição -inclusive a verdadeira erudição teológica -sempre se considerou
intitulada, e obrigada por dever, a explorar o fundamento factual da tradição da Escritura, sem temer a
possibilidade de que suas conclusões pudessem entrar em conflito com os textos bíblicos. É essa, na
verdade, a posição que a teologia cristã moderna assumiu com respeito à vida e à morte de Jesus, tal como
relatadas nos Evangelhos. E a coragem e a imaginação demonstradas por alguns dos eminentes teólogos
do nosso tempo para uma revisão de erros inveterados e de preconceitos que surgiram de interpretações
mal concebidas do Evangelho não figuram entre os menores motivos que me animaram a embarcar, do
ponto de vista do advogado e com os instrumentos de um advogado, numa investigação dos aspectos
daquela vida e morte que se tornaram história legal.

PARTE UM

Dramatis Personae (As Personagens)

OS ROMANOS

Jesus era uma criança quando Rei Herodes, por vezes chamado o Grande, morreu ( 4 a.C.). Seja ou não
verdade que, pouco antes, ele dera ordens para que todas as crianças "até dois anos e abaixo dessa idade"
em Belém fossem mortas (Mateus 2,16), e seja ou não verdade que os pais de Jesus tiveram de fugir para
0 Egito a fim de escapar de sua raiva e crueldade (2,13-14), não se discute que sua morte, como ele
próprio previra,l foi motivo de imensa alegria e alívio para o povo.² Herodes fora um monarca absoluto, de
-9-
perversidade desenfreada, cujas perseguições e assassinatos não se limitaram aos seus inimigos políticos,
reais ou imaginários, mas se estenderam a todos que eram suspeitos de não gostar dele ou de não lhe
obedecer, sem excetuar seus parentes mais próximos. O que os judeus haviam ressentido, talvez mais do
que sua selvageria arbitrária, fora sua flagrante transgressão da lei e da tradição e suas violações da
competência dos tribunais judeus e das instituições estabelecidas.³ Com sua morte, os judeus puderam
novamente respirar com liberdade, e os fugitivos regressaram com novas esperanças (Mateus 2,19-21).
Mas estava reservado um amargo desapontamento. Herodes, embora de ascendência iduméia, fora um
judeu e um rei judeu - ainda que por graça do imperador romano, que era o suserano da Judéia. Uma coisa
era ser governado por um rei judeu, mesmo sabendo-se perfeitamente bem, o que era lembrado com
demasiada freqüência, que ele devia tributo a Roma e era seu vassalo, outra coisa é ser governado por um
pagão, um inimigo alienígena, um implacável conquistador estrangeiro. Quando surgiu entre os filhos de
Herodes um litígio pela sucessão, o imperador decidiu contentar cada um com territórios ao norte e a leste,
mas para a Judéia propriamente ele enviou um procurador romano, um agente imperial ou comissário,
plenamente habilitado a administrar a província e a governá-la em lugar do imperador.
A província da Judéia em geral e a cidade de Jerusalém em particular eram notórias em Roma como focos
de insurreição e revolta. Provavelmente não havia outro lugar no vasto império onde os romanos fossem
tão profundamente odiados e tão implacavelmente desprezados quanto em Jerusalém. Foi corretamente
observado que esses sentimentos não se fundavam apenas em motivação patriótica: suas raízes verdadeiras
eram religiosas. Para os judeus, aquela era a terra santa, e Jerusalém ainda mais santa, e o Templo de
Jerusalém o que havia de mais sagrado: a presença e o fato de que ali governava o pagão abominável eram
uma profanação e uma mácula, um indesculpável insulto ao Deus invisível, mas sempre presente, que
escolhera aquele templo para seu próprio santuário. Os judeus nunca esconderam suas susceptibilidades
afrontadas, e os imperadores sabiam bem o tipo de povo com que tinham de lidar, um povo que, longe de
ser dócil ao reconhecimento do imperador como um deus , encarnado, ou pelo menos à crença no antigo e
incontestável panteão de Roma, aferrava-se ao invisível e ilusório fantasma de um Deus com uma lealdade
e persistência que excluíam a mínima submissão a seus senhores romanos de direito.
Quando, depois da morte de Herodes, o imperador deixou a guarnição de Jerusalém a cargo de um
comandante romano, os judeus pensaram que chegara o momento, não tendo sido nomeado ainda nenhum
novo governador, "de recuperar a liberdade de seus país". Ergueram-se contra o comandante e foram tão
violentos e corajosos em combate que estavam a ponto de derrotar a guarnição e expulsá-la, quando
alguns de seus oficiais incendiaram o Templo, milhares morreram no incêndio e o resto foi forçado a
render-se6. Varo, governador da Síria, trouxe reforços para suprimir outros levantes; diz-se que ele
ordenou a crucificação de dois mil dos instigadores da rebelião.
Massacres por atacado desse tipo não se prestavam a aumentar a estima local pelas forças romanas de
ocupação ou pelo governo romano. O povo estava desesperado e amargurado, e o imperador sabia que a
revolta podia voltar a ocorrer a qualquer momento. Estando vitalmente interessado -e não apenas por
motivo de prestígio imperial - em manter a Judéia sob domínio romano, e tendo manifestamente sido
incapaz de encontrar, seja entre os filhos de Herodes ou em outra parte, uma opção judia para um rei de
aparência em que pudesse confiar para manter a paz e a ordem e sustentar e promover interesses romanos,
ele naturalmente procurou entre os seus generais e administradores um homem forte a quem pudesse ser
atribuído com segurança o controle daquele povo pernicioso.
Durante os trinta anos seguintes, os governadores vieram e se foram. Longo ou breve que fosse o tempo
que governaram, todos acharam que seu maior dever era esmagar implacavelmente qualquer possível
oposição a Roma e, mais particularmente, qualquer manifestação de revolta ou resistência violentas. E
tinham em comum outro propósito importante, embora pessoal: extrair de sua permanência na Judéia tanta
riqueza quanto pudessem. É verdade que, sob esse aspecto, a Judéia presumivelmente não diferia de outras
províncias romanas, e o apetite que tinham os governadores de enriquecer era o mesmo em qualquer lugar;
mas a população na Judéia pode ter sido menos rica e, por isso, muito mais sensível a extorsões. Em geral,
os impostos não tornam a autoridade querida do povo; mas a taxação imposta por um ocupante
estrangeiro, que não dá ao contribuinte qualquer consideração tangível, além da opressão e do desprezo, é
o melhor meio de insuflar-lhe um rancor duradouro. Tampouco os métodos de taxação romana eram tais
que mitigassem o mal: um homem não podia saber de antemão o que teria de pagar, pois não havia lei ou
decreto que o determinasse; se, pelo menos, ele soubesse que uso seria feito do seu dinheiro, poderia
- 10 -
talvez ter encarado a taxação como uma incidência normal e inevitável do governo, por mais que este
fosse ditatorial e detestável. Muitos governadores romanos da Judéia cobravam impostos em montantes
indeterminados, e a taxação assumia proporções de confisco. Os cobradores de impostos romanos ou por
eles designados muitas vezes deixavam de diferenciar entre o fisco imperial e os seus bolsos particulares,
cobrando mais "do que o estipulado" (Lucas 3,13). Cidadãos dos quais já se havia tirado todo o dinheiro
que possuíam eram processados e presos como devedores faltosos. A denominação de cobrador de
impostos tornou-se merecidamente sinônimo de ladrão e chantagista: nenhum malfeitor podia ter sido
mais perigoso ou desprezível do que esses ladrões oficiais que, gozando de poder e imunidade
governamentais, tiravam uma desforra dupla e tripla de suas vitimas por estas os odiarem e desprezarem.
A atitude dos judeus para com aqueles que cobravam impostos para os romanos é sintomática. Tanto o Tal
mude como o Novo Testamento autorizam-nos a dizer que eram encarados como "pecadores" com os
quais os judeus que se respeitavam como fariseus não se sentavam à mesa nem se comunicavam de
qualquer outra forma: eles são os "publicanos" de quem Jesus disse que são "doentes" (Mateus 9,12). Um
judeu que colaborasse com os romanos, cobrando, por exemplo, impostos para eles, seria considerado um
malfeitor e um paria, excluído da sociedade judia (da "reunião na mesa"), desqualificado como testemunha
num tribunal;12 até os membros de sua família seriam suspeitos, se não o impedissem de se degradar ao
ponto de tornar-se um lacaio de Roma.13 Essa espécie de ostracismo foi posta em vigor não apenas 110
caso de colaboradores judeus, mas também, e muito mais rigorosamente, no caso dos próprios romanos. A
história que, no Evangelho segundo -, João, conta que os judeus não entravam no pretório com medo de se
contaminarem (18,28), ainda que, como se verá, seja irrelevante no contexto, esclarece a aversão que
prevalecia entre os judeus de entrarem numa casa romana. Em outro ponto, contam-nos que Pedro entrou
na casa de Cornélio, um capitão romano, e, embora Cornélio seja qualificado de um homem "piedoso e
temente a Deus com toda a sua casa, e que fazia muitas esmolas ao povo e de contínll0 orava a Deus"
(Atos 10,2), contudo Pedro disse: "Bem sabeis o quanto é ilegal a um judeu ajuntar-se ou mesmo
aproximar-se de alguém de outra nação" (10,28), e julgou necessário explicar por que lhe pareceu correto
quebrar a lei. Não se trata apenas de que o romano seja "impuro" -sendo-lhe ininteligíveis às leis
complicadas e minuciosas da purificação; trata-se de que ele é a encarnação viva da idolatria e da
depravação, do materialismo e da sensualidade, do poder e da tirania -em resumo, de tudo o que repugna
àquilo que o judaísmo sustenta. Não apenas um judeu não penetraria na moradia de un1 romano; ele nem
sequer o tocaria, ou mesmo lhe apertaria a mão. A observação de Tácito de que os judeus "confrontam o
resto do mundo com o ódio que se reserva aos inimigos" reflete corretamente sua atitude para com os
romanos; e quando ele prossegue dizendo que "para os judeus são profanas todas as coisas que temos
como sagradas", ele está exprimindo com precisão o sentimento hostil dos judeus a respeito das coisas
romanas. Quando Tácito escreveu, toda a resistência judia havia sido finalmente vencida e nada restava da
organização estatal dos judeus; e seu comportamento ante os vencedores estando longe de ser amistoso ou
conciliatório, os judeus de além-mar certamente se afastariam dos romanos da melhor maneira que
podiam; contudo, tudo isso era pouco em comparação com a repugnância aberta com que confrontavam o
inimigo em sua própria terra.
Não se configura uma situação simples ou agradável quando um dignitário romano, que representa o
Império num país ocupado, vê-se não apenas detestado e desprezado, mas afastado e evitado como se
fosse portador de uma doença ruim ou contagiosa. Oficiais como Cornélio, tementes a Deus e
benevolentes, devem ter sido exceções raras: mas mesmo a estes aplicava-se a "lei" que proibia qualquer
confraternização. Cornélio parece ter aceito a proibição com boa vontade; mas também sob esse aspecto
ele deve ter sido único. Do que sabemos dos governadores romanos da Judéia em geral e de Pôncio Pilatos
em particular, deve-se inferir que eles reagiam à impertinência insultuosa e ofensiva dos nativos bárbaros
com fúria cega. E as coisas se agravavam por terem consciência de que esse ódio e desprezo judeus não
eram uma represália dos vencidos à presença e provocação do opressor, mas uma questão de direito e de
política, tendo como fonte um insolente complexo de superioridade, e que era sistematicamente
alimentada como um requisito de religião verdadeira e de pureza pessoal. Um governador romano que
encarasse esse comportamento com indiferença não seria humano, e não se pode dizer que tal cargo na
Judéia se distinguiu pela magnanimidade do seu ocupante.
Pôncio Pilatos tornou-se governador da Judéia no ano de 25. A primeira coisa que fez foi, nas palavras de
Josefo, "demonstrar seu desprezo pelas leis judias". É um preceito fundamental do Decálogo que "não
- 11 -
farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na
terra:" (Êxodo 20,4; Deuteronômio 5,8), mas um antigo costume romano consistia em representar a
imagem do imperador deificado, gravada, esculpida ou pintada, em monumentos e prédios, em bandeiras e
insígnias militares. Em conseqüência, o desdenhoso Pilatos fez com que a imagem do imperador fosse
colocada em todos os estandartes e introduzida na cidade santa de Jerusalém. Ele tinha plena consciência
do perigo -uma previsível retaliação judia a uma provocação tão grosseira; talvez fossem previsões de tal
contingência o que havia refreado seus predecessores. Mas Pilatos era astucioso: ele não exporia seus
soldados à violência aberta de parte de uma população enraivecida; introduziria as imagens
clandestinamente à noite e as instalaria nas ruas, o que faria com que, de manhã, os orgulhosos judeus
encontrassem sua sagrada capital ornamentada com imagens imperiais profanas, concordassem ou não;
seus soldados estariam seguros, de volta a seus alojamentos. Além do rancor dessa manobra, Pilatos pode
ter achado oportuno dar uma lição àquele povo teimoso. O que fora bom e bem compreendido pela pletora
de nações submetidas ao domínio romano, que -não menos do que os judeus -tinham suas, próprias
divindades e, fidelidades, mas ainda assim, nolentes valentes, haviam aceito as insígnias imperiais em suas
cidades não menos sagradas, era bom e devia ser bem compreendido pelos judeus. Pilatos não admitiria
qualquer desatino da parte deles. Confrontá-los-ia com um fait accampli que os convenceria de que uma
nova ordem reinaria em suas cidades e da importância do governador, que seria de bom conselho honrar e
obedecer. Podemos presumir que os legionários, de volta a seus alojamentos, mantiveram-se alertas para o
caso de uma insurreição na madrugada. Seja porque os judeus, compreendendo qL1e os soldados estavam
prontos a golpear sem misericórdia, desejavam evitar derramamento de sangue, seja porque Pilatos era um
novo governador, ainda desconhecido, e queriam lhe dar uma oportunidade e argumentar antes de cortar
relações, a verdade é que, por mais vexados e ultrajados que tivessem ficado, não se registrou qualquer
desordem. Josefo conta que grandes massas, de Jerusalém e da área rural que a circundava, marcharam
para Cesaréia, onde o governador vivia. A viagem deve ter levado vários dias, não podendo haver muita
dúvida de que, provindas das cidades e aldeias no caminho, centenas de pessoas juntaram-se à marcha, o
que fez com que ao fim fossem tantas as multidões que só se encontrou espaço para elas no amplo estádio
de Cesaréia, sendo ali que, por ordem de Pilatos, elas foram agrupadas. Imploraram a Pilatos que retirasse
as insígnias imperiais de Jerusalém, mas ele recusou, "porque isto seria um insulto ao imperador". Eles
não quiseram, no entanto, aceitar uma resposta negativa, e por seis dias e seis noites permaneceram no
lugar, sem se moverem. No sétimo dia, "Pilatos deu ordem a seus soldados para que se armassem e se
escondessem por trás (ou por baixo) da plataforma do estádio, e mandou-os cercar os judeus. Ameaçou
então os judeus de que os faria dizimar, a menos que partissem de imediato. Diante disso, estes se jogaram
ao chão, desnudaram os peitos e declararam que preferiam morrer a concordar com a violação de suas leis
sábias e justas".19 Em outra versão, Pilatos pediu-lhes que não partissem logo, mas que, de boa vontade,
aceitassem as imagens do imperador em suas cidades; e eles, desnudando os peitos, gritaram que "antes se
deixariam matar a quebrarem suas leis".²º As duas versões parecem complementares: os judeus não
partiriam nem concordariam que se montassem as insígnias em suas cidades. Embora não estivessem
armados, e Pilatos nada tivesse a temer deles para si ou para seus soldados, ou possivelmente por causa
disso, não deu qualquer ordem para que fosse executada sua ameaça, ordenando que suas tropas se
retirassem. Josefo conta que "Pilatos não pôde deixar de admirar tal firmeza na observância da lei, dando
ordem para que os estandartes fossem levados de volta de Jerusalém para Cesaréia".²¹
Observou-se corretamente que essa passagem em Josefo é muito prejudicada por objetivos apologéticos:
ele buscou colocar tanto o governador romano como o seu próprio povo -o judeu -sob a mais favorável
das luzes diante de seus leitores romanos.²² É surpreendente que os judeus, que normalmente não
refreavam as insurreições espontâneas e violentas, desde que feridos seus sentimentos religiosos,
organizassem deliberadamente uma bem ordenada e bem comportada demonstração de massa e que
milhares marchassem para a distante Cesaréia em protesto pacífico para parlamentar com o governador. E
não é menos surpreendente que Pilatos, tendo ido ao ponto de planejar uma introdução noturna das
insígnias e despachar estandartes e soldados para Jerusalém, e depois de ver seu plano lograr êxito,
sucumbisse subitamente diante do espetáculo da "constância" na observação da lei judaica e cedesse às
exigências dos judeus: fora essa mesma "constância", apelidada "obstinação teimo- sa", que primeiro o
levara a lhes dar uma lição. A essa altura aquilo já não era novidade para ele, e não faz sentido que de
repente esse comportamento o impressionasse de maneira tão favorável. Pode bem ter acontecido que
- 12 -
Josefo não nos tenha contado toda a história: talvez tenham ocorrido perturbações em Jerusalém, tendo as
tropas romanas se dado mal; talvez, informando Roma e pedindo instruções, tenha sido dito a Pilatos que,
pelo momento, não deixa~se chegar a extremos os choques com os nativos acerca de sua religião
ancestral. Em qualquer caso, o fato de que o primeiro confronto real entre o novo governador e os judeus
tenha terminado com a derrota daquele e a vitória destes só pode ter exacerbado a aversão que Pilatos lhes
devotava, agravando-se agora a antipatia com um sentimento de frustração e fúria.
No que diz respeito aos judeus, os organizadores da marcha para Cesaréia teriam certamente sabido que
ela poderia implicar perigos graves e até ser encarada como uma rebelião aberta e patrocinada
oficialmente. No caso, eles mostraram ter razão em sua idéia de que, nos primeiros meses de seu governo,
Pilatos provavelmente não se envolveria em embaraçosos massacres de manifestantes pacíficos ou que
receberia instruções de Roma para refrear-se. Podemos imaginar que os manifestantes não ficaram menos
atônitos com o curso rápido e fortuito dos acontecimentos do que seus líderes em Jerusalém, sendo
provável que o êxito tenha inspirado a adoção de métodos similares numa situação comparavelmente
difícil, quinze anos mais tarde, ²³ novamente com um efeito eventual. O fato de que os judeus se viram
envolvidos na mesma espécie de perturbação sob governadores subseqüentes mostra apenas que o fracasso
individual de Pilatos não impediu seus sucessores de voltarem a tentar, não apenas instalando as insígnias
imperiais nas ruas ou nos muros da cidade, mas até entronizando o busto do imperador no próprio Templo.
Algumas antigas fontes afirmam que o próprio Pilatos colocara um busto de César no Templo, mas essas
afirmações não são corroboradas e fundam-se evidentemente em "reminiscência inexata".
Quando Pilatos decidiu dotar Jerusalém de um suprimento extra de água e procurou meios de financiá-lo,
voltou-se, como coisa natural, para o tesouro do Templo - não por meio de negociações com seus
guardiões em torno de contribuições ou votos voluntários ou quase voluntários, mas mediante um
seqüestro autoritário. É quase supérfluo dizer que os judeus se revoltaram ou, na linguagem delicada de
Josefo, fitaram um tanto "descontentes", e "milhares de pessoas correram ao mesmo tempo e, gritando,
exigiram que ele se abstivesse". Pilatos "enviou então um forte destacamento de soldados, disfarçados de
judeus, com bastões ocultos nas roupas, para um lugar onde podiam facilmente cercar os judeus". Como
os judeus se recusassem a se dispersar e passassem a injuriar os romanos, Pilatos "fez aos soldados um
sinal pré-combinado e estes 'avançaram sobre os cidadãos pacíficos, assim como sobre os insurgentes, de
maneira muito mais selvagem do que pretendera Pilatos. Mas os judeus nem por isso abandonaram sua
teimosia e, como não tinham armas, não puderam se defender contra soldados armados, e muitos deles
foram mortos, e muitos outros levados feridos. Assim, foi suprimida essa rebelião". Josefo relata que "o
choque produzido pelo destino horrível das baixas silenciou o povo".
Josefo não diz por que Pilatos preferiu que seus soldados se misturassem disfarçados ao povo a suprimir o
levante aberta e francamente. Há indícios de que ele não tinha em mente um tratamento tão selvagem,
tendo sido proposta a teoria de que, armando as tropas com bastões e não com espadas, ele tenha pensado
antes numa ação de polícia do que numa ação militar, não querendo derramamento de sangue. Inclino-me
a pensar que o seu plano foi puramente estratégico: numa confrontação direta com uma multidão de
milhares de pessoas, seria necessária uma força de repressão muito mais numerosa do que se houvesse
uma ação de surpresa partindo do seio da massa, e o que se seguiu mostrou que ele tinha razão. É digno de
nota que Pilatos teve de vestir seus homens como judeus: para um romano, era de fato perigoso misturar-
se aos judeus. Mas mesmo esse subterfúgio, por vergonhoso que fosse para um procurador romano, era a
seu ver um meio oportuno, desde que só com ele pudesse lograr seu propósito de debelar em definitivo a
rebelião e não sofrer baixas romanas.
Há nos Evangelhos uma pequena prova de um terceiro choque importante entre Pilatos e os judeus,
também ligado com o Templo. Quando Jesus estava em Jerusalém, "chegaram alguns que lhe falaram a
respeito dos galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os sacrifícios que os mesmos realizavam" (Lucas
13,1). Parece que Pilatos decretara a morte dos galileus que tinham ido a Jerusalém para as ofertas do
festival; mas não há indicação quanto ao motivo. Seria lógico presumir que esses galileus eram zelotas
rebeldes; de fato, em fontes cristãs posteriores encontramos "Galileu" como um sinônimo de zelota;³°
pode ter havido uma insurreição em Jerusalém durante o festival, que Pilatos decidiu abafar,
surpreendendo os devotos em suas preces no Templo e massacrando-os ali mesmo.³¹
No mesmo contexto, Jesus fala "daqueles dezoito, sobre os quais desabou a torre de Siloé e os matou"
(Lucas 13,4), palavras enigmáticas que entendidas como referindo à construção do aqueduto para o
- 13 -
suprimento de água, quando tal acidente pode ter acontecido.³² Pretendeu-se que o incidente é a rebelião
relatada por Josefo sobre tal projeto³³ mas a teoria parece insustentável por causa não apenas da enorme
disparidade no número de vítimas, mas também da diferença de localidades. Tampouco há bastante
fundamento para se descartar o relato do Evangelho por ter confundido Pilatos com outro governador em
cujo mandato pode ter ocorrido um acidente similar. É muito mais plausível que as palavras, lidas em seu
contexto, referem-se a outro ataque brutal empreendido por ordens de Pilatos em que, novamente, pessoas
inocentes foram mortas de forma injustificada.
Finalmente, Pilatos e os judeus parecem ter entrado em colisão numa escala menor quando o governador
romano, no que foram ao palácio de Herodes em Jerusalém, colocou alguns "escudos dourados" sem a
imagem do imperador, mas apenas uma breve inscrição com o seu nome e o da pessoa que lhe dedicara os
escudos. Poder-se-ia supor que tais objetos seriam considerados inócuos até pelos mais pedantes dos
legalistas judeus. Mas manifestamente isso não se passou, e uma delegação judia, conduzida por quatro
príncipes herodianos, requereu a Pilatos que os retirasse, alegando que infringiam costumes nacionais que
outros reis e imperadores haviam respeitado. Quando Pilatos se mostra inflexível, os judeus nos são
mostrados torturados entre sua lealdade ao imperador e a obediência à religião. Eles fazem a Pilatos um
apelo para que não cause uma revolta, nem rompa a paz, nem use Tibério como uma desculpa para lhes
insultar a nação. Desafiam Pilatos a mostrar com que autoridade ele adotou a medida e ameaçam recorrer
ao imperador, que significativamente chamam de seu senhor. Diz-se que tal ameaça perturbou Pilatos
profundamente porque ele temia que seu desgoverno se tornaria assim conhecido de Tibério, que não
toleraria tal ação.
Em contradição com sua suposta indulgência na questão das insígnias imperiais, Pilatos não teria cedido.
Os judeus queixaram-se ao imperador e Tibério "teria sido tomado de raiva extrema" ao receber a queixa e
que escreveu a Pilatos condenando-o, da maneira mais aberta, por sua atrevida inovação". É altamente
improvável que o imperador interferisse assim no arbítrio do seu governador em assunto tão pouco
importante, e toda a história -que se diz ter sido contada numa carta do príncipe judeu Agripa ao
Imperador Gaio - parece ter sido transmitida por causa da observação que conclui: "que dessa maneira
notável fora mantida a tradicional política [romana] para Jerusalém." Gaio era o filho adotivo e sucessor
de Tibério, e seria muito natural que um príncipe vassalo lhe escrevesse lisonjas a respeito daquele
imperador; e Agripa estava, é claro, interessado em estabelecer que "a tradicional política romana para
Jerusalém" era generosa e indulgente, por mais implacável ou opressivo que um ou outro governador se
tivesse mostrado. Não que a política romana fosse assim tão generosa e indulgente; mas a conduta de
Pilatos nesse caso particular não demonstrou qualquer arbitrariedade incomum ou insultuosa. O palácio
herodiano em Jerusalém era um prédio secular, sem qualquer conotação religiosa. Depois da morte de
Herodes, serviu aos governadores romanos como residência em Jerusalém, não havendo motivo ostensivo
por que um governador nela não exibisse essas inocentes ornamentações, tipicamente romanas. Na
realidade, a objeção não teria nem poderia ter vindo das autoridades religiosas judias ou do público judeu:
nem umas nem outro poderiam ter ficado ofendidos pela colocação dos escudos, ou mesmo pela
residência do governador como tal. O fato de que a "delegação" ante Pilatos era "chefiada por quatro
príncipes herodianos" fornece a pista: o clã herodiano é que deve ter sentido a interferência na bela
fachada do palácio e, para induzir o governador a deixá-la intacta, recorreu, como argumentação, a leis e
costumes judeus: a tais argumentos, ou assim pensava o clã, o governador deveria prestar ouvidos; além
disso, ele não teria como verificar se eram exatas. O que o governador sabia era que, de todos os judeus,
apenas os príncipes herodianos tinham acesso à corte do imperador e influência nela. Se, no entanto, ele
lhes recusou a petição, é porque os devia detestar, como, aliás, o confirma a "inimizade" referida em Lucas
23,12.
Sabemos de fontes romanas que a política imperial para Jerusalém durante o reinado de Tibério estava
longe de ser generosa ou tolerante e que não havia amizade entre o imperador e os judeus. Tibério aboliu
"o culto judeu" e forçou todos os cidadãos adeptos dessa "fé supersticiosa" a queimar suas vestes
religiosas e outros acessórios. "Os judeus em idade militar foram deslocados para regiões insalubres, sob o
pretexto de serem incorporados ao exército; os demasiado velhos ou demasiado jovens para servir foram
expulsos da cidade e ameaçados com a escravidão, se desafiassem a ordem."39 A maneira pela qual isto se
ajustava ao caráter e pensamento do imperador é evidenciada pelos pronunciamentos dele ou por decretos
semelhantes contra outros cultos estrangeiros e contra astrólogos; os judeus não foram de forma alguma
- 14 -
singularizados. Fosse apresentada a Tibério uma queixa de que o governador teria menosprezado os
costumes judeus exibindo decorações romanas em sua residência oficial, longe de provocar em Tibério
uma "raiva extrema", isso teria provavelmente terminado com ele confiscando o palácio herodiano para o
governador e retirando aos queixosos os seus direitos. Era isso o que acontecia a "expoentes provinciais
espanhóis, gauleses, sírios e gregos" quando estes lhe proporcionavam o menor pretexto, a causa "mais
trivial e absurda", para se enriquecer, apropriando-se do que possuíam! O Se Tibério se distinguia em um
setor da aplicação da lei, era no crime de lesa-majestade (crimen laesae maiestatis), onde estava em causa
sua honra pessoal: um homem seria condenado à morte "por criticar qualquer coisa que o imperador tenha
jamais dito ou feito". Também era crime capital vestir túnicas que se assemelhassem às do imperador. O
mesmo ocorria com quem portasse um anelou moeda com sua imagem "numa privada ou num bordel". E
"o clímax se deu quando se passou a condenar à morte uma pessoa apenas por permitir que lhe fosse
votada uma homenagem pelo conselho de sua cidade natal no mesmo dia em que, no passado, haviam sido
votadas honrarias" ao imperador! Seu lema era: "Que me odeiem, desde que me temam!" E ele logrou um
êxito prodigioso nesse duplo objetivo.
Pôncio Pilatos era um leal servidor de seu imperador, e a política imperial não lhe era desconhecida.
Temos a autoridade de Fílon, tal como relatado por Eusébio, a nos informar que Sejano, o ministro todo-
poderoso da corte do imperador, tomara "medidas enérgicas para exterminar toda a raça judia"; presume-
se que, tendo em mente esse objetivo, ele convencera Tibério, ou seu predecessor, a enviar Pilatos como
governador à Judéia. Este era bastante resoluto, implacável e confiável para ser encarregado de uma
missão de tal natureza. Inteiramente à parte da política imperial para os judeus e o judaísmo, Pilatos
seguiu fielmente a política de Tibério quanto ao crime de lesa-majestade; se não dispomos de registros de
absurdos legais tão extravagantes como os que são atribuídos a seu patrão em pessoa, podemos com
segurança presumir que Pilatos não teria em qualquer hipótese ou circunstância sido indulgente no caso de
acusação do mais remoto desprezo pelo imperador ou de rebelião real ou planejada contra ele. Havia
abundantes precedentes, sanção expressa e implícita, para conferir aos estatutos relevantes a interpretação
mais ampla possível; e se o imperador em Roma julgasse correto, e considerasse necessário aplicar a lei
no crime de lesa-majestade com o mais extremo rigor e severidade, seu agente numa província distante,
com habitantes que notoriamente desafiavam o domínio romano e desprezavam o imperador, devia sentir-
se menos constrangido, e com mais razão, a proceder sem remorsos contra os provinciais suspeitos de tal
afronta.
Para essa espécie de tarefa Pilatos era eminentemente indicado. Fílon faz Agripa, em carta a Gaio, retratar
da seguinte forma a personalidade de Pilatos: ele era "naturalmente inflexível e implacável,,; cometia "atos
de corrupção, de insulto, de rapina, de ultrajes ao povo, de arrogância, assassinatos de vítimas inocentes e
da mais violenta selvageria". Podemos aceitar a opinião de que "o depoimento que Fílon dá sobre a
personalidade de Pilatos é o mais fidedigno que possuímos. Em primeiro lugar, como contemporâneo de
Pilatos, Fílon estava em melhor posição do que qualquer dos escritores que vieram depois para fazer uma
avaliação correta; em segundo lugar, o julgamento de Fílon não foi em nada influenciado pelo papel que
Pilatos representou na condenação de Jesus -na verdade, ele não parece ter tido conhecimento da
existência de Jesus". Temos então o arrogante e impiedoso imperador representado na Judéia por um
governador não menos impiedoso e arrogante: cada um deles se distinguia por "ultrajes ao povo" e
"selvageria constante e da mais violenta ", sendo que a aversão do imperador pelo culto judeu e por seus
seguidores era inteiramente partilhada por Pilatos. Se houve um servidor que executasse as instruções do
chefe de acordo com o espírito em que foram dadas, que executasse seus deveres odiosos como o chefe
gostaria de vê-los executados, este foi Pôncio Pilatos. E a corrupção, a rapina, e os assassinatos de
inocentes atribuídos a Pilatos também conformavam-se inteiramente ao estilo e à forma de seu imperador
e patrão.
Partimos, portanto, da premissa de que Pilatos foi escolhido para a procuradoria da Judéia,
presumivelmente por sejano, por causa das características de sua personalidade. Mas há aqueles que
pensam - e não há prova do contrário -que ele só adquiriu suas cruéis maneiras de proceder depois de
partir para a Judéia. Certamente ele não foi um governador ideal, escreve Eduard Meyer, "mas se nem seus
governantes jamais conseguiram enfrentar os judeus -cada medida que tomavam provocando crítica
imediata e resistência fanática -, um mero funcionário romano deve ter sido levado por eles ao mais
extremo desespero... Acrescente-se a isso os intermináveis.atos de violência de bandoleiros, sempre
- 15 -
encobertos por motivos religiosos e políticos. O fato de que os governadores por isso se desesperavam
ocasionalmente e atacavam com furor devia ser compreendido com muita facilidade".48 Não se deve
subestimar a imensa dificuldade de governar judeus contra a sua vontade, mas sugerimos que sua ira
selvagem e ataques insensatos ilustram antes a personalidade de Pilatos do que a de suas vítimas judias: e
faz-se isso com o conhecimento de que sempre há -e, particularmente, no caso da perseguição aos judeus
sempre houve -homens ansiosos e dispostos a incriminar não O assassino, mas o assassinado. Na verdade,
pode ter havido, no caso, uma inter-relação de causa e efeito: quanto mais opressivo o governador romano,
mais amotinados e inflexíveis os judeus; quanto mais teimosos e insurretos os judeus, menor o escrúpulo e
a misericórdia do governador. No momento sobre o qual escrevemos, Pilatos estava na Judéia fazia cinco
anos, tempo bastante suficiente para inteirar-se da espécie de povo que tinha de governar , e
provavelmente seus métodos cruéis tiveram freqüente oportunidade para se desenvolverem e emergirem.
Conforme Josefo nos conta, seu último ato como governador da Judéia foi o de interceptar com cavalaria e
infantaria uma procissão de samaritanos ao seu lugar sagrado, o Monte Gerizim, matando muitos, fazendo
outros, prisioneiros, e pondo o resto em fuga. Entre os prisioneiros, foram executados todos os de
influência e eminência. Após o que, o "alto conselho dos samaritanos" queixou-se ao governador da Síria,
protestando lealdade a Roma, mas acusando Pilatos de injustiça e crueldade. O governador da Síria enviou
outro procurador à Judéia e deu instruções a Pilatos para que retornasse a Roma e respondesse perante o
imperador às acusações. Pilatos "não ousou desobedecer as instruções recebidas", sendo a Judéia
considerada, dentro do Império, parte da Síria, mas, quando chegou a Roma, Tibério já não vivia mais.
Parece que com a morte de seu patrono e grande modelo de outrora -e sejano fora liquidado seis anos
antes pelo papel que desempenhou numa conspiração contra o trono - Pilatos caiu em desgraça, havendo
indicações de que não morreu de morte natural. Foi dito que Pilatos sempre recusava o que os judeus
desejavam dele e que sempre fazia o que lhe imploravam que não fizesse. Essa generalização encontra
uma contradição manifesta nos relatos do Evangelho, segundo os quais a crucificação de Jesus não passou
de uma concessão que ele fez aos judeus, por mais relutante que se o represente no ato de fazê-la. A versão
Joanina de que os judeus ameaçaram Pilatos -"Se soltas este, não és amigo de César" #Jo 19,12 -é
possivelmente uma tentativa de reconciliar uma rejeição original do pedido judeu com uma aceitação em
última instância. Tudo o que sabemos, no entanto, de Pilatos e de seu imperador atesta a certeza de que
qualquer judeu que ousasse lembrar ao governador seu dever para com o imperador, e dar sinais de um
patriotismo mais ardente e de uma fidelidade mais sólida do que as do próprio governador, não seria
deixado viver uma hora mais. Não apenas o governador encararia tal insolência como um grosseiro
desprezo dele próprio e de sua corte, mas, considerando a notória hostilidade dos judeus para com Roma e
seu imperador e a forma persistente e pela qual escarneciam do domínio e da suserania romana, no caso
deles, lembrar ao goven1ador seus deveres como funcionário imperial romano e como juiz equivalia a
mostrar também desprezo pelo imperador e, como tal, significava a pena de morte. A última coisa que um
judeu se atreveria ou precisaria fazer era aconselhar injustificadamente um governador romano de que lhe
cabia punir "todo aquele que fala contra César" #Jo 19,12. Todos os judeus falavam contra César -isso era
bem conhecido e inegável -, o que faz com que qualquer insinuação desse tipo seria um convite manifesto
a que também fossem punidos antes de mais nada. Alega-se algumas vezes que os judeus presentes e
ativos no julgamento de Jesus eram colaboradores de Roma; mas esses judeus eram muito raros, uma
pequena minoria que a comunidade judia em geral colocava no ostracismo e repudiava, enquanto os
Evangelhos representam os judeus no julgamento como «multidões" muito representativas, com
sacerdotes, anciãos e escribas no meio delas. Os Evangelhos sinópticos não põem essa espécie de
argumento «patriótico" em lábios judeus, e o fato de que o autor do Evangelho segundo João julga
adequado fazê-lo acentua tanto o seu embaraço diante da contradição não explicada entre as alegadas
intenções de Pilatos e sua ação quanto o seu engenho em ignorar a impossibilidade prática de que um
povo dominado assim se dirigisse a seu governador acreditado ou dele se queixasse ao imperador .54 A
única outra referência do Evangelho à atitude judia ante os romanos encontra-se, talvez, na troca de
perguntas e respostas quanto ao pagamento de tributo. Diz-se que certos «fariseus e herodianos" foram
enviados a Jesus, «para apanhá-lo em suas palavras". Para enredá-lo, perguntaram-lhe: «É ou não legal
pagar tributo a César? Devemos dar, ou não devemos dar?" E Jesus, a quem mostraram a moeda com a
efígie e a inscrição de César, deu sua famosa resposta: «Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de
Deus" (Marcos 12,13-17; similarmente, Mateus, 22,15-22; Lucas 20,22-26). Se ignorarmos por um
- 16 -
momento a alegada motivação da pergunta, transparece que não era coisa por si mesma evidente, e de
nenhuma forma tão bem compreendida, a ponto de superar quaisquer dúvidas, que os judeus devessem
obedecer às leis romanas de impostos. Não era apenas um problema político, mas também um problema
religioso. Os combatentes da resistência "lançavam no rosto das pessoas que elas eram covardes porque
consentiam em pagar tributo a Roma e toleravam senhores mortais, depois de ter Deus por seu Senhor", e
aparentemente não sem êxito: muitos juntaram-se aos zelotas e, para escapar aos cobradores romanos de
impostos, esconderam-se em cavernas;56 muitos foram viver no estrangeiro. A pergunta quanto a saber se
deveria ou não pagar impostos não era, portanto, nem insensata, nem inoportuna, podendo ser feita em
perfeita boa-fé a Jesus, aquele mestre e rabino que não olhava a aparência dos homens (Marcos 12,14).
Mas, admitamos que foi feita com intenção fraudulenta, para levar Jesus a dar a seus interlocutores prova
de sua infidelidade a Roma. Isso somente significaria que esperavam, com razão, que ele afirmasse o que
todos queriam ouvir, que um judeu bom e temente a Deus não devia pagar impostos aos romanos. Apenas
se a resposta fosse como previam que seria podia ela justificar sua supostamente desejada denúncia aos
romanos. Eles "muito se admiraram" diante de sua resposta (Marcos 12,17): era tão simples e franca como
inofensiva e incontestável. Não podia ser prova de infidelidade a Roma; não havia nela vestígio de repúdio
à atitude judia anti-romana. Na realidade, deixava em aberto a pergunta seguinte, o que era de Deus e o
que era de César; e podia ser interpretada como coisa que endossava a proclamação dos zelotas e que
significava que, já que tudo era de Deus, nada podia ser de César. Mas mesmo se a interpretamos para
significar: "É melhor pagar seus impostos aos romanos; de qualquer forma, vocês apenas lhes restituem
suas próprias moedas", seria um bom conselho prático, e nós o vemos dado não apenas por Jesus, mas
também por eruditos talmúdicos. Por esse motivo, além de outros, não se pode sustentar a teoria de que foi
essa opinião pró-romana dele que, dali em diante, custou a Jesus seu apoio popular: as opiniões se
dividiam e a dele era tão boa quanto qualquer outra. O que a sua resposta faz transparecer claramente é a
antítese entre Deus e César: a crença romana na divindade de César é implícita, mas inequivocadamente
rejeitada. E a injunção positiva implica claramente a negativa; não dai a César o que é de Deus; e nada que
deres a César pode vos aliviar de vossos deveres para com Deus. Nada há, portanto, nos Evangelhos que
mostre que a atitude de Jesus diferia daquela da generalidade judia. Na verdade, sua profecias messiânicas
do reino de Deus eram apenas uma resposta aos anseios de um povo que vinha sofrendo há muito tempo
sob o jugo da ocupação inimiga e da opressão colonial. Não havia espetáculo mais revoltante que o de
oficiais romanos, soldados romanos, cobradores de impostos romanos; e a maneira pela qual os
governadores romanos costumavam espezinhar os costumes, as tradições e os privilégios judeus "levava o
povo a um absoluto furor". Esse testemunho do historiador cristão do século quarto define finalmente o
estado de espírito dos judeus em Jerusalém naquela época: não era apenas uma justa cólera, não era
apenas uma justa indignação diante das afrontas e indignidades que nunca cessavam, mas tal agitação
inquieta e irada, tal "absoluto furor", que tornaria qualquer cooperação com os detestados governantes
quase inconcebível. Acrescente-se a isso o desgosto e o desprezo que os judeus provocavam no
governador romano e nos que o cercavam, teremos completo o quadro de absoluta rejeição mútua. Mesmo
o provimento de serviços de utilidade pública, como o aqueduto, nada podia fazer para reconciliar os
judeus com seus algozes romanos. Conta uma história talmúdica que Deus perguntou aos romanos: Que
fizestes durante vossa administração da minha terra? E os romanos replicaram: Senhor do Mundo,
estabelecemos mercados, construímos muitas casas de banho, multiplicamos o ouro e a prata; e tudo o que
fizemos, fizemo-lo pelo bem de Israel, para que gozem da liberdade necessária ao estudo da Lei. Disse
Deus todo poderoso: Imbecis! Tudo o que fizestes, vós o fizestes apenas para vosso próprio bem. Vos
estabelecestes mercados para terdes os vossos bordéis, vós construístes casas de banho para dar prazer aos
vossos corpos, e o ouro e a prata vós roubastes de Mim, pois assim está escrito, a prata é Minha e o ouro é
Meu #Ageu 2,8. Após isto, os romanos retiraram-se estupefatos. Num livro apócrifo judeu conhecido
como Oráculos Sibilinos, escrito talvez uma geração ou duas antes da época de Jesus, encontramos uma
complicada prece para a destruição de Roma, que reflete o pensamento judeu contemporâneo: "Um re.t.
santo virá e reinará sobre todo o mundo -e então a sua ira recairá sobre o povo do Lácio, e Roma será
inteiramente destruída. Ó Deus, envia uma torrente de fogo do céu, e faze que os romanos pereçam, cada
um em sua casa. Ó pobre e triste de mim! Quando chegará o dia, o dia do julgamento do Deus eterno, do
grande rei?"
- 17 -

OS PRINCIPAIS SACERDOTES, ANCIÃOS, ESCRIBAS E TODO O CONSELHO

É lei judaica que o sumo sacerdote seja designado vitaliciamente, mas os governadores romanos
introduziram a novidade de que a nomeação seria feita e desfeita por eles ao seu bel-prazer. De acordo
também com a lei judaica, cabia ao Grande Sinédrio dos Setenta e Um a prerrogativa de nomear e
impugnar pessoas no cargo, mas os governadores romanos imaginaram que avocando a si o poder de
nomear e demover, cuidando de que suas opções fossem sempre romanófilas e de confiança, eles podiam
efetivamente controlar os judeus. O sumo sacerdócio era o símbolo do orgulho e aspirações nacionais
judias, da superioridade religiosa judia. A vida nacional religiosa concentrava-se no Templo em Jerusalém,
do qual o sumo sacerdote era o elevado guardião e supremo comandante. A polícia do Templo era a única
força armada judia oficialmente tolerada. Ferindo a autonomia e a independência do sumo sacerdote, os
romanos golpearam o gânglio nervoso da autonomia e independência judias. 'Josefo nada diz da reação do
seu povo a essa degradação chocante do sumo sacerdócio. Seu silêncio é certamente eloqüente, pois tal
reação, mesmo se não encontrou expressão ativa, deve ter sido muito amarga". O fato de que os judeus
provavelmente perderam a confiança nos romanos nomeados para o ofício sagrado é uma coisa; mas toda
expressão de raiva por estar sendo usurpado e profanado o sacrossanto direito do Grande Sinédrio só
podia aumentar o ódio que os romanos sentiam por eles.
Caifás, o sumo sacerdote, fora designado pelo predecessor de Pilatos, Valério Grácio, e ocupou o posto por
dezoito anos, de 18 a 36, um período muito mais longo do que o de Pilatos como governador da Judéia.
Foi dito que o próprio fato de que Pilatos permitiu a Caifás permanecer no cargo, sem perturbá-lo, durante
o seu mandato depõe a favor de uma grande amizade e um estreito entendimento entre os dois. Sugeriu-se
também que o sucessor de Pilatos livrou-se de Caifás como um gesto amistoso de conciliação para com os
judeus, que detestavam o sumo sacerdote pelo que fizera com Jesus. O verdadeiro motivo pelo qual Caifás
foi retido no posto por Pilatos pode bem ser que ele tenha pago o preço do mesmo em bom dinheiro:
sabemos que a nomeação para o sumo sacerdócio tornara-se uma fonte lucrativa de receita privada para os
governadores -se um ocupante do posto não podia ou não queria pagar o preço, seria deposto, e um mais
acessível o substituiria. Mas se um governador podia ganhar o mesmo deixando o ocupante no posto,
porque incomodar-se com a deposição e com uma nova nomeação ?
Nos tempos romanos, o sumo sacerdócio limitava-se a umas poucas famílias: nomes idênticos ocorrem
repetidamente. Tal fato não pode ser creditado a uma impossibilidade de se encontrarem candidatos
qualificados em outros círculos, mas a serem estes os únicos clãs em Jerusalém que tinham os recursos
necessários para pagar os custos. O quanto a tradição popular os considerou ricos é demonstrado por uma
tradição talmúdica segundo a qual seus anciãos usavam sempre e unicamente vasos de prata e de ouro.¹º
Todas as famílias pertenciam à aristocracia saducéia, o que fazia com que a massa do povo se visse
forçada por uma aliança aparente entre o odioso dominador estrangeiro e os ricos e opulentos judeus:
intensificava-se a aversão natural e social aos ricos e poderosos pela aversão natural e patriótica do
inimigo opressor, da qual os sumos sacerdotes -e os ricos em geral -eram, é natural, bem conscientes. Eles
sabiam não apenas quão intensamente os romanos eram odiados, mas também que sua colaboração com os
romanos e sua dependência deles eram popularmente encaradas com desprezo e repugnância. E o fato de
que apenas por sua opulência os sumos sacerdotes se haviam qualificado para o sagrado ofício, e o haviam
obtido, e nele permaneciam, em nada contribuía para elevar-lhes a posição ou lhes proporcionar mais boa
vontade. Mas, por menos que fosse estimado, por odiosa a forma e os incidentes de sua nomeação e posse,
o sumo sacerdote sempre estava no supremo comando da administração do Templo, inclusive da polícia
do Templo, sendo responsável, sem reservas, por todos os seus serviços.¹¹ E do ponto de vista das relações
externas, ele seria encarado -especial, mas não exclusivamente -pelo governador romano como chefe e
porta-voz da nação, não apenas porque os romanos não reconheceriam quem quer que fosse, a não ser
aqueles que haviam nomeado como negociadores dignos de créditos,¹² mas também porque os judeus
preferiam que qualquer contato inevitável com o inimigo fosse feito por seu próprio fantoche. Era uma
- 18 -
situação curiosa e ambivalente: por um lado, os judeus desprezavam os sumos sacerdotes como quislings
romanos; por outro, tinham de usar e usaram os bons ofícios sacerdotais em mediação com as autoridades.
É talvez não menos estranho que uma ambivalência similar prevalecesse internamente: por um lado, os
judeus desprezavam o sumo sacerdote por suas relações saducéias e por seus defeitos morais e
profissionais; por outro, tinham de reconhecê-la, e o reconheciam como o ocupante legal do mais alto
posto nacional e religioso. Um político moderno poderia encontrar-se em situação semelhante se seu
adversário de partido, de cujas qualificações ele zomba e cujas opiniões ele veementemente ridiculariza,
fosse eleito para um alto posto: embora nunca abandonando suas próprias opiniões ou traindo seus
próprios ideais, ele -pelo menos externamente -não poupará qualquer esforço consciente para cooperar
lealmente com aquele. Quando, no entanto, chegarmos aos detalhes da competência do sumo sacerdote,
não acharemos nada fácil abrir caminho através do emaranhado da erudição polêmica. Por exemplo,
quanto à primeira questão que vem à mente em conexão com o julgamento de Jesus, os eruditos estão
desesperadamente divididos. O sumo sacerdote presidiu ou não o Sinédrio? Tinha ele ou não competência
para reuni-lo? Muitas teorias foram elaboradas sobre esse problema,¹³ que vão desde a afirmação de que
ele presidia e reunia à sua vontade à negação de que ele jamais presidiu ou, teve o direito de presidir ou
reunir, com afirmações e negações intermediarias. Nenhum dos Evangelhos diz expressamente que foi o
sumo sacerdote que presidiu a reunião no assunto de Jesus e, para o nosso propósito específico,
poderíamos deixar a questão aí e não tomar qualquer posição na controvérsia. É simplesmente a possível
influência sobre a questão de "responsabilidade", em última instância, de adotarmos esta ou a outra teoria,
que nos obriga a claramente decidir que posição vamos tomar.
A dignidade, a fama e o caráter sacrossanto do ofício do sumo sacerdócio eram tamanhas que seria, penso,
virtualmente inconcebível para seu ocupante participar de qualquer reunião do Sinédrio ou conselho que
ele, como coisa natural e que provinha da tradição, não presidisse. Ele era o único homem eleito e
qualificado para entrar no Sagrado dos Sagrados, no Templo, uma vez por ano (Levítico 16,32): ele, que
estava mais próximo de Deus, pelo menos fisicamente, e ungido para representar o povo diante de Deus,
seria certamente o primeiro entre os homens e habilitado a presidi-los. Não se sabe muito sobre Caifás, em
particular. Consta, pela autoridade do Quarto Evangelho, que ele era o genro de um anterior sumo
sacerdote, Anás #Jo 18,13. Anás atuou entre os anos de 6 e 15, o que significa que já fora substituído
quinze anos antes dos nossos acontecimentos.17 Seja por causa da comparativa falta de posição ou
importância dos três ocupantes intermediários ou porque já não viviam mais, vemos tanto Anás como
Caifás qualificados como sumos sacerdotes durante o governo de Pilatos (Lucas 3,2), e, em outro
contexto, Anãs como o único sumo sacerdote e Caifás apenas como um de seus parentes (Atos 4,6).
Parece que a reputação oficial de Anás durou mais do que a de Caifás; não obstante o papel atribuído a
Caifás na história da Paixão, foi o nome de Anás que mais avultou nas tradições posteriores. Mas apenas
no Quarto Testamento atribuiu-se a Anás qualquer participação no interrogatório de Jesus #Jo 18,19-23; a
notável omissão de qualquer menção ao nome de um sacerdote pode implicar uma falta de interesse em
sua identidade e, de fato, dela foi dito que emprestava "força considerável ao argumento de que o papel
real representado pelo hierarca nos procedimentos contra Jesus esteve longe de ser tão dominador quanto
os evangelistas sugerem". Um sumo sacerdote chamado Elionai, filho de Caiafa, mencionado nas fontes
judias, foi tomado como um filho de nosso Caifás.²º Ele também foi identificado com um sumo sacerdote
de quem Josefo fala, Elioneus, filho de Canteras.²¹ A lexicografia tradicional judia entendia que o nome
grego Kantheras significa "burro", e o hebreu ou aramaico kaiaph significava "macaco":²² ambos
ostensivamente encarados como descrições zoológicas adequadas para servir ao nosso Caifás como
apelido de injúria ou ridículo. Não podemos agora verificar se essa interpretação é válida -se Caiafa era
apenas um sobrenome inocente e insignificante. Um sentido possível de Caiafa poderia ser adivinho,²³
mas a teoria de que Pilatos conferiu ao sumo sacerdote o nome ou título de Caifás para significar
inquisidor ou acusador não tem apoio histórico ou etimológico.
Foi, portanto, Caifás, possivelmente com o sumo sacerdote emérito Anás ao seu lado, que presidiu o
conselho. Que era esse conselho, como se compunha, quais eram suas funções?
Foi sugerido que houve vários desses "conselhos" em Jerusalém na época, todos errada e
indiscriminadamente referidos nas fontes judias como o "Sinédrio" e nos Evangelhos como "todo o
conselho" (Marcos 15,1) dos principais sacerdotes, anciãos e escribas. Apenas um deles, diz-se, sendo este
um conselho político ou sacerdotal, seria controlado e presidido pelo sumo sacerdote, e seus íntimos
- 19 -
saduceus seriam os membros. Confinar o sumo sacerdote à presidência de um órgão puramente político,
dirigido por ele e constituído a seu bel-prazer, não diferente da família de conselhos privados que consta
terem sido repetidamente reunidos pelo rei Herodes para consultas específicas, preencheria, é natural, o
objetivo de libertar o verdadeiro e real Grande Sinédrio de Israel de toda responsabilidade pelo que quer
que tenha acontecido no caso de Jesus e de colocar essa responsabilidade, na medida em que isso dizia
respeito aos judeus, inteiramente nos ombros do sumo sacerdote que os romanos haviam designado e de
seu conventículo pessoal. Segundo essa teoria, ao sumo sacerdote e ao seu conselho eram atribuídos pelos
romanos não apenas os assuntos sacerdotais, mas também, e talvez principalmente, "assuntos nativos",
isto é, a investigação de atividades anti-romanas locais e sua denúncia, tendo sido nessa capacidade que
"entregaram" Jesus em suas mãos.
Não vejo motivo para desacreditar o caráter de "todo o conselho" de que nos falam os evangelistas. Não
há razão para encarar a assembléia que se reuniu àquela noite no lar do sumo sacerdote como algum
conselho ad hoc de principais sacerdotes em que a grande maioria dos principais sacerdotes, anciãos e
escribas não estivesse representada. Pelo contrário, eu presumirei que aquilo que os Evangelhos chamam
de "os principais sacerdotes e anciãos e todo o conselho " (Mateus 25,49), ou "todos os principais
sacerdotes e anciãos e escribas" (Marcos 14,53; similarmente, Lucas 22,66) era na verdade O Grande
Sinédrio dos Setenta e Um, "do qual a Torá partia para todo Israel", e que não se poderia ter reunido ali,
naquela noite, um órgão mais augusto, mais representativo ou com mais autoridade. Que fora, na verdade,
convocado pelos sumo sacerdote e que fora convidado ao seu lar são circunstâncias que, no momento
devido, chamarão a nossa atenção.
Relacionando os principais sacerdotes, anciãos e escribas como os membros do Sinédrio de então, os
autores dos Evangelhos podem ter ignorado a terminologia técnica, mas, em essência, não estavam longe
de representar com exatidão seus três principais grupos: primeiro, os principais sacerdotes e levitas, que
representavam as autoridades sacerdotais; em segundo lugar, "senadores", como se diria em Roma,
homens de antiga linhagem ou aristocratas, nas famílias dos quais mesmo os sacerdotes que oficiavam
podiam casar-se sem problema;³° e, por último, membros cooptados de tempos em tempos dentre os
eruditos habilitados a participar das sessões.³¹ Não apenas o impacto moral, profissional e político do
terceiro grupo, mas também o seu número aumentava progressivamente com a elevação de eruditos em
reputação e popularidade, e com o correspondente declínio de muitos dos sacerdotes e aristocratas em
estatura moral e qualificação profissional. Longe, assim, de boicotarem o conselho a que compareciam
tantas facções que lhes eram adversas, os eruditos (chamados "sábios") prudentemente tomavam parte;
assim como o caráter sagrado do Templo não era prejudicado na estima dos sábios pelos sumos sacerdotes
que não eram dignos de oficiar, da mesma forma nunca lhes entrou na cabeça repudiar a instituição do
Sinédrio ou estabelecer um rival para o mesmo na forma de um tribunal que com ele competisse, mesmo
se não aprovavam a sua composição e mesmo se opunham ao sumo sacerdote e àqueles que o cercavam.
Procuravam antes exercer sua influência e introduzir suas decisões e opiniões até mesmo no ritual do
serviço do Templo e nos métodos de funcionamento do Sinédrio.
Esses eruditos eram fariseus, enquanto entre os principais sacerdotes e anciões muitos eram saduceus; e
temos o testemunho de Josefo de que os saduceus sempre votaram com os fariseus, "porque o povo não
queria que as coisas se passassem de outra forma",³³ um sinal notável da influência prática que a opinião
pública exercia sobre as decisões do Sinédrio e da susceptibilidade dos sacerdotes e anciãos à vox populi e
ao sentimento popular. Não pode haver dúvida de que a opinião pública da Judéia e em Jerusalém era tão
anti-romana quanto era pró-farisaica e que com o aumento da popularidade farisaica os saduceus perderam
cada vez mais suas posições. Não que as massas tivessem a capacidade ou o interesse de avaliar os
respectivos méritos ou deméritos das doutrinas farisaica e saducéia, pois se tivessem tal capacidade, elas
teriam, com toda probabilidade, preferido a simples e honesta concepção saducéia da adesão estrita e
exclusiva à palavra escrita da escritura às extravagâncias e complicações da lei oral farisaica, sobre cujo
escopo e conteúdo os eruditos discutiam interminavelmente, muitas vezes em total oposição um ao outro.
Se a generalidade seguia os fariseus e aceitava os ensinamentos farisaicos, era porque os eruditos
farisaicos eram homens de acordo com seus corações: temos o depoimento de uma testemunha tão não-
farisaica quanto Josefo de que eram pobres e de que não aspiravam à riqueza mundana; de que eram
prudentes e sempre agiam depois de cuidadosamente refletir e da melhor maneira que podiam; de que
eram humildes e mostravam respeito aos mais velhos; e de que eram piedosos e acreditavam que um Deus
- 20 -
misericordioso recompensaria todos os homens bons e justos, num mundo futuro e melhor, pela miséria
sofrida na terra. Mais importante do que tudo porém, os fariseus gozavam da simpatia popular porque,
verdadeiros patriotas judeus que eram, podia-se neles confiar com segurança, nos conselhos de estado,
para proporcionarem o contrapeso necessário à colaboração potencial ou real com Roma. Não se pode
negar que, mesmo entre os eruditos farisaicos, havia diferenças de abordagem e de opinião a respeito da
política romana: mesmo do ponto de vista puramente teológico, alguns, inevitavelmente, inclinar-se-iam
ante o domínio estrangeiro como uma calamidade enviada por Deus que se devia considerar merecida e
aceitar com amor, humildade e uma fé firme na justiça divina. Outros podem ter visto no domínio pagão
uma afronta a Deus e a Seu povo eleito e Sua terra santa que não podia, a qualquer custo, ser suportada.
Por mais manifestas que possam ter sido tais discórdias doutrinárias, o que distinguia os eruditos
farisaicos de outros grupos seria que, ao tomarem suas decisões, eles seriam motivados apenas por
preocupações judias: eles não orientariam suas mentes para qualquer consideração, senão aquelas que
refletiam o que sabiam ser do melhor interesse geral judeu. Sob esse aspecto, diferiam dos prósperos e
bem estabelecidos, cujo primeiro cuidado sempre seria com seus próprios interesses investidos; e, é quase
desnecessário dizer, daqueles que -como o sumo sacerdote -dependiam da boa vontade romana para
continuarem no posto ou manterem o status, ou dos que tinham de prestar contas de sua conduta aos
romanos. A desconfiança popular para com toda espécie de colaboradores e para com todas as ideologias
que apoiavam a colaboração estava profundamente entranhada -o espetáculo das "decadências moral e
espiritual da família que já estivera em posição elevada", dos hasmoneanos, que se haviam tornado "puros
assimilacionistas", ainda estava bastante vivo na consciência do povo "para fortalecer a moral e aumentar
o número de oposicionistas farisaicos". À medida em que crescia a opressão exercida pelo poder de
ocupação romano, era igualmente inevitável que, no curso do tempo, a fortalecida oposição farisaica e
seus porta-vozes eruditos viessem a ser encarados e reverenciados, no espírito do público, como a
corporificação do genuíno patriotismo judaico.
Mas o sentimento popular pró-farisaico nos oferece apenas um lado da situação. Nenhuma opinião pública
pode valer, a menos que aqueles que estão no poder estejam despertos para ela e lhe sejam sensíveis. O
governador romano da Judéia, por exemplo, era inteiramente inacessível, não porque possa não ter sido
familiarizado com as características mais elementares da democracia, mas porque ele, em pessoa, e o
dever que tinha de executar e tudo o que representava e sustentava, eram tão incompatíveis e sem
afinidade com as idéias e aspirações "nativas" e -para ele -inteiramente bárbaras e oriundas da cosmovisão
geral de um povo deploravelmente "retardado", que prestar atenção à sua balbúrdia pouco civilizada
equivaleria a uma perda de tempo e de esforço. Parece, no entanto, que a posição era totalmente diferente
no que se refere ao sumo sacerdote e provavelmente também à nobreza saducéia. O sumo sacerdote não
podia alimentar ilusões quanto ao opróbrio que ele e seus predecessores haviam conquistado no meio do
povo, solicitando nomeações romanas e comprando-as. Ele tinha conhecimento de primeira mão da raiva e
da fúria selvagem do povo contra os romanos e suas guarnições, e não penso que ele pudesse ter
alimentado quaisquer esperanças de que essa atitude pudesse mudar; de qualquer forma, ele sabia que não
era ele que a podia alterar. Nosso conhecimento de sumos sacerdotes singulares não é bastante para julgar
se eles colaboravam com os romanos, se é que o faziam, por inclinação, e não porque o consideravam uma
necessidade. Devemos, sugiro eu, dar-lhes o benefício da dúvida e presumir, como os eruditos farisaicos
manifestamente fizeram, que, ao colaborar, eles agiram de boa-fé no que acreditavam ser os melhores
interesses do seu povo. Mas permanece o fato de que sua nomeação romana não seria muito vantajosa
para o sumo sacerdote, a menos que ele pudesse contar com alguma medida de cooperação do Sinédrio e
do público em geral. Do ponto de vista interno, qualquer resistência de eruditos ou sacerdotes à sua
autoridade necessariamente tornaria vã sua nomeação: ser-lhe-ia de pouca ajuda ser reconhecido como
sumo sacerdote pelo governador romano, se como tal não fosse aceito pelos próprios judeus. É claro que
ele podia sempre recorrer aos soldados para esmagar a resistência pela força; mas, por experiências
recentes, e não tão recentes, ele podia predizer o que seria o desfecho: não apenas lhe faltaria a necessária
autoridade moral, mas se fariam mártires na causa contra ele, e ele perderia o pouco que lhe restava de
simpatia e prestígio.
" Não há registro de qualquer sumo sacerdote que quisesse ou que tivesse de recorrer à ajuda militar
romana para tornar viável sua função: o preço a pagar teria reduzido ao absurdo todo o empreendimento.
- 21 -
O fato de que era uma pessoa nomeada por Roma, que em última análise devia responder por seus atos
diante do governador romano e que era por ele destituível, deve ter estimulado antes que diminuído a
aspiração natural do sumo sacerdote para dirigir os assuntos internos dos judeus tão branda e
eficientemente que não haveria qualquer fundamento para uma interferência romana. Fiando-se nele, que,
é natural, gozava de alguma medida da confiança deles, tinham os romanos de achar, em todos os
momentos, que a administração de tais assuntos estava em mãos seguras e eficientes. Era uma ambição
não menos instintiva do sumo sacerdote garantir para ele próprio e para os órgãos que lhe eram
subordinados tanto poder e arbítrio quanto possível: um ponto negativo em impedir a interferência romana
tinha de ser complementado por um ponto positivo no reconhecimento e reforço da autonomia e jurisdição
das autoridades judias. Qualquer fracasso dele e dos órgãos que dirigia em manter a paz, a ordem interna e
o bom governo poderia resultar, senão numa peremptória intervenção romana, pelo menos na redução dos
poderes e competências previamente exercidos; um funcionamento pacífico e adequado provaria a
capacidade deles e poderia até mesmo tentar os romanos a fortalecer-lhes a autonomia e ampliá-la. Para
lograr êxito, portanto, o sumo sacerdote dependia ostensivamente do bom funcionamento do Sinédrio e do
pessoal do Templo, quer dizer, da natureza e da extensão da cooperação que conseguia arregimentar dos
membros do conselho e dos sacerdotes. Deve ter sido vital para ele granjear o apoio e a boa vontade de
quem quer que tivesse assento e voz nos conselhos do estado, sendo para ele axiomático que sua técnica
mais segura consistisse em levar adiante políticas que correspondessem aos desejos dessas pessoas. Tais
como eram as coisas, ele tinha, em virtude da lei, de seguir as políticas da maioria, pois todas as decisões
dependiam do voto da mesma; mas quando as opiniões da maioria contrariavam suas próprias inclinações,
ele se submeteria a ela, sendo este o caminho normal e mais seguro de que dispõem as pessoas em posição
de autoridade para conseguir apoio e confiança populares. Porém, mesmo quando o predomínio no
Sinédrio fosse saduceu, o sumo sacerdote, embora fosse ele próprio um saduceu por nascimento e
convicção, e provável ou potencialmente romanófilo, preferiria aliar-se aos fariseus e deixar que eles
vencessem, não porque achasse que eles estavam necessariamente certos, mas porque sabia que gozavam
da afeição e da confiança da grande massa da população. Os votos saduceus no Sinédrio podiam,
presumivelmente, sempre ser mudados por ele. Tampouco ele se desviaria, no mínimo que fosse, do ritual
tradicional do Templo: não que ele não quisesse talvez, por momentos, agradar este ou aquele capricho
romano, mas, por uma questão de política interna deliberada, ele optaria por inclinar-se à devoção e à
ortodoxia da maioria dos sacerdotes. Ele estava, assim, na posição pouco invejável de um pretendente à
consideração e ao respeito de uma comunidade judia que dele suspeitava, que o temia e o desprezava de
alguma forma. Com psicologia simples e também como política prudente, ele faria sua tarefa tentando
angariar, antes de mais nada, a cooperação dos membros farisaicos do Sinédrio; e o melhor meio para esse
fim era aumentar sua força numérica e seu poder de voto. Foi através dos fariseus que ele buscou atingir o
povo. Qualquer ação ou comportamento de sua parte que pudesse indispor os fariseus possivelmente
arruinaria a política geral a que ele se tivesse dedicado. Havia um problema fundamental no qual
certamente havia consenso geral entre fariseus e saduceus -sacerdotes, anciãos e escribas: a preservação
dos poderes do Sinédrio e a prevenção de outras intromissões romanas sobre eles. Em que, de fato,
consistiam tais poderes é, uma vez mais, uma questão multiplamente controvertida. Não há dúvida séria
quanto à autonomia do conselhos nos assuntos puramente religiosos dos judeus nativos: os romanos
permitiam-lhes exercer sua religião e normalmente não interferiam na maneira como a exerciam; as
diversas tentativas de fazê-lo, particularmente no que se refere à imagem do imperador, fracassaram
redondamente. "Questões religiosas" incluía tudo o que se ligava à instituição do Templo, inclusive a
polícia do Templo, e para os propósitos de nossa investigação podemos postular que não havia
interferência romana no comando que o sumo sacerdote exercia sobre essa polícia.
Mas na questão que primariamente nos preocupa, a saber, o poder do Sinédrio para julgar casos criminais
e executar a pena capital, são intermináveis as disputas entre os eruditos, antigos e modernos. No
Evangelho segundo João, atribui-se aos judeus dizer: "A nós não é lícito matar ninguém" (18,31). Será
mostrado que isso não podia, na verdade, ter sido dito por qualquer judeu em posição de autoridade e que
é, pura e simplesmente, falso, mas foi tomado como prova suficiente de que os judeus haviam sido
privados pelos romanos seja de toda jurisdição capita139 ou, pelo menos, do poder de executar suas
sentenças capitais:o É por causa dessa passagem no Evangelho de João que muita atenção e esforço de
pesquisa foram devotados à investigação quanto ao escopo e às particularidades da jurisdiçãO criminal do
- 22 -
Sinédrio.Já foi, no entanto, convincentemente declarado que, até onde está em questão a responsabilidade
judia pela morte de Jesus, tal investigação é amplamente irrelevante: se a jurisdição capital do Sinédrio
não foi enfraquecida, não se segue que, neste caso particular, o conselho a exerceu; e se ela houvesse sido
retirada inteira ou parcialmente, não se seguiria que o conselho não pudesse praticar alguma ação fora de
seus poderes formais ou dentro dos limites das restrições que lhe eram impostas. Abandonaremos,
portanto, as teorias jurisdicionais ao trabalho dos historiadores da lei e partiremos da premissa de que o
Sinédrio conservara toda a jurisdição capital que jamais possuíra sob a lei judia e de que não, havia
obstáculo jurisdicional a que o mesmo procedesse contra Jesus por qualquer crime segundo a lei judia e de
qualquer modo compatível com a mesma. Mas o fato consiste em que não há bastante material histórico
ou outro disponível -não obstante as tradições talmúdicas em contrário -para fundamentar uma conclusão
de que o Sinédrio havia sido privado pelas autoridades romanas, ou por estatuto romano, de qualquer parte
de sua jurisdição em matéria de lei judia.
Embora o Grande Sinédrio dos Setenta e Um fosse encarado como a fonte definitiva de toda jurisdição,
civil, penal, administrativa e consultativa, ele próprio não exercia jurisdição civil ou penal, exceto em
muito poucos casos bem definidos, como, por exemplo, quando o sumo sacerdote era penalmente
indiciado. A jurisdição penal geral, inclusive a que se aplicava em casos capitais, era exercida pelo
chamado Pequeno Sinédrio de vinte e três juízes: josefo registra o estabelecimento desses Pequenos
Sinédrios em cinco diferentes cidades por volta de 60 a.C.47, e no período que nos diz respeito reuniam-se
Pequenos Sinédrios em todas as principais cidades da Judéia e Galiléia.
O Grande Sinédrio era, em essência, um órgão legislativo. Em períodos de guerra e de ocupação inimiga
ele estaria, é natural, como qualquer órgão legislativo, principalmente preocupado com as questões
políticas de que dependeria a sobrevivência nacional e religiosa. Na verdade, o fato de que tal
preocupação, mesmo como uma questão de lei, estava dentro da sua competência pode ser inferido da
regra de que não se poderia empreender quaisquer operações bélicas, a não ser em virtude de resolução
dele. E era uma preocupação que se tornava ainda mais sensata e necessária porque os judeus, por um
lado, estavam divididos entre si nas questões que diziam respeito à política romana e geral, mas, por outro,
concordavam em que, no que dizia respeito aos romanos, era mais sábio apresentar uma frente unida.
Havia, é claro, os zelotas ou aqueles que combatiam às ocultas e que desaprovavam quaisquer relações
"diplomáticas" com o inimigo: embora reunissem recrutas e simpatizantes de todas as classes da
população e fossem certamente amparados, senão ativamente encorajados, pela opinião que prevalecia no
Sinédrio, a política independente que adotavam em relação aos romanos era uma com a qual o Sinédrio
não podia muito bem se associar oficialmente.
Veremos que se o Grande Sinédrio se reuniu no caso de Jesus, ele o fez como o conselho encarregado de
assuntos políticos. Não era apenas um Pequeno Sinédrio, que poderia ter exercido jurisdição num caso
penal ou capital, mas o Grande Sinédrio, que não exerceria em absoluto tal jurisdição, mesmo se
possivelmente competente para fazê-lo, mesmo que apenas pelo motivo de que estava no momento
demasiado ocupado por problemas políticos prementes.
A respeito da jurisdição penal geral, devem ser registrados outros dois pontos - Um deles é que nenhum
Sinédrio podia jamais ter exercido qualquer jurisdição, exceto de acordo com a lei judia: ele podia tomar
conhecimento apenas de crimes conhecidos por aquela lei e nela definidos, só podendo adotar os
procedimentos criminais que aquela lei permitia. E o segundo ponto é que, com o advento de Roma,
estabeleceu-se na Judéia uma segunda jurisdição penal -a romana -, o que significa que os tribunais judeus
já não a monopolizavam. Os dois pontos estão estreitamente inter-relacionados, pois o que na realidade
transpirou foi que os tribunais judeus exerciam exclusiva jurisdição penal no que diz respeito a atos que
eram crimes apenas de acordo com a lei judia, e a corte do governador romano exercia exclusiva
jurisdição penal no que diz respeito a atos que eram crimes apenas contra a lei romana. Por exemplo, o
crime de profanar o shabat, ou o de idolatria, nos dois casos crimes somente de acordo com a lei judia,
incorreriam na exclusiva jurisdição dos tribunais I judeus, e o governador romano nunca reivindicaria
jurisdição sobre eles; ele não o podia fazer, pois o direito romano não considerava qualquer dos dois atos
como crime. Por outro lado, sedição contra o governo romano, ou desprezo pelo imperador romano seriam
crimes dentro da jurisdição exclusiva do governador; o direito judeu não via tais atos como crimes, e
nenhum tribunal judeu teria jamais punido quem quer que fosse por aquilo que, do ponto de vista judeu,
deve ter sido encarado como inocente ou mesmo louvável.
- 23 -
Podem ter surgido algumas dificuldade em situações de conflito, em que havia crime tanto no direito
romano quanto no judeu. Assassinato e assalto, por exemplo, eram crimes puníveis em ambos os sistemas,
e o governador romano e os tribunais judeus podiam, cada um do seu lado, reivindicar jurisdição.
Conflitos como esses podem ter sido resolvidos de acordo com a identidade do acusado: sabemos pela
história de Paulo que um cidadão romano podia pedir julgamento por um tribunal romano no caso de
qualquer crime que não fosse exclusivo da lei judia (Atos, 23,27-29)- Reciprocamente, um não-romano
possivelmente estaria sujeito a julgamento por um tribunal judeu, mesmo se o crime de que era acusado
fosse também como -tal reconhecido no direito romano. No entanto, não é improvável que o governador
romano pudesse nesse caso requerer que lhe fosse entregue o acusado, sendo provável que, de sua parte,
ele nunca entregaria a tribunais judeus um criminoso sob sua custódia, como, por exemplo, um assaltante
capturado por soldados romanos em flagrante delito. Todo o poder concentrando-se virtualmente em suas
mãos, ele podia ditar aos tribunais judeus quando exercer jurisdição num caso e quando não o fazer.
Assim se teriam passado, portanto, as coisas: o Pequeno Sinédrio podia julgar qualquer judeu por qualquer
crime que o fosse segundo a lei judia, condená-lo à morte e praticar a execução, e o governador romano
não interferiria de qualquer maneira, por mais que dispusesse do poder físico e político para fazê-lo. Por
outro lado, devemos presumir que os romanos não aplicariam a condenação à morte por um tribunal judeu
ou outro tribunal não-romano, mas só executariam criminosos julgados e condenados por um tribunal
romano por crimes contra o direito romano.
Suposições e considerações legais desse teor despertaram acentuada impaciência, principalmente da parte
de certos teólogos: está muito bem argumentar com a lei, diriam eles, quando se fala de pessoas de quem
se pode razoavelmente presumir que a observam; mas as pessoas que aqui nos preocupam são criminosos,
sumos " sacerdotes corruptos, "escribas desonestos" e dignitários sem escrúpulos, acostumados e
determinados a infringir qualquer regulamento para alcançarem seu torpe propósito, sendo que, no que
lhes diz respeito, seria tão relevante citar a lei quanto o seria afirmar que um ladrão não podia ter roubado
porque isso é ilegal. Os mesmos sacerdotes e dignitários que teriam, sem pestanejar, subornado Judas com
trinta moedas de prata para que traísse seu mestre (Mateus 26,15) nunca seriam dissuadidos de recorrer a
quaisquer meios ilegais, sem excetuar o suborno, para conseguir que o governador romano fizesse o que
queriam, ou de transgredir e desconsiderar seus próprios estatutos e procedimentos.
Diversas "autoridades" são citadas a favor da afirmação de que os sacerdotes e dignitários judeus da época
não eram muito melhores que criminosos comuns. Em primeiro lugar há, é claro, as próprias diatribes de
Jesus contra os escribas e os fariseus; a esses voltaremos no próximo capítulo. Há também uma passagem
em Josefo que diz que "os sumos sacerdotes iam tão longe em seu atrevimento que sequer hesitavam em
enviar seus escravos às eiras e em fazê-los recolher os dízimos devidos aos sacerdotes, com a
conseqüência de que os sacerdotes mais pobres morriam de fome", Mas isso se passou trinta anos depois
do nosso período, e os sumos sacerdotes mencionados não eram sequer pessoas designadas pelos romanos,
mas nomeadas pelo Rei Agripa, A situação na Judéia no ano 60 era inteiramente diversa do que fora
durante o governo de Pilatos. Além disso, essa passagem em josefo foi com justa razão entendida como
destinada a deformar as ações empreendidas por sumos sacerdotes pró-romanos e por uma aristocracia
sacerdotal, apoiada pelo rei, contra camadas mais baixas do sacerdócio que haviam somado forças com os
zelotas. Visto sob essa luz, o confisco de dízimos não era um roubo comum, mas, por mais que
moralmente injustificado, uma medida disciplinar; e a luta entre as facções não era um litígio entre bandos
rivais, mas um novo surto de uma inveterada disputa entre os que resistiam à Roma com violência e os
que o faziam sem violência, ou entre os que resistiam e os que colaboravam. A disputa datava da conquista
romana, mas, ao que parece, só explodiu com gravidade no ano 60; e, como demonstraram os
acontecimentos,
levou a conseqüências desastrosas logo que rompeu os limites da altercação doméstica e que a frente
unida já não pôde mais se sustentar. De fato, uma vez que se permitiu à luta interna irromper
tumultuosamente, ficou óbvio que os elementos menos inibidos, de qualquer partido, soltaram as rédeas de
suas inclinações malévolas, um fenômeno comum a todas as conjunções civis.
Outra autoridade muito citada para a suposta criminalidade dos sumos sacerdotes é aquilo que foi
chamado de "um epigrama popular preservado no Tal mude", que se diz ter sido dirigido "contra as
principais famílias sumo sacerdotais que pilhavam e arruinavam a nação entre si". O epigrama lamenta os
bastões e os punhos, os estiletes de pena e os sussurros, com os quais os sumos sacerdotes nele nomeados
- 24 -
e seus homens de confiança maltratam o povo. Não apenas alguns dos nomes sacerdotais registrados, mas
também os nomes dos narradores sugerem que as tiradas também pertencem a um período posterior. A
história é narrada por Abba Yossei Ben Hanam, que viveu por volta do ano 80, e Abba Shaul Ben Botnit,
que ensinou vinte anos antes dele; e, dos sumos sacerdotes nomeados, a maioria foi nomeada depois da
morte de Jesus. Na verdade, o epigrama corresponde bem às passagens que Josefo escreveu depois sobre a
arbitrariedade sumo sacerdotal e a força usada contra os zelotas em favor dos sumos sacerdotes; não é
impossível que os narradores fossem os zelotas e houvessem eles próprios sofrido os golpes de bastões e
varas dos faccionários pró-romanos. O contexto talmúdico tende a mostrar que o que estava realmente em
questão eram as causas dadas para a destruição do Templo e a ruína final da Judéia: foi esse mau
comportamento desses sumos sacerdotes posteriores e de seus clãs que atraiu a ira divina para o Templo,
pois o epigrama é logo seguido por um dito de que ele foi destruído porque eles "amavam dinheiro e se
detestavam uns aos outros".
Não é nossa intenção fazer a apologia de Caifás: pouco sabemos dele, sendo concebível que ele possa ter
merecido melhor depoimento do que o epigrama implica. Considerando o desprezo com que o povo
encarava os sumos sacerdotes nomeados pelos romanos e todos os que lhes sucederam, não se deveria tirar
quaisquer conclusões factuais contra eles por serem denegridos num escrito popular; e, na ausência de
quaisquer dados circunstanciais para refutá-lo, penso que mesmos os sumos sacerdotes deveriam ter
direito ao benefício da suposição de inocência.
Finalmente, há a sugestão de que, como em todos os países sob ocupação inimiga, em todos os períodos
da história, também na Judéia daquela época havia traidores e colaboradores que serviam aos interesses
romanos, embora ocupassem altos postos na administração local. Diz-se, justificando-os, que, a menos
que concordassem em atuar como informantes, prejudicavam suas vidas e, para salvar-se, tinham de
sacrificar outros. Mas não há qualquer fragmento de prova para a acusação de que Caifás era um traidor
desse tipo ou de que qualquer dos judeus que se diz terem representado um papel na história da Paixão
fosse agente de Roma. Há, na realidade, alguma indicação em contrário nos relatos do Evangelho (cf. João
11,48), e nem ali nem em qualquer outra parte há qualquer sinal de atividade judia traidora. Sabendo o que
sabemos sobre o espírito que prevalecia no seio da plebe judia, a sempre crescente popularidade dos zelo
tas e o papel assumido por eruditos farisaicos na liderança ou organização de sublevações armadas, sugiro
ser inconcebível que informantes e quislings -fossem eles realmente sumos sacerdotes - tivessem sido
deixados viver em continuada traição. Poderiam não ter sido linchados, mas teriam consciência de que seu
destino estava à mercê de correligionários zelotas enraivecidos e implacáveis e, em vez de parecer
vergonhosamente como desprezíveis vira-casacas, teriam preferido, podemos conjecturar, correr o risco do
desfavor romano. Sabemos que, se um indivíduo que não ocupasse um posto traísse um compatriota
judeu, ele, via de regra, não seria capaz de continuar vivo. Há o exemplo iluminador de Judas, que ter-se-
ia enforcado depois de trair o seu mestre (Mateus 27,5); não tivesse ele tirado a própria vida, ou não
houvesse sido linchado por uma massa enfurecida, ainda assim teria sofrido uma morte violenta e
ignominiosa (Atos 1,18), que logo seria conhecida "de todos os habitantes de Jerusalém" (1,19).
Nós não sabemos, e não sustentaremos, se Caifás era um homem de caráter forte ou integridade pessoal.
Mas nem por isso presumiremos que fosse desprovido de honestidade e decência comuns ou impelido em
ação e decisão por instigações criminosas e insinceras. Antes, nós o situaremos e aqueles que atuaram com
ele na perspectiva de seu ambiente político, e teremos como certo que -por prudência deliberada e também
por instintos naturais de auto conservação - eles se conduziram da maneira que julgaram melhor a favor do
interesse nacional e religioso judeu. Vimos o que era esse interesse aos olhos do sumo sacerdote, por um
lado, e dos fariseus, por outro, e como, não obstante diferenças doutrinárias fundamentais, os dois podiam
agir e o fariam de comum acordo no interior do Grande Sinédrio, mais particularmente nos casos em que
os interesses judeus nacionais e religiosos e a autonomia judia tinham de ser defendidos e sustentados
contra o governador romano. Aplicando os padrões do político razoavelmente discreto e do juiz
razoavelmente imparcial, não deve ser muito difícil para nós reconstruir o estado de coisas no qual se
confrontaram o sumo sacerdote e o Sinédrio com Jesus. Mas antes de chegarmos a essa confrontação, é
preciso considerar Jesus.

3
- 25 -

JESUS

Não faz parte do objetivo desta investigação retratar Jesus. Sua vida, sua personalidade e seus
ensinamentos são motivo de controvérsias históricas e teológicas de longo alcance e que nunca terminam.
Muitas das questões em litígios são essencialmente questões de fé e de orientação, e não tomaremos
posição quanto a elas. Nosso propósito é mostrar que nem os fariseus nem os saduceus, nem os sacerdotes
nem os dignitários, nem os escribas nem quaisquer judeus tinham um motivo ponderável para procurar a
morte ou o afastamento de Jesus. Sem tais motivos, como sugerimos, os relatos de que eles buscavam
destruí-lo (Mateus 12,14; Lucas 19,47) ou que juntos "resolveram matá-lo" #Jo 11,53; Lucas 22,2; Marcos
14,1 são destituídos de qualquer plausibilidade.
Os fariseus foram singularizados pelos evangelistas como os verdadeiros arquiinimigos de Jesus. Seu
nome um tanto exótico, especialmente para ouvidos gentios, proporciona uma obscuridade por trás da qual
uma hostilidade claramente perceptível, mas inteiramente inexplicada, parece ocultar-se. Jesus é
apresentado rios Evangelhos como alguém que não entretinha quaisquer ilusões quanto ao caráter odioso e
a inimizade implacável dos fariseus; e, na verdade, a julgar pelos relatos do Evangelho, nenhum grupo
podia ser mais hipócrita, astucioso, egoísta, orgulhoso, teimoso, intolerante e inescrupuloso. O que é
notável à primeira vista, embora não pareça ter preocupado muito os teólogos,l é que em algumas de suas
práticas, e em sua atitude geral para com os fariseus, Jesus parece ter abando- nado seu próprio
ensinamento de que se deve amar os inimigos e
, orar por aqueles que com desprezo nos perseguem (Mateus 5,44)' "' mesmo presumindo que Jesus achava
que estava sendo perseguido por eles e que eles eram seus inimigos, não apenas Jesus não orou por eles,
mas, a se acreditar no Evangelho, ele os amaldiçoou e os insultou sem o menor constrangimento.
No entanto, o quadro nem sempre é pintado em cores tão negras como essas. Segundo os Evangelhos de
Mateus e de Lucas, Jesus uma ou duas vezes aceitou um convite para ir à casa de um cobrador de
impostos judeu, um "publicano", que, como dissemos, entrando para o serviço dos romanos, havia, aos
olhos do povo, perdido o direito de participar da boa sociedade judia: nenhum judeu sentar-se-ia à mesa
com ele. Diferentemente da desqualificação de tais homens como testemunhas,² isso não era uma norma
de direito farisaico, mas um costume difundido que pode ter surgido de uma rejeição e boicote
~, instintivo a assalariados romanos. Diz-se dos "fariseus" (Mateus 9,11), aos quais nos outros Evangelhos
se juntam os "escribas" (Marcos 2,16; Lucas 5,30), que "murmuraram" e perguntaram aos discípulos de
Jesus: "Por que ele come e bebe com os publicanos e os pecadores?" (Marcos 2,16). Jesus ouviu a
pergunta e deu a resposta:
"Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes; não vim chamar os justos, mas sim os pecadores ao
arrependimento" (Marcos 2,17; similarmente, Mateus 9,12-13; Lucas 5,31-32). Dessa resposta pareceria,
primeiro, que Jesus concordou com os "fariseus" que aqueles publicanos estavam na categoria de
pecadores ( comparar Lucas 18,9-14 ); segundo, que Jesus sabia que o povo evitava sentar-se à mesa com
eles, e que nada tinha contra os que o praticavam; terceiro, que os "fariseus" julgariam que Jesus, como
coisa que ia de si, observaria todos os costumes próprios deles; quarto, que ele aceitava a necessidade de
justificar sua não-observância de qualquer desses costumes por meio de alguma razão especial; e quinto, e
mais importante que tudo, que ele, não obstante, sentara-se e comera com "publicanos", não a despeito de
serem pecadores, mas porque o eram: os justos, os "fariseus", com quem todos podiam jantar, não
necessitavam de sua cura. É significativo que nenhum dos Evangelhos atribui qualquer resposta aos
"fariseus" que, portanto, parecem aceitar a explicação de Jesus como totalmente satisfatória.
Ao episódio com o publicano segue-se outra troca de pergunta e resposta entre os "fariseus" -com ou sem
"escribas" –e Jesus. Por que, é perguntado, os discípulos de Jesus, como os dos fariseus e de João Batista,
não jejuam (Mateus 9,14; Marcos 2,18) e fazem orações, mas antes comem e bebem (Lucas 5,33)? O
normal, é - nos permitido deduzir, teria sido que Jesus e seus discípulos se comportassem e conduzissem
como todos os fariseus faziam, inclusive o mestre de Jesus, João Batista; seguramente devia haver alguma
razão convincente para que se desviassem do modo farisaico. E, de fato, já no Sermão da Montanha
encontramos indicação muito clara de que Jesus e seus discípulos jejuavam (Mateus 6,16-18). jejuar não
- 26 -
era apenas um exercício farisaico predileto de ascetismo, mas também, através da história judia, um sinal
de luto e um acompanhamento de orações em caso de calamidade nacional;4 mas é norma farisaica que
não haja jejum em dias festivos.s A resposta de Jesus, de que seus discípulos são como "os convidados do
casamento" enquanto "o noivo está com eles" (Marcos 2,19; Mateus 9,15; Lucas 5,34) é uma perfeita
adaptação da norma farisaica. Novamente, os "fariseus", não reagem: se seus discípulos estão tão alegres e
felizes, então eles não devem jejuar (foi proposta a tese de que os Evangelhos aqui se referem aos dias de
jejum que comemoram a destruição do Templo, que se tornariam dias de "felicidade e alegria e festas
jubilosas" [Zacarias 8, 19] quando do advento do Messias, o "noivo"; mas embora os evangelistas possam,
é claro, ter tido tais idéias ulteriores e tal propósito teológico, devemos poder tomar a história ao pé da
letra, referindo-se ela ao jejum em geral como um elemento de vida de devoção ascéticas, e não
necessariamente apenas a um jejum comemorativo ).
Não apenas Jesus se movia e se sentia à vontade na companhia dos fariseus desde a infância (Lucas 2,46),
mas continuou a ensinar diante de "fariseus e mestres da lei... vindos de todas as aldeias da Galiléia, da
Judéia e de Jerusalém" (Lucas 5,17), presumivelmente para ouvi-lo e com ele estudar. Jesus fazia suas
refeições nos shabat nas casas dos fariseus e prontamente aceitava seus convites (Lucas 7,36; 11,37; 14,1).
Trai-se o viés tendencioso do evangelista no relato que faz do que ocorreu numa tal refeição de shabat:
primeiro, é dito que os fariseus, que eram anfitriões de Jesus, "o estavam observando" (Lucas 14,1),
insinuando que, como algo já esperado, queriam apanhá-lo em alguma transgressão. Nesse momento,
apareceu um homem hidrópico, e Jesus perguntou aos "advogados e fariseus" presentes se seria legal curar
um homem no shabat (Lucas 14,2-3). Sua pergunta parece ter sido inteiramente retórica: tanto Jesus como
o evangelista sabiam a resposta e que, qualquer que ela fosse, Jesus iria curar o homem, pois acaso não
ouvimos, no capítulo precedente do mesmo Evangelho, a censura de Jesus a um "chefe da sinagoga" que
arriscara a opinião de que era proibido curar no shabat (Lucas 13,14-16)? E num capítulo anterior ficamos
sabendo de um homem "cuja mão direita estava ressequida" e que Jesus curou no shabat, na mesma
sinagoga onde "escribas e fariseus" estavam presentes e "observavam-no, procurando ver se ele faria a
cura no shabat, para acharem do que o acusar (Lucas 6,6-7). Nessa ocasião prévia, Jesus fizera aos
"escribas e fariseus" a mesma pergunta, e ali ela fora admitida e manifestadamente retórica: "Que vos
parece? É lícito no shabat fazer o bem ou o mal; salvar a vida ou deixá-la perecer?" (Lucas 6,9). Esse
episódio também é relatado nos Evangelhos de Marcos e Mateus; em Marcos as palavras de Jesus são
similares às que são citadas em Lucas (Marcos 3,4); mas, em Mateus, diz-se que ele perguntou aos
"fariseus": "Qual dentre vós será o homem que, tendo uma ovelha e, num ~ shabat, esta cair numa cova,
não fará todo esforço para tirá-la dali?
Ora, quanto mais vale um homem que uma ovelha? Logo, é lícito fazer o bem aos shabat" (12, 11-12).
Esta, curiosamente, é a resposta que Lucas coloca na boca de Jesus na refeição do shabat com os fariseus:
"Qual de vós, se um jumento ou um boi cair num fosso, não o tirará logo, mesmo em dia de shabat?"
(14,5) Temos assim duas respostas: uma em que os "fariseus" são diretamente advertidos de que,
exatamente como se salvam animais no shabat, assim deve-se permitir salvar também vidas humanas; e a
outro em que a advertência consiste em que não pode ser legal praticar o mal no shabat, mas deve ser legal
praticar o bem. As duas têm o seguinte em comum: claramente indicam que os "fariseus", como coisa
natural, e talvez também de lei, não praticariam o mal no shabat -salientava-se apenas que não praticariam
o bem; ou que os "fariseus" salvariam, novamente como coisa natural e talvez também de lei, sua própria
propriedade no shabat -salienta-se apenas que não salvariam vidas humanas. Essas espécie de reflexão
sobre os que praticavam o mal, matavam ou eram avarentos no shabat é, no que diz respeito a Jesus,
inoportuna; e só pode servir ao propósito tendencioso dos evangelistas. A resposta natural ( e verdadeira) a
dar, ou antes, a maneira simples e honesta de formular a resposta que Jesus deu, seria a seguinte: é claro
que é legal praticar o bem e salvar a vida no dia de shabat! Nenhum dos Evangelhos alega que os
"fariseus", com ou sem "escribas", sustentaram que era ilegal curar no shabat: eles apenas "observaram", e
uma vez perguntaram especificamente a Jesus se era legal, "com o intuito de acusá-lo" #Mt 12:10. Mas
tendo visto Jesus curar, e ouvido suas razões, eles ainda uma vez "nada disseram" #Lc 14:4, pois "a isto
nada puderam responder" #Lc 14,6, não porque tenham ficado estupefatos, se sentido vencidos em astúcia
ou ofendidos, mas porque não podiam disputar a decisão de Jesus ou de qualquer forma censurar sua
conduta: curar no shabat, como Jesus curara, era perfeitamente lícito de acordo com a lei farisaica, mesmo
quando a vida não corria qualquer perigo iminente.8 A imagem dos fariseus que os evangelistas tinham ou
- 27 -
inventaram era de teimosos e inflexíveis legalistas: observando talvez, com horror, a meticulosa
obediência do repouso sabático absoluto por seus contemporâneos judeus ortodoxos, eles simplesmente
não podiam conceber que também sobre a cura não incidiria a interdição. lndubitavelmente, eles possuíam
muitas tradições de atos de cura por Jesus e situavam alguns desses atos no shabat, para formar a arena em
que um choque entre Jesus e os "fariseus" pudesse ser convenientemente montado. O choque foi então
devidamente encenado, com uma quantidade suficiente de observações mordazes, colocadas
impolidamente na boca de Jesus, introduzidas para bom efeito, e o resultado, premeditado como é, já não
pode surpreender: os "fariseus" se "encheram de furor e discutiram entre si quanto ao que fariam a Jesus"
(Lucas 6,11}; ou "retirando-se, os fariseus conspira- ram contra ele, sobre como lhe tirariam a vida "
(Mateus, 12, 14 }. Segundo Marcos, os fariseus, "retirando-se, logo conspiraram com os herodianos contra
ele, sobre como lhe tirariam a vida" (3,6}, como se os herodianos, entre todas as pessoas, pudessem ficar
chocados com a notícia de que um homem doente fora curado num dia de shabat.
Não que seja inconcebível que, na época do ministério de Jesus, a questão da permissibilidade da cura no
shabat ainda estivesse para ser resolvida. Podia ser que este fosse um dos incontáveis problemas legais e
religiosos ainda por serem discutidos ou determinados, e que a lei farisaica que foi preservada pertença a
um período subseqüente. Podia então acontecer que, se um homem enfermo se apresentasse num shabat
pedindo tratamento e remédio imediatamente, um erudito pudesse perguntar se a lei o permitia. Em
qualquer disputa que se seguisse, poderiam ser ventiladas opiniões contraditórias e sempre poderia haver
entre os eruditos um momento prático que, antes de mais nada, socorreria o sofredor e só depois
contribuiria para a discussão acadêmica, defendendo sua ação. Ninguém podia reprovar que tal homem
infringisse a lei: esta ainda não estava decidida, sendo que sua concepção do que ela era, ou devia ser,
seria tão válida e teria tanta força quanto a de outro homem. Numa situação legal indeterminada como
esta, a norma farisaica consiste em que cada um pode agir como julga correto; e na formação da lei judia
uma norma particular cristaliza-se repetidamente em virtude de um erudito com- portar-se na prática como
se ela já fosse em vigor. Não podia, portanto, haver qualquer objeção ou protesto, da parte dos fariseus,
quanto a Jesus curar os enfermos no shabat, mesmo se ainda não houvesse sido codificada a norma que
tornava a prática legal; podia haver diferenças legítimas de opinião, mas nenhuma objeção rancorosa
poderia ser feita a uma opinião divergente entre as diversas em vias de serem apresentadas e
demonstradas.
Curar não foi a única suposta profanação do shabat que proporcionou aos evangelistas uma causa e um
clima de atrito entre Jesus e os "fariseus". Diz-se de seus discípulos que, acontecendo de passarem eles
com Jesus "em dia de shabat pelas searas", com -ou assim parece -os "fariseus" de novo convenientemente
presentes, "colhiam espigas" (Marcos 2,23) e as comiam (Mateus 12,1), "debulhando-as com as mãos"
(Lucas 6,1). Os "fariseus" disseram a Jesus: "Eis que os teus discípulos fazem o que não é lícito fazer em
dia de shabat" (Mateus 12,2; e, em forma de pergunta, Marcos 2,24; Lucas 6,2). Antes de examinarmos a
resposta de Jesus, que nos seja permitido considerar a lei farisaica: é permitido colher espigas num shabat
para o consumo próprio no lugar; o que não se pode fazer é colhê-lo para empilhar e fazer a colheita,
provavelmente com um instrumento, tal como uma foice ou pá. Os discípulos aparentemente colhiam
apenas a espiga com o grão e deixavam a haste intacta, o que não chegava a ser uma sega, de acordo com
o significado da proibição.¹³ Deve ser observado que, nesse caso, não era Jesus que colhia; diferentemente
do caso da cura, no qual ele deliberadamente atuou de forma pessoal, para marcar seu ponto doutrinário,
neste caso os discípulos colhiam as espigas inocente e instintivamente, como se fosse a coisa mais comum
e natural; e presumivelmente não teriam agido assim se a lei proibisse fazê-lo no shabat. Não eram eles os
grandes reforma dores da lei, e não há sinal nos Evangelhos de que Jesus já os libertara de qualquer das
proibições do shabat. Mas a resposta de Jesus aos "fariseus" não consistiu em que o que faziam os
discípulos era perfeitamente legal; talvez ele próprio pensasse que não o era, ou que era duvidoso, ou
talvez ele não quisesse entrar em qualquer discussão quanto às tecnicalidades dos regulamentos do shabat.
O que ele disse, com efeito, foi que os discípulos tinham tido fome, pois ele citou o precedente de Davi
"quando ele e seus companheiros tiveram fome: Como entrou a casa de Deus, e comeu os pães da
proposição, os quais não lhe era lícito comer" (Mateus 12,3-4; Marcos 2,25-26; Lucas 6,3-4); assim como
Davi julgou correto infringir a lei para aliviar a fome e a necessidade, assim eu, Jesus, julgo correto
infringir o shabat se há fome e necessidade para serem satisfeitas; " e acrescentou: o shabat foi
estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do shabat" (Marcos 2,27). De novo, não há
- 28 -
registro de que os "fariseus" tenham replicado; as palavras de Jesus concluem os relatos que o Evangelho
faz do episódio. Tampouco teriam eles qualquer resposta a dar: é bem verdade que Davi compeliu o sumo
sacerdote a entregar o sagrado pão da proposição em suas mãos, e embora o cronista não nos esclareça
quanto ao motivo do pedido de Davi (a não ser dizendo que ele pretendia falsamente agir por ordens do
rei), é igualmente verdade que a tradição judia consiste em que ele deve ter estado patológica e
vorazmente faminto. O sumo sacerdote, no entanto, parece ter estado inteiramente inconsciente da sua
fome e ter obedecido apenas à ordem de um monarca distante (1 Samuel21, 1-6).0 que é interessante, em
qualquer hipótese, é que Jesus deu aos "fariseus" a interpretação farisaica tradicional do delito de Davi, e
assim, em boa maneira farisaica, aduziu-a como um precedente para sua própria indulgência. O fato de
que o precedente, como se diria, não se enquadra com perfeição no caso em estudo é feito abundantemente
claro pelo próprio Jesus, pois, enquanto ninguém, nem sequer os "fariseus", pode negar que o shabat foi
feito para o homem, e não o homem para o shabat, todos concordarão em que o sagrado pão da
proposiçãO foi feito para Deus e só podia ser consumido, para ser substituído, por sacerdotes (Levítico
24,9). É possível que a referência a Davi e à sua apropriação ilegal do pão da proposição não passasse de
uma abertura para a declaração conclusiva de Jesus de que "O Filho do Homem também é senhor do
shabat" (Lucas 6,5; Marcos 2,28; Mateus 12,8), o que significa que, como Davi, o "filho de Deus" é
soberano na interpretação e aplicação das leis de Deus.
Essa maneira de entender resolveria talvez a dificuldade patente de que, não obstante esta soberania, Jesus
expõe razões legais farisaicas para afirmar a legalidade do comportamento de seus discípulos.]6 Para
nosso propósito, basta observar que na disquisição entre Jesus e os "fariseus" provocada pelo incidente das
espigas, Jesus voltou a enfrentar qualquer desafio que pudesse ter havido e satisfez seus interlocutores
com argumentos que representavam a melhor dialética farisaica.
Considerações similares aplicam-se a outros confrontos doutrinários relatados entre Jesus e os "fariseus",
com ou sem "escribas", vários dos quais consideraremos ilustrativamente. Há a lavagem de mãos: conta-se
que "fariseus" vieram a Jesus e lhe perguntaram: "Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos
anciãos? Pois não lavam as mãos quando comem pão" (Mateus 15, 1-2). No Evangelho segundo Marcos,
o que está escrito é que quando os "fariseus" viram "alguns dos discípulos comer pão com as mãos
impuras, isto é, sem as lavar, censuraram o fato (7,2). Marcos então fornece uma explicação discursiva:
"Pois os fariseus e todos os judeus, observando a tradição dos anciãos, não comem sem lavar
cuidadosamente as mãos; quando voltam da praça, não comem sem se aspergirem; e há outras coisas que
receberam para observar, como a lavagem de copos,jarras, vasos de metal e mesas; interpelaram-no os
fariseus e os escribas: por que não andam os teus discípulos de conformidade com a tradição dos anciãos,
mas comem com as mãos por lavar?" (7,3-5). A história em Lucas é diferente: nela, não são os discípulos
que deixam de lavar as mãos antes das refeições, mas o próprio Jesus, e a pergunta incrédula não é feita
por "fariseus" e "escribas" não identificados, mas pelo fariseu a cuja mesa Jesus havia sido convidado a
comer (11, 37-38). Agora, será observado que em nenhuma parte nas palavras atribuídas aos "fariseus" há
acusação de qualquer infração da lei: eles se queixam é da não observância de uma "tradição" comum aos
"fariseus e a todos os judeus".
O fato é que a lavagem de mãos antes das refeições foi primeiro estabelecida como uma norma de lei por
El'azar bem Arakh, que ensinou mais de cinqüenta anos depois da morte de Jesus, e muito depois ainda
encontramos eruditos que discutem se ela é ou não obrigatória. Essa "tradição" de lavagem das mãos pode,
portanto ser corretamente comparada a normas atuais de comportamento civilizado. Não se puniria um
homem por não estar lavado ou por jantar sem ter lavado as mãos, mas -especialmente quando se trata de
um grande mestre e de um líder popular -pode-se ficar um tanto surpreendido por sua conduta e perguntar-
lhe por que ele se absteve do rito. É isso exatamente que se diz que os "fariseus" fizeram. Num lar judeu
onde, segundo Lucas, Jesus fora convidado a comer, todos os outros convidados e o anfitrião,
automaticamente, e como "todos os judeus" sempre faziam, lavariam suas mãos antes de sentar-se; se
Jesus não se juntou a eles, mas se recusou expressamente a lavar as mãos, isto seguramente deve ter
provocado comentários e perguntas. E não há necessariamente qualquer censura na pergunta; pelo
contrário, ela pode ter sido feita com espírito verdadeiramente acadêmico, como tais questões são
colocadas nas discussões talmúdicas. Dar-se-ia -poderia perguntar um convidado -que nossa tradição de
lavar as mãos antes das refeições e de lavar taças, vasos, escudelas e mesas está errada, porque envolve,
como ocorre o consumo de grandes quantidades de água, um bem cujo suprimento era muito pequeno e
- 29 -
custoso na Jerusalém daqueles dias? Talvez você se abstenha de se lavar por alguma razão válida, e nós
deveríamos seguir o seu exemplo e modificar nossa tradição. Mas, de novo, a pergunta pode nunca ter sido
feita. É possível que Jesus ou seus discípulos tenham sido inteiramente mal representados e que todo o
incidente foi inventado para dar lugar à resposta de Jesus: "Vós, fariseus, limpais o exterior do copo e do
prato; mas o vosso interior está cheio de rapina e perversidade" (Lucas 11,39), uma censura, por sinal, um
tanto descortês para com seu anfitrião fariseu. Ou: "Negligenciando o mandamento de Deus, guardais a
tradição dos homens, como a lavagem de vasos e taças, e muitas outras coisas como essas fazeis" (Marcos
7,8). Mas essa espécie de resposta não responde absolutamente a pergunta: compreensivelmente, Jesus
insistiu, em seu próprio nome e no de seus discípulos, para que não se contentassem em estar limpos por
fora, mas que estivessem sempre igualmente puros por dentro, o que não significa que, para estarem puros
por dentro, eles devessem estar sujos e impuros por fora.
O dito de Jesus de que não se serve Deus honrando-o com os lábios, mas apenas adorando-o no coração
(Mateus 15,8) e de que o que se faz por fora não é de qualquer uso ou proveito se não vier do coração,
também não é nada de novo para "fariseus". Como o próprio Jesus lhes disse, ele estava apenas afirmando
o que o profeta Isaías dissera muito tempo antes (Marcos 7,6; Mateus 15J) e em termos ainda mais fortes.
Se Jesus viu na lavagem de mãos um gesto vazio, ele contava com uma boa autoridade de longa data para
denunciá-lo, como, na verdade, ele o fez com esta e com camuflagem ritualística semelhante, em termos
inequívocos: "Vós devorais as casas das viúvas e, para o justificar, fazeis longas orações" (Mateus 23,14);
"Vós dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e tende negligenciado os preceitos mais
importantes da lei, da justiça, da misericórdia e da fé; devíeis, porém, fazer estas coisas sem omitir
aquelas" (23,23); "Vós limpais o exterior do copo e do prato, mas estes por dentro estão cheios e rapina e
intemperança. Fariseu cego! Limpa primeiro o interior do copo, para que também o seu exterior fique
limpo" (23,25-26); "Vós sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora se mostram belos, mas
interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundície. Assim, também vós exteriormente
pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade" (23,27-28).
De caso pensado, eu omiti dessas citações as invectivas que o evangelista faz Jesus pronunciar, tais como
víboras, serpentes, tolos ou guias cegos, e, por um momento, ponho de lado o fato de que se diz que esta
série de exortações é dirigida aos "escribas e fariseus". De fato, ela não tinha de ter esse alvo, mas poderia
muito bem, e muito apropriadamente, ter tido como intenção atingir o povo em geral. Duvido que, mesmo
no tempo de Jesus, os "escribas e fariseus", quem quer que fossem eles, monopolizassem a hipocrisia ou o
ritualismo vazio: deve ter havido hipócritas e ritualistas ilusórios entre os saduceus e também entre os
ignorantes. Como exortações para toda a nação, todas as queixas e exigências de Jesus são perfeitamente
justificadas, e todo verdadeiro fariseu as apoiaria de todo coração. Se um pregador se dirige à totalidade de
sua congregação, reprovando os membros por pecado e más ações e hipocrisia, nem o mais devoto e mais
sincero congregado pode sentir-se ofendido; ele presumiria, ou talvez soubesse, que havia homens na
congregação a quem as reprovações eram destinadas e, em seu coração, aliar-se-ia sem reservas com o
pregador e todas as suas palavras, Mas se um pregador singularizasse um certo grupo, o identificasse por
nome ou traço distintivo, e então o bombardeasse com censuras públicas, lançando insultos e invectivas
contra ele, o pregador poderia ver-se chamado a fornecer prova da veracidade de cada censura e a respeito
de cada membro identificável do grupo. Jesus não foi compelido a tal, pois nunca teria pronunciado esses
insultos e porque nunca singularizou "os escribas e fariseus" como alvos particulares de suas
admoestações; e os evangelistas que colocaram toda essa calúnia em sua língua e que deviam, portanto, ter
sido assim compelidos, nunca teriam sido capazes de proporcionar a menor prova. Não que não houvesse
hipócritas e pecadores também entre "escribas e fariseus". Certamente havia, mas como um grupo, como
escribas e como fariseus, eles não eram piores, porém muito melhores que o cidadão médio.
Nesse contexto, devemos notar que o termo "hipócrita" não é reservado nos Evangelhos exclusivamente a
"escribas e fariseus": encontramos assim apostrofado o público geral (Lucas 6,42; #Mt 7,5) e, em sua
referência às profecias de Isaías, Jesus disse que elas eram dirigidas a "vós, hipócritas" (Marcos 7,6). O
uso do termo por Jesus ao dirigir-se aos seus públicos de pecadores, reais ou potenciais, pode ter sido uma
tradição original, sendo acrescentadas pelos evangelistas termos suplementares como "escribas e fariseus".
Como veremos, no bem mais posterior Evangelho segundo João, uma grande parte do que nos Evangelhos
Sinópticos havia sido atribuído a "escribas" ou "fariseus", ou a ambos, passa a ser atribuído aos "judeus";
mas o objetivo parece ser antes uma melhor e mais ampla atribuição de responsabilidade do que uma
- 30 -
reabilitação de "escribas" ou "fariseus". Na alteração doutrinária relatada em João, são, de novo,
principalmente os "fariseus" que figuram como litigantes de Jesus (8,3, 13; 19,13, 15, 16,40), e vemos
"muitos dos judeus" contando aos "fariseus" "os feitos que Jesus realizara" (11,45-46).
Lucas escreve que imediatamente depois do ataque de Jesus contra os hipócritas "fariseus" foram trocadas
palavras entre ele e os "advogados" -no original grego nomikoi, pessoas instruídas nas leis (nomoi)
-aparentemente não-fariseus que, juntamente com Jesus, haviam sido convidados jantar à mesa do fariseu.
Eles lhe disseram: "Mestre (ou antes, "Rabbi"), dizendo estas coisas, também nos ofendes a nós outros"
(11,45), significando provavelmente que eles também, e não apenas os "fariseus", gostavam das
"primeiras cadeiras nas sinagogas e das saudações nas praças" (11,43; similarmente, Mateus 12,38-39) e
lavavam suas mãos regularmente, e certificavam-se de que estavam limpas suas taças e mesas. Diz-se que
essa voluntária e aparentemente inocente admissão de culpa por parte dos "intérpretes da lei" fez também
recair sobre eles a ira de Jesus: "Ai de vós também, intérpretes da lei" E ele os censurou não apenas por
sobrecarregar os homens "com fardos superiores às suas forças, mas vós mesmos nem com um dedo os
tocais", mas também por edificar "os túmulos dos profetas" que os pais deles haviam assassinado (11,46-
48). Enquanto a primeira acusação parece ser dirigi da especificamente contra intérpretes da lei e
legisladores, cujo ofício é carregar outros com fardos, em vez de carregá-los eles mesmos, a segunda
presta-se decididamente a ser dirigida ao povo como um todo, inclusive os "fariseus", tanto mais quanto
como, no fundo, é uma introdução ao anúncio que se segue "dos profetas e apóstolos" por vir, que também
serão mortos e perseguidos como o foram os profetas dos tempos antigos ( 11, 49) -mas seguramente não
necessariamente por intérpretes da lei. Parece válida a conclusão, se não inevitável, de que muitos dos
ditos de Jesus relatados pelos evangelistas como dirigidos a "escribas" ou "fariseus" ou "intérpretes da lei"
foram, na realidade, falados a todos os judeus ou foram feitos para tal. '
Similarmente, a longa arenga em Mateus, com o refrão repetido sete vezes "Ai de vós, escribas e fariseus"
(23,13-29), não passa de um prelúdio para a profecia que vem em último lugar: "Assim, contra vós
mesmos, testificais que sois filhos dos que mataram os profetas. Enchei vós, pois, a medida de vossos
pais. Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação do inferno? Por isso eis que vos envio
profetas, sábios e escribas. A uns matar eis e crucificareis; a outros açoitareis nas vossas sinagogas e
perseguireis de cidade em cidade, para que sobre VóS recaia todo o sangue justo derramado sobre a terra,
desde o sangue do justo Abel até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem mataste entre o
santuário e o altar. Em verdade, vos digo que todas estas coisas hão de vir sobre a presente geração"
(23,31-36). Observar-se-á que, antes da profecia da morte e crucificação de alguns dos "profetas e sábios e
escribas" que devem vir, o evangelista desvia-se de "escribas e fariseus", aos quais se referia
anteriormente, para "serpentes, geração de víboras". O termo "geração" ocorre várias vezes nos relatos que
o Evangelho faz dos discursos de Jesus com vários sentidos: geração adúltera e pecadora (Marcos 8,38),
geração má (Lucas 11,29), geração perversa e sem fé (Mateus 17,17; Lucas 9,41) e coisas semelhantes,
mas a forma específica de "geração" não se limita a "fariseus" ou a qualquer outro grupo. Toda a nação,
não apenas os "fariseus", são os "filhos daqueles que mataram os profetas" e é sobre eles, que serão eles
próprios, ou que produzirão os assassinos e crucificadores dos profetas por vir, que recairá todo o sangue
justo derramado nas gerações precedentes.
Pode-se assumir sem hesitação que Jesus; na verdade, pregou para a geração má e pecadora e despida de
fé: nenhum pregador ou profeta, em qualquer época, agiu de outra forma. No Evangelho segundo Marcos
(7,21-23), diz-se que Jesus pregou sobre "todos os homens" e para eles. O fato de que prefaciava suas
profecias e pregações Com recorrentes vilificações de "escribas" e "fariseus" -e isso deve ter sido o que oS
evangelistas tinham em mente -transmite a impressão de que esses mesmoS "escribas" e "fariseus" serão
os assassinos e os crucificadores, por fim, nascidos de antepassados que sempre promoVeram o
derramamento farto do sangue dos justos. Esses hipócritas somos levados a acreditar, lavam-se
exteriormente só para esconder uma impureza interna; eles VoS convidam a Comer à sua mesa só para
matar-voS, "por sutileza " (Mateus 26,4), Com intuito de tirar das vossas próprias palavras motivoS para
vos acusar (Lucas 11,54). Nada têm na cabeça a não ser "extorsão e excesso" (Mateus 23,25), e toda
devoção que professam não passa de um astuciosa máscara para a "hipocrisia e a iniqüidade" que os
preenche (23,28). Será necessário, então, que nos espantemos Com que nada signifique para eles derramar
sangue justo e inocente? Eles o cobrirão Com um ou outro cerimonial e lavarão as mãos Como antes. De
corações Como os deles nada flui, a não ser "maus pensamentos, assassinatos, adultérios, fornicações,
- 31 -
roubos, perjúrios, blasfêmias" (Mateus 15,19), e eles se maculam Com todos os crimes da terra, não
apenas -Como é o nosso caso, de nós que nos queixamos deles - Com o pecadilho de não nos lavarmos
antes de Comer (15,20). Aqui se tem a perfeita descrição do caráter dos vilões que, no fim da história,
organizarão todos os horrores. Se, na verdade, Jesus acumulou sobre os "escribas" e "fariseus" apenas uma
fração das terríveis maldições que os evangelistas lhe atribuem, não surpreende que os discípulos, Como
nos é dito, sentiram-se compelidos a avisá-lo de que os "fariseus" se sentiam um tanto insultados: "Sabes
que oS fariseus, ouvindo a tua palavra, se escandalizaram?" (15,12).
Aprendemos que "os principais sacerdotes e os escribas" ficaram "indignados" Com Jesus quando eles
viram "as maravilhas" que ele fazia e souberam dos aplausos que havia recebido (Mateus 21,15); ele, de
fato, fizera "coisas maravilhosas" curando os cegos e os Coxos (21,14). Em dois exemplos anteriores, seus
feitos de cura já haviam provocado comentários adversos. Quando ele curou um homem "paralítico",
tendo-lhe primeiro perdoado os pecados, "alguns escribas" "disseram consigo: Este homem blasfema"
(Mateus 9,2-3); no Evangelho segundo Lucas, juntam-se aos "escribas" os "fariseus" (5,21). Em outro
momento, "trouxeram-lhe um endemoninhado, cego e mudo; e ele o curou, passando o mudo a falar e a
ver. E toda a multidão se admirava e dizia: é este porventura o Filho de Davi? Mas os fariseus, ouvindo
isto, murmuraram: Este não expulsa os demônios senão pelo poder de Belzebu, príncipe dos demônios"
(Mateus 12,22-24). Lucas substitui os "fariseus" por "povo", que "admirava e dizia: Ele expulsa os
demônios pelo poder de Belzebu, príncipe dos demônios" (11,14-15).
Há, portanto, três variações de um só tema: os êxitos miraculosos de Jesus como curador desagradaram
aos "escribas", com ou sem "fariseus"; primeiro, porque eram avarentos e lhe invejavam o aplauso (Lucas
16,14 ); segundo, porque viam em suas pretensões uma usurpação de prerrogativas divinas; e terceiro,
porque suspeitavam que maquinações diabólicas estariam por trás de seu ato de expulsar os demônios.
Ora, é intrinsecamente provável que muitos "escribas" e "fariseus" podem ter inveja dos feitos
excepcionais de uma outra pessoa. Naquele tempo, os processos e métodos de cura não eram monopólio
de qualquer profissão médica ou escola de pensamento. As pessoas acreditavam que uma enfermidade ou
incapacidade era uma punição de Deus, seja pelo pecado da própria pessoa ou pelo pecado de seus
ancestrais, ou um mal sinistro causado pelo inferno. Certas fontes antigas parecem sugerir que a doença
física seria devida à intervenção divina, e a mental à intervenção satânica. A terapia, é claro, tinha de ser
adaptada à natureza e à origem da enfermidade. Expulsar demônios era um processo diferente de
conseguir a misericórdia e o perdão de Deus. Sabemos pelo Tal mude que "murmurar", por exemplo, era
um modo reconhecido de tratamento,²¹ mas havia uma opinião dissidente de que não se devia permitir
qualquer murmÚrio "no que dizia respeito aos demônios", o que parece implicar que, para os estados
demoníacos, prescreviam-se outras curas e que murmurar era apenas bom para as enfermidades naturais
-quer dizer, enviadas por Deus. O fato de que a cura era tentada tocando-se a parte enferma do corpo, ou
pela imposição das mãos, ou por massagem, ou esfregando-se saliva nela, também é atestado no
Talmude;²² e, é quase desnecessário dizer, as preces sempre seriam o melhor e o último recurso (Números
12,13). O que todas essas técnicas têm em comum, é natural, consiste em que não exigem artifícios
mecânicos ou químicos: antes do que conhecimento médico ou perícia cirúrgica, seu êxito depende da
graça e condescendência divinas. Os eruditos fariseus, que podem com justiça se ter considerado
eminentemente qualificados para rogar a Deus e invocar sua ajuda e misericórdia, devem ter sofrido uma
frustração abissal com sua impossibilidade de curar ou mesmo aliviar a dor do homem enfermo que Jesus
curou com umas poucas palavras ou pelo toque de sua mão. E aqueles que - como todo mundo
-acreditavam em demônios podem perfeitamente ter pensado que poderes sobrenaturais estavam ajudando
Jesus, mais particularmente nos casos em que as doenças eram em geral atribuídas a um mal demoníaco.
Quanto às enfermidades infligidas como punição de Deus, todo judeu acreditava na onipotência de Deus, e
a insondável escolha do instrumento para executar Sua vontade e os objetos de Sua graça nunca seriam
contestados. Podia haver inveja de que a escolha divina recaísse no vizinho, que poderia, em julgamento
humano, ser considerado indigno, mas nunca haveria demonstração do "desprazer" suscitado por esse
sentimento. Tampouco podia a manifesta aceitação divina da cura de Jesus provocar qualquer acusação de
blasfêmia: pelo contrário, o que poderia ser blasfemo seria a negação da manifestação de Deus na cura
milagrosa do aparentemente incurável. O fato de que essas pessoas eram curadas é prova conclusiva de
que seus pecados haviam sido perdoados, senão Deus não teria cancelado a punição que julgara adequado
aplicar-lhes. As palavras de Jesus, "Filho, os teus pecados estão perdoados" (Marcos 2,5; Mateus 9,2)
- 32 -
podem ser interpretadas como expressando um perdão de Deus, e não necessariamente um perdão de Jesus
independentemente Dele. A Bíblia e o Tal mude estão cheios de pronunciamentos autorizados feitos por
homens mortais de que Deus perdoou, ou perdoará, os pecados em geral ou transgressões particulares.
Nunca entrou na cabeça de alguém encarar tais pronunciamentos como blasfêmia ou como coisa que de
alguma forma invadia a prerrogativa de Deus. Não há meio de escapar à suspeita de que a alegação de
blasfêmia, fora de lugar como está nesse contexto, só foi inserida para preparar o caminho, e ,o espírito
para a acusação de “blasfêmia", que reaparecerá num estagio muito posterior e mais critico. Conta-se que
os sacerdotes e escribas mostraram-se mais indignados pelo que Jesus fez e disse no Templo a respeito
dele. Com efeito, sua afirmação de que "Não ficará aqui pedra sobre pedra, que não seja derrubada"
(Mateus 24,2; Marcos 13,2) prestava-se -e tinha essa intenção -a entristecer e a alarmar: era uma profecia
de ruína iminente, de castigo divino a ser aplicado logo. Como os agouros que Jeremias pronunciara no
mesmo sentido séculos antes, a predição de Jesus deve ter enchido os corações judeus de medo e
desânimo. Mas não havia nela qualquer coisa de ofensivo ou ilegal: o fato de que em certos tempos Deus
punia o Seu povo com uma terrível calamidade era sustentado de maneira demasiado convincente pela
opressão romana e pela perda da liberdade e da independência. O fato de que, não obstante tais
inequívocos efeitos da ira divina, os homens não se emendavam, mas persistiam no pecado, ninguém sabia
melhor ou deplorava mais amargamente do que sacerdotes e fariseus. E o fato de que a fúria ardente de
Deus podia em breve acender outra e mais horrenda conflagração era uma advertência oportuna, não
sendo necessária muita originalidade para fazê-la soar. E Jesus não foi único nisso: encontramos em
Josefo pelo menos dois outros que trombetearam as mesmas antecipações de desastre;3 e deve ter havido
não poucos que não foram registrados. Nada há nos Evangelhos que indique que foi essa espécie de
profecia que impeliu sacerdotes, escribas ou fariseus à ação ou indignação, nem havia nela qualquer coisa
para justificar um tal impulso, até que não se demonstrasse conclusivamente ser falsa (Deuteronômio
18,21-22). Outro pronunciamento atribuído a Jesus, de que ele próprio destruiria o Templo e o
reconstruiria em três dias #Jo 2,19, foi escolhido por Marcos (14,58) e Mateus (26,61) como motivo de
seu indiciamento perante o Sinédrio; a isso voltaremos no momento devido e com mais detalhes.
Mas enquanto as palavras de Jesus sobre a iminente destruição do Templo podem ser explicadas e aceitas
como profecias neutras e inofensivas feitas com o propósito inteiramente louvável de exortar o povo a
emendar-se, afirma-se que seus atos no Templo tinham de levar os sacerdotes e os dignitários em posição
de autoridade a uma ira tão incandescente, que era inevitável que se tomassem medidas drásticas contra
ele. Esta é a história famosa: "Tendo Jesus entrado no Templo, expulsou a todos os que ali vendiam e
compravam; também derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas. E disse-
lhes: Está escrito; a minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a transformais em covil de
salteadores" (Mateus 21,12-13). Quando os "principais sacerdotes e os escribas o ouviram", eles
"procuraram um modo de lhe tirar a vida" (19,47). Se, com efeito, como foi muitas vezes argumentado, o
"ataque de Jesus ao Templo" punha em perigo todo o sistema de comércio e "constituía um desafio dos
mais radicais à autoridade da aristocracia sacerdotal" e se, com efeito, foi "tomado pela aristocracia
sacerdotal como uma declaração de guerra contra ela por Jesus",24 é difícil compreender por que motivo
as autoridades do Templo não agiram instantaneamente contra ele. Tinham à sua disposição a polícia
armada e podiam facilmente ter mandado prender Jesus no ato. O fato de que Jesus gozava de apoio
popular e pode mesmo - como se conjectura - ter feito a limpeza do Templo com a ajuda de "uma multidão
excitada de seus seguidores" daria mais razão ainda para a pronta e enérgica intervenção policial para
restaurar a ordem e impedir a violência e a pilhagem. Não apenas as autoridades não interferem, mas
aparentemente recebem bem Jesus no Templo e deixam-no ensinar ali todos os dias. Mesmo se não o
mandaram prender pela policia do Templo, o mínimo que fariam seria expulsá-lo e negar-lhe qualquer
facilidade para ensinar no Templo. Mas, em vez disso, deixaram-no expulsar os compradores, vendedores
e cambistas.
A incongruência da história não escapou ao autor do Evangelho de Marcos, que sente ter de proporcionar
algum motivo que explique porque os "escribas e principais sacerdotes" não procederam imediatamente
contra Jesus. Assim, ele nos informa que "eles o temiam, porque toda multidão se maravilhava de sua
doutrina" (11,18), querendo dizer, é certo, que ressentiam não apenas o que ele fazia e ensinava, mas, mais
particularmente, sua imensa popularidade: apenas um dia antes os cidadãos de Jerusalém lhe haviam dado
uma inflamada recepção (11,8-10). Se desejavam roubar-lhe a lealdade popular, que melhor oportunidade
- 33 -
podia haver do que pegá-lo em flagrante delito e detê-lo por profanação dos locais do Templo e usurpação
da autoridade do Templo? Não é provável que os burgueses suportassem uma profanação do Templo, e a
manutenção da paz e da ordem nas dependências sagradas era um dever de polícia, cuja execução
angariaria o apoio e a ajuda do público. E se os seguidores de Jesus tivessem resistido à sua prisão, e esta
resistência tivesse sido bem sucedida, as autoridades teriam tido então um motivo perfeitamente legal e
razoável para processá-lo logo que pudessem lhe pôr as mãos; e é exatamente isso, dizem-nos, que elas
queriam tanto fazer!
O fato simples é que o ato que Jesus praticou, de "limpar", não era de qualquer forma uma ofensa: nossos
dados são uma indicação de que ele deve -pelo menos tacitamente -ter contado com a aprovação das
autoridades do Templo.
seja-nos permitido, antes de mais nada, examinar o local onde isto se poderia ter passado. As traduções do
Evangelho, que o nomeiam "o templo", são inexatas: a localidade mencionada nos Evangelhos é o Monte
do Templo, uma área que compreendia não apenas o Templo propriamente dito, mas também prédios
administrativos, armazéns, estábulos e bazares. A área que ficava fora do Templo, no monte, era acessível
a todo mundo, inclusive aos impuros e não-lavados: não havia ali restrição de movimento ou qualquer
limitação ou vigilância do comércio. É verdade que, nos seus negócios, todos os comerciantes
especulavam com as necessidades dos visitantes do Templo: cambistas convertiam as moedas trazidas
pelos peregrinos em siclos (ou meio siclo), o único dinheiro que circulava como doação prescrita no
Templo (Êxodo 21,113-16), sendo que três semanas antes dos festivais, quando se iniciavam as grandes
peregrinações ao Templo, os cambistas já tinham de estar em suas bancas.27 Há uma informação antiga de
que havia dois grandes ciprestes no monte: sob um havia quatro tendas para a venda de animais para os
sacrifícios, sob o outro havia tantos pombais que, dos pássaros neles criados, não apenas podiam ser
supridos todos os requisitos do Templo, mas também os mercados de todo o Israel As pombas eram
especialmente procuradas, sendo esta a oferenda sacrificial dos proletários, que não podiam se permitir
vítimas mais caras (Levítico 5,7). Havia também, sem dúvida, tendas para a venda de incenso, vinho, óleo,
e farinha pura -artigos estes concomitantes dos sacrifícios (Levítico 2,5-7,15; 7,12).
Foi sugerido que todos estes animais e mercadorias tinham de ser "oficialmente inspecionados" para não
haver "qualquer dúvida de pureza ritual"; que os peregrinos não tinham escolha, a não ser pagar bem e
mesmo exorbitantemente pela certeza de que suas ofertas não seriam rejeitadas por causa de algum
defeito; e que os sacerdotes, a quem se pagavam emolumentos de inspeção, estavam tão interessados em
seu "proveito", que se devem ter enfurecido com qualquer intervenção no trabalho dos comerciantes e dos
cambistas como uma violação descarada de sua receita. Nada autoriza esta sugestão. Nenhum animal que
não fosse "imaculado" (Levítico 3,1, 6) podia ser sacrificado; caso contrário, seria colocado à parte pelo
sacerdote, e o vendedor devia recebê-lo de volta e restituir o dinheiro da compra, sendo da essência de
qualquer venda concluída ali que fosse "imaculada" e adequada para o altar. A insinuação de que por causa
de seu interesse financeiro em obter uma comissão nas vendas os sacerdotes eram corruptos ao ponto de
sacrificar animais defeituosos não apenas não tem o apoio de qualquer prova, mas também é
intrinsecamente insensata: havia sempre centenas de sacerdotes e levitas de serviço no Templo e muitas
pessoas conhecedoras da lei, o que fazia com que o menor desvio da parte de um sacerdote oficiante de
normas sacrificiais elementares viesse a ser notado por uma dúzia de olhos atentos, sendo interrompido.
Se, por outro lado, as criaturas e mercadorias vendidas eram "imaculadas" e prontas para o sacrifício, uma
condição facilmente verificável pela inspeção externa, por que deveriam os vendedores ou os
compradores, o público, concordar em pagar comissão a um sacerdote? Era vantajoso para os sacerdotes
manter os preços dos animais sacrificados no mais baixo nível possível, para que fosse maior o número
daqueles que podiam comprar, pois tudo que fosse deixado depois do sacrifício pertencia aos sacerdotes
(Levítico 7,8 et al.); quanto mais caros os animais, mais o povo protestaria por não ter o dinheiro, sendo
obrigado a se contentar em sacrificar pombas, das quais nada sobraria para os sacerdotes. Em resumo, não
há motivo nem qualquer testemunho para se presumir que os sacerdotes, dignitários ou qualquer outra
pessoa em posição de autoridade tivesse interesse financeiro ou de outra natureza no comércio do Monte
do Templo.³° Enquanto, pois, os sacerdotes, dignitários e outras autoridades podem ser absolvidos de
qualquer participação em negócios ilícitos, os comerciantes e cambistas não contam com tal pressuposto
em seu apoio. Não havia barreiras, seja de direito, seja de costume conhecido, quanto a estabelecer-se
como comerciante de artigos para sacrifícios; não havia qualquer sistema de licenciamento segundo o qual
- 34 -
a pessoa teria de mostrar qualificação moral ou profissional. Era, portanto, praticamente inevitável que a
qualquer momento se encontrassem entre comerciantes e cambistas homens abaixo do que se esperaria
que fossem os padrões do Templo; gente que ganhava muito no preço, aproveitadores inescrupulosos,
competidores desleais, pracistas desinibidos e todo tipo de gente à procura de negócios e oferecendo
conselhos e orientação. O espetáculo é familiar a qualquer visitante de bazares orientais ou dos mercados
diante das grandes igrejas e mesquitas em terras mediterrâneas. Não é improvável que Jesus se tenha
deparado com um comerciante ou cambista no ato de roubar ou aproveitar, ou encontrado pechincheiros
brigando por causa de um cliente ou negócio, ou testemunhado uma perturbação da ordem no mercado.
Muitos outros não se teriam talvez importado, mas Jesus ficou profundamente sentido por causa da
profanação das dependências do Templo; o fato de que o lugar destinado a ser a casa de oração para todas
as nações #Is 56,7 fornecesse aos ladrões uma oportunidade para ali fazerem o seu covil (Marcos 11,17;
Mateus 21,13; Lucas 19,46) era mais do que ele podia suportar em silêncio. Além disso, sua explosão é
um eco das palavras de Jeremias: "Será esta a casa que se chama pelo meu nome, um covil de salteadores
aos vossos olhos?" (7,11), e nada havia nas palavras de Jesus que não fosse familiar de todos os que o
escutavam. Alguns autores31 encaram o incidente como prova de suas inclinações ou ligações zelotas;
mas ele não precisava ser zelota nem fanático para ficar enraivecido ante tais delitos, e sua reação rápida e
violenta pode ter sido instintiva e não planejada. A tese de que ele deve ter tido um apoio mais poderoso e
de que não poderia ter "logrado êxito, sem ajuda, para expulsar do local onde faziam negócios legítimos
um grupo de comerciantes que negociavam com clientes que necessitavam de seus serviços para
cumprirem seus deveres religiosos"32 parece irrelevante, se estiver correta nossa premissa de que os
comerciantes em questão foram pegos por Jesus em transações ilícitas. Eles bem podiam protestar contra
essa interferência, mas os clientes -e pode ter havido muitos deles -por-se-iam imediatamente ao lado dele;
os comerciantes não chamariam a polícia do Templo, pois Jesus e os clientes apresentariam então queixas
contra eles, e não o contrário. É da natureza humana que, para pessoas que, dia sim, dia não, executam um
trabalho de rotina à sombra de um local sagrado a santidade do lugar diminuirá gradualmente; o que enche
o devoto de temor e reverência deixa os lojistas de longa prática frios e indiferentes. Não seria
surpreendente, portanto, que naquela ocasião Jesus tivesse visto comerciantes deixando suas barracas e
carregando mercadoria e instrumentos para um dos átrios do Templo (Marcos 11,16), seja para ajudar um
cliente a transportar o que comprava ou mesmo para ali comerciar. Logo, era uma ofensa grave, pois
ninguém podia penetrar no Templo em situações de impureza (Levítico 15:31). O ingresso nas
dependências era proibido até mesmo "com bengalas, sapatos, maletas ou com os pés empoeirados". Não
podiam ser usadas como atalho para um caminho; nelas não se podia cuspir. Assim sendo, qualquer ajuda
das pessoas para expulsar os transgressores que, em atitude ou pertences, profanavam a santidade e a
pureza do lugar seguramente granjearia a aprovação e os agradecimentos da polícia do Templo.
Assumindo-se que Jesus derrubou as mesas dos cambistas, expulsou os comerciantes e não permitiu que
se manchassem a santidade do Templo, e assumindo-se ainda, como se deve, que, ao fazê-lo, Jesus agiu
com os melhores e mais puros motivos, nada há, mesmo diante dos próprios relatos do Evangelho, que
assegure que houve qualquer conselho ou projeto da parte de quem quer que seja, exceto, talvez, daqueles
próprios comerciantes e cambistas, para buscar vingança. A única queixa que as autoridades podem ter
tido -na correta percepção do autor do Evangelho segundo João -é a de que Jesus agira sem autoridade ou
competência formal: ele devia ter apresentado uma queixa às autoridades e pedido que se tomassem
medidas apropriadas. Mesmo esse capricho dificilmente irritaria as autoridades no caso de um homem
que, como fez Jesus, agiu no impulso do momento, pegando infratores em flagrante delito: não era lei
então, não mais do que geralmente é nos dias de hoje, que, em vez de impedir, da melhor maneira
possível, a continuação de uma ofensa que está sendo cometida em sua presença, se tenha que deixar os
transgressores prosseguirem em seus atos ilegais e se contentar em informar a polícia. Na situação em que
estava Jesus, era natural e legal para ele agir como fez, e ninguém teria recebido melhor aquela atitude do
que os administradores do Templo. Nos Evangelhos de Mateus (21,23), de Marcos (11,28) e de Lucas
(20,2), "os principais sacerdotes e anciãos", com ou sem "escribas", perguntaram a Jesus: "Com que
autoridade fazes estas coisas? E quem te deu essa autoridade?" A pergunta foi feita não necessariamente
em relação à limpeza do Templo, mas a respeito dos seus feitos e ensinamentos. Num estágio bem inicial
do ministério de Jesus, quando ele ensinou na sinagoga de Cafarnaum, as pessoas "ficaram pasmas com
sua doutrina, pois ele as ensinou como quem tem autoridade, e não como os escribas" (Marcos 1,21-22).
- 35 -
Mateus (7,28- 29) faz o mesmo espanto seguir-se ao Sermão da Montanha. Ensinar como quem tem
"autoridade" não pode significar apenas que seus discursos eram poderosos e suas doutrinas
impressionantes (cf. Lucas 4,32); significa que seu ensinamento com autoridade diferencia-se
ostensivamente de uma forma particular dos ensinamentos dos escribas, que também podiam ser
impressionantes e poderosos. Todos sabiam que Jesus não tinha "autoridade" -daí o espanto de que ele
ensinasse como se tivesse; não como os escribas, que teriam, como todos os pregadores comuns, descrito e
explicado de forma inteligível o que as leis exigiam das pessoas e como melhor observá-las, desde que se
quisesse recompensa, e não punição--" mas antes como alguém que tinha a "autoridade" de estabelecer a
lei, de determiná-la às pessoas e de prescrever novas normas de comporta- mento. Essa "autoridade"
ninguém podia tomar para si mesmo: ela tinha de ser conferida por uma pessoa já em "autoridade", num
ato formal de ordenação, um erudito já ordenado "autorizando" um segundo. No tempo de Jesus eram
muito raras tais ordenações, o que fazia com que todos soubessem quem era e quem não era ordenado. O
espanto de que Jesus falasse como se fosse ordenado sugere antes admiração do que irritação. Eis aqui um
homem, o povo poderia ter dito, que tem a coragem de suas próprias opiniões e olha para o mundo com
seus próprios olhos. Mas aquilo que, para quem ouvia impressionado, era algo a ser admirado, para as
autoridades era uma questão que preocupava: se Jesus desejava ensinar com "autoridade", ele devia
observar os procedimentos e, primeiro, buscar ordenação. A questão que, segundo consta, os principais
sacerdotes e anciãos lhe dirigiram, pode refletir tal preocupação: não tendo qualquer "autoridade" legal,
como é que você se propõe a ensinar como se tivesse? A resposta de Jesus poderia simplesmente ter sido:
não me proponho a ensinar com "autoridade", nunca fui ordenado, e não é culpa minha se o povo
compreende mal. Mas há, é claro, uma "autoridade" outra e melhor do que a ordenação formal: se João
Batista, que também não fora ordenado, não obstante falou com "autoridade", ele deve ter recebido essa
autoridade do Céu; e o mesmo pode ocorrer comigo. Mas, como vós não podeis dizer se ele tinha
autoridade divina, "Nem eu vos digo com que autoridade faço estas coisas" (Marcos 11, 33; Mateus 21,
27).
Foi aventada a teoria de que os principais sacerdotes e anciãos faziam a pergunta como um meio de
conseguir prova contra Jesus como "um ancião rebelde" (Deuteronômio 17,12),38 mas isso é
insustentável, se apenas pela razão de que o ancião rebelde era, por definição, um erudito ordenado,39 e os
que perguntavam sabiam bem que Jesus não fora e não seria ordenado. Além disso, nenhum dos
ensinamentos de Jesus pareceria enquadrar-se na categoria de ofensa de um ancião rebelde: já naquele
tempo considerava-se que a lei quanto aos anciãos rebeldes aplicava-se apenas aos saduceus, e Jesus
certamente não era um deles.
Sua reivindicação implícita de que, como João Batista, sua "autoridade" lhe vinha do Céu não podia ser
uma novidade sensacional para os que lhe faziam perguntas. Em primeiro lugar, o fato de que conseguira
reunir em torno de si multidões de ouvintes entusiásticos proporcionaria a qualquer um consciente de uma
orientação e determinação divinas sempre presentes uma prova, pelo menos prima facie, de aprovação
divina. Em segundo lugar, era certamente legítimo para qualquer homem profundamente religioso
acreditar em sua própria missão divina: Deus lhe outorgara o poder de persuadir, inspirar e guiar outros
homens para algum propósito, e que melhor propósito poderia haver do que trazer Deus para mais perto de
seus corações e mentes? Todavia, em terceiro lugar, Jesus parece ter reivindicado "autoridade" divina
antes: quando ele praticara certos feitos milagrosos, os "fariseus", com ou sem "escribas", "puseram-se a
discutir com ele e, tentando-o, pediram-lhe um sinal do céu" (Marcos 8,11; Mateus 12,38), o que significa
seguramente prova perceptível que não deixasse dúvida de que ele, com efeito, estava executando a
vontade de Deus. A glosa do evangelista de que, com essa pergunta, estavam querendo tentá-lo (Marcos 8,
11) é inteiramente arbitrária: era comum naqueles dias que os eruditos em debate, cada um insistindo que
a sua era a verdadeira interpretação das leis de Deus e seu o verdadeiro preceito de executar a vontade
Deus, apelassem ao Céu por um "sinal" quanto a quem estava certo e quem estava errado; citam-se vários
casos em que se ouviu uma "voz celestial" pronunciar o veredito divino. É característico da mentalidade
farisaica que, num desses exemplos talmúdicos, o disputante vencido rejeitou por completo o ver edito e
não quis se submeter às "vozes celestiais", afirmando que a verdadeira lei já não se encontra "nos céus,
para dizeres: Quem subirá por nós aos céus, e no-la trará?" Mas foi transmitida aos humanos na terra, e
"está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração". (Deuteronômio 30,12-14). Nesse mesmo espírito,
eles bem poderiam ter encarado qualquer autoridade divina reivindicada por Jesus como menos do que o
- 36 -
suficiente para compensar a ordenação requerida pelas leis humanas; mas o desafio que lhe apresentam
para que lhes mostre um "sinal" do céu só faz indicar que estavam muito longe de rejeitar sumariamente o
que ele reivindicava.
Nenhum fariseu jamais consideraria blasfema ou imprópria uma afirmação de autoridade divina. Quem
quer que ventilasse uma opinião, sugerisse um curso de ação, ou propusesse uma norma de lei ou de ética,
afirmaria que estava divinamente inspirado ou que a sua era a única verdadeira, "autorizada", ou autêntica
interpretação da vontade e da palavra de Deus: não haveria ouvintes se tudo o que ele tivesse a comunicar
fossem suas opiniões pessoais; a menos, é claro, que fosse um caso de ordens do rei apoiadas por
compulsão física. Atribuições expressas ou implícitas de "autoridade" divina eram inerentes à qualificação
de qualquer mestre: se ele próprio não a afirmava, ou não o podia fazer, que se poderia encontrar no que
ensinava? Naturalmente, portanto, a inspiração divina seria apresentada não apenas pelos muitos
salvadores e messias que apareceram naquela fase: buscando confortar os oprimidos e os deprimidos com
visões de uma salvação próxima nas mãos de Deus mediante seus bons ofícios, mas também pelos
"escribas", que, segundo os textos do Evangelho, ensinavam e pregavam por toda a parte. Na sociedade
judia contemporânea o nexo entre homem e Deus era direto e imediato: a aproximação de l\m judeu de
Deus não era travada por barreiras sacerdotais ou rabínicas, o que fazia com que a reivindicação de ser
divinamente inspirado nada tinha de extraordinário e não era, de qualquer forma, uma interferência em
privilégios ou monopólios sacerdotais ou rabínicos. Sob esse aspecto, Jesus não era diferente de muitos de
seus compatriotas judeus, e sua atribuição de "autoridade" divina não podia ter proporcionado, seja aos
"fariseus" ou a qualquer outro, o menor motivo de ressentimento ou má vontade.
Foi novamente o autor do Evangelho segundo João que sentiu que a reivindicação de autoridade ou
inspiração divina não podia, só ela, explicar ou validar uma atitude hostil para com Jesus; por isso ele
acrescentou à violação do shabat uma provocação maior, a saber, ele "dizia também que Deus era seu
próprio pai, fazendo-se igual a Deus" (5,18). Tornemos logo claro que não há nada nos Evangelhos
sinópticos que indique que Jesus tenha jamais dito qualquer coisa do gênero; se houvesse uma tradição de
que ele o dissera, os evangelistas indubitavelmente não a teriam suprimido: eles a teriam sublinhado e
enfatizado. O fato de ql\e o próprio autor do Evangelho de João não estava muito certo quanto a esse
ponto transparece da circunstância -de outra forma inexplicável - de que quando Jesus foi interrogado e
acusado, em seguida, não se formulou queixa contra ele, mesmo segundo João, a respeito de qualquer
afirmação de que fosse o filho de Deus e igual a Deus, sendo de esperar que este fosse o primeiro e mais
importante dos indiciamentos. Além disso, enquanto as violações do shabat e as reivindicações de ser l\m
filho de Deus e igual a Ele são apresentadas como motivos pelos quais os judeus perseguiam Jesus e
"buscavam matá-lo" (5,16), quando ele os desafiou "Por que procurais matar-me?", diz-se, contudo, que
eles responderam: "Tens um demônio: quem procura matar-te?" (7, 19-20). A insinuação nesse ponto é de
que eles mentirosamente negaram uma verdadeira acusação, mas não se deram ao trabalho de renovar a
acusação prévia de pretensões divinas. Terá sido observado que ao traçar as relações mútuas entre Jesus e
os judeus confiamos quase exclusivamente nos Evangelhos Sinópticos, e só uma ou duas vezes nos
referimos ao Evangelho segundo João. O que sugerimos é que os choques e disputas entre Jesus e os
judeus, para os quais os primeiros evangelistas parecem não ter tido tradições e que são relatadas apenas
em João, não podem prima facie ser considerados autênticos, mas devem ser tomados como acréscimos
tendenciosos pelo autor de João, cujo Evangelho, devemos lembrar, foi escrito para romanos e não-judeus
quando o cristianismo e o judaísmo haviam finalmente se apartado. Ele começa pela rejeição de Jesus
pelos judeus, seu próprio povo (1,11), e coloca o episódio da limpeza do Templo quase no início de sua
história (2,13-17): sua intenção era preservar o retrato de Jesus como um ativo rebelde contra as
autoridades e as razões do rancor e da perseguição judias como um tema sempre recorrente na mente do
leitor. O relato da decisão dos judeus de matá-lo por seus pecados de violação do shabat é logo seguido,
nas palavras do Reverendo James Parkes, por uma das longas e pouco simpáticas denúncias dos judeus
que marcam o Evangelho, contendo palavras que refletem acuradamente a situação no momento em que
foram escritas, mas que pareceriam estranhas nos primeiros Evangelhos... Desse momento em diante, cada
vez que se faz Jesus falar aos judeus, ele parece deliberadamente mistificá-los e antagonizá-los. Ele não
tenta chamá-los para o seu lado, pois sabe quem são os seus, tratando os demais com hostilidade e franco
desgosto. Os próprios judeus são apresentados permanentemente conspirando para matá-lo e temerosos de
fazê-lo, por causa do seu poder moral. Mesmo quando Jesus se dirige àqueles judeus "que haviam
- 37 -
acreditado nele", ele diz que eles pertencem ao "pai deles, o diabo" (8,44). No meio do seu ministério, os
judeus decidem expulsar da sinagoga quem quer que acredite nele (9,22), o que deixa o povo com medo
de falar abertamente a respeito dele (7,13). Tudo isso é sugestivo da atmosfera que deve ter existido no
fim do século, quando, com efeito, confissão de cristianismo significava expulsão da sinagoga e exposição
aos perigos desconhecidos da perseguição romana.
Mas isto não tem qualquer implicação nas relações como podem ter existido, ou que realmente existiram,
entre Jesus e os judeus ou as autoridades judias de seu tempo.
Ainda assim há, mesmo no Evangelho segundo João, pelo menos um fariseu em isolamento esplêndido,
"chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus", que se avistava com Jesus, embora somente "à
noite", a ele se dirigindo como Rabbi e confessando que "sabemos que és um mestre vindo da parte de
Deus" (3,1-2).
Dois incidentes, relatados apenas em João, são muitas vezes citados para provar a inimizade judia contra
Jesus: são incidentes de apedrejamento, quando este ânimo assumiu forma violenta. Quando o ouviram
dizer no Templo -entre todos os lugares -que ele era antes que Abraão existisse, os judeus "pegaram em
pedras para atirar nele" (8,59); e novamente, quando ele proclamou que ele e Deus, seu pai, eram um, os
judeus "novamente pegaram em pedras para lhe atirar" (10,31). Jesus teria perguntado por qual de suas
boas ações ele estava sendo tão maltratado, e eles replicaram: "Não é por obra boa que te apedrejamos, e
sim por causa da blasfêmia, pois sendo tu homem, te fazes Deus a ti mesmo" (10,33). Houvesse
acontecido realmente qualquer desses apedrejamentos, alguma tradição a respeito deveria ter sido
acessível aos evangelistas anteriores, que muito pouco provavelmente a teriam deixado de lado. Mas, além
de sua inconsistência com a afeição popular por Jesus, atestada não apenas pelos Evangelhos Sinópticos,
mas até pelo próprio Evangelho segundo João (12,12), os relatos também contradizem a versão joanina de
que quando Jesus falara e ensinara no Templo, "ninguém lhe pôs a mão, porque ainda não era chegada a
sua hora" (7 ,30; 8,20). Como pode ser então que, embora ainda não fosse chegada a sua hora e ninguém
lhe houvesse posto a mão, os judeus 0 apedrejaram? Se a sua hora ainda não era chegada, por que
buscaram pegá-lo, tendo ele de livrar-se de suas mãos (10,39)? As palavras "porque ainda não era chegada
a sua hora" têm um duplo sentido. Por um lado, elas preparam o terreno para o que acontecerá quando a
hora chegar; então, parece, os judeus estarão livres de quaisquer inibições e largarão as rédeas às suas
agressões assassinas. Por outro, há uma indicação da predestinação do destino de Jesus, como se não fosse
a hostilidade e a contumácia dos judeus que determinaram o evento, mas apenas a vontade de Deus, que
designou Seu próprio tempo e escolheu Seus próprios instrumentos.
A consciência do "cumprimento" de um destino predestinado está também presente nos Evangelhos
Sinópticos. Jesus ensinou seus discípulos e disse-lhes: "O Filho do Homem será entregue nas mãos dos
homens, e eles o matarão; mas, três dias depois da sua morte, ressuscitará" (Marcos, 9,31). Os "homens"
que o matarão são logo mais especificamente chamados os "principais sacerdotes e os escribas", em cujas
mão ele será entregue e que "o condenarão à morte e o entregarão aos gentios" (Marcos 10,33). Segundo
Lucas, Jesus disse: "É necessário que o Filho do Homem sofra muitas coisas, seja rejeitado pelos anciãos,
pelos principais sacerdotes e pelos escribas; seja morto e, no terceiro dia, ressuscitado" (16,21). A versão
de Mateus é que "ele deve seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais
sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia" (16,21); e, mais adiante: "Eis que
subimos para Jerusalém e o Filho do Homem será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas. E o
entregarão aos gentios para ser escarnecido, açoitado e crucificado; mas, ao terceiro dia, ressurgirá"
(20,18-19). O duplo objetivo dessa profecia, em suas diferentes versões, é novamente discernível:
primeiro, a predestinação dos futuros acontecimentos e a sua pré-determinada culminação, ou objetivo
final, na ressurreição; e, segundo, a profética designação dos principais sacerdotes, anciãos e escribas
como instrumentos escolhidos para a morte que deve preceder a ressurreição. Mesmo que Jesus tenha feito
essas profecias, o que nas circunstâncias retraçadas por nós é altamente improvável, em qualquer caso elas
não podem servir de prova do que realmente ocorreu depois, tanto menos quanto suas variantes permitem
diversas possibilidades entre as quais o cronista de acontecimentos eventuais podia fazer sua escolha. Mas
o próprio registro e repetição de profecias são de molde e calculados a levar o leitor, se apenas por uma
questão de fé e teologia, a acreditar que, em últimas instância, o que aconteceu não passou de um
cumprimento delas; sendo assim, não havia mais necessidade ou, de fato, qualquer justificação para
investigar e descobrir se o que ocorreu era ou não coerente com elas. Em outras palavras, como tinham
- 38 -
que ser os judeus e não os romanos que, do ponto de vista do evangelista, deviam ser censurados pela
morte de Jesus, sua própria profecia de que os principais sacerdotes judeus, os escribas e os anciãos seriam
os atores decisivos na tragédia seria prova quase de terminante de que, de fato, eles foram -e de qualquer
maneira seriam -uma proposta perfeitamente adequada para uma descrição dos acontecimentos nos quais
seriam obrigatoriamente retratados como tais.
Não é coisa sem interesse que nessas profecias se diz que Jesus refreou-se de mencionar os fariseus, como
se seus arquiinimigos, a verdadeira encarnação do mal, nada tivessem a ver com sua morte. Com efeito,
pretendeu-se que, não sendo expressamente mencionados os fariseus, foram apenas os principais
sacerdotes saduceus e os anciãos que condenaram Jesus. Mas vimos que "principais sacerdotes, escribas e
anciãos" é uma qualificação bastante ampla para compreender, pelo menos, uma minoria farisaica muito
forte, e a opinião mais sensata parece ser que nas profecias, como em outros pontos dos textos do
Evangelho, os termos "fariseus" e "escribas" são usados indiferentemente.
Os fariseus, no entanto, parecem fazer parte não apenas dos "principais sacerdotes, escribas e anciãos",
que são mostrados como os perseguidores de Jesus, mas também das massas mostradas como seus
admiradores. Jesus, como vimos, reuniu multidões ao seu redor, muito mais gente do que seguiu João
Batista. O Rei Herodes, que ordenara que João Batista fosse morto (Mateus 14,10), temia que Jesus, como
sua vasta congregação, fosse ' João Batista erguido dentre os mortos" (14,2) e, portanto, buscou também
dele se apoderar. Segundo Mateus, Jesus "retirou-se num barco para um lugar deserto" (14,13) ao ouvir
falar da intenção de Herodes; e, segundo Lucas, foram, de modo surpreendente, "alguns dos fariseus" que
vieram e lhe disseram: "Sai e parte daqui, pois Herodes te matará" (13,31).isso parece mostrar que alguns
fariseus, longe de quererem destruir Jesus (Mateus 12,14; Marcos 3,6), procuraram salvá-lo. O fato de que
temos aqui um vislumbre, por solitário que seja, do verdadeiro sentimento farisaico a respeito de Jesus
parece ser sustentado pelo que josefo nos conta da reação dos judeus à morte de João Batista:
Herodes dera ordens para que João fosse morto, embora João fosse um homem de nobreza de alma que
aconselhava os judeus a lutar pela perfeição e os admoestava a fazer justiça uns com os outros e fossem
devotos a Deus e que viessem a ele para serem batizados. ..Esses belos discursos atraíam grandes
multidões, e Herodes temia que esse homem, cuja reputação parecia ser bem estabelecida e cujo conselho
todos pareciam seguir, pudesse levar o povo à rebelião; e ele, portanto, julgou melhor eliminá-lo antes que
João tivesse tempo para criar uma situação de perigo real, para que não viesse a se arrepender, tarde
demais, de que deixara de agir no devido tempo. Essa suspeita levou Herodes a mandar prender João e
levá-lo acorrentado para o forte de Macaero, e ali matá-lo. Os judeus estavam firmemente convencidos de
que a morte de João fora a causa da derrota do exército de Herodes -tendo esta sido a punição com que
Deus em Sua ira castigara o rei.
Não há razão válida para se presumir que o sentimento judeu geral por Jesus fosse diferente: seus
discursos não eram menos bonitos -com efeito, por inferência eram muito mais belos do que os de João;
suas admoestações de justiça e devoção devem ter suscitado o mesmo eco nos corações judeus; e as
"multidões" acorreram a ele e não esconderam o seu deleite e reverência. Como aconteceu com a morte de
João Batista, uma morte violenta de Jesus também provocaria a ira e a punição de Deus, implicaria o mais
severo dos choques e a mais amarga dor. A verdade é que o único lado de onde um perigo real ameaçava
Jesus era Herodes, o Grande Rei, e apenas os "fariseus" o avisaram disso e procuraram colocá-lo em
segurança.
Logo viria outro terrível perigo para ameaçar a vida de Jesus. Sua grande popularidade e seu domínio das
"multidões" chamariam a atenção dos romanos. Teriam sido, com efeito, "os principais sacerdotes, os
anciãos e os escribas", os "fariseus" ou, em resumo, a liderança judia que o entregaram nas mãos dos
gentios? Vimos que não havia razão plausível para que o fizessem; e se o fizeram, eles teriam sido muito
infiéis ao caráter que haviam demonstrado, na ocasião anterior em que Jesus correu perigo e nas suas
relações gerais com os romanos. Mas vejamos o que de fato ocorreu.

PARTE DOIS

O que Realmente Pode Ter Ocorrido


- 39 -

A PRISÃO

A história do julgamento e morte de Jesus tem início com a sua prisão. Se um julgamento está envolto em
mistério, seja por falta de informação ou por motivo de relatos contraditórios, os aspectos particulares da
prisão podem fornecer uma pista para a solução do enigma. Se sabemos do que um homem é suspeito, o
motivo pelo qual é preso, por quem e por ordem de quem, podemos tirar algumas conclusões quanto às
acusações pelas quais foi eventualmente julgado e quanto ao tribunal que o julgou. Não que tenhamos
relatos claros e inequívocos dos aspectos particulares da prisão de Jesus, mas aqueles com que contamos
devem ser cuidadosamente examinados, para não se deixar passar qualquer pista. I
Quando Jesus e os discípulos terminaram sua refeição (a "Ceia do Senhor"), saíram da cidade de Jesus
para o Monte das Oliveiras (Marcos 14,26; Mateus 26,30; Lucas 23,39), e foram a um lugar chamado
Getsêmaní (Marcos 14,32; Mateus 26;36), que pode coincidir com o que é descrito em João como um
jardim sobre o ribeiro de Cedron (18,1). É significativo que, segundo Lucas (22,39) e também João (18,2),
Jesus ia muitas vezes a esse lugar com seus discípulos; é bem possível que o jardim e as colinas que
rodeavam a cidade eram então, como são hoje em dia, passeios favoritos e populares.
Falando Jesus aos discípulos (Marcos 14,41-42, Mateus 26,45-46; Lucas, 22,46), subitamente apareceram
pessoas conduzidas por Judas, sendo logo evidente que chegam com intenção hostil. Segundo Marcos,
eram "uma grande multidão com espadas e bastões", da parte dos principais sacerdotes, escribas e
anciãos" (14,43); segundo Ma- teus, também havia "anciãos do povo" (26,47); segundo Lucas,Jesus
primeiro viu "uma multidão" (22,47), mas logo se dirigiu aos "principais sacerdotes, aos capitães do
Templo e anciãos que vieram com ele" (22,52); e, segundo João, eram "um bando de homens e oficiais
dos principais sacerdotes e dos fariseus ...com lanternas, tochas e armas" (18,3), mas a prisão foi
executada "pela escolta, o comandante e os guardas dos judeus" (18,12). Já não há qualquer controvérsia
entre os estudiosos de que o bando e o capitão eram uma coorte e seu tribuno, isto é, uma unidade militar
romana comandada por um oficial romano;l assim, enquanto os Evangelhos Sinópticos falam da presença
somente dos judeus na prisão, na tradição joanina tanto soldados romanos como judeus nela tomaram
parte.
Antes de examinarmos tal tradição meticulosamente, tentemos identificar os 'Judeus" que, segundo todos
os evangelistas, tomaram parte no acontecimento. Um escritor contemporâneo sugere que, embora fossem
os emissários dos sacerdotes judeus, esses participantes não eram eles próprios judeus, mas gentios,
consistindo seu argumento em que os "pecadores" em cujas mãos Jesus disse que ele seria entregue
(Mateus 26,45, Marcos 14,41) nunca são judeus, mas sempre gentios (cf. Gálatas 2,15; Mateus 9, 10-11);
e "os principais sacerdotes tinham à sua disposição uma pequena força recrutada de muitas nacionalidades,
e também servos não judeus e escravos".2 Seja como for, e qualquer que seja a correta interpretação do
termo "pecadores", usado por Jesus naquela ocasião, as palavras que ele usou antes do acontecimento
dificilmente poderiam ser apresentadas como prova da identidade dos homens que, depois, vieram prendê-
lo. Além disso, ainda que "pecadores" só possa denotar gentios, sua profecia, pelo menos segundo João,
teria sido realizada pela presença de soldados romanos, não obstante a presença de "não-pecadores".
A presença e a parte ativa representada pelos judeus parece ser estabelecida pelo fato de que, ao ser preso,
Jesus não foi logo submetido à custódia romana, mas levado à casa do sumo sacerdote, ou, segundo João,
à do sogro do sumo sacerdote. É evidente que foi a polícia judia do Templo que o levou lá, estando essa
força sob o supremo comando do sumo sacerdote; e, como será mostrado, Jesus não poderia ter sido
trazido à casa do sumo sacerdote sem instruções expressas para esse efeito dadas por aquele próprio
dignatário.
Alguns dos Evangelhos, no entanto, falam da presença, no momento da prisão, não de contingentes
organizados da polícia do Templo, mas de "multidões", dando a impressão de um número indeterminado
de pessoas enviadas pelos "principais sacerdotes", ou "anciãos", ou "fariseus", seja como mercenários ou
apenas como uma multidão incitada. Lucas chega a sugerir a presença de "anciãos" - uma sugestão
insensata, a julgar pelas aparências: uma prisão não é normalmente feita -e tampouco o era então -por um
- 40 -
"ancião" ou juiz, e certamente não por muitos anciãos ou juizes reunidos; a autoridade que deseja uma
prisão despachará para esse fim um ou mais oficiais armados e instruídos em função de policia, tal como
este. Nem teria qualquer "ancião" ou dignitário se deixado perturbar, àquela hora da noite, para sair de
casa e da cidade e subir a colina, a uma distância não desprezível, simplesmente para assistir em pessoa a
prisão de um suspeito, quem quer que fosse ele. Se isso é verdade em qualquer noite comum, deve ser
ainda mais verdade quanto àquela noite particular: seja que fosse, como consta dos Evangelhos
Sinópticos, a noite mesma da grande festa de Pessach ou, como diz João, apenas a noite de véspera de
Pessach, todo chefe de casa judeu estava ocupado em seu lar, ou celebrando o Seder, ou se preparando
para a festa e seus sacrifícios. É inconcebível que, em tal noite, ele pudesse ser atraído às colinas para
participar de uma expedição policial. Finalmente, se os "anciãos" foram, com efeito, os instigadores da
prisão, não faz sentido que tenham participado dela e a ela assistido em pessoa: pelo contrário, eles
enviariam seus agentes, tendo o maior cuidado para não serem eles próprios vistos e identificados.
A identidade real dos participantes judeus da prisão pode ser deduzida da referência em Lucas aos
"capitães do Templo" (22,52). O termo aqui traduzido em português como "capitães" é o grego strategoi,
"comandantes militares". Foi sugerido que esses "comandantes do Templo" são os vice-sacerdotes
(seganei kohanim),3 de cujas funções militares temos algum conhecimento de fontes judias: sempre que
seganim ocorre na Bíblia (por exemplo, jeremias 51,23; 28, 57; Ezequiel 23,6, 12,23), a palavra é
traduzida na Septuaginta como strategoi. Esses vice-sacerdotes eram encarregados, entre outras coisas, das
relações públicas da administração do Templo: tinham de proceder até os portões da cidade e ali acolher as
pessoas que chegavam de outras partes do país, com os primeiros frutos de seus campos e vinhas como um
presente ao Templo. Há uma lista de precedência de funcionários do Templo, na qual os seganim vêm
depois dos sacerdotes oficiantes e antes dos comandantes da polícia do Templo, de onde pareceria que os
comandantes da polícia eram seus subordinados imediatos. Já que, no versículo que se cita de Lucas, os
"capitães do Templo" são mencionados como estando presentes juntamente com os "principais
sacerdotes", foi argumentado que os seganim representam os "principais sacerdotes", enquanto, os
comandantes da polícia do Templo são os "capitães do Templo", o que sugere que os comandantes de
polícia e seus superiores imediatos estariam todos presentes. Mas parece claro, de qualquer forma, que o
termo strategoi só se pode referir a um oficial comandante de caráter militar ou paramilitar e, no contexto
do Templo, a ninguém mais do que oficiais da polícia do Templo.
Ao mesmo tempo em que descartamos como insensata a informação de que "anciãos" ou "principais
sacerdotes" podem ter assistido em pessoa à prisão de Jesus, a versão de que a polícia do Templo e seus
oficiais - comandantes o fizeram parece eminentemente sensata. A prisão de um suspeito, como
observamos, é normalmente executada por uma unidade de polícia, e não por "multidões" de pessoas ou
por anciãos e notáveis. No Evangelho segundo João encontramos uma corroboração impressionante da
nossa preferência: os patrocinadores judeus são ali apresentados como "oficiais" dos principais sacerdotes
(18,3) ou "oficiais" dos judeus (18,12), e os únicos "oficiais" competentes para fazer prisões para os
"principais sacerdotes" em particular e para os "judeus" em geral eram os oficiais da polícia do Templo.
Nosso ponto de partida será, portanto, a premissa de que a polícia do Templo foi enviada pelos "principais
sacerdotes", isto é, como veremos, pelo sumo sacerdote e seu círculo, para prender Jesus; e é irrelevante
saber se a unidade ou unidades que executaram a tarefa estavam sob o comando de oficiais de baixa ou
alta patente. Mas o fato de que foi a polícia do Templo que prendeu Jesus não exclui a possibilidade de
que outras pessoas estivessem presentes, e aí surge o problema de saber se as "multidões" de Marcos e
Mateus não podem ser explicadas de alguma outra forma. Parece intrinsecamente improvável que gente da
cidade, de motu propriu, se juntasse à polícia do Templo numa marcha para fora da cidade, de noite, para
prender quem quer que fosse. Foi sugerido que, como está, com efeito, implícito na linguagem dos
Evangelhos, ela não se juntou espontaneamente, mas foi recrutada pelos "principais sacerdotes" e anciãos,
seja para ajudar a polícia do Templo a superar qualquer possível resistência, ou para levar por sua própria
presença Jesus e seus discípulos à submissão.8 Mas "multidões" andando em círculo no lugar da prisão
seria antes um obstáculo à ação da polícia do que uma ajuda: nada seria mais fácil para Jesus e seu
punhado de discípulos do que misturar-se à multidão e desaparecer, para todas as intenções e propósitos,
ou de qualquer forma provocar tal confusão, que entrevasse qualquer ação ordenada da polícia. Além
disso, os Evangelhos que noticiam a presença de "multidões" dizem que elas ali foram levadas por Judas,
que traiçoeiramente conspirara com os "principais sacerdotes e capitães" (Lucas 22,4) para esse fim; e
- 41 -
certamente nenhum dos conspiradores, e menos que todos o seu cabeça, gostaria de uma "multidão" de
testemunhas para o conluio e seu êxito. Está na natureza de uma conspiração que ela seja concluída! e
executada em segredo, com um mínimo de participantes e informantes potenciais. Se as "multidões" têm
qualquer significado, elas devem significar alguma coisa diferente de multidões de judeus. Há uma outra
discrepância que penetra no cerne da questão, e que encontraremos novamente: trata-se da atitude dos
judeus em geral para com Jesus em particular e, geralmente, para com qualquer suspeito ameaçado de
prisão. Qualquer "multidão" de judeus teria de ser recrutada nas camadas mais baixas do povo: outros não
se deixariam alugar, nem seriam facilmente inflamados. Dessas mesmas "multidões" -o próprio termo
usado é o mesmo -sabemos que elas saudaram Jesus jubilosamente quando este chegou a Jerusalém
apenas poucos dias antes: "E a maior parte de multidão estendeu suas vestes pelo caminho, e outros
cortavam ramos de árvores, espalhando-os pela estrada", e "toda a cidade se alvoroçou" (Mateus 21,8-10).
Longe, portanto, de aliciar a ajuda de tais "multidões" contra Jesus, QS principais sacerdotes e os escribas
não duvidavam de que "o mundo vem após ele" #Jo 12,19 e temiam, corretamente, "que haja tumulto
entre o povo" (Marcos 14,2), caso o prejudicassem. Se queriam que Jesus fosse preso, a última coisa que
fariam seria deixar que estivessem presentes "multidões judias", pois o inevitável resultado dessa
indulgência seria Jesus ser resgatado das mãos da polícia do Templo. Tanto mais que, como consta, as
"multidões" estavam armadas "com espadas e bastões" (Marcos 14,43; Mateus 26,47), tão provavelmente
como não, os simpatizantes ultrajados teriam castiga- do a polícia de imediato e levado Jesus para casa em
triunfo.
Havia, verdadeiramente, bons motivos para que o povo gostasse de Jesus: não apenas ele era uma pessoa
do seu meio que se elevara, pela graça manifesta de Deus, àquela estatura intelectual e moral a que,
conscientemente ou não, cada um deles aspirava, mas sua fama como um realizador de milagres, curador
de enfermos, consolador e redentor dos pobres e perseguidos, punidor da corrupção e, como eles próprios,
inimigo jurado dos ricos e poderosos era mais, muito mais, do que bastante para lhe granjear a afeição e a
devoção populares. Não se pode seriamente acreditar que "multidões" de tão ardentes admiradores
acorressem ao convite de quem quer que fosse para ajudar a prender Jesus.
Mas que nos seja permitido, para argumentar, presumir que as "multidões" arregimentadas naquela noite
não sabiam, pois a elas não fora dito, que era Jesus quem seria preso. É talvez concebível que a polícia do
Templo se tenha voltado para o público em busca de ajuda para a captura de um perigoso fugitivo da
justiça, de quem se podia esperar que resistisse violentamente à prisão e que, portanto, tinha de ser
submetido por uma força numérica maior. É, no entanto, duvidoso, para dizer pouco, que um número
qualquer de cidadãos teria obedecido a esse apelo, a menos que primeiro soubessem quem era o criminoso
e qual o seu crime. Uma vez revelada a identidade do "fugitivo", isto teria, pelos motivos expostos,
encerrado rapidamente qualquer cooperação por parte do povo; se a polícia do Templo desse uma
informação enganosa, o logro seria visível logo que as pessoas vissem a "caça "; no melhor dos casos, elas
abaixariam os braços e voltariam para casa; por pior, resgatariam Jesus e frustra- riam, assim, todo o
objetivo à a polícia do Templo. E, até onde isso diz respeito aos motivos da prisão, está aberto à dúvida se
a polícia do Templo sabia quais eles eram: de qualquer forma, a polícia não os revelou a Jesus quando o
prendeu; e emergirá dos procedimentos subseqüentes que, à o ponto à e vista das autoridades judias, não
havia um motivo que se pudesse reduzir a termos legais precisos. Mas mesmo assumindo que os
"principais sacerdotes" haviam julgado adequado acusar Jesus por qualquer dos seus ditos ou atos não-
ortodoxos -o que, como vimos, era coisa muito improvável -e mandar prendê-lo por qualquer desses
motivos, era justamente essa espécie de ministério que tornava Jesus caro às massas. Aduzi-lo como
motivo para sua prisão iria, conseqüentemente, agitá-las não apenas para negar toda cooperação com a
polícia do Templo, mas para fazer tudo o que estava em poder delas para resgatá-lo.
Tampouco devemos acreditar que seria fácil para a polícia do Templo, ou para um comandante, mobilizar
a ajuda do povo em qualquer de suas operações fora das dependências do Templo. No interior e em torno
dele, a polícia do Templo exercia sua própria competência, e presumivelmente todos a ajudariam a
prevenir a desordem ou uma profanação. Fora dos lugares sagrados, é possível que ela pudesse conquistar
o apoio do povo num choque com as forças romanas de ocupação ou com legionários isolados, mas nunca
em apoio de uma ação executada para os romanos ou em conivência com eles. O povo nunca se degradaria
em executar o trabalho "sujo" da polícia contra um judeu não privilegiado, seu amigo e parente. E não é
apenas, e nem tanto, essa notória reação do povo que tornaria inútil um apelo da polícia para cooperação,
- 42 -
mas uma histórica consciência dela faria com que as autoridades do Templo se refreassem, em primeiro
lugar, de jamais tentar conseguir essa ajuda. Se os principais sacerdotes "temeram o povo" (Lucas 20,19),
como tinham todas as razões para temer, e por isso se abstiveram de "pôr as mãos em Jesus" (ibid.), e se
estavam seguros de que haveria tumulto popular (Marcos 14,2), se algum mal sucedesse a ele, seria pura e
quase suicida estupidez da parte deles buscar a assistência dos mesmos elementos cujo clamor e motim
eles corretamente previam e temiam. Não menos importante do que o inegável antagonismo do povo
contra qualquer procedimento da polícia do Templo contra Jesus é o fato de que as autoridades tinham
total conhecimento da atitude do povo, o que torna absolutamente impensável qualquer recrutamento de
"multidões" judias para um tal procedimento.
É possível que os Evangelhos usem o termo "multidões" não num sentido objetivo, mas subjetivo: para
Jesus e os discípulos, que naquela noite, naquele pacato jardim, foram surpreendidos por um número de
homens armados, poderia parecer que "multidões" acorriam para eles. Com efeito, se tomarmos
literalmente o relato Joanino da presença de uma "coorte", esta deve ter sido a impressão: o exército
romano era dividido em legiões, cada legião com dez coortes, e cada coorte com seis centúrias; embora
em cada centúria, como o nome indica, houvesse a princípio cem solados, sabemos da existência, em
certos tempos, de coortes com menos de seiscentos homens e legiões com menos de seis mil, mas a
opinião comum consiste em que uma coorte nunca teria menos de trezentos a quatrocentos homens.
Presumindo que a coorte que foi prender Jesus era muito pequena -de apenas trezentos soldados -, não
obstante um contingente tão numeroso era bastante grande para ser chamado de verdadeira "multidão",
sendo considerado demasiado grande, com efeito, para o que tinha de fazer. De fato, foi sugerido que não
se tratava de uma coorte inteira, mas de apenas parte de uma, e que os autores do Evangelho exageraram
um pouco.¹º
A versão joanina de que Jesus foi preso pela totalidade ou por parte de uma coorte romana, comandada por
seu tribuno, com a assistência da polícia judia do Templo e de seu comandante, está agora sendo aceita
como a verdade dos fatos pela maioria dos eruditos contemporâneos,¹¹ e será aceita por nós por ser
razoável e, à luz de acontecimentos subseqüentes, por sua probabilidade intrínseca. Devemos lembrar que
o autor de João era um implacável e inflexível denegridor dos judeus e reabilitador dos romanos; e, a
menos que tivesse de reconhecer uma tradição bem estabelecida, por demais conhecida para ser ignorada,
de que soldados romanos participaram da prisão, ele a teria suprimido: certamente, nunca a teria
inventado. Nada teria sido mais simples para ele do que seguir os Evangelhos Sinópticos e fazer pesar
sobre os judeus, única e peremptoriamente, a responsabilidade total pela prisão de Jesus, com a exclusão
dos romanos; o fato de que não o fez e de ter em lugar disso mencionado expressamente a coorte e seu
tribuno como os executores da prisão é um claro indício de uma recensão deliberada e bem pensada de
relatos existentes, recensão esta para a qual deve ter havido um incentivo extraordinariamente
convincente.
O fato, portanto, de que a prisão foi uma iniciativa conjunta de soldados romanos e da polícia judia do
Templo empresta maior pungência à questão de saber quem ordenou a prisão: será que as autoridades
romanas tomaram a primeira iniciativa, ou será que a participação romana não foi mais do que um ato de
ajuda militar ou de apoio para uma prisão que as autoridades judias haviam incitado e pela qual cabia a
elas a responsabilidade, em última instância? Mas certamente há uma questão preliminar quanto ao papel
de Judas ao patrocinar e executar a prisão: servia ele aos interesses judeus ou romanos? Essa questão é
preliminar porque, caso se revelasse - como o querem os Evangelhos que a prisão foi o resultado de um
conluio entre Judas e os judeus, isso proporcionaria uma forte prova de iniciativa judia, e não romana.
A traição de Judas é comum a todos os quatro Evangelhos. Mas o relato de um conluio entre ele e os
principais sacerdotes (Mateus 26,14; Marcos 14,10), com ou sem os anciãos ou os capitães (Lucas 22,4),
encontra-se apenas nos Evangelhos Sinópticos, e apenas neles é contada a história do dinheiro (Lucas
22,5) ou trinta moedas de prata (Mateus 26,15), convencionadas como consideração da traição. O
Evangelho segundo João diz apenas que "o demônio" foi "colocado no coração de Judas Iscariote, filho de
Simão, para traí-lo" (13,2); que Jesus "angustiou-se" e disse: "Em verdade, em verdade vos digo, que um
dentre vós me trairá" (13,21); que quando "Satã" entrou em Judas, Jesus lhe disse: "O que pretendes fazer,
faze-o depressa" (13,27); e que Judas na verdade o traiu (18,2). Mas não há qualquer menção de qualquer
conluio entre Judas e os judeus, ou qualquer outra pessoa ou grupo identificado. Segundo João, portanto,
- 43 -
pode ter havido um conluio entre Judas e os romanos, o que explicaria a participação destes na prisão e até
implicaria uma iniciativa romana.
Não é que uma conspiração entre Judas e os romanos seja intrinsicamente menos provável ou possível do
que um conluio entre estes e os judeus: se Judas queria trair seu mestre, só precisava denunciá-lo aos
romanos como um rebelde ou zelota, e podia estar certo de uma ação rápida. O fato é que toda a história
da traição de Judas é tão improvável, tão incongruente, independentemente de quem pudessem ser os seus
colegas conspiradores, que não merece crédito. É possível, é claro, que uma história do discípulo que traiu
seu mestre e até provocou sua morte, descendo assim nas profundezas da vergonha e da imoralidade, e
tudo porque o diabo nele penetrara #Jo 13,2-7, seja criada para comunicar uma mensagem religiosa
profunda e significativa. Ninguém, nem sequer o maior discípulo do maior mestre -como seria a moral da
história -, está à prova das tentações de Satã ou de suas próprias inclinações criminosas; ou não há maneira
de alguém deixar de fazer o mal, se Deus o escolheu como Seu instrumento para atingir Seu propósito.
Talvez, portanto, a história tenha sido incluída nos Evangelhos por motivos puramente teológicos, embora
alguns dos primeiros teólogos a considerassem "um terrível escândalo" e insistissem em que sua inclusão
fora imperativa somente porque o fato havia realmente acontecido: "Retirar-se-ia uma carga muito pesada
do coração do cristianismo, se pudesse ser provado que a traição de Judas não existiu e que ela é produto
da imaginação cristã; infelizmente, isso não pode ser provado."
Não penso que se deva desistir tão facilmente. Examinemos mais realisticamente os detalhes. Quando
Jesus 'Já não andava abertamente entre os judeus, mas retirara-se para uma região vizinha ao deserto" #Jo
11,54, as autoridades interessadas em persegui-lo e prendê-lo podem ter precisado da ajuda de um
informante de fora: ele se fora para ocultar-se, e deve ter se esforçado para manter o lugar onde estava um
segredo bem guardado. Mas quando regressou a Jerusalém, ele o fez aberta e triunfalmente: "Muita gente
que viera à festa " ouviu antecipadamente que ele estava para chegar #Jo 12,12, não podendo haver dúvida
razoável de que as autoridades -se estivessem interessadas nele -sabiam de sua iminente chegada. E,
quando ele chegou, não se misturou às enormes multidões que enchiam as ruas de Jerusalém na estação
festiva, mas cavalgou um asno #Jo 12,14 para ser recebido com ovações prolongadas #Jo 12,13; Mateus
21,8-10. Ora, diz-se que a conspiração entre Judas e os sacerdotes foi arranjada dois dias antes da festa de
Pessach (Marcos 14,1; Mateus 26,2), isto é, seja no próprio dia da entrada triunfal de Jesus ou no dia
seguinte, quando já todos sabiam onde se encontrava. Não devia haver qualquer dificuldade em se saber
onde ele estava, nem para as autoridades romanas, nem muito menos para a polícia do Templo ou para os
principais sacerdotes. Segundo Lucas, o próprio Jesus, quando preso, disse: "Saístes com espadas e
bastões como para deter um salteador? Diariamente, estando eu convosco no Templo, não pusestes as
mãos sobre mim" (22,52-53); e Lucas relata também que Jesus ensinava todos os dias, "e todo o povo
madrugava para ir ter com ele no Templo" (21,38). Ele poderia ter sido preso ali, na própria jurisdição da
polícia do Templo, ou no seu caminho de ida ou volta para o Templo, ou facilmente seguido onde quer que
fosse, como presumivelmente era. Não havia necessidade de "traição" ou conspiração, e qualquer dinheiro
para serviços, como o que se ofereceu a Judas, foi pura perda.
A explicação em geral apresentada para tornar plausível a história é a de que os principais sacerdotes,
como foi dito, tinham muito medo do clamor popular, caso Jesus fosse preso às abertas (Marcos 14,2), e
determinaram, portanto, prendê-lo de noite, sob o manto da escuridão e fora da cidade, onde não se
poderia provocar qualquer protesto de cidadãos. Era o lugar que Jesus freqüentava noturnamente, com o
qual seus discípulos, entre os quais Judas, eram familiares, mas que não podia ser descoberto por
estrangeiros não iniciados, que foi o objeto do negócio de Judas. Ora, somos informados de que, enquanto
durante o dia ensinava no Templo, Jesus toda noite, "saindo, ia pousar no monte chamado das Oliveiras"
(Lucas 21,37); e o lugar onde Jesus encontrou Judas não era um esconderijo secreto, mas Jesus ali estivera
muitas vezes com seus discípulos" #Jo 18,2. Ele podia ser seguido até lá sem dificuldade, sem a ajuda de
qualquer informante. Nem é preciso imaginar que as colinas em volta de Jerusalém eram menos acessíveis
naqueles dias do que hoje: o Monte das Oliveiras ergue-se não longe do muro da cidade, para o nordeste,
com todas as suas possíveis avenidas facilmente devassadas das amuradas; e por mais floridos e férteis
que possam ter sido então os 'Jardins" na montanha, as distâncias não são tais que uma pessoa que neles
penetrasse não pudesse ser logo observada. Nem mesmo os legionários estrangeiros necessitavam de um
guia para achar o caminho em torno da montanha; e a polícia nativa do Templo certamente consideraria
um insulto à sua inteligência a oferta de qualquer orientação.
- 44 -
As mesmas considerações aplicam-se ao truque adotado por (Mateus 26,48; similarmente, Marcos 14,44 ).
Jesus era bem conhecido da polícia do Templo: ele pregava diariamente no Templo e atraía grandes
multidões. Não haveria necessidade de qualquer outra identificação, nem sequer àquela hora da noite. Era
o dia quatorze ou i quinze do mês, lua cheia, e a visibilidade em Jerusalém era excelente; e, embora
apenas o Evangelho segundo João mencione expressamente que os soldados e a polícia estavam munidos
de tochas e lanternas (18,3), eles dificilmente teriam começado essa expedição de busca e apreensão à
noite sem alguma iluminação. Não deixa de ser significativo que os autores do Evangelho segundo João
rejeitem a tradição de que Judas traiu seu mestre beijando-o, um modo de trair que o próprio Jesus
censurou (Lucas 22,48); segundo João, Jesus não foi identificado por Judas, mas ele próprio adiantou-se e
perguntou-lhes: "A quem buscais?"; e quando ouviu que era a ele que buscavam, disse, "Sou eu", enquanto
'Judas, o traidor, estava também com eles" (18,4-5). Como o Evangelho segundo João se cala quanto aos
detalhes da conspiração de Judas, da mesma forma não diz como ele traiu Jesus. A verdade é que nem a
conspiração, nem a traição eram exigidas para a prisão: quem desejasse capturar Jesus podia fazê-lo, à luz
do dia ou de noite, sem qualquer ajuda exterior .
Se fosse verdade que os principais sacerdotes haviam mobilizado "uma malta de rufiões armados com
bastões e espadas", «salteadores... desviados de roubar sacerdotes menores nas eiras para outra tarefa", o
seqüestro de um homem cujo assassinato se estava para cometer, então podia ser que esses rufiões e
salteadores "precisassem de um sinal para identificar seu homem".14 Mostramos que os homens que
foram prender Jesus eram soldados romanos e policiais judeus. Não há nada nos Evangelhos que sustente
a presunção de que os sacerdotes recrutaram bandoleiros para prender Jesus, exceto a história de sua
identificação por um renegado, Judas, pois "não se pode conceber que um oficial regular da lei tivesse de
recorrer ao suborno para identificar Jesus. Durante uma semana ele foi uma figura central nos tribunais do
Templo".15 Portanto, se Judas beijou Jesus para identificá-lo, devem ter sido rufiões e salteadores os que
foram prendê-lo. Mas tal inferência, por engenhosa que pareça, não se pode ajustar aos textos do
Evangelho. Jesus dirigiu-se aos homens que foram prendê-lo como aos mesmos que se sentavam
diariamente com ele, quando ensinava no Templo (Mateus 26,55; Marcos 14,49; Lucas 22,53): se não era
a polícia do Templo pelo menos eram freqüentadores do Templo, que não precisavam que Jesus fosse
identificado.
A teoria de que não houve qualquer prisão formal, mas que Jesus foi tomado por seqüestradores e levado
para ser assassinado, encontra algum apoio aparente na ausência de um fundamento claro para a prisão:
diz-se que, se Jesus tivesse sido formalmente preso, ele teria sido informado dos motivos ou, pelo menos,
estes motivos teriam sido mencionados nos relatos do Evangelho. Essa espécie de argumento
curiosamente reflete conceitos modernos do direito que assiste às pessoas acusadas de serem informadas
sem demora dos motivos de sua prisão; assim, à parte o fato de que tais conceitos, mesmo hoje em dia,
estão longe de serem praticados em muitas partes do mundo, não há nada em nossas fontes que nos
habilite a supor que qualquer procedimento desse teor estivesse em voga ou fosse prescrito, seja pela lei
romana ou pela judia no tempo de Jesus. Além disso, se rufiões e salteadores tivessem realmente sido
recrutados para o seqüestro, seria de esperar que ao mesmo tempo tivessem sido contratados para o
assassinato: por que o assassinato teve de ser encenado como foi, por que o homem seqüestrado teve de
ser levado à casa do sumo sacerdote, por que incomodar o governador e os carrascos romano!;? Jesus foi
preso à noite, fora da cidade, num local solitário, e todos os seus discípulos "deixaram-no e fugiram"
(Marcos 14 ,50); nada teria sido mais fácil do que matá-lo, se era isso o que queriam, ali e então. O fato de
que os que vieram não o mataram, mas manifestamente tinham ordens para levá-lo à presença do sumo
sacerdote em pessoa, é indicação bastante de que ele não estava sendo seqüestrado por criminosos, mas
preso por autoridades.
Devemos assinalar uma última questão com relação ao episódio de Judas, a saber, a tradição talmúdica de
que os sumos sacerdotes saduceus tinham o hábito de se envolver em atividades clandestinas, o que faz
com que um conluio com Judas se enquadre perfeitamente na história. A tradição emerge do "epigrama
popular" preservado no Tal mude em que não apenas os bastões e os punhos dos sumos sacerdotes e de
seus empregados, mas também seus murmúrios e bicos de pena eram deplorados: e murmúrios e bicos de
pena podem, é certo, ter alimentado conspirações com informantes secretos. Como vimos, o epigrama foi
formulado uma ou duas gerações depois da morte de Jesus, nada provando acerca dos principais
sacerdotes de seu tempo; mas mesmo presumindo que também naquele tempo havia homens que não se
- 45 -
abstinham de qualquer perfídia para alcançar seus objetivos, não excluindo maquinações com informantes
pagos, nem a presteza mental e teológica de Judas em trair seu mestre, nem qualquer potencial à
disposição dos sacerdotes para contratá-lo como informante são prova de que algo do gênero havia
realmente sido engendrado entre eles. A improbabilidade intrínseca e a extrema superfluidade de um tal
arranjo ultrapassam de muito qualquer suposição de que o mesmo pudesse ter sequer começado.
Assim, partiremos da premissa de que não houve arranjo conspiratório com Judas nem por parte dos
romanos, nem dos judeus, e de que o episódio relatado nos Evangelhos não fornece pista para a questão
com que nos confrontamos: quem ordenou a prisão de Jesus?
Não há dúvida -embora o contrário tenha sido defendido -de que os tribunais judeus tinham poderes para
emitir mandados de prisão e de que, na prática, o faziam regularmente. As iniciativas para uma prisão são
parte integrante da administração da justiça criminal, e um tribunal competente para julgar criminosos tem
autoridade para adotar todas as medidas necessárias para que um acusado lhe seja apresentado para
julgamento. Consta que Saulo, chamado depois Paulo, abordou o sumo sacerdote "e lhe pediu cartas para
as sinagogas de Damasco, a fim de que, caso encontrasse alguns deles, quer homens quer mulheres, os
levasse presos a Jerusalém" (Atos 9,2); e defendendo-se diante de Agripa, ele declarou: "encerrei muitos
dos santos nas prisões, havendo recebido autorização dos principais sacerdotes" (26,10). Também em
fontes talmúdicas encontram-se referências explícitas a prisões à espera de julgamento, por exemplo, por
agressões físicas em que se teme uma conseqüência fatal, sendo o julgamento suspenso até que ocorra a
morte ou tenha passado o perigo,19 ou no caso de suspeitos de assassinato contra os quais já se tenha
alguma prova, mas não ainda suficiente.2o A menção de casos específicos não exclui a legitimidade e a
prática de outras prisões anteriores ao julgamento; antes prova que a prática, como tal, era adotada.
Pretendeu-se que a ausência de um mandado formal de prisão indica que a prisão de Jesus foi ordenada
pelos judeus, e não pelos romanos, porque o Sinédrio não exigia qualquer acusação formal, ao passo que
era indispensável essa acusação no procedimento penal romano.²¹ Em outras palavras, supôs-se que os
judeus ordenariam a prisão de um suspeito mesmo sem conhecer, nem procurar ter ciência da suspeita do
possível crime: durante a detenção, na verdade, haveria tempo para se descobrir o que podia ser provado
contra o detido. Essa tese não é sustentada pelo que sabemos da lei, que diz que um suspeito de
assassinato não pode ser detido e encarcerado sem julgamento, a menos que haja provas contra ele, por
pouco que bastem para a sua condenação,²² como a lei que requer, por exemplo, pelo menos duas
testemunhas oculares antes que um homem possa ser condenado por um crime capital (Deuteronômio
17,6; 19,15); se momentaneamente dispõe-se apenas de uma testemunha ocular, o suspeito pode ficar
preso sob custódia, mas sem ser julgado. Isto significa que não pode haver qualquer detenção, a menos
que se estabeleça primeiro o objeto da suspeita, a causa da prisão. O fato de que não era exigida qualquer
acusação formal escrita para se começar um julgamento não significa, portanto, que uma pessoa podia ser
presa e detida, quer se soubesse que uma acusação contra ele estivesse pendente ou não.
Observamos que não se deu a Jesus qualquer indicação ou informação do crime do qual era suspeito e
pelo qual estava sendo preso. Se houvessem-lhe dito que se tratava de um crime de natureza religiosa
judia, caso em que os tribunais judeus exerciam jurisdição exclusiva, a conclusão de que sua prisão fora
ordenada por um tribunal judeu seria clara. Na falta de informação, podemos apenas tentar recorrer às
provas circunstanciais de que dispomos para chegar a uma conclusão.
O fato de que uma coorte romana e seu comandante romano, assim como a polícia judia do Templo,
tomaram parte na prisão indica que os comandantes romanos e judeus agiram de comum e prévio acordo.
Se é assim, ambos deviam conhecer o motivo da prisão, e aos olhos de ambos ela deve ter sido legítima e
desejável. Os romanos não teriam prestado auxílio para uma prisão ilegal ou desnecessária; mesmo que
fosse possível contratar legionários individuais para participarem de um seqüestro, a tal não se poderia
seguramente ter persuadido uma coorte e seu tribuno, muito menos por solicitação judia. Se, portanto, a
prisão foi legal, qual foi seu objetivo legal?
Uma possibilidade é a de que o tribunal judeus a desejou para que Jesus pudesse ser levado a julgamento
diante dele. Se Jesus devia ser julgado por uma acusação dentro da exclusiva jurisdição dos tribunais
judeus, e as autoridades de ocupação tivessem sido abordadas para ajudar a efetuar a prisão, essa ajuda
teria sido negada. os romanos teriam corretamente respondido: ou vocês têm o poder e os ii meios de
convocar e levar diante de seus tribunais os acusados judeus : sobre os quais desejam exercer autoridade -e
nesse caso, por favor, usem o seu poder e exerçam sua autoridade o melhor que puderem -, ou vocês não
- 46 -
têm nem bastante poder, nem os meios suficientes para garantir o comparecimento perante vocês das
pessoas do seu próprio povo; nesse caso, por favor, nio reivindiquem autoridade sobre elas! É provável
que, mesmo em assuntos que incorriam na jurisdição tanto dos tribunais judeus quanto do governador
romano, os crimes universais, como, por exemplo, o assassinato, em cuja acusação os romanos
presumivelmente não estavam menos interessados do que os judeus, os primeiros teriam confrontado os
tribunais judeus com a seguinte alternativa: ou vocês podem assegurar a presença do acusado ou não
podem; se não podem, seria melhor que ele fosse julgado perante o governador romano, não obstante a
jurisdição concorrente de que a lei os investe. 0 fato, contudo, é que as autoridades judias não
necessitavam de qualquer ajuda dos romanos para efetuar uma prisão; encontramos teorias de que os
tribunais judeus eram subordinados à ajuda ou ao consentimento romano para a execução de sentenças
capitais, mas nunca alguém sugeriu que a ajuda ou o consentimento romano fosse necessário para efetuar
a prisão de um suspeito que aguardava julgamento.
Pareceria, então, que a presença romana na prisão de Jesus é pelo menos uma prova prima facie de apoio
romano: os romanos não estavam acostumados, nem se inclinaram a enviar seus soldados por iniciativa de
outros. O que se seguiu torna a prova virtualmente conclusiva. A prisão de Jesus foi o primeiro passo nos
procedimentos a serem cumpridos no dia seguinte no tribunal do governador romano; escritores anteriores
chamaram a atenção para o fato espantoso de que Pilatos estivesse pronto para se reunir em sessão, na
manhã seguinte,23 a uma hora pouco usual, no caso de um procura- dor, para julgar questões criminais;
mas o próprio fato de que ele estava a postos implica o conhecimento prévio da causa e do homem. Por
isso a informação prévia deve ter precedido a prisão: dificilmente o governador seria perturbado com a
informação de madrugada. Presumindo, então, que o julgamento de Jesus diante de Pilatos fora
estabelecido o mais tardar um dia antes, é irrelevante saber se o próprio governador emitira um mandado
para que Jesus fosse trazido à sua presença e processado por ele não na manhã seguinte, ou se o mandado
fora preparado por um de seus subordinados: o tribuno não iria ao lugar, nem levaria seus soldados até lá,
a não ser por ordem de seus superiores, e a ordem só seria dada por motivo de interesses romanos. Com
efeito, considerando-se o alto posto do tribuno, tem sido afirmado que o mandado deve ter partido do
próprio governador.
Se Jesus foi preso por iniciativa romana e por ordem do governador em pessoa, ou por uma ordem dada
em seu nome, que fazia lá a polícia judia do Templo? Assim como não havia necessidade de um guia ou
informante, como Judas, para localizar Jesus, tampouco havia necessidade da polícia judia para ajudar os
romanos, quer para identificá-lo ou para prendê-lo. Propuseram-se duas te3es principais à guisa de
explicação. Uma é a de que o Sinédrio havia previamente emitido um mandado de prisão #Jo 11,57 e que
foi para sua melhor ou mais rápida execução que as autoridades judias pediram ao governador que
emitisse um segundo mandado. Mas a emissão prévia de uma mandado por um tribunal judeu não
forneceria, aos olhos dos romanos, a menor razão para emitir um segundo, e romano; pelo contrário, as
autoridades romanas teriam corretamente considerado outro mandado algo inteiramente supérfluo. Além
disso, o desejo das autoridades judias de que um judeu fosse preso não seria motivo para que os romanos o
prendessem: primeiro, estes teriam de estar convencidos de que a prisão se enquadrava nos melhores
interesses romanos, e, caso se enquadrasse, ela normalmente não seria do interesse dos judeus. Mas
suponhamos, para argumentar, que a "ordem" dada, segundo João, por "principais sacerdotes e fariseus" a
quem quer que soubesse do paradeiro de Jesus para revelá-lo às autoridades a fim de que o pudessem
"prender" ( 11,5 7) tinha a natureza de uma mandado de prisão e fora de fato emitida por uma autoridade
judia competente. Uma "reunião de conselho", que, segundo Marcos e Mateus, teria ocorrido dois dias
antes da festa de Pessach, na qual "oS principais sacerdotes e os escribas buscavam ardilosamente um
modo de o prender e matar , pois diziam: não durante a festa, para que não haja tumulto entre o povo"
(Marcos 14,1-2, e similarmente Mateus 26,3-5), pareceria ser a mesma reunião tal como relatada por João
(11,47-57), após a qual 0 dito mandato foi supostamente emitido; embora o momento em que a reunião se
realizou varie nos Evangelhos, sendo pré-datada, em João, para quando a celebração d~ Pessach estava
"próxima" (11,55). Mas enquanto o relato dos procedimentos do conselho, em Marcos, é curto e
fragmentário, em João é mais elaborado e assim redigido:
"Que estamos fazendo, uma vez que este homem opera muitos sinais? Se o deixarmos assim, todos crerão
nele; depois virão os romanos e I tomarão não só o nosso lugar, mas a própria nação" (11,50; 18,14).
Quaisquer que tenham sido as apreensões do conselho a respeito de Jesus -e parece que ele temia seu
- 47 -
sempre crescente apoio popular -, é inteiramente fora de contexto que se voltasse para os romanos: se a
preocupação do conselho era a de que Jesus fosse a causa para que os romanos "viessem e lhe tirassem" o
lugar, por já não gozar da confiança do povo, dificilmente dirigir-se-ia aos romanos para se livrar dele. A
primeira pergunta que se faria aos conselheiros seria com que fundamento se emitiria o mandado para
prender Jesus; e se não tivessem melhor resposta do que a verdade, eles certamente seriam expulsos de
imediato. Por outro lado, para inventar um fundamento melhor, ou seja, um fundamento romano para a
prisão, eles não precisavam e não podiam confiar no próprio mandado, o qual, pela natureza das coisas e
em vista da jurisdição judia, deve ter sido emitido por outros motivos. Além disso, transparece de Marcos
(14,1-2) que as deliberações e resoluções do conselho eram de natureza conspiratória; como, portanto,
iriam os conselheiros aos romanos e, desse modo, dar ao seu conluio uma publicidade que eles não
podiam mais controlar? Finalmente, está dito em Marcos (14,2) que seria melhor para eles esperar até
depois da festa para evitar protestos públicos; como, portanto, iriam eles aos romanos na véspera e
insistiriam para que Jesus fosse preso de imediato?
A segunda tese era a de que "a prisão ordenada por Pilatos foi provocada pelos judeus, mas que Pilatos,
que estava em maus termos com as autoridades judias, foi capaz de insistir, embora lhes aceitasse as
sugestões, que não o conduzissem a uma cilada." Sua insistência era não apenas para que a polícia judia
tomasse parte na prisão, mas também para que o tribunal judeu fizesse um pré-julgamento -tudo isso para
garantir que o governador romano não seria "conduzido a uma cilada ", e foi para demonstrar sinceridade
e boa-fé que as autoridades judias concordaram.
Mas uma teoria que tal pressupõe que as autoridades judias, ansiosas como estavam por ver Jesus preso,
não podiam prendê-lo sem a anuência ou fiat do governador romano, um pressuposto que, como vimos, é
factualmente mal concebido. É verdade que, se Pilatos emitiu seu mandado a esse pedido, ele bem podia
impor-lhe condições de todo tipo, mesmo a participação ativa dos judeus na prisão; mas não há nada, nem
mesmo as mencionadas resoluções do conselho, para justificar a presunção de que Pilatos agiu por causa
de uma petição judia quando ordenou a prisão. Dizer que ele estava "em maus termos" com as autoridades
judias é um modo atenuado de se expressar: observamos que ele nunca reagiria à instigação judia, a menos
que tivesse certeza, em seu íntimo, de que fazê-lo correspondia ao melhor interesse romano; se estivesse
satisfeito, seria irrelevante uma instigação judia prévia; se não estivesse, seria um aborrecimento. Em
qualquer caso, ele não confiaria na "sinceridade" ou "boa-fé" da parte dos judeus, ou tampouco estaria
interessado em tais virtudes; e a possibilidade de que os judeus poderiam "conduzi-lo a uma cilada" não
lhe entraria na cabeça; não era a eles que servia, mas só e exclusivamente a si próprio. A menor suspeita
de insinceridade, no sentido de um possível desserviço aos romanos, ou a possível inépcia, do ponto de
vista romano, da ação requerida, teriam levado Pilatos a pôr imediatamente de lado o assunto, e não lhe
seria possível impor condições.
Resta-nos, pois, o fato de que a ordem para a prisão de Jesus foi dada pelos romanos e de que um tribuno,
com sua coorte, foi enviado para executá-la. Não se provou, nem se pode sensatamente presumir qualquer
instigação judia por trás dessa ordem romana. A presença da polícia judia do Templo no momento e no
lugar da prisão não pode ser explicada por qualquer instrução ou requisito romano. Resta apenas uma
possível explicação, e esta consiste em que à polícia do Templo foi permitido estar presente porque a
mesma o solicitou.
Deve ter havido uma razão forte para que a polícia judia fosse instruída a pedir às autoridades romanas,
presumivelmente ao tribuno encarregado do assunto, essa permissão: os judeus não ficariam ansiosos por
estar presentes só por causa do duvidoso benefício do acontecimento. Tampouco devemos subestimar a
importância de uma decisão de destacar um contingente de polícia do Templo para serviço fora das
dependências do Templo numa noite como aquela, quando a cidade e o santuário transbordavam de
visitantes de todas as partes do país, toda a força sendo necessária para manter a paz e a ordem. Havia
seguramente um grande interesse em jogo, visto que as autoridades judias consideraram imperativo enviar
uma unidade da polícia do Templo para tal missão àquela hora específica. Qual o seu propósito é coisa que
se tornará clara quando estudarmos os acontecimentos subseqüentes.
Era natural que, ao ser preso por soldados romanos, Jesus ficasse sob a custódia romana. Sabemos que os
romanos tinham locais de detenção em Jerusalém (Atos 23,10), não havendo motivo por que ele não fosse
levado para lá. Com efeito, isto é tão evidente que um erudito, apenas por esse motivo, põe de lado toda a
história de que Jesus foi levado à casa do sumo sacerdote e sugere que ele passou a noite preso pelos
- 48 -
romanos e foi processado diante de Pilatos na manhã seguinte.29 Se Jesus não ficou sob custódia romana,
tal fato deve-se a ter sido ele entregue à polícia judia do Templo, e deve ter sido a pedido do comandante
dessa polícia que o tribuno concordou em deixar Jesus sob custódia judia. Pedir isso não era nada fora do
comum: as prisões locais bem podem também ter servido aos romanos, e não seria muito importante para
o tribuno o lugar onde ficasse encarcerado o seu prisioneiro. Bastaria a promessa por parte do comandante
da polícia do Templo de entregar Jesus, na manhã seguinte, no tribunal do governador romano: quebrar
essa promessa certamente custaria à polícia do Templo não apenas suas preciosas competências, mas sua
própria existência, e constituiria para o seu comandante um virtual suicídio. É provável também que os
romanos sabiam por experiência prévia que podiam confiar nessa promessa e pode ser que preferissem o
uso de prisões locais para prisioneiros judeus, a fim de evitar complicações quanto à dieta e outras
decorrentes de tomar conta deles.
Buscou-se assim permissão para que a polícia do Templo estivesse presente ao ato de prisão com o
objetivo de fazer com que o oficial romano no comando concordasse em que ela levasse Jesus sob
custódia judia, enquanto se aguardava o julgamento diante do governador romano. Quando isso foi
concedido, eles então levaram Jesus não à prisão,³° mas para a mansão do sumo sacerdote, uma decisão
inteiramente sem precedentes e também, pode-se presumir, completamente inesperada pelos romanos, que
só pode ser explicada presumindo-se que a polícia do Templo tinha ordens do próprio sumo sacerdote de o
levar para lá. Seria, nesse caso, também por solicitação do sumo sacerdote que uma unidade da polícia do
Templo foi destacada naquela noite para o serviço especial: ele deve ter tido conhecimento do mandado de
prisão emitido contra Jesus e sabido que a prisão seria executada não mais tarde que aquela noite, para que
o processo diante de Pilatos pudesse começar na manhã seguinte; e ele deve ter cuidado para que Jesus
fosse levado a ele, e não entregue à custódia romana. Essa preocupação, segundo parece, era tão séria e
premente que justificava e exigia que naquela noite a polícia do Templo se desviasse de suas muitas e
urgentes responsabilidades no interior do Templo. Não seria uma decisão fácil de tomar, do ponto de vista
psicológico: implicava uma ordem do sumo sacerdote ao comandante da polícia do Templo para que se
dirigisse com algum humilde pedido a um tribuno romano, um procedimento de certo intensamente
desagradável para o comandante, não menos do que para o sumo sacerdote -pudessem ou não estar
razoavelmente seguros de que tal pedido seria concedido. Mas se qualquer dessas considerações contava
para eles, elas foram de longe superadas pela aparentemente suprema importância do objetivo em vista.
Parece que as ordens do sumo sacerdote só tinham a ver com Jesus: era Jesus quem seria levado à
residência sacerdotal, não qualquer dos seus discípulos ou assistentes. Seria, no entanto, muito
surpreendente, se realmente o desejo era prender Jesus e puni-lo pela perigosa disseminação de uma
doutrina não ortodoxa e não conformista, que seus discípulos, instrumentos confessos e meios de
divulgação da doutrina, devessem ser deixados livres para ensinar o quê, onde e a quem quisessem.
Tivesse a intenção sido de julgar Jesus por heresia, não-conformismo ou aspirações messiânicas, nada
teria sido conseguido em se o prender sozinho: seus ensinamentos já haviam alcançado um vasto e
entusiástico público, e já haviam sido instruídos discípulos para continuarem onde ele porventura tivesse
de parar. Para ser razoavelmente efetiva, qualquer ação contra ele tinha também de ser tomada
simultaneamente contra seus discípulos, como, com efeito, sucedeu alguns anos mais tarde, quando Pedro
foi levado a julgamento e "os outros apóstolos" foram acusados e julgados juntamente com ele (Atos 5,18-
19). Mas o sumo sacerdote, e portanto a polícia do Templo, não estavam interessados nos discípulos ou
subordinados: buscavam apenas Jesus.
Ainda mais surpreendente e, com efeito, à primeira vista inexplicável, seria o fato de que o discípulo que,
"estendendo a mão, sacou da espada, e golpeando o servo do sumo sacerdote, cortou-lhe a orelha" (Mateus
26,51; similarmente Marcos 14,47; Lucas 22,50; João 18,10), não tenha sido capturado ali e então pela
policia do Templo, ainda que, por um milagre de Jesus, não lhe tenha acontecido maior dano (Lucas
22,51).³¹ Consta em João que um dos servos do sumo sacerdote identificou Pedro como aquele que havia
cortado a orelha do homem (18,26) e, contudo, permitiu-se que Pedro se fosse em liberdade, como coisa
natural, e ninguém se deu ao trabalho de detê-lo (Mateus 26,75; Marcos 14,72; Lucas 22,62) (o fato de
que os discípulos haviam declarado solenemente que seguiriam Jesus até à morte (Marcos 14 ,31) não os
impediu de o abandonarem; mas não há indicação em qualquer Evangelho de que alguma desgraça lhes
teria ocorrido, mesmo se não o tivessem "negado"). O motivo simples para tudo isso é que o sumo
sacerdote dera ordens estritas para que Jesus, e ninguém mais, fosse levado à sua presença, e a polícia do
- 49 -
Templo obedeceu fielmente. O oficial romano, por sua vez, tampouco tinha mandado de prisão contra
outro que não fosse Jesus: apenas Jesus seria julgado pelo governador no dia seguinte. Mas é fato
significativo, e que lança alguma luz sobre a atitude geral dos romanos no caso dos interesses locais, que a
violência cometida contra um policial judeu, mesmo na presença de soldados romanos e seu oficial, não os
tenha impelido à ação. Seja que tenham achado que era um assunto para a polícia judia se ocupar, ou
mesmo que os tenha divertido essa espécie de desordem doméstica, não se sentiram obrigados a intervir.
Tampouco consta que a polícia do Templo tenha feito qualquer coisa: eles podem ter se impressionado e
ficado satisfeitos com a reprimenda de Jesus, "pois todos os que lançam mão da espada, à espada
perecerão" (Mateus 26,52), ou com sua devoção e misericórdia, quando disse: "Mete a espada na bainha;
não beberei, porventura, do cálice que o Pai me deu?" #Jo 18,11; ou tão preocupados com a premência do
seu propósito, que era entregar Jesus à sua custódia e levá-lo à casa do sumo sacerdote, que nada mais lhes
importava no momento. Sua tolerância para com o atacante pode também refletir que, quando souberam
que Jesus seria conduzido à própria casa do sumo sacerdote, e sem qualquer intenção hostil, seus
discípulos, talvez temendo que ele fosse encarcerado e maltratado, podem ter expressado sua raiva
impotente. Se foi Pedro, com efeito, o atacante, ele deve ter-se sentido seguro de que não sofreria dano;
ele não teria, se fosse outro o caso, se aventurado a seguir Jesus à casa do sumo sacerdote #Jo 18,15,
depois de primeiro declinar de entrar ( 18,16). Por causa dessas incongruências, a historicidade de todo o
incidente foi posta em dúvida,³² mas a tradição, comum a todos os Evangelhos, presta-se a interpretação
aceitável, desde que se presuma que a polícia do Templo nada teve a fazer na prisão de Jesus, exceto tirá-
lo da custódia romana tão rápida e discretamente quanto possível e levá-lo à presença do sumo sacerdote,
e que nada mais tinha importância.33
Jesus foi "levado" para a casa do sumo sacerdote (Mateus 26,57; Marcos 14,53; Lucas 22,54). Não há
menção nos Evangelhos Sinópticos das cadeias ou algemas que, de costume, figuravam na prisão de um
suspeito de crime. Apenas, segundo João, Jesus foi "manietado" antes de ser "conduzido" a Anás (18,12) e
este, de novo, o enviou "manietado" à casa do sumo sacerdote (18,24). Parece que o quarto evangelista
não podia conceber que um suspeito preso fosse conduzido não manietado e, em conseqüência,
acrescentou este -para ele evidente -detalhe complementar. Se tivesse havido uma tradição de um Jesus
manietado ou algemado, seria possível que qualquer dos evangelistas omitisse de seu relato mais este ato
de humilhação judia, mais este sofrimento de Jesus? Todos, pelo contrário, teriam tirado o maior partido
dele, outro item, e não sem importância, para dar substância às acusações de crueldade judia.
Argumentando, portanto, ex silentio, deduzimos da autoridade dos evangelistas que Jesus foi conduzido
não manietado, que seguiu com os policiais do Templo como fosse um deles. E, quando chegou ao palácio
do sumo sacerdote, não foi levado a uma prisão ou masmorra, ou metido em confinamento solitário, e
nada há nos relatos do Evangelho que indique quaisquer medidas para impedir sua fuga ou marcar sua
condição de prisioneiro. Foi conduzido ao esplendor do palácio, sem dúvida à mais ampla e imponente de
suas salas, onde todos os conselheiros podiam reunir-se. E não apenas Jesus seria levado e colocado ali,
mas seus discípulos e subordinados, tivessem eles escolhido segui-lo, e não abandoná-lo e fugir (Mateus
26,56; Marcos 14,50) ou "negá-lo" (Mateus 26,74; Marcos 14,70-71).
O tribuno romano acedeu à petição do comandante da polícia do Templo e entregou Jesus sob custódia das
autoridades judias, enquanto não era julgado diante do governador na manhã seguinte. A polícia do
Templo levou-o ao palácio do sumo sacerdote e ali Jesus encontraria todos os principais sacerdotes e
anciãos de Israel reunidos. Era madrugada, e a grande festa de Pessach estava no ar e na cabeça de todos.
Que teria transpirado para fazer com que o sumo sacerdote insistisse em que Jesus fosse levado ao seu
palácio? O que o movera a destacar uma unidade da polícia do Templo, com deveres prementes no
Templo, só para que Jesus fosse escoltado à sua presença? Para que propósito teriam todos os principais
sacerdotes e anciãos e todo o conselho se reunido em sua casa? Por que foi Jesus conduzido diante de tão
augusto sínodo àquela hora da noite?

NA CASA DO SUMO SACERDOTE


- 50 -
Os Evangelhos divergem quanto ao que se passou na casa do sumo sacerdote quando para lá foi levado
Jesus. Segundo Lucas, ele teve de passar toda a noite na companhia dos homens que o prenderam e o
"detiveram" (22,63), e eles vendaram-lhe os olhos, bateram nele e dele zombaram (22,64-65). Só quando
"amanheceu é que se reuniu a assembléia dos anciãos do povo, assim como os principais sacerdotes e os
escribas, e 0 conduziram ao Sinédrio» (22,66). Segundo João, Jesus foi conduzido primeiro à casa de
Anás, "pois ele era sogro de Caifás, sumo sacerdote naquele ano" (18,13); parece que Jesus foi interrogado
pelo "sumo sacerdote", que pode ser Anás ou Caifás, e então Anás o enviou "manietado para Caifás, o
sumo sacerdote" (18,19-24). Consta que nada ocorreu ali, até que eles "levaram Jesus da casa de Caifás
para o salão" do governador romano (18,28) Apenas os Evangelhos segundo Marcos e Mateus dizem que
ele passou a noite na casa do sumo sacerdote, diante de todo o conselho.
Muitos eruditos sustentam que, na verdade, o que transpirou foi o interrogatório relatado no Evangelho
joanino: foi o sumo sacerdote, ou seu sogro, quem interrogou Jesus; não havia conselho presente; e o
objetivo do interrogatório pareceria então ter sido preliminar e preparatório ao julgamento diante de
Pilatos, na manhã seguinte. O que se pretende é que o autor do Evangelho segundo João corretamente pôs
de lado como não histórico e não verdadeiro o relato dos Evangelhos Sinópticos quanto a uma reunião
noturna ou de manhã cedo do Sinédrio: houvesse por trás disso uma tradição válida, ele nem a teria, nem a
poderia suprimir; pelo contrário, teria sido o primeiro a captar uma outra e excelente oportunidade para
incriminar inequivocamente o Sinédrio pela morte de Jesus. Seu esforço subseqüente para isentar Pilatos
de culpa teria se tornado muito mais fácil e parecido muito mais natural, tivesse ele seguido Marcos e
Mateus e prefaciado o processo diante dele com o pronunciamento formal e solene de uma sentença de
morte pelo Grande Sinédrio dos judeus. Embora consciente dos relatos em Marcos e Mateus, o fato de que
ele não o fez indicaria que o Sinédrio não realizou qualquer julgamento, nem pronunciou qualquer
sentença.
Não buscaremos resolver a questão da historicidade dos procedimentos noturnos relatados em Marcos e
Mateus, mas partiremos da premissa de que o Grande Sinédrio se reuniu aquela noite no palácio do sumo
sacerdote. E isso a despeito de formidáveis argumentos exegéticos propostos para infirmar a autenticidade
da passagem em Marcos, que serviu de modelo a Mateus, e não porque iríamos necessariamente sustentar
a autenticidade ou confiabilidade do rela- to, mas porque -olhando os acontecimentos do pontos de vista
judeu -trata-se de uma pressuposição contra nós: deve ser muito mais forte a argumentação judia, se o
Sinédrio não se reuniu em absoluto aquela noite e se qualquer coisa que tenha acontecido só possa ser
culpa do sumo sacerdote. O sumo sacerdote pode ter sido, em pessoa, um boneco nas mãos dos romanos,
sem estatura moral ou política, de cujos atos e conduta a comunidade judia como tal ter-se-ia
veementemente dissociado; e podia ser -como foi - sustentado que o que ele disse ou fez não podia de
qualquer forma ser atribuído aos judeus ou às autoridades judias como um todo. O caso é inteiramente
diferente com o Sinédrio: se o sumo sacerdote presidiu e atuou de acordo com aquele corpo augusto e
muito representativo, já não seria ele pessoalmente que assumiria a responsabilidade, nem seria de
relevância seu caráter ou prestígio pessoais: o Sinédrio falava em nome de todos os setores e facções do
povo judeus, e seus atos e decisões se revestiam de uma autoridade geral e não contestada. Postulando,
portanto, como fazemos, que foi o Grande Sinédrio que se reuniu aquela noite, assumimos a carga de uma
"admissão contra o interesse", porque estamos com os evangelistas ao envolver os judeus e as autoridades
judias como um todo nos acontecimentos daquela noite.
Foi a pedido do sumo sacerdote que Jesus foi levado ao seu palácio: ele enviara a policia do Templo para
impedir que Jesus fosse posto sob custódia romana e para obter que ele fosse entregue, àquela noite, à
custódia dos judeus. Ele sabia, é claro, da prisão de Jesus por soldados romanos e enviara seus guardas
para negociar com o tribuno romano; assim, ele também sabia que Jesus seria submetido a julgamento na
manhã seguinte, diante do governador romano - sendo essa a razão para que fosse preso. Ele saberia tudo
isso, mesmo que pessoalmente nada tivesse a ver com provocar a suspeita romana e o processo contra
Jesus; e com tanto mais razão, se estava tão envolvido na coisa. Ele deve ter tido alguma razão para pedir
às autoridades romanas que lhe entregassem Jesus aquela noite, e não menos razão para reunir o Sinédrio
e fazer com que Jesus diante dele comparecesse. Para abrir caminho ao nosso inquérito sobre tais razões, é
preciso primeiro resolver as teorias de que o Sinédrio foi reunido, sei a para julgar Jesus e o condenar à
morte, como dizem os relatos do Evangelho, seja para fazer uma investigação preliminar das acusações
que seriam formuladas na manhã seguinte, no tribunal do governador romano.
- 51 -
Dentre os estudiosos que sustentam que Jesus foi julgado e sentenciado pelo Sinédrio, alguns pensam que
ele foi julgado duas vezes, isto é, primeiro num julgamento religioso diante do tribunal e, depois, num
julgamento político diante do governador romano;³ outros que o julgamento diante do Sinédrio foi o único
julgamento real e que então os judeus desejaram do governador que executasse a sentença capital, porque
isso excedia os poderes do Sinédrio.4 Já afastamos a teoria da incompetência como inconsistente com o
fato de que, naquele tempo e posteriormente, o próprio Sinédrio executou sentenças capitais; mas a tese é
insustentável por duas outras razões, uma de natureza legal e outra de natureza política. Por uma questão
legal, o modo de punição prescrito nas Escrituras -apedrejar , queimar ou chacinar -não podia ser
substituído por um modo não autorizado e estrangeiro de execução: qualquer modo diferente do prescrito
no direito judeu não representaria a execução legal de uma sentença do Sinédrio, senão que, por um lado,
a deixaria não executada e, por outro, constituiria um assassinato ilegal. E, por uma questão de política,
tampouco teria o Sinédrio pedido às autoridades romanas que executassem suas sentenças capitais, nem
teriam os romanos concordado com isso como vimos, o Sinédrio só exercia jurisdição capital no caso dos
judeus, não sendo concebível que um judeu fosse entregue por um tribunal judeu ao inimigo romano,
qualquer que fosse o crime; o Sinédrio teria antes se abstido de decretar sentenças capitais a vê-las
executadas por um adversário odioSo, de um modo incompatível com a lei judia, que repugnava o
sentimento judeu. Quanto aos romanos, não teriam deixado quaisquer poderes jurisdicionais nas mãos do
Sinédrio, tivesse este declarado sua incapacidade de fazer com que seus julgamentos e ordens fossem
devidamente executados. Se e enquanto fosse capaz de fazê-lo, tudo bem -os romanos não interfeririam
com a sua jurisdição interna; mas se não o fosse, eles teriam certamente declinado de aliviá-lo de seu
dever, por mais que o detestassem, de executar seus próprioS criminosos.
Resta, portanto, a teoria de que Jesus teve de suportar dois diferentes julgamentos -um judeu-religioso e
um romano político. Por enquanto, estamos preocupados apenas Com o julgamento judeu, do qual se disse
ter o Corrido de noite, diante do Sinédrio, na casa do sumo sacerdote. Antes de examinarmos a Teoria do
Julgamento Judeu, é mais que justo reconhecer que a esmagadora maioria dos eruditos modernos a
abandonou, embora, desde oS primeiros dias do cristianismo, todas as gerações e seitas de cristãos foram
educadas na crença inabalável de que naquela noite Jesus foi julgado e sentenciado à morte peloS judeus.
A rejeição da Teoria do Julgamento Judeu igualmente pela erudição teológica e pela histórica modernas
levou recentemente um escritor à pesarosa queixa de que os tradicionalistas fiéis parecem estar
encontrando um muro de consenso de que não ocorreu, de fato, qualquer julgamento judeu. Não nos
contentaremos com este consenso, mas investigaremos a teoria em seus méritos, se apenas pela razão de
que a maioria dos escritores que atentam para oS aspectos legais do assuntoS ainda aderem a ela.
Esta teoria consiste em que aquela noite O sumo sacerdote reuniu o Sinédrio em sua casa particular; que lá
Jesus foi julgado, de acordo Com a lei judia, por uma acusação de blasfêmia; que foi declarado culpado de
tal crime por tê-lo ele próprio confessado e que foi sentenciado à morte. Julgando pelas aparências, a
teoria parece incompatível Com as seguintes e bem estabelecidas disposições da lei judia:
1. Não se permitia a qualquer Sinédrio reunir-se como tribunal penal e julgar ilícitos penais fora das
dependências do Templo, numa residência particular.
2. Não se permitia ao Sinédrio julgar ilícitos penais de noite; os julgamentos criminais tinham de ser
iniciados e concluídos durante o dia.
3. Nenhuma pessoa podia ser julgada por uma acusação de crime nos dias festivos ou na véspera de um
festival.
4. Nenhuma pessoa pode ser considerada culpada por seu próprio testemunho ou por força de sua própria
confissão.
5. Uma pessoa só pode ser considerada culpada de um crime capital mediante o depoimento de duas
testemunhas oculares legalmente qualificadas.
6. Nenhuma pessoa pode ser considerada culpada de um crime capital, a menos que duas testemunhas
legalmente qualificadas atestem que, primeiro, a tenham advertido da ilegalidade do ato e da penalidade
para ele prescrito.
7. O crime capital de blasfêmia consiste em pronunciar o nome de Deus, Jeová, que só pode ser expresso
uma vez ao ano pelo sumo sacerdote, no mais interno santuário do Templo; e é irrelevante que
"blasfêmias" são ditas, desde que não se enuncie o nome divino.
- 52 -
As inconsistências óbvias nessas normas de lei e de procedimento e os desvios delas foram tomados na
devida conta, em sua maior parte, pelos que propuseram a Teoria do Julgamento Judeu e lhes fornecem o
argumento quase conclusivo de que todo o julgamento, e a sentença resultante, estavam maculados de
ilegalidade. Nas palavras do Presidente da Suprema Corte, MacRuer: "O julgamento hebreu... entranhado
como estava em ilegalidade... fora uma mascarada de procedimento judicial em todo o seu decorrer. Jesus
foi ilegalmente preso e ilegalmente interrogado... o tribunal foi ilegalmente reunido à noite. Não se
formulou jamais qualquer acusação legal sustentada pela prova de duas testemunhas... Quando Jesus
compareceu diante da justiça, foi ilegalmente submetido a julgamento como testemunha contra si próprio.
Ele foi ilegalmente condenado à morte por causa de palavras saídas da sua própria boca..." A própria
violação de todas as normas de lei e procedimento vai no sentido de estabelecer a afirmação de que Jesus
foi vítima de um assassinato judicial. Essa afirmação é ainda mais fortalecida pela noção "de que o
resultado do julgamento foi formalmente pré-determinado pelos juízes, sem distinção de seita; quer isto
dizer que todo o julgamento foi encenado para dar a aparência de procedimentos judiciais à resolução
previamente tomada de matar Jesus #Jo 11,53; Marcos 14,1; Mateus 24,6. E se todo o julgamento foi, de
qualquer forma, apenas uma mascarada, porque se teriam os juízes preocupado com os escrúpulos e as
tecnicalidades da lei e dos procedimentos”?
Outros escritores não se mostraram exatamente tão desinteressados. Para eliminar pelo menos algumas das
incongruências, a saber, que o julgamento foi à noite e na véspera de um festival, ou no próprio festival -o
que apresenta, com efeito, não apenas dificuldades legais, mas também psicológicas -, foram feitas
tentativas para antecipar a data do julgamento: diz-se que as ocorrências atribuídas pelos Evangelhos a
uma noite e à seguinte se passaram, na verdade, no curso de três dias consecutivos ("Cronologia de Três
Dias"). Isto induz à consideração de que o julgamento não tenha se dado, obrigatoriamente, quer durante a
noite, quer na véspera de um dia de festa. A liberdade que se toma aqui com o calendário do Evangelho
lembra a regra farisaica de interpretação das Escrituras, de que o que nelas se diz ter acontecido primeiro
pode ter acontecido depois, e o que se diz ter acontecido mais tarde pode ter acontecido mais cedo.
Quaisquer que possam ser os méritos dessa revisão de datas, ela só pode resolver uma ou duas das
dificuldades procedimentais, deixando sem resposta os fatos irreconciliáveis substanciais.
O mais ponderável argumento apresentado para salvar a Teoria do Julgamento Judeu consiste em que a lei
sob a qual se realizou o julgamento não era a farisaica, que conhecemos de fontes talmúdicas, mas a
saducéia, que desde então se tornou obsoleta e caiu no esquecimento; e diz-se que o julgamento aquela
noite, na casa do sumo sacerdote, estava em plena conformidade com a lei e procedimento saduceus. Ora,
enquanto é verdade que, se jamais existiram quaisquer lei e procedimento saduceus, foram eles
consignados ao limbo, não obstante sejam alguns fundamentos da doutrina legal saducéia bem conhecidos
e bem atestados, e podemos testar o argumento aplicando-se aos relatos do julgamento. Vimos que os
saduceus diferiam dos fariseus porque aceitavam como obrigatórios, só os preceitos escritos das
Escrituras, enquanto os fariseus postulavam também a autoridade divina da lei oral exposta por eles. Na
medida, portanto, em que as violações da lei observadas no julgamento afetam a lei oral não consagrada
nas Escrituras, é possível que um tribunal saduceu não as tenha encarado como violações, não tendo
reconhecido aquela lei; por outro lado, mesmo um tribunal saduceu provavelmente não infringiria normas
estabelecidas nas próprias Escrituras, ou delas deduzíveis. Ora, não há proibição escritural quanto a
realizar julgamentos em dias de festa ou nas vésperas de festivais; a esse respeito, o julgamento de Jesus
poderia, sob a lei saducéia, ter estado em ordem. Mas a proibição de julgamentos noturnos já suscita
dúvidas: ela é fundada na injunção escritual de empalar os transgressores "contra o sol" (Números 25,4),
interpretada como norma que requer o julgamento e a punição de criminosos apenas enquanto o sol brilha,
isto é, durante o dia. Como esta espécie de autoridade escritural foi com freqüência superimposta ex post
facto numa autoridade existente estabelecida independentemente das Escrituras, podemos conceder aos
saduceus o beneficio da dúvida e presumir que também eles não viram qualquer objeção aos julgamentos
noturnos.
Diz-se então que, se, como sabemos, a jurisdição penal sob a lei farisaica era exerci da apenas pelo
Pequeno Sinédrio de vinte e três, sob a lei saducéia foi o Grande Sinédrio de setenta e um (que de fato se
reuniu aquela noite na casa do sumo sacerdote), que iria ele próprio exercer a jurisdição por causa dos
setenta anciãos que, regendo as Escrituras, juntaram-se a Moisés para conduzir o povo (Números 11, 16).
Mas, em primeiro lugar, não há indicação nas Escrituras de que os setenta anciãos, com Moisés, tenham
- 53 -
alguma vez exercido jurisdição criminal; nem, em segundo lugar, temos qualquer registro de que o Grande
Sinédrio de setenta e um jamais o tenha feito. É verdade que a escolha escritural1 de setenta, além de
Moisés, serviu como precedente para os membros do Grande Sinédrio, mas o número parece não ter
influência sobre a natureza de suas funções e competências.
Com tudo isso, a principal dificuldade no caminho de um julgamento saduceu consiste em que é lei
escritural explicita que uma acusação capital deva ser aprovada por duas ou três testemunhas oculares
(Deuteronômio 19,15; 17,16). Mesmo presumindo que a norma contra a auto-incriminação e a
inadmissibilidade de confissão só foi exposta por professores farisaicos como uma questão de lei oral, não
se podia considerar que a disponibilidade de uma confissão dispensasse a necessidade de testemunhas:
uma acusação criminal só pode ser estabelecida "pela boca de testemunhas" (Deuteronômio 19,15). Já que
no julgamento de Jesus todas as testemunhas foram recusadas como indignas de fé ou desqualificadas
(Marcos 14 ,59; Mateus 26,59-60) e a condenação fundou-se apenas na confissão de Jesus (Marcos 14 ,63-
64; Mateus 26,65-66), a lei escritural -quer dizer, saducéia -não pode ter sido cumprida. Por vezes têm
sido aduzidos exemplos bíblicos como prova, sob a estrita lei escritural, de que os homens podiam ser
punidos por força de suas próprias confissões, não obstante a exigência de testemunhas: assim, diz-se, foi
o assassino de Saul punido por Davi, depois que "David lhe disse: O teu sangue seja sobre a tua cabeça,
porque a tua própria boca testemunhou contra ti, dizendo: Matei o ungido do Senhor" (2 Samuel1,16); ou
Acã foi apedrejado pelo povo depois de ter feito uma total confissão a Josué #Js 7,19- 25 .Dos textos
escriturais, no entanto, não podemos saber se as punições foram judiciais ou extrajudiciais, ou se havia,
além disso, testemunhas disponíveis; a antiga tradição judia é de que Acã só fez sua confissão depois da
condenação;31 e quanto ao amalequita que "confessou" a Davi, ele alegou que Saul pedira para ser
assassinado (2 Samuel 1,9-10), por isso pensou ter feito uma boa ação de que se podia gabar, e não
cometido um crime a ser confessado: Davi reagiu à violação do "ungido de Deus" mais do que a qualquer
crime punível por processo ordinário da lei.32
Tanto quanto este problema relacionado a prova, há a questão da lei substantiva. É lei oral, mas não
escritural, que "Qualquer um que amaldiçoar o seu Deus levará sobre si o seu pecado" (Levítico 24,15),
mas aquele que blasfemar33 contra o nome do Senhor será morto; toda a congregação o apedrejará"
(24,16). Estabelece-se uma distinção clara entre amaldiçoar Deus, que é um crime não punível com a
morte, e blasfemar contra Deus pronunciando Seu nome inefável, que é um crime capital; a distinção é das
Escrituras e, portanto, uma parte da lei saducéia. Para contornar isto, foi dito que o crime de Jesus não foi
blasfêmia por pronunciar o nome de Deus, mas o de "agir com insolência e assim injuriar o Senhor" (Nm
15,30); mas parece que se ignorou que esse crime alternativo também não é um crime capital, mas
somente atrai punição divina ( ibid. ) ou será passível de açoites.34 Argumenta-se, além disso, que há
prova para demonstrar que a noção saducéia da blasfêmia era muito mais ampla, não se restringindo à
pronúncia do Nome divino: as testemunhas que depuseram contra Estevão dele disseram: "Temos ouvido
este homem proferir blasfêmias contra Moisés e contra o Senhor" (Atos 6, 11 ), e novamente: "Este
homem não cessa de falar contra o lugar santo e contra a lei" (6,13), implicando que pode haver blasfêmia
sem que se pronuncie o Tetragrammaton, pelo quê um homem pode ser julgado (6,12) e apedrejado (7,58).
Da descrição do apredrejamento, poder-se-ia afirmar que Estevão foi linchado por uma malta
enlouquecida, em vez de ser executado; mas, seja como for, as blasfêmias alegadas contra Estevão são tão
similares àquelas pelas quais Jesus foi supostamente sentenciado, que não proporcionam a menor prova
independente. Diz-se que Estevão -logo antes do apedrejamento - proclamou que viu "a glória de Deus e
Jesus de pé à direita de Deus" (7,56-57), enquanto Jesus já havia prometido: "Mas, desde agora, o Filho do
Homem estará sentado à direita de Deus poderoso" (Lucas 22,69), uma promessa que provocou a decisão
de blasfêmia contra ele. É o precedente de Jesus que explica a blasfêmia de Estevão, e não o contrário.
Ainda mais espúrio é o argumento que se extrai dos incidentes de apedrejamento relatados no Evangelho
segundo João: mostramos36 os motivos pelos quais eles não podem, com efeito, ter ocorrido; mas, mesmo
se ocorreram, não oferecem prova, pois embora se diga que os judeus pegaram de pedras para apedrejar
Jesus #Jo 10,31 por blasfêmia (10,33), eles não tencionavam fazê-lo em execução de uma sentença
judiciária, e não se acredita que usem o termo "blasfêmia" em qualquer sentido técnico.
Parece, portanto, que mesmo que o Sinédrio que julgou e condenou Jesus tenha sido um tribunal saduceu
aplicando a lei saducéia, ele não o poderia ter condenado por blasfêmia, não transparecendo de qualquer
dos Evangelhos que Jesus tenha sido acusado de qualquer outro crime ou condenado por ele. Mas a teoria
- 54 -
de que o Sinédrio pode ter sido um tribunal saduceu é a priori insustentável, do começo ao fim. É verdade
que os saduceus podem ter tido tribunais próprios: um destes é mencionado no Talmude37 como
executando a punição por fogo, em divergência da maneira da lei farisaica. Mas enquanto um tribunal
saduceu pode ter aplicado modos de execução diferentes do uso dos tribunais fariseus, isso não teria, quer
na elaboração desses modos, quer de qualquer outra forma, transgredido as normas da lei das Escrituras
que os saduceus encaravam como sacrossantas e invioláveis. A história relatada no Evangelho joanino
sobre Jesus e a adúltera foi citada para estabelecer a prevalência dos tribunais saduceus que rejeitavam os
modos fariseus: é dito a Jesus que "Moisés na lei nos ordena" que uma adúltera seja apedrejada (8,5),
enquanto a lei farisaica diz que uma adúltera é passível de morte por estrangulamento. Mas aqueles que
debatiam com Jesus quanto a este ponto são expressamente identificados como fariseus (8,3), não
saduceus; a mulher não foi julgada ou condenada, e ignoramos qual seria o resultado num tribunal saduceu
ou fariseu; finalmente, o episódio, parece ter sido inserido no Evangelho por motivo da moral: a alegoria
do apedrejamento era necessária 'para que se pudesse aplicar a exortação de Jesus: "Quem dentre vós que
não tem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra" (8, 7).39 É um fato que, vez por outra, havia
desvios dos modos prescritos de execução e das normas de procedimento e de prática, mas tais desvios
não precisam ser vistos como evidência de um tribunal saduceu procedendo de acordo com a lei saducéia.
Encontramos exemplos de erro judicial, "porque o tribunal não era bastante instruído";4° de ilegítima
usurpação de poderes judiciais, onde reis, como Herodes, por exemplo, se arrogavam o poder de julgar e
punir criminosos; ou de um legitimo excesso de jurisdiçãO por questão de emergência!2 É essa
permissível exceção à estrita aplicabilidade das normas da lei e de procedimento que proporcionou a
alguns eruditos uma pista para sua teoria: no caso de Jesus, o Sinédrio havia proclamado uma "emergência
", e assim se libertado de todas as normas, de forma que já não podia haver qualquer dificuldade quanto à
sua não observância. O principal proponente moderno dessa teoria chega ao ponto de manter que a
"emergência" é a ultima ratio da lei judaica: segundo ele, as leis substantiva e procedimental podiam em
qualquer caso, e normalmente em casos de apostasia, ser suspensas pelo presidente do Sinédrio, para que
ele não fosse tolhido por disposições opressivas na campanha contra apóstatas e outros elementos
perigosos!4 A principal, senão a única, autoridade para essa opinião é o relato de enforcamento de oitenta
feiticeiras em um dia, em Ascalon, imputado a Simon ben Shetah, que presidiu o Sinédrio mais de um
século antes de Jesus. Voltaremos a esse relato em outro contexto; basta dizer por ora que, segundo a
tradição, Simon Ben Shetah agiu, com efeito, numa emergência, e conseqüentemente sua ação não seria
aceita como um precedente!7 Mas esse é o único caso sabido de um presidente do Sinédrio invocar
poderes de emergência; e é totalmente equivocado deduzir dele uma regra geral. Além disso, nada nos
relatos do Evangelho justifica a conclusão de que o sumo sacerdote, ou qualquer outro presidente ou
oficial do Sinédrio, ou o Sinédrio em plenário de fato proclamou uma emergência e suspendeu todas ou
algumas normas ou procedimento da lei; pelo contrário, a busca de testemunhas contra Jesus (Marcos
14,55) e a reunião plenária sem delegação de poderes indica à primeira vista que não se proclamou
qualquer emergência. Outro autor encara esse poder de emergência como uma espécie de ficção ou
subterfúgio que o tribunal invocava depois do acontecimento para desculpar desvios irregulares das
normas da lei e de procedimento: para prevenir ou evitar qualquer ataque posterior à validade de seus
procedimentos, o tribunal simulava ter se reunido em condições de emergência, mesmo que não se tivesse
proclamado prévia ou formalmente uma emergência, e seria automaticamente remediada qualquer infração
da lei. Não é impossível, pois que o enforcamento a varejo de feiticeiras em Ascalon tenha sido objeto,
após o acontecimento, de uma busca de legitimização, se apenas por causa da reputação de Simon ben
Shetah, arranjando-se uma desculpa de emergência. Mas se assim foi, seguir-se-ia que não existiam em
absoluto poderes de emergência como uma instituição da lei judia, não sendo o incidente em Ascalon
próprio para se estabelecer um precedente geral. Inclino-me a pensar que, longe de proporcionar aos
sumos sacerdotes e ao Sinédrio pretextos, ex post facto, os poderes de emergências proporcionam aos
nossos autores um providencial manto para a insolubilidade do seu dilema.
Vimos que os fariseus mereciam a reputação -ou a notoriedade -por um legalismo rigoroso e meticulosa
exatidão formalística na 1observância de cada partícula da lei. É assim que os "fariseus" são representados
nos Evangelhos: e, para o intérprete ortodoxo, a flagrante contradição entre a forma tipicamente estrita de
cumprir a lei e esse particular desleixo em fazê-lo deve ser de alguma forma embaraçosa. A teoria
saducéia pareceu proporcionar a resposta: não havia fariseus aquela noite na casa do sumo sacerdote, ou,
- 55 -
se havia, eram uma minoria que não se podia fazer ouvir. Mas -além das dificuldades já mencionadas -essa
resposta suscita um novo enigma. Sabemos que eram os "fariseus" os arquiinimigos de Jesus, segundo os
Evangelhos; foram eles que "buscaram destruí-lo" e se reuniram para saber como melhor fazê-lo. Como,
então, pode ser que eles, entre todos, nada tenha tido a ver com a parte final da destruição? Também
sabemos que os fariseus e os saduceus estavam em discórdia: como, então, seria possível que os fariseus
tivessem confiantemente delegado aos saduceus a condução do julgamento e o pronunciamento da
sentença contra Jesus? Depois de toda a ansiedade que os "fariseus" demonstraram tentando persuadir
Jesus a lavar as mãos, a observar jejuns, e a dar mais atenção aos aspectos técnicos das leis sabatinas,
devemos subitamente acreditar que eles o entregariam nas mãos de saduceus heréticos para um
julgamento que ignorasse todas as normas obrigatórias da lei substantiva e procedimental! Mesmo se um
tribunal saduceu tivesse reivindicado jurisdição para julgar Jesus, não pode haver dúvida de que os
fariseus teriam apresentado objeções a isso ou que o próprio Jesus teria levantado objeções: se Jesus
tivesse de ser julgado, o mínimo que eles e ele teriam pedido seria um julgamento segundo a lei, O
principal ponto que a teoria saducéia ignora, no entanto, é que o Grande Sinédrio de Setenta e Um, embora
incluísse saduceus e fariseus, seguia a lei farisaica -não apenas porque de outra forma os fariseus dela não
participariam, mas também porque o povo não o admitiria de outra forma. Se assumirmos que foram os
sacerdotes, os anciãos, os escribas e todo o conselho, isto é, o Grande Sinédrio, que se reuniu aquela noite,
então ipso facto excluímos a possibilidade de que Jesus tenha sido julgado por um tribunal saduceu:
mesmo se tais tribunais existiam, eles não eram, nem poderiam ser, idênticos ao Grande Sinédrio.
Cai assim por terra a Teoria do Julgamento Judeu, à luz de considerações legais e lógicas, não menos do
que por motivos exegéticos.Jesus não podia ter sido julgado pelo Sinédrio nem da maneira, nem no
momento nem no lugar descritos nos relatos do Evangelho, nem poderia ter sido culpado do crime pelo
qual, segundo esses relatos, se diz que o Sinédrio o considerou culpado. Por isso foi sugerido que o que o
Sinédrio fez aquela noite foi realizar uma investigação preliminar das acusações pelas quais Jesus seria
(ou poderia ser) julgado na manhã seguinte diante do governador romano.
Em geral concorda-se com o fato de que Jesus foi julgado e sentenciado na manhã seguinte por Pôncio
Pilatos: por que motivo então o julgamento teria sido precedido de outro? Se um julgamento penal de uma
ofensa capital é precedido por procedimentos semelhantes a um julgamento, é evidente que esses
procedimentos são da natureza de uma investigação preliminar para os objetivos do julgamento. Esta
conclusão é manifestamente fortalecida pelo fato de que, segundo os relatos do Evangelho, os
procedimentos na casa do sumo sacerdote não tiveram início com a descrição para Jesus de uma acusação
formal, mas com a busca de testemunhas -não para provar um crime dado e definido, mas para descobrir
se surgiria um depoimento para provar qualquer crime contra ele. O mais formidável argumento a favor da
teoria investigatória é o de que o sumo sacerdote interrogou o próprio Jesus: o interrogatório de um
acusado é algo inédito num julgamento penal sob a lei judaica. Uma sentença ("condenação") do Sinédrio
é registrada apenas em Marcos (14 ,64 ); segundo Mateus, eles todos "disseram" que ele era réu de morte
(26,66) e podem ter dito isso informalmente; e, segundo Lucas, eles se limitaram a dizer: "Que
necessidade temos ainda de testemunhas?"(22,71); e a falta de qualquer sentença formal nos dois
Evangelhos posteriores -além da total ausência de quaisquer procedimentos de julgamento no Evangelho
segundo João -podia assinalar o fato de que os procedimentos não terminaram com um julgamento contra
Jesus, mas apenas com uma decisão de indiciá-lo diante de Pilatos. É dito, com efeito, que o Sinédrio não
atuou aquela noite na sua capacidade judicial, mas como um corpo administrativo, não podendo haver
dúvida de que tinha funções administrativas, bem como judiciárias. A teoria investigatória, segundo alguns
dos seus protagonistas, encontra significativo apoio na terminologia dos Evangelhos: o termo usado em
Marcos (15,1), traduzido como "conselho, é o grego sumboulion, que significa sessão de conselho: se o
Sinédrio se tivesse reunido como um tribunal, a palavra seria krisis ou krima.
A primeira vista parece difícil entender que, enquanto era ilegal para o Sinédrio reunir-se de noite ou na
véspera de um dia de festa para fazer um julgamento, era legal reunir-se para um inquérito preliminar.
Pensar-se-ia que, mesmo se um julgamento fosse ilegal em tal momento, com muito mais razão um
inquérito preliminar deveria sê-lo. Mas foi opinado que a proibição de se reunir no shabat e nos dias de
festa só se aplicava aos julgamentos judiciais, onde um acusado tinha de ser sentenciado e executado, e
não quando o Sinédrio se reunia em capacidade administrativa, para debate político ou de outra natureza.
É verdade que o motivo para a proibição não foi provavelmente a necessidade de repouso sabático ou
- 56 -
festivo para os membros, mas antes a consideração humana de que um acusado não devia correr perigo em
tal dia; do ponto de vista dele, no entanto, era quase tão ruim ser submetido a uma investigação preliminar
quanto ser sujeito a um julgamento, e nem de uma coisa nem de outra devia ele ser vítima no seu dia de
repouso. E quanto à proibição de procedimentos noturnos, confiou-se numa norma de que quando um
julgamento era adiado para o dia seguinte, os membros do tribunal se consultariam durante a noite para
mostrar que as consultas durante a noite, diferentemente dos julgamentos à noite, eram perfeitamente
legais. Mas, para tais consultas, os juízes se reuniam em suas casas, e não necessariamente todos juntos,
não havendo registro de qualquer reunião plenária noturna do Sinédrio para qualquer finalidade. Além
disso, enquanto seria possível manter consultas entre os juízes durante a noite sem inconveniente para o
acusado, uma investigação noturna, inclusive o seu interrogatório, implicaria infringir seu direito de
repouso, não menos do que sucederia com um julgamento noturno; e, como no caso do repouso sabático e
festivo, o repouso noturno devia ser encarado como um direito concedido antes ao acusado do que aos
seus juízes.
Se, com efeito, o sinédrio realizou uma investigação preliminar, deve ter sido para as autoridades romanas.
Já se disse que um "exame preliminar era necessário antes que pudesse haver o julgamento diante de
Pilatos. Era necessário questionar Jesus, interrogar testemunhas, traduzir seus depoimentos, preparar a
folha de acusação. .. Diferenças de linguagem, de costumes e de hábitos convencionais entre os
funcionários romanos e a população nativa exigiriam que a preparação do caso fosse confiada a
funcionários judeus do séqüito do sumo sacerdote."54 Logo veremos que os romanos não necessitavam de
qualquer ajuda dos judeus sob esse aspecto; mas, presumindo-se por um momento que sim, como poderia
ser que, de todas as "autoridades", ou "funcionários" judeus, tivesse de ser o Grande sinédrio de Israel que
lhes devesse prestar uma assistência técnica como essa? A resposta, é claro, só pode ser a de que não foi
todo o sinédrio que se reuniu aquela noite, mas o sumo sacerdote e alguns de seus secretários e
funcionários;55 os "principais sacerdotes, anciãos e escribas, e todo o conselho" seriam então uma
interpolação posterior no texto, como se diz estar demonstrado pelo fato de que "todo o conselho" é
mencionado em Marcos (15,1) em conexão com a entrega de Jesus, na manhã seguinte, nas mãos de
Pilatos, mas não (14,53) em conexão com os procedimentos noturnos. (As mesmas variações textuais
levaram outros eruditos a afirmar que, enquanto foi feita uma investigação preliminar pelo sumo sacerdote
e alguns de seus funcionários durante a noite, o sinédrio reuniu-se na manhã seguinte e realizou um
julgamento ).26 A teoria de que a investigação preliminar foi feita naquela noite pelo sumo sacerdote e
alguns funcionários seus encontra apoio no Evangelho joanino, que diz que naquela noite Jesus foi
interrogado só pelo sumo sacerdote (18,19- 24) e que nenhum conselho se reuniu na casa do sumo
sacerdote. Mas que dizer dos "principais sacerdotes, anciãos e escribas" (Marcos 14 ,53) ou "os principais
sacerdotes e anciãos, e todo o conselho " (Marcos 14,55), que são claramente mencionados como
presentes e ativos nos procedimentos noturnos? Pôr tudo isso de lado como uma interpolação ulterior é
demasiado fácil e muito pouco justificado. Penso que precisamos nos manter fiéis a nossa premissa de que
foi o Grande Sinédrio que se reuniu àquela noite, com a questão ainda não resolvida de saber como aquela
assembléia iria levar a cabo tal inquérito para os romanos.
Reivindica-se autoridade para a tese de que o Sinédrio, de fato, executou essas tarefas para os romanos por
causa do relato da prisão de Paulo: o capitão romano, tendo-o preso (Atos 21,33), buscou interrogá-lo
recorrendo aos açoites (22,24); Paulo protestou, reivindicando imunidade aos açoites por ser um cidadão
romano (22,25- 27); e o capitão então "ordenou que se reunissem os principais sacerdotes e todo o
Sinédrio e, mandando trazer Paulo, apresentou-o perante eles" (22,30). Consta que Paulo foi "apresentado
diante" do Sinédrio por aquele comando para uma investigação em preparação a um julgamento romano;
mas como Paulo só protestou que, como cidadão romano, tinha o direito de não ser açoitado, o capitão
podia muito bem tê-lo interrogado sem o açoitar, pois nenhum cidadão romano tinha imunidade a
interrogatórios, e tal imunidade não fora reivindicada por Paulo. Além disso, se ele pudesse, como cidadão
romano, legalmente objetar a ser interrogado por um oficial romano, ele podia, a fortiore, como um
cidadão romano, objetar a que fosse interrogado por um tribunal judeu local. O fato de que o capitão
reuniu o Sinédrio sem nenhum objetivo de interesse romano é evidente em sua carta a Félix, o governador,
em que ele escreve que apresentou Paulo ao conselho porque "queria certificar-se do motivo por que o
acusavam" (23,28), e ele não "percebeu" que Paulo era acusado por eles, isto é, pelos judeus, "de coisas
referentes à lei deles, nada havendo, porém, que justificasse" a sua morte, ou mesmo a sua prisão" (23,29).
- 57 -
Em outras palavras, deu-se que Paulo foi acusado de crimes sob a lei religiosa judia e que, pela lei
romana, não eram puníveis, quer com a morte, quer com o encarceramento; e o Sinédrio tratava de
questões da lei judia dentro da sua própria e exclusiva competência; não tratava de crimes segundo a lei
romana e julgáveis por um tribunal romano. Em seu discurso a favor da acusação diante de Félix, Tértulo
disse que o Sinédrio teria julgado Paulo segundo a lei judia (24 ,6), não tivesse o oficial romano retirado
Paulo "com grande violência" (24,7). O que ocorreu diante do Sinédrio foi, portanto, o primeiro ato de um
julgamento segundo a lei judia, e não um inquérito preliminar para auxiliar um tribunal romano, e
presumivelmente teria sido concluído no devido tempo, se o oficial romano não tivesse sido informado do
conluio para linchar Paulo (23,21).
Não há um só exemplo registrado em qualquer parte de que o Grande ou Pequeno Sinédrio tenha jamais
atuado como um agente de investigação dos romanos. Se tal costume ou prática tivesse existido, e
certamente se tivesse havido qualquer norma de lei segundo a qual o Sinédrio seria competente, ou
pudesse ser obrigado, a prestar tais serviços legais ao governador romano, teríamos a respeito alguma
informação de fonte romana, judia ou cristã. Do que sabemos das relações entre os romanos e as
autoridades judias na Judéia, é concebível que o governador pudesse pedir e obter assistência legal e
administrativa da parte do rei, que era designado pelos romanos e vassalos dele; mas é quase inimaginável
que tivesse pedido assistência ao Sinédrio, sabendo, como sabia, qual era sua atitude para com todas as
coisas romanas. Da história de Paulo, dir-se-ia que o Sinédrio prontamente se reuniu a pedido do oficial
romano, quando foi chamado para assumir a jurisdição sobre um judeu preso pelos romanos; mas nenhum
Sinédrio teria prestado sua ajuda, se chamado a entregar um judeu à jurisdição romana.
A mesma história é prova, por falar nisso, de que os oficiais romanos eram perfeitamente capazes de eles
próprios levar a efeito investigações, e os "açoites" aplicados em todos os não-romanos certamente
contribuíam para tornar as investigações muito efetivas, muito mais do que se podia esperar de qualquer
inquérito sinédrico. Também não havia dificuldades de língua: tanto os judeus quanto os romanos -pelo
menos os educados -normalmente falariam grego (Atos 21,37), e os oficiais romanos sempre contavam
com intérpretes aramaicos -coletores de impostos e gente desse espécie - a seu serviço.
De acordo com a lei romana um inquérito preliminar, no sentido técnico do termo, não tinha de preceder
um julgamento criminal, mesmo em se tratando de um crime capital. O acusador normalmente faria sua
acusação diante do magistrado verbalmente, seja no início do julgamento ou com um pedido de que fosse
preso o acusado e levado a julgamento.s7 Havia investigações preliminares no sentido de que o acusador
teria de buscar testemunhas para provar o seu pleito: estas eram de sua responsabilidade, e não do tribunal.
Considerando que um acusador era passível de uma multa por deixar de provar sua acusação podemos
assumir que tais investigações eram comuns e completas; mas isso não altera seu caráter essencialmente
privado. O governador, como um tribunal, não podia pedir nem ao sinédrio, nem a qualquer outro órgão
ou autoridade que iniciasse uma investigação preliminar desse tipo: para o objetivo do seu tribunal e do
julgamento a ser realizado por esta, ele simplesmente não precisava disso. Se o acusador -quem quer que
fosse -não conseguia provar o caso, o acusado era absolvido e o acusador possivelmente multado; mas não
estava nas atribuições do tribunal fornecer-lhe provas.
Isto abriria a possibilidade de que o Sinédrio fizesse uma investigação preliminar, não a pedido das
autoridades romanas, mas por sua própria iniciativa; e não como um tribunal, mas como um acusador. Tal
hipótese deve partir da premissa de que era competente para agir como acusador diante do governador
romano no Julgamento de Jesus e, de fato, tinha a intenção de fazê-lo. Mas não se trata, aqui, nem de uma
coisa, nem outra. Quanto à competência, a norma no direito romano era de que a acusação era feita por um
acusador privado: um corpo de acusadores ou um número de acusadores não era coisa admitida. A razão é
que a lei pesava sobre as responsabilidades pessoais do acusador, não podendo pesar sobre acusadores
coletivos ou ser por eles partilhada: por exemplo, uma acusador podia ter de pagar prejuízos ou perder
seus direitos civis por causa de uma acusação frívola (calumnia); um falso acusador podia ser passível da
punição que a pessoa falsamente acusada enfrentara, inclusive a morte; se o acusador abandonava seu caso
demasiado cedo (tergiversatio) ou era negligente em pleiteá-lo e prová-lo, podia perder metade de suas
propriedades por seqüestro, além de ser punido com infâmia; e por qualquer conluio com o acusado,
mediante o qual este pudesse ser libertado ou punido apenas brandamente (praevaricatio), ele seria
similarmente passível de pena. Estas penalidades só podiam ser efetivamente aplicadas contra indivíduos:
- 58 -
nem em Roma, nem nas colônias, no nosso conhecimento, jamais foi apresentada uma acusação que não
fosse por um acusador individual.
Mas tampouco os relatos do Evangelho sugerem que o Sinédrio atuou como acusador à e Jesus diante do
governador romano. O que ele fez, segundo os Evangelhos, foi resolver que Jesus fosse entregue a Pilatos
para julgamento (Mateus 27,2; Marcos 15,1; Lucas 23,1). As acusações - na medida em que são relatadas
-foram levadas a Pilatos por multidões (Lucas 23,2), ou principais sacerdotes #Mc 15:3, ou pelos judeus
#Jo 18:30-31 -todos grupos não identificados, que podiam ou não representar o Sinédrio. O fato de que
não podia ser o Sinédrio como tal que atuasse como acusador é, no entanto, sustentado pela natureza das
acusações: tivesse ele feito uma investigação preliminar para formular as acusações pelas quais Jesus seria
acusado diante de Pilatos, estas teriam sido idênticas às que se formularam contra ele nos procedimentos
preliminares do Sinédrio. Em vez disso, o que vemos é Jesus ser acusado diante de Pilatos de subverter o
povo (Lucas 23,2) e de pervertê-lo (23,14), de ser um "malfeitor" #Jo 18,30 e de se fazer rei (19,12), mas
não de blasfêmia ou de qualquer das "doutrinas" extraídas dele pelo sumo sacerdote no interrogatório #Jo
18:19. Nem o sumo sacerdote, que, segundo João, teria efetuado a investigação preliminar, aparece como
um acusador: em João, são sempre "os judeus" que negociam com Pilatos (18,13-38; 19,7-12-14). Para
corresponder aos objetivos do julgamento romano, o Sinédrio teria tido que realizar um inquérito
preliminar sobre um crime que fosse de acordo com o direito romano; o que ele fez foi investigar um
crime que o era puramente de acordo com o direito judeu. Se também era intenção encontrar testemunhas
para desencavar provas de um crime segundo o direito romano, esta busca frustrou-se, não tendo
aparecido quaisquer testemunhas. Mesmo quando o próprio Jesus foi questionado, ele não foi interrogado
sobre assuntos que podiam ser relevantes num julgamento romano: ninguém se deu ao trabalho de fazer a
pergunta crucial que lhe seria dirigida por Pilatos na manhã seguinte (Mateus 27, 11; Marcos 15,2; Lucas
23,3; João 18,33). Todos os Evangelhos concordam em que o Sinéderio não se preocupou em absoluto
com qualquer possível crime segundo o direito romano: preocupou-se com o que Jesus dissera e fizera
quanto ao Templo e com suas aspirações messiânicas e doutrinárias, assuntos que não interessavam ao
governador romano. Segue-se que, seja o que for que o Sinédrio fez, não o fez a pedido ou por ordem do
governador romano ou pelas necessidades deste, mas unicamente por sua própria iniciativa e para os seus
próprios objetivos.
Diferentemente do que se passou no caso de Jesus, no caso de Paulo o Sinédrio parece, com efeito, ter
instigado a acusação diante de Félix, o governador romano, mas, para garantir um locus standi de acordo
com o direito romano, ele teve primeiro de designar um acusador individual na pessoa de Tértulo "um
certo orador que apresentou ao governador libelo contra Paulo" (Atos 24,1). Mais do que o julgamento e a
condenação de Paulo por qualquer crime segundo o direito romano, o objetivo de contratar os serviços de
um acusador contra ele parece ter sido fazê-lo voltar a Jerusalém para ser julgado pelo Sinédrio (24,7-8). É
significativo que, mesmo para este propósito limitado, os 'Judeus" ou o "sumo sacerdote com os anciãos"
(24,1) não compareceriam eles próprios diante do governador: eles designariam um "orador" versado em
direito romano, como questão que ia de si e por prudência, deixando de lado qualquer questão de
competência.
O Sinédrio que se reuniu aquela noite na casa do sumo sacerdote não julgou Jesus, nem efetuou qualquer
investigação preliminar. O que, então, fez ele e para que propósito se reuniu?
Seja-nos permitido, ainda uma vez, lembrar que aquela era a noite que precedia o festival de Pessach #Jo
13,1, ou a próprio noite do festival (Marcos 14,12; Mateus 26,17; Lucas 22,7). Como sabe quem está
familiarizado com os ritos e costumes judeus, cada membro do Sinédrio, não menos que o sumo sacerdote
em pessoa, devia estar ocupado e preocupado com as embaraçosas e complicadas preparações para a festa
ou com sua celebração, quer em casa ou no Templo, ou em ambos. O fato de que o Sinédrio teria sido
convocado naquela noite particular para uma reunião na residência do sumo sacerdote e devesse, em
última instância, passar ali longas horas até a manhã seguinte exige explicação muito forte e convincente
para ser crível. Devia haver uma questão da maior premência na pauta, bastante importante para exigir a
imediata consulta de todo o conselho, tão importante que nenhum membro, convocado a comparecer,
levantaria uma questão de importunidade. Fazer uma investigação preliminar ou outra qualquer, ou julgar
um homem por uma acusação criminal não era questão de premência ou de importância particular: e
qualquer membro sabedor do motivo pelo qual havia sido convocado ( se fosse este o motivo ), teria de
imediato se escusado e regressado à casa. Não havia juiz então, nem haveria hoje, que ignorasse que não
- 59 -
se conduzem procedimentos penais à noite ou durante festivais; mesmo se não houvesse qualquer norma
legal explícita nesse sentido, nenhum juiz em sua razão, e certamente não setenta e um juízes
coletivamente teriam concordado em passar a noite do festival julgando um caso penal, qualquer que fosse
sua substância. Poder-se-ia talvez imaginar que tribunal ilegal e clandestino pudesse celebrar suas sessões
de noite e em lugares privados; mas o Grande Sinédrio de Israel, uma corte de setenta e um membros e de
jurisdição ilimitada, conduzindo suas sessões diária e abertamente no Templo, nunca se rebaixaria a se
reunir sub-repticiamente, não mais do que qualquer tribunal de jurisdição competente em nossos dias. Foi
dito que a reunião noturna fora arranjada "para que não haja tumulto entre o povo" (Marcos 14,2), caso as
pessoas soubessem que Jesus estava sendo julgado; mas não apenas o "tumulto entre o povo" era temido
se Jesus fosse preso num dia de festa (ibid.), e não se fosse preso e julgado num dia de semana comum,
mas entrementes - ou assim nos diz Marcos -"grandes multidões" (14,33 ) já haviam tomado parte na
prisão de Jesus e já não se podia evitar o tumulto. Se os "principais sacerdotes" se preocupavam em
impedir que Jesus aparecesse no Templo durante o festival de Pessach, quando ali se reuniam grandes
multidões, nada teria sido mais fácil para o sumo sacerdote, uma vez tendo-se assegurado da custódia de
Jesus naquela noite, do que detê-lo até depois da festa e então submetê-lo a julgamento diante do Pequeno
Sinédrio, segundo a lei. Nem teria havido qualquer dificuldade, se desejava evitar a desordem pública, em
realizar o julgamento in câmera, durante o dia e a horas regulares de trabalho, e na sala apropriada do
tribunal do Sinédrio.
Não há como fugir à conclusão de que não esteve nas mãos do Sinédrio, ou do sumo sacerdote,
estabelecer o esquema: o momento lhes foi imposto. Vimos que Jesus estava para ser julgado diante do
governador romano na manhã seguinte: o julgamento havia sido fixado com antecipação para
conveniência do governador -não se podia saber se ele ainda permaneceria outro dia em Jerusalém; talvez
tivesse de retornar a Cesaréia no mesmo dia. De qualquer forma, nenhum órgão ou indivíduo judeu podia
ter tido qualquer influência sobre os aspectos particulares do programa do governador. Se alguma coisa
tivesse de ser feita pela liderança judia quanto ao julgamento de Jesus, teria de ser feita de imediato,
durante a noite. Mas o que havia de tão importante no julgamento de Jesus para justificar uma reunião de
emergência do Grande Sinédrio à noite? O Sinédrio não dispunha de poder, nem tinha qualquer ilusão de
poder para impedir o governador romano de realizar o julgamento, e certamente não para se antecipar a
ele e conduzir um julgamento próprio. Tampouco cabia -lhe empreender, ou estava interessado em
empreender, quaisquer serviços preparatórios para o julgamento antes do governador. Sugiro que só pode
haver uma coisa na qual toda a liderança judia da época pode ter estado e, com efeito, estava vitalmente
interessada: impedir a crucificação de um judeu pelos romanos e, mais particularmente, de um judeu que
gozava do amor e da afeição do povo.
Se havia ainda alguma possibilidade de salvar Jesus, esta era a última oportunidade: não se podia esperar
que o governador romano consentisse numa adiamento ou retardamento do juízo. Qualquer coisa que
pudesse ser feita, tinha de o ser naquela noite. Contudo, persiste a questão: por que motivo alguma coisa
tinha de ser feita? Que importaria se um judeu, um dos muitos mestres dos jovens com sonhos
messiânicos e que se entregavam a profecias, fosse julgado pelo governador romano? Que importaria,
mesmo que fosse condenado e crucificado? Apenas mais uma lamentável baixa na dura guerra contra
Roma. Não me permito especular que os líderes judeus pudessem ter sido motivados por considerações
éticas e religiosas, tais como ficar de braços cruzados quando é derramado o sangue de um próximo
(Levítico 19,16) ou a prescrição de salvar o perseguido das mãos de seu perseguidor. A grande
importância do assunto não estava nos seus aspectos morais e religiosos, mas em fatores inteiramente
realísticos e políticos. Vimos que o sumo sacerdote achou-se numa situação muito precária diante do povo:
a menos que fizesse alguma coisa, sua posição e prestígio aos olhos desse mesmo povo declinariam
firmemente. Ele deve ter se sentido desesperadamente ansioso para aumentar a estima em que o público o
tinha, especialmente para demonstrar que ele era um bom e leal judeu, admiravelmente qualificado para a
liderança judia, e não apenas um instrumento nas mãos dos romanos. Os saduceus, por seu lado, eram
geralmente desprezados, senão detestados pelo povo porque eram ricos e também por suas opiniões
religiosamente cismáticas, e com a crescente popularidade dos fariseus, tinham todos os motivos para
temer por suas posições de poder e influência e por seus assentos no Sinédrio, se não reconquistassem
algum apoio popular. Quanto aos fariseus e ao Sinédrio em geral, havia uma crescente tendência -ou assim
era compreendido -por parte das autoridades romanas de limitar a jurisdição e a autonomia sinédricas e
- 60 -
minar sua influência sobre o povo e seu prestígio. Enquanto o Sinédrio tinha de ser circunspecto para não
perder a boa vontade romana de que ainda podia gozar, a primeira e mais importante condição para sua
sobrevivência e efetividade era reter a confiança e a fidelidade do povo. Nada podia estar mais longe das
intenções de seus líderes ou podia ser mais daninho para os seus objetivos do que provocar o
descontentamento e a desafeição do povo, sendo conivente com o julgamento e crucificação, pelos
romanos, de alguém do seu próprio meio, enquanto qualquer ação de sua parte para evitar a crucificação
iria, se obtivesse êxito, provavelmente atrair o aplauso e o entusiasmo do povo e recolocar o sumo
sacerdote e o Sinédrio, aos olhos da população, na posição de líderes naturais e aceitos.
Jesus era uma pessoa do povo. De outra forma, talvez não tivesse sido amado como foi: quando chegou a
Jerusalém, poucos dias antes, "a maior parte da multidão estendeu suas vestes pelo caminho e outros
cortavam ramos de árvores, espalhando-os pela estrada. E as multidões, tanto as que o precediam como as
que o seguiam, clamavam: Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor" (Mateus
21,8-9); e muitos "tomaram ramos de palmeiras e saíram ao seu encontro, clamando: Hosana! Bendito o
que vem em nome do Senhor" João 12,13. Tal, com efeito, era o êxtase das multidões, que se diz que
alguns dos fariseus entre elas sugeriram a Jesus que as refreasse um pouco: "Ora, alguns dos fariseus lhe
disseram em meio à multidão: Mestre, repreende os teus discípulos" (Lucas 19,39). É claro que todos os
"principais sacerdotes, anciãos e escribas" sabiam muito bem o que se passava e viram que "aí vai o
mundo após ele" #Jo 12:19; nem podiam essa "entrada triunfante"
na cidade, ou qualquer aclamação pelas massas, passar ignorada. Quem quisesse -e alguns líderes judeus
podem ter querido - desviar para si próprio uma parte da popularidade de Jesus seria impedido "por
temerem o povo" (Lucas 20, 19). As considerações que podem ter levado os líderes a tentarem se livrar de
um homem de aspirações progressistas e reformistas, de pensamento independente e praticante de
milagres, tal como era Jesus, foram de muito ultrapassadas por sua convicção -que encontrou expressão
nos Evangelhos -de que qualquer tentativa de interferência sobre Jesus iria logo causar um "tumulto
público" (Marcos 14,2). Mas tal fase de conflito de motivos nunca seria realmente alcançada, pois nenhum
êxito individual, nenhuma doutrina particular, nenhuma aspiração religiosa ou política podia ter qualquer
relevância diante da suprema necessidade que tinha a liderança judia de granjear e manter o apoio popular.
O fato de que um indivíduo particular, qualquer que fosse a razão, era um favorito das grandes massas do
povo deve ter tido fundamento bastante para que os líderes judeus o estimulassem, o apoiassem e o
protegessem: negando-lhe apoio e proteção, eles perderiam automaticamente a simpatia popular; dando-
lhe apoio e proteção, granjeariam a boa vontade e a estima do povo para si próprios. Tornarem-se
cúmplices do governador romano na perseguição e processo contra Jesus era o meio mais seguro de
conseguir a aversão do povo: era coisa bastante má, em toda consciência, colaborar com os romanos, mas
juntar forças com eles para destruir o mais amado e popular dos judeus era quase imperdoável. Por outro
lado, dissociarem-se das autoridades romanas e fazer tudo que podiam para frustrar a perseguição a Jesus
e lhe salvar a vida não apenas lhes granjearia a popularidade que ambicionavam, mas também
demonstraria ao povo que a voz do Sinédrio ainda era ouvida na corte do governador romano.
É do ponto de vista não apenas das relações judias internas, mas também das que existiam entre o Sinédrio
e os romanos, que qualquer intervenção pelo Sinédrio tinha inevitavelmente de ser a favor de Jesus.
Entregando-o aos romanos para julgamento ou crucificação, eles teriam confessado sua incapacidade ou
incompetência de manter a lei e a ordem entre os judeus. Esta admissão era exatamente o que os romanos
teriam saudado como um pretexto bem-vindo para privar o Sinédrio do último vestígio de autonomia e
estabelecer a jurisdição romana em toda a parte. Se, do aspecto interno judeu, era realmente necessário pôr
um termo ao ministério de Jesus e impedi-lo de divulgar ainda mais suas doutrinas, era o Sinédrio que
deveria estar preparado para tomar as necessárias medidas, judiciais ou administrativas, ou ambas. Se não
estava preparado para tal, tanto pior! Mas o que teria o governador romano a fazer com esta dificuldade
puramente judia? Sua reação estava destinada a ser quer a recusa em tratar de assuntos que não lhe diziam
respeito, quer a aceitação pelo Sinédrio de suas próprias competências e privilégios, e este último não
poderia ter pretendido qualquer das duas coisas. Não havia nenhuma razão terrena pela qual o Sinédrio
deveria deliberadamente correr o risco seja do abandono, seja da perda de privilégios zelosamente
guardados. Além disso, como um ponto do direito judeu, ele teria infringido seus deveres judiciários
entregando nas mãos de um tribunal estrangeiro um criminoso destinado a julgamento de acordo com
aquela lei. Entregar Jesus nas mãos do governador romano seria, pois, ao olhos do governador, a mesma
- 61 -
coisa que admitir o fracasso sinédrico e sua incapacidade de manter a lei e a ordem; e, aos olhos do povo,
seria uma infração desprezível da solidariedade nacional e colaboração traidora com o inimigo. Mesmo se
houvesse membros pérfidos e pecadores no Sinédrio -e nada há que sustente essa versão -, que pudessem
ser qualificados como traidores potenciais e quislings, seus membros não podem, em quaisquer
circunstâncias, ser tomados por cegos e estúpidos; temos de presumir que todos os juízes sabiam das
conseqüências naturais e prováveis dos seus atos e que nada fariam que pudesse acarretar prejuízo próprio.
Não há diferença, sob esse aspecto, entre os membros farisaicos e os membros saduceus. Sabemos que os
saduceus podem ter sido adversários de Jesus, não apenas por ser ele próprio um fariseu, mas
principalmente por seu desprezo aos ricos (Mateus 19,24; Marcos 10,21; Lucas 18,22-25); mas ele pode, é
claro, também ter encontrado fariseus inimigos, se apenas por causa de inveja ou porque ele ensinava
"sem autoridade". Não era a personalidade de Jesus que inspirararia seus defensores e também seus
adversários a tomar uma posição: se fosse a sua personalidade, ou o mérito de suas doutrinas, que
estivesse em questão, o Sinédrio poderia se ter dividido. Mas ele foi unânime, porque não estava em jogo
o destino pessoal de Jesus ou o mérito de suas doutrinas, mas a posição e a popularidade do Sinédrio. O
mérito da doutrina de Jesus era realmente o fator menos relevante, pois que foram seus ensinamentos e
milagres que lhe granjearam sua ampla popularidade, e estava no interesse do Sinédrio -um interesse de
pura autopreservação - fazer com que essa popularidade servisse a seus propósitos na maior extensão
possível.
Com o sumo sacerdote e o Sinédrio nestas circunstâncias, com Jesus aguardando o julgamento para a
manhã seguinte diante do governador romano sem o conhecimento do povo, o que seria mais natural do
que os membros do Sinédrio presumirem que o povo esperava que eles tomassem alguma medida para
impedir o julgamento e a possível e provavelmente resultante crucificação? Se o julgamento e a
crucificação de um judeu pelos romanos era uma afronta ao povo judeu, o julgamento e a crucificação de
um judeu proeminente, um dos favoritos do povo, era um ultraje que o povo certamente não aceitaria
passivamente; e era essencial que os líderes pudessem se apresentar e convencer o povo de que nada
tinham a ver com os procedimentos, mas, pelo contrário, tudo tinham feito em seu poder para evitar a
tragédia. Ora, a única maneira pela qual o Sinédrio podia impedir que Jesus fosse morto era conseguir sua
absolvição ou uma suspensão da sentença sujeita a bom comportamento. Para uma absolvição, Jesus tinha
primeiro de ser persuadido a não admitir ser culpado das acusações; depois seria necessário encontrar
testemunhas para provar sua inocência. Para uma suspensão da sentença, se fosse julgado culpado, ele
teria de ser persuadido a prometer que não se envolveria novamente em atividade traidora. Nenhum outro
caminho estava aberto ao Sinédrio, pois Jesus -como vimos -fora posto sob custódia do sumo sacerdote
com o compromisso de que seria entregue para julgamento romano na manhã seguinte, e o não
cumprimento de tal compromisso resultaria em que a polícia do Templo, e talvez o Sinédrio, fossem
privados de seus poderes e competências. Uma vez devidamente entregue para julgamento, Jesus teria de
se conduzir de tal maneira, e teriam de ser obtidas tais provas a seu favor, que uma absolvição ou, pelo
menos, uma suspensão de sentença com toda a probabilidade seguir-se-ia.
É verdade que o sumo sacerdote poderia ter feito tudo isso sozinho: ter falado com Jesus e ter enviado
emissários para conseguir testemunhas. Com efeito, a tradição joanina é de que foi o sumo sacerdote (ou
seu sogro) sozinho quem interrogou Jesus aquela noite. Mas o sumo sacerdote, cabeça, como era, de uma
família saducéia muito rica, podia com razão ter ficado apreensivo de que sua influência pessoal sobre
Jesus não fosse bastante forte para garantir uma perspectiva razoável de êxito, caso trabalhasse sozinho.
Além disso, ele arriscava não apenas deixar de impressionar Jesus, mas de ser por ele denunciado ao
governador romano porque estaria buscando interferir no processo da justiça, uma denúncia que Jesus
nunca faria contra Sinédrio, mas que, é possível, teria tido pouca compunção de fazer contra o sumo
sacerdote nomeado pelos romanos. Também pode o sumo sacerdote ter pensado que se tratava de um
assunto pelo qual todo o Sinédrio deveria assumir responsabilidade, mais particularmente se depois a
fidelidade de Jesus à lei tivesse de ser garantida. E não era um assunto pequeno e sem conseqüências para
as autoridades judias falar com um prisioneiro tecnicamente sob custódia romana e aguardando
julgamento segundo a lei romana, perante o governador romano, com a finalidade de obter uma absolvição
ou uma suspensão de sentença: tratava-se de uma clara intromissão na justiça romana, talvez injustificável
do ponto de vista romano, mas, como pareceria, indicada e mesmo exigida pelos judeus, apenas por causa
da situação política que prevalecia, isto é, o ressentimento popular com a ocupação e a opressão romanas e
- 62 -
a conseqüente resistência. Em outras palavras, o caso tinha a natureza de uma decisão política, e era
melhor que a responsabilidade por ela coubesse a todo o Sinédrio. O fato de que as opiniões dentro e fora
do Sinédrio I possam ter estado divididas no que diz respeito à personalidade e aos I ensinamentos de
Jesus pode ter sido outro motivo pelo qual o sumo sacerdote decidiu não agir sozinho para uma decisão a
seu favor. Ele pode até ter se sentido pessoalmente incompetente para determinar, a seu critério, até onde
teria de ir para salvar Jesus, estando o mérito ou demérito dos ensinamentos de Jesus, pelo menos
formalmente, além do seu julgamento pessoal.
Assim, ocorreu que naquela noite de festival foi ordenado subitamente a todos os membros do Grande
Sinédrio que seguissem de imediato para o palácio do sumo sacerdote na manhã seguinte: haveria um
julgamento diante de Pôncio Pilatos, o governador; Jesus -o pregador popular que ensinava no Templo e
atraía enormes audiências, o mesmo homem que mostrara tanta coragem e presença de espírito dias antes
no bazar do Templo -fora preso sob a acusação, ao que parece, de traição ou sedição. A política do Templo
conseguiu trazê-lo sob custódia à noite; se qualquer coisa deve ser feita para salvá-lo, tem de ser logo; e
não pode haver dúvida de que é preciso fazer tudo para salvá-lo -é uma questão de vida ou morte, da qual
devemos cuidar mesmo de noite, mesmo num dia de festa; 70 venham logo, por favor! E todos acorreram,
sem vacilar.
Os Evangelhos nos contam que, quando todos se reuniram, a primeira coisa que fizeram foi "procurar um
falso testemunho contra Jesus para matá-lo" (Mateus 26,59); isto quer dizer: eles se reuniram para julgá-lo
culpado de um crime e condená-lo à morte. Mas como podiam fazer isso buscando "falsos" testemunhos?
Para inculpar Jesus, eles teriam, devemos pensar, de procurar testemunhas verdadeiras que depusessem
contra ele! Não bastaria que o julgamento fosse previamente arranjado e a setença de morte
predeterminada; até as testemunhas tinham de ser "falsas", presumivelmente para completar a medida de
perversão judicial até a borda. Nisto, como em outros aspectos, o autor do Evangelho segundo Mateus
superou o autor do Evangelho segundo Marcos: em Marcos, lemos que "buscavam algum testemunho
contra Jesus para o condenar à morte, e não acharam. Pois muitos testemunhavam falsamente contra Jesus,
mas os depoimentos não eram coerentes" (14,55-56). Isto significa que buscavam testemunhas não
necessariamente falsas, mas preferentemente verdadeiras, porém todos os que vieram e testemunharam se
mostraram falsos, pois seus depoimentos "não eram coerentes". Parece que todas as testemunhas contra
Jesus tinham de ser "falsas" para que posteriormente fundamentassem alegações de assassinato judicial;
mais nesse ponto os próprios Evangelhos fundamentam a condenação de Jesus inteiramente numa
confissão de, por assim dizer, blasfêmia; os falsos testemunhos -presumivelmente por causa dessa
falsidade -são descartados no veredito como instrumentais. A julgar pelas aparências das histórias do
Evangelho, o episódio das testemunhas é completamente ininteligível: o próprio Jesus assinalara que
sempre falara "abertamente para o mundo" João 18,20 e ensinara no Templo e nas sinagogas "para onde
acorrem sempre os judeus" (ibid); "e todo o povo madrugava para ir ter com ele no Templo, a fim de ouvi-
lo" (Lucas 21,38); milhares devem tê-lo ouvido ensinar e pregar, e muitos entre eles podiam, sem grande
esforço, ser chamados para testemunhar exatamente sobre o que eram os seus ensinamentos e as suas
pregações. Essas testemunhas não podiam ser rotuladas de "falsas", nem se teriam contradito uma à outra,
porque os ditos de Jesus haviam deixado um traço nas mentes das pessoas e teriam sido recitados vezes
incontáveis por elas e entre elas. Com efeito, o "falso" testemunho específico registrado nos Evangelhos, a
saber, as palavras de Jesus de que ele reconstruiria o Templo destruído no prazo de três dias (Marcos
14;58; Mateus 26,61), parece realmente referir-se a um pronunciamento dele no Templo João 2,19, e não
há motivo para que não fosse aceito como verdadeiro, pelo que pudesse valer como prova incriminatória.
Resulta, portanto, que o Sinédrio buscou "falsas" testemunhas para deporem contra Jesus, mas não
encontrou nenhuma; as testemunhas que compareceram e depuseram diante dele eram verdadeiras
testemunhas, mas demonstrou-se que eram falsas, porque "os depoimentos não eram coerentes"; e quer
tenham sido falsas ou verdadeiras, quer tenham concordado ou não, não se fez qualquer tentativa para se
confiar em seus depoimentos; tampouco nos é dada qualquer indicação ou comunicação quanto aos pontos
em que deixaram de "concordar", ou à maneira do seu desacordo, ou por que motivo foram primeiro
"buscadas" e inexplicavelmente abandonadas no fim.
Aceitaremos isto como um fato e partiremos da premissa de que o Sinédrio que se reuniu aquela noite na
casa do sumo sacerdote "buscou testemunhas". Como dissemos, o Sinédrio não podia, mesmo àquela hora
da noite, ter encontrado dificuldade em achar um bom número de pessoas capazes e desejosas de
- 63 -
testemunhar sobre os ensinamentos e pregações públicos de Jesus. Mas não precisava de qualquer
depoimento para sua própria informação, ou para ter comprovada ou infirmada qualquer alegação
específica contra Jesus: não apenas não havia nada desse tipo contra ele ante o Sinédrio, mas é possível
presumir razoavelmente que seus membros conheciam os seus ensinamentos, pelo menos de ouvir falar.
Aquilo de que o Sinédrio necessitava era uma decisão de que as testemunhas que se haviam apresentado
para depor contra Jesus eram falsas, homens em quem não se podia confiar e cujos depoimentos não
tivessem convergido": não se tratava de que eles fossem indignos de confiança ou mentirosos -pelo
contrário, presumivelmente eram pessoas honestas e dignas de confiança; o fato é que tinham de ser
consideradas, formal e solenemente, falsas testemunhas. Era totalmente irrelevante qual ensinamento, ato
ou dito de Jesus elas iriam testemunhar: aconteceu ser a destruição e a reconstrução do Templo; podia ser
qualquer outra de suas profecias ou parábolas. O que importava era que, fosse qual fosse o item sobre o
qual depusessem, elas não deviam "concordar", para assegurar a decisão de que eram falsas e não
confiáveis.
A questão de se saber se, e em que medida, uma testemunha é verdadeira e se o que diz é crível é
determinada em grande parte pela impressão e decisão do juiz ou do júri. Se naquela noite o Sinédrio
estivesse realmente resolvido por antecipação a "condenar Jesus à morte", nada teria sido mais fácil do
que encontrar testemunhas verdadeiras e dignas de confiança que depusessem contra ele e "concordassem
umas com as outras", extraindo-se do que dissessem um crime capital que servisse seu propósito. Mas
simplesmente não faz sentido que embora resolvido por antecipação "a condenar Jesus à morte", o
Sinédrio tenha descartado as testemunhas que depuseram contra ele como "falsas", sem sequer se dar ao
trabalho de investigar se seus depoimentos revelaram ou não um crime. A conclusão inevitável é que ou o
Sinédrio não estava resolvido por antecipação a condenar Jesus à morte, ou que não descartou as
testemunhas como "falsas", ou que ambas as coisas se deram assim: se descartou as testemunhas como
"falsas", fê-lo porque o quis e porque, para seu próprio e verdadeiro objetivo, não precisou da prova de
qualquer testemunha. O objetivo era proporcionar a Jesus uma decisão judicial de que todas as
testemunhas que se haviam apresentado para depor contra ele revelaram-se falsas e indignas de confiança.
Tal decisão do Sinédrio não era, é claro, absolutamente obrigatória para o governador romano; mas havia
sempre a possibilidade de que a prova disponível contra Jesus diante do governador não fosse tão forte e
conclusiva, caso em que uma decisão do Sinédrio de que as testemunhas contra ele se haviam apresentado
também diante de tribunais judeus e descartadas como não confiáveis podia pender a balança a seu favor.
Nestas circunstâncias, o Sinédrio podia, tendo em vista também a popularidade de Jesus, ficar
razoavelmente confiante de que testemunhas judias não se apresentariam voluntariamente para prestar
depoimento contra ele diante do governador. Restava a possibilidade de que agentes romanos tivessem
ouvido discursos de Jesus no Templo ou nas sinagogas e, em contraposição ao que dissessem poderia
haver alguma força na decisão do sinédrio de que eram falsas as testemunhas que haviam deposto sobre a
existência de algum conteúdo sedicioso nesses discursos. O próprio fato de que se haviam apresentado
testemunhas também diante dos tribunais judeus para depor contra ele podia levantar a suspeita de que
Jesus era objeto de perseguição por motivos privados e ulteriores, sendo que a decisão de perjúrio
fortaleceria consideravelmente tal suspeita.
Um tribunal penal, de acordo com a lei judia, tinha de se certificar da fidedignidade das testemunhas e de
que "concordavam umas com as outras", dirigindo-lhes certas perguntas que a lei estabelecia, como, por
exemplo, em que dia, em que hora e em que lugar o acontecimento sobre o qual depunham ocorrera 73.
Dos relatos do Evangelho, não transparece que tenham sido levados a efeito quaisquer desses exames
obrigatórios antes que se determinasse que as testemunhas eram "falsas". Se, quando inquiridas quanto à
data de uma fala de Jesus a cujo respeito haviam deposto, uma delas desse uma data e uma segunda desse
outra, já haveria motivo, segundo a lei, para a rejeição do depoimento de ambas, por mais irrelevante que
pudesse parecer a data para o problema de saber se o discurso continha qualquer matéria ilegal. Nem por
isso os relatos do Evangelho excluem a possibilidade de que estas inquirições tenham sido devidamente
levadas a efeito, "pois muitos testemunhavam falsamente contra Jesus, mas os depoimentos deles era
coerente" (Marcos 14,56) e "Nem assim o depoimento deles era coerente" (14,59), o que pressupõe algum
exame para averiguar se os depoimentos eram ou não consistentes uns com os outros. De qualquer forma,
o exame estatutário de testemunhas não se limitava às questões obrigatórias, e quanto mais um juiz o
forçasse, melhor seria. Este poder de interrogatório adicional era particularmente exigido no caso de
- 64 -
testemunhas que "concordassem" sobre as questões obrigatórias, pois teria sido fácil para perjuros
combinar respostas a essas perguntas por antecipação; na verdade, apenas mediante perguntas de surpresa
é possível verificar discrepâncias. Em contraste com as perguntas obrigatórias, as que são feitas em
inquirição suplementar cabem ao arbítrio do juiz: ele deve escolher a linha que se adapta ao
comportamento e às reações da testemunha individual que está sendo interrogada, podendo extrair da
maneira pela qual a testemunha se comporta e reage sua próprias conclusões quanto à veracidade das
respostas.74
O fato de que o Sinédrio achou que os depoimentos das testemunhas "não convergiam" nada tem de
extraordinário: muitas pessoas acusadas devem ter sido absolvidas pela mesma razão. Mas, contrariamente
ao pensamento tradicional, numa decisão dessa espécie, não há censura às testemunhas: elas podem
perfeitamente ser pessoas honestas, depondo na melhor fé, e as inconsistências que prejudicaram seu
depoimento podem ser devidas a falhas naturais e inevitáveis de memória. O fato de que foram todas
julgadas "falsas" nada prova contra as testemunhas que depuseram contra Jesus diante do Sinédrio, mas
prova alguma coisa com relação ao tribunal. Enquanto um tribunal usaria o seu poder para prosseguir as
inquirições com a finalidade de procurar reduzir inconsistências menores, como na "reinquirição"
moderna, de modo que, por fim, julgasse confiável a testemunha e condenasse o acusado, outro faria tudo
que pudesse, nesta linha, para multiplicar as inconsistências, de maneira que ao fim julgasse a testemunha
indigna de confiança e absolvesse o réu. Aparentemente, foi isso o que aconteceu no caso: todas as
testemunhas disseram de Jesus: "Nós o ouvimos dizer: eu destruirei este santuário edificado por mãos
humanas e em três dias construirei outro, não por mãos humanas" (Marcos 14,58), sem que se registrasse
qualquer discrepância entre suas histórias, e contudo o tribunal achou que "nem assim o testemunho deles
era coerente" (14,59), embora, ao que parece, o que disseram concordasse perfeitamente. O tribunal
exerceu um arbítrio: para alcançar seu objetivo de última instância, ele encontrou algumas inconsistências
naturais e menores -que não tinham de ser relatadas -, bastantes para rejeitar a prova como falsa. Não
importa se, ao exercer o seu discernimento, e ao fazer essa escolha deliberada e intencional, alguns dos
membros do Sinédrio estavam, talvez, ansiosos para satisfazer suas próprias consciências de que, de fato,
não se dispunha de prova válida para incriminar Jesus, ou se queriam apenas poder certificar e atestar que
as testemunhas que tinham deposto contra ele haviam cometido perjúrio.
Enquanto, de acordo com a lei judia, o depoimento admissível e confiável de pelo menos duas
testemunhas oculares e de duas testemunhas que tivessem advertido o acusado da punibilidade de seu ato
era uma condição sine qua non para qualquer condenação criminal, de acordo com a lei romana a não
disponibilidade de testemunhas não bastava para garantir uma absolvição: o acusado podia sempre ser
condenado por sua confissão de culpa:6 mesmo se não se intimassem ou não se apresentassem
testemunhas. Como o julgamento diante de Pilatos prosseguiria de acordo com o direito romano, não
bastaria pôr fora de ação testemunhas potenciais ou lhes impugnar a credibilidade: era muito mais
importante dissuadir Jesus de se declarar culpado e, assim, impedir sua condenação por causa da própria
confissão. Por isso era não apenas necessário informar Jesus sobre o que responder e como responder às
perguntas que lhe seriam feitas no tribunal do governador, mas também, e sobretudo, persuadi-lo a
cooperar com o Sinédrio. Devemos pressupor que Jesus sabia do seu iminente julgamento diante de
Pôncio Pilatos: se j á não sabia antes, sua prisão por soldados romanos não lhe pode ter deixado qualquer
dúvida. Presumiremos que ele sabia, ou tinha como certo, que o Sinédrio não estava animado a qualquer
má intenção contra ele, para dizer o mínimo: se Jesus não tivesse tido consciência disso o tempo todo, a
inquirição de testemunhas na audiência e a classificação delas como "falsas" e indignas de confiança deve
ter removido a última dúvida. Mas ele não estava menos consciente de sua imensa popularidade e da
posição abalada do sumo sacerdote e do Sinédrio, tanto interna como externamente, e bastante bem
informado para fazer suas próprias avaliações. Ele não teria, portanto, alimentado quaisquer fantasias de
que a atitude do Sinédrio para com ele nascera de um puro amor ao próximo; teria adivinhado a motivação
egoisticamente política por trás dela e, é natural, teria ponderado na mente suas próprias preocupações
religiosas e messiânicas, em contraste com a política judia geral e do Sinédrio. Suas "preocupações
religiosas e messiânicas" podem ter incluído uma expectativa resoluta e preconcebida do perigo que corria
e do seu destino final num julgamento perante o governador romano. E, da parte do Sinédrio, "persuadir
Jesus a cooperar" significava não apenas induzí-lo a alegar que não era culpado e prometer a Pilatos que
se comportaria bem, mas também -e talvez principalmente -fazê-lo abandonar suas "preocupações
- 65 -
religiosas e messiânicas", na medida em que eram incompatíveis com as sanções sinédricas: não se podia
esperar da liderança judia que respondesse por Jesus diante do governador romano, a menos que ele
estivesse disposto pelo menos a inclinar-se diante da autoridade deste e garantir-lhe sua lealdade.
A lealdade e a boa vontade de Jesus não podiam ser estabelecidas negativamente pela ausência de prova
incriminatória fidedigna. Tinham de ser estabelecidas positivamente, com palavras saídas da sua, própria
boca. Daí ter sido interrogado pelo próprio sumo sacerdote: o objetivo do interrogatório era persuadi-lo a
aceitar a autoridade do Sinédrio e a desistir de pretensões perigosas.
Enquanto as testemunhas "falsas" depunham contra ele, Jesus nada respondeu, mas "guardou silêncio"
(Marcos 14,61; Mateus 26,63), embora aparentemente dele se esperasse, estando para tal habilitado, que
as interrogasse e as refutasse. Mas já que falavam a verdade, sua intervenção não tinha sentido.
Perguntado se ele era "Cristo, o filho de Deus Bendito?" (Marcos 14,61), Jesus admitiu que era (14,62) e
acrescentou: "E vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do
céu" (ibid. e Mateus 26,64). Segundo Mateus, a pergunta do sumo sacerdote foi cunhada nos seguintes
termos: "Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus" (26,63); segundo
Lucas, foi simplesmente perguntado a Jesus, e não necessariamente pelo sumo sacerdote: "Se tu és o
Cristo, dize-nos" (22,67). Já foi demonstrado que as referências em Mateus ao "Filho de Deus" e em
Marcos ao "Filho do Bendito" devem ser interpolações78 datadas de uma época em que o dogma da
origem divina de Jesus já havia sido introduzido no credo cristão79. Portanto, aceitaremos como
verdadeira a tradição registrada em Lucas: "Se tu é o Cristo, dize-nos", ao que se diz ali ter Jesus
respondido: "Se vo-lo disser, não o acreditareis; também se vos perguntar, de nenhum modo me
respondereis. Desde agora estará sentado o Filho do Homem à direita do Todo-Poderoso Deus" (22,67-
69).
Nós não sabemos se essa foi a única pergunta feita a Jesus pelo sumo sacerdote, ou se este o havia
interrogado antes quanto aos seus ensinamentos, suas opiniões e suas intenções em geral, como pareceria
de João 18,19. Se o tivesse feito, a pergunta registrada nos Evangelhos pode ter sido a última de uma série
numa inquirição mais prolongada: Jesus pode ter respondido a elas especificamente, caso em que suas
respostas parecem não ter suscitado qualquer desprezo; ou pode ter reagido de uma forma similar à que é
contada por João: "Eu tenho falado francamente ao mundo: ensinei continuamente tanto nas sinagogas
como no Templo, e nada disse em oculto. Por que me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que lhes
falei; bem sabem eles o que eu disse" (18,20-21). Seja como for, sua resposta à última pergunta, "És tu o
Cristo?", apararentemente levou o sumo sacerdote e o Sinédrio ao desespero e a desistir. Antes de
investigarmos os motivos por que fizeram isso, consideremos a pergunta e a resposta elas mesmas.
Foi dito que a afirmação de ser Cristo, assentado à direita de Deus no céu, era uma admissão de blasfêmia,
segundo a lei judia, equivalendo a uma negação do princípio fundamental do monoteísmo, que não
admitia, ex definitione, outro ser divino além de Deus. Mas afirmando que, como Cristo ou Messias, ele
seria privilegiado no céu para assentar-se à direita de Deus, Jesus não infringiu absolutamente a unicidade
de Deus. Podia ser diferente se ele houvesse, na realidade, afirmado ser o Filho de Deus; mas, como
notamos, qualquer afirmação nesse sentido posta em sua boca pelo evangelista deve ser rejeitada como
uma interpolação ulterior. Segundo o que pode ser encarado como as próprias palavras de Jesus, os
pacificadores "serão chamados os filhos de Deus (Mateus 5,9) e "para que vos torneis filhos do vosso Pai
celeste", deveis "amar vossos inimigos, abençoar o que vos amaldiçoam, praticar o bem para com aqueles
que vos odeiam e orar pelos que vos maltratam e vos perseguem" (5,44-45). A maior recompensa em se
praticar o bem consiste em que "sereis filhos do Altíssimo" (Lucas 6,35). No sentido em que Jesus
empregou a metáfora "filhos de Deus", os termos "Filho de Deus" ou "Filho do Bendito" podem também
ter um sentido alegórico distinto de um sentido biológico, indicando antes o filho eleito do que o filho
natural. Sob esse aspecto, não haveria muita diferença entre o Cristo -o Messias -e o Filho de Deus: o
Cristo foi escolhido por Deus como Seu mensageiro ou profeta. O grego Khristos é uma tradução do
hebraico Mashiah (Messias), que significa "o ungido". Não apenas o Messias, mas todos os favoritos de
Deus são ungidos, tais como sacerdotes, reis, profetas e mesmo lugares santos e bens móveis. A sagração,
a unção pode ser uma marca de distinção divina, mas é uma distinção conferida a seres humanos e por sua
própria natureza inadequada à divindade. É um ser humano que é eleito por Deus para servi-lo, ou
inspirado por Deus para profetizar, ou a quem Deus se revelou, e é um ser humano que Deus amaria como
Seu filho. O fato de que, na tradição original, Jesus era um filho de Deus, apenas nesse sentido figurativo
- 66 -
parece ser sustentado por sua genealogia, tal como consta dos Evangelhos (Mateus 1,2-16; Lucas 3,23-
38).
Quanto ao "Filho do Homem ", pode ser simplesmente uma, tradução do hebraico Ben Adam, que
significa homem (literalmente, "filho de Adão", o primeiro homem), ou o título com o qual Deus dirigiu-
se a alguns de seus profetas (Ezequiel, por exemplo ), ou uma alusão ao Filho do Homem, que Daniel
anunciou que viria com as nuvens do céu e que "lhe foi dado um domínio que não passará, e um reino que
jamais será destruído" (Daniel 7,13-14).86 Foi assinalado que "Filho do Homem" é uma designação
pessoal usada exclusivamente por Jesus e ao seu próprio respeito.
Os Sinópticos são eles próprios testemunhas que confirmam esse uso como um fato histórico, porque
nunca, em qualquer oportunidade, permitem que o termo se introduza na sua própria linguagem. Mesmo
aos próprios evangelistas este não pareceu ser um título messiânico regular. . Inácio, Justino, 1rineu,
Orígenes, Eusébio, Atanásio, Gregório de Nisa, Gregório Nazianzo, Cirilo de Alexandria, Crisóstomo,
assim como Tertuliano, Ambrósio, Cipriano, Agostinho, unaninemente, embora de modos diferentemente
concebidos, viram nesse título uma referência ao lado humano da origem de Jesus.
Falando dele próprio como filho do homem, Jesus desejava ser conhecido como filho de um homem: não
podia haver recusa mais clara ou melhor a qualquer reivindicação de divindade. Quando Jesus disse a seus
discípulos, falando dele próprio, "para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade
para perdoar pecados", "eles se maravilharam e glorificaram a Deus, que dera tal autoridade aos homens"
(Mateus 9,6-8), sendo a razão específica para terem se maravilhado e glorificado a Deus o fato de que não
apenas Deus, mas um ser humano, podia perdoar pecados. É verdade que a expressão "Filho do Homem"
em si, e quando Jesus a emprega para falar de si próprio na terceira pessoa, sugere que ele se tinha na
conta não apenas de um membro da raça humana como qualquer outro, mas de ser o eleito que Deus
"transformará no Senhor do mundo". Ele pode ter tirado a sugestão, extraído sua analogia, das palavras do
salmista: "Que é o homem, que dele te lembres; e o filho do homem, que o visites? Fizeste-o, no entanto,
pouco menor que os anjos, e de glória e de honra o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas
mãos, e sob seus pés tudo lhe puseste" (Salmos 8,4-6).
O alcance do termo Filho do Homem e a significação do fato de que Jesus o usou a seu respeito pode ter
implicações teológicas interessantes -e talvez não seja surpreendente que tenha proporcionado a gerações
de eruditos um assunto inexaurível de reflexão e pesquisa. Para os propósitos de nossa investigação é
suficiente declarar que a expressão é simples e claro hebraico ( ou aramaico ), de procedência bíblica, e
que o uso dela, mesmo com relação a si próprio, não era proibido ou ofensivo -como, com efeito, não o é
no hebraico falado dos dias que correm. A associação do Messias com "nuvens do céu" ou com um
assento à direta de Deus também nada tinha de nova, e ninguém que recorresse a essa metáfora foi jamais
suspeito ou acusado de blasfêmia. Moisés entrou pelo meio da nuvem (Êxodo 24,18); o próprio destruidor
virá como nuvens Jeremias 4,13; e o "Filho do Homem" de Daniel veio nas nuvens do céu (7,13). E o
"Senhor disse ao meu Senhor: Assenta-se à minha direita, até que eu ponha teus inimigos debaixo dos teus
pés" (Salmos 110,1). Relata-se no Tal mude uma altercação menor entre dois ilustres eruditos que lança
alguma luz sobre a maneira pela qual "blasfêmias" dessa espécie seriam tratadas. Daniel teve uma visão de
dois tronos, num dos quais se sentava "o Ancião de dias", cuja vestimenta era branca como a neve, e seu
trono eram chamas de fogo (7,9). Disse um erudito: esse era o trono de Deus, e o outro, ao seu lado, era o
trono de Davi. Ele foi repreendido pelo segundo: Como pode você assim profanar a santidade de Deus?90
-sugerindo que não se poderia imaginar ou suportar que um simples mortal como Davi estaria num trono
ao lado de Deus. Essa censura pode ou não ter sido procedente, mas em nada diminuiu o grande prestígio
do "profanador", nem teria qualquer pessoa por um momento encarado a possibilidade de que tal
"profanação" podia ser um crime. Mesmo, portanto, presumindo-se que Jesus exprimiu diante do Sinédrio
a declaração messiânica do Filho do Homem com relação a si próprio, sentado à direita de Deus e vindo
em nuvens do céu ( ele dissera coisas muito semelhantes em ocasiões anteriores: Marcos 13,26; Lucas
21,27), nada havia, quer nas palavras em si, quer nas reivindicações messiânicas ou nas arrogações em
geral, que constituísse um crime de acordo com a lei judia. Não apenas nada havia de criminoso em suas
palavras, como nada havia em suas pretensões que pudesse, razoavelmente chocar ou escandalizar seus
ouvintes. É-nos contado, no entanto, que, ao ouvir as palavras, o sumo sacerdote "rasgou suas vestes e
disse: Que mais necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia; que vos parece? (Marcos 14,63-
- 67 -
64; Mateus 26,65). (A versão em Lucas 22,71 é: "Clamaram, pois: Que necessidade mais temos de
testemunho? , Pois nós mesmos o ouvimos da sua própria boca "; não há menção de vestes rasgadas.
É, com efeito, uma norma da lei judia que, ao ouvir profanado o nome divino, a corte e as testemunhas
devem rasgar suas vestes, e a maioria dos eruditos, não surpreendentemente, encaram este gesto da parte
do sumo sacerdote como a reação apropriada e prescrita à blasfêmia expressa na sua presença. Não param
para perguntar por que foi só o sumo sacerdote que rasgou suas vestes, e não também todos os membros
presentes do sinédrio, pois a norma da lei se aplicava igualmente a todos e a cada um deles. Podemos
talvez divisar no ato solitário do sumo sacerdote uma primeira indicação do fato, ainda por ser
demonstrado, de que não foi esta norma de lei que aqui encontrou sua aplicação.
Vimos que, de acordo com a lei judia, o crime capital de blasfêmia não é, e nunca foi, cometido, a menos
que o sagrado e inefável Nome de Deus, composto pelas letras YHWH (Yahweh,Jeová), seja
expressamente pronunciado pelo blasfemo95 O rasgar das vestes -como a punição capital -se segue
somente à enunciação e à profanação desse uno e único Nome divino; não se segue a qualquer outra
injúria a Deus em que o Nome não se pronuncia (Levítico 24,15-16), por pior que seja a injúria. A teoria
de que o rasgar as vestes e a punição capital foram justificados pelo uso que Jesus fez do nome divino de
"Poder" (a cuja direita sentar-se-á o Filho do Homem) foi refutada por proeminentes comentadores do
Novo Testamento. Na realidade, a designação "Poder" foi usada a respeito de Deus apenas nos tempos
pós-bíblicos: foi uma invenção farisaica -aparentemente adotada por Jesus como coisa que ia de si e de
devoção -para proporcionar um nome não sagrado pelo qual Deus podia ser mencionado na conversação
geral. Alguns teólogos cristãos sustentaram que a blasfêmia de Jesus consistiu na sua resposta ao sumo
sacerdote, "Eu sou" (Marcos 14,62), raciocinando que as palavras "Eu sou" (Ani Hu) são um nome divino
tão sagrado e sacrossanto quanto Yahweh. É verdade que se diz que Deus usou essa descrição falando
Dele próprio: "Eu sou, e não há deus comigo" (Deuteronômio 32,39), e um profeta também colocou essas
palavras na boca de Deus (Isaías 48,12). Mas isso não significa que qualquer caráter sacrossanto se prenda
às palavras tal como citadas, nem há qualquer razão por que teriam, sob essa aspecto, de ser distintas das
muitas outras palavras que se diz que Deus usou ao falar de Si mesmo. Qualquer um versado nos
rudimentos do hebraico sabe que as palavras Ani Hu, juntas ou separadas, são articuladas centenas de
vezes na fala de todos os dias -com efeito, não se pode dispensa-las; e tornar sua enunciação ou
profanação um crime capital equivale a fazer todo cidadão, cada dia do ano, passível da pena de morte. O
fato de absurdos como este terem sido propostos por eruditos de renome contribui para mostrar como
foram desesperados os esforços que precisaram fazer para encaixar as palavras de Jesus na categoria de
blasfêmias de acordo com a lei judia. Como resultado, todos fracassaram completamente.
Tampouco Jesus cometeu o crime menor de injuriar Deus em profanar o Nome. Pelo contrário, o fato de se
ter vangloriado das distinções celestiais que Deus faria chover sobre ele, de sua eleição por Deus como o
Messias (o "Cristo"), comprova seu reconhecimento e adoração de Deus: longe de injuriar Deus, ele
estava invocando o "poder" e a sabedoria de Deus, e as distinções celestiais que ele reivindicou seriam
escassas, a menos que Deus fosse, com efeito, a ultima ratio em perfeição e discernimento. E o fato de que
ele confiava em Deus para sua escolha e eleição era -como assinalamos -a coisa mais natural e comum
fazer: ele poderia ter sido encarado como um apóstata ou um ateu se, para seus ensinamentos e aspirações,
tivesse confiado em sua própria força, e não na escolha e no chamamento de Deus; mas sua persistente e
inquebrantável dependência de Deus, sua invocação de Deus, atestam piedade e devoção, por mais
errôneos e mal orientados que seus ensinamentos ou aspirações possam parecer para este ou aquele
ouvinte.
Encontramos alguma corroboração para a hipótese de que Jesus não podia ter sido condenado por
qualquer crime por causa dos seus ensinamentos e aspirações ou, particular da sua alegação de ser o
Messias escolhido, no relato do julgamento de Pedro, o qual, como sabemos, ocorreu diante do Sinédrio
cerca de uma década depois (Atos 5,26-59). Como Jesus, Pedro e seus discípulos eram judeus pios e
praticantes, tendo seguidores entre o povo. Mas enquanto Jesus afirmava ser o Messias, Pedro ensinou e
pregou que o Messias já aparecera na pessoa de Jesus, o que fazia sua doutrina teologicamente muito mais
prejudicial e perigosa do que qualquer aspiração pessoal expressa por Jesus. Mas Rabban Gamaliel, "um
doutor da lei" de alto "renome entre o povo" (5,34), que estava presente na sessão do Sinédrio, pleiteou
aos seus colegas: "Não vos ocupeis destes homens: deixai-os, pois se o seu intento ou a sua obra provém
de homens, distrair-se-á por si mesma; mas se, ao invés, verdadeiramente vem de Deus, não conseguireis
- 68 -
arruiná-la. Não vos exponhais ao risco de combater contra Deus" (5,38-39). Aconteceu, pois, que Pedro
foi absolvido e autorizado a continuar seus ensinamentos. Voltaremos a esse julgamento em outro
contexto; para nosso atual objetivo, é preciso apenas observar que Gamaliel, um líder dos fariseus e um
dos mais eminentes eruditos do seu tempo, não se propôs a sondar os caminhos e as escolhas de Deus;
qualquer pessoa que professe ensinar em nome de Deus e ter sido agraciado com a inspiração divina deve
estar livre para fazê-lo e, em seu devido tempo, será esclarecido se foi realmente Deus que o inspirou.
Tivesse o Sinédrio visto, nos ensinamentos ou aspirações messiânicas de Jesus, qualquer blasfêmia,
idolatria, profecia falsa ou qualquer perigo para a paz pública ou para a fé estabelecida, ele certamente não
teria falhado em seu dever de administrar a justiça e manter a lei -igualmente contra Jesus e Pedro. Mas,
no caso de Pedro, contentou-se em deixar a questão nas mãos de Deus, pois não podia, e não queria,
excluir a possibilidade de que Jesus tinha, com efeito, sido divinamente inspirado. Foi sabiamente
observado que essa decisão sinédrica, a pedido de Gamaliel, pode ter figurado entre os primeiros
precedentes para a relativamente moderna, mas ainda amplamente despercebida, norma de que ninguém
deve ser punido apenas por expressar opiniões não políticas ou não ortodoxas. A norma pode não ter sido,
na época, necessária para proteger opiniões individuais para as quais os proponentes não reivindicavam a
autoridade divina; se era necessária, ela o era para as pessoas que ousavam desafiar os princípios
ortodoxos e a religião estabelecida no que diziam ser a autoridade do chamamento ou da inspiração divina,
pois só Deus tornaria seus sermões dignos de serem ouvidos. Não há qualquer razão válida para duvidar
que o mesmo Gamaliel que persuadiu o Sinédrio, no caso de Pedro, estava presente e proeminente
também durante a reunião noturna na casa do sumo sacerdote, quando Jesus ali compareceu. Encarar o
resultado do "julgamento" de Jesus aquela noite como prova da ausência de Gamaliel parece ter a natureza
de uma petitio principii; mas há i eruditos que, por um lado, concordam que ele não poderia ter julgado,
Jesus culpado e que gostariam muito de saber o que ele teria dito ou feito, se estivesse presente. Por outro
lado, tomam como certa a condenação de Jesus pelo Sinédrio, não obstante a indubitada presença e o
concurso de juízes da escola de pensamento de Gamaliel. Houvesse Gamaliel, no julgamento de Pedro,
expressado apenas uma opinião pessoal, ter-se-ia presumivelmente seguido uma discussão, com alguns
membros baseando-se na posição de Gamaliel ou de outros eruditos farisaicos na questão de Jesus poucos
anos antes, se, com efeito, algum erudito farisaico houvesse tomado tal decisão. Gamaliel, no entanto,
certamente não O fez: ele exprimiu com autoridade o que deve ter sido uma questão de consenso geral: de
que o caminho e a vontade de Deus são insondáveis aos homens e que, por mais que um caminho ou
vontade possa contradizer outro caminho ou vontade, am os podem ser palavra e um Deus VIVO. Assim,
quer Gamaliel estivesse ou não presente para falar também no caso de Jesus, sua opinião e maneira de
pensar estavam, com a maior certeza, bem representadas, o que novamente faz com que não haja causa
para inferir que ele próprio não tenha estado presente também naquela noite. Tampouco há fundamento
para que se presuma que, se Jesus realmente tivesse sido julgado aquela noite, o resultado teria sido
diferente do que foi no caso de Pedro. O fato é que ele não foi julgado, nem foi condenado. Não se o
acusou de qualquer blasfêmia e não houve blasfêmia: a santidade de Deus não foi tocada, o santo Nome
não foi maculado. Por que motivo, então, o sumo sacerdote rasgou as vestes?
O caminho mais fácil para se decifrar o enigma, como no caso da maioria dos problemas suscitados pelos
relatos do Evangelho, é descartar, como não histórico, todo o incidente de ter o sumo sacerdote rasgado as
vestes. Os autores dos Evangelhos de Lucas e João já o arquivaram, aparentemente encarando como
indigna de confiança as tradições de Marcos e Mateus. Mas eu penso que a versão de Marcos presta-se a
uma explicação razoável e satisfatória, e veremos que ela se enquadra perfeitamente, e não sem
significação, na seqüência dos acontecimentos daquela noite. É um antigo e bem conhecido costume judeu
rasgar as vestes em sinal de aflição, não apenas pela morte de um parente ou outra pessoa amada, ou
quando se sofre uma calamidade, mas também quando se ouve uma notícia ruim, como, por exemplo, o
começo de uma guerra. Se o sumo sacerdote rasgou suas vestes aquela noite, foi porque sofreu por não
poder fazer com que Jesus aceitasse seu ponto de vista, por sua angústia porque Jesus ostensivamente
recusou cooperar e caminhava teimosamente rumo ao seu desastroso destino, e, sem ser esta a menor das
causas, pelo fato de que a opressão romana faria outra vítima judia, com todas as conseqüências que
poderiam advir da morte, pelos romanos, de um homem da posição e popularidade de Jesus. Sua
declaração diante do Sinédrio de que era o Messias (o "Cristo"), embora não fosse um crime, equivalia a
uma rejeição por Jesus da oferta que lhe foi feita pelo sumo sacerdote e pela liderança judia: a cooperação
- 69 -
entre eles só seria possível se eles aceitassem sua afirmação e reconhecessem sua reivindicação. Isto, é
claro, eles não podiam e não queriam fazer, não apenas porque não acreditavam nele, e teriam considerado
sua submissão à autoridade de Jesus como um abandono dos deveres e uma transgressão da lei, mas
também porque o reconhecimento sinédrico das pretensões messiânicas de Jesus teria seguramente
significado, aos olhos do povo e também aos de Pilatos, uma confirmação das próprias acusações que
pesavam sobre Jesus ante as autoridades romanas. Assim, longe de concordar em se abster, dali em diante,
das atividades que pudessem conflitar com os poderes existentes, ele reafirmou sua missão messiânica e
insistiu em seu cumprimento; Jesus não se curvaria diante da autoridade, nem aceitaria a orientação do
sinédrio. Não foi a blasfêmia que fez o sumo sacerdote rasgar as vestes, mas a frustração dos seus esforços
para fazer Jesus ouvir a razão e salvá-lo do seu destino -e o presságio de um resultado catastrófico. Mas
foi apenas o sumo sacerdote que rasgou suas vestes: não houve condenação por blasfêmia, nem
profanação do Nome sagrado, por isso nenhum dever legal de rasgar as vestes, nem estavam os demais
presentes sob qualquer obrigação de seguir o exemplo do sumo sacerdote. O fato de que rasgar as vestes é
prova quase conclusiva da aflição do sumo sacerdote -se não fosse apenas o cumprimento formal de uma
prescrição ritualística -não pode ser contestado seriamente; mas se -como sustentam os protagonistas da
Teoria do Julgamento Judeu -era seu propósito, ao interrogar Jesus, extrair uma confissão, então, segundo
os relatos do Evangelho, ele facilmente cumpriu o propósito. Que motivo tinha ele, afinal, para se afligir?
O motivo pode ser logo compreendido se presumirmos que a última coisa que desejava era extrair uma
confissão: ao contrário, ele queria que Jesus abandonasse suas aspirações messiânicas ou pelo menos
guardasse silêncio sobre elas: conseguiu exatamente o contrário do que desejava, e por isso teve razão
para prantear. Se levarmos em consideração o trabalho que empreendeu, ordenando à polícia do Templo
que obtivesse a custódia de Jesus, convocando todos os membros do Grande sinédrio ao seu palácio, e
dedicando toda a noite festiva a esforços frenéticos em favor de Jesus, não nos pode surpreender seu
desapontamento e desespero totais quando viu que tudo fora em vão. Embora os demais presentes não
tenham rasgado suas vestes, há nos relatos do Evangelho, algum apoio para a suposição de que eles podem
ter expressado sua indignação e desilusão de formas diferentes, menos civilizadas. Segundo uma versão,
eles "então cuspiram-lhe no rosto e o esbofetearam com as palmas das mãos" (Mateus 26,67); segundo
outra, "Puseram-se alguns a cuspir nele, a cobrir-lhe o rosto, a dar-lhe murros e a dizer-lhe: Profetiza! E os
guardas o tomaram a bofetadas" (Marcos 14,65). Uma terceira diz que foram "os que o detinham", isto é,
presumivelmente a polícia do Templo, que "zombavam dele, davam-lhe pancadas e, vendando-lhe os
olhos, bateram-lhe no rosto" (Lucas 22,63-64). A história mais provável de todas, no entanto, a se
pressupor que Jesus foi, de fato, agredido fisicamente, é a do Quarto Evangelho, de que um dos guardas
judeus "deu uma bofetada em Jesus, dizendo: É assim que falas ao sumo sacerdote?" E a resposta de Jesus,
"Se falei mal, dá testemunho do mal; mas se falei bem, por que me feres?" João 18,22-23, empresta tanto à
pergunta, com a violência que a acompanhou, como à resposta um sabor muito autêntico. Mas digamos
que, seguindo-se à "confissão" de Jesus e às conclusões finais a que por causa dela os membros do
Sinédrio foram levados, alguns deles realmente explodiram em socos, ou que os serviçais ou outros
presentes reagiram violentamente. Numa sociedade mais sofisticada e menos turbulenta, as pessoas
poderiam ter se afastado em silêncio e desgostosas ou, no máximo, recorrido a palavras duras. Mas
naqueles dias tumultuosos, numa Jerusalém ocupada pelo inimigo, as pessoas nem sempre devem ter sido
tão controladas e disciplinadas. E depois de uma noite enervante, que todos teriam preferido passar em
celebrações, preparando a festa em casa e no Templo, ou dormindo, do que tentando persuadir Jesus a
aceitar a autenticidade deles e a ser salvo do seu destino, a raiva e a frustração que se apossaram deles não
podiam facilmente se confinar a limites civilizados. Tivesse uma sentença de morte sido pronunciada
contra Jesus pelo Sinédrio aquela noite, como relatado em Marcos 14,64 , qualquer: impaciência com sua
teimosia que pudesse ter irritado algum membro do tribunal logo teria sido aliviada com a execução da
sentença: é virtualmente inconcebível e, é claro, altamente impróprio que um juiz levante a mão contra um
prisioneiro no banco dos réus. A prescrição bíblica "Ama o teu próximo como a ti mesmo" (Levítico
19,18) foi interpretada como uma exortação aos juízes para fazerem tão leves e boas quanto o
humanamente possível as últimas horas de um prisioneiro condenado à morte; e não apenas a juízes era
proibido levantar um dedo para golpear outro homem.1os Mas, se é verdade que o Sinédrio não aplicou,
naquela noite, qualquer sentença de morte, a ineficácia, depois de uma vigília longa e cansativa, dos
esforços desesperados para fazer Jesus ouvir a razão e os pensamentos agoniantes de uma iminente, e
- 70 -
agora provavelmente inevitável tragédia, bem podem ter roubado aos juízes e aos espectadores mais
apaixonados seus últimos resquícios de autocontrole,
É apenas em Marcos (14 ,64) que encontramos uma condenação à morte formal; segundo Mateus, eles -os
juízes -responderam ao sumo sacerdote "e disseram: É réu de morte" (26,66); segundo Lucas (22,71), eles
sequer disseram isso. Assim, cada Evangelho tem uma versão própria: João não fala em sentença de morte
porque, segundo ele, não houve julgamento diante do Sinédrio; Lucas também não fala nisso, embora,
segundo ele, tenha havido algum tipo de julgamento diante do Sinédrio, embora apenas nas primeiras
horas da manhã; segundo Mateus, todos eles exclamaram: "É réu de morte"; mas não se registra qualquer
"condenação" como tal; apenas em Marcos registra-se uma condenação. Tivesse havido uma condenação
formal, ter-se-ia necessariamente que presumir que alguma espécie de julgamento a precedeu, e seria
também de esperar que a sentença formal seria devidamente executada, quer por ordem do próprio
Sinédrio, quer porque lhe faltava o necessário poder, por ordem das autoridades romanas. O que
aconteceu, em última instância, como todos os Evangelhos relatam, parece atestar com muita coerência o
que havia -e o que não havia -ocorrido antes: O Sinédrio não tinha o propósito, na questão, de executar
qualquer sentença de morte emitida por ele próprio, nem as autoridades romanas -ou qualquer outra
pessoa -executaram qualquer sentença de morte do Sinédrio; ninguém informou Pôncio Pilatos de que
havia ocorrido um julgamento diante do Sinédrio e de que Jesus há havia sido condenado à morte! No
entanto, ter-se-ia pensado que isso era a primeira coisa a dizer ao governador romano, se os "judeus", com
efeito, estivessem tão ansiosos por ver Jesus condenado: o Grande Sinédrio de lsrael já se reunira e tinha
unanimemente julgado Jesus culpado de um crime capital! Nem mesmo o autor do Evangelho de João,
segundo o qual os judeus disseram a Pilatos "A nós não é lícito matar ninguém" (18,31), coloca na boca
deles' um pedido para que ordenasse a execução, pelos romanos, de uma sentença de morte que já havia
sido adotada; peio contrário, ele diz que os judeus recusaram-se "a julgá-lo" (ibid.). Mesmo que, portanto,
não tenha havido condenação formal pelo Sinédrio, isso não significa necessariamente que membros do
Sinédrio não possam ter exclamado algumas das palavras como constam em Mateus, de que Jesus estava
agora fadado a morrer.
Partimos da premissa de que o sumo sacerdote, e portanto os membros do Sinédrio, sabiam que Jesus
estava para ser julgado na manhã seguinte diante do governador romano e que eles viam como
absolutamente indispensável fazer todo o possível para impedir o resultado desfavorável do julgamento.
Segue-se que eles anteciparam que o provável resultado seria fatal, não acreditando que Jesus tivesse
chance de absolvição ou de uma punição que não fosse a morte. Assinalamos que salvar a vida de outrem
justificava a violação da festa, mas nada menos do que a salvação da vida de um homem em sério perigo a
justificaria. Os homens do Sinédrio conheciam o seu governador e não alimentavam ilusão a seu respeito:
se Jesus fosse julgado e não retratasse formal e solenemente suas pretensões, não havia esperança de
escapar à morte. Quando seus esforços para fazer com que Jesus concordasse em abandonar suas
reivindicações e prometesse desistir da atividade messiânica fracassaram, todos souberam que ele seria
julgado culpado e condenado a morte -não em virtude de qualquer sentença ou julgamento deles, mas de
que o governador pronunciaria contra ele. O grito "Ele deve morrer" foi o reflexo natural e espontâneo das
palavras que Jesus havia dito, selando, como aconteceu, seu destino no julgamento iminente, de cujo
resultado não parecia mais haver qualquer possibilidade de resgatá-lo.
Não podemos saber se os evangelistas -ou alguns deles - tiveram conhecimento do que de fato acontecera
naquela noite na casa do sumo sacerdote e se moldaram seus relatos para servir suas próprias finalidades
tendenciosas, ou se cada um relatou segundo as suas tradições, acreditando honestamente que eram
historicamente verdadeiras. Foi dito que é preciso distinguir entre "primeira tradição e ulterior expansão" e
que "só depois de ter eliminado dos quatro relatos os elementos que são devidos às tradições secundárias
ou aos acréscimos é que podemos usar o resíduo das tradições primárias para o propósito de fazer
deduções históricas". Mas a tarefa de diferenciação não é fácil, e o que pode parecer a um erudito uma
tradição primária, pode ser encarado por um outro como secundária, sendo difícil refutar qualquer das
duas opiniões. Também foi dito que, ao relatar os procedimentos noturnos na casa do sumo sacerdote, os
evangelistas não tencionaram transmitir quaisquer tradições que possuíam, mas descreveram o que sabiam
dos procedimentos de julgamento e interrogatório do seu próprio tempo e lugar. Por isso, mostra-se o
sumo sacerdote interrogando Jesus exatamente como os juízes ou governadores romanos teriam, nos dias
dos evangelistas, interrogado suspeitos cristãos. Com efeito, é provável que, para tornar plausível a
- 71 -
responsabilidade dos judeus pela morte de Jesus, os evangelistas atribuíssem ao Sinédrio alguma espécie
de procedimento judicial, e um procedimento que eles e seus leitores contemporâneos conhecessem seria a
escolha natural. A lei judia de procedimento que prevalecia em Jerusalém na época de Jesus era quase
certamente desconhecida deles, à parte o fato de que, mesmo se fosse conhecida, não teria servido ao
propósito que eles tinham em vista. Constatamos mesmo que um escritor judeu douto e versado nas coisas
como Fílon de Alexandria ignorava as leis judias: dizendo descrever o Cânon judeu, ele, na realidade,
descreve os estatutos gregos e egípcios em vigor em seu próprio tempo e lugar. E o que é compreensível
num escritor judeu, é certamente compreensível, e venial, em autores e pregadores cristãos. Mas toda a
teoria cai por terra pelo simples motivo de que os relatos do Evangelho, quer do interrogatório pelo sumo
sacerdote, quer do julgamento pelo Sinédrio, não correspondem absolutamente aos procedimentos que se
sabe estavam em uso quando e onde os evangelistas viveram; numa carta de Plínio, que conta ao
imperador a maneira pela qual julgava cristãos suspeitos, ele fala do seu interrogatório, pessoalmente
questionando e voltando a questioná-los até confessarem; mas ele não fala da inquirição de testemunhas.
O procedimento normal seria começar, não com a inquirição de testemunhas, mas com o interrogatório do
acusado (quaestio), e quando o acusado confessava, já não se necessitava de testemunhas. Mas, como será
lembrado, os relatos do Evangelho falam da inquirição de testemunhas em primeiro lugar: o acusado não
era interrogado, a menos que se frustrasse o procedi- mento de inquirir as testemunhas. Assim como o
interrogatório do acusado teria sido contrário à lei judia, também teria sido contrário à romana a inquirição
prévia de testemunhas; e como não há nos relatos do Evangelho uma relação verdadeira e exata da lei
judia, assim também não O há da romana. Os eruditos que vêem nos relatos do julgamento no Evangelho
descrições dos procedimentos romanos consideraram as sovas e os golpes aplicados em Jesus, que tais
relatos registram como se tendo seguido ao julgamento, como um eco das flagelações que, de acordo com
a lei romana, estavam implícitas em todas as sentenças de morte e que precediam sua execução.116 Eles
sustentam que tais sovas ou golpes não ocorreram, mas que como os evangelistas sabiam que todo
prisioneiro sentenciado à morte seria automaticamente passível de flagellatío, eles relataram os maltratos
como se tivessem naturalmente de se seguir à sentença. Essa tese é igualmente insustentável: segundo
Lucas, as sovas precederam o julgamento (22,63-64), o que por si mesmo as excluiria da categoria de
medidas penitenciárias; e os outros Evangelhos relatam alguma flagelação depois, nas mãos de soldados
romanos (Mateus 27,30; Marcos 15,19; João 19,1), que corresponderia amplamente ao que era exigido
pela lei romana, mas ilegítimo e impróprio segundo a lei judia.
"Depois, levaram Jesus da casa de Caifás para a audiência, e era cedo" João 18,28, e na sala do tribunal do
governador romano, Pilatos já estava preparado e esperando que o prisioneiro fosse levado a sua presença
para ser julgado.Ambos, João e Lucas (23,1), relatam que Jesus foi "levado" ali, não estando manietado ou
algemado; segundo Marcos (15,1) e Mateus (27,2), os judeus primeiro o manietaram, e assim o
conduziram ao tribunal de Pilatos. A segunda versão parece a mais provável: embora, como vimos, Jesus
tivesse sido levado não manietado à casa do sumo sacerdote, a lógica consistiria em que tivesse sido
conduzido manietado ao tribunal romano. Ele fora entregue sob custódia judia à noite, a pedido da polícia
do Templo, com o compromisso de que na manhã seguinte seria devidamente posto à disposição do
tribunal romano para julgamento: pelo menos na frente dos soldados e guardas romanos, os policiais
judeus teriam sido obrigados a agir como se Jesus fosse, com efeito, seu prisioneiro, no inteiro sentido da
palavra, durante aquela noite, e agora o restituíam, como tal, para julgamento. Sua entrega não como um
prisioneiro, mas como um homem livre, poderia ter suscitado a suspeita de que, ao pedir que Jesus lhes
fosse confiado, seu propósito tinha sido outro que não O afirmado por eles e incompatível com o que
planejavam os romanos. O tribuno romano pode ter assumido a responsabilidade de deixar Jesus
permanecer durante a noite sob custódia judia, mas tivesse ele -ou o governador -visto que Jesus fora
libertado e que fora objeto de tratamento especial, ele poderia ter pedido contas à polícia do Templo por
tal indulgência. Em qualquer caso, podemos supor que, depois de ouvir as respostas de Jesus ao sumo
sacerdote, o Sinédrio não viu outra saída e ordenou que ele fosse preso e levado ao tribunal romano.
Os Evangelhos Sinópticos dizem unanimemente que "ao romper do dia, todos os principais sacerdotes e os
anciãos do povo entraram em conselho contra Jesus, para o matarem" (Mateus 27,1), ou que "logo pela
manhã entraram em conselho os principais sacerdotes com os anciãos, escribas e todo o Sinédrio. Segundo
Lucas, esta consulta "logo que amanheceu" tomou o lugar do próprio julgamento, tendo sido idêntica a ele
ou realizada em seu lugar; mas a versão em Mateus e Marcos suscita a questão de se saber se era a
- 72 -
conclusão do julgamento ou um procedimento separado e adicional. Há uma teoria segundo o qual o
Sinédrio sempre pronunciava -obrigatoriamente -uma sentença de manhã cedo, outra dessas teorias
infundadas e absurdas inventadas com o objetivo de provar a historicidade de algum relato do Evangelho
que de outra forma seria inexplicável: por uma questão de lei, o Sinédrio começava suas sessões nas horas
matinais e as decidia de tarde, e mesmo quando o julgamento era concluído mais cedo, só se pronunciava
a sentença pouco antes do crepúsculo. Vendo que, para Mateus e Marcos, ocorrera um julgamento durante
a noite que resultara numa condenação ou numa constatação de culpa, os evangelistas podem ter pensado
que se devia uma explicação para a subseqüente entrega de Jesus nas mãos de Pilatos, em lugar de sua
execução pelos judeus; eles dificilmente poderiam impedir o julgamento diante de Pilatos e a resultante
crucificação, pois estes fatos já eram demasiado bem conhecidos. A "consulta" de manhã cedo
proporcionou-lhes uma solução: embora os judeus tivessem julgado Jesus e o considerado culpado,
passaram a consultar-se para saber se não seria mais sábio e mais viável não mandar matar Jesus, mas
entregá-lo nas mãos de Pilatos. É significativo que nem Mateus, nem Marcos explicam por que motivo
isto seria mais sábio ou mais viável: quem quisesse ver Jesus julgado e crucificado pelos romanos poderia
tê-lo denunciado a eles, não havendo necessidade, com tal propósito em mente, de qualquer julgamento ou
condenação sinédricos, e ainda por cima um julgamento noturno; por outro lado, se o Sinédrio considerava
mesmo Jesus culpado de um crime capital segundo a lei judia, teria encarado sua execução, não menos
que seu julgamento e condenação, como seu próprio dever e função. O meio mais fácil de se sair da
dificuldade consiste, é claro, em dizer que, como não houve julgamento sinédrico, também não houve
consulta matinal, sendo o relato da consulta acrescentado aos relatos do julgamento apenas para ainda uma
vez enfatizar, como o sugeriria o texto em Mateus, a inimizade mortal dos judeus para com Jesus e seu
sempre recorrente "conselho para mandar matá-lo".
Mas mesmo supondo que este relato da consulta, distintamente do relato do julgamento, fundou-se numa
tradição válida, poderia ser dito -recordando os acontecimentos tais como os interpretamos - que nem o
fracasso e a lamentação do sumo sacerdote, nem a frustração dos membros do Sinédrio foram bastante aos
olhos do conselho para justificar a entrega de Jesus em mãos romanas: seus membros ainda tinham
compunções, ainda sentiam a necessidade de consultar um ao outro, antes de tomarem uma decisão que
seria irrevogável. Talvez, por essa ulterior consulta em conjunto, pudessem encontrar algum outro e ainda
não experimentado estratagema para persuadir Jesus a desistir ou um pretexto para suspender ou adiar sua
entrega a julgamento; e foi só depois dessas renovadas deliberações, incapazes de encontrar um
estratagema ou pretexto, que tomaram uma decisão. Verificaram e se convenceram de que nada mais
podiam fazer. Tinham feito todo o humanamente possível e concluíram que, nas circunstâncias, teriam de
honrar seu compromisso e entregar Jesus para julgamento. Quaisquer presságios que possam ter entretido
quanto ao que o julgamento reservaria para Jesus, não dispunham de poder para impedi-lo, nem de
qualquer possibilidade prática de reter e ocultar Jesus. Não que Jesus tivesse desejado ser retido ou
escondido, ou que fosse evitado seu julgamento. E assim - como veremos a seguir -os membros do Grande
Sinédrio deixaram o palácio do sumo sacerdote e se dispersaram, cada um seguindo para o seu lar cuidar
da sua vida. E o.destino iminente de Jesus -e a própria incapacidade que tinham de evitá-lo -deve ter
pesado sobre seus ombros como uma sombra escura e sinistra.

O JULGAMENTO

Todos os quatro Evangelhos concordam em que Jesus foi julgado diante de Pôncio Pilatos, o governador
romano, e que foi levado à sua presença por judeus. Mas diferem logo na primeira questão que antecede
os muitos problemas que surgem em relação ao julgamento propriamente dito: quem eram estes 'Judeus"?
Marcos (15,1) relata a consulta entre "os principais sacerdotes, os anciãos, os escribas e todo o conselho",
e continua a discorrer sobre o fato de que Jesus teria sido manietado e levado a Pilatos, como se todos
aqueles tivessem realmente tomado parte nas consultas e, também, no ato de manietar Jesus, levando-o e
entregando-o para julgamento. Lucas (23,1) diz que "levantando-se toda a assembléia, levaram Jesus a
Pilatos", aparentemente referindo-se à multidão de "anciãos do povo, os principais sacerdotes, e os
- 73 -
escribas", mencionados antes (22,66). Mateus (27,1-2) fala dos "principais sacerdotes e anciãos do povo"
que se consultaram contra Jesus, e prossegue então para dizer que "quando o amarraram, levaram-no e
entregaram-no ao governador Pilatos", um contexto em que "eles" presumivelmente significa os principais
sacerdotes e anciãos. Somente em João a questão fica em aberto: Anás enviara Jesus "manietado, à
presença de Caifás, o sumo sacerdote" (18,24) e "depois, levaram Jesus da casa de Caifás para a
audiência" (18,28), de maneira que ficamos no escuro quanto a quem "eles" podem ter sido: eram eles os
mesmos que aqueles que depois conversam com Pilatos e são identificados como "os judeus" ( 18,31 ), ou
outros judeus que não os que se diz terem desempenhado um papel ativo nos procedimentos
subseqüentes?
É significativo que, segundo Marcos, tenham sido os emissários dos "principais sacerdotes, dos escribas e
dos anciãos "que prenderam Jesus na noite anterior (14,43), os mesmos "principais sacerdotes, anciãos e
escribas" que se consultaram e o entregaram a Pilatos na manhã seguinte. Similarmente, foi uma "grande
multidão da parte "dos principais sacerdotes e anciãos do povo" que, na versão de Mateus (26,47), o
prendeu, aqueles mesmo "principais sacerdotes e anciãos do povo" que se consultaram e o entregaram na
manhã seguinte a Pilatos. Mostramos que qualquer parte dos principais sacerdotes, anciãos ou escribas, ou
outros membros do conselho, na prisão de Jesus, ou, na realidade, em qualquer prisão, deve ser logo
rejeitada como algo impensável, por mais que Lucas diga que estavam presentes no ato de prisão (Lucas
22,52), e identificamos os emissários "da parte dos principais sacerdotes e anciãos", com ou sem
"escribas", como um contingente da polícia do Templo destacado para atuar na prisão. A lógica sugere, e
nós podemos, penso eu, presumir com segurança que o mesmo contingente que havia tomado Jesus sob
custódia e o levado ao palácio do sumo sacerdote recebeu depois ordens dos "principais sacerdotes,
anciãos, escribas e todo o conselho" para entregar Jesus a Pilatos a fim de ser julgado. já se formulou a
opinião de que "os soldados pertencentes à coorte [romana] que prendera Jesus e que o conduzira à
presença do sumo sacerdote levaram-no agora à presença de Pilatos", que significaria que, em
conseqüência de sua consulta, o Sinédrio notificou as autoridades romanas de que Jesus estava à
disposição delas, o que fez com que a coorte fosse ao palácio do sumo sacerdote e o levasse. Essa
interpretação parece desnecessária: não apenas ela é irreconciliável com os relatos do Evangelho de que
Jesus foi conduzido a Pilatos por judeus e não por soldados romanos, mas funda-se na premissa, que
vimos ser insustentável, de que Jesus havia sido levado ao palácio pelos soldados romanos que o
prenderam. Com efeito, pode-se presumir que o mesmo destacamento que levara Jesus ao palácio na noite
anterior levou-o, na manhã seguinte, ao tribunal do governador romano, mas era um destacamento da
polícia do Templo, não de legionários.
Tendo levado Jesus ao tribunal do governador e o entregue à custódia romana, que fez então o
destacamento de policiais judeus do Templo? Permaneceram ou partiram? Se o destacamento permaneceu,
assistiu à sessão do tribunal ou estava postado fora da sala para aguardar outras ordens? Fosse na véspera
ou no dia de Pessach, a polícia do Templo teria em ambos os casos uma multidão de coisas para fazer
dentro do Templo e nas avenidas que a ele conduziam, podendo-se razoavelmente esperar que, tendo
executado sua tarefa imediata, ela seria de imediato mandada de volta aos seus deveres no Templo. Por
outro lado, o sumo sacerdote e os membros do Sinédrio devem ter estado criticamente interessados em
obter informações imediatas e de primeira mão sobre todos os particulares do julgamento; e pode ser que o
contingente da polícia do Templo, ou alguns dos seus membros tenham recebido ordens para assistir e
relatar, isto é, claro, se "os principais sacerdotes" (Marcos 15,3), com ou sem "anciãos" (Mateus 27,12) ou
"escribas" (Lucas 22,10), não estivessem eles próprios presentes. Novamente, neste ponto, todos os
Evangelhos concordam em que os principais sacerdotes, anciãos e escribas estavam não apenas presentes,
mas eram proeminentes: é dito que "toda a multidão deles" acusou Jesus (Lucas 23,1-2); "os principais
sacerdotes acusaram-no de muitas coisas" (Marcos 15,3); e "sendo acusado pelos principais sacerdotes e
pelos anciãos, nada respondeu" (Mateus 27,12). Não apenas isto, mas pareceria dos relatos do Evangelho
que os "principais sacerdotes" estavam ali não apenas com anciãos e escribas, mas também com multidões
de pessoas (Mateus 27,24-25; Marcos 15,8; Lucas 23,13; João 18 e 19, passim: "os judeus"). Se foi assim,
não haveria motivo para que estivessem presentes policiais do Templo para relatarem a audiência romana.
Quais foram, pois, e, em particular, que espécie de "judeus" assistiu ao julgamento de Jesus por Pilatos? É
porque os Evangelhos atribuem aos "judeus" tanta atividade no julgamento, e mesmo responsabilidade
final por seu resultado, que essa questão preliminar é decisivamente importante. Se pudermos identificar a
- 74 -
assistência judia, conseqüentemente esta responsabilidade pode ter de ser reduzi- da e limitada. Nossa
tarefa não é simplificada pelo caráter vago das descrições do Evangelho ("os judeus", "multidões", "o
povo") e sua inconsistência ("principais sacerdotes" com e sem "anciãos", "escribas", "guardas"). Teremos
de procurar fora dos Evangelhos uma solução para o nosso problema.
Sugerimos que nenhum judeu, e nenhuma pessoa de fora, podia ter estado presente ao julgamento, pois o
governador romano o realizou in câmera, e ali não se permitia em absoluto o acesso do público.
O praetorium onde o governador romano tinha seu tribunal é mencionado expressamente como o lugar do
julgamento de Jesus apenas no Evangelho segundo João (18,28). Mas Mateus e Marcos também o
mencionam, se apenas como o lugar para onde soldados romanos levaram Jesus depois da sentença
(Mateus 27,27 ; Marcos 15,16); e Mateus também alude à sella, isto é, o banco ou assento de julgamento
em que o governador se sentava (27, 19) e do qual ele pronunciava a sentença João 19,13. Praetorium era
o nome da residência do governador; como o imperador de Roma, os governadores nas províncias
realizavam seus julgamentos nos palácios onde viviam. Em contraste, os julgamentos diante de juízes
profissionais ou leigos eram realizados num fórum, ou praça pública, e, enquanto vemos o imperador ou
um governador reunindo excepcionalmente um tribunal num fórum, a condução de um julgamento no
interior do praetorium era privilégio exclusivo do governador que o ocupava. É desnecessário dizer que os
julgamentos realizados no palácio imperial ou num praetorium de governador ocorriam em privado, e só
apparitores, amanuenses designados especificamente, eram admitidos ao tribunal. O fato de qual câmara
ou sala do palácio, ou praetorium, onde se realizavam os julgamentos, era chamada de secretarium
confirma o aspecto secreto dos procedimentos: parece que era separada das outras partes do prédio por
uma parede ou cortina, chamada velum, que podia ser aberta se fosse desejado ou ordenado que uma
pessoa entrasse no tribunal, mas que, de outra forma, tinha de manter-se fechada durante os
procedimentos.6
O princípio da publicidade dos procedimentos judiciais, em que se distinguiu o direito romano desde os
seus primórdios, não é necessariamente incoerente com o aspecto secreto dos procedimentos levados a
efeito por um governador ou pelo imperador. Devemos ter em mente que os governadores, como o
imperador, eram essencialmente autoridades executivas, e não órgãos judiciários; seus poderes judiciais
decorriam do seu imperium e restringiam-se à jurisdição penal (imperium merum); em outras palavras,
eram confinadas a assuntos cujo julgamento era necessário para manter a ordem e a segurança públicas, e
para salvaguardar o regime político e a segurança e autoridade pessoais dos governantes; como tais, eram
parte integrante do poder de governar, ou imperium. Dizia-se' que a autoridade que tinha o governador de
decretar sentenças capitais decorria do ius gladii, o direito da espada nele investido, a espada pela qual,
simbolicamente, ele governava o território ocupado e o mantinha subjugado. Mesmo que pudesse, às
vezes, reunir um tribunal e exercer funções judiciais, ele permanecia sempre o administrador executivo, e
era assim que, mesmo em processos judiciais, o procedimento que ele seguia não era o de um juiz, mas o
de um executivo. Encontramos imperadores, em épocas posteriores, queixando-se de que o caráter secreto
de procedimentos judiciais mantidos pelos governadores provinciais resultava em erros judiciais: foram
conservadas cartas imperiais a governadores faltosos que advertem contra julgar em privado, e certas leis
prescreviam que os "governadores levarão a efeito julgamentos penais com seus tribunais abertos às
multidões do povo... e não se ocultarão em suas câmaras de conselho privadas, de forma que as partes não
possam ter oportunidade de comparecer diante deles, a menos que subornem os funcionários do tribunal."
E ainda: "O governador não duvidará que é imposto a ele um dever especial ao dirigir prodecimentos
judiciários, a saber, que não pronunciará no isolamento de seu palácio uma decisão respeitante à situação
de homens ou de propriedade, mas ouvirá processos criminais e civis com a portas de suas câmaras
privadas de conselho abertas e com todos no interior." os codifica dores acrescentaram o comentário de
que "qualquer decisão que ele tome de acordo com os procedimentos regulares da lei e com os requisitos
da verdade não será escondida de nenhum homem". Naqueles tempos, os governadores -especialmente nas
províncias do norte da África -eram ex officio também juízes ordinários, rectores, com jurisdição geral,
civil e criminal. É um erro presumir, como o fez Mommsen, que essas leis posteriores e admoestações
imperiais apenas recapitularam o princípio da publicidade como fora aplicado ao longo dos séculos, em
Roma e nas províncias, por tribunais ordinários e por governadores: do teor desses documentos fica
abundamentemente claro que seu propósito era abolir um costume bem estabelecido, isto é, o privilégio
que tinham os governadores de julgar na privacidade de suas próprias residências, à qual nenhum
- 75 -
estrangeiro podia ter acesso, exceto, parece, subornando os apparitores. Sabemos que o praetorium dos
governadores da Judéia ficava em Cesaréia, e não em Jerusalém. Há alguma indicação no Novo
Testamento de que mesmo em Cesaréia era o palácio do rei judeu que servia a esta finalidade (Atos
23,35), mas pode ser que o palácio seja referido como sendo de Herodes, porque ele o construíra e porque
era usado somente como residência dos governadores, e não do monarca. No entanto, é razoavelmente
certo que, quando o governador estava em Jerusalém, ele residia no palácio do rei e que era no praetorium
que julgava.
Vem de uma fonte inesperada, o Evangelho segundo João, a corroboração do nosso parecer de que o povo,
o público não entrou na sala de julgamento de Pilatos. É ali relatado que "eles próprios", a saber, as
pessoas que haviam levado Jesus "ao pretório", "não entraram no pretório"; e a razão dada é a sua
apreensão em "não se contaminarem, e poderem comer o Pessach" (18,28). Isto pressuporia que, entrando
no palácio em geral, ou no tribunal em particular, os judeus "se contaminariam ", a ponto de não poderem
participar do sacrifício de Pessach. Nada na lei ou no ritual judeus, no entanto, sustentaria a afirmação de
que, entrando no palácio ou no tribunal do rei -ou de qualquer outro -, um judeu podia tornar-se impuro:
isto só aconteceria se um cadáver jazesse sob o teto do palácio, ou fosse o palácio um lugar de adoração
idólatra,16 não havendo aqui motivo para se presumir uma coisa ou outra. Mas que nos seja permitido,
para argumentar, dizer que o interior do palácio era uma causa potencial de impureza; mesmo nesse caso,
nenhum judeu que ali entrasse seria impedido de participar do sacrifício de Pessach. A lei dizia que
mesmo os impuros podiam participar dele, não obstante sua impureza, e, mais do que isso, mesmo se os
sacerdotes tivessem contraído alguma impureza, ainda assim podiam, oficiar nos sacrifícios do Pessach,
desde que a maioria do povo fosse pura. Não é crível, portanto, que alguém temesse ser "contaminado"
entrando no palácio ou no tribunal e por isso fosse excluído do Pessach. Se - como está relatado em João
-as pessoas não entraram no palácio e no tribunal, foi por motivo inteiramente diverso, a saber,
simplesmente não se lhes permitia entrar, quisessem ou não. O fato de que o autor do Evangelho segundo
João não proporcionou essa verdadeira explicação, que presumivelmente era conhecida dele pela prática
geral dos governadores provinciais, pode ter sido porque, para continuar sua história, era necessário o
freqüente intercurso entre Pilatos e o povo, e se Pilatos desejava consultar o povo, ele poderia
perfeitamente tê-lo deixado entrar. O fato de o autor ter passado de uma razão espúria -medo de
contaminação -para a verdadeira -um julga- mento in câmera -"- foi inteiramente sem risco, pois seus
leitores romanos não tinham qualquer conhecimento das leis e costumes judeus de sacrifício. O que
sabiam era que um governador romano normalmente realizaria um julgamento no seu praetorium; e o
autor do Quarto Evangelho percebeu corretamente que não havia fundamento válido para supor que
Pilatos se desviara da norma no caso de Jesus. Mas realizar um julgamento no praetorium significava fazê-
lo in câmera, sem a presença do público; por isso ele corretamente relatou que os judeus não entraram no
palácio, nem assistiram ao julgamento; ter apresentado um motivo errado para isso não diminui
necessariamente a fidedignidade do seu relato factual. Depois João diz que "Pilatos saiu para falar-lhes",
isto é, aos judeus, várias vezes, primeiro para ouvir suas acusações (18,29), depois para fazê-los escolher
um preso a ser perdoado (18,38-40), em seguida para mostrar o Jesus açoitado (19,4) e finalmente para
ouvir sua sentença pronunciada (19,13). Isto parece indicar que - quem quer que fossem -as pessoas que
não entraram no praetorium permaneceram em algum lugar, do lado de fora: dir-se-ia que havia um lugar
reservado para as pessoas que aguardavam o resultado de um julgamento ou o aparecimento do
governador para algum outro propósito que não a pronúncia da sentença. Este propósito é sugerido no
relato de João de que, quando estava prestes a pronunciar a sentença, Pilatos "sentou-se no tribunal, no
lugar chamado Pavimento, em hebraico Gábata" (19,13). Ora, não conhecemos qualquer palavra ou nome
hebraico como Gábata, tendo sido apresentadas teorias de toda espécie para emendar o texto colocando-se
alguma palavra similar no lugar de Gábata.19 Mas isso não tem sentido, porque o grego "pavimento de
pedra " pode ter sido simplesmente apresentado de modo errôneo ao evangelista, que não sabia hebraico,
como se chamando Gábata em hebraico ou aramaico. Qualquer que seja o sentido de Gábata, basta
sabermos que é certamente idêntico ao grego "pavimento de pedra"; e esse "pavimento de pedra" seria um
pátio pavimentado confinando com a praça pública ou o caminho por onde o povo teria acesso direto às
dependências do palácio. Há um relato em Josefo segundo o qual, quando um governador decidiu realizar
um julgamento em público, como num fórum romano, ele não o fazia em praça pública na cidade, mas
diante do palácio do rei, para onde mandava levar seu "banco de julgamento" (a sella). Assim, diante do
- 76 -
palácio havia um pátio pavimentado que, embora pertencente ao palácio, e presumivelmente separado da
praça pública vizinha por portões que podiam ser fechados e abertos à vontade, estava aberto ao público
em geral ou em ocasiões específicas, tendo sido nesse pátio, segundo João, que a sentença foi pronunciada
e onde se permitiu ao povo esperá-la.
O fato de que os procedimentos não foram totalmente realizados in câmera, mas apenas a tomada dos
depoimentos e a audiência dos argumentos, ao passo que a sentença foi pronunciada de público, é outra
conclusão que pode ser validamente extraída do relato joanino. Não encontrei qualquer declaração
explícita de que, de acordo com a lei romana, a sentença tivesse de ser pronunciada publicamente, mesmo
que o julgamento fosse realizado in câmera; mas no direito moderno há ampla autoridade para uma
proposição como essa, e não é impossível que o evangelista soubesse ou tenha ouvido falar de
governadores que assim costumavam agir. Há uma razão muito boa para se pronunciar todas as sentenças
de público: uma execução sem anúncio prévio da sentença e dos seus fundamentos pareceria, aos olhos
dos não informados, um assassinato judicial ou tirânico, enquanto o anúncio público de uma sentença
fundamentada, mesmo depois de um julgamento secreto, tornaria a execução inteligível e justificada,
como um exercício apropriado do poder judicial. Podemos, portanto, com segurança, presumir que
enquanto o julgamento de Jesus foi realizado no praetorium, sem a presença ou admissão de quaisquer
membros do público, e enquanto durou, as pessoas esperaram no pátio em frente ao palácio.
Mas, como vimos, João relata que o governador "saiu " do palácio não apenas para pronunciar a sentença,
mas também, mais de uma vez, para falar com "os judeus" e ouvir o que tinham a dizer, enquanto ainda se
realizava o julgamento; e pelo menos uma vez levou Jesus para fora com ele para confrontá-los. Em lei ou
em procedimento não havia, é claro, precedente ou justificação formal para esse comportamento, embora
um estudioso erroneamente sustente que os juízes romanos, inclusive os governadores, inquiriam
invariavelmente a vox populi e julgavam segundo a vontade do povo reunido. A verdade é que o autor de
João teve antes dele a tradição já transmitida e perpetuada nos três Evangelhos Sinópticos, segundo a qual
foram os principais sacerdotes, anciãos e escribas dos judeus, e "multidões" judias, que persuadiram
Pilatos a condenar Jesus e insistiram na sua crucificação; quando o Evangelho segundo João foi escrito,
essa tradição estava demasiado bem estabelecida para ser posta de lado, sendo além disso, especialmente
para o autor deste Evangelho, um fundamento demasiado bem-vindo e indispensável para acusar antes os
judeus do que o governador romano, cumulando-os de responsabilidade, para que fosse suprimido. Assim,
João conseguiu inserir a história da presença dos "judeus", quer como denunciantes, espectadores ou incita
dores ruidosos, quer desempenhando qualquer outra função que os Evangelhos Sinópticos lhes atribuíssem
no seu próprio relato de um julgamento realizado in câmera, fazendo com que o governador repetidamente
interrompesse os procedimentos e saísse do praetorium para ver o povo.
O resultado desses esforços é tão grotesco que beira o absurdo: que orgulhoso governador romano ficaria
pulando do seu augusto-- assento de juiz, a intervalos irregulares, e correndo para o pátio a fim de falar a
uma malta de nativos? Basta propor a questão para descartá-la como sem sentido. O governador estava
cercado dos seus apparitores, ou amanuenses do tribunal, e dos guardas e funcionários; se quisesse
informação de todos ou de um só do lado de fora, teria mandado um apparitor ou um funcionário trazer
quem quer que ele desejasse consultar no praetorium, mas nunca se teria dado ao trabalho de levantar-se e
sair pessoalmente, e mui certamente não pelo motivo um tanto impertinente de que, indo à sua presença,
algum desgraçado judeu se "contaminaria"! Como mostraremos depois, o governador na verdade, não
desejou nem precisou de informação de qualquer judeu que estivesse esperando do lado de fora; e se só
queria informá-los de que não achara em Jesus "crime nenhum" (18,38), ele poderia e teria se dirigido ao
assento de julgamento no pátio pavientado e pronunciado a sentença de absolvição. Foi, com efeito,
exposta a tese de que, sempre que Pilatos saiu para falar com os judeus no pátio, ele o fez para pronunciar
a absolvição formal de Jesus, mas não se explica por que ainda se permitia que continuassem os
procedimentos.
Ajustar o relato correto de um julgamento in câmera ao papel atribuído aos judeus na audiência impôs ao
autor do Evangelho segundo João uma tarefa verdadeiramente formidável: se eram os judeus que queriam
que Jesus fosse julgado e crucificado, por que motivo eles próprios não fizeram ambas as coisas? Por que
entregá-lo ao governador romano para julgamento in câmera, onde não teriam tido qualquer oportunidade
de estar presentes e formular sua exigências e acusações? Por que engrendrar procedimentos em que
teriam de se fazer ouvir da maneira menos ortodoxa e intrinsecamente improvável? Nenhuma dessas
- 77 -
dificuldades acometeu os autores dos Evangelhos Sinópticos; primeiro porque elas fazem com que o
próprio Sinédrio julgue Jesus, e, segundo, porque, na versão deles, Pilatos julgou Jesus em público, ou
assim parece. Mas João, que corretamente abandonara a tradição de um julgamento pelo Sinédrio e, ainda
corretamente, faz com que o julgamento diante de Pilatos ocorra in câmera, vê-se diante do dilema de que
os judeus, embora não presentes, tinham de tomar parte e, embora desejosos de ver Jesus executado, não
haviam julgado e executado eles próprios. Vejamos como o evangelista resolveu esse dilema.
Pilatos "saiu para lhes falar e lhes disse: Que acusação trazeis contra este homem?" João 18,29, indicando
que, até então, nenhuma havia sido trazida. Isto é -para dizer o mínimo -muito surpreendente: como podia
Jesus ter sido admitido no praetorium, se não houvesse uma acusação contra ele? Se até então não fora
indiciado, não lhe seria permitido entrar, não mais do que seria permitido a qualquer outro membro do
público. Ou, se com efeito havia uma apreensão quanto à impureza em relação à entrada, ela seria forçosa-
mente aplicada a Jesus, como a qualquer judeu. Está inteiramente fora de questão que os policiais do
Templo, ou qualquer autoridade judia, pudesse entregar um homem para julgamento perante o governador
romano e tê-lo, desse modo, aceito pelos soldados que guardavam o palácio, sem que fosse conhecida a
acusação contra ele e sem o consentimento prévio do governador para julgá-lo. Além disso, como
sugerimos, uma coorte romana, sob o comando de um tribuno, jamais teria sido destacada para prender
Jesus, a menos que já houvesse uma acusação contra ele. Tampouco o governador estaria pronto para se
instalar em seu tribunal, de manhã cedo, para julgar Jesus, a menos -e vale a pena repeti-lo -que ele já
tivesse, por antecipação, conhecimento do julgamento e do que se tratava. Para dar a melhor interpretação
possível ao relato joanino, temos de presumir que havia alguma acusação contra Jesus diante do
governador quando ele foi primeiro levado ao tribunal; que o governador abordou a acusação interrogando
Jesus a seu respeito e não se convenceu de que ela podia ser sustentada, quer por motivo de falhas formais
ou outras, quer por motivo de dúvidas jurisdicionais; e que, sendo informado de que "os judeus" haviam
entregue Jesus para julgamento, ele saiu para perguntar aos "judeus" se não dispunham de melhor
acusação contra ele.
Em vez de darem ao governador uma resposta e de formularem uma acusação específica, alega-se que os
judeus "responderam-lhe: Se este não fosse malfeitor, não te entregaríamos" (18,30). Isto não é menos
surpreendente: se os judeus estavam assim tão interessados em fazer com que Jesus fosse julgado por um
crime capital, porque não aproveitaram a oportunidade que lhes foi proporcionada e formularam uma
acusação conveniente? Por não terem dado uma resposta direta e objetiva à pergunta do governador e
terem deixado de acusar Jesus de um crime capital na hora, eles puseram em perigo o propósito mesmo
pelo qual estavam alegadamente ali. A reação natural do governador à resposta evasiva e até certo ponto
pouco respeitosa deles teria sido libertar logo Jesus: Se vós não quereis revelar as acusações específicas
que podeis fazer contra Jesus, nada terei a ver com ele e não perderei o meu tempo. Na suposição, no
entanto, de que ele já tinha em mãos uma acusação que achou inadequada, a resposta dos judeus presta-se
também a uma melhor interpretação: antes de formular sua pergunta, Pilatos deve ter-lhes dito que havia
examinado a acusação que lhe fora apresentada e a achara deficiente; ao que replicaram os judeus: nunca
entregaríamos uma pessoa acusada para ser julgada por vós, a menos que dispuséssemos de fortes provas
para sustentar nossa causa; e as acusações apresentadas contra Jesus são bem sustentadas por prova que
devidamente o convencerão de que ele é, com efeito, "um malfeitor". Consta que Pilatos lhes teria falado:
"Tomai-o vós outros e julgai-o segundo vossa lei" (18,31): se haveis investigado a acusação e a achado
sustentada por provas suficientes, por que não julgastes vós mesmos a Jesus? Por que entregá-lo a mim
para julgamento, e não aos vossos próprios tribunais? Se estais certos de que as acusações formuladas
contra Jesus revelam um crime capital, e de que há forte prova de sua culpa, poderíeis tê-lo condenado e
executado vós mesmos! Mas diz-se que os judeus responderam: "A nós não é lícito matar ninguém (ibid.);
teríamos de bom grado julgado Jesus e o executado, se pudéssemos -mas não temos esse poder, segundo
as leis, e, portanto, não tínhamos escolha, a não ser entregá-lo a vós para julgamento. Como vimos, essa
resposta, colocada na boca dos judeus, foi geralmente compreendida como uma admissão peremptória de
que os tribunais judeus não tinham jurisdição para julgar crimes capitais ou executar sentenças capitais;
mas podia também ser interpretada como uma afirmação inteiramente não técnica da ilegalidade, segundo
a lei judia, de "executar um homem". Nós judeus, eles poderiam ter dito, não matamos pessoas; temos de
obedecer ao mandamento divino: "Não matarás" (Êxodo 20,13), que é uma das nossas leis fundamentais e
mais sagradas; é por isso que este homem, sendo acusado de um crime capital, nós o entregamos a vós, de
- 78 -
preferência a matá-lo nós mesmos. Esse tipo de argumento lembra a posição que a Igreja assumiu nos dias
da Inquisição; como a Igreja detesta o derramento de sangue (ecclesia abhorret e sanguine), os heréticos
condenados eram entregues ao braço secular para a execução; de acordo com o direito canônico, qualquer
sacerdote que participa de uma condenação e sentença capital é culpado de "irregularidade": as mãos dos
sacerdotes devem estar limpas, e o sangue -mesmo dos culpados -as mancharia. Não sei se a Igreja adotou
essa linha de pensamento por causa do que o evangelista pôs na boca dos judeus; mas, de uma maneira
similar àquela que posteriormente a Igreja recorreria para argumentar, os judeus podem ter dito a Pilatos,
ou assim pensou o autor do Evangelho: Nós estamos com efeito convencidos de que este homem é
culpado de um crime capital e que, de acordo com a nossa lei, ele deveria ser executado; mas nós não
derramamos sangue, sequer dos culpados, porque de acordo com a nossa lei -diferentemente da lei romana
-é Proibido matar e nos tomamos impuros, por isso fazemos o humilde pedido de que vós o julgueis e o
executeis. A experiência prática que a Inquisição iria adquirir serve para mostrar que "o braço secular" não
resiste normalmente a aceder a tal petição. É verdade que certos benefícios materiais, como uma parte da
propriedade confiscada ao condenado, iam para o braço secular, em consideração dos seus serviços; mas
então também era a norma da lei judia que a propriedade dos condenados executados pelo rei ou
governador passassem ao tesouro do rei ou governador, enquanto a propriedade de um condenado
executado por ordem de um tribunal passava para oS seus herdeiros legais. O governador teria, então, de
acordo com a lei judia, direito à propriedade de qualquer condenado executado pelas autoridades romanas.
Mas presumamos, como geralmente se faz, que o que os judeus disseram a Pilatos foi, com efeito, que não
possuíam jurisdição para julgar Jesus e executá-lo, e, portanto, não lhes restava outra opção a não ser fazê-
lo julgar por Pilatos. É verdade -como vimos -que, se Jesus foi acusado de um crime de acordo com a lei
romana, os tribunais judeus não teriam jurisdição para julgá-lo: sua jurisdição limitava-se estritamente, de
acordo tanto com a lei romana quanto a judia, a crimes conhecidos e puníveis pela lei judia; e quando o
crime era conhecido e punível tanto pela lei romana como a judia, eles só podiam reivindicar jurisdiçãO
na medida em que o governador romano não o fizesse. Pareceria, no entanto, que todo o problema
jurisdicional não teve importância real sobre a questão diante de nós: se o autor do Evangelho segundo
João teve de adaptar sua história à que é narrada nos Evangelhos Sinópticos, seu ponto de partida deve ter
sido que Jesus já havia sido julgado e condenado pelos "judeus" por um crime segundo a lei judia, a saber,
blasfêmia, crime este que, com efeito, fazia parte da sua jurisdição exclusiva. Por que motivo então ele
não pôs na boca dos judeus a resposta muita mais simples e franca: já o julgamos e consideramos culpado,
mas, possivelmente, não dispomos de poder para executá-lo ou preferiríamos que vós ordenásseis sua
execução? Além disso, mesmo se, para os objetivos do Evangelho segundo João, descartarmos o
julgamento judeu dos Evangelhos Sinópticos, muitos crimes segundo a lei judia poderiam ser atribuídos a
Jesus, caso os judeus realmente quisessem julgá-los: o interrogatório pelo sumo sacerdote de noite, tal
como relatado por João (18,19), não parece ter revelado qualquer crime julgável e punível só pelo
governador romano, distintamente dos crimes julgáveis apenas, ou também, pelos tribunais judeus. As
coisas que Jesus "ensinou na sinagoga e no Templo, onde se reúnem todos os judeus" (18,20), podiam ser
crimes -se o fossem -de acordo com a lei judia, não menos do que de acordo com a lei romana.
Qualquer que possa ser a interpretação mais plausível da pergunta e da resposta que lhe foi dada, sugiro
que ambas são muito improváveis e anacrônicas para que se as aceite como verdade. O governador
romano era pessoalmente encarregado da administração judicial de sua província e exercia pessoalmente a
jurisdição de que se revestia o imperador, em virtude da soberania romana sobre a província que
governava. Constituía uma de sua principais tarefas e funções zelar para que os tribunais locais não
excedessem sua jurisdição, invadindo esta soberania. Penso ser totalmente inconcebível que o governador
dirigisse ao povo local uma pergunta sobre qual era a sua própria jurisdição e qual a dos tribunais locais.
Não é menos impensável que ele reconhecesse na resposta que as pessoas dessem um caráter de
declaração autorizada e conclusiva da lei -e ainda uma resposta errada e inexata. Se, por acaso, um
governador não estivesse, bem informado dos limites da jurisdição dos tribunais locais, ele tinha
apparitores e outros conselheiros instruídos na lei a quem consultar, e não buscaria informação junto a
fontes locais que, à parte seu caráter inerentemente não fidedigno, tinham a natureza de uma parte
interessada. E se, caso chegasse a um governador uma informação desse tipo procedente de fontes locais,
certamente ele a testaria com seus próprios consultores legais antes de tomá-la como base de ação. O
espetáculo do governador romano saindo do seu tribunal para perguntar ao povo, reunido de lado de fora,
- 79 -
por que não queriam julgar seu prisioneiro e aquiescendo com a substância do que respondiam, de que,
não obstante seu convite, não dispunham de poder para fazê-lo, é demasiado grotesco para que se lhe dê
crédito. Qualquer teoria jurisdicional fundada nessa informação, que teria sido dada a Pilatos pelos judeus,
não se sustenta mais do que sobre falácia e ficção.
Como as pessoas sempre acreditam em tudo o que querem acreditar , o autor do Quarto Evangelho
conseguiu resolver seu problema: os judeus queriam muito julgar Jesus eles próprios, mas não o podiam,
porque lhes faltava jurisdição quer para julgá-lo ou executá-lo, ou para ambas as coisas, e, portanto,
tinham de entregá-lo a Pilatos para julgamento e execução. E porque "os judeus" é que teriam realmente
julgado Jesus se apenas lhes assistisse o poder de fazê-lo, com Pilatos não passando para eles de uma
espécie de locum tenens, seu substituto, por assim dizer, era inteiramente apropriado para o governador
interromper repetidamente o julgamento e pedir conselho e assistência daqueles que o pratrocinavam, "os
judeus ", os quais, por lamentáveis tradições ritualísticas próprias, não entravam no tribunal e aguardavam
fora. Foi dessa forma que o autor do Evangelho segundo João conseguiu também ligar-se aos outros
Evangelhos e criar a impressão de que se, como aconteceu, Pilatos julgou Jesus, só o fez ostensivamente e
a pedido dos judeus: não partiu o julgamento de sua própria iniciativa e de seu sentido pessoal de dever ou
convicção de justiça, mas antes contra o seu melhor entendimento, só por causa da insistência e da
intransigência dos judeus. Surge portanto o problema de saber -e não apenas na história tal como relatada
no Evangelho segundo João -se, nas circunstâncias que prevaleciam, e tendo em vista o que sabemos da
lei e procedimento romanos, era realmente possível para os judeus, quem quer que fossem, ter tomado
parte tão ativa no julgamento diante do governa- dor quanto a que lhes é atribuída.
Para sondar essa questão, presumiremos -sem acreditar que os judeus estavam presentes ao julgamento,
tenha ele sido realizado publicamente, como pareceria pelos Evangelhos Sinópticos, ou que o governador
apenas conversou com eles de vez em quando, como relatado em João. Pilatos ouviu os acusadores Lucas
23,2; Marcos 15,3; Mateus 27,12 e não encontrou falta nele João 18,38; Lucas 23,4; Marcos 15,14;
Mateus 27,23; mas os judeus, aos quais nada impressionou o que Pilatos achou, continuaram a insistir que
Jesus fosse executado, gritando repetidamente, "Crucifica-o, crucifica-o!" João 19,6-15; Lucas 23,21-23;
Marcos 15,13-14; Mateus 27,22-23. Muitos já chamaram a atenção para o fato notável de que o onipotente
governador romano, cercado de funcionários e soldados, presidindo a um julgamento e investido de sua
majestade imperial, pedisse aos cidadãos locais conselho sobre como tratar um criminoso preso diante
dele ou, ao distribuir justiça, levasse em conta apelos populares histéricos. Esta idéia foi desacartada como
inacreditável. Ainda menos acreditável é que ele tenha crucificado Jesus só por causa do sanguinário
clamor das insistentes "multidões" e se permitido, assim, ser reduzido a um instrumento nas mãos dessas
multidões para cometer um assassinato desumano. Se julgou Jesus inocente, isto é, não perigoso para os
interesses romanos, nada teria sido mais fácil para o governador do que absolvê-lo e libertá-lo. E não
apenas isso: ele teria presumivelmente tomado medidas punitivas drásticas contra todos que haviam
injustamente acusado Jesus e, pior ainda, a despeito do fato de que o governador nada encontrara de
errado nele, haviam insistido"na sua crucificação. À primeira vista, esse estridente clamor pelo sangue de
um homem inocente equivaleu a uma tentativa totalmente imprópria para perverter e frustrar o curso da
justiça: o governador -ou a isso somos levados a acreditar -sofreu pressão para adotar uma sentença
contrária ao seu próprio juízo e em total desrespeito a suas próprias conclusões. A seu ver, uma tentativa
como esta não seria apenas gravemente insolente e um crime, mas também poderia envolvê-lo num
comportamento criminoso: a própria admissão de prova sabidamente falsa era punível de acordo com a lei
romana e a execução de um acusado que se sabia inocente seria, no direito romano, um assassinato pelo
qual o governador responderia pessoalmente. Uma lei adotada no ano 59 a.C., que permaneceu em vigor e
foi mais tarde codificada impunha aos juízes e governadores o dever de restituir qualquer suborno ou
outro benefício que houvessem recebido por desvio da justiça, bem como responsabilidade penal por
qualquer julgamento numa causa criminal sob influência de pressão de qualquer parte de fora interessada.
É bem verdade que se relata que muitos governadores em muitas províncias ordenaram execuções ilegais:
alguns foram devidamente julgados e punidos; outros escaparam totalmente impunes mas todas estas
usurpações do poder judiciário foram instigadas por motivos pessoais dos governadores em causa, em
geral por motivo de vingança pessoal, mas em nenhum lugar tal execução fora praticada a pedido e sob a
pressão de nativos e gente estranha, ante a total indiferença pelas inclinações pessoais -e expressamente
manifesta- das -do governador .
- 80 -
Anteriormente lançamos um olhar sobre a teoria de que os juízes e governadores romanos costumavam
julgar segundo a voz populi e que, portanto, se pode razoavelmente presumir que Pilatos perguntou à
população local o que fazer com o criminoso que ele julgava; este, diz-se, era um procedimento que todo
juiz romano ou governador consideraria cabível no despacho normal dos assuntos judiciários. Na
realidade, no entanto, conhece-se uma norma expressa do direito romano que tem exatamente o efeito
oposto, e embora date de um período ulterior, não há motivo para duvidar que ela reafirma uma tradição
legal bem estabelecida. A lei diz: Vanae vocês populi non sunt audiendae37 -As vozes vãs do povo não
devem ser ouvidas. O que os proponentes daquela teoria inteiramente errônea podem ter tido em mente foi
talvez a provocatio, mediante a qual todas as sentenças capitais aprovadas contra cidadãos romanos
podiam ou tinham de ser submetidos à aprovação diante da assembléia do pOVO;38 mas a provocatio não
se aplicava a sentenças adota das pelo imperador, por um governador ou a sentenças contra não-cidadãos;
de qualquer forma, mesmo onde ela ocorria por aclamação e não por contagem de mãos, isto se passava de
maneira ordenada, e não mediante arengas não solicitadas e histéricas dirigidas aos juízes. Também é
verdade que, quando se realizavam julgamentos criminais em público, num fórum, os espectadores
podiam, por vezes, agitar-se e exprimir sua aprovação ou desaprovação vociferando, como as multidões
são inclinadas a fazer; mas em nenhum lugar encontramos um tribunal submetendo-se às imprecações das
massas em casos em que as provas apresentadas e as conclusões extraídas pelos juízes assinalariam algum
outro curso. É justo acrescentar que mesmo o autor que encontrou justificativa no direito romano para o
comportamento de Pilatos ao ouvir a opinião do povo admite que, ao fazê-lo, o governador cometeu "um
erro de tática, que nunca mais seria emendado".
Não menos irrealista e insensato que a atitude de Pilatos diante das agitadas exigências dos "judeus" é o
comportamento dos próprios "judeus". Abordamos a popularidade de que gozava Jesus, que encontrara
esta expressão pública inequívoca na acolhida jubilosa que lhe foi dada nas ruas de Jerusalém apenas uns
poucos dias antes. Que acontecera para que todos os seus admiradores e seguidores se tornassem, da noite
para o dia, seus assassinos e aparentemente implacáveis inimigos? Por que motivo devia o povo -as
"multidões" de pessoas -subitamente se voltar de um lado para o outro? O que teria Jesus feito para que se
operasse tal mudança de sentimento? Ou o que fizeram os principais sacerdotes, ou quaisquer outros
adversários de Jesus -se houvesse -, para produzir essa alteração radical na atitude popular para com ele?
Não há em qualquer dos Evangelhos a menor tentativa ou resquício de explicação. Foi dito que a atitude
servil de Jesus diante do governador convenceu o povo de que, afinal, ele não podia ser um verdadeiro
messias, pois o verdadeiro messias superaria certamente todas as adversidades e facilmente subjugaria o
governador e que o desapontamento em ver frustradas suas esperanças e abalada sua fé suscitou
sentimentos de ódio e vingança no povo. Mas o povo não pode ter visto Jesus diante do governador, a
menos que entrasse no praetorium, e por que motivo iria ali, para começar? Nas primeira horas matinais
da festa do Pessach ou da véspera, todos tinham certamente algo melhor ou mais urgente a fazer do que se
dirigir ao praetorium para ver se ocorria um julgamento criminal e do que se tratava. Além disso, toda a
tese é histórica e psicologicamente mal concebida: qualquer judeu que era julgado diante do governador
romano, independentemente de quem fosse e da acusação, teria automaticamente provocado a simpatia do
povo e ninguém se teria voltado contra ele; e quanto menores fossem suas perspectivas de absolvição e
mais grave o perigo de ele morrer, maior e mais forte seria a simpatia. E sendo o homem em julgamento
uma figura popular, amado das massas, o simples fato de ser processado diante do governador romano o
tornaria um santo mártir aos olhos do povo, e todo o ódio que se pudesse invocar concentrar-se-ia no
odiado estrangeiro. Assim, longe de esperar que seus líderes espirituais subjugassem o poder de Roma,
eles consideravam que "perecer nas mãos dos odiados romanos", os opressores de Israel, era "juntar-se à
venerada companhia dos heróis que haviam sacrificado suas vidas por sua fé ancestral" e pavimentado o
caminho para a salvação definitiva de Israel. Não se deve esquecer, no entanto, que, segundo os relatos do
Evangelho, não era apenas "o povo" ou "os judeus" que estavam presentes ao julgamento, mas também
"os principais sacerdotes, que "incitaram a multidão" (Marcos 15,11), e é dito que, qualquer que tenha sido
a atitude da população para com Jesus antes daquela manhã, ela agora estava convencida de que todo o
tempo os "principais sacerdotes" tinham estado certos em sua animosidade contra Jesus. Eles haviam visto
em Jesus, até então, não apenas um líder espiritual, messiânico que fosse, mas o "invencível rei dos
judeus, o herói guerreiro", que "ferirá a terra com a vara da sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará
o perverso" (Isaías 11,4 ). Logo de início, foram confrontados com o "mais alarmante e incrível"
- 81 -
espetáculo de seu grande libertador manietado, seu campeão inconquistável paralisado e mudo: "Como
pareceu feliz que os principais sacerdotes e as classes dominantes, até então desprezados por sua
colaboração com os opressores romanos, tivessem, com muita oportunidade, desmascarado aquele
fanfarrão, traidor e covarde! De repente, os principais sacerdotes subiram na estima do povo: revelaram-se
como os únicos homens que sempre haviam tido a opinião certa sobre Jesus de Nazaré! Receio que, longe
de resolver o enigma, essa teoria só aumente a complicação. Não era bastante que o povo mudasse
precipitadamente de opinião sobre Jesus: fizeram o mesmo, e tão precipitadamente, quanto aos "principais
sacerdotes" e às "classes dominantes"! Aqueles abomináveis colaboradores do inimigo e opressor, aos
quais o povo não prestaria a menor atenção, podiam, de repente, enrolar o povo em torno do dedo mínimo
e apenas porque não haviam participado da crença popular na fortaleza e no valor do herói do povo! Que
nos seja permitido retratar Jesus diante do governador -e por mais "sem fala " e mudo que ele possa ter
estado, não há a menor razão para se duvidar de que preservou a dignidade de atitude e a majestade de sua
aparência até o fim -e as "multidões" de seus desolados seguidores e admiradores olhando para ele como
um modelo. Por mais desapontados que se tenham sentido em seus corações porque ele não era, afinal de
contas, o invencível herói de suas esperanças, sua situação e sofrimento só podem tê-lo aproximado mais
deles -nenhum herói invencível, mas um judeu como você e eu, e ele estava sendo processado e se achava
em perigo porque fomos nós que o erguemos como um rei e revolucionário e queríamos que realizasse os
nossos sonhos de libertação do domínio romano. Qualquer um que, nessas circunstâncias, se levantasse e
dissesse: "Eu lhes disse antes -sempre soube que ele não era um herói, mas um mero simulador", correria,
penso eu, o risco de ser linchado. Os principais sacerdotes que, de qualquer forma -ou assim diz a teoria -,
colaboravam com o inimigo certamente teriam sido identificados com o governador romano, processando
ou julgando Jesus, se buscassem de algum modo justificar o processo ou o julgamento. Mas nunca
conseguiriam persuadir o povo de que processar um judeu era justificado, e certamente não aquela ação
judicial contra o homem que conheciam e amavam. Fizeram-se tentativas para se chegar a uma solução do
problema que nos confronta investigando primeiro a questão preliminar de quem eram "os judeus"
presentes ao julgamento: identificando-os, poderemos verificar se realmente ocorreu uma mudança de
pensamento e de atitude. Quanto aos principais sacerdotes, cuja presença, com ou sem escribas e anciãos,
é relatada por todos os Evangelhos (Marcos 15,3; Mateus 27,12; Lucas 23,4-23; João 19,6-15), mostramos
que, de acordo com o procedimento que prevalecia no tribunal do governador romano, eles não podiam ter
aparecido como acusadores formais descartando-se a teoria inteiramente irrealista de que pode ter havido
um acordo prévio ou entendimento entre eles e o governador romano para que Jesus fosse julgado e
executado. Pareceria, portanto, que eles não teriam estado presentes, quer como acusadores, quer para
fiscalizar a devida prática de tal pacto. Na ausência dessas razões, não se pode aduzir nem foi aduzido
fundamento suficiente para a presença dos principais sacerdotes, anciãos e escribas. Por outro lado, todos
os sacerdotes eram necessários para os deveres do Templo naquela manhã: nunca os sacerdotes estavam
tão ocupados e cheios de trabalho como nos dias de festa, mais particularmente na véspera e no dia de
Pessach. Exatamente o que não se deve pensar é que os "principais sacerdotes" se ausentariam do Templo
nesse dia para testemunhar num julgamento diante do governador romano, a não ser que a tal fossem
compelidos. É somente segundo Lucas (23,13) que Pilatos "reuniu os principais sacerdotes, as autoridades
e o povo", o que sugere que não tiveram alternativa, senão comparecer diante dele; mas os outros
Evangelhos indicam que os principais sacerdotes estavam presentes por sua própria vontade. Talvez os
principais sacerdotes tivessem de estar ali, do ponto de vista dos evangelistas, pela simples razão de que
haviam sido representados como os arquiinimigos de Jesus, que já haviam conspirado para mandar matá-
lo (Marcos 14,1; Mateus 26,3-4; João 11,47-53) e seriam os únicos agentes disponíveis para "incitar a
multidão" e que clamassem para que ele fosse crucificado. Que o povo tivesse de ser incitado por alguém
e não tivesse se empenhado em qualquer atividade contra Jesus sem uma instigação convincente parece ter
sido óbvio, mesmo para os evangelistas: assim, eles apresentaram os principais sacerdotes como os
instrumentos mais naturais e efetivos.
No entanto, ao assumir, como é razoável, que "o povo" não se deixaria instigar tão fácil e abruptamente a
voltar-se contra um homem que amava, muito menos que pelos "principais sacerdotes", a quem -se eram
inimigos de Jesus -o povo desprezava, e que, na realidade, não havia qualquer "principal sacerdote"
presente, alguns eruditos procuram deslindar o mistério mantendo que os judeus que se reuniram aquela
manhã no tribunal do governador romano eram pessoas que, em absoluto, não conheciam Jesus. Seriam
- 82 -
principalmente ociosos que nada tinham de melhor a fazer do que freqüentar julgamentos criminais,
encontrando alguma justificativa para sua existência ao contribuir com sua histeria para a administração
da justiça romana, essa histeria objetivando, é claro, conseguir a mais breve apresentação possível do
espetáculo de mais uma execução pública. Não podia haver pior decepção para esses espectadores do que
uma absolvição; daí sua impaciente e incessante interferência. , "Crucificai-o, crucificai-o! "Num recente
livro de pesquisa, foi elaborada uma teoria de "malta"similar da seguinte maneira:
Está no reino das possibilidades históricas que uma malta, incitada por adversários de Jesus, pode ter se
reunido fora do praetorium e gritado lemas de fúria e ódio vingativos. Uma manifestação da malta pode
ser interpretada como tendo sido preparada para convencer Pilatos de que as massas não faziam causa
comum com alguém que era acusado de sedição. Tal manifestação seria encarada como uma demonstração
de lealdade ao governo imperial -um golpe tático armado talvez pelas autoridades sacerdotais para provar
que a população da Judéia estava imune a ser aliciada à insurreição pela agitação política. O relato de
alguma manifestação como esta parece ter sido disponível aos evangelistas -e eles dele se apossaram na
tentativa de eximir o governador romano. Se uma manifestação pela malta nas ruas é historicamente
verossímil, sua influência sobre uma pessoa com a disposição autoritária de Pilatos pertence à província
da apologética.
É verdade que essas teorias da "malta" fornecem a resposta para a -de outra forma, irrespondível -questão
da rápida mudança de atitude do "povo". Mas logo suscitam uma nova questão: como podia o governador
romano se deixar influenciar pela "malta das ruas"? Sentado no seu alto banco de julgamento, ele era sem
dúvida capaz de ver e distinguir que tipo de povo estava presente e vociferava no seu tribunal; e se, como
juiz romano, ele não prestaria ouvidos à verdadeira vox populi, menos ainda daria atenção a multidões não
informadas de busca dores de sensações. Há uma diferença substancial entre a expressão ordeira da
opinião popular e os gritos histéricos das massas: a primeira é normalmente procedente e razoável; as
outra.s são sempre instintivas e espontâneas. Enquanto um juiz puder dar ouvidos à primeira e se deixar
influenciar por ela, sempre se guardará dos gritos das massas e não os tomará em consideração. Assim, se
era uma malta que estava presente, ela não poderia ter cumprido a tarefa que os Evangelhos lhe atribuem:
seu barulho e seus clamores não teriam nem poderiam ter causado qualquer impressão no governador.
Atribuir à apologética os relatos do Evangelho quanto aos efeitos da malta sobre Pilatos, como faz o autor
que acabamos de citar, não é melhor solução do que descartar toda a teoria da "malta" desde o início: se
nenhuma turba pudesse ter feito aquilo que lhe atribuem os Evangelhos, a conclusão lógica é de que não
havia nenhuma turba. Do ponto de vista da "possibilidade" histórica, ademais, é menos provável que uma
"malta" estivesse disposta a incitar o governador romano a mandar matar um judeu do que os sacerdotes
ou outros. Não era apenas a identificação patriótica com o judeu e o desamor ao romano que impediriam
as "maltas" judias de aceitar tal papel, mesmo por um bom dinheiro, mas principalmente o medo muito
justificado da represália dos zelotas, que não deixariam sem vingança um comportamento traiçoeiro como
aquele. Os próprios evangelistas devem ter sentido que a história das maltas ou "multidões" judias que
tomaram parte ativa no julgamento diante de Pilatos precisava de alguma base para ser plausível: eles o
forneceram no episódio de Barrabás. Lemos que "por ocasião da festa, costumava o governador soltar ao
povo um dos presos, conforme eles quisessem" (Mateus 27,15), e, é claro, "o povo" tinha de se apresentar
diante de Pilatos para fazer seu pedido ou escolha. segundo Marcos, o governador soltava "ao povo"
naquela festa "um dos presos, qualquer que eles pedissem" (15,6). "E a multidão, dando gritos começou a
pedir que fizesse como de costume" (15,8); para tal propósito, senão para outro, a "multidão" naturalmente
tinha de estar presente. Lucas diz que "era forçoso a Pilatos", isto é, presumivelmente, em virtude de
alguma lei expressa, "soltar-lhes um detento por ocasião da festa" (23,17), enquanto João descreve a
mesma coisa como sendo um costume judeu, com o governador dizendo a estes: "É costume entre vós que
eu vos solte alguém por ocasião do Pessach: quereis, pois, que vos solte o rei dos judeus?" (18,39). É
direito do "povo" como tal, estabelecido por costume, escolher o prisioneiro a quem será concedido o
perdão do governador, e isto, se nada mais, explica a presença de "multidões" no palácio do governador
naquela manhã de Pessach ou na véspera.
Os Evangelhos são iguais quando dizem que, confrontado pelo governador com uma escolha entre o
perdão a Jesus e o perdão a um certo Barrabás, o povo em altos brados clamou pela crucificação de Jesus e
que fosse solto Barrabás. Mas enquanto, segundo Lucas (23,18-21), João (18,40) e Mateus (27,20), o povo
fez isso por vontade própria, segundo Marcos (15,11) e Mateus (27,20) os "principais sacerdotes", com ou
- 83 -
sem "anciãos", tiveram de persuadir e instigar a "multidão" para aquela preferência fatal, estando aí a
insinuação de que, se não fosse essa instigação dos principais sacerdotes e anciãos, o povo teria, ou
poderia ter votado pela libertação de Jesus. O fato de que os principais sacerdotes, com ou sem anciãos,
são representados como resolvidos a mandar matar Jesus não é, certamente, coisa nova; mas foi dito que
eles devem ter tido um interesse particular em ver Barrabás perdoado, pois ele era um insurreto (Marcos
15, 7; Lucas 23,19), um zelota, e ainda por cima um zelota notável (Mateus 27,16), e que sua crucificação
pelos romanos teria decididamente levantado tumultos populares. Mesmo que assim fosse, sabemos pelas
bocas dos próprios principais sacerdotes, tal como relatado nos Evangelhos, que qualquer dano que
ocorresse a Jesus iria igualmente causar tumulto público (Mateus 26,5; Marcos 14 ,2), e enquanto os
Evangelhos proporcionam amplas provas da popularidade de Jesus, a de Barrabás é objeto de conjecturas.
A teoria torna-se ainda mais improvável se, de acordo com certos eruditos, presumirmos que o próprio
Jesus se tinha ligado aos zelo tas e, como Barrabás, compareceu diante de Pilatos acusado de insurreição
O episódio de Barrabás é introduzido nos relatos do julgamento numa fase em que Pilatos já havia
interrogado Jesus e externa do sua opinião de que ele era inocente (Lucas 23,14; João 18,38). E tendo
lembrado o costume do perdão de Pessach, os Evangelhos dão a impressão de que Pilatos desejava que o
povo pedisse antes a libertação de Jesus que a de Barrabás (Lucas 23,20; João 18,39; Marcos 15,9; Mateus
27,22), por fim cedendo ao povo contra a sua vontade e contra o seu julgamento (Marcos 15,5).
As incongruências dessa história são tantas que não se lhe pode atribuir qualquer historicidade. Foram
todas assinaladas antes, mas que me seja permitido enfatizar as seguintes:
1. Pilatos queria perdoar Jesus, ou a isso somos levados a acreditar; por que, então, não o perdoou?
2. Presumindo que existia esse privilegium paschale de o povo poder perdoar um prisioneiro, por que foi a
escolha limitada a Jesus ou Barrabás? Que dizer, por exemplo, dos dois condenados que foram
crucificados com Jesus?
3. E presumindo que o povo realmente era investido desse privilégio, eram as "multidões" que estivessem
ali presente suas beneficiadas? A quem representavam? Quais eram suas qualificações e credenciais?
4. Pilatos nada encontrara de errado em Jesus: por que não o absolveu? Por que devia ele perdoá-lo? O
curso que ele devia naturalmente seguir teria sido o de absolver e libertar Jesus, e depois perdoar Barrabás,
se assim o desejava, e também libertá-lo.
5. Barrabás não era apenas um insurreto e um zelota, mas também responsável por um assassinato
cometido durante a insurreição que chefiara (Marcos 15,7; Lucas 23,19). Temos de acreditar que essa era a
espécie de homem que Pilatos teria perdoado, mesmo a pedido do povo. Ele era um "notável" lutador da
resistência "que havia acabado de mostrar o quanto podia ser perigoso. Podemos perfeitamente perguntar
como Pilatos teria justificado sua conduta, tanto para os seus funcionários como para os seus oficiais
romanos, e, mais importante ainda, em seu relatório ao imperador Tibério".
6. Quando o governador viu que o povo vacilava quanto a quem perdoar e que era necessária a
intervenção e a persuasão dos principais sacerdotes e anciãos para ajudá-lo a decidir-se, ele poderia ter
tomado esta hesitação como indício suficiente de sua inclinação verdadeira e instintiva, e perdoado Jesus
por causa disso.
7. Não é razoável que o povo se deixasse "persuadir" pelos principais sacerdotes. Sabemos, fora de
qualquer dúvida, que não havia muita simpatia no coração das pessoas pelos "principais sacerdotes" no
poder, e a consciência política delas na época era tão desenvolvida que qualquer conselho dado, para não
falar em tentativa de persuasão, pelos principais sacerdotes teria sido encarado por elas como
extremamente suspeito, especialmente se dirigido contra um deles e contra alguém tão amado quanto
Jesus. Nem persuasores nem persuadidos se adaptavam ao papel que lhes foi atribuído. 8. Não é menos
improvável que tal persuasão possa ter sido exerci da in loco, na presença do governador. Ele certamente
teria interferido para deter tão flagrante ingerência. Se era a escolha do povo que ele queria,
presumivelmente não ia querer a escolha dos principais sacerdotes ou dos anciãos, ou uma proclamação
pelo povo não da sua própria seleção, mas a dos principais sacerdotes. 9. A não ser apenas pelos relatos do
Evangelho, não temos registro ou conhecimento da existência de qualquer privilegium paschale. Houvesse
tal costume existido e, a fortiori, tivesse existido qualquer lei romana ou judia que o estabelecesse
reconhecesse, teríamos em algum lugar encontrado um registro dele ou de sua aplicação, em ano
precedente ou subseqüente, e por algum governador mais suscetível à misericórdia do que Pilatos. Foi dito
que este foi um gesto só de Pilatos, sem precedentes e não emulado por qualquer outro governador, que
- 84 -
ele havia introduzido para cair nas boas graças do povo. Tal gesto, porém, destoaria inteiramente de tudo o
que sabemos sobre o caráter de Pilatos: nada, com efeito, estaria mais distante de suas inclinações do que
o desejo de angariar o favor de quem quer que fosse, muito menos dos judeus; além disso, se tal gesto de
propiciação tivesse sido praticado logo por Pilatos, entre todos os governadores, não poderia ter passado
despercebido e ignorado nas crônicas. Josefo, que "prestava especial atenção em registrar todos os
privilégios que o governo romano, em várias oportunidades, concedera aos judeus", em nenhuma parte
menciona um privilégio tão notável e, enquanto relata todos os atos condenáveis de Pilatos, cala sobre
esse extraordinário ato de compaixão: se josefo tivesse «por acaso esquecido" de mencionar o privilégio
como tal, é inexplicável que «através da sua longa narrativa circunstancial" ele não tivesse registrado um
só exemplo de um perdão pascal, se jamais algum foi concedido. A realidade é que não existia tal costume
e que o privilegium paschale não passa de imaginação". Entre as tentativas um tanto desesperadas para se
corroborar sua existência em fontes judias, uma merece alusão: «os prisioneiros a quem foi prometida
libertação do cárcere na véspera de Pessach" são incluídos entre as pessoas para as quais, embora
ausentes, é oferecido o sacrifício de Pessach, e ao fato de que existe esta categoria de prisioneiros atribui-
se a prova de que também havia o costume de se libertarem prisioneiros na véspera de Pessach.ss A
referência a prisioneiros destinados a serem soltos não sugere, na verdade, que ocorresse uma libertação
geral naquele dia particular: ela diz respeito apenas a prisioneiros isolados, aos quais acontecia ter sido
prometida a liberdade naquele dia, limitando-se a regra às promessas feitas por autoridades judias, já que
nunca se podia confiar nas promessas feitas por outras autoridades. Em outro contexto, encontramos
menção a prisioneiros que seriam soltos, a intervalos, entre o primeiro e os últimos dias de uma festa; isto
também não deve ser entendido como prova de qualquer costumeira libertação durante aquele breve
espaço de tempo, mas apenas como motivo para a norma de que o que as outras pessoas deviam fazer
antes da festa, os prisioneiros assim libertados podiam fazer durante ela. Enquanto, portanto, não há
fundamento para a opinião de que a lei judia reconhecia o costume de libertar prisioneiros, no Pessach,
encontramos no direito romano, com os últimos imperadores, o costume de perdoar criminosos
(indulgentia criminum) na festa de Pessach: um decreto do ano 367 dispõe que, "por causa do dia de
Pessach que Nós celebramos do fundo dos Nossos corações", todos os prisioneiros serão libertados, exceto
aqueles "culpados de sacrilégio contra a Majestade Imperial, de crimes contra os mortos, feiticeiros,
mágicos, adúlteros, estupradores e homicidas";ss um decreto do ano 370 diz que "a celebração de Pessach
exige que Nós perdoemos as pessoas agora atormentadas pela infeliz expectativa de investigação judicial
sob tortura e pelo medo de punição. Mas deve ser dedicada consideração aos decretos dos antigos para
que, temerariamente, Nós não permitamos que escape à punição o crime de homicídio, a desgraça do
adultério, o ultraje da alta traição e a violência do estupro". Em 385, o decreto já fala dos "perdões que
Nós estamos acostumados a conceder... logo que chega o dia de Pessach". Observar-se-á que esses perdões
do Pessach exigiam legislação do punho do imperador e que crimes capitais, em particular crimes com o
caráter de traição, não gozavam desta graça. Em tempos pré-cristãos, no entanto, o festival certamente não
teria suscitado indulgências, embora saibamos de clemências e perdões concedidos por ocasião de grandes
vitórias ou triunfos imperiais. Os indultos pascais ulteriores podem ecoar o costume relatado nos
Evangelhos, mas os Evangelhos não tinham tradição válida na qual confiar quando os relataram.
10. Não era o governador provincial, mas apenas o imperador em pessoa, que tinha o poder de conceder
perdões. O fato de um governador usurpar a prerrogativa imperial seria um crime, de acordo com a Lex
Julia, equivalente a abuso traiçoeiro de poder. Nenhum governador, em seu juízo, correria o risco de ser
chamado a prestar contas por exceder os seus poderes e a ser processado por crime de traição só para
conquistar as boas graças da população nativa. Nem há qualquer prova para sustentar a teoria de que o
imperador autorizara especialmente Pilatos a conceder perdões anuais.
Procurou-se identificar Barrabás e encontrar uma ligação entre ele e Jesus, e já se especulou que os
evangelistas tiveram acesso a alguma tradição quanto à existência dele que possa ter fornecido a pista para
o que dizem do privilegium paschale. Essas especulações são irrelevantes para nosso objetivo: quer
Barrabás tenha ou não existido, e qualquer que seja o laço que possa ter havido entre ele e Jesus,
permanece o fato de que não existia lei ou costume de se libertar um prisioneiro em Pessach e de que o
povo não escolhia qualquer prisioneiro para soltar; se um Barrabás foi, com efeito, libertado por Pilatos
naquele dia, o povo nada teve a ver com isso - não mais do que teve com a condenação ou crucificação de
Jesus. O povo nunca foi confrontado com a necessidade de escolher entre Jesus e Barrabás, por isso não
- 85 -
fez qualquer escolha; e exatamente porque não tinha motivo ou ocasião para se apresentar ao praetorium
do governador para exercer qualquer direito ou opção ligados ao perdão pascal, também não o tinha para
ali estar em virtude de qualquer outro assunto, inclusive o julgamento de Jesus.
A figura de Pilatos, tal como aparece nos relatos do Evangelho sobre o episódio de Barrabás, merece um
outro exame. Os evangelistas gostariam que seus leitores acreditassem que um magistrado romano que
tinha, como sabemos por Fílon e josefo, uma personalidade notavelmente rígida e era figura notória por
seu desprezo aos judeus, agiu como um autêntico fraco, desprovido de dignidade, eficiência e ânimo.
Convencido de que Jesus era vítima da malícia dos principais sacerdotes, Pilatos, em vez de agir com a
dignidade e firmeza que convinham a um magistrado romano, sustentado por uma força militar, e pondo
de lado a acusação contra Jesus, é mostrado recorrendo a um subterfúgio. Assim, representa-se-o
agarrando a oportunidade oferecida pelo costume como um meio de salvar Jesus, quando ele próprio tinha
a autoridade é o poder de rejeitar a acusação. Mas isso não é tudo. Quando os principais sacerdotes
confrontam seu subterfúgio, fazendo com que a multidão peça a libertação de Barrabás, ele é levado a
pedir debilmente ao povo: "Que farei então deste a quem chamais o rei dos judeus?" (Marcos 15,14).
Convém avaliar a fundo a inacreditável situação que as afirmações de Marcos implicam. Estava ali um
governador romano, sustentado por uma eficiente força militar, que, convencido da inocência de um
prisioneiro acusado de sedição pelas autoridades judias, recorreu a um costume não conhecido de outras
fontes para fazer o que ele sabia que era certo, isto é, libertar o réu. Frustrado seu subterfúgio, ele então
pergunta à multidão, que é aparentemente controlada pelos principais sacerdotes, o que deve fazer com o
prisioneiro. ..Se ele tivesse, com efeito, recorrido ao suposto costume para salvar Jesus, então Pilatos deve
ter sido não apenas inacreditavelmente fraco, mas também inacreditavelmente estúpido. Pois se Jesus era
o pacifista pró-romano que Marcos representa, seguramente Pilatos deve ter compreendido qual deveria
ser a decisão, se fosse deixada à multidão a escolha entre Jesus e um líder patriótico como Barrabás, que
atacara os opressores romanos. E há ainda a questão da libertação de Barrabás. Segundo Marcos, o
resultado do espantoso comportamento de Pilatos foi ele condenar à morte uma pessoa que ele sabia ser
inocente, libertando um lutador popular da resistência, provavelmente um zelota, que havia acabado de
mostrar o quanto podia ser perigoso.
Fico contente por poder citar e à dotar esta análise de um distinto teólogo cristão, o Professor S.G.F.
Brandon, que não é suspeito de exagerar sua opinião.
Não apenas os evangelistas deixam de apresentar qualquer razão inteligível pela qual Pilatos deveria estar
tão interessado em salvar Jesus, com exceção talvez do que se refere ao sonho da mulher de Pilatos,
relatado em Mateus, ao qual voltaremos, mas além de tudo, enquanto o retratam como um homem de boa
índole e misericordioso, que não queria ser cúmplice de qualquer mal contra o inocente Jesus, todos têm
de terminar a história com Pilatos "entregando" Jesus para a crucificação, sem qualquer razão ostensiva
para a sua imprevista mudança de intenção. Seu ponto de vista tendencioso os impeliu de tal maneira a
elaborar as coisas, que a culpa pela crucificação de Jesus foi inteiramente transferida dos ombros do
governador romano para os ombros dos judeus. Mas a tradição de que Jesus foi de fato, julgado e
sentenciado por Pilatos e crucificado pelas autoridades romanas estava mui solidamente entranhada para
ser posta de lado e substituída pelo mero conto de um julgamento e execução pelo Sinédrio. Assim, era
necessário dizer alguma coisa do que havia ocorrido no notório julgamento diante de Pilatos, mas
elaborado de tal maneira que Pilatos pareceria não ter culpa do desfecho. Dissemos que o primeiro passo
nessa elaboração foi atribuir aos judeus, quem quer que fossem eles, uma participação ativa e decisiva no
julgamento, se não como acusadores, então como detentores do privilegium paschale; ou quando não em
qualquer capacidade oficial, pelo menos como a multidão barulhenta e clamorosa que expressava a vox
populi. E mostramos que não apenas eles não podiam ter realizado qualquer dessas tarefas, mas, com toda
a probabilidade, nenhum deles sequer podia ter estado presente.
Devemos agora investigar o que realmente aconteceu no julgamento, e para tal partiremos da premissa de
que Pilatos, o juiz, não tinha nem uma índole particularmente boa nem era particularmente intratável, que
não era nem a favor de Jesus, nem predisposto contra ele. Se essa premissa confere demasiado crédito ao
Pilatos sobre cujo caráter real, como os leitores se lembrarão, temos um testemunho um tanto devastador,
seria, não obstante, apenas justo presumir que mesmo um homem cruel e usualmente colérico teria, no
exercício de suas funções, sido capaz de se controlar e se refrear. E como contra o depoimento dos
historiadores nós ainda contamos com a glorificação de Pilatos pelos evangelistas, à qual, em todas as
- 86 -
circunstâncias provadas, não se pode fazer concessão mais condescendente do que supor que ele cumpriu
seu dever apropriada e eficientemente e que não seria um homem respeitador das pessoas, mas que agiria
e se comportaria de acordo com a lei e o procedimento devidos.
Todos os Evangelhos concordam em que os procedimentos diante de Pilatos iniciaram-se quando o
governador dirigiu a Jesus a pergunta: "És tu o rei dos judeus?" (Mateus 27,11; Marcos 15,2; Lucas 23,3;
João 18,33). Isto sugeriria que foi por causa dessa acusação específica que Jesus devia ser julgado: a
ausência do relato de uma acusação formal não significa que nenhuma tenha sido proferida. A prisão de
Jesus por uma coorte romana na noite anterior pressupõe que uma acusação havia sido formulada, e a
disponibilidade do governador romano de manhã cedo para o julgamento só pode ser explica da se a
acusação fosse conhecida por antecipação. A primeira questão dirigida pelo tribunal ao acusado na
abertura do julgamento, se não se referiu a meras formalidades, teria naturalmente alguma relevância para
a acusação proferida contra ele, sendo a conclusão a de que Jesus foi acusado diante do governador
romano por pretender ser rei dos judeus, sem ser para tal designado ou como tal reconhecido pelo
imperador .
Uma prova conclusiva de que Jesus foi acusado por esse motivo é dada pela inscrição das palavras Rex
Judaeorum -Rei dos Judeus -na cruz em que foi crucificado. Todos os Evangelhos dão testemunho dessa
inscrição (Marcos 15,26; Mateus 27,37; Lucas 23,38;João 19,19), 'embora com pequenas variações. Era
lei em Roma que o crime pelo qual o condenado fora julgado culpado devia ser inscrito na cruz, para que
todos tivessem consciência do destino do infrator: titulus que causam poenae indicat, um título que
indicava o motivo da punição.67 No Evangelho segundo São João, diz-se que os principais sacerdotes
pediram a Pilatos: "Não escrevas: Rei dos judeus e, sim, que ele disse: Eu sou o Rei dos Judeus" (19,21),
isto é, que o crime pelo qual Jesus foi condenado não foi o de ser realmente um rei dos judeus, mas apenas
de ter afirmado ser. A recusa relatada de Pilatos em mudar o que estava escrito -"O que escrevi, escrevi"
(19,22) - poderia ser interpretada teologicamente como um implícito reconhecimento, por Pilatos, da
veracidade da afirmação de Jesus, mas, interpretada literalmente, significa simplesmente que a inscrição
bastava como estava. Também encontramos formas semelhantes de anunciar de público causa poenae
quando a punição não era morte; por exemplo, quando eram cortadas as mãos de um ladrão e se fazia com
que ele andasse com um cartaz explicativo;68 e vemos o titulus similarmente exposto quando um homem
acusado de praticar o cristianismo era obrigado a dar a volta no anfiteatro onde o governa- dor ia reunir
seu tribunal, com um cartaz proclamando: "Este é Átalo, o cristão".69 Em todos os casos a inscrição
assinalava a acusação pela qual o homem fora ou seria julgado, bastando para comunicar aos espectadores
o crime pelo qual ele fora ou estava para ser punido.
Segundo a lei romana, a reivindicação de ser rei de uma província sob domínio romano importava em
insurreição e alta traição: era, pela Lex Julia maiestatis originalmente decretada por César em 46 a.C. e
redecretada por Augusto em 8 a.C., um crime capital conhecido como crimen laesae maiestatis, o crime de
lesar a majestade do imperador. Essa lesão compreendia não apenas a traição propriamente dita, mas
também todas as insurreições e levantes contra o domínio romano, deserção das forças romanas,
usurpação dos poderes reservados ao imperador ou a seus nomeados, e todos os atos destinados a ameaçar
a segurança de Roma, do imperador ou dos governos nas províncias. A definição do crime, se com efeito
pode ser chamada de definição, é tão ampla que inclui praticamente tudo o que o imperador ou um
governador pudesse considerar danos aos interesses de Roma ou dele próprio: vemos até senadores e
cônsules decapitados por pequenos desrespeitos ao imperador ou piadas sobre ele. Certa vez um homem
foi executado porque no dia da eleição um arauto inadvertidamente o apresentou como imperador eleito,
em vez de cônsul. Por ser tão abrangente, tornou-se comum os acusadores, por medida de precaução,
acrescentarem a outras acusações de conduta criminosa uma de laesa maiestas, que, em qualquer caso,
podia ser facilmente estabelecida: assim, o procônsul de Creta foi acusado de desvio de fundos, mas a isso
foi acrescentada uma acusação de crime equivalente a traição, porque "naqueles dias ela suplementava
todos os indiciamentos"; e um crime "tão comum entre homens e mulheres", como o adultério, era
concebido como uma forma de traição para torná-lo capital. As pessoas suspeitas de um crime de traição
podiam ser torturadas até admitirem o crime, o que constitui mais uma boa razão pela qual os suspeitos
por outros motivos também fossem acusados de alguma coisa envolvendo traição. O crime de laesa
maiestas era, na verdade, desprovido de qualquer limitação legal e Não se prestava a uma definição exata.
A fórmula geralmente aceita era que a Lex Julia compreendia tanto os crimes nela expressamente
- 87 -
mencionados, quanto outros que mereciam punição severa "a fim de vingar o desregramento", uma
fórmula ominosa que lembra as leis penais em certos sistemas totalitários de hoje. Era poder do imperador,
e só dele, nomear qualquer "rei dos judeus". Ele o fizera antes, no caso de Herodes, e o faria novamente,
no caso de Agripa. Mas uma nomeação que não fosse feita pelo imperador, incluindo a autonomeação,
importaria não apenas na usurpação dos poderes imperiais, mas também numa negação da soberania do
imperador, além da insurreição e defecção em potencial que implicava. Manifestamente, uma tal rebeldia
provocava punição condigna "para vingar o desregramento, o desrespeito às leis", o que significava
sustentar o domínio e a autoridade romanos. Para que se cometesse e se consumasse o crime, pouco
importaria que o pretendente real agisse sozinho ou já tivesse seguidores entre o povo; mas o crime seria
mais grave, e o transgressor deveria ser encarado como muito mais do que uma ameaça, se houvesse
logrado levantar um apoio ativo. A recepção real a Jesus quando de sua chegada em Jerusalém, as grandes
multidões de entusiásticos judeus que o rodeavam sempre -essas coisas não podem ter sido ocultadas de
Pilatos, o que faz com que, aos olhos do governador, as pretensões de Jesus a rei não fossem um assunto a
ser facilmente negligenciado.
Há ainda outro aspecto da Lex Julia a ser observado: entre os crimes que ela relaciona, figura o
descumprimento, pelo magistrado ou juiz, inclusive governadores provinciais, do exercício da sua
jurisdição: o mandato do Imperador para administrar justiça era encarado como obrigatório também para
eles, para fazê-lo em todos os casos que se lhe apresentassem, e deixar de julgar criminosos, por exemplo,
significaria desprezo pela ordem do imperador. Quando um homem era suspeito de traição ou insurreição
contra o imperador, ou de tentar ou tomar iniciativas abertas para tal, seria igualmente traição da parte do
governador não o processar, julgar e punir de acordo com a lei: o governador não somente era competente
para julgá-lo, mas tinha a obrigação de fazê-lo. É verdade que um cidadão romano acusado de um crime
capital tinha o direito de objetar ao julgamento pelo governador e de pedir para ser ouvido pelo imperador
em Roma: assim, Paulo reivindicou ser julgado "perante o julgamento de César" (Atos 25,10) como um
cidadão romano (22,25-26) e, embora o governador pudesse tê-lo absolvido (26,32), ele foi devidamente
enviado a Roma (27,1). Mas quando o acusado era um nativo como Jesus, ou um cidadão romano que não
reivindicasse o privilégio do julgamento em Roma, o governador não tinha escolha: se uma acusação sob a
Lex Julia tivesse sido proferida, ele era obrigado a proceder ao julgamento.
Com o objetivo de exercer sua jurisdição capital, os governadores das províncias eram investidos do i us
gladii, o direito da espada, isto é, o direito imperial de ordenar e executar sentenças capitais. Não há prova
da afirmação de Mommsen de que os governadores da Judéia, ao contrário da generalidade dos
governadores provinciais, não detinham o ius gladii: não apenas o julgamento de Jesus, mas muitos outros
julgamentos por outros governadores relatados no Novo Testamento e por Josefo o desmentem. O ius
gladii era, de fato, inerente aos termos de nomeação do governador, não havendo necessidade de conferi-
lo expressamente: é o direito de governar, quando necessário, pela força e, como observamos, o
governador exercia seus poderes de governo inclusive no exercício de sua jurisdição criminal. Isso explica
igualmente a norma de que o ius gladii era atribuição pessoal do governador, não podendo ser por ele
delegado a qualquer outra pessoa, inclusive os tribunais locais, tanto assim que qualquer delegação
expressa seria, ela própria, como concessão não autorizada dos poderes imperiais, uma traição.
Recapitulando: a lei consistia em que quando um judeu, não sendo cidadão romano, era acusado de
menosprezo ao imperador ou crime de traição segundo a lei romana, ele devia ser julgado pelo governador
romano; e a acusação de se dizer rei dos judeus, sem buscar ou obter o prévio consentimento ou aprovação
do governador, configurava tal crime de traição. Quando um homem era julgado por uma acusação dessas,
abriam-se três caminhos ao governador: ele podia julgá-lo culpado e condená-lo (condemnatio); podia
julga-lo inocente e absolvê-lo ( absolutio ); ou podia achar que o caso não estava provado e pedir que
maiores provas fossem apresentadas ( ampliatio ) . Sabemos que ele podia recorrer e recorreria à tortura
para extrair uma confissão, mesmo quando houvesse depoimento de testemunhas; discutiremos esse ponto
mais minuciosamente adiante. Apenas num caso não eram necessários nem tortura nem depoimento, a
saber, quando o acusado confessava e se declarava culpado por iniciativa própria.
À pergunta do governador: "És tu o rei dos judeus?", Jesus replicou: "Tu o dizes" (Marcos 15,2; Mateus
27,11; Lucas 23,3; João 18,37). Importa isto em direito a uma declaração de culpa? Alguns eruditos acham
que isto implicava simplesmente uma recusa de Jesus a responder à acusação, não equivalendo seja a uma
confissão, seja a uma negação. Outros sustentam que implicava uma negação: em outras palavras, Jesus
- 88 -
disse ao governador: vós dizeis que eu sou rei dos judeus, mas eu não o digo em absoluto; isto parece ser
sustentado pela imediata reação do governador, se apenas segundo o Evangelho de Lucas: tendo ouvido a
resposta "Vós o dizeis", Pilatos disse: "Não vejo neste homem crime algum" (23,4).
Indubitavelmente, Jesus poderia ter sido menos equívoco, sendo sugerido que ele deliberadamente
preferiu ser vago ou que os evangelistas deliberadamente tornaram vaga sua resposta -com o objetivo de
realçar o mistério de sua missão. Em qualquer caso, a resposta parece não apenas não conter uma negação,
mas até conter uma admissão, em sílabas muito polidas e reverentes. A frase " vós o dissestes", ou "como
dizeis", não é desconhecida, mesmo na maneira moderna de falar, como um modo de afirmação; e no
aramaico e hebreu daqueles tempos era de uso regular e amplo,9° mais especial- mente como resposta que
aquiescia a perguntas embaraçosas formuladas por alguém em posição de autoridade.
Tivesse Jesus desejado negar a acusação, nada teria sido mais fácil para ele do que replicar a Pilatos um
não, claro e inequívoco: Eu não sou o rei dos judeus, nem nunca pretendi ser. Mas Jesus não quis
absolutamente negá-lo: a seus olhos, e em seus lábios, aquilo deveria significar a retratação de uma missão
em que ele, firme e sinceramente, acreditava. É muito significativo que, segundo João, Jesus não se
contentou com o formal "Vós o dissestes", mas logo prosseguiu dizendo que seu reino não era deste
mundo: "Se o meu reino fosse deste mundo, os meus servos se empenhariam por mim, para que não fosse
eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui... vós diz eis que sou rei. Eu para isso nasci e
para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade" (18,36-37). Embora as palavras colocadas
aqui na boca de Jesus datem claramente do período muito mais tardio em que foi escrito o Quarto
Evangelho, ainda assim é altamente provável que Jesus tenha acrescentado uma explicação para sua
condição de rei: seu reino não era deste mundo e, portanto, ele não era a espécie de rei que Pilatos poderia
imaginar. Se assim fez, tornar-se imediatamente plausível que ele se confessou culpado: ele era o rei dos
judeus, não num sentido político e secular, mas apenas num sentido teológico e moral, e o reino celeste
que ele reivindicava não era idêntico aos reinos políticos da terra, inclusive o Império Romano, nem em
qualquer sentido perigoso para eles. Como um autor jurídico assinalou, sua resposta tinha a natureza de
uma "confissão e de uma fuga": é verdade que, como dizeis, eu sou o rei dos judeus, mas o significado que
Vós conferis a "reina" nada tem em comum com o meu; eu não sou um rei no sentido em que o é vosso
imperador, mas um rei sui generis, e meu reino está além de qualquer coisa de que vossas leis tomariam
conhecimento. Presumindo que Jesus, com efeito, adotou esta posição, vejamos como Pilatos poderia ter
reagido.
No pensamento romano, em contraste com o judeu, não havia distinção clara entre reinos secular e divino:
enquanto os judeus estabeleciam como rei deles "um entre seus irmãos" cujo coração não podia se "elevar
acima dos seus irmãos" e que se submetia a todas as leis e mandamentos de Deus como qualquer outro
cidadão (Deuteronômio 17,15-20), o rei romano e o imperador tornava-se ex officio, por assim dizer, o
próprio Deus. Não que, para sua deificação, os imperadores necessitassem de qualquer origem divina,
revelação ou autorização por divindades diferentes deles próprios: eles eram peritos na autodeificação, e
para esse abraço pretensioso podiam confiar em precedentes que remontavam a Júlio César. Falando
praticamente, o propósito da deificação era garantir absoluta submissão, obediência e a veneração popular
que normalmente seria dedicada aos deuses. Através dos grandes códigos de leis, os imperadores ainda são
mencionados ou se mencionam como "imortais", seus palácios e quartos são chamados de "sagrados",
seus atos de legislação e codificação de "consagrações" por seus "nomes mais sagrados". Não apenas os
crimes contra suas pessoas e contra o seu domínio e soberania, mas também aqueles contra sua
propriedade privada eram classificados como sacrilégia, as pessoas que falavam em derrisão do imperador
eram consideradas "irreligiosas", e caluniá-lo era censurado como uma "impiedade". Contudo, o sacrilégio
real, tal como maldizer os deuses, não era um crime punível: podia-se confiar que os deuses tratariam
adequadamente os seus caluniadores, sem precisar de ajuda. As leis decretadas pelos imperadores eram
suas armas para a defesa da própria divindade. Uma reivindicação por qualquer mortal, dentro do Império,
de um título divino competitivo e exclusivo não podia ser admitida ou tolerada pelo imperador: ele era o
governante divino, com exclusão de todos os outros.
Portanto, enquanto do ponto de vista da linha de pensamento de Jesus as implicações messiânicas de sua
reivindicação de um reino celestial fossem perfeitamente legítimas, pela medida dos conceitos romanos de
Pilatos, sua reivindicação de uma base divina para o seu reino e de uma missão divina que transcendia
todas as limitações terrenas deve ter piorado muito as coisas: ali estava um homem que pretendia não
- 89 -
apenas ser O rei de um punhado de pessoas numa província remota, que era bastante perturbadora como
fonte potencial de agitação e insurreição; um homem que, para o seu governo, não tinha necessidade de
"servos" que por ele lutassem e o protegessem, ou de qualquer povo identificável para governar; o seu era
o reino dos céus, e "todo aquele que é da verdade ouve a minha voz" João 18,37; não havia outro
"verdadeiro" reino dos céus, a não ser aquele; o dele era do mundo inteiro e universal. Nessa arrogação de
um monopólio da verdade divina e do "reino" que a representava e a fazia vigorar estava implícita uma
negação da divindade de qualquer outro reino, inclusive o do imperador romano, que não duraria um só
momento, se não fosse pelos "servos" imperiais, pelas forças armadas de Roma, que por ele lutavam e o
protegiam. "Todo aquele que é da verdade" ouve a minha voz, não a do imperador. Tais pretensões
cheiram a traição, tanto mais grave porque não se confinavam, política ou geograficamente, e porque
professavam ser divinamente inspiradas e divinamente impostas. Segundo João, quando Pilatos ouviu
Jesus dizer que seu reino não era deste mundo, ele perguntou uma segunda vez: "Logo, tu és rei?" (18,37),
o que parece indicar que o próprio Pilatos alimentava dúvidas quanto a saber se, falando de "reis", ambos
compreendiam o termo no mesmo sentido. Se Jesus tinha pretensão a alguma missão transcendental e
misteriosa, limitada a teorias e exercícios puramente ideológicos ou teológicos, talvez o que ele chamava
de "reino" não fosse alvo do interesse do governador. Para certificar-se do que era, este formulou
novamente sua pergunta: era, com efeito, um "rei" na conotação política da palavra que Jesus reivindicava
ser? E Jesus respondeu: "Vós diz eis que sou um rei", não apenas "Vós o dizeis", mas "Vós dizeis
corretamente que eu, de modo real, sou um rei", embora, como eu disse antes, meu reino não é deste
mundo. Pilatos obtinha agora a afirmação que procurara, e a ênfase dada pelo evangelista ao acréscimo
das palavras "que eu sou um rei" indica que a frase "Vós o dizeis", empregada pelos evangelhos
anteriores, sempre fora compreendida como uma afirmação. Admitindo ser rei dos judeus, Jesus
efetivamente confessou-se culpado de ser rei: não havia a menor dúvida de que sua condição de rei,
qualquer que fosse, não fora autorizada pelo imperador. De acordo com a lei, a admissão teria bastado
para condená-lo sumariamente; mas os Evangelhos são unânimes em dizer que Pilatos nada fez. Não
apenas são os judeus -principais sacerdotes, anciãos, multidões, todo o povo - reintroduzidos para exercer
a função de induzir Pilatos, contra o seu melhor juízo, a crucificar Jesus, mas dois dos Evangelhos
interrompem a narrativa do julgamento para interpolar episódios estranhos -um o da mulher de Pilatos
contando-lhe o sonho que tivera na última noite, outro o do julgamento ser transferido para Herodes
Antipas. Consideremos primeiro estes interlúdios. Mateus relata que Pilatos, "estando no tribunal, sua
mulher mandou dizer-lhe: Não te envolvas com este justo; porque hoje, em sonho, muito sofri por seu
respeito" (27-19). Embora o sonho lhe tenha valido uma canonização póstuma, não parece ter
impressionado o marido. É difícil acreditar que a mulher do governador ousasse interrompê-lo no meio de
uma sessão do tribunal: o relato de que "sua mulher mandou dizer-lhe" sugere que o sonho lhe foi
comunicado por um mensageiro. Mas como o evangelista não poupa esforços para fazer com que o sonho
e a advertência sejam comunicados ao governador durante o julgamento, esperaríamos que isso tivesse um
propósito especifico. Já o governador é representado como desejoso de absolver ou perdoar Jesus: o sonho
e a advertência da mulher só poderiam ter fortalecido nele o sentimento da inocência de Jesus. Mas, longe
de acatá-los, ele oferece à "multidão" uma escolha entre Jesus e Barrabás, sendo o desfecho da mesma a
constatação de que ele "nada conseguia" (27,24). A crença nos sonhos como meios inequívocos de
revelações celestes e de agouros era tão comum e natural naqueles dias que se revestiam de uma realidade
ominosa, e ninguém que não fosse desequilibrado desprezaria um sonho como coisa sem sentido. O sonho
de sua mulher fora urgentemente comunicado a Pilatos, com a severa advertência de que ele nada tivesse
"a ver com este justo", mas também como uma confirmação de suas próprias tendências: como, em boa
consciência, podia Pilatos não reagia imediatamente e libertar Jesus? Podemos presumir que ele não era
menos sensível ao impacto de um presságio do que seus contemporâneos; além disso, não iria
menosprezar um sonho da sua mulher só para ouvi-la reprová-lo continuadamente, como acontece nas
relações matrimoniais se o sonho se realizasse. O evangelista não dá qualquer explicação para o escárnio
de Pilatos pelo sonho; sequer nos é contado se e como ele reagiu quando isso lhe foi comunicado. Foi
sugerido que sua mulher pode lhe ter contado o sonho de manhã, antes que se dirigisse ao tribunal, e que
foi essa a verdadeira causa, desde o início do julgamento, de estar ele tão favoravelmente disposto para
com Jesus; mas se foi isso que aconteceu, o evangelista teria situado a história antes do começo do
julgamento, e não no meio. O fato de a mulher ter comunicado o sonho ao marido só depois de começado
- 90 -
o julgamento é explicado por alguns eruditos como devido a ter ela reconhecido o prisioneiro no banco
dos réus como o homem que ela vira no sonho: "não há dúvida de que ela estava observando o processo de
alguma parte conveniente do prédio";91 mas se ela observava, e interferiu ativamente, é difícil
compreender por que motivo aquiesceu quando sua comunicação deixou patentemente de impressionar o
governador. O verdadeiro motivo pelo qual a história do sonho foi interposta pelo evangelista foi sugerido,
há mais de um século, por David Freiderich Strauss: os romanos daquela época atribuíam tanta
importância aos sonhos, que não se considerava completo um conto que não tivesse um sonho: "Quem não
teria, lendo sobre o sonho de advertência de Cláudia Prócula -o nome legendário da mulher de Pilatos -, se
lembrado do sonho de Calpúrnia, a mulher de César, na noite que precedeu o seu assassinato, e sua
advertência a ele para que não saísse de casa naquela dia; e quem não seria capaz de formar seu próprio
juízo sobre a história do Evangelho, tomando em consideração a voga e o gosto do tempo, por um lado, e
a especial predileção do evangelista por sonhos imaginativos, já evidente nos seus relatos da infância, por
outro ?"98 O fato de que havia uma "predileção pessoal" do autor do Evangelho segundo Mateus parece
confirmada pela omissão de todo o interlúdio do sonho nos Evangelhos posteriores, de Lucas e João, e
pela ausência de qualquer coisa do gênero na versão anterior de Marcos. Em qualquer caso, tenha ou não a
mulher de Pilatos sonhado aquela noite e comunicado seu sonho ao marido, e qualquer que tenha sido este
sonho, o episódio é irrelevante para os nossos propósitos, pois mesmo segundo Mateus ele não afetou em
nada o curso ou o resultado do julgamento. Pode haver alguma ligação entre a história do sonho e a
história, também só encontrada no Evangelho segundo Mateus, de que Pilatos "mandando vir água, lavou
as mãos perante o povo, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo: fique o caso convosco!" (27,24).
Trataremos dessa matéria com mais detalhe mais adiante; basta dizer aqui que, se o sonho de sua mulher
convenceu Pilatos de que Jesus era um homem "justo" e inocente das acusações formuladas contra ele, o
governador pode ter desejado selar a paz com os deuses declarando solenemente a própria inocência e
colocando o peso da responsabilidade sobre ombros judeus. Mesmo se, de acordo com a lei romana, ele
possa ter desejado condenar Jesus por este se dizer culpado, aos olhos dos deuses, que tinham leis
próprias, essa culpa técnica pelos padrões dos mortais pode não ter afetado o fato de Jesus ser, e continuar
sendo, um homem "justo". Assim, para agradar a todos, Pilatos procedeu segundo a lei formal,
condenando e sentenciando Jesus, livrando-se ao mesmo tempo de qualquer responsabilidade moral.
Talvez dessa forma possamos explicar a ausência, no relato do Evangelho, de qualquer reação da parte de
Pilatos ao sonho de sua mulher e o fato de não ter dado atenção à advertência, assim como a cerimônia
narrada de tomar da água e lavar as mãos, um ritual óbvio tendente, com toda a probabilidade, a aplacar os
deuses. O segundo episódio a ser considerado é recontado apenas no Evangelho segundo Lucas. Conta-se
que quando Pilatos ouviu que Jesus era um Galileu, concluiu ele que "pertencia à jurisdição de Herodes",
e como "este naqueles dias estava em Jerusalém", lho remeteu para julgamento. (23, 7). Herodes Antipas
era "tetrarca " da Galiléia e, embora sua residência oficial fosse Tiberíades, ele -como todos os judeus
-fazia peregrinações a Jerusalém três vezes no ano, uma delas pelo Pessach. "Herodes, vendo a Jesus,
sobremaneira se alegrou, pois havia muito queria vê-lo, por ter ouvido falar a seu respeito; esperava
também vê-lo fazer algum sinal. E de muitos modos o interrogou: Jesus, porém, nada lhe respondia. Os
principais sacerdotes e escribas ali presentes o acusaram com veemência. Mas Herodes, juntamente com
os da sua guarda, tratou-o com desprezo e, escarnecendo dele, fê-lo vestir-se de um manto aparatoso e o
devolveu a Pilatos" (23,8-11).O evangelista relata, num pós-escrito, que "naquele mesmo dia Herodes e
Pilatos se reconciliaram, pois antes viviam em inimizade um com o outro". (23,12); mas permanecemos
no escuro quanto à causa desta inimizade e quanto ao que, de repente, tornou-os "amigos". Para começar,
há uma clara dificuldade quanto à definição da hora em que tudo se passou. Lucas relata que a reunião do
conselho dos judeus só ocorreu "logo que amanheceu" (22,66). Se contarmos uma hora para a reunião e
meia hora para que Jesus fosse levado da casa do sumo sacerdote ao praetorium, Pilatos só poderia ter
começado o julgamento meia hora depois da terceira hora. Contam-nos que foi "por volta da sexta hora",
quando Jesus já havia estado na cruz por algum tempo, certamente por várias horas, que ele morreu
(23,44-46). No curto espaço de tempo disponível, seria muito difícil explicar os procedimentos que
ocorreram, mesmo segundo Lucas, diante do próprio Pilatos; também encaixar nesse tempo os
procedimentos diante de Herodes parece impossível, mesmo com o pressuposto inteiramente infundado de
que Herodes residia no mesmo palácio que Pilatos e de que não se perdeu tempo algum em transportar
Jesus de um lado a outro. Com efeito, muitos eruditos negam a historicidade do relato de Lucas sobre os
- 91 -
procedimentos diante de Herodes, havendo boas razões para se pôr em dúvida a tradição, além da
dificuldade relacionada com a questão do tempo.
Pilatos, lembramos, só enviou Jesus a Herodes depois de ter ele mesmo declarado: "não vejo neste homem
crime algum" (23,4). Cria-se a impressão de que Pilatos absolvera Jesus, mas que cedera ao clamor da
multidão em vista da possibilidade remanescente de que, embora inocente de qualquer crime segundo a lei
romana, ele pudesse ser culpado de um crime de que o tetrarca judeu viesse a tomar conhecimento. Vimos
que não era possível, legalmente, haver qualquer delegação dos poderes do governador inerentes ao ius
gladii para um tetrarca ou para quem quer que fosse,101 e tendo em vista a declarada inimizade entre
Pilatos e Herodes, é improvável que Pilatos tivesse deferido qualquer jurisdição governamental a Herodes.
Mas, por concessão romana, um tetrarca exercia jurisdição capital -e, com efeito, ilimitada -na província
sob o seu domínio; no caso de Herodes, a Galiléia, não sobre assuntos passíveis de serem julgados pelo
imperador ou governador romano, mas sobre todos os outros.
Embora esta jurisdição decorresse da lei romana e do título conferido pelo imperador, ela não tinha ser -e
dificilmente seria -exercida de acordo com aquela lei: na realidade, não importava aos romanos que lei
substantiva seus reis fantoches aplicavam ou se eles exerciam sua jurisdição em pessoa ou designavam
tribunais para este objetivo. A absolvição de Jesus por Pilatos não ia, portanto, impedir o tetrarca de
condená-lo e mandá-lo matar, se não pelo crime do qual acabara de ser absolvido, então por qualquer
outro. E, entregando Jesus a Herodes, Pilatos alcançaria de uma só vez dois objetivos: cederia aos judeus,
não por condenar Jesus contra o seu próprio discernimento, mas -desembaraçando-se deles e para que não
o importunassem mais -enviando-os e a Jesus a Herodes: que Herodes decidisse se havia alguma coisa de
errado com Jesus.
Nesse contexto, é importante observar que, enquanto os outros Evangelhos não especificam as
"acusações", formuladas contra Jesus pelos principais sacerdotes e anciãos, Lucas o faz: primeiro, eles o
acusam de "perverter a nação, vedando pagar tributo a César e afirmando ser ele o Cristo, um rei" (23,2);
em segundo lugar, que "Ele alvoroça o povo, ensinando por toda a Judéia, desde a Galiléia, onde começou,
até aqui" (23,5). As duas primeiras acusações se referem ostensivamente a crimes segundo a lei romana:
proibir de pagar tributo ao imperador e pretender ser ele próprio um rei seria traição segundo a Lex Julia.
A terceira, a de "ensinar por toda a Judéia", podia, não obstante, ser encarada à primeira vista como um
crime do qual os judeus, e não os romanos, tinham de tomar conhecimento.
Sem ela, faltaria a Pilatos uma justificativa para transferir o caso a Herodes, e desse modo ele proporciona
uma conveniente saída para o caso. Podemos registrar, entre parênteses, que nem diante de Pilatos, nem
diante de Herodes ouvimos qualquer acusação proferida que correspondesse às supostamente apresentadas
contra Jesus diante do conselho dos judeus naquela manhã, a saber, que ele era o Filho de Deus (22,70).
Enquanto isto se explica facilmente no que diz respeito ao julgamento diante de Pilatos, já que a pretensão
à origem divina sem implicações políticas seria um crime que caberia às autoridades religiosas judias
tratar, e não um crime julgável de acordo com a lei romana, ainda assim, quando todos compareceram
diante de Herodes, o judeu, não havia o menor motivo por que eles não lhe devessem ter explicado,
sucintamente, que Jesus já compare- cera aquela manhã diante do Sinédrio, pretendera ser o filho de Deus
e fora julgado culpado, "de sua própria boca" (22, 71). Tivessem eles feito isso, teriam firmado em
Herodes a impressão de que, tendo-lhe Pilatos transferido todo o caso, dependia dele agora executar um
julgamento já emitido pelo mais autorizado tribunal judeu. Mas eles apenas “ficaram presentes e o
acusaram veementemente (23,10), e não sabemos do que”.
Dizem-nos que Herodes desde já muito desejava conhecer Jesus (23,8). Será que Pilatos o sabia? Talvez
este pensasse que entregando-lhe Jesus poderia prestar um serviço a Herodes que depois seria
favoravelmente reconhecido pelo imperador, do qual temos alguma prova de que mantinha estreitas
relações com Herodes; 103 e não é verdade que somos informados pelo evangelista de que, por esse envio
de Jesus, a inimizade entre Pilatos e Herodes terminou e eles se tornaram amigos (23,12)? Mas, em
primeiro lugar, Herodes não fez mal a Jesus, mas o restituiu a Pilatos, o que é improvável que tivesse
feito, se alimentasse um verdadeiro interesse em pôr as mãos em Jesus; não foi certamente só para zombar
dele e fazê-lo vestir um manto aparatoso que Herodes o quis com tanta urgência; e, restituindo Jesus a
Pilatos intacto, o tetrarca indubitavelmente desapontou os "principais sacerdotes e escribas". Em segundo
lugar, Pilatos conhecia a amizade entre Herodes e o imperador, e sabia da inimizade entre Herodes e ele
- 92 -
próprio: transferindo o julgamento de um caso de laesa maiestas para ele, Pilatos teria se exposto a ser
denunciado por Herodes ao imperador; por que correria tal risco?
Pareceria, portanto, que a história da transferência do julgamento para Herodes foi uma interferência de
Lucas, o mesmo Lucas que, mais tarde, faz todos os "reis da terra" erguerem-se e os "dominadores" se
reunirem contra Cristo: "porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu Santo Servo
Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e povos de Israel" (Atos 4,26-27). Já
sabemos que, para os evangelistas, Pôncio Pilatos não bastava para arcar com a responsabilidade pela
morte de Jesus; para Lucas, para seus contemporâneos ou para o público a quem se dirigia, parece que os
judeus também não eram adequados: a eles era preciso acrescentar "os gentios", e o governador gentio
tinha de juntar-se ao rei judeu, para que pudesse ser dito que o mundo todo ergueu-se contra Jesus. Os
"gentios" podem ter sido os soldados romanos que, dizem-nos, zombaram de Jesus (Lucas 23,36); e o
papel atribuído a Herodes foi também, no principal, limitado a zombar (23,11 ): podia ser um papel
passivo, pois a carga de culpa teria mesmo de caber aos judeus, e não aos romanos ou seus fantoches. Foi
assim que Herodes pôde restituir Jesus a Pilatos e o julgamento diante de Pilatos pôde continuar, como se
não tivesse ocorrido em absoluto qualquer interlúdio com Herodes: é verdade que Pilatos foi
manifestamente inteirado de que Herodes nada descobrira contra Jesus (23,15), mas, em vez de aceitar
esta constatação como suficiente e bem-vinda para absolver e libertar Jesus, como ele próprio tencionara
antes fazer, ele novamente "reuniu os principais sacerdotes, as autoridades e o povo", reiniciando o
julgamento (23,13). Já que o interlúdio herodiano não mudou nem o curso, nem o resultado do julgamento
diante de Pilatos, poderíamos encará-lo como irrelevante para os nossos objetivos, como o interlúdio do
sonho da mulher de Pilatos. Mas observamos, entre as acusações a que se refere Lucas como tendo sido
apresentadas pelos principais sacerdotes e pelo povo, uma que parecia ser do conhecimento e da jurisdição
do tetrarca judeu, e não do governador romano; e a inferência consiste em que quanto "os principais
sacerdotes e escribas ali presentes o acusaram com veemência " diante de Herodes (Lucas 23,10), Jesus foi
antes acusado por esse crime judeu do que pelos crimes romanos. Ainda assim, Jesus nada respondeu
(23,9), presumivelmente para exprimir seu desprezo por Herodes, sua rejeição a ele e a sua competência
judicial. Quando, naquela manhã mais cedo, ele foi interrogado pelo conselho de principais sacerdotes e
escribas, isto é, pelo Sinédrio, ele replicara (22,67-70), o que foi em acentuado contraste, um
reconhecimento do seu direito de julgá-lo. Mas, tendo permanecido mudo diante de Herodes e não tendo
sido provadas as acusações contra ele, quer por sua própria confissão, quer por depoimento independente,
dificilmente Jesus poderia ser julgado culpado de qualquer crime por Herodes. Ora, devemos presumir que
tais considerações judiciais teriam impedido Herodes de mandar matar Jesus ou mandar encarcerá-lo:
ficamos sabendo que quando João Batista censurou Herodes por se ter casado com a mulher do irmão "ele
lançou João ao cárcere" (3,20), e não há menção de que João foi antes devidamente julgado e condenado.
O motivo por que Herodes tanto desejava ver Jesus era, como transparece agora, "porque ficou perplexo,
já que alguns diziam: João ressuscitou dentre os mortos; outros: Elias apareceu; e outros: ressurgiu um dos
antigos profetas. Herodes, porém, disse: Eu mandei decapitar João; quem é, pois, este de quem tenho
ouvido tais coisas? E procurava vê-lo" (9,7-9). Por fim, Herodes -ou assim nos é contado -tinha aquele
homem Jesus em suas mãos: não apenas tinha o governador romano pessoalmente o enviado e entregue à
sua jurisdição para fazer o que achasse adequado, mas "os principais sacerdotes e os escribas" foram
veementes em indiciá-lo e em dissociar-se dele. "Que teria sido mais simples para o tetrarca, ou mais
natural, do que aproveitar esta maravilhosa oportunidade para se livrar dessa possível reencarnação do
homem que ele decapitara? Não necessitava de prova formal de culpa, de condenação ou sentença formal:
podia fazer com Jesus o que fizera com João, com a diferença de que a morte de João deve ter provocado
uma repulsa popular, enquanto a morte de Jesus seria, ao que parece, aprovada pelos "principais
sacerdotes e escribas" e seus seguidores. Mas, em vez disso, Herodes "fê-lo vestir-se de um manto
aparatoso e devolveu-o a Pilatos"! Não a um Pilatos de quem Herodes podia ter certeza que, por fim,
condenaria e crucificaria Jesus, mas a um Pilatos que já decidira que o caso cabia à jurisdição de Herodes,
o que fazia com que, devolvendo-lhe Jesus, Herodes desobedeceria a ordem de Pilatos!
As acusações especificadas em Lucas de que Pilatos tomaria conhecimento, eram, primeiro, que Jesus
pervertia a nação e proibia que se pagasse o tributo a César, e, segundo, que ele pretendia ser rei. Pilatos
escolheu a segunda e apenas perguntou a Jesus: "És tu o rei dos judeus?" (23,3), presumivelmente porque
achava que, se ele admitisse este indiciamento mais grave, o menos grave poderia ser visto como
- 93 -
incorporado ao outro. Havia, segundo Lucas, outras acusações que Pilatos pode ter considerado caber à
jurisdição de Herodes; mas elas devem ter caído por terra quando Herodes devolveu Jesus sem achar nele
"crime". A única acusação a que Jesus respondeu afirmativamente era a de ser rei dos judeus, e apenas por
esta acusação ele podia ser condenado.
É verdade que também achamos acusações explícitas no Evangelho segundo João, mas elas não são
apresentadas no início do julgamento, apenas no curso dos procedimentos; elas não são colocadas diante
do acusado para que ele as possa contestar ou diante do tribunal como objeto da prova a ser apresentada e
dos argumentos a serem ouvidos no devido processo; são antes apresentadas através de advertências e
ameaças dirigidas ao governador para que ele não absolvesse e libertasse Jesus. Diz-se, assim, que Pilatos
"ainda mais atemorizado ficou" quando ouviu os judeus dizerem que Jesus "se fizera a si mesmo o Filho
de Deus". (19,7-8); e seu "temor" parece ter se tornado final e conclusivo quando os judeus gritaram: "Se
soltas a este, não és amigo de César: todo aquele que se faz rei é contra César" (19,12). Embora, pelos
motivos que expusemos, esteja fora de questão que "os judeus" assistiram ao julgamento diante de Pilatos
ou, se o fizeram, teriam ousado falar a Pilatos como aqui se relata que falaram, pode ser que as
considerações que os evangelistas colocam na boca dos judeus, embora deles não procedessem em
absoluto, estivessem no espírito do governador. É verdade que "todo aquele que se faz rei fala contra
César" e que César dificilmente entenderia ou perdoaria um governador que deixasse um homem acusado
ser solto depois deste expressamente se confessar culpado de "falar contra César". Nas circunstâncias, não
restava a Pilatos outra alternativa senão condenar Jesus, como ele deve ter prontamente compreendido. O
publico romano, para o qual foi escrito o Quarto Evangelho, compreendeu plenamente que tais pretensões
reais, que representavam menosprezo ao imperador, não podiam, deixar de ser punidas: a ação de Pilatos
condenando e crucificando Jesus seria, portanto, prontamente compreendida; mas já que a culpa moral
tinha de caber inequivocamente aos judeus, tinha de ser os judeus que, por argumento ou advertência,
levariam ao espírito de Pilatos a necessidade de uma condenação. O fato de que, por cima de suas
pretensões reais, os judeus também advertiram Pilatos das pretensões celestiais de Jesus só piorou a
questão, tornando o crime ainda mais grave e mais repreensível.
Mas como não restava a Pilatos, com efeito, outra opção a não ser condenar Jesus, e os leitores romanos
familiarizados com a susceptibilidade cesárea devem ter sabido disto perfeitamente bem, o autor do
Evangelho segundo João recorre a um expediente desesperado para tornar os judeus definitivamente
culpados pela morte de Jesus. Diz-se que Pilatos sentou-se no banco de julgamento, como se, se
preparasse para pronunciar o juízo final (19,13); fez trazer Jesus "e disse aos judeus: Eis aqui o vosso rei"
(19,14). Quando eles, de novo, exclamaram: "Fora! Fora! Crucifica-o", Pilatos perguntou: "Hei de
crucificar o vosso rei?" e, quando obteve a resposta deles, "Não temos rei, senão César" (19,15), entregou
Jesus "a eles para ser crucificado" (19,16). Tomaram eles, pois, a Jesus (19,17). Em outras palavras,
Pilatos não condenou Jesus, nem ordenou que fosse crucificado; tampouco o entregou aos turbulentos
judeus para que estes o crucificassem. A majestade do imperador era vindicada; Jesus, no devido tempo,
seria executado, mas nenhuma mão romana lhe derramaria o sangue; o sábio e perspicaz governador podia
ser representado, para as gerações pósteras de romanos, como um homem que havia penetrado o segredo
da divindade de Jesus ou como tendo, do começo ao fim, reconhecido sua inocência; e o fato de que, não
obstante, Jesus foi afinal crucificado não se deveu a qualquer ato ou decisão do governador, mas
unicamente à crueldade, cegueira e teimosia dos judeus. Esta podia ser uma história plausível e aceitável
para os leitores romanos, pois enquanto eles sabiam naturalmente que os romanos executavam os
criminosos estrangeiros por crucificação, eles não precisavam saber, e muito provavelmente não sabiam,
que os judeus jamais executavam alguém por crucificação, podendo assim aceitar a história literalmente.
Ainda haveria a falha grave de que fora por decisão do governador romano que Jesus foi entregue aos
judeus: ele podia ter salvo Jesus recusando-se a entregá-lo aos seus perseguidores. Com efeito, se Pilatos
tivesse desejado poupar Jesus, poderia tê-lo encarcerado por um tempo; poderia tê-lo absolvido; ou ter
transferido o julgamento para o imperador em Roma, salvando, dessa forma, a face do imperador
afrontado. Não escolheu qualquer desses caminhos, mas o de entregar Jesus aos judeus, sabendo muito
bem qual seria o seu destino. Nestas circunstâncias, representá-lo como inocente de derramar o sangue de
Jesus é mais do que pode inventar o engenho humano. O fato de que o autor do Evangelho segundo João,
ao contrário dos seus leitores, sabia que Jesus só poderia ser crucificado pelos romanos, e não pelos
- 94 -
judeus, é manifesto pelo relato de que foram os "soldados" que executaram a crucificação (19,23), uma
inconsistência que um compilador mais atento poderia ter evitado.
Em Lucas é relatado que, quando "os principais sacerdotes, as autoridades e o povo" decidiram que
Barrabás fosse solto e Jesus crucificado (23,21-23), "Pilatos decidiu atender-lhes o pedido" (23,24) e,
soltando Barrabás, "entregou Jesus à vontade deles" (23,25). Esta afirmação não é tão explícita como a
que está em João, no sentido de que ele entregou Jesus aos judeus "para ser crucificado"; ela podia ser
interpretada como significando simplesmente que sua sentença correspondeu à vontade dos judeus, a
saber, soltar Barrabás e condenar Jesus. Também é evidente, a partir do relato de Lucas, que a própria
crucificação foi executada por soldados romanos (2.6,36-37), sendo mesmo feita menção ao centurião que
os comandou" (23,47). Mas a ênfase, também em Lucas, sobre o fato de que foi "por vontade dos judeus"
que Pilatos entregou Jesus e que seus soldados nunca teriam sido instruídos a crucificá-lo, não fosse por
causa "da vontade dos judeus", tem a clara intenção de servir ao propósito de eximir Pilatos e incriminar
os judeus.
Mateus relata que, quando Pilatos libertou Barrabás, mandou que Jesus fosse açoitado, e então "entregou-
o para ser crucificado" (27,26). O versículo seguinte deixa claro que foi aos soldados romanos que Jesus
foi entregue: "Logo a seguir, os soldados do governador, levando Jesus para o pretório, reuniram em torno
dele toda a coorte" (27, 27). Tudo o que se segue é feito por esses soldados, inclusive a própria
crucificação (27,35) e a colocação do titulus por sobre a cabeça de Jesus (27,37); e só depois de terem
escarnecido dele (27,39-40) é que os "principais sacerdotes com os escribas e anciãos" aparecem
novamente também zombando dele (27 ,41 ).
Similarmente Marcos, o mais antigo dos Evangelhos, Pilatos é retratado como "desejando contentar o
povo", e, por conseguinte, como tendo libertado Barrabás e então "entregado Jesus, depois de mandar
acoitá-lo, para ser crucificado" (15,15), em conseqüência do que "os soldados o levaram para dentro do
palácio, chamado pretório, e reuniram todo o destacamento" (15,16); e novamente tudo o que se segue é
feito apenas por eles, sendo os "principais sacerdotes" introduzidos como juntando-se aos soldados que
zombavam de Jesus na véspera de sua crucificação (15,31).
Os Evangelhos Sinópticos mostram correta e acuradamente que os judeus não tiveram qualquer parte na
crucificação, e podemos considerar a admissão, em João, de que soldados romanos o crucificaram (19,23)
como indicativa de um consenso geral de que a crucificação foi verdadeiramente executada por soldados
romanos sob o comando do governador. Enquanto se menciona em Lucas (23,24 ), uma "sentença"
pronunciada por Pilatos, é significativo que nenhum dos Evangelhos realmente cita ou descreve o
julgamento ou a sentença; todos falam de Jesus "entregue" para ser crucificado: "todos os evangelistas têm
dificuldade para evitar o registro da decretação de uma sentença de morte pelo governador romano".106
No entanto, não pode haver qualquer dúvida de que uma "sentença", como está em Lucas, foi realmente
emitida: os soldados não teriam crucificado Jesus, ou os dois "malfeitores" crucificados com ele, sem uma
ordem formal do governador. Que um julgamento deve ter sido pronunciado foi deduzido por alguns
eruditos do fato de que Pilatos se sentara na sella, "no tribunal" (Mateus 27, 19; João 19, 13, onde
normalmente se pronunciava o julgamento. 107 De novo, a reticência em registrar o fato e o teor do
julgamento só pode ser explicada pela tendência dos evangelistas para eximi-lo da responsabilidade pela
crucificação, como se, levando as mãos ao alto em desespero, sucumbindo ao clamor histérico da multidão
e abdicando dos seus próprios deveres judiciais e governamentais, ele pudesse livrar-se da
responsabilidade, moral ou legal.
A verdade é que Jesus, dizendo-se culpado, foi sentenciado à morte pelo governador romano, de acordo
com a lei romana. Ele não poderia ter sido "entregue aos judeus", nem para crucificação, nem para outro
fim, não apenas porque não se permitiu aos judeus assistirem ao julgamento, não podendo estes ter pedido
que ele lhes fosse entregue, mas porque nenhum governador romano toleraria que judeus interferissem
num julgamento por ele dirigido, executassem uma sentença de morte pronunciada por ele ou
participassem da sua execução. Foi um julgamento romano, que resultou numa sentença romana,
executada por carrascos romanos.
Toda a história teria sido simples e franca, não fosse pelo fato de que os evangelistas, para seus propósitos
teológicos e políticos, tinham de desviar a culpa pela morte de Jesus para os judeus. Com esse objetivo,
precisavam atribuir aos judeus, quem quer que fossem estes, uma impertinência ante o governador e uma
influência sobre ele que são tão pouco realistas e tão pouco históricas, que chegam às raias do ridículo; e
- 95 -
precisavam despir o governador do seu último fragmento de dignidade e todo sentido de responsabilidade.
O produto final é um conglomerado de tradições verdadeiras e pura imaginação em que as questões legais
estão inextricavelmente confundidas e as personalidades e os traços dos atores irreconhecivelmente
pervertidos.
Pouco sabia Pilatos que o julgamento que realizou e a crucificação que ordenou naquela manhã passariam
para a história como dos mais importantes acontecimentos para a humanidade. "Ele teria ficado muito
surpreso, se lhe houvessem contado que aquele pobre e humilde judeu que compareceu diante dele
naquele dia faria seu nome ser transmitido numa história imortal". Pilatos nada fez para merecer esta fama
-era apenas outro julgamento de rotina de um teimoso e tolo judeu; tampouco fez ele qualquer coisa para
merecer ser caluniosamente representado como inepto, a ponto de se tornar um instrumento nas mãos de
desprezíveis nativos e deixa-los prevalecer sobre o que ele próprio considerava certo. Ele chegara ao seu
próprio juízo e o pronunciara, e faria com que fosse aplicado. Se alguém o aplaudiu ou contra ele
protestou, não era coisa que o preocupasse. Se acontecesse que estivesse errado, tanto pior: não havia
tribunal de apelação para corrigir as coisas. Se estivesse certo, tanto melhor: não lhe importava que se
deixasse um judeu viver. Em proveito da boa ordem administrativa, ele faria ao imperador um comunicado
de rotina sobre o julgamento e a sentença pronunciada provavelmente como um item entre muitos num
informe mensal, e seria o fim da questão.

A FLAGELAÇÃO

Jesus não foi apenas crucificado: antes de sua crucificação, segundo os Evangelhos de Marcos, de Mateus
e de João, ele foi açoitado ou I' torturado. A versão em Marcos e Mateus consiste em que, quando o
governador romano "mandou açoitar Jesus, ele o entregou para ser crucificado (Marcos 15,15; Mateus
27,26). Segundo João, Pilatos li mandou açoitar Jesus no decorrer do julgamento (19,1), antes de I
novamente o apresentar "aos judeus" (19,4-5). Lucas também menciona as flagelações; não, porém, como
fatos que haviam acontecido, mas como propostas alternativas de punição: "Portanto, depois de castigá-lo,
soltá-lo-ei" (23, 16), ou: "de fato, nada encontrei nele para condená-lo à morte; portanto, depois de o
castigar, soltá-lo-ei" (23,22 ).
Também vemos que os soldados romanos "cuspindo nele, tomaram-lhe a cana e davam-lhe com ela na
cabeça " (Mateus 27,30; similarmente, Marcos 15,19), depois de Pilatos ter entregue Jesus para ser
crucificado, mas antes da crucificação. Lucas não adotou essa versão: segundo ele, os soldados zombaram
de Jesus, mas mesmo isso depois da crucificação (23,36); João tampouco menciona qualquer mau trato
nas mãos dos soldados.
Segundo a lei romana, a flagelação era automaticamente incluída em toda sentença de morte, e em geral se
presume que a flagelação de Jesus foi parte da punição capital que lhe foi infligida.² Se contássemos
apenas com a tradição de Marcos e Mateus, esta suposição poderia ser justificada, embora mesmo nela a
flagelação preceda a entrega para a crucificação -isto é, possivelmente, a sentença formal de morte. Mas a
tradição joanina, de que Jesus foi açoitado independentemente de qualquer sentença de morte e muito
antes que esta fosse decretada, suscita dúvidas quanto a saber se a correta interpretação em Marcos e
Mateus não deveria também ser que a flagelação e a crucificação foram independentes uma da outra. O
fato de que os soldados bateram em Jesus e cuspiram nele, depois de decretada a sentença pode talvez ser
encarado como uma descrição da passagem pelos açoites, que fazia parte da punição capital, pois de
qualquer modo agiram como carrascos (Marcos 15,24; Mateus 27,35); isso faria com que qualquer
flagelação prévia pudesse ser interpretada de outra forma que não um adjunto da crucificação. A ordem
que Pilatos deu para que Jesus fosse açoitado, portanto, pode ser compreendida como um acréscimo à
sentença de morte finalmente decretada, e para outros propósitos; e a seqüência de acontecimentos seria,
assim, a de que, em seguimento a esta ordem preliminar, Jesus foi açoitado e que só depois que o fato e o
resultado dessa flagelação foram relatados é que Pilatos emitiu seu veredito final.
- 96 -
Se esta interpretação, baseada na tradição joanina, é correta, surge logo a questão do propósito para o qual
Pilatos ordenou a flagelação. Será que ele realmente infligiu essa espécie de sofrimento a um homem no
qual não encontrara qualquer crime João 18,38, apenas para impressionar "os judeus" com o espetáculo da
sua miséria e humilhação? Foi dito, e é geralmente aceito, que as palavras de Pilatos à multidão, "Eis o
homem!" João 19,5, significavam que de um homem como aquele, tão angustiado, nada de mal e
perigoso, nada de real e pretensioso podia razoavelmente ser temido; ou que a visão de Jesus, humilhado e
sangrando, despertaria a piedade dos espectadores e os levaria a desistir daquele clamor sanguinário.4
Com esse objetivo, como nos é contado, Pilatos mandou açoitar Jesus. Então "os soldados, tendo tecido
uma coroa de espinhos, puseram lha na cabeça, e vestiram-no com um manto de púrpura, e diziam: Salve
o rei dos judeus!, e davam-lhe bofetadas" João 19,23, e dessa forma Jesus foi apresentado por Pilatos
"para que saibais que eu não acho nele crime algum" (19,4), nenhum crime num absurdo e risível farsante
como este! Mas a fúria totalmente inexplicada dos "judeus" era tão cega, tão cruelmente desprovida de
misericórdia, que, vendo a tribulação e o absurdo daquele -francamente! -"rei", eles não fizeram mais do
que entoar seu doentio refrão: "Crucifica-o, crucifica-o! (19,6). E Pilatos, longe de se sentir surpreso ou
desconcertado por seu fracasso em induzi-los a uma reação mais humana, e tirando ele próprio a única
possível conclusão dessa tribulação e absurdo, absolvendo o ridículo "rei" e deixando-o seguir em
liberdade, é representado como inteiramente desejoso de ceder aos intransigentes e predatórios 'Judeus",
se apenas para que eles próprios consumas- sem a crucificação (19,6).
Se, com efeito, a flagelação não teve outro objetivo a não ser possibilitar que um atormentado e miserável
Jesus fosse exibido à multidão, a tradição de Lucas de que ela se destinava a ser infligida na forma ou no
lugar de punição pareceria muito mais razoável do que a tradição joanina, sendo a ela preferível, já que
segundo esta tratava-se apenas de outro interlúdio no julgamento, de apenas mais um incidente nas
prolongadas negociações entre o governador romano que julgava Jesus em seu palácio e uma multidão
furiosa do lado de fora. Apresentamos nossas razões para descartar como não realista e absurda qualquer
idéia de ficar o governador indo de um lado para o outro, saltar do seu banco e de sair correndo para
conferenciar com "os judeus", para ser censurado e repreendido por eles repetidas vezes e, por fim, ceder
ao que cruelmente pediam contra o seu próprio juízo. Somos constrangidos a descartar como não menos
irreal e absurda a idéia de que o governador infligiria a tortura com o único objetivo de apresentar uma
sangrenta e aflita vítima à multidão do lado de fora a fim de excitar nesta compaixão e caridade: não
apenas nenhum governador exporia um homem à tortura com tal propósito, mas nenhum exibiria a vítima
para despertar qualquer dos dois sentimentos; se o fizesse, seria apenas como uma dissuasão. A flagelação
podia intimidar as massas se fosse aplicada como punição ou no lugar de punição. Pilatos pode ter julgado
as pretensões ilegais de Jesus a rei demasiado irreais e tolas para serem levadas a sério e, portanto, o
puniria com a tortl1ra e a flagelação como sombria advertência para que não se deixasse novamente
incorrer em atividade ou imaginação ilícita. E se fosse este o curso adotado por ele, Pilatos bem que
poderia ter exibido o corpo ultrajado de Jesus para mostrar ao povo que mesmo as reivindicações ou
aspirações aparentemente absurdas à realeza provocariam um castigo corporal duro e degradante.
A tradição de Lucas, no entanto, foi a de que a tortura, embora considerada por Pilatos como uma
possibilidade, não foi infligida por ele, quer como punição, no lugar de punição, ou de qualquer outra
forma. Seria difícil, nestas circunstâncias, adotar-se a ratio dada por Lucas para uma flagelação que, pelo
que ele próprio conta, nunca ocorreu, tanto mais do que os Evangelhos concordam, e não pode haver
dúvida a respeito de que a punição sofrida por Jesus foi a crucificação. Presumindo-se pois, com a
autoridade dos Evangelhos segundo Marcos, Mateus e João, que houve flagelação, devemos procurar para
isso fundamentos outros que não punitivos. Poderíamos encontrar um indicador da direção para onde olhar
numa característica comum às tradições de Lucas e de João, a de que a flagelação foi, ou tencionava ser,
empregada por Pilatos como um favor concedido a Jesus, ou, conforme Lucas, como um meio de perdoar
a sentença de morte, ou ainda, segundo João, como um meio de despertar a piedade dos 'Judeus". Se
assumirmos que, ordenando que Jesus fosse açoitado, Pilatos tinha em mente uma tentativa de mudar o
curso dos procedimentos a seu favor, devemos perguntar- nos o que poderia ter acontecido, ao se torturar
Jesus, que pudesse resultar numa melhoria da situação. Ele já admitira pretender ser o rei dos judeus,
desse modo se declarando culpado da acusação; não restava ao tribunal outra opção que não condená-lo
por sua própria admissão de culpa, a não ser que ele, no devido momento, se retratasse ou, também no
devido tempo, fosse forçado a isto. Depois que Jesus se confessou culpado, não foi preciso nem houve
- 97 -
oportunidade para se convocar testemunhas ou outros depoentes para provar a acusação; mas se lhe fosse
permitido retratar sua alegação, a necessidade e a oportunidade surgiriam prontamente, e o resultado do
julgamento dependeria da credibilidade e do peso das provas disponíveis. Se, com efeito, qualquer dúvida
houvesse penetrado na mente de Pilatos quanto à culpa de Jesus, não obstante sua confissão de culpa, o
curso que Pilatos poderia ter tomado seria fazê-lo se retratar da confissão e verificar se a acusação era
suficientemente fundada num testemunho verossímil. Antes da flagelação, Pilatos renovou pelo menos
duas vezes suas perguntas a Jesus João 18,33, 35,37, questionando-o se era rei e o que fizera, mas Jesus
nada disse que refutasse sua admissão original. Pelo contrário, ele fez sua confissão final de culpa em
resposta à última pergunta (18,37). Quando Pilatos falhou em seu suposto apelo aos 'Judeus" para que
escolhessem Jesus como o homem a ser perdoado no Pessach (18,39- 40) "então, por isso, tomou a Jesus e
mandou açoitá-lo" (19,1), manifestamente numa última ou em mais uma tentativa para salvá-lo.
Já se disse que a flagelação ordenada por Pilatos nessa fase dos procedimentos só podia ter um
propósito -fortalecer a confissão de culpa feita por Jesus extraindo, mediante tortura, uma confissão
detalhada de suas pretensões e delitos. Como logo veremos, o uso da tortura para extrair confissões era,
com efeito, permitida e comum; mas por que motivo iria o governador querer uma confissão mais
detalhada do que a que Jesus já oferecera? Não há em qualquer parte menção a cúmplices para serem
rastreados ou a outros aspectos particulares a serem revelados, e dificilmente se pode admitir que o
governador estivesse irresistivelmente curioso em conhecer com minúcias supérfluas os ensinamentos e as
pretensões de Jesus. E se este tivesse sido o propósito da flagelação, algum relato quanto ao resultado da
tortura, se Jesus revelou alguma coisa e o quê, haveria certamente de aparecer.
Segundo Lucas, a flagelação de Jesus não ocorreu porque "os principais sacerdotes, as autoridades e o
povo" (23,13), ali presentes, objetaram -"gritando a uma voz" (23,18) e "instando com grandes gritos”
(23,23) que ele fosse crucificado. A tendência de toda a história em Lucas sugeriria que não era tanto a
flagelação que objetavam quanto à libertação de Jesus, embora ele tivesse sido antes açoitado E como não
foi permitido a Pilatos -ou assim nos é dado " compreender -, pela multidão, libertar Jesus, ele também se
absteve de castigá-lo; e como não o podia castigar, como desejava, Pilatos também se absteve de libertá-
lo. A idéia de que Pilatos ofereceu ao povo, ou lhe pediu, que se contentasse em ver Jesus punido com uma
penalidade mais branda do que a morte é muito elaborada para que se a considere com seriedade: não se
pode conceber que um governador romano delegaria seu poder de sentenciar a uma horda de turbulentos
nativos ou que o partilharia com ela. E por que razão puniria ele Jesus, se o julgara inocente? Ou, se o
julgara culpado de um crime não capital, por que motivo esse crime não é mencionado e descrito? A
pretensão de ser rei dos judeus, de qualquer forma, era um crime capital. Foi argumentado que Lucas pode
ter tomado a flagelação que acompanhava toda execução por uma punição separada e alternativa,7 como
se coubesse ao juiz o arbítrio num crime capital para infligir a penalidade, quer de morte, quer de
flagelação; mas se Lucas cometeu este erro, nada há que sugira que Pilatos nele possa ter incorrido. Não é
de espantar que a tradição de Lucas não se tenha recomendado ao autor do Evangelho segundo João; o que
em Lucas não passava de um desejo expresso por Pilatos, mas não realizado, na versão do quarto
evangelista tornou-se fato real; a flagelação durante uma audiência sobre um crime capital era uma
característica do procedimento criminal romano com a qual ele devia estar familiarizado.
A lei consistia em que, nos casos de crimes segundo a Lex Julia maiestatis, a tortura devia ser usada não
apenas, como no caso de outros crimes, contra escravos e estrangeiros, mas também contra cidadãos e
notáveis, sem distinção. Em geral, no entanto, ela só servia como um meio de extrair confissões do
acusado ou de fazer com que as testemunhas recalcitrantes falassem ou que as hesitantes incriminassem o
acusado.9 Quando o caso era provado, seja pela confissão do acusado ou por um testemunho, essa tortura
"procedimental" seria normalmente dispensada, tendo em vista a tortura punitiva que normalmente
acompanharia a punição capital. Por outro lado, a tortura era uma parte tão normal dos julgamentos por
laesa maiestas, que a distinção entre os casos em que era genuinamente requerida e aqueles em que já não
era mais necessária tornou-se um tanto nebulosa, particularmente aos olhos dos leigos. Em época
posterior, tornou-se sinônima de interrogatório (quaestio), e vemos que quando o interrogatório do
acusado sob tortura deixa de produzir uma confissão, o próprio acusador era submetido ao suplício até
admitir que sua acusação era falsa.¹¹ Um elemento de tortura no curso de um julgamento desse tipo seria,
portanto, encarado como quase uma questão de rotina; não empregar a tortura nesses processos seria uma
exceção à regra geral.
- 98 -
Deve-se ter em mente que o crime de que Jesus foi acusado não consistiu em que ele já havia estabelecido
seu "reino", mas que se dizia rei, isto é, estava destinado e qualificado a estabelecer um reino, um dia. Ele
acreditava na sua missão divina e não havia necessidade de recorrer à tortura para se extrair uma
confissão. Mas parece - como observamos num contexto prévio -que se, a despeito do seu destino e
qualificações, ele tivesse concordado em não levar adiante suas aspirações, dificilmente seria condenado
por traição. Pode ter importado em grave delito fazer preparativos para futuros atos de traição, mas não
necessariamente em um crime capital. O julgamento de Jesus ocorreu num momento em que lhe era ainda
possível livrar-se da responsabilidade por um crime capital, se somente se dignasse a repudiar suas
pretensões reais dali em diante. É verdade que a jurisdição penal do governado romano tinha também por
objetivo dissuadir os habitantes locais de tramar conluios anti-romanos ou alimentar ambições ou ilusões
de independência e salvação; mas isto podia ser efetivamente conseguido induzindo-se qualquer
conspirador ou pretendente a renunciar abertamente à sua política por ser errônea e punível e a submeter-
se à majestade e à inatacável autoridade do imperador. Do ponto de vista da política colonial romana, pode
até ter parecido mais sábio conseguir que os líderes populares fizessem declarações de lealdade, de
preferência a criar mártires venerados, crucificando-os.
Nas circunstâncias, não é impossível que Pilatos tenha mandado flagelar Jesus para extrair não uma
segunda confissão, mas obter uma renúncia às suas reivindicações. Se, sob tortura, Jesus deixasse de
afirmar suas pretensões a rei, seria possível poupar-lhe crucificação, e Pilatos ficaria satisfeito com a
flagelação como punição suficiente a pretensões que se mostraram vazias e inócuas. Temos prova de
açoites e flagelação infligidos como uma punição à parte para crimes não capitais, por exemplo, a
desobediência de um escravo à ordem do seu dono. Pilatos pode ter pensado que se a tortura não
produzisse, efeito, não haveria qualquer prejuízo -do seu ponto de vista -em , tentar; de qualquer modo,
uma pessoa acusada sob a Lex Julia
maiestatis estava fadada a ser torturada, para qualquer propósito. Sob esta luz, a história joanina assume
uma nova significação. Exceto no que diz respeito ao interlúdio de Barrabás, a flagelação segue-se à
pergunta que Pilatos dirigiu a Jesus: "Que é a verdade?" (18,38). Para mostrar a ele o quanto é relativa e
variável a verdade, Pilatos tenta modificar pelo meio praticamente infalível da tortura, o conceito que
Jesus tinha dela. Se Pilatos não pode persuadi-lo com palavras de que não há verdade absoluta neste
mundo, talvez o consiga mediante a tortura. Na opinião do governador, a discussão com aquele teimoso
pretendente já deve ter durado demais.
A mesma interpretação presta-se à história nos Evangelhos segundo Marcos e Mateus: Pilatos ordenou que
Jesus fosse flagelado para tentar fazê-lo renunciar a suas pretensões; quando Jesus, depois de flagelado,
recusou a se retratar, ele o "entregou" para ser crucificado, ou seja, condenou-o à morte na cruz. Desse
modo, o fato de a flagelação ter precedido a "entrega " para a crucificação é pronta e razoavelmente
explicável.
O fato de se dizer nos Evangelhos, particularmente no Quarto, que a tortura foi aplicada contra Jesus deve
também ser visto contra o pano de fundo daquilo que os evangelistas sabiam dos julgamentos romanos de
cristãos no tempo deles; ao que parece, sempre que um homem era levado a julgamento sob a acusação de
ser cristão, ele era primeiro torturado para que fosse obrigado a abjurar da sua fé. Ouvimos falar, por
exemplo, de um tutor cristão, Ptolomeu, que o prefeito da cidade havia algemado e torturado longamente
depois que ele admitiu o seu cristianismo; foi quando, depois da tortura, ele reafirmou sua fé, que foi
ordenada sua execução. Numa carta que já citamos, escrita por Plínio durante o seu governo da Bitínia ao
imperador Trajano, os métodos para interrogar as pessoas processadas pela prática da fé cristã são
descritos como segue:
Eu lhes perguntava se eram cristãos; se confessassem, eu repetia a pergunta duas vezes, acrescentando a
ameaça de punição capital; se ainda assim perseverassem, eu ordenava que fossem executados. ..Os que
negavam que fossem ou jamais tivessem sido cristãos, que repetiam comigo uma invocação aos deuses e
adoravam com vinho e incenso a vossa imagem. ..e que finalmente maldiziam o Cristo -nenhum dos quais
atos, diz-se, podem ser forçados a praticar aqueles que são realmente cristãos -, a estes eu julgava
apropriado libertar. Outros, de início, se confessavam cristãos, depois o negavam. ..Todos eles adoravam a
vossa estátua e as imagens dos deuses e maldiziam o Cristo... [Num caso particular] achei mais necessário
extrair a verdade real com o recurso à tortura. ..mas nada mais descobri do que superstição depravada e
excessiva.
- 99 -
Enquanto se estabelece uma distinção escrupulosa entre interrogatório sob ameaça de punição capital e
interrogatório sob tortura, recorria-se livremente ao segundo modo sempre que era considerado essencial
ou prático. É digno que nota que Plínio tenha sido encarado por seus contemporâneos cristãos como um
dos mais misericordiosos e justos governadores,15 mas nem ele hesitava em aplicar a tortura, "para extrair
a verdade real", ou em prontamente executar uma pessoa que não renegasse o cristianismo. Em sua
resposta a Plínio, o imperador escreveu que não era "possível estabelecer uma regra geral que possa ser
aplicada como padrão fixo em todos os casos dessa natureza. ..quando se constata que essas pessoas são
culpadas, devem ser punidas; com a restrição, no entanto, de que, quando o acusado nega ser um cristão e
o prova, adorando os deuses, ele deverá ser perdoado com base no seu arrependimento, mesmo que antes
tenha sido alvo de suspeita". Esta correspondência datava entre os anos de 111 e 113,17 ou seja, ela é
exatamente sincrônica com o Evangelho segundo João; e o procedimento atribuído a Pilatos no
julgamento de Jesus lembra muito o de Plínio nos julgamentos de cristãos: primeiro, as perguntas eram
duas vezes repetidas, para se saber se o réu era aquilo de que era acusado, e depois uma tentativa de fazê-
lo render homenagem ao imperador, se necessário mediante tortura, ou para que se "arrependesse" e
pudesse ser perdoado e libertado, ou, caso contrário, fosse condenado à morte.
Não é preciso entrar na questão psicológica do motivo pelo qual Pilatos ordenou que Jesus fosse flagelado
-se foi pura ou principalmente altruístico: para fazê-lo se retratar e salvar-lhe a vida, ou se o lado sádico de
Pilatos encontrou uma saída ao mandar torturá-lo antes de condená-lo. Ele pode ter encarado a tortura
como parte integrante do procedimento a ser seguido em tais julgamentos e, de certo, era suficientemente
duro para não hesitar diante da agonia que o suplício provocava. A possibilidade de assim arranjar as
coisas, de modo a fazê-las parecer um favor que ele mui generosamente concedia a Jesus, pode ter sido
um outro motivo.
Na condução dos julgamentos criminais, nem o imperador, nem um governador estava preso a quaisquer
regras fixas de procedimento" a quem e como interrogar, recorrer ou não à tortura, eram questões que
cabiam à definição de cada um.1s A restrição imposta aos funcionários investigadores de escalão inferior,
aos quais não se permitia questionar os cidadãos romanos sob tortura (Atos 22,25), não atingia o
governador ,19 e se ele tinha poderes para interrogar cidadãos romanos mediante tortura, certamente podia
aplicar a tortura aos nativos. Este arbítrio excepcionalmente amplo não estava longe de ser um convite a
não desprezar qualquer boa oportunidade de ordenar uma flagelação.
Tenha a flagelação de Jesus entrado nos relatos do Evangelho por força unicamente do conhecimento
pessoal dos seus autores quanto à provação semelhante que era infligida aos cristãos julgados em Roma,
ou seja que houve uma tradição válida de que Jesus sofreu a flagelação por ordem de Pilatos, qualquer
tortura aplicada antes da condenação e sentença tem de ser claramente distinguida da flagelação que
acompanhava a execução, depois da condenação e sentença" A primeira tinha a natureza de uma medida
probatória: era destinada a obter provas, quer de culpa, quer de arrependimento; a segunda era de natureza
meramente punitiva. A primeira pode ser muito mais cruel e causar mais dor e sofrimento do que a
segunda, pois, enquanto tortura probatória, pode ser aplicada e aumentada até que se alcance o resultado
desejado; a segunda não passa de uma demonstração de vingança e escárnio, podendo ser perfunctória. Da
flagelação que acompanhou a crucificação de Jesus conhecemos alguns, embora poucos, aspectos
particulares (Marcos 15,19; Mateus 27,30); da flagelação antes da sua condenação nada sabemos.
Mas embora os Evangelhos não nos esclareçam quanto à flagelação ou torturas a que foi submetido Jesus,
sabemos de fontes romanas qual o tratamento normalmente reservado aos acusados de laesa maiestas.²º
Deixando de lado sua extrema crueldade, ela era muito eficaz, tendo se entranhado tão firmemente no
sistema de aplicação da lei, que a encontramos usada em larga escala não apenas na Roma imperial, mas
também na Igreja medieval.²¹ No fim do Império, a tortura também era usada como uma mescla de
interrogatório e punição contra os funcionários públicos que se apropriavam de fundos oficiais ou que
abusavam dos seus cargos, por exemplo; ou contra administradores e até mesmo senadores, que, tendo-
lhes sido confiada a distribuição de cotas de alimentos, generosamente se aproveitavam do que ficava sob
seus cuidados; ou contra os "inimigos da raça humana", como feiticeiros, adivinhos, mágicos e astrólogos.
Em comparação com essa espécie de tortura que se "auto-justificava", o castigo que acompanhava a
penalidade capital podia ser chamado de brando, embora fosse mais severo nos casos de crucificação do
que em outros meios de execução. Um condenado que fosse levado da sua cela ao lugar em que seria
executado era espancado (f1agellatio) e era objeto de zombarias ao longo de todo o caminho, fosse para
- 100 -
deixar que o público em geral participasse ativamente da execução!6 ou para ampliar seu efeito de
dissuasão. E além das pancadas e da zombaria, o homem a ser crucificado tinha de carregar sua cruz nas
costas por todo o percurso, com as mãos atadas às barras transversais, em geral nu, só com a cabeça
coberta. Nós é contado que, quando Jesus foi levado para ser crucificado, os soldados romanos "cuspiram
nele, tomaram a cana e davam-lhe com ela na cabeça (Mateus 27,30; similarmente Marcos 15,19); e
"depois de o terem escarnecido" eles "o vestiram com suas próprias roupas (Marcos 15,20; similarmente
Mateus 27,31). Não apenas ele não estava despido, mas foi vestido com suas próprias roupas, em lugar da
"púrpura" com a qual o tinham antes coberto para dele zombar (Marcos 15,17; Mateus 27,28). E quando
partiram com ele, ao saírem encontraram um cireneu chamado Simão, a quem obriga- ram a carregar-lhe a
cruz" (Mateus 27,32; similarmente Marcos 15,21 e Lucas 23,26). É claro que o quarto evangelista pôs de
lado a tradição de que Simão carregou a cruz: em João, lemos que Jesus carregou ele próprio sua cruz (19,
17); mas, tendo em vista a unanimidade dos três primeiros evangelistas, podemos justificar-nos por adotar
a tradição dos Evangelhos sinópticos, tanto mais que ela é geralmente aceita. Pareceria, pois, que não
apenas as mãos de Jesus não estavam atadas às vigas da cruz, mas que ele não teve sequer que carregá-la
ele próprio. Não sabemos se lhe foi poupada a carga porque lhe faltaram forças depois das flagelações que
sofreu,28 ou se ele tinha originalmente uma constituição fraca e por isso era muito pouco firme para
suportar um fardo tão pesado;29 o que sabemos é que os soldados devem ter se apiedado dele, se não
quando lhe golpearam a cabeça e dele zombaram, pelo menos quando o levaram. Eles podem ter pensado
que, galpeando-o e dele escarnecendo, o tinham maltratado suficientemente e podiam agora abandonar
alguns dos prazeres sádicos que a lei e o costume lhes concediam.
Examinando, porém os particulares relatados das zombarias, verificamos que Jesus foi levado para o
pretória, onde "toda a corte se reuniu"; despojando-o das vestes, "cobriram-no com um manto escarlate;
tecendo uma coroa de espinhos, puseram lha na cabeça, e na mão direita uma cana; e, ajoelhando-se diante
dele, o escarneciam, dizendo: Salve o rei dos judeus. E, cuspindo nele, tomaram a cana e davam-lhe com
ela na cabeça" (Mateus 27,27-30; similarmente Marcos 15,16-19). Isso não parece a descrição de uma
flagelação real, mas de como os legionários se divertiram à custa daquele estranho e ridículo "rei"; se
Jesus sofreu, foi mais pelos insultos do que pelos golpes, antes pela agressão à sua dignidade do que ao
seu corpo. Não é o relato de uma tortura que deixou cicatrizes físicas, mas de um castigo que provocou
angústia na alma.
Além disso, mesmo se aceitarmos o relato, em João, de que Jesus foi "flagelado" (19,1), não exite
qualquer tradição ou informação confiáveis de que houve conseqüências ulteriores, ulcerações ou outro
ferimento externo, que os soldados logo teriam visto. Se Jesus tivesse sido torturado com a usual
meticulosidade romana, seu corpo mostraria sinais evidentes: ele teria sangrado profusamente, não teria
conseguido se sustentar de pé, certamente não poderia confrontar o governador e a ele se dirigir
livremente (19,11). E se este tivesse sido seu estado depois de flagelado, o evangelista não o teria
certamente ocultado: muito mais do que Pilatos possa ter desejado despertar a piedade dos "judeus " com a
visão do trágico e atormentado Jesus, o evangelista ansiava por suscitar a perpétua compaixão do mundo
inteiro pela aflição causada pelos açoites. Alguns eruditos acreditam que por ter sido a tortura ordenada
pelo governador romano, não podendo ser atribuída aos judeus, os evangelistas -fiéis ao seu propósito
tendencioso -silenciaram sobre as feridas de Jesus. Outros julgaram a reticência deles em matéria tão
penosa um louvável e "notável comedimento", como se, antes de suscitar as emoções de seus leitores
"insistindo nos sofrimentos de Jesus", eles atenuassem o caso. Outros, ainda, opinaram que a tortura era
comum e generalizada, a tal ponto que aqueles pra quem os evangelistas escreviam não precisavam que se
lhes contasse sobre os efeitos dos suplícios e aspecto das vítimas, o que tornava dispensável os detalhes.31
Mas todas essas conjecturas têm a natureza de uma reflexão para esclarecer uma omissão inexplicável. Eu
seguiria antes a doutrina teológica de que, se os evangelistas não descreveram a situação digna de piedade
de um Jesus flagelado, foi porque não houve tal situação e porque ele estava de fato ileso, sem alteração
da aparência externa. Mas enquanto alguns teólogos sustentam que isto foi por graça de um milagre
divino,32 que interveio para impedir que a tortura causasse danos em Jesus ou para eliminar logo qualquer
mal provocado, temos de procurar uma explicação mais racional: se a aparência de Jesus não fora afetada
e não se alterara, dir-se-ia que a flagelação foi tão leve e superficial que não deixou marcas externas.
Talvez tenham sido os mesmos soldados que flagelaram Jesus João 19,1 e que zombaram dele João 19,2-
3; Marcos 15,20; Mateus 27,31, por alguma razão ou outra, eles se contiveram e não recorreram àquela
- 101 -
violência que os legionários estavam inclinados a usar na flagelação de suspeitos ou condenados,
particularmente dos escravos e estrangeiros.
Qualquer prova que venha a ser exigida para essa tese é proporcionada pela história de Simão, o cireneu.
Normalmente, o condenado seria atado às vigas (turca) da cruz e açoitado durante todo o percurso até o
lugar da crucificação; já era uma questão de graça ou indulgência se lhe fosse permitido carregar apenas a
trave da cruz (patibulum) sem ser atado a ela. O patibulum seria pregado ao poste que ficava
permanentemente no local de crucificação, assim formando a cruz; o condenado podia ser atado ou
pregado, quer antes de começar seu caminho, quer quando chegava ao local. Não há dúvida de que, como
uma questão de lei, o transporte de pelo menos o patibulum era parte integrante da punição, e nenhum
condenado podia se livrar disso,37 tanto que há eruditos que descartam toda a história de Simão como não
histórica, algo que nunca aconteceu, nem podia acontecer.38 sugeriu-se um meio-termo, geralmente
aceito, de que Jesus carregou o patibulum ele próprio durante parte do trajeto, até cair sob seu peso,
quando os soldados pediram a um passante, que aconteceu ser Simão, que o aliviasse do patibulum e o
carregasse no lugar dele. A solução baseia-se em antiga tradição cristã, segundo a qual ela reconcilia os
aparentemente contraditórios relatos do Evangelho: por um lado, Jesus carregou a cruz ele próprio, como
está em João (19,17); por outro, ela foi transportada por Simão, como relatado nos Evangelhos sinópticos.
Se essa teoria for aceita, Jesus terá sofrido a dor adicional de carregar sua cruz, mesmo tendo sucumbido
ao peso, enquanto Simão, o cireneu, ainda executou a tarefa que os Evangelhos sinópticos lhe atribuem.
Não podemos, não obstante, evitar a especulação quanto ao motivo pelo qual nenhum Evangelho tem uma
só palavra para sugerir que Jesus sucumbiu sob a carga excessiva; por que João não adotou a tradição de
que Jesus foi aliviado da carga, embora somente depois de cair? Por que os Evangelhos sinópticos situam
o incidente com Simão no momento mesmo em que "saíram" do pretório (Mateus 27,32; Lucas 23,26),
ignorando a tradição de que Jesus carregou sua cruz ele próprio durante parte do caminho. Isso causa tanto
mais perplexidade quanto carregar a cruz, e o sofrimento que isso significava, tiveram sem dúvida grande
significação teológica.
Antigos teólogos mantiveram que os autores do Evangelho de João suprimiram a verdadeira e, mesmo
para eles, bem conhecida tradição de Simão, o cireneu, pelo motivo de ter ela dado origem a uma doutrina
gnóstico-herética segundo a qual foi Simão, e não Jesus, o crucificado:39 o homem que transportava o
patibulum nas costas teria sido tomado pelos carrascos de serviço no lugar da crucificação -que não eram
necessariamente os mesmos militares que escolta- ram Jesus até lá -como o homem a ser crucificado; e foi
assim que Simão morreu na cruz e Jesus foi salvo. Se Simão pudesse ser representado como não existente
ou, pelo menos, como nunca tendo. carregado a cruz ou como ausente na crucificação, ele não poderia ser
facilmente tomado como o homem que foi crucificado. Mas parece que a doutrina em questão foi primeiro
proposta por um certo Basilides, que "iveu muito tempo depois que o Evangelho segundo João foi
publicado.4° Outra teoria consiste em que o quarto evangelista não podia, ou não queria, acreditar que
Jesus não praticaria fielmente o que ele próprio muitas vezes pregara: levar a própria cruz e negar a si
mesmo era o sine qua non de pertencer aos seus discípulos (Mateus 10,38; 16,24; Marcos 8,34; Lucas
14,27), por isso os evangelistas repeliram a idéia de que ele pode ter permitido a uma outra pessoa
carregar a cruz em seu lugar.41 Contudo, Jesus advertiu a "qualquer um" que desejasse segui-lo "que se
negue a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (Mateus 16,24 ), o que pode ter levado os autores dos
Evangelhos Sinópticos a apresentar a história de Simão: ali estava um homem que negava a si próprio e
carregava a sua cruz -o modelo a ser seguido por todos que quisessem aderir à fé cristã. Por consenso
comum, no entanto, tal advertência parece ter sido coloca- da na boca de Jesus pelos evangelistas que
escreveram sob o impacto da crucificação: a idéia de carregar a cruz como sinal de adesão ao cristianismo
ou como um pré-requisito dessa adesão é apenas um eco da própria crucificação de Jesus, e não podia ser
divulgada por ele ainda em vida. Foi assinalado que a expressão "carregar a própria cruz" ou "carregar nos
ombros a sua cruz" também é encontrada na literatura talmúdica: podendo, portanto ter sido uma metáfora
em uso comum Já nos dias de Jesus; mas todas as fontes onde ela ocorre são de um período muito ulterior,
e não é impossível que o seu emprego, mesmo pelos judeus e em hebraico, seja um resultado indireto e
certamente não desejado da crucificação de Jesus. Neste contexto, é interessante notar que a frase aparece
como um comentário à história de que Abraão tomou a lenha do holocausto "e a colocou sobre Isaac, seu
filho" (Gênesis 22,6), uma história que - acreditam alguns eruditos -pode ter influenciado o quarto
- 102 -
evangelista a fazer com que Jesus transportasse sua cruz, como Isaac transportou a lenha para o seu
próprio sacrifício.
A probabilidade de que o autor do Evangelho segundo João, por motivos teológicos em si, tenha
descartado a tradição sinóptica de Simão, o cireneu, e a substituição pela afirmação de que Jesus carregou
ele próprio a cruz é aumentada pelo fato já observado de que ele também tomou alguma liberdade com
outros e não menos importantes detalhes da história da crucificação: enquanto os outros três Evangelhos
são unânimes e razoavelmente pouco ambiciosos ao relatar que os soldados romanos foram incumbidos de
todos os procedimentos da crucificação, a partir do momento da "entrega" de Jesus por Pilatos até o final,
João relata, ou insinua, que ele foi entregue aos judeus, que os Judeus o levaram, e que "eles" o
crucificaram (19,16-18), um relato tão flagrantemente errado, que de imediato o evangelista se contradiz
(19,23). Mas, tendo sido os judeus que levaram Jesus, era apenas natural que ele próprio tivesse de levar a
cruz: certamente "os judeus", seus arquiinimigos brutais, como são representados, não lhe concederiam
alívio da carga, menos ainda porque a lei requeria que ele a transportasse. É quase axiomático que, se o
autor do Evangelho segundo João julgou adequado, por motivos teológicos e políticos, colocar os 'Judeus"
no lugar dos soldados romanos que levaram Jesus para a crucificação, ele não pode ter tido muitos
escrúpulos em deixá-lo, por motivos éticos e teológicos, carregar sua própria cruz.
Legalmente falando era expressamente proibido pedir a um inocente passante que transportasse a cruz de
um condenado: isso significava transferir parte da sentença a ser cumprida pelo condenado a um estranho
de todo inocente. Mas é sugerido que a credibilidade do relato não é afetada pela ilegalidade dos fatos
relatados: onde, num assunto criminal que envolve punição capital, são relatados procedimentos em que
juízes competentes, doutos nas leis, não apenas ignoraram inteiramente a lei substantiva a ser por eles
aplicada, mas também infringiram todas as normas de procedimento estatutário -um tal relato, dizíamos,
não é digno de crédito, especialmente se os juízes em questão são geralmente conhecidos por serem
formalísticos e conscienciosos ao aplicar a lei. É diferente o caso com homens como os soldados romanos
que levaram Jesus para a crucificação, gente rude e não educada que age de conformidade com ordens
dadas expressamente ou segundo seus instintos e inclinações de momento: sua desatenção às formalidades
legais pode ser prontamente acreditada e em si nada prova. Mesmo presumindo que, quando levavam
Jesus, os soldados estavam sob o comando de um oficial que conhecia a lei e que eles não agiriam sem a
aprovação deste, não é improvável que, nesse caso particular, ele tivesse aprovado: quando se contorna a
letra da lei para aliviar o acusado e tornar as coisas mais fáceis para ele, a ilegalidade é, naturalmente,
muito menos repreensível do que quando ela é transgredida em seu detrimento; e a inflição de sofrimento
e castigo ao condenado enquanto ele seguia para crucificação era, de qualquer forma, em grande parte
deixada ao arbítrio de seus guardas e carrascos. Como ninguém os censuraria por causa de qualquer
excesso de tortura, presumivelmente ninguém os censuraria se decidissem exercer o auto controle e não
esgotar seu poder de castigo.
Este autocontrole pressupõe que, por algum motivo, os soldados e seu oficial tiveram compaixão por
Jesus. Talvez os tenha impressionado sua reação, ou falta de reação, quando dele escarneceram, ou tenham
recebido instruções para apressar a crucificação. Qualquer que seja a razão, embora Jesus tivesse de
carregar ele próprio o seu patibulum, e no curso normal dos acontecimentos a isso teria sido compelido,
quando deram com Simão, o cireneu, que estava, como consta da tradição cristã, muito desejoso de ajudar,
eles lhe deram a cruz para que a transportasse. Não há, afinal, nada que surpreenda nessa prestimosidade:
qualquer passante judeu, ao encontrar uma unidade de soldados romanos escoltando um judeu para a
crucificação, teria instintivamente, sem esperar que lhe pedissem, se oferecido para executar este último
ato de compaixão. E para soldados romanos seria desprovido de importância qual judeu carregasse a cruz,
desde que eles próprios não tivessem que fazê-lo.
Para resumir: se o governador romano tinha, com efeito, antes de sentenciar Jesus, ordenado que ele fosse
flagelado, como é relatado em João e indicado em Marcos e Mateus, ele provavelmente foi flagelado, mas
não torturado tão severamente quanto era a prática romana normal em relação aos acusados de laesa
maiestas ou de professar a fé cristã, porém tão leve e superficialmente que o castigo não deixou sinais
exteriores visíveis. Jesus pode ter recebido vários golpes ou pancadas, não com o objetivo de extrair outras
confissões de culpa da parte dele, mas apenas com o objetivo de compeli-lo ou induzi-lo a exprimir pesar
e arrependimento e a prometer que j á não veicularia pretensões a ser rei. Como lhe foi poupada a tortura
convencionalmente infligida às pessoas acusadas do mesmo crime, assim também lhe foram poupados a
- 103 -
flagelação e o sofrimento que usualmente acompanhavam a crucificação: não apenas não foi ele despido,
mas foi coberto com suas próprias roupas ao ser levado para o local da crucificação; não apenas não lhe
foi exigido que carregasse o seu patibulum ele próprio, como também não lhe aplicaram as agressões
habituais (f1agelatio) pelo caminho. Tudo o que sabemos atesta que lhe foi permitido seguir livremente c
sem ser mais molestado: parece que os que 0 escoltavam haviam esgotado sua energia e maldade na
pasquinada precedente, ou estavam poupando as forças para o esforço que se seguiria.

A CRUCIFICAÇÃO

Jesus foi levado para um lugar chamado Gólgota, que significa "o lugar da caveira" (Mateus 27,33;
Marcos 15,22; João 19,17), dito Calvário na versão de Lucas (23,33), onde, ao que parece, eram
costumeiramente realizadas as execuções romanas. Ele não foi o único prisioneiro a ser levado ali aquele
dia –com Jesus estavam dois outros João 19,28), que são descritos em Marcos e Mateus como lestai,
vocábulo ekoneamente traduzido na versão King James como "ladrões", já que significa bandidos ou
salteadores (Marcos 15,27; Mateus 27,38), e qualificados por Lucas como kakourgoi, criminosos ou
"malfeitores" (23,33). Foi sugerido que ambos eram provavelmente zelo tas rebeldes, condenados à morte
por terem tomado parte numa recente insurreição em Jerusalém.3 Fossem quais fossem seus antecedentes,
o fato de terem sido mandados à crucificação prova que, como Jesus, eles foram condenados pelo
governador romano por um crime capital segundo a lei romana.
Foi amplamente acreditado, e reafirmado recentemente,4 que os romanos não detinham o monopólio da
crucificação e que os judeus, mesmo antes da ocupação da Judéia pelos romanos, haviam adotado . o
método dos modelos persas. A crença pode fundar-se na tradição joanina de que foram os judeus, e não os
romanos, que crucificaram Jesus; e demonstramos que essa tradição é controvertida no próprio Evangelho
segundo João (19,23). Mas atualmente ela é reforçada por argumentos e provas de fontes judias, que lhe
dão antes a aparência de uma descoberta científica do que de uma crença tradicional; e embora alguns dos
argumentos tenham sido conclusivamente refuta- dos,5 os problemas penalógicos e lego-históricos
envolvidos ainda precisam receber a atenção que merecem. E a questão não é apenas de interesse legal ou
penalógico; o fato de que uma tradição que se originou de uma deturpação tendenciosa possa ser, e está
sendo hoje em dia, ressuscitada e justificada com uma aparência de erudição imparcial torna indispensável
a vigilância crítica.
Uma grande parte da confusão decorre de uma terminologia imprecisa. Acontece que o termo hebraico
moderno para "crucificar", tselov, é a antiga palavra aramaica para "pendurar"; sempre que a Bíblia fala
em suspensão (hebraico: taloh), a tradução aramaica autorizada é tselov6, donde se concluiu mui
injustificadamente que todas as suspensões bíblicas eram crucificações. Na verdade, o hebraico tselov não
deriva em absoluto do aramaico, mas de outra raiz hebraica, shelov, que tem o sentido de fixar ou prender
uma na outra tábuas ou vigas de madeira,7 enquanto o aramaico tselov provém, com toda a probabilidade,
do assírio dalabu, "que causa dor ou aflição"s. É verdade que, em assírio, há pelo menos duas outras
palavras para suspensão,9 cujos derivados também ocorrem em aramaico,¹º e foi dito que, sempre que não
usadas essas outras palavras, a intenção é comunicar a noção de suspensão não no sentido legal, enquanto
as suspensões judiciais são expressas por tselivot.¹¹ Mas nada se pode inferir do fato de que o termo
hebraico "pendurar" se traduz por tselov em aramaico, e que tselov em hebraico significa "crucificar"; a
identidade da palavra hebraica para "crucificar" e a palavra aramaica para "enforcar" é mais aparente do
que real. A distinção em hebraico entre "pendurar" ( taloh ) e "crucificar" ( tselov ) é pós-bíblica e ocorre
pela primeira vez em fontes talmúdicas; o hebraico bíblico, em contraste com o aramaico, não conhece a
palavra tselov, seja para "crucificar" ou de outra forma; e mesmo supondo - embora não admitindo -que a
palavra aramaica tselov podia também ter o sentido de crucificar, isso significaria apenas que os tradutores
- 104 -
aramaicos da Bíblia julgavam que em linguagem bíblica não se podia, nem se precisava fazer qualquer
distinção entre pender da cruz e pender do patíbulo. Pode ser, com efeito, que nem o hebraico taloh, nem o
aramaico tselov esteja ligado a qualquer modo particular de pender e que o modo usado num caso dado
tinha de ser descoberto de outra forma que não pela palavra usada para "pendurar". Esta diferença não
existe em fontes talmúdicas, onde as suspensões como tal são expressamente diferenciadas das mortes
executadas "da maneira ( ou modo) aplicada pelas forças do governo"12, uma alusão direta ao modo
específico praticado pelas forças romanas, a saber, a crucificação. A expressão "da maneira praticada pelo
governo" já denota um meio-tom de coisa estrangeira, como se fosse desejado dissociar-se de um método
estrangeiro e exótico para o qual não havia lugar quer nas leis, quer na língua próprias.
O hebraico tselov, "crucificar", é encontrado uma vez nos Manuscritos do Mar Morto. O versículo "O leão
dilacerava o bastante para as suas crias e estrangulava para as suas leoas" (Naum 2,12) é interpretado no
comentário ao Livro de Naum como segue: "Este é o jovem leão que aplicou vingança àqueles que
buscavam atenuar as coisas, e a todos crucificou no mesmo dia; tal coisa nunca aconteceu em Israel, pois
está escrito que o que for pendurado no madeiro é maldito de Deus" (Deuteronômio 21,23). Eu traduzi a
palavra tsalav no texto por "crucificou": a maioria dos tradutores a traduz por "pendurou Vivos"13. Na
suposição, portanto, de que temos de concluir, pelo emprego do termo tsalav, que o sentido a ser
comunicado é pendurar por crucificação, vemos que o comentário relata não apenas que havia um "leão"
judeli que se vingou dos seus inimigos crucificando-os, mas também que algo como pendurar por
crucificação nunca acontecera antes em Israel. E nem podia jamais ter acontecido, pois do ponto de vista
judeu e de acordo com a mais antiga tradição judaica, pendurar vivo, por crucificação ou de outra forma,
era uma "afronta a Deus" e uma profanação da terra santa.14 Uma maioria de eruditos acredita que o
'Jovem leão" era Alexandre Janeu, rei dos judeus, do qual Josefo relata ter ordenado a morte de oitocentos
fariseus, suas mulheres e filhos, enquanto ele e suas concubinas se divertiam com o espetáculo e o
festejavam: os oitocentos foram "crucificados" e suas mulheres e filhos foram "passados ao fio da espada"
diante dos olhos deles.15 Outra sugestão é de que a referência liga-se à matança de sessenta dos anciãos
de Israel, o que se diz ter sido feito por um sacerdote chamado Eliakim, que era um colabora- dor do
inimigo,16 mas a expressão que descreve a matança é "passa- dos ao fio d.a espada", e não "crucificados",
e o texto não apresenta evidência de enforcamento ou crucificação. Alexandre Janeu, no entanto, desde
que se acredite em Josefo, precisava pendurar suas vítimas vivas, pois ele queria que elas, antes de expirar
em suas cruzes, vissem as atrocidades que sofriam seus entes queridos. Por mais que conjecturemos sobre
o que ocorreu e quem era o "jovem leão" que crucificou os seus adversários, tudo o que se pode aprender
desse comentário essênio sobre Naum é que a crucificação havia deixado uma impressão tão indelével no
espírito do povo comum, depois que aconteceu, que nunca foi esquecida ou perdoada, pois era coisa
inédita nos anais de Israel e conflitava com todo costume e tradição.
Os modos de execução que vemos prescritos ou descritos na Bíblia são o apedrejamento (Deuteronômio
17,5 et al., o fogo (Levítico 20,14 et al., o enforcamento Josué 8,29 et al. e a espada (Deuteronômio
20,13). Por motivos que mais adiante examinaremos, os codificadores mishnaicos eliminaram o
enforcamento e acrescentaram "estrangulamento".18 No que diz respeito às suspensões bíblicas, é
necessária uma distinção entre pendurar vivo e pendurar depois da execução; não há lei bíblica que
prescreva pendurar como tal, como uma maneira apropriada de provocar a morte. Todos os exemplos
registrados de mortes infligidas por suspensão são relatos factuais, e não prescrições legais. Há, no
entanto, uma lei explícita que ordena que a pessoa seja pendurada depois da execução: "Se alguém houver
pecado, passível de pena de morte, e tenha sido morto, e o pendurares num madeiro, o seu cadáver não
permanecerá no madeiro durante a noite, mas certamente o enterrarás no mesmo dia: assim não
contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança" (Deuteronômio 21,22-23). As
execuções tinham de ocorrer ao fim da tarde,2° para que o corpo fosse retirado do "madeiro" logo depois
de suspenso, antes do crepúsculo.2l Longe de ser uma manifestação de triunfo sobre os malfeitores ou de
júbilo por sua morte,22 era antes um cumprimento, formal e apressado, da injunção escritural para que
todo o povo veja "e tema, e jamais se ensoberbeça" (Deuteronômio 17,3) e para que o criminoso seja
exposto no pelourinho contra o sol (Números 25,4); a dissuasão das pessoas era, compreensivelmente, o
objetivo principal de toda punição. "O que é suspenso é maldito de Deus" foi interpretado, com
autoridade, como significando que "é uma maldição diante de Deus suspender um homem ";23 enquanto
que, para dissuadir criminosos potenciais, pode ser uma triste necessidade que os condenados sejam
- 105 -
pendurados e expostos publicamente, não pode haver maior calamidade, aos olhos de Deus, do que
pendurar um próximo. A relutância em pendurar criminosos, mesmo depois de uma execução estatutária,
levou, em última instância, a uma reforma da lei: enquanto a lei bíblica não distingue entre crimes capitais
quanto a pendurar o corpo inerte, foi estabelecido mais tarde que se deveria limitar esta prática aos
idólatras e aos que blasfemaram contra Deus ao pronunciar Seu Nome inefável: desses se pode dizer que
são pendurados por amaldiçoar Deus e, quando pendurados, são amaldiçoados por Ele. Em matéria de lei,
portanto, a suspensão nunca era mais do que pendurar um condenado depois de morto, prática que era
reservada, em última instancia, aos idólatras e blasfemos.
Quanto aos exemplos relatados de pessoas enforcadas, sugere-se que são todos ou não-judeus condenados
ou não judiciais, ou ambas as coisas, e que não há caso na Bíblia de uma execução judicial por
enforcamento. Exemplos de enforcamentos de não-judeus são os ordenados por Faraó, rei do Egito
(Gênesis 40,22), por Assuero, rei da Pérsia e da Média (Éster 7,10; 9,14 ) e os gibeonitas (2 Samuel 21,9),
de todos os quais podemos supor terem agido de acordo com suas próprias leis e costumes. Sempre que
encontramos enforcamentos pelos judeus, isto se passa durante as guerras ou operações bélicas: Josué
enforcou o rei de Ai numa árvore Josué 8,29, mas mesmo então "ao pôr do sol, tiraram do madeiro o
cadáver" (ibid.). Também vemos Josué pendurando cinco homens depois de uma execução pela espada
(10,26). Quando Davi ordenou a execução dos assassinos de Is-Bosete, seu inimigo, eles foram primeiro
mortos, depois lhes foram cortados os pés e as mãos, e, finalmente, os corpos foram pendurados junto ao
açude em Hebron (2 Samuel, 4,12). A injunção de "enforcar ao Senhor, ao ar livre:' (Números 25,4 ) todos
os que se haviam curvado diante de deuses estrangeiros foi correta- mente interpretada não como dirigi da
a órgãos judiciais, mas como um apelo a uma operação bélica, inteiramente não judicial;25 no entanto, é
questão que suscita sérias dúvidas se o termo aqui usado, hoqa, de fato representa à enforcamento; a
melhor opinião aponta no sentido de expor no pelourinho.26
A lei bíblica, portanto, só conheceu a suspensão como um meio de dissuasão, depois de consumada a
execução e que a morte sobreviesse de alguma outra maneira: esta prática não era, pois, usada para matar
um condenado. É apenas em épocas posteriores que encontramos a suspensão como uma forma de
execução trazida para a lei judaica e de procedência estrangeira. A prova mais importante disto está no
livro de Esdras: num decreto atribuído ao rei persa Ciro, lemos que "Todo homem que alterar este decreto,
uma viga se arrancará da sua casa, e que seja ele levantado e pendurado nela; e que de sua casa se faça um
monturo" (Esdras 6,11). A viga a ser "arrancada de sua casa" podia, é claro, ser transformada tanto numa
forca como numa cruz; mas diz-se que o decreto teve o efeito de introduzir em Israel o modo persa de
execução e que o modo era exclusivamente a crucificação. Em primeiro lugar, no entanto, embora existam
registros de crucificação na Pérsia, não se segue que este fosse o único modo de execução em voga no
país: o enforcamento e a crucificação, igualmente, podem ter sido conhecidos e praticados. E, em segundo
lugar, não é relatado um só exemplo de execução judicial praticada no antigo Israel da maneira autorizada
por Ciro ou no exercício do poder específico conferido por ele. Sabemos de fontes bíblicas (por exemplo,
o Livro de Éster) que os reis persas penduravam seus condenados "na forca " (Éster 8,7, et al. ) e, de
outras fontes, que os reis persas crucificavam suas vítimas.28 Mesmo supondo, portanto, que a
crucificação podia ser encarada como um modo persa de execução ou como o modo persa de execução, o
simples fato de que as autoridades judias então sujeitas à suserania persa estivessem autorizadas a aplicá-
la, particularmente aos crimes segundo a lei persa, como a desobediência à "palavra" do rei, não indicaria
em si mesmo qualquer mudança na lei judaica ou na competência e prática dos tribunais judaicos como
tal. Não obstante, diz-se haver aqui uma "recepção" da lei persa atestada pela própria Bíblia, e é esta
"recepção" que é evocada como prova da afirmação de que crucificar tornara-se um modo judeu de
execução.
Outro exemplo é fornecido pela tradução aramaica do Livro de Rute. A tradução é pós-talmúdica,29
portanto posterior vários séculos aos acontecimentos que nos interessam. As palavras de Rute "onde quer,
quer morreres, morrerei eu" (Rute 1,17) foram hermeneuticamente consideradas como significando que,
dentre as outras prescrições da lei judia, Rute também assumiu as que se referiam à pena capital; como se
ela tivesse dito: De todas as maneiras que fores morto segundo as tuas leis, eu também estarei disposta a
ser morta. Esta interpretação é exprimida na versão aramaica autorizada como segue: "Noemi disse a
Rute: Temos quatro modos legais de execução, a saber, o apedrejamento, o fogo, o fio da espada e a
suspensão; ao que Rute disse: Seja qual for a maneira pela qual tu morreres, eu morrerei." Será que em
- 106 -
tempos pós-talmúdicos a tradição mishnaica do estrangulamento caíra no esquecimento, tendo sido
substituída por uma tradição de estrangulamento na forca? Ou houve outra reforma nesse meio-tempo,
substituindo-se o modo arcaico de estrangulamento pelo modo mais misericordioso de enforcamento? Ou
devemos desde logo descartar o texto como uma declaração obviamente errônea de lei feita por um leigo
ignorante? Pode-se, penso eu, tirar razoavelmente uma conclusão de substituição, a saber, que no
estrangulamento, como no enforcamento aqui mencionado, a morte é causada por estrangulamento e, sob
o aspecto da causa fisiológica da morte, não haveria qualquer diferença entre enforcamento e
estrangulamento.32 Mas nesse caso seguir-se-ia que o enforcamento aqui referido não pode ter sido
crucificação, pois na crucificação, como veremos, a morte não sobrevém por estrangulamento.
Admitidamente, foram praticados enforcamentos por autoridades judias ou por sua iniciativa, num
momento ou noutro, em períodos talmúdicos e pós-talmúdicos; mas sugere-se, e será demonstrado, que
todas foram execuções por estrangulamento, nas quais o condenado morria por asfixia e que podiam
apropriadamente ser classificadas, portanto, como "estrangulamento". A crucificação, por outro lado, é o
único modo de suspensão em que a morte não se deve à asfixia, mas à exaustão ou outras causas de que
falaremos. Assim, nos enforcamentos normais, a morte é instantânea, enquanto na crucificação ela pode
prolongar-se por horas, e mesmo dias. Se o enforcamento normal pode ser considerado um modo
razoavelmente humano de execução, por causa do seu caráter instantâneo, a crucificação deve ser
estimada como extremamente desumana, se apenas por causa da sua duração. O que os dois modos têm
em comum não é mais do que o nome: execução na forca e execução na cruz são igualmente referidas
como "suspensões".* Mesmo a crucificação de Jesus é qualificada no Novo Testamento como suspensão,
e a sua cruz como a árvore onde ele foi suspenso** (Lucas 23,39; Atos 5,30; 10,39).
O mais notório dos enforcamentos judeus é o que se diz ter sido decretado por Simão ben Shetah (II a.C.):
oitenta feiticeiras foram enforcadas num só dia em Ascalon.33 A história, que procede de um período
ulterior, diz que um sábio sonhou que seu mestre morto lhe contara que o grande Simão ben Shetah teria
de sofrer as penas do inferno por causa das feiticeiras que abundavam em Ascalon, contra as quais não se
estava aplicando a lei.34 Quando Simão ouviu isso, prontamente aplicou a lei, quer com a ajuda de oitenta
rapazes que,
* Em inglês, hangings. (N do T.)
** João Ferreira de Almeida usa "crucificação" e "pendurado" Já a Bíblia de Jerusalém fala em
"suspensão". e em "suspenso". (N do T.) segundo a história, ele recrutou para o objetivo, quer mediante
outros carrascos. Levantaram-se objeções à historicidade desse enforcamento em massa mas se, com
efeito, ele ocorreu, surge a questão de saber se resultou de procedimentos judiciais ou se foi uma medida
de emergência empreendida sob a responsabilidade pessoal de Si- mão, atuando este não como um juiz,
mas como uma autoridade executiva. A segunda possibilidade é mais provável pelo fato, comentado no
Talmude!6 de que foram desconsideradas regras de procedimento e de provas, sabendo-se, contudo, que
Simão era conhecido por insistir, em sua capacidade judicial, no cumprimento mais estrito de todas as
formalidades e, em particular, das regras quanto às provas, e também pelo fato de que, segundo a lei, essas
mulheres deveriam ter sido apedrejadas, e não enforcadas. Assim, tornou-se uma bem estabelecida
tradição judia que a ação de Simão teve caráter de emergência, tendo sido sustentado que "não se pode
inferir qualquer lei de medidas de emergência".
Embora não disponhamos de qualquer informação quanto à particular "emergência " que instigou Simão a
fazer o que se diz que ele fez, certamente conhecemos a lei, que reza que, para incorrer em pena de morte,
a feiticeira ou feiticeiro precisa ter cometido um ato real de feitiçaria ou bruxaria, e o ato ter sido provado
por pelo menos duas testemunhas oculares; reivindicar simplesmente o talento de praticar feitiçaria,
mesmo executando feitos de prestidigitação ou malabarismos para fazer com que as pessoas acreditem que
se possui poder mágico, não é bastante.4o Ao mesmo tempo, reivindicar o talento de praticar feitiçaria é
também proibido, embora não seja, rigorosamente falando, um crime. Se as feiticeiras de Ascalon não
haviam ainda cometido quaisquer atos reais e manifestos de feitiçaria propriamente dita que pudessem ser
provados contra elas, mas haviam pretendido possuir poderes sobrenaturais e feito com que as pessoas
acreditassem, as autoridades responsáveis por manter a ordem e a religião podem ter se sentido chamadas
a dar um basta sumário à perigosa trapaça, tanto mais que ela evidentemente ameaçava tornar-se
endêmica, se oitenta mulheres estavam achando que praticavam feitiçaria, numa pequena cidade como
Ascalon. Tivessem as mulheres sido apedrejadas, poder-se-ia criar a falsa imagem de uma execução
- 107 -
regular, depois de um julgamento regular; elas foram deliberadamente enforcadas, para se mostrar
publicamente que haviam perdido suas vidas, embora não pudessem ser levadas a Jerusalém para
julgamento e execução no devido curso de um processo legal. Uma tal perda de vidas extrajudicial podia,
aos olhos de homens como Simão ben shetah, justificar-se pelo mandamento divino "A feiticeira não
deixarás viver" (Êxodo 22,18) ou "Não se achará entre ti feiticeira" (Deuteronômio 18,10), mandamentos
dirigidos não à feiticeira e proibindo a prática de suas artes, mas ao cidadão e, a fortiori, aos lideres da
comunidade, recomendando-lhes que não suportassem a presença ou a atividade de uma feiticeira em seu
meio, tivesse ela sido ou pudesse ser judicialmente processada ou não. Esta ampla, mas ainda literal,
interpretação do mandamento divino foi invocada até a Idade Média, em toda a cristandade, para justificar
a perseguição às feiticeiras. A ação de Simão contra as feiticeiras de Ascalon tinha de ser rápida para
lograr êxito: se fossem divulgadas as medidas planejadas, elas provavelmente desaparece- riam. Portanto,
ele ordenou que a ação fosse completada num só dia, mesmo se isto significasse empregar oitenta
carrascos. E como a execução tinha de ser rápida, o enforcamento era o método mais expedito de causar a
morte. As feiticeiras nunca teriam sido crucificadas, pois isto implicaria em morte lenta, prolongada e
dolorosa.
As feiticeiras não eram as únicas criminosas que podiam ser mortas sem o devido processo legal: parece
ter sido dada licença similar, por lei, no que diz respeito a certos idólatras e profanadores de templo
capturados in flagrante delicto: e, dizem alguns eruditos, a respeito também de incita dores à idolatria
assim presos. Mas em nenhuma parte há indicação de que a morte, em qualquer desses casos, foi infligida
por enforcamento; pelo contrário, vemos que num caso o modo prescrito ou autorizado foi passar pelo fio
da espada, reproduzindo o ato "zeloso" de Finéias, que "pegou uma lança" e matou o criminoso inflagrante
(Números 25,7-8,11). Pode parecer odiosa aos espíritos modernos essa espécie de dispensa do devido
processo legal, mas para os antigos o exemplo de Finéias conservava todo o seu esplendor. Nas palavras
de Filo Judeu, um contemporâneo de Jesus: "É com justiça que todos aqueles que estão imbuídos de zelo
virtuoso têm o direito de infligir uma punição [em idólatras surpreendidos in flagrante] sem os levar diante
de um tribunal, conselho ou outra autoridade; eles são qualificados pelo ódio que devotam ao mal e pelo
amor que dedicam a Deus... e podem estar convencidos de que, naquele momento, são conselheiros,
juízes, comandantes, membros de assembléia, acusadores, testemunhas, leis, e mesmo o povo em seu
conjunto -tudo a um só e mesmo tempo."
segue-se que os enforcamentos de Simão ben shetah não emprestam qualquer apoio à teoria de que o
enforcamento era um modo comum e aprovado de execução judia. Recorria-se a ele apenas quando não
eram legalmente disponíveis modos judiciais legítimos ou, possivelmente, também com o propósito de
mostrar que a execução era não judicial. Era escolhido como um modo emergencial pelo motivo de levar a
uma morte rápida e relativamente não dolorosa; daí conclui-se que não podia ser suspensão por
crucificação, numa cruz, pois isso era tão vagaroso quanto doloroso, mas suspensão numa estaca ou forca,
onde a morte sobrevém por estrangulamento.
Quão dolorosa e vagarosa era a morte por crucificação é revelado nos próprios Evangelhos. A tradição do
Evangelho fixa a hora da crucificação de Jesus como sendo a terceira (Marcos 15,25), e se levamos em
conta tudo o que se diz ter acontecido naquela manhã, primeiro no palácio do sumo sacerdote, depois a
condução de Jesus ao pretório, depois o julgamento diante de Pilatos, e finalmente o trajeto de Jesus até o
local da execução, esta era a hora mais matinal possível para fixar. Na sexta hora, como nos é contado, isto
é, quando Jesus já estava na cruz havia três horas, "houve treva sobre toda a terra " (Lucas 23,44; Marcos
15,33; Mateus 27 ,45), e três horas mais tarde, na nona hora, Jesus clamou em alta voz: "Deus meu, por
que me desamparaste?" (Mateus 27,46; Marcos 15,34), ou "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito"
(Lucas 23,46).Jesus sobreviveu na cruz por seis horas.
Mateus conta que vinho com fel foi dado a Jesus para beber, mas ele, provando-o, não quis beber (27,34);
segundo Marcos, era vinho com mirra, "e ele não tomou" (15,23). Sabemos por Lucas que "seguia-o
numerosa multidão de povo, e também mulheres que batiam no peito e o lamentavam" (23,27) e, com
certeza, eles o teriam seguido todo o caminho até o Gólgota. Combinando ambas as tradições, é
permissível, creio eu, inferir que foram as mulheres que acompanharam Jesus em seu caminho para a
execução e que o ajudaram nas suas últimas horas na cruz, que trouxeram o vinho e lhe pediram que
bebesse: era um antigo costume judeu que um homem condenado, quando levado para o lugar da
execução, tinha de receber um gole de vinho com incenso dentro "para que seu espírito se perdesse", isto
- 108 -
é, ficasse inconsciente; e foram "as queridas mulheres de Jerusalém que se apresentaram e trouxeram o
vinho" e lho ofereceram. Este costume é relatado no Tal mude em conexão com condenados prestes a
serem apedrejados, sendo que o apedrejamento, tal como praticado em tempos talmúdicos, também
termina numa morte muito rápida, não com a lenta agonia da crucificação. Mas, manifestamente, se "as
queridas mulheres de Jerusalém" cuidavam que mesmo um homem que se prestava a morrer por
apedrejamento devia ser anestesiado contra o excesso de dor, com tanto mais razão elas seriam solícitas
com um homem que enfrentasse a crucificação; e se faziam seu ato de graça a um homem prestes a morrer
por julgamento do tribunal judeu, elas tratariam até com maior compaixão um homem condenado à morte
pelo governador inimigo. Jesus não bebeu o vinho, e sua consciência esteve desperta durante as seis horas
em que ficou pendurado na cruz.
Segundo Marcos e Mateus, Jesus guardou silêncio todo o tempo, até a sexta hora, quando entregou o
espírito, mas Lucas e João relatam que ele falou. No momento da crucificação, ele disse, segundo Lucas:
"Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" (23,34), e quando os "malfeitores" que foram
crucificados com Jesus a ele se dirigiram, disse a um deles: "Em verdade, te digo que hoje estarás comigo
no paraíso" (23,43). Segundo João, quando Jesus viu sua mãe e junto a ela seu discípulo amado, ele disse
a Maria. "Mulher, eis aí o teu filho! " e ao discípulo: "Eis aí tua mãe!" (19,26-27); e prosseguiu: "Tenho
sede" (19,28). Não nos preocupam aqui as implicações teológicas de uma ou outra fala atribuída a Jesus;
que nos baste observar a tradição, comum pelo menos a Lucas e a João, de que quando estava na cruz ele
falou e que suas palavras foram ouvidas.
Também verificamos em fontes romanas que muitos homens sobreviveram longas horas na cruz e falaram
quando ali pendurados. É relatado, por exemplo, do rei púnico Bomílcar, crucificado por um proletariado
exultante, que, quando pendia da cruz, ele se dirigiu à multidão, queixando-se; diz-se que suas palavras
foram tão comoventes, que despertaram o remorso e a piedade do povo, mas quando silenciou, deu o seu
último suspiro. E o Imperador Cláudio exprimiu certa vez o desejo de testemunhar uma crucificação, da
qual ouvira falar como a mais antiga forma de execução: more maiorum, motivo pelo qual vários
condenados foram um dia crucificados diante de seus olhos; depois de olhar para eles por muitas horas,
Cláudio se impacientou, ou cansou-se, c ordenou que fossem mortos.
Sobre uma questão importante, penalogicamente, os Evangelhos silenciam: se Jesus foi pregado à cruz ou
amarrado a ela. Parece que era prática romana amarrar o condenado na cruz com cordas, e não pregá-lo a
ela. Mas é tradição cristã antiga que Jesus foi pregado à cruz: o primeiro texto a mencionar que Jesus foi
pregado à cruz é a história do incrédulo Tomé João 20,25); Paulo fala metaforicamente do "escrito de
dívida que era contra nós e que constava de ordenanças" como encravado por Jesus na cruz (Colossenses
2,14); e Justino Mártir parece ser o primeiro a falar de pregos atravessando os pés,55 O fato de que Jesus
expirou na cruz depois de transcorridas cerca de seis horas sustenta vigorosamente a tradição de que foi
pregado, e não amarrado: os pregos abriram feridas na carne, e ele deve ter perdido muito sangue, o que
apressou muito a morte, Se apenas amarrado, ele poderia ter agüentado mais tempo, até mesmo vários
dias, A teoria de que Jesus foi descido da cruz ainda com vida e a recente elaboração de que este
estratagema fora previamente tramado por ele58 também pressupõem que foi amarrado; devia ser sabido
que os pregos, com a inevitável conseqüência de hemorragia, provocariam rapidamente a morte, Uma
vítima pregada à cruz pode morrer de fraqueza induzida ou agravada pela perda de sangue e complicações
por causa das feridas abertas, Uma vítima amarrada pode morrer de fome ou sede, da inclemência do
tempo ou, especialmente durante a noite, por causa dos ataques de abutres e chacais, nenhuma delas
causas previsíveis, De que modo o fim da crucificação podia diferir de um caso para outro é ilustrado pela
história de Josefo, que, encontrando três amigos seus crucificados, pediu ao imperador que os perdoasse:
quando foram baixados, dois morreram, e apenas o terceiro sobreviveu,
A tradição de que Jesus foi pregado à cruz, e não amarrado, é corroborada ainda por fontes legais judaicas,
Certas disposições nas leis de purificação do Tal mude são fundadas na premissa de que as pessoas
crucificadas não apenas permaneciam vivas por um certo período de tempo, mas perdiam sangue nesse
período, E mais: o "prego da cruz" ( ou "o prego do crucificado") é mencionado nas leis sabáticas como
um apetrecho médico, e, como tal, algumas autoridades permitem que ele seja portado no Shabat, A
opinião médica da época parece ter se dividido quanto ao uso para o qual este prego devia ser
recomendado' havia aqueles que o julgavam infalível para diminuir as inchações e inflamações;62 outros
os preferiam como cura contra queimaduras de urtiga; um célebre médico ulterior insiste em prescrevê-lo
- 109 -
para o tratamento da febre terçã, Mas uma afirmação de que essas tolices supersticiosas importadas dos
pagãos ( os "emoritas") não deviam ser endossadas por sanção estatutária foi, em última instância,
derrotada em votação, por causa da opinião de que as leis do Shabat devem tomar conhecimento de tudo o
que os médicos podem, a qualquer momento, aceitar como terapeuticamente útil. É muito provável que a
crença na virtude médica dos pregos tenha sido importada de Roma, juntamente com a cruz: eles parecem
ter sido aplicados em Roma aos epilépticos e até para deter a expansão de doenças infecciosas e
epidêmicas.
O significado legal que os cânones judeus atribuíam aos pregos da cruz e ao sangue perdido neles sugere
não apenas que os romanos da Judéia crucificavam utilizando pregos, e não amarrando as vítimas, mas
também que estas crucificações não eram incomuns. A crucificação era, com efeito, o único modo de
execução "praticado
pelo governo" de Roma na Judéia,68 sendo aplicado amplamente. No ano 4 a.C., o governador romano
Varo ordenou que dois mil combatentes da resistência judia fossem crucificados nas montanhas de
Jerusalém;69 depois da crucificação de Jesus, vemos o governador Tibério Alexandre sentenciar Jacó e
Simão, filhos de Judas, o Galileu, à morte por crucificação; poucos anos depois uma segunda crucificação
em massa de zelo tas foi ordenada pelo governador Quadratus.71 Depois veio Félix, que superou seus
predecessores crucificando não apenas rebeldes e zelotas, mas também qualquer cidadão suspeito de
colaborar com eles.72 Félix sucedeu a Quadratus e, num só dia, mandou crucificar 3.600 judeus ou matá-
los a caminho da cruz.73 O imperador Tito mandou que os prisioneiros feitos durante o cerco de
Jerusalém fossem crucificados nas muralhas da cidade e, dias depois, 500 morreram desse modo. Os
soldados, relata Josefo, tiveram de torcer as miseráveis vítimas nas posturas mais macabras "porque o
número delas era muito grande e não havia espaço para as muitas cruzes, nem bastantes cruzes para os
muitos corpos".74 Portanto, pode-se deduzir que a crucificação era não apenas o modo de execução
judicial praticado pelos romanos na Judéia, mas também sua maneira não judicial ou paramilitar de aplicar
a morte punitiva; e, tendo em vista a infinidade de crucificações registradas por Josefo, não admira que o
destino das pessoas crucificadas tenha suscitado problemas legais de todo tipo e que tais problemas, por
sua vez, tenham provocado complicados debates.
À parte do contexto de purificação e de determinações sabáticas, encontramos essa discussão
principalmente nas leis de casamento e divórcio. Quando uma mulher que foi casada deseja casar-se
novamente, ela tem primeiro de apresentar provas de que o marido morreu; e o fato de que ele tenha sido
visto pender de uma cruz não é, em si, prova de morte. O motivo para essa norma é o de que "uma
matrona rica podia ainda chegar e redimi-lo" -uma indicação a mais do tempo que uma vítima podia
permanecer na cruz antes que sobreviesse a morte. Mas há um lado positivo nisso: quanto mais longa a
vida, mais brilhante a perspectiva de redenção. Podemos inferir que as mais ricas matronas entre "as
queridas mulheres de Jerusalém", que, como lemos, presenciavam as crucificações, vez por outra
logravam subornar soldados e oficiais romanos para fazer uma vítima que ainda respirava ser baixada da
cruz. Se testemunhas vissem animais selvagens ou abutres atacando o homem na cruz, seu depoimento
seria aceito como prova da morte, desde que as partes do corpo vistas sendo atacadas fossem vitais ("as
partes por onde sai a alma"); isto assinala o fato, aparentemente estabelecido pela experiência, de que a
morte na cruz não poucas vezes resultava de dilaceração por aves de rapina ou feras. Há também alguma
evidência de que não poucos imperadores romanos encaravam a crucificação como apenas um prelúdio
antes de se jogar o corpo às feras.
Na exegese talmúdica que se segue, é dito que pessoas, lugares e tempos diferem um do outro: um homem
morre rapidamente por causa de sua obesidade, um outro mais vagarosamente, sendo forte e atlético; num
lugar onde o tempo é mais fresco, os homens viverão mais do que onde é quente e seco; e é mais fácil
suportar o sofrimento físico no inverno do que no verão; Não se pode, portanto, estabelecer uma norma
geral para o tempo, ou mesmo o tempo mínimo e máximo durante o qual um homem pode manter-se vivo
na cruz. Mas é disposto que, ao se passarem três dias após a crucificação, já não se admite a prova, não
porque se possa supor que a vítima ainda estivesse viva, mas porque seus traços não seriam mais
reconhecíveis, o que faz com que não se deva confiar nas testemunhas para a identificação do homem que
viram pender, a menos que haja outros meios para tal.
Outra norma dispõe que, se um homem crucificado fala do alto da cruz e ordena que uma proposta de
divórcio seja escrita à sua mulher em seu nome, esta injunção deve ser cumprida: seu corpo pode ter se
- 110 -
enfraquecido, mas presume-se que seu espírito ainda está bem. A mesma norma aplica-se quando ele não
fala, mas mexe a cabeça em resposta à pergunta se deseja que a proposta seja escrita. O objetivo para se
escrever tal proposta é evitar o trabalho de se provar sua morte: seria permitido à mulher casar-se
novamente não como viúva, mas como uma divorciada.
As "queridas mulheres de Jerusalém" tentavam, como vimos, deixar inconscientes os homens prestes a
serem crucificados e poupar-lhes, assim, dor e tormento. Jesus nada aceitou dos que o assistiam, não tendo
tomado a bebida que lhe ofereceram, nem, ao que parece, tampouco o fizeram os dois condenados
crucificados juntamente com ele. Ambos, como o próprio Jesus, permaneceram inteiramente conscientes
durante todo o processo: segundo Lucas, um disse a ele: "Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós
também" (23,39); e o outro o repreendeu, "dizendo: Nem ao menos temes a Deus, estando na mesma
condenação? Nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o castigo que os nossos feitos mereciam;
mas este nenhum mal fez" (23,40-41). Segundo Marcos e Mateus, os dois que foram crucificados com
Jesus juntaram-se aos demais presentes em injuriá-los (Marcos 15,32; Mateus 27,44). Embora Jesus nada
dissesse, não há dúvida de que ele ouviu os impropérios: ignorá-los não foi um sinal de fraqueza ou
indiferença, foi deliberado. Quando ele julga apropriado responder, sua voz se faz ouvir; um deles diz:
'Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reino" (Lucas 23,42), e Jesus lhe respondeu: Em verdade,
te digo que hoje estarás comigo no paraíso" (23,43).
Interessam-nos antes as implicações fenomenológicas do que as implicações teológicas dessa história. Do
ponto de vista teológico, foram oferecidas diferentes explicações para conferir à tripla crucificação algum
sentido mais profundo: a mais comum é a que já foi proposta por Marcos, de que a Escritura tinha de ser
cumprida: aquele que "derrama a sua alma na morte" devia "com malfeitores ser contado" (Isaías, 53,12;
ver Marcos 15,28) -uma profecia que, numa tradição de Lucas, havia sido feita pelo próprio Jesus na noite
anterior (Lucas 22,37). Essa tendência para fazer os acontecimentos ocorrerem de maneira a demonstrar
que a Escritura se cumpriu com Jesus, nós a encontraremos em outros acontecimentos que se diz terem
ocorrido na crucificação ou imediatamente depois dela; mas assim como é possível que os acontecimentos
tenham sido fabricados para se ajustarem à Escritura, é igualmente possível que eles tenham ocorrido e
que os versículos foram depois invocados para destacar a desejada moral. O cumprimento de uma profecia
bíblica por um acontecimento particular por si só não tornaria este acontecimento improvável, mesmo aos
olhos de não-teólogos racionais; mas quando um fato relatado é ele próprio, segundo fundamentos
objetivos, improvável, sua divulgação pode bem se dever à inclinação teológica de ver a Escritura
realizada. Foi assinalado há um século, por exemplo, que O relato dos "principais sacerdotes" (Marcos
15,31) com os "escribas e anciãos" (Mateus 27,41) e as "autoridades" (Lucas 23,35), para não falar das
pessoas comuns ao redor, que zombavam de Jesus e o insultavam enquanto ele pendia da cruz, só pode ter
sido inserido na história do Evangelho para um propósito, a saber, afirmar que Jesus na verdade sofreu
tudo o que o salmista predissera: "Todos os que me vêem zombam de mim, estendem os lábios e meneiam
a cabeça, dizendo: Confiou no Senhor, livre-o ele; salve-o, pois nele tem prazer" (Salmo 22, 7 -8). Jesus
estava sendo ridicularizado identicamente. "Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora, se de fato lhe
quer bem" (Mateus 27,43). Simplesmente não é verossímil que sacerdotes, ou escribas, ou anciãos, ou
qualquer homem comum, zombassem de um outro judeu pendurado numa cruz romana e o
amaldiçoassem, qualquer que tenha sido seu crime. Daí a teoria de que a Escritura tinha de ser cumprida; e
o fato de que, ao mesmo tempo, os judeus pudessem ser apresentados como as criaturas cruéis e
desumanas, destituídas da mínima decência, e sem caráter , como retratadas na história da Paixão, foi
apenas um outro e mais bem-vindo fundamento para fazer com que a Escritura se cumprisse.
A crucificação já era bastante cruel sem toda essa execração, e os evangelistas não precisavam piorá-la
para agravar a provação de Jesus. Eles podem, nos seus dias em Roma, ter testemunhado crucificações em
que se permitia à multidão injuriar a vítima e às pessoas dar livre curso aos seus instintos mais baixos; ou
as geralmente concomitantes flagelações podem tê-los impressionado como a espécie de vulgaridade
decorrente que tampouco podia faltar na história da crucificação de Jesus. Mas independentemente de
todos os excessos que a acompanhavam, a crucificação era conhecida em Roma como a morte mais grave
e mais cruel (summum suplicium), originalmente praticada nos períodos mais bárbaros e menos brandos
dos ancestrais (more maiorum), e apenas mantida como um modo de mandar matar escravos e
estrangeiros, ou para os crimes mais hediondos. Tácito relata um debate no Senado romano, onde um
senador protestou contra a sua aplicação, argumentando que "não é o que pode merecer um criminoso
- 111 -
depravado aquilo que lhe devemos infligir: nos dias de um governo esclarecido e de um senado não
tolhido por precedentes, carrasco, cruz e corda deviam ser abolidos e previstas punições nas leis que
possam ser infligidas sem crueldade pelos juízes e que não desonrarão esta geração." Não despertou eco
esta voz isolada, mas ela mostra o quanto, mesmo então, os romanos mais liberais e progressistas sentiam
repulsa pelo uso da crucificação.
O horror geral que o suplício despertava pode ser sentido nos nomes dados às suas partes: a vítima ficava
de pé numa tábua "infeliz" (infelix lignum) e era pendurada numa viga "infame" (infames stipes).88
Embora outros métodos de execução praticados em Roma não se distinguissem por qualquer caráter
humanitário, esta era, como disse Cícero, a mais cruel e terrível penalidade (Crudelissimum et teterimum
supplicium); era, como foi recentemente observado, "o ponto culminante da arte do torturador".
É significativo que no Evangelho segundo João não encontremos qualquer registro ou menção de insultos
ou zombarias dirigidas a Jesus pelos judeus em geral ou pelos principais sacerdotes presentes (19,21) em
particular. São os judeus que são representados pelo quarto evangelista levando-o para a crucificação ( 19,
16) e, pelo menos por insinuação, crucificando-o (19,18). Não poderia haver mais clara, nem mais
inequívoca indicação de que o quarto evangelista estava determinado a superar os seus predecessores em
culpar e estigmatizar os judeus. Nem por isso deixou ele de abandonar a tradição de Marcos quanto às
tiradas dos judeus contra Jesus na cruz, embora Mateus, e em menor grau Lucas, a tivessem adotado. Para
ser fiel ao seu objetivo tendencioso, João não devia ter hesitado em aceitar a tradição e explorá-la ao
máximo. Notemos que, no que diz respeito às zombarias dos soldados romanos, João segue a tradição dos
Evangelhos Sinópticos, embora a situe numa fase um tanto anterior (18,2-3): o mais notável, certamente, é
que ele desconhece qualquer zombaria pelos judeus. Sugerir que João não mencionou este ou aquele
impropério porque "ignorava os detalhes que lhe pareciam puramente acessórios" não faz justiça seja à
qualidade dramática, seja à tendência antijudaica dos relatos joaninos. E a hipótese de que João achou que,
para o seu relato, não precisava falar disso, porque seu relato fora "despido de qualquer elemento de prova
proveniente de profecia ", é desmentida por pelos menos dois exemplos de Escritura cumprida relatados
por João (19,28-36). Ou então João possuía uma tradição própria, que lhe ensinou que os judeus
certamente não escarneceram de Jesus, ou preferiu não dar atenção ao relato dos Evangelhos Sinópticos
por causa da inerente incongruência. Alguns eruditos mantêm que João deve ter estado presente em pessoa
na crucificação de Jesus e relatou o que realmente aconteceu ali, em particular a troca de palavras entre
Jesus e sua mãe e O discípulo (19,25-27), como testemunha ocular que ouviu tais palavras pronunciadas e
que viu os que falaram;93 seria uma razão a mais para preferir o seu relato dos acontecimentos aos dos
demais evangelistas e para descartar, como ele fez, o que contaram de zombarias e injúrias dos judeus.
Parece que Lucas teve escrúpulos similares; enquanto as suas "autoridades" escarneciam de Jesus, "o povo
tudo observava" (23,35), abstendo-se, de modo bastante estranho, de participar do que, segundo Marcos
(15,29) e Mateus (27,39), deve ter sido um passatempo público.
Por evidente que seja a incongruência do relato de Marcos, argumenta-se que sempre haverá gente para
haurir "algum prazer doentio do espetáculo de torturas infligidas a outros, um sentimento que é aumentado
e diminuído pela visão da dor", e que a "cruz representava a miserável humanidade reduzida ao último
grau de impotência, sofrimento e degradação", e, portanto, um alvo bem-vindo para o insulto popular.
Essa espécie de psicologia pré-fabricada ignora, por outro lado, a posição peculiar dos judeus da Judéia
sob o domínio romano: é totalmente fora de questão que o homem médio, isto é, não particularmente
depravado, vendo um compatriota crucificado nas mãos dos detestáveis romanos, viesse de tal maneira a
aviltar-se, a ponto de parar e lançar insultos à infortunada cabeça da vítima, seu próximo e, como ele,
cidadão e homem da mesma tribo. Se nada podia fazer para animá-lo ou confortá-lo, ficaria ali parado e
mudo, buscando pelo menos comunicar simpatia com a mera presença, mas nunca abriria a boca para feri-
lo. Não penso que seja necessário citar qualquer traço idiossincrático judeu para estabelecer este fato: o
mesmo se poderia dizer de qualquer nação sob domínio estrangeiro que tivesse conservado um resto de
orgulho nacional e solidariedade, sem estar inteiramente desprovida de bondade elementar. Por agradável
que seja, para pervertidos, a visão de um corpo que se contorce em agonia, ou imóvel e impotente,
nenhuma perversão resistirá à pressão da opinião pública e à ameaça de vingança dos zelotas; e a primeira
e menor tentativa de "diversão" à custa de Jesus seria enérgica e eficazmente suprimida na hora. Mesmo
com o pressuposto injustificado de que, entre os judeus, alguns havia que tinham tido uma participação ou
interesse na execução de Jesus, ou em dele livrar-se de alguma forma, a imaginação hesita diante do
- 112 -
pensamento de que, tendo logrado seu presumivelmente secreto objetivo, eles agora exporiam
publicamente seu triunfo ou satisfação: por um lado, teriam de temer o desprezo das massas, que não
perdoariam facilmente um caso tão fatal de colaboração com o inimigo; por outro, não apenas as possíveis
dores de consciência, mas a simples e sóbria prudência os instigaria a se conter e ficar em casa. Nem
podemos supor que eles foram à cena da crucificação para tentar tranqüilizar suas consciências culpadas
em meio à balbúrdia de escárnios e insultos: se eles de fato lamentavam o que haviam feito a Jesus, ainda
poderiam tentar salvá-lo; e se Pilatos fora mesmo tão relutante quanto os evangelistas o representam em
ver Jesus crucificado, deve ter havido ainda alguma possibilidade de obter dele um perdão antes que Jesus
morresse. Em resumo, tudo depõe a favor da exatidão da tradição joanina de que nenhum dos principais
sacerdotes e anciãos, nem escribas ou autoridades, nem judeus, quem quer que tenham sido, amaldiçoou
Jesus ou zombou dele depois da crucificação: todos os presentes calaram-se, em dor ou amargo
desapontamento.
Outra tradição joanina diz que Jesus, "vendo que tudo já estava consumado", disse da cruz: "Tenho sede"
(19,28). Estava ali um vaso com vinagre. Embeberam com ele uma esponja e, fixando-a num caniço de
hissopo, lha chegaram à boca. Quando Jesus tomou do vinagre, disse: "Está consumado. E, inclinando a
cabeça, rendeu o espírito" (19,29-30). Não sabemos quem eram "eles" que levaram a bebida aos lábios de
Jesus. Lucas relata que os soldados que haviam zombado dele vieram e lhe ofereceram vinagre" (23,36);
mas não há menção de que Jesus o aceitou. Segundo Marcos e Mateus, quando Jesus clamou: "Deus meu,
Deus meu, por que me desamparaste?", dentre alguns deles que ali estavam "um correu a embeber uma
esponja em vinagre e, pondo-a na ponta de um caniço, deu-lhe de beber" (:\1arcos 15,36; Mateus 27,46-
48), e quando Jesus tomou da bebida, ele "entregou o espírito" (Mateus 27,50; similarmente Marcos
15,37). Aqui temos uma tradição que, de alguma forma, é comum a todos os Evangelhos, sendo de
interesse para a nossa investigação.
Podemos dispensar a versão de Lucas de que a bebida foi oferecida a Jesus pelos soldados romanos, se
mais não fosse porque Lucas é nesse ponto o único que dissente. Os outros evangelistas são unânimes em
relatar que um ou mais dentre os que ali estavam pegou a bebida e a ofereceu a Jesus; João não o diz
expressamente, mas mediante uma implicação razoável. Seja porque ouviram o grito ou suspiro de Jesus,
seja por impulso próprio, trouxeram-lhe vinagre; não a água que lhe podia ter matado a sede, ou vinho,
que lhe poderia ter obscurecido os sentidos, mas vinagre, que nem alivia a sede, nem anestesia. Aqueles
que levaram a bebida a Jesus sabiam que ela contribuía para apressar a morte, e isto, com efeito, é o que se
propunham a fazer para abreviar a agonia. Um escritor medieval nos garante que “segundo certas pessoas,
beber vinagre em tais condições é capaz de apressar a morte, ou assim se diz”. essa cautelosa garantia
lembra um debate talmúdico sobre se o vinagre tem ou não a propriedade de reconfortado: aqueles que o
negam permitem que seja bebido em dias de jejum, mesmo no Íon Kipur; os que sustentam que conforto
proíbem que seja bebido nesse dia. contudo, pode ter a propriedade de apressar a morte quando já se
instalou a desintegração, muito embora também possa ser reconfortante; e encontramos a afirmação de
que qualquer bebida, seja qual for sua natureza, é capaz de apressar a morte nestas circunstâncias. A maior
parte dos erudito, no entanto, concorda em que os evangelistas que escolheram o vinagre como a bebida
oferecida Jesus não por causa de qualquer virtude inerente, mas para uma vez mais fazer com que se
cumprissem as profecias bíblicas, como, por exemplo, “na minha sede, me deram a beber vinagre” #SL
69:21. O salmista nega inteiramente que o vinagre possa saciar a sede, mas naquele dia as pessoas
evidentemente acharam que a bebida que ofereceram a Jesus o aliviaria do seu tormento e lhe traria paz.
O episódo confere mais peso a opinião de que as pessoas presentes, longe de querer perseguir Jesus e
vilipendia-lo, tinha um só propósito em vista - a aliviar-lhe os sofrimentos da melhor maneira possível. é
claro que os evangelista não queriam ou não podia admitir isso, e, aferrando-se à sua política, puseram na
boca das pessoas frases tais que, aos olhos dos leitores, tenderiam a tirar dos seus gestos todo o mérito.
Podemos inferir da inconsistência das histórias do evangelho que estas palavras não possuía tradição
válida quando a que realmente foi dito pelas pessoas. Segundo marcos, o homem que correu e levou
vinagre para Jesus disse: “Deixai, vejamos se Elias vem tirá-lo” 15:36. isto, ao que parece, era um pouco
demais até para Mateus: aquele homem não zombava, porque pelo menos ele seria coerente; mas “ os
outros, porém, diziam: deixa, vejamos Elias vem salvá-lo” 27:49. O quarto Evangelista descarta a versão
de marcos, mesmo tal como moderada por Matheus, seja como não razoável ou desnecessária; sua história
é direta, diz que quando Jesus falou “tenho sede” eles lhe deram vinagre, que “estava ali um vaso cheio”, e
- 113 -
quando Jesus “tomou do vinagre disse: estar consumado!” João 19:28-30. as palavras “estavam ali um
vaso cheio de vinagre” 19:29 implicam que o vinagre estava sempre indisponível e ao alcance da mão no
local da crucificação; o que "eles" fizeram para Jesus "eles" teriam feito para qualquer pessoa morrendo na
cruz, movidos, é claro, por compaixão, e não por má vontade. Lucas, lembremos, faz os soldados romanos
ministrarem o vinagre a Jesus; eles confessadamente "zombaram dele" antes de oferecer o vinagre e lhe
disseram: "Se tu és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo" (23,36- 37). Já exprimimos nossas dúvidas
quanto à aceitabilidade da versão de Lucas, de que o vinagre foi oferecido a Jesus pelos soldados
romanos; mas tendo a sua disposição a história de Marcos, segundo a qual aqueles que o fizeram
zombaram dele ao mesmo tempo, não é em nada surpreendente que Lucas tenha rejeitado a idéia de que
eles podiam ser judeus, substituindo-os por soldados romanos.
O Evangelho segundo João prossegue dizendo: "Então os judeus, para que no shabat não ficassem os
corpos na cruz, visto como era a preparação, pois era grande o dia daquele shabat, rogaram a Pilatos que
se lhes quebrassem as pernas e fossem tirados. Os soldados foram e quebraram as pernas ao primeiro e ao
outro que com ele tinha sido crucificado: chegando-se, porém, a Jesus, como vissem que já estava morto,
não lhe quebraram as pernas. Mas um dos soldados lhe abriu o lado com uma lança, e logo saiu sangue e
água" (19,31-34 ). Foi somente depois desse episódio que José de Arimatéia "rogou a Pilatos que lhe
permitisse tirar o corpo de Jesus" (19,38). Em contradição, Marcos relata que "ao cair da tarde, por ser o
dia da preparação, isto é, a véspera do shabat, vendo José de Arimatéia. ..dirigiu-se resolutamente a Pilatos
e pediu o corpo de Jesus. Mas Pilatos admirou-se de que ele já tivesse morrido. E, tendo chamado o
centurião, perguntou-lhe se havia muito que morrera. Após certificar-se, pela informação do comandante,
cedeu o corpo a José" (15,42-45). Se deve ser aceita a versão joanina, os judeus foram a Pilatos e lhe
disseram que Jesus ainda não havia morrido, e Pilatos não teria pedido a confirmação da notícia junto ao
comandante de seus soldados, pois o tempo decorrido desde a crucificação normalmente não teria sido
bastante longo para que sobreviesse a morte. A petição que os judeus desejavam fazer ao governador era
para que ele ordenasse que as pernas do crucificado fossem quebradas: era a véspera do shabat e de
Pessach, e não se podia permitir que os corpos pendessem das cruzes depois do pôr do sol, e quebrar as
suas pernas apressaria a morte. A delegação judia que se apresentou ao governador e fez o pedido deve ter
deixado o Gólgota enquanto Jesus ainda estava vivo; de outra forma, seu pedido não teria sentido. Em
outras palavras, quando a delegação estava ausente fazendo o pedido a Pilatos, as pessoas que haviam
permanecido ouviram Jesus dizer "Tenho sede", e lhe deram vinagre. E Jesus deve ter morrido antes que a
delegação regressasse com as ordens de Pilatos. A ser aceita a versão de Marcos, todo o incidente das
pernas quebradas é imaginário, já que, se tivesse realmente acontecido, Pilatos não teria manifestado
surpresa pelo fato de Jesus já ter morrido e teria verificado a informação questionando o centurião. Esta
dificuldade particular não teria surgido segundo os Evangelhos de Mateus e de Lucas, pois não se diz
neles que Pilatos exprimiu surpresa diante da morte de Jesus (Mateus 2.7,58; Lucas 2.3,52.). Enquanto,
segundo Marcos, o governador ficou admirado de que Jesus já estivesse morto, segundo João ele
concordou em que a morte fosse apressada. As pernas quebradas não são mais um tormento: é o coup de
grâce dado para levar o tormento a um fim mais rápido. Dos judeus que pediram a Pilatos que as pernas de
Jesus fossem quebradas diz-se, no entanto, terem eles agido não por compaixão, mas para cumprir seus
deveres religiosos e enterrá-lo antes do crepúsculo. No que diz respeito a Pilatos, não havia objeção
quanto a deixar os corpos pender das cruzes à noite e durante dias e noites à frente; pelo contrário, era,
como vimos, um costume romano bem estabelecido expor as vítimas nas cruzes mesmo depois de mortas,
para repasto de chacais e abutres: ser devorado e dilacerado pelas "aves do céu e os animais da terra "99
era encarado como uma punição suplementar e particularmente degradante, merecida pelo homem
condenado, da qual só podia ser aliviado por um ato de graça. Ordenando que as pernas dos crucificados
fossem quebradas, Pilatos, com efeito, dispensou alguns aspectos punitivos da crucificação, e como essa
dispensa lhe foi apresentada como uma questão não de alívio ou graça, mas antes de observância religiosa,
ele não viu motivo para recusá-la.
É verdade que os judeus eram estritamente proibidos de deixar um corpo pendurado durante a noite "no
lenho" (Deuteronômio 2.1,2.3), uma proibição que, embora se aplicasse pelo teor da lei apenas a pessoas
executadas por crimes capitais segundo a lei judia e por sentença de um tribunal judeu, era certamente
aplicada -talvez por analogia -também no caso de pessoas executadas por sentença de um tribunal não
judeu. A proximidade do shabat e do dia festivo apenas conferiu uma premência especial ao que era um
- 114 -
dever em qualquer circunstância: Se o enterro tinha de ser consumado antes do pôr do sol em qualquer dia
comum, devia ser excepcionalmente apressado na véspera de um festival, quando as pessoas tinham de se
purificar a tempo de participar dos serviços no Templo, se quisessem ter tempo suficiente depois do
enterro a fim de se prepararem para a festa. Ora, se realmente tivessem sido os judeus que pressionaram
Pilatos, naquele dia entre todos, para que Jesus fosse crucificado, como poderiam eles não saber que sua
morte podia ser adiada até depois do pôr do sol? Por experiência prática, da qual as acima mencionadas
regras da lei judia dão amplo testemunho, eles deviam saber que muitas vezes se passavam dias para que
um homem morresse na cruz: se, não obstante, eles clamaram pela crucificação de Jesus naquela manhã,
deve ter sido por saberem que provavelmente a noite e a festa chegariam antes que ele morresse e que
teriam de deixá-lo pender da cruz a noite inteira e durante a festa. Dir-se-ia que não se importaram com
isso. Poder-se-ia dizer, é claro, que "os judeus que clamaram pela crucificação de Jesus não foram os
mesmos "judeus" que pediram a Pilatos para que suas pernas fossem quebra- das; mas nesse caso não há
nenhuma diferenciação entre esta e aquela espécie de "judeus" no Evangelho segundo João. Se, por
exemplo, os judeus que pediram a Pilatos que apressasse a morte de Jesus eram amigos ou discípulos de
Jesus, o evangelista certamente teria dito, exatamente como não fez segredo do relacionamento pessoal
particular entre José de Arimatéia e Jesus (19,38; similarmente Lucas 23,50-51; Mateus 27,57; Marcos
15,43). Se qualquer diferenciação fosse permissível entre as categorias de 'judeus", seria conseqüente
distinguir entre os judeus instruídos na lei e conscientes do seu dever religioso, que cuidariam do devido
cumprimento das normas quanto ao prescrito enterro à luz do dia do homem executado e da observância
do shabat e dias festivos, e outros judeus que, na véspera de Pessach, supostamente nada tinham de melhor
na mente do que manifestar seu clamor histérico pela crucificação de Jesus.
Além disso, se "os judeus" que desejavam enterrar Jesus antes do cair da noite eram os mesmos "judeus"
que haviam clamado por sua crucificação, surgiria outra dúvida. Lemos em João que os judeus "não
entraram no pretório para não se contaminarem, mas poderem comer a refeição de Pessach" (18,28). Se,
portanto, eles desejavam manter-se puros para o repasto ritual da noite, como é que estavam prontos, à
tarde, para se contaminarem e se conspurcarem enterrando os mortos? Saber se entrar no pretório os teria
contaminado ou conspurcado é questão que suscita as mais graves dúvidas, mas que isto ocorreria se
participassem de um enterro é incontestável (Números 19,11-14). Ou eles não tinham escrúpulos a
impurezas pela manhã, caso em que teriam entrado no pretório, ou tinham a mais forte compunção quanto
a isso à tarde, tão perto do começo da festa, caso em que não teriam tomado as providências que os
habilitariam a enterrar Jesus antes da festa começar. A verdade é que, de manhã, como mostramos, eles
não entraram no pretório com receio de se contaminarem, mas por motivos inteiramente diversos e que
lhes escapavam ao controle; e, de tarde, eles estavam prontamente dispostos a se macular, desde que
pudessem proporcionar a Jesus e aos outros condenados o último favor e honra de um digno enterro judeu.
Foi sugerido que o episódio das pernas quebradas deve sua raison d'être à conclusão que o evangelista
queria alcançar: "E isso aconteceu para se cumprir a Escritura: Nenhum dos seus ossos será quebrado"
(19,36). É apenas um "cordeiro sem defeito" (Êxodo 12,5) e apropriado para o Pessach, e é "sem defeito"
que, na santificação de Pessach, Jesus faria seu último sacrifício a Deus. "Nem lhe quebrareis osso
nenhum" (Êxodo 12,46) é uma ampliação da injunção básica de escolher um cordeiro sem defeito; mas o
fato de que os ossos quebrados foram escolhidos para menção especial, como capazes de prejudicar o
caráter imaculado do cordeiro pascal, sugere claramente que ossos são o atributo cardeal de um cordeiro
sem defeito. Por mais usual que possa ter sido quebrar os ossos no caso de cordeiros preparados para a
refeição ou o sacrifício, normalmente não se quebrariam os ossos de um homem; e 0 fato de que as pernas
de Jesus não foram quebradas teria sido sem significação, nem teria levado a qualquer comparação com o
imaculado cordeiro do sacrifício, não fosse o relato de se terem quebrado as pernas dos dois condenados
crucificados juntamente com Jesus, ou por causa do conhecimento geral do costume de se quebrar as
pernas dos condenados que pendiam da cruz. Foi depois que as pernas daqueles dois outros foram
quebradas que ocorreu o milagre de se deixar Jesus intacto: Deus recebeu seu espírito quando ele ainda
estava sem mácula, seu sacrifício foi assim perfeito, como o do cordeiro pascal, e o seu "precioso sangue"
vertido na cruz, como o foi o de "um cordeiro sem defeito e sem mácula " no altar do Templo, e redimiria
os pecados dos homens (1 Pedro 1,19).
"Chegando-se, porém, a Jesus, como vissem que já estava morto, não lhe quebraram as pernas; mas um
dos soldados lhe abriu o lado com uma lança e logo saiu sangue e água" João 19,33-34. Este golpe, que
- 115 -
provocou evidentemente a abertura de uma ferida, pareceria à primeira vista anular todos os esforços para
se deixar Jesus intacto e "sem defeito"; mas pode ser que qualquer coisa feita ao corpo depois da morte
não mais pudesse diminuir sua perfeição, pois era no momento da morte que o sacrifício sem defeito
ascendia aos céus. Ou pode ter sido considerado não menos importante do que cumprir o que diz a
Escritura -"Não lhe quebrarão osso nenhum" (19,36) -realizar outra profecia da Bíblia, a saber: "Eles
verão aquele a quem transpassaram" (19,37). A frase é tirada de uma profecia de Zacarias (12,10) em que
Deus promete "derramar sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém o espírito da graça e das
súplicas; olharão para mim a quem transpassaram; pranteá-lo-ão como quem pranteia por um unigênito, e
chorarão por ele como se chora amargamente pelo primogênito. ..Naquele dia será grande o pranto em
Jerusalém. .. A terra pranteará cada família à parte" (12,10-12). As palavras «olharão para mim a quem
transpassaram" são usadas fora do contexto em sua citação em João (19,37), podendo não ser fora de
propósito recolocá-las em seu lugar: a visão do traspassado -seja ele quem for -causará luto e lamentação
geral em Jerusalém; não haverá família ou lar não atingido; que esta profecia foi verdadeiramente
cumprida na morte de Jesus deve ser demonstrado pelo fato de que seu lado foi "aberto". Como nós
estabelecemos, houve indubitavelmente um sentido de aflição geral, havendo pouca dúvida de que a
lamentação e o luto por Jesus foram comuns e se espalharam por Jerusalém. Mas o autor do Evangelho
segundo João não parece ter tido suficiente consciência de que a profecia de uma profunda e universal
aflição pela morte de Jesus se tinha de fato concretizado, independentemente de qualquer "golpe de
lança".
Argumentou-se que, fisiologicamente, a história da abertura do lado não pode ser sustentada, pois sangue
e água não sairiam juntos de um corpo furado, e certamente não de modo a serem visíveis a olho nu. Toda
essa história foi aparentemente inserida para que se cumprisse a profecia da Escritura, não com
fundamento em qualquer tradição válida de um acontecimento real. E o que é verdade do golpe de lança
seria, com toda probabilidade, verdade das pernas quebradas: também este conto não fundamentado pode
ter sido introduzido no Evangelho segundo João pelo mesmo motivo. O sangue e a água que saíram foram
interpretados como símbolos da eucaristia e do batismo, como se diz que Jesus veio "por meio da água e
do sangue" (1 João 5,6); e isto, para o evangelista, deve ter urna especial significação, já que ele insiste na
veracidade da testemunha ocular em cujo "depoimento" confia João 19,35. Mas nem esta insistência
conseguiu compensar o fato de que estes incidentes, bem como a presença da mãe, discípulo e
testemunhas oculares na crucificação, não são mencionados pelos evangelistas anteriores: se isto estivesse
fundamentado em alguma tradição sólida, os Evangelhos Sinópticos jamais teriam silenciado sobre tais
incidentes.
Não obstante, sugere-se que o quarto evangelista pode ter tido informações ou uma sólida tradição dos
ossos ou das pernas quebrados dos outros dois condenados, ou de crucificados em geral. Verificamos que
o Imperador Augusto mandou quebrar as pernas de um secretário seu porque ele divulgou segredos
oficiais; e Tibério fazia o mesmo com os homens que não se deixavam usar por ele para suas
obscenidades. Estes são exemplos de punições isoladas, mas também encontramos pernas quebradas como
punição inerente à crucificação, não necessariamente como um meio de apressar a morte, mas também
como prelúdio à crucificação propriamente dita. Em contraste com a retirada de água e sangue pelo golpe
dado no lado de Jesus, fato para o qual não há precedente ou paralelo, as pernas quebradas parecem
enquadrar-se no uso regular, sendo que, se apenas por esse motivo, a tradição joanina segundo a qual os
judeus pediram a Pilatos que ordenasse mandar quebrar as pernas dos condenados nas cruzes não pode ser
descartada sem mais aquela. Não é desprovido de interesse que, enquanto foi pedido a Pilatos que
ordenasse aos seus soldados quebrar as pernas dos condenados e ele parece ter acedido, não se lhe fez tal
pedido quanto ao golpe desferido contra o lado de Jesus: foi "um dos soldados" que, por sua própria
iniciativa, como parece, enfiou a lança (19,34), não sendo certo, pelo que está escrito, se ele queria
certificar-se de que Jesus expirara ou se era apenas mais um ato de crueldade e insulto. Portanto, mesmo
que tenha acontecido e não inventado só para que a Escritura fosse cumprida, não teria nada a ver com o
papel que foi atribuído aos judeus.
É aos 'Judeus" (19,31) que se concede expressamente o crédito por se pedir a Pilatos que apressasse a
morte mandando quebrar as pernas. Desnecessário dizer que é coisa fora do tom e fora do contexto
atribuir-se aos 'Judeus" o mérito da humanidade e da bondade: enquadrar-se-ia com muito mais
propriedade ao conjunto geral se fosse atribuída a Pilatos a vontade original de abreviar os sofrimentos de
- 116 -
Jesus na cruz, o que nos faria esperar, é óbvio, que os judeus protestassem em altos brados e insistissem
que os sofrimentos de Jesus fossem intensificados e prolongados; quanto mais dolorosos e longos, melhor.
Se, perseguidores implacáveis e crucificadores de Jesus como foram representados, os judeus pediram a
Pilatos que as pernas de Jesus fossem quebradas, eles devem certamente ter sido movidos por más
intenções: talvez não fosse em absoluto para apressar sua morte e abreviar sua dor, mas para aumentar seu
tormento e sofrimento, e o ato de lhe quebrar as pernas teria certamente infligido muita angústia. Foi
sugerido, pois, que os judeus usaram a "preparação" para o Shabat apenas como um pretexto, fazendo
parecer a Pilatos que se preocupavam em apressar a morte de Jesus, quando na realidade procuravam
agravar-lhe o infortúnio, causar-lhe maior sofrimento e dor; e o crédulo Pilatos, em sua ingenuidade,
cedeu ao que lhe pediam e bondosamente condescendeu em dar a Jesus esta última graça.
Se está correta nossa tese de que os judeus amavam Jesus e se identificavam com ele e de que, à vista do
que ele teve de suportar, seu amor só podia aprofundar-se naquele dia -o último de Jesus - e que nem eles,
nem qualquer dos seus líderes tiveram uma só palavra na sua acusação ou condenação, então torna-se
plausível que, quando o viram em agonia na cruz, pulsando entre a vida e a morte, tenham corrido ao
governador, pedindo-lhe uma ordem aos seus oficiais que trouxesse a morte sem mais delonga que lhes
dilacerasse o coração. A rápida aproximação da santa festa era, como dissemos, um bom argumento para
apresentar a Pilatos; mas este fato deve ter pesado tão fortemente no espírito de Jesus quanto no espírito
dos espectadores: Jesus era a última pessoa a desejar ou concordar que por sua causa o Shabat fosse
desconsagrado ou que a noite festiva fosse profanada, deixando-se um homem crucificado -a "maldição de
Deus" -pender a noite inteira sem ser enterrado. Era porque todos conheciam as susceptibilidades do
próprio Jesus nesta questão que os judeus estavam ainda mais ansiosos para que as últimas honras aos
mortos fossem prestadas antes que começasse o Shabat.
Se, por outro lado, fosse verdade que os judeus haviam pedido a crucificação de Jesus naquela mesma
manhã e que Pilatos a eles acedera relutantemente, a contragosto, não apenas não teriam aqueles mesmos
judeus ousado voltar a ele com tal pedido, mas Pilatos nunca teria consentido: o governador romano ainda
alimentaria um rancor contra eles, e esta nova e agora de todo incoerente importunidade só poderia lhe
provocar ira e extinguir sua última centelha de paciência. Além disso, eles próprios teriam previsto que se
arriscariam a não sair do palácio indenes. Se os judeus de fato pediram a Pilatos que apressasse a morte de
Jesus, quebrando-lhe as pernas, então este foi o único momento em que confrontaram o governador na
questão de Jesus: a única iniciativa a respeito de Jesus de que os judeus se incumbiram junto a Pilatos foi
uma tentativa de misericórdia e compaixão.
A história, comum a todos os Evangelhos, de que os soldados romanos que haviam crucificado Jesus
"repartiram entre si as suas vestes, lançando-lhes a sorte, para ver o que levaria cada um" (Marcos 15,24;
similarmente Mateus 27,35; Lucas 23,34; João 19,23) também atesta o cumprimento de uma profecia da
Escritura, a saber, "Repartem entre si as minhas vestes, e sobre a minha túnica deitam sortes" (Salmos
22,18). Há autoridade para a afirmação de que era um direito que assistia aos executores em Roma
apropriarem-se das vestimentas do condenado, mas não há registro desse costume na Judéia. Como só as
vestes de Jesus, e não as dos dois crucificados com ele, foram divididas entre os soldados, pareceria que a
história não tem outro propósito senão o cumprimento das Escrituras, tanto mais que suas vestes não eram
de extraordinário valor, feitas de uma peça de pano sem costuras João 19,23 e aparentemente bastante
humildes.
Voltamos a encontrar este tratamento especial a Jesus, não extensivo aos outros condenados, na questão do
enterro. Contam-nos que José de Arimatéia "pediu o corpo de Jesus" (Marcos 15,43; Mateus 27,58; Lucas
23,52; João 19,38), mas nada disse a respeito dos outros corpos. Segundo a lei e o costume judeus, era de
se esperar que ele praticasse com os outros dois o ato de graça que praticou com Jesus. Pode ser, é claro,
que ele não tenha, na verdade, feito discriminação, mas tenha enterrado todos os três, e que os evangelistas
não o mencionaram simplesmente porque o destino dos dois já não tinha relevância para sua história.
Podemos presumir que José, representado como um discípulo de Jesus (Mateus 27,57; João 19,38), tenha
obedecido ao ensinamento de Jesus: "Porque se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não
fazem os publicanos também o mesmo? E se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis, de mais?
Não fazem os gentios também o mesmo?" (Mateus 5,46-47); e aquilo que ele fez para o homem que
amava, ele não fez menos para estrangeiros que não conhecia.
- 117 -
Enquanto os judeus que foram a Pilatos pedir-lhe que apressasse a morte de Jesus estão no anonimato, o
nome do judeu que solicitou a permissão de Pilatos para enterrá-lo foi preservado para uma fama eterna.
Diz-se que José de Arimatéia (em hebraico' Haramati, ou das terras altas) foi membro do Sinédrio (Mateus
15,43; Lucas 25,50) e, na teoria de alguns eruditos, era pessoalmente conhecido pelos evangelistas e lhes
serviu como uma fonte de informações de primeira mãol10 -o que não pode ser provado, nem desmentido;
mas se os evangelistas, ou qualquer um deles, tinham informação exata do que ocorreu na reunião do
Sinédrio na noite anterior, eles certamente não teriam sonegado sua fonte, assim como não sonegaram o
nome de José no episódio do enterro. Mas teria também de ser previsto que, se este José, este discípulo de
Jesus, tivesse tomado parte numa reunião do Sinédrio tal como os Evangelhos descrevem, ele teria erguido
a Voz e tentado exercer alguma influência sobre o curso dos acontecimentos; ou, se ele relatou aos
evangelistas o que se passava, ele teria pelo menos afirmado que fizera tudo o que podia para evitar a
tragédia. Naquilo que nos diz respeito, podemos com segurança aceitar a tradição de que este discípulo de
Jesus, como outros discípulos e seguidores seus, era membro do Sinédrio e participou da sessão na casa do
sumo sacerdote na noite precedente; mas se ele relatou a qualquer evangelista o que havia transpirado, ele
não conseguiu -infelizmente -persuadi-los a transcrever seu relato nos Evangelhos. Aquilo que -como nós
acreditamos -realmente ocorreu na sessão está, seguramente, em total Consonância com a condição de
membro do Sinédrio e com a presença de José de Arimatéia, como também com a de qualquer outro
discípulo, seguidor ou simpatizante de Jesus, na reunião.
Um escrito recente sugeriu que Jesus e José eram partes de uma conspiração: José concordou em ministrar
uma droga que manteria Jesus Vivo, mas lhe daria a aparência de morto; depois ele pediria permissão para
retirá-lo da cruz e fingiria enterrá-lo; passados uns poucos dias, Jesus voltaria a erguer-se como se
houvesse ressuscitado. Longe de subscrever uma teoria que, com efeito, viria incriminar tanto Jesus
quanto José, senão legalmente, pelo menos moral e teologicamente, preferimos contentar-nos com a
simples e muito humana história contada nos Evangelhos, de que José era um amigo e seguidor de Jesus
que se ofereceu para enterrá-lo, tendo-o enterrado em sua própria terra antes que caísse a noite, no mais
exemplar costume e tradição dos judeus.
A lei romana estabelecia que um condenado, depois da execução, não podia ser enterrado: vimos que os
crucificados, em particular, eram abandonados na cruz até que as feras e aves de rapina os devorassem.
Punham-se guardas de serviço junto à cruz para impedir que parentes ou amigos retirassem o corpo e o
enterrassem; o enterro não autorizado de um crucificado era crime. O imperador ou seus funcionários
podiam, excepcionalmente, conceder a parentes ou amigos autorização para que enterrassem o condenado,
e o que em Roma era prerrogativa do imperador era direito do governador na província. O que José de
Arimatéia pediu a Pilatos não foi, portanto, algo fora do costume, nem se diz que Pilatos levantou
dificuldades para aceder ao seu desejo. Sabemos por Josefo que os judeus sempre foram muito cuidadosos
e escrupulosos no que diz respeito ao enterro dos seus mortos, especialmente aqueles que a crucificação
romana havia matado, e ao que parece buscavam e obtinham licenças especiais de enterro em cada caso
individual. É insustentável, no entanto, que, se realmente tivessem sido os judeus que solicitaram a Pilatos
que crucificasse Jesus ou qualquer outra pessoa, e mesmo que José de Arimatéia não tivesse sido um
deles, o governador teria levado em consideração seu pedido ulterior de permissão para que o retirassem
da cruz e o enterrassem: se o governo tinha, com efeito, "entregue" Jesus aos judeus para crucificação, ele
não o entregaria a eles agora para enterro. E é altamente improvável que ele tivesse reconhecido José de
Arimatéia como homem que se abstivera da perseguição a Jesus aquela manhã: aqueles judeus eram quase
todos iguais aos seus olhos.
Jesus foi enterrado no túmulo que José cavou na sua própria terra (Mateus 27,60; Lucas 23,53; João
19,41), o que prova que ele não foi visto como um condenado executado após julgamento num tribunal
judeu, como de fato não foi -sabemos que os condenados executados por ordem do tribunal judeu tinham
de ser enterrados num cemitério reservado para este fim e conhecido como o cemitério do tribunal. A lei
estabelecia que pessoas particulares não tinham permissão para enterrar estes condenados e que ninguém
podia pranteá-los, enquanto os condenados executados por ordem do governador romano tinham de ser
enterrados e pranteados como qualquer pessoa que tivesse morrido de morte natural. Não importava o
crime de que um condenado fora julgado culpado pelos romanos: bastava que fosse um tribunal romano
que o tivesse sentenciado para credenciá-lo aos benefícios do enterro e luto judeu tradicional. Assim, sua
mãe e Maria Madalena sentara-se ao lado do túmulo de Jesus e o prantearam (Mateus 27,61; Marcos
- 118 -
15,47), até que veio o Shabat, depois de oportunamente prepararem especiarias e bálsamos para o seu
corpo (Lucas 23,56); tudo foi feito "à maneira dos judeus" ao enterrarem os seus próprios mortos #Jo
27,40. Era uso dos judeus vestir os seus mortos com lençóis brancos, e assim Jesus "foi envolto em
lençóis" João 19,40, "lençol fino" comprado por José (Marcos 15,46). Ele foi enterrado, pranteado e
honrado como teria sido todo judeu que, como ele, foi vítima de perseguição pelos opressores romanos.
Foi num jardim que se o colocou para repousar, perto do lugar onde fora crucificado; e no jardim havia um
novo sepulcro "no qual ninguém tinha sido ainda posto" João 19,41: este foi o último lugar de repouso que
José escolhera para seu mestre e professor, e ele assegurar!a que a homenagem adequada aos grandes
mortos de Israel fosse concedida por inteiro. José cumpriu seu simples dever, como o de um judeu para
outro, e o fato de que não estava sozinho ao fazê-lo é atestado por João (19,39), que nesse ponto faz vir
novamente Nicodemos, o fariseu (3,1), e que poderia apropriadamente ter trazido todos os "fariseus" de
Jerusalém para se darem as mãos, prestando a Jesus sua última homenagem.

PARTE TRÊS

O QUE SE PASSOU DEPOIS

PEDRO E PAULO

Lucas relata que, depois da morte de Jesus, seus discípulos, os apóstolos, se organizaram num grupo e
passaram a difundir a nova fé. Diz-se do seu principal porta-voz, Pedro, ter censurado "os homens da
Judéia e todos vós que morais em Jerusalém" por terem "preso" Jesus e "pelas mãos de injustos" o
crucificado e matado; e, ouvindo eles isto, "compungiu-se-lhes o coração", ficaram profundamente
perturbados e temerosos (Atos 2,14-37). Depois de curar miraculosamente o coxo, Pedro relembra "aos
homens de Israel" Jesus, "a quem vós traístes e negastes perante Pilatos, quando este havia decidido soltá-
lo. Vós, porém, negastes o Santo e o Justo, e pedistes que vos concedesse um homicida... E agora, irmãos,
eu sei que O fizestes por ignorância, como também as vossas autoridades" (Atos 3,12-17). Lucas, autor
dos Atos, é aqui fiel a Lucas, autor do Evangelho; o que aqui diz Pedro nada acrescenta ao nosso
conhecimento ou avaliação dos fatos tal como relatados no Evangelho segundo Lucas. Mas observar-se-á
que já logo no início é relatado que Pedro explora a crucificação de Jesus como um meio habilidoso de
despertar o sentimento de culpa das massas e que ele consegue compungir os corações.
Ocorre que a atividade de Pedro e dos outros apóstolos logo chamou a atenção das autoridades judias.
Divergindo de Jesus, os apóstolos firmaram-se numa crença no cristo ressuscitado como Salvador do
pecado e da iniqüidade: "Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que, a este Jesus que
vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo" (Atos 2,36). Relativamente à ressurreição, diz-se que os
saduceus, que, como será lembrado, negavam qualquer vida depois da morte, ficaram "ressentidos por eles
ensinarem o povo e anunciarem em Jesus a ressurreição dentre os mortos" (Atos 4,2); mas mesmo entre os
fariseus, que aceitavam a vida depois da morte, havia muitos para quem a história da ressurreição de Jesus
era inacreditável e, do ponto de vista da ortodoxia judia, potencialmente perigosa. Nos é dito que Pedro e
os outros apóstolos foram presos uma noite (4,3) e, na manhã seguinte, "as autoridades, os anciãos e os
escribas", como também o sumo sacerdote e muitos de sua "linhagem" ( 4,6), reuniram-se em Jerusalém, o
que, de novo, seria uma descrição adequada de uma sessão do Grande Sinédrio. Da seqüência dos
acontecimentos, parece que o Sinédrio não se reuniu aquele dia para realizar um julgamento; com efeito,
manifestamente não foi um Pequeno Sinédrio que se reuniu com competência para julgar um caso penal,l
e o objetivo parece ter sido um inquérito sobre uma questão religiosa. Perguntou-se aos apóstolos: "Com
que poder e em nome de quem fizestes isso?" ( 4,7), uma pergunta que lembra levemente a que foi dirigida
muito tempo antes a Jesus: "Com que autoridade fazes estas coisas? Ou quem te deu esta autoridade?"
(Lucas 20,2; similarmente Mateus 21,23 e Marcos 11,28). Mas enquanto o próprio Jesus ensinara como
alguém que tinha autoridade (Marcos 1,22) e a quem se podia, portanto, pedir as credenciais, os apóstolos
não haviam, parece, confiado em qualquer autoridade própria, mas professavam representar algum
- 119 -
"poder" que nem era conhecido das autoridades, nem por elas reconhecido. Pedro replicou que se lograra
praticar o milagre de curar o coxo, ele o fizera "em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, a quem vós
crucificastes e a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, sim, em seu nome é que está curado perante vós.
Este Jesus é a pedra rejeitada por vós, os construtores, a qual se tornou a pedra angular. E não há salvação
em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual
importa que sejamos salvos" (Atos 4,10-12 ). Ao ouvir estas palavras, os membros do Sinédrio se
consultaram em particular: "Que faremos com estes homens? Pois, na verdade, é manifesto a todos os
habitantes de Jerusalém que um sinal notório foi feito por eles, e não o podemos negar" ( 4 ;16). Como
vimos, os praticantes de maravilhas, especialmente no terreno da medicina, não eram raros em Jerusalém
naquela época, e sempre atraíam considerável numero de seguidores que os admiravam: pôr fora de ação
os homens que praticavam milagres, ou persegui-los, provavelmente irritaria o povo, e isto, nós o vimos,
era a última coisa que o Sinédrio queria fazer. Ainda assim, essa espécie de deificação de Jesus, e o
"poder" de salvação universal a ele atribuído, aproximava-se perigosamente da apostasia e devia ser
contida de qualquer jeito. Assim, o Sinédrio decidiu "soltá-los, não tendo achado como os castigar, por
causa do povo" (4,21); mas "ordenaram-lhes que terminantemente não falassem, nem ensinassem em
nome de Jesus" ( 4,18) e os ameaçaram (4,21) de que seriam punidos se continuassem a fazê-lo.
Sem dar atenção à advertência, Pedro e os outros apóstolos continuaram a ensinar e a pregar "com grande
poder", dando "testemunho da ressurreição do Senhor Jesus" (Atos 4,33), e, quer ensinando e pregando,
quer praticando muitos sinais e prodígios entre o povo" (5,12), conseguiram acrescentar "multidões tanto
de homens como de mulheres" de novos crentes no Senhor (5,14). Diz-se que isto suscitou a raiva do
sumo sacerdote" e de todos que estavam com ele, isto é, a seita dos saduceus" (5,17). Pode ser que se
tenha destacado os saduceus porque, na ocasião, foi um fariseu quem levou o Sinédrio a superar qualquer
"indignação" que pudesse sentir diante da desobediência dos apóstolos; mas estamos em terreno firme
quando presumimos que esta "indignação", como a que se registrou, não precisava se limitar aos saduceus.
O sumo sacerdote, presumivelmente na condição de presidente do Sinédrio, decidiu entrar em ação e fez
prender os apóstolos (5,18). Depois de escaparem milagrosamente da prisão (15,19-24), foram
encontrados ensinando ao povo no Templo (5,25), onde foram presos, protestando o povo tão
exaltadamente que os guardas que os prenderam temeram ser apedrejados (5,26). Pedro e os outros
apóstolos foram levados diante do conselho, desta feita um Pequeno Sinédrio convocado para realizar um
julgamento e presidido pelo sumo sacerdote. A acusação pela qual seriam julgados emerge claramente da
pergunta inicial do sumo sacerdote: "Não vos ordenamos expressamente que não ensinásseis nesse nome?
Contudo, enchestes Jerusalém de vossa doutrina e quereis lançar sobre nós o sangue desse homem" (5,28);
em outras palavras, nós vos ordenamos que não ensinásseis no nome de Jesus, e vós nos desobedecestes, e
desprezastes o Sinédrio; e como se não fosse bastante deificar este homem, vós ainda nos acusais de
crucifica-lo (4,10). A resposta de Pedro consiste em que, quando a ordem de um órgão humano colide com
a ordem de Deus, "antes importa obedecer a Deus que aos homens" (5,29); e logo vem a reiteração do
indiciamento anterior: "O Deus de nossos pais ressuscitou Jesus a quem vós matastes, pendurando-o num
madeiro" (5,30). O autor relata que, quando ouviram isso, "eles se enfureceram" (5,33). Ora, a defesa de
que uma ordem divina deve sempre ter precedência sobre uma ordem humana era perfeitamente válida e
razoável, e dificilmente poderia irritar os membros do Sinédrio; era uma outra questão e talvez ainda
discutível, saber se o supremo comando divino havia realmente sido dado ou se era apenas um pretexto, o
que poderia e seria examinado no devido tempo no tribunal. "Ficaram enraivecidos" não por esta linha de
defesa, mas pelo repetido indiciamento ou insinuação de que tinham tido alguma coisa a ver com a
crucificação de Jesus.
O sumo sacerdote e os membros do Sinédrio presentes ao julgamento de Pedro e dos outros apóstolos
tinham estado na reunião noturna na casa do sumo sacerdote na questão de Jesus: eles sabiam como Jesus
tinha sido morto, quem o havia crucificado e o que exatamente havia precedido seu fim trágico. Não é
surpreendente que sua amarga "indignação" fosse devida não apenas à flagrante desobediência e ao
desprezo mostrado por Pedro e os outros apóstolos pelas ordens do Sinédrio, mas também ao fato de que
eles "tencionam fazer derramar o sangue desse homem sobre nós"; nenhuma transgressão podia ser pior
do que implicitamente acusar o Sinédrio -entre todos! -pela morte de Jesus. inquestionavelmente, a
interminável repetição pública de acusações contra o Sinédrio, por infundadas que fossem, como se ele
fosse responsável pela morte de Cristo, o eleito de Deus, era calculada para minar, entre as massas
- 120 -
ignorantes, qualquer respeito e lealdade de que o conselho ainda gozasse. Mas minar a autoridade do
Sinédrio era, para os apóstolos, indispensável para estabelecer uma autoridade própria: e como o centro da
nova fé que eles pregavam era a crucificação e a ressurreição de Jesus, não podiam ter inventado arma
melhor e mais daninha para fazer com que o povo detestasse o Sinédrio e com ele toda a autoridade
estabelecida, do que a calunia da responsabilidade pela crucificação.
A primeira reação dos membros do Sinédrio, ao ouvirem as palavras de Pedro, foi a de que ele e seus
cúmplices deviam ser mortos (Atos 5,33). De novo, não pode ter sido a defesa apresentada por Pedro, de
que desafiava o Sinédrio somente porque tinha de obedecer a Deus, que fez com que eles "quisessem
matá-los" (5,33): a injunção de obedecer a Deus acima dos reis e de qualquer autoridade mundana
(Deuteronômio 17,19-20) está profundamente enraizada na consciência legal judia para ser considerada
uma alegação espúria ou vexatória a ser descartada levianamente. Se Pedro só tivesse dito isso, a
discussão que aconteceu depois se teria seguido imediatamente; mas com Pedro aceitando a queixa do
sumo sacerdote de que ele tencionava fazer recair o sangue de Jesus sobre o Sinédrio e reiterando suas
prévias calúnias, era natural que os membros reagissem como se conta que reagiram: se quisermos
sustentar a autoridade do Sinédrio e nos proteger da sedição caluniosa, temos de adotar algumas medidas
drásticas para amordaçar essas pessoas de uma vez por todas: se admoestação ameaça e ordem não
ajudam, que alternativa nos resta a não ser mandar matá-los? E não pareceria menos natural que as
pessoas que se viam repetidamente acusadas em público do assassinato deliberado de um inocente, de um
santo mesmo, perdessem a cabeça e o autocontrole; e se elas próprias eram juízes, que não apenas tiveram
uma participação nada discreta no assassinato, mas se esforçaram para salvar a vida do homem, seria
estranho se não agissem resolutamente para vingar sua reputação. Por mais "natural" que tudo isto possa
ser, estes homens, sendo juízes, não cederam ao instinto e inclinação, mas atuaram de acordo com a lei.
Não era crime capital, na lei judia, caluniar o Sinédrio, ou acusá-lo, ou a qualquer dos seus membros, de
assassinato, mesmo publicamente; por isso nem Pedro, nem os outros apóstolos podiam ser condenados à
pena capital por acusar o Sinédrio de cumplicidade no assassinato de Jesus. Só se tornava crime capital
semelhante acusação falsa se cometida por uma testemunha no julgamento de uma pessoa acusada por ela
e apenas se resultasse na condenação do acusado: "Se a testemunha for falsa e tiver testemunhado
falsamente contra seu irmão, far-lhe-eis como cuidou fazer a seu irmão... Não olharás Com piedade: vida
por vida" (Deuteronômio 19,18-21). Mas enquanto as acusações, por inverídicas que fossem, só eram
formuladas nas ruas e mercados, ou mesmo no Templo e locais de assembléia, de modo que não podiam
resultar em sentença de morte, a penalidade máxima que o caluniador podia sofrer era a flagelação; com
efeito, constatamos que Pedro e os outros apóstolos foram açoitados, como resultado do julgamento, por
sentença do tribunal (Atos 5,40). Nada, no entanto, adveio do "conselho" que reuniu os membros do
Sinédrio para mandar matá-lo (5,33): isso teria sido contra a lei.
Foi nesta fase dos procedimentos, quando os membros do Sinédrio ainda debatiam se a punição capital era
merecida, que "um no conselho, um fariseu chamado Gamaliel, mestre da lei, acatado por todo o povo"
(5,34), levantou-se. Rabban Gamaliel, tal como é conhecido nas fontes judaicas, não era apenas um
membro fariseu do Sinédrio, mas a mais importante autoridade legal e religiosa do seu tempo: na ausência
do sumo sacerdote, ele presidia o Sinédrio, e normalmente seria o primeiro e o mais autorizado porta-voz
da maioria farisaica. Lucas deve ter conhecido alguma tradição fidedigna de que foi Gamaliel que
interviera e tomara a direção do julgamento de Pedro: ele não poderia ser suspeito de atribuir a um fariseu,
ou mesmo a qualquer judeu, uma atitude pró-cristã, a menos que se apoiasse numa prova substancial. O
sentido do discurso atribuído a Gamaliel se harmoniza tanto com o que sabemos de outras fontes sobre os
seus ensinamentos e seu caráter, que se poderia dizer que o relato de sua intervenção confirma a
historicidade do próprio julgamento.
Enquanto tal sentido é autêntico, as palavras e o conteúdo suscitam alguma dificuldade. O discurso se
inicia com uma admoestação geral e introdutória aos "Israelitas, atentai bem no que ides fazer a estes
homens" (5,35); mas prossegue para recontar uma história do passado: "Porque antes destes dias levantou-
se Teudas, dizendo ser ele alguém, ao qual se juntaram cerca de quatrocentos homens; mas ele foi morto, e
todos os que lhe prestavam obediência se dispersaram e deram em nada. Depois deste levantou-se Judas, o
Galileu, nos dias do recenseamento, e levou muitos consigo: também este pereceu, e todos os que lhe
obedeciam foram dispersos" (5,36-37)? acontecimentos em questão não podiam ter sido mencionados por
Gamaliel, porque ocorreram muito depois do Julgamento de Pedro e dos outros apóstolos Sabemos de um
- 121 -
certo Teudas que pretendia ser um messias e atraiu "uma enorme multidão de pessoas que o seguiram até o
rio Jordão"; o governador romano Cúspio Fado destacou uma companhia de cavalaria, que matou muitos
deles e capturou outros; o próprio Teudas foi decapitado e sua cabeça levada para Jerusalém.6 Isto
aconteceu no ano de 45, mais de uma década depois do julga- mento de Pedro.7 Quanto a Judas da
Galiléia, não dispomos de informação de que ele próprio tenha sido morto; sabemos apenas que seus dois
filhos foram crucificados por sentença do governador Tibério Alexandre, cujo mandato iniciou-se no ano
de 49.8 É verdade que ouvimos falar das operações clandestinas de um Judas, o Galileu, no tempo do
recenseamento (6 AD) e Gamaliel poderia também dispor de informações que não nos chegaram sobre sua
execução; pode ser ainda que o Teudas de quem Gamaliel falou fosse uma pessoa diferente do Teudas de
Josefo. Mas a opinião preferível parece ser a de que o autor dos Atos, que sabia das execuções relatadas
em Josefo, as pôs na boca de Gamaliel sem dar importância ao anacronismo implicado, sendo os seus
leitores, de qualquer forma, incapazes de verificar os dados históricos.
Não é sem significação que tenham sido estes exemplos particulares que o autor dos Atos julgou adequado
transformar nas palavras de Gamaliel. Primeiro, "é notável que o autor dos Atos tenha sido levado a
representar um rabbi eminente procurando avaliar o cristianismo em termos do movimento de Judas da
Galiléia, o fundador do zelotismo, e Teudas. Só podemos é fazer conjecturas sobre se ele foi instigado a
isso à luz de alguma tradição que os ligasse" Em segundo lugar, e mais importantemente para o propósito
de nossa investigação, os movimentos tanto de Judas como de Teudas foram dirigidos contra a opressão
romana e combatidos pelos romanos: se Judas "pereceu" foi nas mãos de Roma, exatamente como seus
filhos foram crucificados por sentença de um governador romano; e, como Teudas, foi decapitado como
prisioneiro romano por soldados romanos. Nem Judas ou seus seguidores, nem Teudas ou os seus foram
jamais julgados ou sentenciados pelos tribunais judeus: se "pereceram" ou foram "mortos", isto se deu sem
a interveniência das autoridades judias, e sim por um uso romano da força dirigida não menos contra os
judeus em geral do que contra vítimas individuais. Se existia ou não qualquer outra ligação entre os
movimentos de Judas e Teudas e o dos cristãos, pelo menos é certa uma similaridade sugeri da pelo
discurso de Gamaliel, consistindo esta em que Jesus, como Judas e Teudas, não foi julgado e sentenciado
por tribunal judeu, mas morreu nas mãos dos odiosos romanos, mediante ação romana e por uma causa
romana.
Tivesse Gamaliel querido aludir a apóstatas julgados e sentenciados pelo Sinédrio por incitação à idolatria
e crimes semelhantes de natureza religiosa, ele poderia facilmente ter feito isto: mas a alusão teria sido
irrelevante, pois Jesus não havia sido julgado ou sentencia- do por isso. Só eram apropriadas as
ocorrências de acusação e de execução romanas; e o que Gamaliel quis assinalar foi que, mesmo quando
um líder judeu era executado pelos romanos, seus seguidores se dispersariam e cairiam no esquecimento, a
menos que Deus dispusesse de outro modo. Poder-se-ia esperar que a execução pelos romanos tivesse o
efeito de elevar o líder morto à condição de santo e mártir, desse modo fortalecendo os laços entre os seus
seguidores e a sua determinação de persistir na causa, mas todas estas expectativas, por sensatas que
parecessem, dariam em nada se assim Deus o quisesse. Parece ser um erro de fato aceitar que todos os
seguidores de Judas da Galiléia "foram dispersados": nós sabemos bem, e Gamaliel sabia, que os zelotas
não se dispersaram, mas se multiplicaram e intensificaram sua atividade clandestina depois da morte do
seu fundador, Judas; mas Lucas pode não ter sabido disso, e seu erro não afasta aquilo que ele desejava
que Gamaliel afirmasse: se os seguidores de Judas não se dispersaram, mas persistiram e se multiplicaram,
isto também era um sinal seguro da vontade de Deus.
Esta, portanto, foi a conclusão de Gamaliel: "Agora vos digo: Dai de mão a estes homens, e deixai-os;
porque, se este conselho ou esta obra é de homens, perecerá; mas se é de Deus, não podereis desfazê-la,
para que não sejais porventura achados lutando contra Deus" (Atos 5,38-39). No que diz respeito ao futuro
do movimento cristão, isto foi -e como tal foi aceito -uma resposta conclusiva: se o movimento
continuasse a existir e.florescer, isto seria em si prova bastante de que era desejado e abençoado por Deus,
e qualquer esforço humano para "derrubá-lo" se mostraria inútil; por outro lado, se vós estais certos, e se
este movimento não é desejo de Deus, mas uma afronta a Ele, vós podeis estar seguros de que Ele não o
deixará durar e prosperar. De qualquer forma, e o que quer que o futuro ou Deus tenha em reserva para
eles, os homens que agora estão sendo julgados diante de vós não podem ser punidos por causa das
opiniões que propagam e das doutrinas que pregam: na medida em que tais doutrinas são errôneas e
- 122 -
heréticas, Deus não as aprovará, mas as consignará ao limbo. Intrinsecamente, portanto, nada há nelas, por
mais que sejam não ortodoxas, que seja punível pela lei, nem mesmo a penalidade menor dos açoites.
Mas Pedro e os outros apóstolos, embora absolvidos das acusações de apostasia e de outras ligadas à
pregação da sua nova fé ("eles ordenaram-lhes que não falassem em nome de Jesus, e os soltaram", 5,40),
foram "golpeados" (ibid.), isto é, condenados a serem flagelados. Gamaliel não dissera uma palavra a
respeito da segunda parte do indiciamento do sumo sacerdote, que "eles tencionavam fazer recair O
sangue desse homem sobre nós" (5,28), indiciamento do qual Pedro virtualmente se confessara culpado
por sua reiteração de que "vós matastes" Jesus e o pendurastes num lenho (5,30). Só podemos é especular
sobre o motivo pelo qual Gamaliel silenciou sobre isto: pode-se talvez aventurar a opinião de que ele
achava estar abaixo da sua dignidade, e abaixo da dignidade do Sinédrio, desperdiçar palavras com uma
calúnia tão impertinente. Não podia haver dúvida de que injuriar o Sinédrio e o "príncipe do povo" (Êxodo
22,28) era um crime punível com flagelação; e, tendo tal crime sido cometido diante do tribunal, e, antes
disso, repetidamente em público, no Templo (3,15; 4,10), dificilmente o Sinédrio podia ignorá-lo. Assim,
fez o que a lei requeria que fizesse: infligiu a punição do flagelamento (Deuteronômio 25,2-3) aos
caluniadores, ficando as coisas por aí. Ouvimos dizer que Pedro e os outros apóstolos, depois deste
castigo, rejubilaram-se "por terem sido considerados dignos de sofrer afrontas por Seu Nome" (5,41),
como, com efeito, poderiam perfeitamente, vendo que um defensor inspirado como Gamaliel apoiara a
causa dele e que a difamação que faziam do Sinédrio não provocara uma reação mais drástica ou mais
dolorosa. É regra antiga da ética judia que, quando insultado, não se deve responder e que, mesmo
ouvindo injúrias, deve-se manter silêncio. Foi o que o Sinédrio fez quando Pedro exprimiu a vergonhosa
calúnia de que eles haviam matado Jesus e o crucificado (5,30).
As palavras atribuídas ao sumo sacerdote, de que Pedro e os outros apóstolos tencionavam "fazer recair o
sangue desse homem sobre nós", indicam claramente o ressentimento que a acusação despertou nele. Nem
pode o autor dos Atos ter pretendido, mediante esta seleção de palavras, comunicar qualquer coisa a não
ser esse ressentimento. Ora, se Jesus tivesse sido julgado pelo Sinédrio e condenado por um crime capital
de acordo com a lei judia, a censura por tê-lo matado e crucificado não poderia ser ressentida; antes, se o
Sinédrio não tivesse cuidado para que Jesus fosse executado, depois de ter ele sido devidamente julgado e
condenado por um crime capital, o conselho poderia com razão ser acusado de violar a lei: uma vez
pronunciada finalmente uma sentença, o Sinédrio não tinha arbítrio mas estava por direito obrigado a
garantir que a execução fosse cumprida prontamente.17 Ser creditado por matar e crucificar um criminoso
condenado seria um elogio e não um insulto, e do ponto de vista do Sinédrio não poderia fazer qualquer
diferença que ele fosse considerado inocente por seus admiradores e seguidores e da mais alta excelência
moral e espiritual. A acusação de que seu sangue recaía sobre eles, os membros do sinédrio, não teria
deixado qualquer impressão: se não tivesse recaído sobre eles, eles deveriam considerar-se culpados por
grave abandono do dever judicial: "Não o olharás com piedade" (Deuteronômio 19,21). O ressentimento
do sumo sacerdote e também de seus colegas juízes (5,33) mostra, portanto, que todos os presentes tinham
total consciência de que Jesus não fora julgado pelo sinédrio ou condenado por qualquer crime capital
segundo a lei judia: é nestas circunstâncias que a acusação de Pedro de que o sinédrio havia matado e
crucificado Jesus assume o seu caráter calunioso.
Não nos cabe decidir se Pedro realmente pronunciou e repetiu esta acusação, como consta nos Atos, ou se
foi Lucas que a pôs na sua boca, sem qualquer tradição válida de que realmente fora pronunciada, sendo
que uma decisão não seria de muita importância para o propósito de nossa investigação. O que é
importante e significativo é que, se ela foi feita, esta acusação, assim o diz Lucas, foi profundamente
ressentida e sumariamente rejeitada; e é desse ressentimento e dessa rejeição que podemos tirar as nossas
conclusões. É digno de nota que nas Epístolas atribuídas a Pedro não há uma palavra de queixa contra o
sinédrio no que diz respeito à morte de Jesus: ele afirma ter testemunhado os' sofrimentos de Jesus ( 1
Pedro 5,1), que Jesus, como "um cordeiro imaculado e sem contaminação", foi "designado" por Deus para
tornar-se o precioso sacrifício pelo qual a humanidade seria redimida (1,18-20), "pois que Cristo também
sofreu por nós" (2,21 ). Se Cristo efetivamente foi mortificado na carne, ele foi vivificado pelo Espírito
(3,18). Suas atribulações serviriam como um exemplo: "Nenhum de vós padeça como homicida, ou
ladrão, ou malfeitor, ou como o que se intromete em negócios alheios. Mas, se padece como cristão, não
se envergonhe" (4,15-16) e "como Cristo padeceu por nós na carne, armai-vos também vós com este
pensamento, que aquele que padeceu na carne já deixou de pecar" (4,1). Não se faz menção das
- 123 -
autoridades judias, o que pode ser explicado pelo fato de que as Epístolas são dirigidas a pessoas de fora
da Judéia (1,1). Contudo, há exortações expressas para obedecer a "governadores", "reis" e "aqueles que
são enviados para castigo dos malfeitores" (2,13-14), a despeito de qualquer coisa que possam ter feito a
Jesus.
Tiago, irmão mais velho de Jesus e, como Pedro, testemunha ocular do que aconteceu depois do seu
julgamento, dirigiu-se em sua Epístola aos "ricos", cujas "riquezas estão apodrecidas" (5,1-2), que
"vivestes regaladamente sobre a terra, e vos deleitastes: cevastes os nossos corações, como num dia de
matança" (5,5). Era a eles que ele acusava de terem "condenado e matado o justo; e ele não vos resistiu"
(5,6). Tiago foi representado por Paulo como uma das colunas da fé. (Gálatas 2,9): ele foi, desde o ano de
44, o chefe da comunidade cristã em Jerusalém, e deve ter sido informado exatamente do que acontecera a
Jesus: não obstante, não apenas não há menção, na Epístola, a uma responsabilidade judia pela morte de
Jesus, mas ele próprio foi toda a sua vida um fariseu observante, por mais ardente cristão que se tivesse
tornado. Os fariseus, descritos por Josefo como os "mais equânimes dos cidadãos e os mais diligentes em
seu respeito à lei", são por ele retratados como tendo protestado veementemente ante as autoridades
romanas quando, no ano de 62, um sumo sacerdote saduceu "de caráter ousado e violento" reuniu o
Sinédrio e fez julgar Tiago e outros "por infringir a lei": eles foram condenados e apedrejados por
contumácia. Não importa se sua objeção foi contra o ato unilateral do sumo sacerdote ao reunir o Sinédrio,
ou a aparentemente total composição saducéia do tribunal, ou a natureza da acusação e a causa da
condenação, ou a insuficiência de provas ou irregularidades no procedimento, ou contra todas essas
coisas; o fato de que se queixaram -mesmo se não tinham ninguém a quem se queixar, a não ser o
governador romano -é prova suficiente de que, do ponto de vista farisaico, Tiago não devia e não podia ser
condenado, não mais do que Pedro. Mas os saduceus e o sumo sacerdote saduceu parecem, por alguma
razão desconhecida por nós, ter sentido má vontade contra Tiago, bastante profunda e inflamada para que
decidissem se livrar dele. Seria sensato presumir que havia uma ligação entre as imprecações de Tiago
contra os ricos e o rancor saduceu contra ele; o fato de agora ele ir tão longe a ponto de acusar aqueles
"ricos" de terem "condenado e matado o justo", de terem crucificado Jesus, pode ter sido a última gota
d'água. Tiago pode, é
-claro, ter querido dirigir-se aos romanos quando falou dos corruptos que vivem de prazeres e
regaladamente, e não aos saduceus; se era isso que tinha em mente, sua acusação de que os romanos
tinham condenado e matado Jesus foi apenas a verdade simples e óbvia. E que eram, com efeito, os
romanos aqueles contra quem foi dirigida a sua diatribe parece seguir-se desta consolação: "Sede, pois,
irmãos, pacientes até a vinda do Senhor" (5,7; e cf. 5,8-11). A autenticidade da Epistola de Tiago é, no
entanto, contestada.
Uma fonte contemporânea mais importante do que as Epístolas de Pedro e de Tiago são as atribuídas a
Paulo, que hoje se considera comumente terem sido escritas duas ou três décadas depois da morte de
Jesus, quando a maioria dos seus contemporâneos ainda vivia (I Coríntios 15,6). Embora Paulo não
estivesse em Jerusalém quando ocorreram os acontecimentos que levaram à morte de Jesus, é concebível
que ele possuísse informações de primeira mão de pessoas que haviam estado presentes. É verdade que
suas Epístolas provavelmente sofreram alterações no texto antes da incorporação, um século mais tarde,
ao cânone do Novo Testamento, mas o mesmo se aplica, com a mesma probabilidade, aos outros livros do
Novo Testamento, e, não obstante, permite-se que permaneçam incoerências entre eles. A julgar por suas
próprias Epístolas, eu sugeriria que Paulo não teve informação fidedigna ou testemunho de primeira mão
da iniciativa ou participação judia no julgamento ou crucificação de Jesus. Apenas uma vez vemo-lo dizer
que os judeus mataram Jesus: ele escreveu aos Tessalonicenses que "vós também padecestes dos vossos
próprios concidadãos o mesmo que os judeus lhes fizeram a eles, os quais também mataram 0 Senhor
Jesus e os seus próprios profetas, e nos têm perseguido, e não agradam a Deus, e são contrários a todos os
homens" (1 Tessalonicenses 2,14-15). O contexto indica que a palavra "mataram" é usada de maneira um
tanto alegórica: o que os judeus fazem a todos os seus profetas, inclusive o Senhor Jesus, é apenas um
exemplo de sua atitude e comportamento gerais de desagradar Deus e "serem contrários a todos os
homens". O versículo seguinte diz que os judeus "nos impedem de falar aos gentios para que estes sejam
salvos." Tentar impedir-nos de pregar aos gentios é a culminação de todos os seus pecados, a morte de
Jesus e dos profetas incluídas. Pareceria, portanto, que essa espécie de "assassinato" é antes espiritual do
que física. O mínimo que pode ser dito desse clamor Paulino é que ele é grosseiramente exagerado:
- 124 -
exatamente como os judeus de fato não "mataram" nenhum dos seus próprios profetas, também não
"mataram" Jesus.
Numa Epístola anterior, vemos Paulo escrever que Jesus fora crucificado pelos "príncipes deste mundo" (I
Coríntios 2,8). "Príncipes deste mundo" podia ser um epíteto para os governadores romanos, mas
certamente não se ajusta aos judeus, ou mesmo aos seus anciãos e sacerdotes. Foi dito que a forma plural
indica conjuntamente Pilatos e os judeus; mas por lisonjeira que esta união possa ser, do ponto de vista
romano, para os judeus, eles dificilmente poderiam, mesmo nesse pé de igualdade, ser descritos por Paulo
como "príncipes", para não falar em "príncipes deste mundo". Inclinamo-nos pela opinião de que o termo
grego aqui usado, archontes, deve ser interpretado como poderes* espirituais, distintamente de poderes
terrenos, os quais, segundo uma escola, eram demônios maus que agiam sob as ordens de Satanás; ou,
segundo outra, espíritos bons que executavam a vontade de Deus. Encontramos a expressão "príncipe
deste mundo" na boca do próprio Jesus, dizendo que o via se aproximar, mas não tinha poder sobre ele
João 14,30): aqui também a alusão é, sem dúvida, a um poder espiritual.* A interpretação de archontes
como espíritos significaria que eles dirigiriam os atores, sem lhes deixar qualquer arbítrio; em termos de
responsabilidade, isto desobrigaria os atores, quem quer que fossem.
Isto também se ajusta a um pronunciamento Paulino mais anterior de que o próprio Deus condenou Jesus a
morrer (Romanos 8,3), tratando Jesus como se ele fosse o pecado personificado. Pela morte de Jesus,
Deus livrou o mundo do pecado -certamente um objetivo divino, merecedor da ação divina. E se não se
pode culpar um Deus onisciente e onipotente por permitir que Jesus morresse na cruz, logicamente não se
pode culpar os instrumentos que Deus escolheu e dirigiu para alcançar os Seus próprios fins. A cruz torna-
se agora um símbolo da salvação (Gálatas 6,14), não da dor e do sofrimento; e a morte de Jesus, antes de
ser o trágico resultado de um assassinato judicial, torna-se a propiciação da remissão do pecado e da fé na
justiça (Romanos 3,25).
A teoria de Paulo parte da premissa de que Jesus, embora tivesse morrido, ainda vivia (Atos 25,19): sua
mensagem é de que a cruz em que Jesus foi suspenso tornou-se por isso mesmo o símbolo da vida. Mas a
"pregação da cruz" (1 Coríntios 1,18) é "escândalo para os judeus e loucura para os gregos" (1,23), pelo
menos enquanto não são "chamados" e convertidos à fé (1,24); para aqueles que não acreditam na
ressurreição, a cruz deve ser sempre insignificante como um símbolo de fé (15,12-19). Eles são às
"indignos" que, se ousarem comer o pão e beber o vinho, que representam o corpo e o sangue de Jesus,
"serão réus do corpo e do sangue do Senhor" (11,27), tão "culpados" quanto humanamente se pode ser.
* Na Epístola aos Coríntios, utilizamos a palavra "poderes", conforme João Ferreira de Almeida.Já a
Bíblia de Jerusalém fala em "príncipes", no que concorda com a Vulgata. (N. do T).
Como a morte de Jesus, e a cruz como seu instrumento, foram assim "designadas" por Deus, não se pode
atribuir nenhuma responsabilidade penal a qualquer pessoa que executou a vontade de Deus, judeus ou
romanos; e como a morte não foi senão um prelúdio para a vida verdadeira e eterna de Jesus, não pode ter
havido assassinato. Mas, embora seja esta claramente a posição de Paulo em suas Epístolas, não é preciso
que nos surpreendamos, porque, nos Atos, encontramos palavras ostensivamente ditas por ele que se
enquadrariam na posição bem conhecida de Lucas. Relata-se ali que ele disse que "aqueles que habitavam
em Jerusalém e suas autoridades" condenaram Jesus, cumprindo assim as palavras "dos profetas que se
lêem todos os shabat. E, embora não achassem alguma causa de morte, pediram a Pilatos que ele fosse
morto" (Atos 13,27-28). É dito que o motivo que levou os judeus a fazer isso "foi que não o conheceram"
(ibid.). Relembramos que as "autoridades" já haviam aparecido em Lucas como aqueles que se mostraram
ativos no julgamento e que "pediram" a Pilatos que Jesus fosse crucificado (Lucas 23,13;24,20); agora
Lucas volta a fazer Paulo falar das "autoridades". O fato de que "o povo" de Lucas (23,4-13) ou a
"multidão" (23,1) são agora substituídos por aqueles que "habitavam em Jerusalém" não tem significação
particular: talvez o objetivo seja fazer com que Paulo dê ênfase ao fato de que apenas os habitantes de
Jerusalém, e não judeus de outros lugares, sendo o próprio Paulo um deles, foram de alguma forma
culpados. Mas note-se bem que aqui Lucas faz Paulo afirmar que tudo o que os judeus fizeram a Jesus foi
para que "fosse cumprido tudo o que estava escrito a respeito dele", e Lucas é o único evangelista que, em
sua narrativa da crucificação, sequer alude ao cumprimento da Escritura! O fato de que os judeus
cumpriram as profecias ao condenarem Jesus Só porque "não o conheceram", e presumivelmente não
conheciam as profecias, nem delas se lembravam, parece implicar que, se tivessem conhecido Jesus, não o
teriam condenado: Jesus não teria morrido, e as profecias não teriam sido cumpridas. Ou, igualmente,
- 125 -
tivessem eles conhecido as profecias ou delas se lembrado, não o teriam condenado, pois não teriam
desejado que as profecias se cumprissem com Jesus, entre todos os homens, e, ainda uma vez, ele não teria
morrido. No entanto, já que as profecias tinham de se cumprir, e como Jesus -se apenas para ressuscitar
-tinha de morrer, parece conveniente que os habitantes de Jerusalém se revelassem tão pouco
conhecedores: o que quer que fossem, de algum modo foram escolhidos como instrumentos de Deus para
realizar o fim escatológico pelo qual o mundo estivera esperando. E "quando eles cumpriram" tudo para o
que haviam sido escolhidos e "designados" a fazer, eles retiraram Jesus da cruz e o enterraram; assim
Lucas, através de Paulo, confirma uma tradição que nós já reconhecemos como válida. Mas os judeus não
haviam achado "causa de morte" em Jesus: bem ao contrário do que é alegado por Lucas em seu relato no
Evangelho (22, 71), aqui é dito que eles pediram a Pilatos que matasse Jesus, não porque fora julgado
digno de morte, mas, ao reverso, a despeito de não ter sido julgado digno de morte, e apenas para que
fosse cumprida a vontade de Deus. Tampouco se deve ignorar que, entre os muitos discursos de Paulo
registrados nos Atos, o que ele disse na sinagoga de Antioquia (Atos 13,14 e seguintes) é o único discurso
contando uma referência à causa da morte de Jesus. Diante do povo em Jerusalém (22,1-21), diante do
sinédrio (23,1-6), diante do governador romano (24,10-21) e diante do rei Agripa (26,2-27), ele não faz a
menor insinuação de cumplicidade dos judeus ou do sinédrio na condenação ou na crucificação. Não
apenas ele, diferentemente de Pedro, não indicia diretamente o sinédrio, mas mesmo ao defender sua
causa diante do governador, quando o sinédrio era o seu adversário, ele não disse uma palavra sobre a
responsabilidade deste na morte de Jesus, embora deva ter sido do seu interesse incriminar o conselho e
absolver o predecessor do governador, de um lado para mostrar que a perseguição que ele próprio sofria
era apenas parte de um sistema que se tinha iniciado com Jesus, seu mestre e mentor, e do outro para cair
nas boas graças do governador, que, podemos pensar, não teria em muita estima uma religião ou escola
fundada por um homem condenado por um crime capital, segundo o direito romano, e devidamente
crucificado. O silêncio imputado a Paulo é tanto mais significativo quanto Lucas teve, neste ponto, outra
oportunidade admirável para estabelecer a responsabilidade dos judeus pela morte e crucificação de Jesus
e a inocência romana, mediante provas aparentemente as mais verossímeis: se ele deixou escapar esta
esplêndida oportunidade, deve ter sido por conhecer as tradições quanto ao conteúdo real dos discursos de
Paulo. Se é permissível ou necessária alguma conclusão a partir de uma declaração num discurso
excepcional, e discurso este ambíguo, certamente pode-se tirar conclusão do fato de que em nenhum dos
seus muitos discursos há menção a qualquer culpa a ser atribuída aos judeus pela morte de Jesus.
Já se disse que Paulo não tinha qualquer interesse pelo Jesus histórico: seu interesse concentrava-se no
Jesus escatológico, conseqüentemente as causas humanas da morte de Jesus eram por ele consideradas
irrelevantes.29 Paulo dificilmente teria se identificado com os fariseus ("Varões e irmãos, eu sou fariseu,
filho de fariseus", Atos 23,6), se acreditasse que eles haviam lesado e perseguido Jesus; com os judeus
("Porque eu também sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim", Romanos 11,1), se
tivessem sido os judeus os causadores da crucificação de Jesus. "Deus não rejeitou o seu povo" (ibid.). E
todos serão salvos (11,26), judeus e gregos igualmente (1,16). A crença geral na ressurreição já era comum
a Paulo e aos fariseus (Atos 23,9); eles tinham apenas de partilhar também sua crença na ressurreição de
Jesus e em sua significação escatológica, e participariam da salvação. Todas as exortações de Paulo aos
judeus foram ditadas por amor e pelo sentimento de pertencer a este povo; nunca houve nelas o menor
elemento de agravo ou rancor; se, com efeito, ele viu nos judeus os assassinos de Jesus, teria sido isto
quase impossível de explicar.
Ninguém discute que o papel de Paulo foi o principal para abrir a decisiva e, ao que parece, intransponível
brecha entre judeus e cristãos.3° Mas Paulo, ao contrário dos evangelistas, não provocou a animosidade
dos judeus estigmatizando-os quer como descidas ou de qualquer outro modo; a verdade é que ele nunca
abandonou a esperança de que "todo Israel será salvo" (Romanos 11,26) e de que a misericórdia de Deus
seria usada com todos (11,32);Jesus era ele próprio um judeu que viera ã terra para ser "o misericordioso e
fiel sumo sacerdote" e "para expiar os pecados do povo" (Hebreus 2,17). A diferença de teologia ou de
princípios particulares de fé não é, em si mesma, uma causa de inimizade ou luta: a teologia de Paulo era
de salvação, de perdão dos pecados, de libertação dos grilhões da lei e do ritual (Hebreus 10); nada
continha a não ser benefícios e bênçãos para os que a adotavam; só oferecia felicidade àqueles ainda a
serem convertidos. Qualquer hostilidade a priori seria incompatível com a aceitação a priori de não-
crentes e com o convite expresso a estes para partilharem da "salvação". A brecha entre o cristianismo
- 126 -
Paulino e os judeus não é, em qualquer sentido, de inimizade: é uma brecha entre duas diferentes religiões,
e se, se revelou intransponível, foi porque os judeus não podiam aceitar o novo credo ou compreender
muitos dos seus princípios e porque não queriam abandonar a fé dos seus pais ou concordar em serem
libertados dos "grilhões da lei e do ritual". Se por motivos próprios ou por causa da sua cegueira
(Romanos 11,25) eles não queriam participar da salvação oferecida, tanto pior para eles: poderiam então
ser objeto de piedade, devendo-se pedir para eles a misericórdia de Deus, mas nem sua cegueira nem sua
teimosia justificaram o ódio. Se, ao longo da história, a atitude geral e oficial dos cristãos para com os
judeus diferiu da atitude para com outros não-cristãos, isto não reflete divergências teológicas ou
doutrinárias, mas só espelha o fanatismo e o preconceito enxertados nos corações dos cristãos pelo retrato
que se pinta dos judeus nos Evangelhos como os assassinos e crucificadores de Jesus. Este retrato é obra
dos evangelistas, que só começaram a esboçá-lo depois de decorridas pelo menos quatro décadas da morte
de Jesus. Os grandes apóstolos que os precederam desconheciam tal assassinato e estavam longe de pregar
esta má vontade.

10

O SEU SANGUE CAIA SOBRE NÓS E SOBRE NOSSOS FILHOS

Os maus presságios do sumo sacerdote no julgamento de Pedro, de que havia intenção de que o sangue de
Jesus fosse "lançado sobre nós" (Atos 5,28), seriam logo comprovados. Coube a Mateus cumpri-los, e o
fez com uma eficácia fatal que nem ele teria antecipado.
A Grande Guerra (66-70) terminara com a destruição do Templo e da cidade de Jerusalém pelos romanos.
Quando começou, a maioria dos cristãos deixou Jerusalém: eles haviam sido avisados "por meio de um
oráculo feito por revelação a pessoas aceitáveis” muitos se estabeleceram em Pela, a leste do Jordão, e
muitos juntaram-se às novas comunidades em Roma ou em Alexandria. Marcos viveu e escreveu em
Roma; Mateus viveu e escreveu em Alexandria. Marcos já havia condenado os judeus sem reservas por
responsabilidade pela morte de Jesus: sua preocupação era isentar o governador romano, mostrá-lo como
alguém que não encontrou qualquer erro em Jesus, explicar a flagrante antítese entre a crucificação de
Jesus pelos romanos e sua inocência segundo a lei de Roma. Esta tradição, como vimos, foi retomada por
Mateus; mas enquanto Marcos escreveu tendo em mente os romanos, Mateus escreveu tendo em mente os
judeus. Alexandria deve ter abrigado, naquela época, a mais numerosa comunidade judia na terra: Josefo
relata que quando irromperam ali pogrom antijudeus, durante a Grande Guerra, cinqüenta mil deles foram
mortos.2 A tensão era grande não apenas entre romanos e gregos, de um lado, e judeus, do outro, mas
também, e sempre crescente, entre judeus e cristãos: seja porque os judeus estivessem furiosos ante a
deslealdade dos cristãos, que haviam abandonado Jerusalém quando irrompeu a luta e agora eram vistos
não apenas como dissidentes em questões religiosas e transgressores da lei, mas também como traidores
da causa nacion31, seja porque os cristãos encarassem a destruição do Templo como prova não apenas da
ira divina e da alienação definitiva do amor de Deus do Seu povo originalmente eleito, mas também do
"cumprimento da profecia do Cristo e uma confirmação da crença deles de que o cetro havia passado de
Israel para a Igreja ". Enquanto Mateus, que também vivia no Império Romano, não tinha qualquer
interesse em descartar a tradição vinda de Marcos quanto à inocência dos romanos na crucificação de
Jesus ou em diminuí-la, seu objetivo em atribuir a culpa aos judeus, além de torná-los o bode expiatório
para a absolvição dos romanos, era, mais particularmente, propiciar aos próprios judeus um testemunho
conclusivo de que a destruição do Templo, e todo o desastre que se abatera sobre ele, era uma punição
divina pelo assassinato de Jesus. A moral desta lição divina só podia ser a de que os judeus agora ou
veriam a luz e se tornariam cristãos ou, então, se persistissem em negar Jesus Cristo, desnudar-se-iam para
as manifestações sempre reiteradas do desagrado divino. Ao reverso, aqueles que já se tinham tornado
cristãos extrairiam encorajamento e confiança da rapidez e severidade da punição imposta por Deus aos
teimosos descidas. Mas para justificar tal punição, não, para apresentá-la mesmo como inescapável, devia
ser firmemente estabelecida a culpa dos judeus: algumas pessoas poderiam dizer que não bastava
responsabilizar apenas uma parte dos judeus, os sacerdotes ou os anciãos, por exemplo; era necessário
culpar a nação como um todo, como justificação para uma penalidade de tais dimensões universais. Ou
- 127 -
outras poderiam dizer que não bastava sobrecarregar os judeus com uma responsabilidade apenas indireta:
eles podem ter sido instigadores e acusadores, mas o crime foi, em última instância, cometido por
carrascos romanos; e não houvesse o governador bajulado os judeus, Jesus ainda poderia estar vivo. Estas
eram considerações que precisavam ser afastadas, e como isso não podia ser feito com argumentos, tinha
de sê-lo mediante "fatos" inequívocos.
Assim, vemos Mateus -e somente Mateus -acrescentar à narrativa de Marcos este relato aparentemente
factual: "Vendo Pilatos que nada conseguia, antes aumentava o tumulto, tomando de água, lavou as mãos
diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo: considerai isso. E o povo todo
respondeu: O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos!" (27,24-25).
Antes de examinarmos os detalhes desta história, é preciso descartar certas teorias exegéticas. Foi dito, por
exemplo, que as palavras "seu sangue caia sobre nós" não devem necessariamente ser interpretadas como
uma confissão judia de culpa pela crucificação de Jesus, mas simplesmente como uma afirmação pelos
judeus de que estavam convencidos da culpa dele, de modo que Pilatos pudesse com segurança condená-
lo.4 Em outras palavras: os judeus não admitiram ou assumiram qualquer responsabilidade pela
crucificação; tal responsabilidade caberia sempre ao governador romano e ficaria somente com ele; o que
eles fizeram foi apenas uma tentativa de persuadi-lo de que a execução de Jesus era amplamente
justificada por causa dos dados que eles haviam cuidadosamente investigado e cuja validade e
fidedignidade podiam atestar. Com efeito, a exclamação deles, "seu sangue caia sobre nós", não era nada
mais do que aquilo que sempre diziam as testemunhas de acusação depondo em julgamentos criminais: a
lei dizia que antes de prestarem depoimento, elas eram advertidas pelo tribunal nos seguintes termos: Y os
deveis saber que os procedimentos penais diferem dos procedimentos civis; nos casos civis um homem
pode reparar qualquer dano que possa ter causado pagando, mas nos casos criminais seu sangue e o
sangue dos seus filhos, até Q fim do mundo, cairão sobre vós.5 Pareceria, pois, que o sangue de um
condenado executado invariavelmente, como se dizia, "caia" sobre a testemunha por força de cujo
depoimento ele fora julgado culpado: se o depoimento fosse verdadeiro, nada havia de errado ou mau em
cair o sangue do condenado sobre a testemunha; somente se o depoimento fosse falso é que este sangue,
injustamente derramado, clamaria a Deus (Gênesis 4,10). Já que, no caso de Jesus, os judeus estavam
convencidos de que sua culpa havia sido conclusivamente determinada, eles podiam sem hesitação
declarar "o seu sangue caia sobre nós", como se fossem testemunhas depondo contra ele.
Outra teoria consiste em que, longe de ser um incitamento para que Pilatos procedesse à crucificação de
Jesus, as palavras, em realidade, tencionavam adverti-lo a não proceder desse modo: em vez de dizer, pare,
você está derramando sangue inocente, eles disseram, pare, se você derramar este sangue, nós não
poderemos nos responsabilizar por ele. Os defensores desta teoria julgam-na sustentada pelo fato de que,
falando gramaticalmente, as palavras no original grego não são usadas no futuro, mas no presente, como
se os judeus estivessem dizendo, nós estamos derramando este sangue se você o crucificar, e não
queremos derramá-lo; se até agora somente clamamos, que ele seja crucificado (27,22), agora que você
lavou as mãos e declarou a inocência "deste justo", nós não queremos mais que seu sangue seja
derramado, pois seria o mesmo que derramar o nosso próprio sangue. Estas e algumas teorias similares
são tentativas desesperadas e inúteis para retirar da história de Mateus seus ferrões mais pungentes. Foi
dito que, recentemente, quando se iniciaram as buscas de uma autoridade bíblica para um melhor e mais
amistoso relacionamento entre judeus e cristãos, estas palavras em Mateus tornaram-se uma crux
interpretum, sendo, como de fato são, um formidável obstáculo no caminho do acordo ecumênico, estando
sendo feitos esforços imensos para se superar as dificuldades que suscitam. Sugere-se que este propósito,
por louvável que seja, não pode ser atingido despojando-se as palavras do seu sentido natural; nem é um
modo admissível de interpretação atribuir-lhes um sentido que não podem ter , seja em lógica ou em
gramática. Temos de aceitar e avaliar a história tal como consta; e, uma vez tendo descrito o pano de
fundo contra o qual ela foi fabricada, estamos preparados para as piores implicações. Podemos e teremos
de descartá-la como não histórica e ficcional, mas, presumindo que as coisas aconteceram e que as
palavras foram pronunciadas como a história conta, não podemos contornar as implicações fechando os
olhos para o significado que se queria comunicar.
O verdadeiro sentido das palavras "o seu sangue caia (ou seja) sobre nós" é simplesmente o seguinte: se
este homem, como você diz, é inocente, e se, crucificando-o, como o desejamos, você com efeito derramar
sangue inocente, então seu sangue será cobrado de nós, seremos culpados por ele, e você ficará livre de
- 128 -
responsabilidade. Pilatos havia afirmado ao povo, ou assim reza a história, que ele era inocente "do sangue
deste justo" e lhes dissera "considerai isso" - vocês o trouxeram aqui, vocês insistem em sua condenação,
vocês querem que o seu sangue seja derramado, muito bem: é responsabilidade de vocês, não minha. Com
isso todos concordaram: nada podia ser mais sensato do que aqueles que clamavam pela crucificação
sumissem a responsabilidade por ela, tanto mais que o real executor, Pilatos, professara ceder ao clamor
contra a sua vontade e contra o seu melhor julgamento. Assim, "todo o povo" respondeu: Não vos
perturbeis, seu sangue não cairá absolutamente sobre vós; Deus no céu é nossa testemunha de que estamos
assumindo o seu sangue; e, se for sangue inocente que está sendo derramado, Deus descobrirá e nos
punirá.
A frase "que seu sangue caia sobre mim ou minha cabeça" é uma forma de expressão freqüentemente
encontrada no hebraico bíblico para significar aceitação ou responsabilidade, desde que ocorresse morte.
O locus clássicos é a exortação da Escritura: "Para que o sangue inocente se não derrame no meio da tua
terra, que o Senhor teu Deus te dá por herança, e haja sangue sobre ti" (Deuteronômio 19,10): deixando de
impedir o derramamento de sangue inocente, você toma sobre si mesmo o sangue. "Nenhuma expiação se
fará pela terra por causa do sangue que nela for derramado, senão com o sangue daquele que o derramou"
(Números 35,33). Quando os homens de Josué fizeram um pacto com Raab para que sua família fosse
poupada e não morta pelo exército invasor dos israelitas, eles lhe disseram: "Qualquer que sair fora da
porta da tua casa o seu sangue lhe cairá sobre a cabeça, e nós seremos sem culpa; mas qualquer que estiver
contigo em casa o seu sangue caia sobre a nossa cabeça, se nele se puser mão" Josué 2,19. Isto quer dizer
que eles assumiam inteira responsabilidade pela morte de qualquer dos parentes de Raab que ficasse em
sua casa e não saísse dela, mesmo que a morte não sobreviesse por causa dos próprios parentes, mas por
"qualquer mão"; mas não seriam responsáveis por qualquer pessoa morta além da sua casa, mesmo se eles
próprios fossem os assassinos: seu sangue estaria sobre a sua própria cabeça, e não sobre a deles. Assim,
quando o homem que matou Saul confessou seu feito, embora ele tivesse morto o rei a pedido do próprio
Saul, Davi exclamou: "O teu sangue seja sobre a tua cabeça, porque a tua própria boca testificou contra ti,
dizendo' Eu matei o ungido do Senhor" (2 Samuel 1,16), pois a confissão bastava para estabelecer a culpa
do assassino pelo sangue. Similarmente, pode-se protestar inocência na frase: "Estou limpo do sangue de
todos" (Atos 20,26), uma declaração de que não está sobre a minha cabeça o sangue de nenhum homem.
Quando Jeremias foi acusado diante do tribunal de sacerdotes, ele os advertiu. "Sabei, porém, com certeza
que, se me matardes a mim, trarei sangue inocente sobre vós, sobre esta cidade e sobre os seus habitantes"
Jeremias 26,15. É assim que Pilatos teria de ser advertido, se, com efeito, a intenção fora impedi-lo de
crucificar Jesus.
Enquanto o uso da frase "que seu sangue seja sobre nós" seria, portanto, bastante natural em lábios judeus,
e seu significado claro e sem ambigüidade, as palavras precedentes de Pilatos, e mais particularmente o
ato de lavar as mãos, são tão hebraicas, e não romanas, no caráter, que não podem, racionalmente, ser de
modo algum atribuídas a ele. É lei bíblica que "quando na terra que te der o Senhor teu Deus para possuí-
la se achar alguém morto, caído no campo, sem que se saiba quem o matou", então os anciães da cidade
mais próxima "lavarão as mãos" sobre uma novilha e dirão: " As nossas mãos não derramaram este
sangue, e os nossos olhos não o viram. Sê propício ao teu povo Israel que tu, ó Senhor, resgataste, e não
ponhas o sangue inocente no meio do teu povo Israel. E aquele sangue lhes será expiado. Assim tirarás a
culpa do sangue inocente do meio de ti. .." (Deuteronômio 21,1-9). O ato de lavar as mãos é aqui uma
demonstração manifesta da inocência de que as mãos estão limpas de qualquer sangue derramado, mas a
lavagem simbólica das mãos e o pronunciamento que a acompanha, "Nossas mãos não derramaram este
sangue, e os nossos olhos não o viram", segue-se à descoberta do homem morto, e não precedem o ato de
matar. Quando o sangue já havia sido derramado, podia-se declarar a própria inocência e o
desconhecimento do crime, e lavar as mãos sobre ele, mas quando o sangue está para ser derramado,
nenhuma lavagem de mãos, por maior que seja, pode limpar a cumplicidade no derramamento, a menos
que se faça tudo que estiver ao alcance para impedi-lo. Lavando as mãos e protestando sua inocência antes
de entregar Jesus para a crucificação, Pilatos não podia, em direito ou em lógica, eximir-se da
responsabilidade pelo que aconteceu depois: pelo derramamento de sangue que sobreveio, suas mãos
limpas seriam nova- mente maculadas.
Ainda assim, a analogia da lavagem de mãos depois da descoberta de um homem morto, o
estabelecimento da inocência e a liberdade de responsabilidade assim garantida devem ter servido ao autor
- 129 -
do Evangelho segundo Mateus de precedente para o curso de ação que ele faz Pilatos adotar. O ato de
lavar as mãos, num contexto de declaração de inocência de derramamento de sangue, era bastante familiar
aos leitores judeus, e talvez se pudesse correr com segurança o risco de que eles não examinariam detalhes
legais para diferenciar entre lavar as mãos antes e depois do acontecimento. Mas o que não saberia o leitor
judeu médio -e possivelmente tampouco o sabia o autor do Evangelho segundo Mateus -é que esta espécie
de cerimônia simbólica era desconhecida dos romanos:B enquanto se poderia imaginar que um dignatário
judeu lavasse as mãos e declarasse inocência de derramamento de sangue, um governador romano nunca
faria o mesmo, porque todo o rito e seu simbolismo lhe eram estranhos e sem sentido. Se os leitores judeus
de Mateus aceitaram - e se podia esperar que aceitassem -a história da lavagem de mãos de Pilatos, foi
porque eles aprenderam, instantânea e instintivamente, o seu simbolismo e não precisaram fazer uma
pausa para tomar consciência de que o que era para eles algo de imediata compreensão estava fora do
conhecimento e do entendimento de outros povos. Em Roma, no entanto, os leitores deviam estar melhor
informados. Eles teriam sabido que nenhum governador romano jamais cometeria a loucura de lavar as
mãos em público diante de "multidões " de nativos e degradar-se a ponto de fazer uma declaração solene
de inocência, como se eles fossem os seus juízes -e a respeito de um ato oficial que ele estava a ponto de
praticar no exercício da sua autoridade governamental e do seu poder imperial! A idéia era demasiado
absurda para ser apresentada a um público erudito. Não fazia qualquer sentido, porque o simbolismo
cerimonial presente no ato era ininteligível para eles, e o que sobrou de ação e palavras, depois de retirado
o simbolismo, era tão derrogatório da dignidade e da posição de um governador romano, que a política de
apresentar Pilatos sob uma luz tão favorável quanto possível seria gravemente prejudicada. Nada mais
predizível, portanto, do que os autores dos Evangelhos segundo Lucas e João decidirem omitir a história.
Por mais decisiva e importante que a auto-acusação dos judeus ("que o seu sangue caia sobre nós e nossos
filhos") deva ter sido também para os evangelistas posteriores, eles renunciariam a sua vantagem e
prefeririam abandoná-la, se apenas para não desorientar seus leitores com a descrição de um
comportamento tão pouco romano, tão pouco digno de um governador e tão sem sentido da parte de
Pilatos. Tendo em mente que Marcos, o primeiro evangelista, não tinha a tradição da lavagem de mãos de
Pilatos ou da auto-acusação dos judeus, e de que a história que aparece em Mateus havia sido rejeitada
pelo terceiro e quarto evangelistas, nós podemos com segurança presumir, com a concordância de muitos
proeminentes eruditos contemporâneos, que não há qualquer tradição válida por trás do relato de Mateus.
O autor anônimo de um evangelho apócrifo erroneamente atribuído a Pedro encontrou um modo altamente
original de resolver os enigmas do relato. O primeiro dos fragmentos existentes deste evangelho começa
como segue: "Mas dos judeus nenhum lavou as mãos, nem Herodes nem qualquer dos seus juízes. Porque
não lavavam as mãos, Pilatos ergueu-se. E então Herodes ordenou que o Senhor fosse levado para fora,
dizendo a eles: O que eu ordenei que vocês fizessem com ele, façam."
Os leitores lembrar-se-ão que, numa tradição de Lucas, Pilatos transferira o julgamento de Jesus para
Herodes, ao saber que este estava em Jerusalém e que Jesus era um Galileu, sujeito à jurisdição do rei
(Lucas 23,7). Mas enquanto Lucas diz que Herodes mando Jesus de volta para ser julgado diante de
Pilatos (23,11), o evangelho apócrifo presume que ele aceitou a transferência e que todos os
procedimentos subseqüentes, inclusive a sentença, foram conduzi- dos sob a presidência, e, portanto, sob a
responsabilidade exclusiva de Herodes.José de Arimatéia é nele descrito como "amigo de Pilatos e do
Senhor", e quando "ele foi a Pilatos e pediu o corpo do Senhor para enterrá-lo", Pilatos teve de mandar
um" mensageiro a Herodes para lhe pedir o corpo: "E Herodes disse, Irmão Pilatos, mesmo se ninguém
lhe tivesse pedido o corpo, nós o enterraríamos, já que o shabat está se aproximando" (Evangelho de
Pedro 2,3-5). Pilatos é retratado como um observador amistoso que, pudesse ele, estava disposto a fazer
qualquer coisa para salvar Jesus do seu destino, mas era impotente para interferir no curso da justiça
herodiana: mesmo para o favor de permitir o enterro, ele teve de se dirigir a Herodes e nada pôde fazer por
conta própria. Se tais tivessem sido realmente os fatos, Pilatos seria automaticamente isentado de toda
responsabilidade pela morte de Jesus: Jesus teria sido julgado e sentenciado por um tribunal judeu
presidido pelo rei Herodes, que o governador expressamente investira da devida jurisdição. Contudo,
parece que a lavagem de mãos relatada em Mateus, foi um episódio excessivamente concreto para ser
excluído dessa história radicalmente diversa; e como o autor anônimo parece ter sabido que esta
ritualística era tipicamente judaica, ele tentou incluí-la em sua narrativa como um modo de conduta
judaico, não romano. É assim que agora se dá à lavagem de mãos a função de determinar a inocência do
- 130 -
acusado no tribunal judeu: quem o julgasse inocente erguer-se-ia e lavaria as mãos; aqueles que o
julgassem culpado permaneceriam sentados e se absteriam de cumprir o rito. Pilatos, embora não fosse ele
próprio um dos juízes, se podemos conjecturar o que estava na parte do fragmento que lamentavelmente
não sobreviveu, executou-o segundo o costume do tribunal judeu, como forma de expressar sua opinião de
que Jesus era inocente: parece que, já que ele estava presente no tribunal, Herodes e os juízes lhe fizeram a
cortesia de um convite na votação cerimonial. Mas então, "nem Herodes nem qualquer dos juizes " lavou
as mãos e uma clara maioria, portanto, votou para julgar Jesus culpado; então, "Pilatos ergueu-se", estando
os procedimentos no fim, e 0 tribunal não podia se levantar antes que o governador se tivesse retirado. É
notável que, enquanto a cerimônia da lavagem de mãos é assim retida e devidamente judaizada, perde-se
de vista a auto-acusação judia, a menos que ela também fosse registrada em outra e perdida parte do
fragmento: talvez não houvesse mais necessidade desta auto-acusação, já que a responsabilidade pela
condenação e crucificação de Jesus havia agora sido atribuída, de modo completo e com firmeza, a
Herodes e ao seu tribunal judeu, com a exclusão do governador romano e de qualquer outra pessoa.
Seria excessivo enfatizar o fato de que nunca existiu tal costume num tribunal judeu de juízes que
estivessem votando pela absolvição, mediante a lavagem de mãos. Mas o próprio engenho da
interpretação assinala o dilema em que se viram os cronistas: havia a história de Mateus, de Pilatos
lavando as mãos e declarando inocência, e a resultante auto-acusação dos judeus; e havia a possibilidade
de que todo este arranjo para atribuir total responsabilidade aos judeus pudesse ser desfeito pela
improbabilidade, senão impossibilidade, de Pilatos se portar de maneira relatada. Ignorar toda a história,
como Lucas e João fizeram, seria uma evasão demasiado fácil, podendo ter sido considerado pouco
político evitar o problema ao preço de esquecer uma forma tão persuasiva e conclusiva de considerar os
judeus responsáveis como seria a própria declaração de responsabilidade deles. Assim foi atacado o
problema; e o resultado foi uma série de invenções progressivamente mais fantasiosas e mais improváveis.
Seja qual for a forma pela qual interpretemos os fatos estabelecidos, há questões que não comportam
respostas satisfatórias. Primeiro, não apenas Pilatos não declararia sua inocência ante uma multidão judia,
mas o grito dos judeus, "que caia o seu sangue sobre nós", não o impressionaria. Sentava-se ali
-virtualmente -um vice-rei romano julgando um homem que ele achava inocente: como podia um protesto
histérico de súditos judeus reunidos no pálio, ousando aceitar responsabilidade pelo que ele, procurador de
César , estava por fazer, mudar o seu pensamento Não apenas era esta "aceitação" de responsabilidade um
descaramento, que quase chegava à desobediência criminal, mas também equivalia a uma presunção de
responsabilidade judicial, como se a multidão fosse superior a qualquer juiz, e ainda por cima, um juiz
imperial, para discernir onde havia inocência e onde havia culpa. Fosse Pilatos um juiz misericordioso e
inclinado a perdoar, ele poderia ter afastado essa histeria com um sorriso e pronunciado seu veredito como
adequado; mas sabemos que ele era colérico e implacável, o que faria com que sua reação natural e
esperada fosse um castigo trovejante e claro a esse tipo de intromissão, Vê-lo sentado humildemente no
trono, sem fazer nem uma coisa nem outra, mas sucumbindo inerte à impertinência de uma excitada
multidão judia é evocar o mais absurdo e menos histórico dos espetáculos.
Em segundo lugar, por impetuoso que fosse o espírito de manifestação de toda aquela gente, caberia em
última análise somente a Pilatos a responsabilidade por seus atos e decisões. Ele não a poderia delegar, e
ela não seria aliviada por alguém que a partilhasse. Se Jesus era inocente, e Pilatos assim o julgou e
contudo ordenou sua crucificação, ele não poderia se livrar da responsabilidade de assassinato judicial
alegando que outro a assumira. A auto-acusação judia era, do começo ao fim, legal e politicamente
desprovida de valor; e por relevante que se tornasse, moral e teologicamente, deve ter soado aos ouvidos
de Pilatos como uma algaravia sem sentido.
Em terceiro lugar, nós não sabemos quem eram os judeus que assumiram a responsabilidade: sobre que
cabeças, sobre as cabeças de quais filhos deveria cair o sangue de Jesus? Mateus informou-nos que foi "o
povo todo" que disse: "Caia sobre nós o seu sangue e sobre os nossos filhos" (27,25). Diz-se que a palavra
"todo" foi usada de propósito, para conferir a "o povo" um peso e uma importância incomensuráveis; mas
"todo" o povo dificilmente pode se ter reunido numa praça que, numa estimativa muito generosa, não
abrigaria mais do que mil pessoas. Qual era, pois, o povo presente? Será que gritaram uníssonos, ou
alguns gritaram e outros não? Qual era sua autoridade para assumir a responsabilidade pelo sangue de
Jesus? Alguém os enviara e lhes dera poderes para fazer com que esse sangue caísse sobre as suas cabeças
e sobre as cabeças de seus filhos? Se é assim, quem foi e qual a origem da autoridade daquele que desse
- 131 -
, modo lhes conferiu poder? Será que foram os principais sacerdotes e os anciãos que "persuadiram a
multidão" (27,20) a assumir a responsabilidade por "todo o povo"? Nesse caso, porque, porque não a
assumiram, eles próprios, diretamente? E de onde provinha a autoridade dos "principais sacerdotes e dos
anciãos" para responderem por "todo o povo" ou para induzirem a multidão a ser responsável? Mesmo que
se aceite que tal grito tenha sido proferido aos ouvidos de Pilatos por várias centenas de judeus, nada nesta
suposição justificaria considerá-lo como sendo a auto-acusação não solicitada do povo judeu em sua
totalidade e que pesaria sobre as gerações até o fim dos dias, tornando-as execráveis.
Em quarto lugar, a responsabilidade por um feito ou ato não é atribuída por uma declaração que professe
assumi-la, mas por padrões objetivos: ela estaria onde objetiva e verdadeiramente estivesse, independente
da circunstância de que certos voluntários, que não eram genuinamente responsáveis, a tomassem sobre si
próprios. A situação não é exatamente igual àquela em que uma pessoa acusada alega culpa, embora possa
ser inocente: por algum motivo pessoal, ela está enfrentando as conseqüências de sua alegação, e não as
vicissitudes de um julgamento. Contudo, mesmo nesse caso, sua "culpa" real pode ser e pode permanecer
uma questão de dúvida e de especulação, por mais que a lei justifique sua punição. No que diz respeito à
"culpa" real, a exclamação "que caia seu sangue sobre nós" só poderia ter valor probatório se fosse
expressa em virtude de fatos objetivamente estabelecidos e de acordo com eles: se estes fatos não
garantiam a suposição de responsabilidade pelos voluntários, então a exclamação deveria ser considerada
e descartada como um rompante instantâneo e impulsivo, nascido de instigação ou emoção, nada devendo
a uma deliberação racional. Não obstante, estas palavras, colocadas por Mateus na boca de "todo o povo",
foram interpretadas e aceitas, através dos tempos, como uma admissão pensada, da parte dos judeus, de
premeditação e malicia calculada no assassinato de Jesus. Tertuliano (por volta de 155-225), escreveu que
Jesus foi morto "por toda a comunidade da sinagoga de Israel, pois quando Pilatos quis soltá-lo, eles
clamaram diante dele: que seu sangue caia sobre nós e nossos filhos". Nenhuma das muitas outras
acusações dirigi das contra os judeus nas histórias do Evangelho foi tão obstinadamente sustentada contra
eles como prova irrefutável de culpa e responsabilidade pela crucificação quanto essas palavras: "Que o
seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos". Adaptando as palavras do Rei Davi que citamos, foi dito
dos judeus que sua própria boca testemunhara contra eles, ao dizerem que o sangue de Jesus está, com
efeito, sobre suas cabeças. (2 Samuel 1,16). E exatamente como o sangue de Abel, que clama a Deus
desde a terra, caiu sobre Caim, seu assassino, e a punição de Caim foi a de ser "um fugitivo errante na
terra" (Gênesis, 4,12), assim o povo judeu, sobre cuja cabeça caiu o sangue de Jesus, seria fugitivo e
errante na terra, levando o estigma de assassinos onde quer que fossem.
É bastante natural e teologicamente justificado que a dispersão dos judeus, e todas as variadas
adversidades que sobre eles recaíram nas mãos de Deus, fossem encaradas por observadores cristãos como
um castigo divino que este povo amplamente merecia: "Os judeus são vistos dispersos pelo mundo inteiro
porque foram punidos por nenhum outro motivo que não as mãos ímpias que puseram em Jesus." Com
efeito, o espetáculo da punição que Deus impôs ao povo judeu pode ter consolidado nestes observadores a
crença de que a culpa pela morte de Jesus de fato recaiu sobre eles. Alguns dos Padres da Igreja,
parecendo contentar-se com a punição que uma divindade justa e onisciente julgara apropriado infligir aos
judeus, insistiram que cabia agora aos cristãos apenas: "pregar aos judeus com um espírito de amor", não
"nos compete gabar-nos diante deles como ramos cortados" e que os fiéis deveriam "dizer a eles, sem
exultar sobre eles: Vinde, e andemos na luz do Senhor" (Isaías, 2,5).18 Mas muitos outros acharam,
evidentemente, que Deus não os punira bastante e que cabia ~Igreja compensar Sua clemência
perseguindo os judeus de toda forma possível: para "seu odioso assassinato de Cristo não pode haver
expiação, indulgência ou perdão; a vingança não tem fim; e os judeus viverão sob o jugo da servidão para
sempre". Como descidas confessos, há pouco o que discutir de que são a escória da humanidade:
"bandidos lascivos, gananciosos, vorazes, pérfidos", "assassinos inveterados, possuídos pelo demônio", a
quem "a depravação e a embriaguez deram os modos do porco e do luxurioso bode; são impuros e ímpios,
e só sabem uma coisa: satisfazer a goela, embriagar-se, matar e mutilar um ao outro; com efeito, eles
ultrapassaram "a ferocidade dos animais selvagens, pois assassinam seus filhos e os imolam ao diabo".
Devem ser oprimidos e atormentados onde e sempre que os cristãos os encontrem, e os devotos que com
eles conversaram apenas para conquistá-los para a verdadeira fé serão censurados no Dia do Julgamento,
dizendo-lhes Deus: "Afastai-vos de mim, porque tivestes comércio com meus assassinos.
- 132 -
Seja que esta ratificação divina da auto-acusação judia fosse demasiado óbvia para ser ignorada ou mal
interpretada, seja que o comportamento inamistoso dos judeus para com eles tivesse despertado nos
cristãos uma hostilidade que, por sua violência, buscava uma 'prova "absoluta" de que os judeus tinham
sido culpados, o fato é que, através de uma auto-imposição voluntária e intencional de responsabilidade
pela morte de Jesus, tal como relatada em Mateus, os judeus fizeram recair sobre si uma carga de vingança
e castigo sem paralelo nos anais da história do mundo e, como se veria, ainda não esgotada. Não há
virtude em se conjecturar o que teria acontecido se Mateus tivesse renunciado à idéia de acrescentar a
auto-acusação dos judeus à gama de insinuações e alegações de culpa judia que os vários relatos do
Evangelho já haviam transmitido: tão provavelmente quanto não, a perseguição e o espírito vingativo não
teriam sido menores. O que é tão fantástico a respeito da auto-acusação dos judeus é que ela foi
considerada e representada como uma espécie de procuração mediante a qual os judeus -isto é, todos os
judeus -autorizaram irrevogavelmente todos os cristãos a fazer com que eles e seus filhos, geração após
geração, indefinidamente, sofressem o castigo pelo sangue de Jesus. Já se disse que foi uma espécie de
julgamento divino que os judeus fizeram recair sobre eles e seus descendentes, e que o governador romano
fora escolhido por Deus para executar o serviço divino no qual este julgamento se consumou. Agora e por
toda a eternidade, cada um era obrigado a executar vicariamente o veredito de Deus. O que teria sido uma
usurpação do divino direito de punição tornou-se desempenho compulsório da vontade divina: tendo
exprimido o voto de que o sangue do Senhor Jesus caísse sobre eles e os seus, desta forma
comprometendo suas almas, os judeus foram por lei divina inexoravelmente destinados a pagar pelo
sangue de Jesus com suas próprias vidas e as vidas de seus descendentes (Números 30,2); e oS crentes "se
consideraram chamados a auxiliar O Todo-Poderoso a consumar sua 'maldição' e livres para exercer sua
hostilidade com um selo de aprovação divino".
Há ainda outro aspecto não menos perturbador da história da auto-acusação judia: era da tradição de Lucas
que, por mais ativos que os judeus possam ter sido em fazer com que Jesus fosse condenado e crucificado,
eles ainda poderiam ter agido por ignorância ou , ilusão. Lucas faz com que Pedro diga ao povo que,
embora eles tenham matado Jesus (Atos 3,13-14), "eu sei que o fizeste por ignorância, como também as
vossas autoridades" (3,17). E no Evangelho segundo Lucas atribuiu-se a Jesus a famosa frase: "Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" (23,34). Não devemos excluir que Lucas abandonou o relato
de Mateus da auto-acusação dos judeus por causa da contradição entre eles não saberem o que estavam
fazendo e uma intencional assunção de total responsabilidade. Chamou-se a atenção para o fato de que o
versículo com a prece de Jesus a Deus está ausente em diversos manuscritos de Lucas, porque, podemos
inferir, tanto os compiladores como os copistas acharam o teor e o sentido da prece irreconciliáveis com a
culpa e a responsabilidade que se diz que os próprios judeus confessaram. Há um mundo de diferença
entre acusar um homem de um ato praticado por ignorância e acusá-lo de um ato executado
deliberadamente e aceitando completa responsabilidade por ele: neste caso, é a diferença entre um
indiciamento por erro judicial e um indiciamento por assassinato premeditado. O próprio Jesus pedira a
Deus que perdoasse aqueles que o haviam crucificado, e parecia axiomático que seus seguidores se
juntassem na sua prece e, onde isto fosse necessário, praticassem eles próprios o mesmo perdão. Mas não.
Vemos os Padres da Igreja e inumeráveis crentes em Jesus Cristo, através dos tempos, renunciar ao seu
exemplo e ao seu ensinamento. Longe de aceitar a premissa de que os judeus não sabiam o que estavam
fazendo, e portanto, se não por outra e melhor razão, perdoá-los, afirmaram que os judeus são assassinos e
descidas confessos e cruéis, que por injunção divina nunca deveriam ser perdoados. Se a prece r de Jesus e
o seu próprio perdão se justificavam e faziam sentido enquanto fosse aceita a premissa de erro e
ignorância judeus, uma I' vez que se precisou abandonar esta premissa, nem a prece, nem o perdão eram
justificáveis ou razoáveis. A tradição de Lucas e de Paulo do perdão divino a qualquer pecado inerente à
crucificação seria rivalizada, senão substituída, pela tradição de Mateus de culpa judia e de uma maldição
eterna imposta ao povo judeu, tendo sido a auto-acusação inventada por Mateus que se tornou o
fundamento teológico, ou pseudoteológico, da perseguição e da tirania que não acabam.
O fato de que os judeus, quem quer que fossem eles, não podiam de modo algum ter dito as palavras que o
Evangelho segundo Mateus lhes Imputa, e de que o episodio da lavagem de mãos nunca poderia realmente
ter ocorrido empresta mais um toque de tragédia ao desastroso e total equívoco quanto ao papel dos judeus
no julgamento de Jesus. Não apenas "os judeus" não se acusaram e se execraram diante de Pilatos, nem
assumiram solenemente responsabilidade pelo que Pilatos faria com Jesus, mas eles sequer estavam
- 133 -
presentes ao julgamento; e quando Pilatos saiu do praetorium onde se realizara o julgamento, ele o fez
apenas para anunciar a sentença final de crucificação. Mas a "história" diria que "os judeus" provocaram a
morte de Jesus e, o que é mais, intencionalmente assumiram total responsabilidade por ela e se
entregaram, e aos seus filhos, voluntária e incondicionalmente, à aflição eterna.

11

OS ATOS DE PILATOS

Diz-se que Nicodemos, o fariseu, duas vezes mencionado no Evangelho segundo João como um amigo de
Jesus, (3,1, e 19,39), "depois da paixão do Senhor na cruz", registrou em língua hebraica tudo o que ele
vira e ouvira "a respeito da conduta dos principais sacerdotes e dos demais judeus". O relato perdeu-se,
mas um certo "Ananias, um oficial da guarda, sendo instruído em direito, "fizera uma busca " dos relatos
elaborados naquele período, no tempo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que os judeus escreveram sob Pôncio
Pilatos", e ele nos garante que "encontrou estes atos em língua hebraica e, segundo a vontade de Deus,
verteu-os em gregos para informação de todos que evocam o Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo". Esta
versão, que o próprio Ananias data do ano de 425, foi descoberta há cerca de cem anos, e desde então
vieram à luz vários manuscritos dela, cada um ligeiramente diferente do outro. As opiniões estão divididas
quanto a se Ananias foi realmente o autor desse registro, ou se encontrou relatos anteriores que traduziu.
Alguns eruditos acham que os documentos sobre o julgamento de Jesus ante Pilatos, que são mencionados
na Primeira Apologia de Justino, por volta de 150, são idênticos aos registros de Ananias; outros
sustentam que Epifanio, que escreveu em 375, tinha conhecimento deles; mas nós opinaríamos que a data
da composição é incerta e não pode ser estabelecida com segurança. Decididamente, o relato não foi
escrito por Nicodemos, nem por qualquer outra testemunha ocular, nem depois do ano de 425. Como
todos os evangelhos apócrifos, este assim chamado Evangelho de Nicodemos, tendo os Atos de Pilatos
como sua maior parte, deve ter sido escrito para suplementar os relatos do Evangelho "sobre pontos em
que eles não satisfaziam inteiramente a curiosidade ou a imaginação dos fiéis", ou, poderíamos
acrescentar, com referência especial aos Atos de Pilatos, em que a informação nos relatos do Evangelho
não concordava com o conhecimento e a experiência que autores versados em direito, como o nosso
Ananias, possuíam da legislação e das normas dos procedimentos romanos. Mas que nos seja permitido,
de início, comentar que há uma acentuada divergência de avaliação quanto à perspicácia legal do nosso
autor; enquanto um procedimento teológico manteve que ele nos proporciona um retrato verdadeiro e
cuidadoso da legislação e do procedimento em vigor em Roma e nas províncias romanas de ultramar, na
época em que escreveu, um historiador não menos eminerite o expõe ao ridículo como um lastimável
iletrado em direito romano, no seu ou em qualquer tempo. Não nos preocupam tanto as qualificações
jurídicas ou outras do autor quanto os seus esforços para impor um sentido à história da atitude de Pilatos
para com Jesus. Como mostraremos, é claro como o cristal que, embora partindo da premissa, e a
mantendo todo o tempo, de que o relato dos Evangelhos Canônicos deve ser seguido em substância, ele
procura diligentemente explicar algumas das incongruências que já revelamos, introduzindo no
julgamento novos acontecimentos não previamente registrados; o fato de que o autor sentiu que isto era
necessário não é menos interessante do que a maneira pela qual ele cumpriu a tarefa que se propusera.
Seguindo-se imediatamente ao Prólogo, encontramos o conselho judeu reunido, presumivelmente na
câmara do conselho, e os mais eminentes participantes são mencionados pelo nome, tais como Anás,
Caifás, c -vejam só! -Gamaliel. Não nos é dito o que se passou, mas parece que, como resultado da
reunião, os membros foram a Pilatos acusando Jesus de muitos feitos. Eles disseram:
"Nós sabemos que este homem é o filho de José, o carpinteiro, e nasceu de Maria; mas ele diz que é o
Filho de Deus e um rei. Além disso, ele profana o shabat e deseja destruir a lei de nossos pais." Pilatos
disse: "Que coisas faz ele para desejar destruí-la?"
Os judeus dizem: "Nós temos uma lei segundo a qual não se pode curar ninguém no shabat. Mas este
homem, com seus atos maus, curou no shabat o coxo, o atrofiado, o cego, o paralítico e o possesso."
Pilatos perguntou-lhes: "Com que atos maus?" Eles lhe responderam: "Ele é um feiticeiro e, por Belzebu,
- 134 -
o príncipe dos demônios, ele expulsa os maus espíritos, e todos lhe são sujeitos." Pilatos lhes disse: "Isto
não é expulsar demônios mediante um espírito impuro, mas pelo deus Asclépio." Os judeus disseram a
Pilatos. "Nós rogamos a Vossa Excelência que o ponha diante do seu assento de julgamento e o julgue." E
Pilatos disse: "Digam-me, como posso eu, um governador, inquirir um rei?" Eles responderam: "Nós não
dizemos que ele é um rei, mas ele diz que é." E Pilatos convocou seu mensageiro e lhe disse: "Que Jesus
seja trazido com brandura" (I, 1-2).
Jesus, nesse relato, não estava sob a custódia do sumo sacerdote ou dos judeus, nem havia sido preso.
Judas não o havia traído, mas, presumivelmente, seguia Jesus, atento aos seus ensinamentos. Os judeus,
em conselho, haviam decidido indiciar Jesus diante do governador romano. Mas que tinham contra ele? O
fato de que "profanava" o shabat e queira "destruir", isto é"reformar "a lei de nossos pais" pode ter irritado
o conselho, se, com efeito, ele tivesse feito isso; mas o conselho sabia que acusações como estas não
podiam ter força junto a P:latos: para ele, não podia haver nada de repreensível ou criminoso em infringir
o dia judeu de repouso, ou em tentar reformar as ordenações antiquadas e bárbaras dos nativos. Embora
sem ocultar o fato de que a razão real por que acusavam Jesus era a de que ele transgredira a lei judia e,
pelo menos por implicação, negava a autoridade do Sinédrio, o nosso autor os faz acrescentar uma outra
acusação, em proveito das susceptibilidades romanas: "ele diz que é o Filho de Deus e um rei". Mas
quando estes Atos foram escritos, Jesus há muito fora alçado à condição de filho de Deus, embora, a julgar
pelos Evangelhos Sinópticos, ele próprio nunca tivesse afirma- do nada disso; o ligeiro anacronismo
passaria despercebido pelos leitores. A pretensão à realeza, Não obstante, é comum a todos os relatos do
Evangelho; e era da boa tradição romana que um rei verdadeiro reivindicasse sua origem divina. Nosso
autor foi bastante perspicaz para saber que Pilatos nunca aceitaria acusações de transgressão à lei judia
como causa bastante para emitir uma citação judicial, por isso ele o faz perguntar aos acusadores o que
Jesus fez exatamente no sentido de alterar ou infringir a lei: seu comportamento específico poderia tornar
público um ato sobre o qual seria possível configurar um indiciamento segundo o código romano. A
resposta deles, de que "por atos maus" Jesus lograra bons resultados, a saber, curara os aparentemente
incuráveis, teria também pouco efeito sobre Pilatos: ele estava acostumado a toda espécie de praticantes
de maravilhas que faziam milagres similares -associando-se não a demônios e diabos, mas ao deus
Asclépio, patrono dos médicos. Assim, só restava a acusação de que Jesus pretendia ser um rei de
linhagem divina, e isto, é claro, era um crime do qual o governador tinha de tomar conhecimento. Antes,
no entanto, de emitir uma citação, ele precisava se certificar; talvez aquele rei não fosse um simples
simulador, mas um dos chefes tribais que podiam proliferar naquela província exótica: e um julgamento
entre reivindicações rivais de sátapras locais era antes um assunto para o imperador do que para o
governador. Também pode ser que primeiro Pilatos tenha sido representado dando uma expressão jocosa
ao seu ceticismo quanto à seriedade da acusação, ao perguntar: "Como posso eu, um governador, inquirir
um rei?", proporcionando assim, desde logo, uma oportunidade para uma resposta já bem estabelecida,
originalmente adiada até depois da crucificação: "Não escrevas: Rei dos Judeus; mas que ele disse: Sou
Rei dos Judeus" João 19,21.
Nosso autor deve ter assumido que os judeus não mais podiam exercer jurisdição capital em seus próprios
tribunais. Em vez disso, ele reproduz, mais adiante, os versículos de João em que Pilatos disse aos judeus"
"Tomai-o vós outros e julgai-o segundo a vossa lei"; e eles replicaram: "A nós não é lícito matar ninguém"
(III, 1; João 18,31). Significativamente, no entanto, vemo-lo acrescentar, sem a autoridade de João, uma
outra pergunta feita por Pilatos, para à qual os judeus não têm resposta: "Deus vos proibiu, de matar, mas
permitiu a mim ?", demonstrando que aquilo de que eles tinham falado não era tanto jurisdição formal
quanto a versão judia ao derramamento de sangue e a suposta indiferença romana a isso.
O ódio judeu, para ser forte e, contudo, bastante razoável que garantisse uma acusação diante do
governador romano, tinha de proceder da apostasia, por Jesus, da lei e da religião judaicas. Aos olhos dos
judeus, a ação deflagrada pela liderança judia para cumprir o julgamento e a crucificação de Jesus só
podia ser justificada -ou assim pensou o nosso autor -estabelecendo-se que a atividade que desenvolvia,
com efeito, colocava em perigo a manutenção da autoridade segundo a lei judia. É por isso que as velhas
disputas entre Jesus e os fariseus sobre curar no shabat estão agora sendo desenterradas: não haveria uma
boa razão para que todos os evangelistas se dedicassem tanto a descrevê-las, a menos que estas disputas
tenham desempenhado um papel fatal na tragédia final. Do ponto de vista judeu, em contraste com o de
Pilatos, um feiticeiro associado a Belzebu, que avançava e se aventurava em fazer a lei e a conceder
- 135 -
dispensas arbitrárias e não autorizadas do cumprimento dos mandamentos de Deus, devia ser silenciado e
neutralizado, se apenas por motivo de auto-conservação. Será lembrado que não se menciona qualquer tal
"acusação" pelos judeus nos Evangelhos Canônicos. Diante do Sinédrio, a acusação -se acusação houve
-apresentada contra Jesus foi a de blasfêmia, e diante de Pilatos foi a de pretender ser um rei. Não se fez
qualquer referência às suas violações da lei judia, seja curando no dia de shabat, deixando de lavar as
mãos, não jejuando, querendo reformar as leis do divórcio -nenhuma referência, quer nas reuniões do
Sinédrio quer nos procedimentos diante de Pilatos. Mas nosso autor parece ter sentido que sem uma
fundamental brecha entre Jesus e os judeus, aberta por diferenças irreconciliáveis de fidelidade e crença,
qualquer ação do Sinédrio contra ele ainda não está elucidada e parece insensata -como, com efeito, seria.
E já que ele não tinha outra nem melhores razões para a brecha do que as que os evangelistas aduziram no
que diz respeito aos primeiros choques entre Jesus e os fariseus, ele tirou o melhor partido delas.
Dificilmente ele deve ter tido consciência de que os choques alegados nunca poderiam, com efeito, ter
ocorrido e que as diferenças de opinião e de abordagem tinham, na maioria, a natureza de reflexões.
Tampouco tinha ele qualquer conhecimento real da importância que seria atribuída, de acordo com a lei
judia, a pecados tais como curar no shabat, e, em matéria de lei judia, a ignorância dos seus leitores
correspondia à sua própria. Nosso autor, portanto, podia arriscar com segurança sua seleção particular de
acusações contra Jesus; a animosidade judia era plausivelmente explicada dessa forma, qualquer que fosse
a reação de Pilatos à acusação. Ele parece ter sabido que Pilatos não realizaria um julgamento, a menos
que antes lhe fosse apresentada uma acusação; que, por força dessa acusação, ele também emitiria uma
citação ou um mandato de prisão, faria a pessoa acusada ser levada à sua presença por seus próprios
guardas, seus "mensageiros", e então O "inquiriria" sobre a acusação. Mas quer ele desconheceu ou
desprezou a disposição do direito romano de que o acusador tinha de ser um indivíduo, não podendo ser
um grupo ou um corpo de pessoas, enquanto, ao mesmo tempo, era essencial para o seu objetivo que os
judeus, tal como representados por sua mais alta autoridade, o Sinédrio, se envolvessem no julgamento;
seria inútil fazer um judeu individual, fosse ele o sumo sacerdote em pessoa, responsável pelo que iria
acontecer a Jesus. Assim, nosso autor mostra Pilatos considerando um indiciamento coletivo, sem levantar
qualquer objeção formal. Mas ao instruir seu mensageiro a trazer Jesus ao tribunal, diz-se que o
admoestou a tratar o prisioneiro "com brandura", o que pode talvez ser interpretado significar que, à
primeira vista, ele não considerou a acusação bastante séria para que Jesus fosse agrilhoado ou levado à
força ao tribunal. Ou então pode ser visto como a primeira intuição que Pilatos teve da verdadeira
divindade de Jesus, que ele não ousava agora tratar rudemente.
Longe de maltratar Jesus, relata-se extensamente que o mensageiro lhe prestou reverência, "e tomando o
lenço que estava em suas mãos, ele o estendeu no chão e lhe disse: Senhor, caminha sobre isto e entra,
pois o governador te chama" (1,2); chamado a justificar-se perante o governador, ele respondeu que todo o
povo havia aplaudido Jesus, e que por isso julgava que ele devia ser um Senhor (1, 3-4 ). Quando Jesus
entrou, e os portadores de estandartes seguravam os estandartes, as imagens do imperador nos estandartes
se inclinaram e reverenciaram Jesus" (1,5). Os judeus protestaram junto a Pilatos contra os portadores de
estandartes, mas quando ele os censurou, eles responderam: "Nós somos gregos e servos de templos, como
poderíamos reverenciá-lo? Nós sustentamos as imagens; mas elas se inclinaram por vontade própria e lhe
prestaram reverência" (ibid.). Para ficar mais seguro, Pilatos substituiu os portadores de estandartes por
doze robustos judeus e disse aos gregos que "se os estandartes não se inclinarem quando Jesus entrar, eu
lhes cortarei as cabeças". Então Jesus foi novamente levado ao praetorium e novamente os estandartes se
inclinaram e o reverenciaram (1,6).
Pilatos é, pois, confrontado por manifestações claramente perceptíveis de divindade. Seu próprio
mensageiro, que dificilmente se deixaria levar com facilidade pelo fanatismo de bárbaros provinciais, fica
tão profundamente impressionado que se sente compelido a prestar àquele prisioneiro o respeito devido a
uma personalidade real ou santa; e o que é mais: as imagens do próprio imperador, quer dizer, da
majestade divina e deificada, se inclinavam e reverenciavam Jesus. Para um espírito romano, como o de
Pilatos, essa espécie de revelação miraculosa deve ter sido prova quase conclusiva da divindade de Jesus,
ou pelo menos de uma qualidade ou aliança celestial nele. Está em nossa memória que não se relata, em
qualquer dos Evangelhos Canônicos, revelação comparável no julgamento diante de Pilatos: nosso autor
sentiu corretamente que, sem um milagre, a atitude de Pilatos para com Jesus, tal como descrita, não pode
ser esclarecida ou compreendida. É porque Pilatos deve ter compreendido ou temido em seu coração que
- 136 -
Jesus era, com efeito, uma divindade de algum tipo ou caráter que ele insistiu em liberá-lo, estando
ansioso por evitar qualquer envolvimento com sua morte: nunca se pode saber (podemos imaginar seus
pensamentos) como e o quanto estes deuses - ainda que de origem meramente local e de menor
importância - podem reagir para se vingar. Ele precisava apenas ver o milagre para ficar inteiramente
atemorizado; ou, na linguagem do nosso autor mais reticente, "quando Pilatos viu aquilo, ele receou e
procurou levantar-se do assento de julgamento" (11,1).
Enquanto ainda pensava em se levantar, sua mulher enviou-lhe uma mensagem que dizia: Nada tenhas a
ver com este justo, pois muito sofri por causa dele à noite. E Pilatos chamou todos os judeus, levantou-se e
disse a eles: Vós sabeis que minha mulher teme a Deus e antes respeita os costumes dos judeus, como vós.
Eles lhe responderam: Sim, nós o sabemos. Pilatos lhes disse: Vede, minha mulher mandou-me dizer que
nada tivesse a ver com este justo, pois sofria muitas coisas por sua causa, à noite. Os judeus responderam
a Pilatos: Não vos dissemos que ele é um feiticeiro? Eis que ele enviou um sonho a vossa mulher! (lI,I).
A história do sonho da mulher de Pilatos é tirada de Mateus (27,19), mas agora se amplia a discussão que
se seguiu. Pilatos deve ter encarado o sonho como mais uma confirmação dos seus pressentimentos; eis
porque a história está aqui inserida, na fase inicial: ali estava um deus que não somente praticava milagres,
mas também aparecia em sonhos. Do que Pilatos diz aos judeus, parece que sua mulher se encantara com
os costumes judaicas, sendo, portanto, como se podia esperar, particularmente suscetível às divindades
judaicas. O sonho de tal mulher devia certamente impressionar os judeus: se seus próprios receios podiam
ser por eles descartados como superstições pagãs, os dela seriam certamente reconhecidos como
instigados por uma verdadeira devoção. Mas os judeus o desapontariam profundamente: não apenas o
sonho de sua mulher não era divinamente inspirado, mas, na realidade, proporcionava outra prova das
maquinações diabólicas de Jesus. Nós vos dissemos, afirmaram eles, que ele era apenas um feiticeiro, e
agora. vedes que ele conseguiu enfeitiçar vossa mulher.
A situação que se seguiu deve ter embaraçado muito Pilatos. Ele tinha uma boa razão para apreender que
os milagres que vira com os próprios olhos indicavam a divindade de Jesus; contudo, era de supor que
aqueles judeus fossem familiarizados com suas próprias divindades e, se, se mostravam certos de que os
poderes de Jesus eram diabólicos e não divinos, Pilatos não devia duvidar da sua insolência com
leviandade, pois era do conhecimento comum que tanto as divindades como diabos e demônios podiam
praticar milagres. Ele podia cometer o maior erro de sua vida se deixasse um homem ligado ao diabo livre
para esbravejar por todos os cantos, especialmente porque o homem jã demonstrara ser bastante poderoso
para obrigar a própria imagem do imperador a se inclinar diante dele, mas podia também ser uma
calamitosa estupidez pôr as mãos sobre um deus e provocar sua inescapável vingança. Nas circunstâncias,
não precisamos nos espantar com um Pilatos vacilante e indeciso.
O natural para ele fazer era voltar-se para Jesus e perguntar como reagia à acusação de que, enquanto
professava ser um deus, ele era na realidade um feiticeiro. Mas Jesus não quis responder ( cf. Mateus
27,14; Marcos 15,5), dizendo apenas "cada homem tem poder sobre a sua própria boca, para dizer o bem e
o mal; eles cuidarão disso" (11,2). Assim, os judeus "cuidaram disso" e disseram de Jesus que ele "nascera
de fornicação" (11,3). Seguiu-se uma discussão longa e exaltada sobre se Jesus havia ou não assim
nascido: doze homens, relacionados pelo nome, ergueram-se e declararam: "Negamos que ele provém de
fornicação, pois sabemos que José era casado com Maria, e ele não nasceu de fornicação" (11,4). Então
Anãs e Caifás disseram a Pilatos que os doze eram prosélitos a que não se devia dar crédito; e quando
Pilatos perguntou: "Que são prosélitos?", eles o informaram que "eram nascidos de filhos de gregos e que
se haviam agora tornado judeus". Isto enfureceu os doze, que protestaram que "não eram prosélitos, mas
filhos de judeus e que falavam a verdade", acrescentando que todos tinham estado presentes nos esponsais
de José e Maria (ibid.).
E Pilatos chamou aqueles doze homens que negavam que ele nascera de fornicação e lhes disse: Eu vos
faço jurar, pela segurança de César, que vossa declaração é verdadeira, que ele não nasceu de fornicação.
Eles disseram a Pilatos: Nós temos uma lei que nos impede de jurar, porque é um pecado. Mas fazei-nos
jurar, pela segurança de César, que não é como nós dissemos, e nós seremos merecedores de morte. Pilatos
disse a Anás e Caifás: Vós não respondeis a estas coisas? E Anás e Caifás disseram a Pilatos: Acredita-se
nesses doze homens quando dizem que ele não nasceu de fornicação. Mas nós, toda a multidão, clamamos
que ele nasceu de fornicação, que é um feiticeiro, e afirma ser o filho de Deus e um rei, e não acreditam
(11,5).
- 137 -
Parece que o nascimento por fornicação era, pelo menos aos olhos dos judeus, incompatível com a
condição divina, messiânica ou real. Imputar tal nascimento a Jesus equivalia a dizer que sua alegação de
realeza ou outra distinção era anulada pela ilegitimidade. Pilatos, percebemos, compreendeu rapidamente
e aceitou esse aspecto judeu da questão, embora não pudesse deixar de saber que no conceito romano e no
grego o nascimento ilegítimo não impedia a divindade ou a realeza, mesmo sendo uma séria desvantagem
nas camadas mais baixas da sociedade. Contudo, diz-se que ele examinou a questão com notável
meticulosidade. Em primeiro lugar, ele propõe um juramento aos doze que atestam a legitimidade de Jesus
e, embora o juramento administrado seja secular, "pela segurança de César", eles se recusam a jurar, com a
evasiva de que não lhes é permitido jurar, nem mesmo a verdade. Ouvindo isto, e assumindo que, se a lei
judia impedia os doze de fazer um juramento, os anciãos e os sacerdotes também se recusariam, Pilatos
não se deu ao trabalho de lhes propor jurar, embora os doze tenham sugerido que o fizesse, talvez
insinuando que Anás e Caifás não eram judeus tão devotos e tão observantes quanto afirmavam ser. Na
ocasião, ele se defrontou com declarações contraditórias, uma de que Jesus nascera de fornicação, e outra
de que ele nascera de um matrimônio, nenhuma das duas confirmada por juramento. A possibilidade de
que havia uma verdade na alegação de ilegitimidade não podia, portanto, ser descartada; e o fato de que
foram o sumo sacerdote e os anciãos que a sustentaram pode ter dado peso e credibilidade à afirmação,
conferindo assim substância à acusação de falsas pretensões à realeza.
É possível deduzir que nosso autor sabia que, entre as depreciações fabricadas pelos sábios judeus dos
séculos 1 e II AD., para desacreditar Jesus, constava a alegação de que ele nascera de um adultério; dizia-
se que sua mãe, Miriam Magdala, lhe dera à luz quando casada com um certo Papos ben Yehudah, mas
que ele era fruto de suas relações ilícitas com um certo Pandira ou Pentera. Não surpreende que a doutrina
cristã que afirma ser Jesus filho de Deus tivesse dado origem a calúnias de ilegitimidade e mesmo de
bastardia entre os que não acreditavam, e a alegação de que Jesus "nascera de fornicação", que se diz ter
sido sugeri da pelos sacerdotes e anciãos, é muito menos vulgar do que a formulada por volta da época em
que nosso autor escreveu, segundo a qual Jesus era fruto de um adultério. Para o propósito que ele tinha
em mente, bastava que se alegasse um nascimento por fornicação: o objetivo seria atingido se, aos olhos
de Pilatos, se pudesse provar que Jesus estava desqualificado para qualquer pretensão à dignidade da
realeza.
Além disso, a interpolação desta lenda do nascimento de Jesus é obra do punho do nosso autor: não há
uma palavra em qualquer das narrativas nos Evangelhos Canônicos que sugira que Pilatos tenha
demonstrado o menor interesse pelos incidentes em torno do nascimento de Jesus. E mais: o nosso autor
deve ter percebido a necessidade de estender os relatos para que se tornassem mais plausíveis, ou, mesmo
que as declarações não autorizadas de realeza fossem um crime em si, independentemente da legitimidade
ou não no nascimento do pretendente, não seria necessariamente assim no caso de uma declaração de
descendência ou de inspiração divina, sustentada como era pela prova da prática bem sucedida e
impressionante de milagres: tal pretensão, eles podem ter pensado, estava sujeita a fracassar por causa do
nascimento ilegítimo de quem a possuía. Mas a ilegitimidade não havia sido conclusivamente
estabelecida; tudo que pode ter sido apurado era que, do seu próprio ponto de vista subjetivo, os
sacerdotes e os anciãos poderiam, talvez, não ter admitido as reivindicações de Jesus, caso tenham.
existido, à origem ou inspiração divina, por motivo, entre outras coisas, das circunstâncias de seu
nascimento.
Tendo "mandado expulsar toda a multidão" e consultado privadamente os doze que haviam testemunhado
a favor de Jesus, Pilatos "encheu-se de raiva " ao saber deles que os sacerdotes e os anciãos queriam matar
Jesus apenas porque ele curava no dia de shabat: "Por uma boa obra eles querem matá-lo? E eles lhe
responderam: Sim" (11,6). Diz-se que então Pilatos saiu do praetorium e negociou do lado de fora com "os
judeus", exatamente como relatado no Evangelho segundo João (18,30-31), com a pergunta adicional:
"Deus vos proibiu de matar, mas permitiu a mim? (III, l). Como não viesse qualquer outra resposta, Pilatos
retornou ao praetorium e manteve com Jesus a troca de pergunta e resposta relatada em João (18,33-38);
depois ele voltou aos judeus e anunciou que não encontrara falta em Jesus: "Os judeus lhe disseram: Ele
disse, eu sou capaz de destruir este templo e destruí-lo em três dias. Pilatos disse: Que templo? os judeus
disseram: Aquele que Salomão construiu em quarenta e seis anos; mas este homem afirma que o destruirá
e o construirá em três dias" (IV,l).
- 138 -
Esta transposição da acusação formulada contra Jesus por suas palavras referentes à destruição e à
reconstrução do Templo, do relato do Evangelho sobre a reunião noturna do Sinédrio (Marcos, 14,58;
Mateus 26,61) para o relato do julgamento diante de Pilatos, pode ter visado reparar uma inexplicável
omissão cometida por Marcos e Mateus. 0 nosso autor não teve aqui dificuldade, pois se absteve de relatar
o que ocorrera naquela reunião. Mas diz-se que Pilatos não se impressionou com a nova acusação,
podendo ter dela zombado como ridícula ou trivial. Assim, a referência a esta acusação do Evangelho
parece não corresponder a qualquer propósito discernível no presente contexto. E, com efeito, como se
não tivesse sido apresentada qualquer nova acusação, Pilatos passa ao seu pronunciamento: "Estou
inocente do sangue deste justo; considerai isso vós mesmos. Os judeus responderam: Caia sobre nós o seu
sangue e sobre nossos filhos" (IV,l; cf. Mateus 27,24).
Mas enquanto, segundo Mateus, a declaração de inocência de Pilatos e a auto-acusação judia São as
últimas frases do julgamento, seguida da libertação imediata de Barrabás e da entrega de Jesus para
flagelação e crucificação (27,26), no relato de nosso autor trata-se apenas de outro episódio no curso do
julgamento: embora oS judeus se tenham oferecido para que o sangue de Jesus caísse sobre eles próprios,
este não é entregue a eles, para crucificação oU qualquer outro fim. Mas sua ominosa auto-acusação deve
ter causado uma profunda impressão em Pilatos, e nosso autor evidentemente queria que assim fosse:
Pilatos interrompe O julgamento e convoca os anciãos e sacerdotes e os levitas (!) para lhes falar "em
segredo". E o que segue é o que ele tem a dizer: "Não fazei isso; por nada do que vós o acusastes merece a
morte. Pois vossa acusação refere-se à cura e profanação no shabat"
(IV,2). Os sacerdotes e os anciãos tinham estado todo o tempo a par de que a violação do shabat não era
uma acusação suficiente para apresentar ao governador romano; nem queriam admitir que fosse apenas a
profanação do shabat que os levava àqueles extremos contra Jesus. Foi sugerido a Pilatos por doze
testemunhas que as violações de shabat eram na realidade a única razão para a perseguição de Jesus, e ele
precisava se guardar da cilada que lhe fora preparada mediante acusações espúrias das quais, à primeira
vista, ele tinha de tomar conhecimento, mas que não constituíram o verdadeiro motivo do desejo judeu de
que Jesus fosse julgado e crucificado. Assim, ele afirmou aos judeus que o verdadeiro motivo deles não
era da alçada dele, e acrescentou seu bom conselho: que deixassem o homem ir em paz. Mas "os anciãos e
os sacerdotes e os levitas responderam: se um homem blasfema contra César, ele merece ou não a morte?
Pilatos disse: Ele merece a morte. Os judeus disseram a Pilatos: Se um homem blasfema contra César, ele
merece a morte, mas este homem blasfemou contra Deus" (ibid.). Não importa se a blasfêmia a que se
alude aqui é a reivindicação de divindade ou as palavras sobre a destruição e reconstrução do Templo:
nenhuma das duas coisas, como vimos, importa em blasfêmia em qualquer sentido legal ou técnico. Mas
Pilatos não estaria ciente disso; e, para motivar as medidas tomadas pelos judeus contra Jesus, a defesa de
um Deus ofendido, não menos -e, com efeito, até mais -do que a defesa de um imperador afrontado, deve
ter sido amplamente suficiente, mesmo aos seus olhos. Nos é dito então que o governador "chamou a si
Jesus e lhe disse: Que farei convosco? Jesus respondeu a Pilatos: Como vos foi dado. Pilatos disso: Como
foi dado? Jesus disse: Moisés e os profetas predisseram a minha morte e ressurreição. Os judeus tinham
escutando às escondidas e ouviram, e eles disseram a Pilatos: Que outra necessidade tendes de ouvir falar
desta blasfêmia?" CIV,3). Não precisamos nos deter nas improbabilidades intrínsecas desta história de
consultas secretas, primeiro com os sacerdotes e os anciãos, e depois com Jesus; dos judeus "escutarem" e
não serem repreendidos quando revelaram o fato comentando que tinham ouvido ilicitamente. Haviam
agora encontrado uma nova "blasfêmia" em que se apoiar: a insistência de Jesus de que era aquele de
quem se havia profetizado que morreria e seria ressuscitado. Também se diz nos Evangelhos Canônicos
que Jesus fez declarações similares (Mateus 16,21; 20,18-19; Marcos 9;31; 10,33-34; Lucas 9,22), mas ele
as fez aos seus discípulos, e não a Pilatos. Os evangelistas podem ter pensado que se Jesus disse a Pilatos
que queria morrer para que a profecia fosse cumprida, e ele ressuscitasse; o governador não teria que
responder por nada, se acedesse ao desejo de Jesus, nem se poderia vincular qualquer culpa aos judeus ou
a quem quer tivesse instigado os procedimentos romanos. Mas eles também sabiam que Pilatos
dificilmente teria cedido a este desejo absurdo: ele teria mandado Jesus embora, talvez o encarcerado ou
açoitado ( cf. Lucas 23,16), e não apenas se teria frustrado o objetivo de Jesus, mas se teria permitido aos
judeus se livrarem da culpa. 0 que os evangelistas intencionalmente se abstiveram de escrever, o nosso
autor intencionalmente colocou: quando Pilatos estava secretamente falando com ele, Jesus o consolou:
vós fazeis como vos foi "dado" e designado; mesmo mandando matar-me, não fazeis mais do que a
- 139 -
vontade de Deus, e não necessitais remoer-vos em remorsos, pois minha morte será transitória, e eu
ressuscitarei. Não que Pilatos devesse necessariamente ter acreditado naquilo, mas quer tenha acreditado
ou não, as palavras de Jesus foram para ele um claro alívio moral, o que quer que ele decidisse em última
instância. O caso era muito diferente com os judeus que escutaram escondidos: não apenas eles não
acreditaram nas pretensões de Jesus, mas se aproveitaram de suas palavras como mais uma prova de sua
inclinação blasfema; e longe de se inocentarem moralmente do papel que representaram no evento final,
eles são ainda mais culpados por sua descrença e por transformarem uma revelação divina em blasfêmia
criminosa.
Pilatos não podia discernir qualquer "blasfêmia " no que disse Jesus: "Se esta palavra é blasfêmia, tomai-
o, levai-o para vossa sina- goga, e julgai-o de acordo com vossa lei. os judeus responderam a Pilatos: Está
em nossa lei que, se um homem pecar contra um homem, ele devia receber quarenta pancadas menos uma,
mas que aquele que blasfema contra Deus deve ser apedrejado. Pilatos lhes disse: Tomai-o vós mesmos e
puni-o como desejais. os judeus disseram: Nós desejamos que ele seja crucificado. Pilatos disse: Ele não
merece ser crucificado" (IV ,3-4 ).
Como o leitor se lembrará, esta declaração da lei judia não é exata. Mesmo uma blasfêmia contra Deus
pode ser punida apenas com pancadas, se não se houver pronunciado seu Nome inefável (Levítico 24,15-
16). Se o crime de Jesus tivesse sido somente blasfêmia, ele não poderia ser apedrejado, porque não
pronunciara o Nome. Não se deve presumir que o nosso autor conhecia estes detalhes da lei judia, mas
deturpou-a para um objetivo ulterior: ele pode ter pensado, de boa fé, que os judeus consideravam Jesus
culpado de uma blasfêmia tal que, segundo a lei judia, fosse punível com a morte. Mesmo então, eles
próprios não o matariam: eles "desejam que ele seja crucificado", isto é, executado pelos romanos. A
versão joanina, de que os judeus não tinham jurisdição capital ou poder para realizar julgamentos capitais
João 18,31, é -pela segunda vez -rejeitada por nosso autor: em primeiro lugar, ele faz com que Pilatos
pergunte: "Deus vos proibiu de matar, mas permitiu a mim?" (III l), sugerindo que, como já vimos, não era
uma questão de jurisdição formal; e agora ele faz com que Pilatos, ao ouvir dos judeus que segundo a lei
judia Jesus é passível de apedrejamento, os autorize a levá-lo "e puni-lo como desejais". Esta autorização
deixa em aberto a possibilidade de que, embora geralmente os judeus não pudessem exercer a jurisdição
capital, nesse caso particular o governador julgou adequado permitir uma exceção à regra, delegando-lhes
o poder necessário "para puni-lo como desejais"; mas não há razão -e o nosso autor não apresenta
nenhuma- para supor que, no caso de Jesus, a norma foi afrouxada e concedida uma dispensa especial. É
muito mais lógico supor que, no que diz respeito aos crimes segundo a lei judia, os tribunais judeus
podiam de qualquer forma, e em qualquer caso, punir como desejassem. Pilatos não pode, portanto, ter
deixado de conjecturar por que motivo, neste caso específico, os judeus insistiram em se abster do
exercício da própria jurisdição e em Jesus ser punido pelo governador romano, de acordo com a lei
romana. Para estar disposto a puni-lo, Pilatos tinha primeiro de estar convencido de que Jesus tinha, com
efeito, cometido um crime segundo a lei romana; a blasfêmia de que os judeus falavam não era certamente
este crime, e, tal como as coisas se encontravam naquele momento, o governador não estava persuadido de
que Jesus "merecia ser crucificado".
Assim, permite-se que o julgamento se arraste. Primeiro, Pilatos chama a atenção dos judeus pelo fato de
que "ele viu muitos judeus chorando", do que conclui que nem todos os judeus querem que Jesus morra. À
sua pergunta: "Por que deveria ele morrer?", Pilatos obtém a resposta: "Porque chamou a si mesmo de
Filho de Deus e rei" (IV ,5), e voltamos nós ao indiciamento original segundo a lei romana.
É nesse ponto que se apresentam testemunhas para a defesa. Há o próprio Nicodemos, que faz um longo
discurso, com um remate que lembra o discurso de Rabban Gamaliel no julgamento de Pedro (Atos 5,38-
39), dizendo que todos aqueles que faziam "sinais que não provinham de Deus" pereceriam de qualquer
forma, eles e aqueles que neles acreditavam: "E agora, deixai este homem ir-se, porque ele não merece a
morte" (V,l). Então chega uma procissão de homens e mulheres que atestam terem sofrido de doenças
incuráveis e que Jesus os havia curado. Interrogados pelos judeus, alguns deles admitiram que a cura havia
sido feita num shabat. Os judeus objetaram a que fosse ouvido o depoimento de mulheres, porque "temos
uma lei que não permite à mulher testemunhar" (VII, 1 ), o que era bem verdade, mas que foi corretamente
ignorado pelo governador, pois no seu tribunal ele aplicava a lei romana de provas, e não a lei judia.
Quanto ao depoimento de Nicodemos, os judeus objetaram que não era digno de confiança porque ele se
tornara um discípulo de Jesus e falava "fundado em sua crença" (V,2). Finalmente, uma "multidão de
- 140 -
homens e mulheres" se apresentou e disse: "Este homem é um profeta e os demônios lhe são sujeitos."
Pilatos lhes perguntou: "Por que vossos professores também não lhe são sujeitos?", ao que eles
responderam que não sabiam (VIII, 1 ).o resultado do caso para a defesa foi que Pilatos voltou-se
novamente para "todas as multidões dos judeus" e outra vez perguntou: "Por que quereis derramar sangue
inocente?" (ibid.)
Para Pilatos, a conclusão lógica dos depoimentos que ouviu e das impressões que formou e exprimiu teria
sido absolver Jesus e dispensar o tribunal. Não há aqui explicação razoável ou qualquer outra, assim como
não há, nos Evangelhos Canônicos, por que ele não o fez. Diz-se aqui que ele se voltou para Nicodemos e
para as doze testemunhas e lhes afirmou que "o povo está ficando rebelde", e que então lhes perguntou:
"Que farei?" (IX,l), uma pergunta inconcebível num governador romano, e menos concebível ainda se
proveniente de um juiz e dirigida a testemunhas de defesa. Em qualquer caso, eles não lhe deram conselho
mais sensato do que este: "Que eles cuidem disso", que em nada ajudava e nada tinha de novo. A
inspiração veio de repente ao próprio Pilatos. Convocando novamente "todas as multidões de judeus", ele
lhes lembrou "o costume de que, na festa do pão não fermentado, um prisioneiro é solto; ele lhes disse:
"Tenho na prisão um condenado por assassinato, chamado Barrabás, e este Jesus postado diante de vós,
em quem não encontro crime. Quem desejais que eu liberte? Mas eles chamaram: Barrabás! Pilatos disse:
Então que farei com Jesus, que é chamado o Cristo? Os judeus exclamaram: Que ele seja crucificado!
Mas alguns dos judeus responderam: Não sois amigo de César se libertais este homem, pois ele disse de si
mesmo ser o filho de Deus e um rei. Vós quereis, portanto, que ele seja rei e não o seja César" (ibid.)
Assim, nosso autor não poderia omitir a história de Barrabás e o privilegium paschale: quando ele
escreveu, as anistias de Pessach já estavam bem estabelecidas, e o incidente com Barrabás, tão notório por
causa dos Evangelhos Canônicos, não podia ficar de fora. Mas este incidente não se enquadra em absoluto
na sua história. Se fosse mesmo uma inspiração repentina de Pilatos quanto à forma de resolver seu
dilema, ele devia ter anunciado que, em conformidade com seu costume, ele libertaria Jesus por causa do
perdão de Pessach; Pilatos devia saber que, se lhes oferecesse uma opção, os judeus não escolheriam
Jesus. A pergunta "Que farei eu então com Jesus, que é chamado o Cristo?" é tirada de Mateus (27,22),
sendo muito menos plausível aqui do que já o é lá. Nosso autor deve ter percebido a incongruência e o
caráter pouco apropriado da história em seu contexto: nem todos os judeus clamam "Que ele seja
crucificado"; alguns preferem avisar o governador, precisamente nesta conjuntura, que a libertação de
Jesus seria interpretada como um ato de deslealdade para com o imperador, um acautelamento que o nosso
autor tirou de João (19,12). Mas enquanto, segundo João, o aviso teve um efeito instantâneo e Pilatos
sentou-se imediatamente no assento de julgamento para pronunciar a sentença (19,13), nosso autor o
apresenta como solução apenas para a idéia de perdão: isto conclui o episódio de Barrabás e abre caminho
para que o julgamento continue.
Relata-se que Pilatos "irritou-se". Ele disse aos judeus: "Vossa nação é sempre sediciosa e está sempre em
rebelião contra vossos benfeitores." Quando os judeus perguntaram, "Que benfeitores?", Pilatos passou a
lembrá-los da história deles ("Como eu ouvi"), de como sempre se erguiam contra Deus, que os havia
escolhido entre todos os povos e fazia chover sobre eles inúmeras dádivas miraculosas; e terminou seu
discurso, dizendo: "E agora vós me acusais de odiar o imperador!" (IX,2).
E ergueu-se do assento de julgamento e procurou sair. E os judeus clamaram: Só conhecemos como rei
César, e não Jesus. Pois, com efeito, os homens sábios lhe trouxeram brindes do Oriente, como se ele
fosse um rei. E quando Herodes ouviu dos homens sábios que um rei nascera, ele procurou matá-lo. Mas
quando isso chegou ao conhecimento de seu pai, José, este pegou Jesus e sua mãe, e fugiram para o Egito.
E quando Herodes o ouviu dizer, ele destruiu os filhos dos hebreus nascidos em Belém (IX,3).
Quando Pilatos ouviu estas palavras, ele temeu. E silenciou as multidões, porque elas gritavam, e lhes
disse: Assim é este a quem Herodes buscava? Os judeus replicaram: Sim, este é ele. E Pilatos pegou água
e lavou suas mãos diante do sol e disse: Eu estou inocente do sangue deste justo. Cuidai dele. Novamente,
os judeus clamaram. Que seu sangue caia sobre nós e os nossos filhos (IX, 4 ).
Então Pilatos ordenou que fosse puxada a cortina diante do assento de julgamento em que estava, e disse a
Jesus: Vossa nação vos declarou culpado de afirmar ser um rei. Portanto, eu decretei que vós sejais
primeiro açoitado segundo as leis dos imperadores devotos, e depois crucificado no jardim onde vós fostes
apreendido. E que Dimas e Gastas, os dois malfeitores, sejam convosco crucificados (IX,5).
- 141 -
É altamente provável que o governador romano se tivesse na conta de um benfeitor dos judeus sob o seu
domínio, como é altamente provável que ele achasse característico dos judeus sempre se rebelarem contra
os seus benfeitores. Da maneira como o nosso autor construiu sua história, realmente pareceria provável
uma pequena insurreição, se os judeus, a despeito de todas as extorções do governador em contrário,
insistissem em tão altos brados que seus pedidos fossem atendidos. Mas não se faz com que Pilatos
esmague a insurreição, como lhe teria sido natural fazer; diz-se que ele, derrotado, cedeu aos judeus, o que
é a última coisa que se esperaria que ele fizesse. Nosso autor sabia de tudo isso tão bem quanto nós, e
assim, como uma solução de última hora, ele proporcionou a Pilatos um fundamento aceitável para
condenar Jesus: Herodes buscara matar Jesus quando este nasceu (Mateus 2,16) porque lhe haviam dito
que o rei dos judeus ia nascer (2,2), e como Pilatos acreditou no que "os sábios do Oriente" haviam lido
nas estrelas, Pilatos não tinha razão para duvidar da sabedoria ou da astrologia deles. Havia, portanto,
alguma coisa na afirmação dos judeus de que ali estava um homem que aspirava à realeza, se, já em seu
nascimento, a realeza lhe fora predita por astrólogos competentes. O fato de o rei Herodes ter achado
apropriado na época prevenir essa futura usurpação do poder real, indo ao extremo de ordenar que todos
os recém-nascidos fossem mortos, só poderia ter fortalecido Pilatos em sua conclusão de que tal realeza
era uma questão séria, com a qual não se devia brincar.
Aos olhos do nosso autor cristão, porém, julgar Jesus culpado e pretender ser um rei não era o que Pilatos
devia fazer. Jesus tinha de ser crucificado, não por causa de uma sentença ponderada e bem fundada do
governador romano, mas a pedido judeu e com responsabilidade judia. Assim, faz-se Pilatos executar duas
coisas para que este propósito seja atingido: primeiro, ele lava as mãos em prova de inocência (cf. Mateus
27-34) e os judeus reiteram sua auto-acusação; depois, pronunciado o julgamento, ele diz que não ele, o
governador romano, mas "vossa nação", isto é, a nação dos judeus, considerou Jesus culpado de
reivindicar a realeza. Relembramos que, no início, representou-se o conselho dos judeus na qualidade de
acusadores; aqui, a "nação" judia é representada na função do tribunal coordenador. Na realidade, que a
"nação" judia não agiu assim fica patente de toda a seqüência de acontecimentos descritos no relato do
julgamento, e as palavras "vossa nação vos condenou" não podem ter outro significado, outro propósito,
senão impor aos judeus uma responsabilidade que, em lei, fato ou lógica,não lhes cabia suportar. E, no que
diz respeito à lavagem de mãos, a história que figura em Mateus presumivelmente já se havia tornado
propriedade comum, sendo demasiado boa para ser posta de lado, por menos que parecesse se enquadrar
no contexto. O fato de a auto-acusação dos judeus que se seguiu, "que seu sangue caia sobre nós e sobre
os nossos filhos", aparecer aqui pela segunda vez durante o julgamento atesta claramente a significação
singular que nosso autor e seus contemporâneos cristãos devem ter atribuído a ela e às suas implicações.
Observe-se que, diferentemente das histórias dos Evangelhos Canônicos, este relato do julgamento não
menciona uma confissão ou admissão ("Tu o dizes") por Jesus, o que faz com que a condenação não possa
aqui fundar-se numa alegação de culpa, pois não se formula tal alegação. Mas, ainda em contraste com os
Evangelhos Canônicos, apresentam-se provas tanto para a acusação como para a defesa, embora não se
trace uma linha clara entre o que os judeus "clamaram" ou "disseram" como acusadores e o que
depuseram. Toda a narrativa é construída de maneira a fundamentar uma condenação, em última instância,
por pretensões à realeza: o fato de que, com objetivos tendenciosos, a condenação é colocada sobre os
ombros da nação judia está fora de questão.
O repentino e derradeiro surgimento da "cortina " que Pilatos ordenou que "fosse puxada diante do assento
de julgamento em que ele se sentava" é de interesse particular para a nossa investigação. Foi classificado
peremptoriamente de "absurdo" e indicado como prova de que nosso "autor não tem qualquer
conhecimento de como realmente se conduziam os julgamentos." É certamente verdade que se "o assento
de julgamento em que ele se sentava " estava fora do praetorium, a céu aberto, não podia haver cortina;
mas o parágrafo precedente (IX,3), que afirma que Pilatos "ergueu-se do assento de julgamento e procurou
sair", mostra que o assento de julgamento estava no praetorium de outra forma, ele teria procurado
retornar ao palácio, do pátio onde presumivelmente estivera sentado. Mas se os procedimentos ocorreram
no interior do praetorium, então teria de haver uma cortina, o velum, para separar a sala do tribunal ( o
secretarium) dos aposentos contíguos; e, como vimos, a cortina seria levantada sempre que o governador
desejasse admitir no tribunal uma ou mais pessoas de fora. Assim, longe de provar que nosso autor não
"tinha conhecimento de como realmente se dirigiam os julgamentos", eu penso que sua menção da cortina
estabelece que ele sabia que os governadores, de costume, realizavam julgamentos num secretarium no
- 142 -
interior do praetorium, isto é, in câmera, e não em público, e que, mediante o levantamento do velum, eles
podiam à sua vontade permitir a admissão de pessoas que esperavam, seja para prestar depoimento, para
apresentar argumentos ou para qualquer outro propósito aprovado por eles. O autor presumiu
evidentemente que, se os 'Judeus" e as várias testemunhas foram autorizadas a se dirigir ao governador,
sendo por ele interrogados, a cortina fora levantada; e é curioso que Pilatos tenha ordenado que ela fosse
puxada exatamente quando ele estava prestes a pronunciar o julgamento final, nossa hipótese tendo sido
que, mesmo quando um julgamento era realizado in câmera, a sentença sempre seria pronunciada de
público.13 Mas, depois de mandar que a cortina fosse puxada, diz-se qlle Pilatos não pronunciou a
sentença, mas voltou-se para Jesus, dizendo: "vossa nação vos condenou por reivindicar ser um rei", o que
parece mais uma explicação ou apologia proporciona- da a Jesus pessoalmente do que llma sentença
formal. As palavras
" seguintes, "Decretei que fôsseis primeiro, açoitado", e assim por diante, e "que Dimas e Gastas, os dois
malfeitores, sejam crucificados convosco", podem ter constituído a sentença formal, dita não a Jesus em
particular, mas pronunciada em público. A conclusão de que todos os procedimentos ocorreram no interior
do praetorium, e não fora, é fortalecida pelo relato de que, depois desse pronunciamento de setença, 'Jesus
saiu do praetorium, e com ele os dois malfeitores" (X,l).
Nosso autor estava, portanto, na posição nada invejável de saber que um governador romano só realizaria
um julgamento no interior do praetorium com a cortina puxada, para que, além das pessoas especialmente
autorizadas, ninguém pudesse entrar e estar presente, e, ao mesmo tempo, de ser compelido, em fidelidade
à tradição e ao partidarismo cristão, a implicar os 'Judeus"; e quanto mais judeus melhor, tanto na
investigação quanto no resultado do julgamento, de modo que eles tinham de estar presentes.
Reproduzindo o relato joanino da troca de perguntas e respostas com os judeus, ele também deve ter
julgado natural adotar a versão joanina de que Pilatos saiu ao encontro deles (111,l; João 18,29), com a
diferença de que enquanto, segundo João, Pilatos foi ao encontro deles outras três vezes (18,38; 19,4-13),
aqui ele vai apenas uma vez mais (IV,l). Com nosso autor, no entanto, a norma consiste em que Pilatos
"chama" ou "convoca" ao praetorium aqueles judeus que ele deseja ouvir ou questionar, um procedimento
que, embora fosse desconhecido de João, se ajustaria muito melhor ao que sabemos da prática judicial
comum: ele convocou "todos os judeus" (11,1 ); ele "chamou a si Anás e Caifás" (11,4) ou as doze
testemunhas (11,5), os anciãos e os sacerdotes (IV,2) ou Jesus (IV,3); e, tendo-os ouvido, "mandou-os"
outra vez "para fora" (11, 6; lV,3)- Podemos nos espantar ante a possibilidade de que "todos os judeus" ou
"toda a multidão" se amontoasse no interior do praetorium, o qual, por maior que tenha sido, dificilmente
conteria "multidões", ou podemos tirar conclusões próprias quanto ao tamanho real das "multidões" pelo
fato de que todas cabiam numa sala normal de julgamento- Seja dito entre parênteses que nosso autor
sabiamente abandona a teoria joanina de que os judeus não entrariam no praetorium por medo de se
contaminarem: ele conhecia o procedimento costumeiro, a saber, que o governador realizaria seu
julgamento no praetorium e convocaria quem desejasse estar presente ou pedisse: conseqüentemente,
nenhum judeu que não estivesse preparado e desejoso de entrar no praetorium poderia estar envolvido no
resultado do julgamento. O que ele parece ter compreendido mal é que o governador nunca convocaria
"multidões" indefinidas ou as admitiria no seu tribunal: ele pode ter convocado pessoas nomeadas como
tendo atuado na condição de acusadores (1,1), mas não todos os "sacerdotes, anciãos e levitas" como um
conjunto indeterminado; mas, nesse caso, nosso autor teria de inclinar-se à tradição do Evangelho de que
foram os indefinidos "judeus", ou os pouco mais precisamente definidos "principais sacerdotes, anciãos e
escribas", que teriam de arcar com a responsabilidade final pela crucificação de Jesus.
Por inflexível que fosse sua finalidade nessa atribuição de culpa, se apenas com fundamento na recorrente
auto-acusação dos judeus, "que seu sangue caia sobre nós e nossos filhos", devemos reconhecer que nosso
autor se distinguiu pela caridade para com os judeus e por uma confiança otimista, remanescente de Paulo,
mas que o ultrapassava, na salvação final deles. Os atos de Pilatos não terminaram com a condenação e
crucificação de Jesus, ou mesmo com sua ressurreição, como fazem os Evangelhos; ele continua a
descrever prolongadamente o que aconteceu depois nos conselhos dos judeus. Embora os judeus primeiro
aprisionassem José de Arimatéia por enterrar Jesus, descartando como heréticos e inacreditáveis os muitos
depoimentos que lhes foram apresentados quanto à reaparição de Jesus na terra e sua ascenção aos céus,
parece por fim que, persuadidos por José, Nicodemos e três rabbis da Galiléia, os "sacerdotes e os levitas e
as autoridades da sinagoga ", inclusive Anãs e Caifás, retiraram suas objeções e aceitaram Jesus como "o
- 143 -
que procede do Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos" (Salmos 118,23). E todo o povo, conduzido por
eles, juntou-se em louvor ao Senhor Deus e cantou: "Que seja abençoado o Senhor que deu repouso ao
povo de Israel segundo Suas promessas"; e depois "desse hino de louvor, todos partiram, cada um para sua
casa, glorificando a Deus. Pois Dele é a glória para sempre e sempre. Amém" (XVI,7).

12

FONTES NÃO CRISTÃS

O argumento mais forte que se pode apresentar contra a teoria proposta no presente livro consiste em que
ele não encontra funda- mento nas fontes judaicas, ou seja, talmúdicas. Uma reunião do Sinédrio durante a
noite de Pessach, ou na véspera, com o propósito de resgatar um jovem aspirante messiânico judeu, mestre
e pregador popular, do julgamento e crucificação pelos romanos teria sido - assim se pode presumir
-divulgado, com toda probabilidade. Mesmo se esperássemos que aqueles que tomaram parte na reunião a
mantivessem em segredo e não revelassem o seu objetivo no que dizia respeito aos romanos, não haveria
necessidade ou justificação para esta reticência entre os judeus; pelo contrário, se o Sinédrio falhara em
seus esforços para poupar a Jesus um julgamento e uma crucificação romanos, os sacerdotes e anciãos
interessados podiam pelo menos ter logrado algum proveito, nos choques de política interna, divulgando
como tinham feito tudo para salvá-lo. E, nesse caso, o provável é que um relato dos acontecimentos
tivesse sido inserido no Tal mude ou nos Midrashim. E mesmo se não temos uma publicidade
politicamente inspirada, só o fato de que o Sinédrio se reuniu neste momento particularmente não usual
para aquele propósito particularmente excepcional teria.justificado que se incluísse pelo menos alguma
alusão aos procedImentos nos relatos talmúdicos, Foi dito que se devia deduzir do completo silêncio das
fontes talmúdicas que, na realidade, não ocorreu nenhuma sessão noturna,2
Este raciocínio e silentio pode, à primeira vista, parecer fortalecido pela existência de passagens
talmúdicas que, na medida em que abordaram o julgamento de Jesus, tendem a confirmar a tradição cristã
de um julgamento judeu e a contrariar qualquer teoria segundo a qual o Sinédrio se reuniu para um
propósito diferente. A seguir reproduzimos o texto de um Baraitha3 que é a mais importante dessas
passagens:
Na véspera de Pessach, Jesus (de Nazaré) foi suspenso. Durante quarenta dias, um arauto passou diante
dele, gritando: Jesus vai ser apedrejado por ter praticado feitiçaria e por ter seduzido o povo de Israel e o
levado por maus caminhos; que qualquer um que tenha alguma coisa a dizer em sua defesa se apresente e
o defenda. Ninguém veio defendê-lo, por isso eles o penduraram na véspera de Pessach. Uma perguntou:
Você acha que ele era alguém em cujo favor deviam ser chamados defensores? Não era ele um sedutor, a
quem se aplicava a ordem divina, não olharás com piedade, não o pouparás (Deuteronômio 13,8-9)? Mas
(eles responderam) com Jesus as coisas eram diferentes, porque ele era íntimo do governo.4
Será observado que aqui se diz que Jesus foi acusado de feitiçaria, uma acusação de que encontramos
traços também nos Evangelhos (Mateus 9,34; 12,24; Marcos 3,22; et al), embora não em ligação com o
julgamento. Por volta da época em que este Baraitha pode ter sido escrito, a primeira metade do segundo
século, encontramos Justino Mártir escrevendo em seu Diálogo com Trífon Judaico que os judeus viam
em Jesus um feiticeiro. Mas a única feitiçaria que se podia atribuir a Jesus era prática de feitos
miraculosos na cura dos doentes; e embora -como vimos ser alegado nos Atos de Pilatos -aqueles que
haviam sido tratados e curados por Jesus pudessem apresentar-se como testemunhas de defesa, nenhuma
destas pessoas quis testemunhar contra ele; e é pelo menos duvidoso que os "fariseus", que foram
testemunhas oculares de tais maravilhas, estivessem dispostos a admitir que Jesus praticava verdadeiros
milagres. Os evangelistas devem ter tido boas razões e, sem dúvida, também válidas tradições, se foram
tão cuidadosos em excluir a feitiçaria e a associação com Belzebu das acusações apresentadas contra
Jesus, quer diante do sinédrio, quer diante do governador romano. Mesmo nos Atos de Pilatos, que, como
será lembrado, mencionam que Jesus confraternizava com demônios e diabos na proposta de
indiciamento, não o faz sob a forma de uma acusação à parte de feitiçaria, mas apenas como uma forma de
- 144 -
negar a origem ou inspiração divina de Jesus. O relato de que Jesus foi acusado de feitiçaria pode bem
implicar que o Jesus desta passagem não é Jesus Cristo, mas um outro judeu do mesmo nome que foi, com
efeito condenado por tal crime.
Além da feitiçaria, afirma-se que Jesus foi acusado de seduzir o povo de Israel e levá-lo por maus
caminhos: isto é um crime grave, senão o mais grave conhecido na lei judaica: significa seduzir outrem
para "servir a outros deuses -que não conheceste, nem tu nem teus pais, dentre os deuses dos povos que
estão em redor de ti" (Deuteronômio 13,6-7), ídolos de madeira ou pedra, como os pagãos adoram. Não é
necessário afirmar que Jesus nunca pregou a idolatria: tudo o que ele ensinou e disse, ele o fez em nome
do único Deus no céu, o Deus judeu, e todo o seu propósito era aproximar o povo disto, do verdadeiro e
único Deus. Sua pregação e seu ensinamento podem ter contrariado os da liderança estabelecida da época
e mesmo, talvez, ter constituído este ou aquele crime, mas não podia, por qualquer esforço da imaginação,
ser encarada como sedução à idolatria. Novamente, outro Jesus, de quem sabemos que fora condenado por
sedução à idolatria, pode ter penetrado na nossa história e Jesus Cristo ter sido tomado por ele.
É verdade que a punição para feiticeiros, como também para aqueles que seduziam à idolatria, era a morte
por apedrejamento, e o arauto de nosso Baraitha anuncia que Jesus deve ser apedrejado. Mas na primeira
frase e ao falar da execução, o Baraitha diz que Jesus não foi apedrejado, mas suspenso; e nós sabemos
que Jesus Cristo não foi apedrejado, mas crucificado, enquanto, tivesse ele sido condenado por um
tribunal judeu por feitiçaria ou por sedução à idolatria, ele teria sido apedrejado. Alguns eruditos pensam
que a introdução do elemento de apedrejamento na passagem é uma tentativa de justificar a condenação de
Jesus do ponto de vista judeu e que o fato de Jesus não ter sido apedrejado, mas crucificado, "estava
firmemente fixado pela tradição para que os autores talmúdicos chegassem ao ponto de dizer que ele foi
apedrejado". Outros tentaram explicar a contradição sugerindo que o apedrejamento estava relacionado
com a sentença do tribunal judeu, e a suspensão com a crucificação pelos romanos; ou que a suspensão
mencionada não foi o modo real de execução, mas a suspensão pública post mortem para fins de
intimidação (Deuteronômio 21,22-23), quer dizer, que primeiro o apedrejaram e depois penduraram o seu
cadáver. Mas todas estas explicações têm a natureza da percepção após o fato e nenhuma é coerente com o
texto do Baraitha: à primeira vista, a passagem fala de uma execução por suspensão por ordem de um
tribunal judeu, e o anúncio de uma futura execução por apedrejamento a precede.
Há também outras incongruências. A história de que o arauto passou quarenta dias convocando
testemunhas reflete uma norma da lei de que, depois de adotada a sentença contra um acusado, um arauto
tinha de precedê-lo quando ele fosse levado do tribunal ao local da execução e anunciar: "Este homem A,
filho de E, está prestes a ser apedrejado por ter cometido o crime C, e as testemunhas D e E depuseram
contra ele; que alguém que possa depor em sua defesa se apresente e testemunhe"; se então se apresentava
alguma testemunha de defesa, o homem condenado seria levado de volta ao tribunal e, com fundamento
no novo testemunho, a sentença podia ser reverti- da. Mas o procedimento devia ocorrer imediatamente à
decretação da sentença, e esta tinha de ser executada no mesmo dia, antes do pôr do sol: o ritual de
sentenciamento e o apelo a novas testemunhas de defesa tinham de ser de tal maneira arranjados que
houvesse o menor intervalo possível entre o término do processo legal e o ato de execução; qualquer
adiamento era considerado uma protelação da justiça que o homem condenado não devia sofrer. O mais
longo prazo que se permitia para o apelo de testemunhas de defesa posterior à sentença eram umas poucas
horas: se o tribunal tivesse formulado seu veredito de manhã, o arauto circularia em sua tarefa até o fim da
tarde, o que poderia ser tempo suficiente para que ele apresentasse o acusado e fizesse o anúncio prescrito
em toda as ruas e praças da cidade, Mas está fora de questão que se adiasse uma execução por quarenta
dias para dar a potenciais testemunhas de defesa uma oportunidade de falarem; não apenas o tribunal não
estaria reunido durante todo esse tempo, mas teria sido considerado altamente injusto e, de fato, ilegal
manter um condenado sob interminável expectativa entre o veredito e a morte. O único desvio a essa
norma que conhecemos é o caso do "ancião rebelde", cuja execução, segundo uma opinião, teve de ser
efetuada em Jerusalém durante um dos três festivais, quando as pessoas de todo o país estavam reunidas
na cidade, para que se cumprisse o mandamento, "E todo o povo ouvirá, e temerá" (Deuteronômio, 17,3),
mesmo se implicasse adiamento da execução por várias semanas. Mas inclinamo-nos para a opinião de
que a ordem "E todo o povo ouvirá", podia ser praticada com igual propriedade notificando-se o povo que
ocorrera uma execução: bastava que todos soubessem da execução, não necessariamente que a vissem. No
caso dos feiticeiros ou daqueles que seduziam à idolatria, no entanto, ninguém jamais sugeriu que fosse
- 145 -
permissível adiar sua execução até o grande festival seguinte em Jerusalém, ou por quarenta dias, ou de
qualquer outra forma.
Podia haver uma ligação entre os quarenta dias do nosso Baraitha e o período decorrido depois da reunião
do conselho relatada no Evangelho segundo João ( 11,47) até a véspera de Pessach que estava "próxima"
(11,55). Pode ser que aqueles que escreveram o Baraitha conhecessem a tradição joanina de que houvera
uma reunião do Sinédrio umas poucas semanas antes, quando os juízes se haviam "consultado para
mandá-lo matar" (11,53), e que eles desejassem preencher o intervalo de tempo entre a alega da resolução
de mandar matar Jesus e o momento de executá-la, utilizando-o para uma ação em favor de Jesus e em seu
proveito. Ou talvez os autores do Evangelho segundo João conhecessem o relato talmúdico do arauto e
seus anúncios por quarenta dias, tendo-o pré-datado conforme a decisão presuntiva do Sinédrio. De, uma
forma ou de outra, as duas histórias não concordam: segundo o Evangelho de João, a reunião do conselho
não foi uma sessão de tribunal, mas uma reunião altamente conspiratória; no Baraitha, o arauto não podia
ter empreendido sua tarefa senão depois de uma sessão formal do conselho e uma sentença formal
resultante. Foi formulada a opinião de que os anúncios de quarenta dias foram inseridos no Baraitha para
proporcionar uma resposta a acusações cristãs de que, no caso de Jesus, o Sinédrio atuou com precipitação
indevida e sem a reflexão adequada.
Finalmente, há a questão muito pertinente de uma (por volta de 280-300). a lei diz que a norma segundo a
qual um arauto convoca testemunhas de defesa depois de proferida a sentença não vale para condenação
por sedução à idolatria. Quanto aos demais crimes, sc um homem fosse absolvido, e depois se
apresentassem testemunhas para depor contra ele, elas não seriam ouvidas e a absolvição nunca seria
rescindida. Mas desde que se tratasse de absolvição num caso de sedução à idolatria, e se pudesse depois
encontrar novas testemunhas de acusação, o caso seria reaberto e o veredito poderia ser deixado de lado.
Inversamente, no caso de todos os outros crimes, seriam chamadas e ouvidas testemunhas de defesa
mesmo depois da condenação; mas no caso de condenação por sedução à idolatria, nenhuma testemunha
de defesa seria convidada ou ouvida após a condenação, e a execução seguir-se-ia automaticamente, tudo
por causa da injunção bíblica. "Não o olharás com piedade, não o pouparás (Deuteronômio 13,8-9). A
resposta dada a uma é a mais surpreendente de todas: o caso de Jesus era diferente porque ele era "íntimo
do governo". Embora ele fosse condenado pelo odioso crime de sedução à idolatria, parece ter sido
bastante que o condenado tivesse ligações íntimas com o "governo" para que se convocassem testemunhas
de defesa e, desde que se apresentassem, presumivelmente fossem ouvidas, e para que a "piedade" negada
a outros condenados pelo mesmo crime lhe fosse estendida. E não apenas seriam convocadas testemunhas
de defesa no dia em que se decretava a sentença, mas "ser íntimo do governo" aparentemente garantia um
desvio radical da prática padronizada, isto é, divulgar a sentença para um testemunho durante quarenta
dias depois de pronunciada a sentença. O "governo", malkhut, significa aqui, sempre que a palavra ocorre
no Tal mude, o governo não judaico, ou romano, estando ainda para ser explicado por que motivo Jesus
seria "Intimo" dele. Mesmo presumindo que durante a ocupação romana, e por medo de represálias
romanas, os tribunais judeus pudessem ter concedido indulgência especial aos acusados que gozavam da
proteção das autoridades ou oficiais romanos, por que motivo, em lógica ou conveniência, deviam eles
conceber favores particulares logo na questão de convocar testemunhas de defesa? Eles podiam ter
sustado a acusação; podiam ter aplicado uma punição mais leve do que a lei estabelecida; podiam ter
relaxado toda espécie de normas de lei e de procedimento, desde que assim se pudesse conceder um
benefício ao acusado. Mas por que se teriam empenhado numa concessão excepcional, no esforço quase
invariavelmente inútil para achar novas testemunhas da defesa? Não apenas o acusado nada ganharia, mas
seus protetores, os romanos, poderiam com razão ver nessa espécie de "parcialidade" um enganoso e
insolente simulacro de diferenciação.
Nosso Baraitha não é a única passagem no Tal mude que fala de uma suspensão na véspera de Pessach.
Em outra, ouvimos falar de um certo Ben Satda, ou Ben Stada, um residente de Lod (Lida) que se diz ter
sido pendurado naquela véspera. Ele também fora condenado por seduzir à idolatria, e seu caso é discutido
no contexto de uma exceção às normas de prova aplicáveis exclusivamente em tais casos, a saber, que a
acusação pode ser provada pelo testemunho de agentes provocadores, e não obrigatoriamente por
testemunhas independentes e espontâneas. Esta exceção está sendo justificada, como a da norma de se
convocar outras testemunhas de defesa, pela injunção bíblica, "Não o olharás com piedade"; ocorre a
- 146 -
máxima de que quanto mais crueldade se demonstra para uma pessoa que seduz à idolatria, mais
misericórdia se demonstra para a comunidade em geral.
Ressaltam-se dois pontos neste resumo do caso de Ben Satda: um deles é que, embora, como um sedutor à
idolatria, ele devesse ter sido apedrejado, relata-se que foi pendurado; o outro é que, dentre todos os dias,
foi na véspera de Pessach que o penduraram. Deve, portanto, causar pouca admiração que este Ben Satda
tenha sido identificado com Jesus, presumindo-se que tanto o relato de Ben Satda quanto o primeiro
Baraitha se referem a Jesus Cristo. Eruditos talmúdicos posteriormente contribuíram de bom grado com
uma teoria pseudo-etimolágica de que Satda, que significa algo parecido com adúltera, era o apelido da
mãe de Jesus; outros argumentaram que ela era assim chamada por causa de um antiga deusa que tinha
esse nome. Mas tudo isso é vã elaboração de teorias, já que o nome Satda não fornece a menor pista para
uma identificação.
Tampouco são conclusivos o m9do e a data da execução. Quanto ao modo, encontramos uma variação do
relato em outras fontes antigas, a saber, que Ben Satda foi apedrejado e não pendurado. Foi sugerido, não
sem motivo, que o texto pode ter sofrido revisão para que se alinhasse com o Baraitha sobre Jesus, estando
no relato original e verdadeiro que o homem, com efeito, fora apedrejado, como era a lei. Quanto à data,
falta na variação qualquer referência à véspera de Pessach como o dia da execução, sendo discutível,
portanto, que, se a suspensão foi substituída pelo apedrejamento para se adaptar ao relato, a véspera
também foi igualmente interpolada posteriormente com o mesmo objetivo.
Dois outros fatores tornam a identificação de Ben Satda com Jesus extremamente improvável. Em
primeiro lugar, diz-se que Ben Satda foi julgado e, depois, morto em Lod, enquanto Jesus foi julgado e
crucificado em Jerusalém e, tanto quanto sabemos, nunca visitou Lod. O segundo e mais determinante
ponto é que o relato do caso de Ben Satda não teria merecido inclusão nos textos talmúdicos, não fosse a
exceção às normas de prova que exemplificava: a ênfase não está no que aconteceu a Ben Satda, mas na
simulação planejada de testemunhas cujo depoimento seria normalmente inadmissível, mas que era
tolerado quando a acusação consistia em sedução à idolatria. Não apenas não ha nexo imaginável ou
similaridade entre os modos divergentes de prova empregados nos casos de Ben Satda e de Jesus, mas é
justamente o relato da simulação de testemunhas que dá uma aparência de autenticidade e verdade à
história de Ben Satda, sustentando, como faz, uma norma que achou lugar nos livros de lei e neles se
manteve.
Dispomos de informação confiável sobre um outro 'Jesus", um discípulo de Joshua ben Perahya, três ou
quatro gerações anteriores a Jesus Cristo. Este tornou-se um apóstata, nos sendo contado o que Joshua ben
Perahya "o rejeitou com ambas as mãos" como um sedutor à idolatria. Em alguns dos manuscritos ele é
chamado 'Jesus de Nazaré", como o é, também, o Jesus do nosso Baraitha em alguns dos manuscritos. O
fato de que o discípulo de Joshua ben Perahya não podia ser Jesus Cristo é indiscutível: ele viveu, como
dissemos, cerca de um século antes dele. Contudo, sendo Jesus no nome e um sedutor à idolatria por suas
obras, ele foi avidamente identificado mais tarde com Jesus de Nazaré, tanto pelos autores e compiladores
dos textos talmúdicos como -e isto é mais significativo -pelos censores eclesiásticos de livros. Se o
Baraitha sobre Jesus e os relatos sobre Ben Satda e sobre o discípulo de Joshua ben Perahya têm qualquer
coisa em comum, além da acusação de sedução à idolatria, consiste isto em que nenhum dos dois
conseguiu o imprimatur dos censores: a nenhum foi permitida inclusão nas edições do Tal mude
sancionadas para impressão e publicação. Devemos nosso conhecimento destas passagens à sobrevivência
feliz, mas ilícita de uns poucos manuscritos não censurados que só foram publicados recentemente.
Mas nós não sabemos se os escrutinadores eclesiásticos suprimiram os relatos do julgamento e da
execução de Ben Satda e do discípulo de Joshua ben Perahya porque eles próprios os interpreta- ram como
textos referentes a Jesus Cristo, ou porque podem ter desconfiado de uma autêntica interpretação judia
segundo a qual as passagens se referiam a Jesus Cristo, ou assim se poderia sustentar. O acréscimo do
epíteto de "Nazaré" era certamente de origem judaica, e tanto no Baraitha como na história de Jesus, o
discípulo de Joshua ben Perahya, o único propósito da interpolação deve ter sido deixar claro que as
passagens, de fato, se relacionam com Jesus Cristo. É possível que os censores da Igreja só aceitaram esta
aparente interpretação judia ex abundanti cautela: era sempre mais sensato suprimir uma passagem que
pudesse ser liberada para publicação do que permitir a publicação de uma passagem que devesse ser
suprimida. Assim, eles decidiram eliminar tudo que pudesse ser suspeito do mais remoto relacionamento
com o julgamento e a crucificação de Jesus Cristo.
- 147 -
Os censores parecem ter feito um trabalho bem completo. Os sábios do Tal mude seguramente possuíam
muito conhecimento da vida de Jesus e dos detalhes dos seus ensinamentos e, também seguramente, não
hesitavam em expressar o seu desprazer com os censores em suas academias e assembléias. Contudo,
encontramos poucas referências a Jesus no Tal mude; e não sabemos se tais alusões -que se pode supor
terem sido desfavoráveis em todos os casos - haviam sido removidas, mesmo antes que os censores da
Igreja tivessem a oportunidade de avaliá-las, porque os próprios judeus previram e temeram a censura
deles ou foram reprimidos por decreto cristão.3o Qualquer que seja a resposta, embora uma censura real
ou antecipada da Igreja às observações irrisórias ou derrogatórias sobre Jesus seja facilmente
compreensível, é difícil compreender por que se condenariam relatos que, no todo, só podiam fornecer
provas - e de bocas judias -para autenticar as histórias do Evangelho sobre o seu julgamento e
crucificação. Os Evangelhos relatam um julgamento pelo tribunal judeu, e o mesmo faz o Baraitha; os
Evangelhos insinuam a responsabilidade judia pela crucificação, e o Baraitha a aceita, pelo menos para a
pena de suspensão. Além disso, enquanto os Evangelhos admitem que o governador romano tinha alguma
coisa a ver com o julgamento e a crucificação, 0 Baraitha não menciona Pilatos, como se ele tivesse sido
de todo inocente deste sangue! 0 único motivo aparente para a desaprovação do Baraitha pela Igreja pode
ter sido ele dizer que se procuraram testemunhas de defesa para Jesus ou sua afirmação de que Jesus fora
"íntimo do governo". Mas os termos de referência dos censores eram expurgar tudo que fosse "ofensivo à
religião cristã"; e o que pode haver de ofensivo à religião cristã em se observar que Jesus era íntimo do
governo ou que haviam sido convocadas testemunhas de defesa? O que sugiro é que a verdadeira razão
para suprimir as passagens foi que Jesus nelas é representado como um sedutor à idolatria e feiticeiro,
caracterizações que podiam e devem ter sido encaradas como insultuosas. Como os Evangelhos relatam
acusações a Jesus bem diferentes de sedução à I idolatria e feitiçaria, tais caracterizações eram uma
caluniosa falsidade judia e deviam ser retiradas dos textos. Em conseqüência, todo relato no Tal mude de
um julgamento por qualquer desses crimes que pudesse, por qualquer interpretação, se vincular a Jesus foi
metodicamente suprimido.
Já observamos que a acusação feita a Jesus de seduzir à idolatria era totalmente inepta: ele não praticou
idolatria e certamente não a pregou, nada existindo em qualquer das fontes talmúdicas que chegaram até
nós -com exceção de um Baraitha -que sugira que ele jamais tenha feito isto. Judeus convertidos ao
cristianismo são referidos no Tal mude como minim o que significa apóstatas, mas nunca como idólatras;
embora o epíteto de apóstata não fosse totalmente lisonjeiro, chamá-los de idólatras teria sido considerado,
mesmo pelos ortodoxos ultrajados, imerecidamente injurioso. Podemos naturalmente esperar, portanto,
que qualificar Jesus de idólatra e feiticeiro seria encarado pelos cristãos como uma grave afronta, tanto
mais que se diz que ele foi condenado, e não absolvido, por estas acusações vergonhosas.
Sábios do Tal mude posteriores, no entanto, tiveram de enfrentar as já então bem estabelecidas tradições
de que um Jesus" fora suspenso na véspera de Pessach por seduzir Israel à adoração dos ídolos e pela
prática de feitiçaria. ,Eles sabiam, é claro, que Jesus Cristo fora crucificado naquela véspera, sabiam dos
milagres que ele havia obrado, conheciam-no como fundador de uma nova religião que agora ameaçava e
punha em perigo a deles próprios. Eles não eram historiadores; não pretendiam dar versões exatas de
acontecimentos históricos, não mais do que o pretenderam os evangelistas em sua época. Eles estavam
firmes na determinação de fortalecer e justificar o que acreditavam ser a verdadeira fé, de salvaguardar a
observância da Lei Divina e a fidelidade à antiga tradição; para estes fins, nem por um momento eles se
esquivariam de denegrir o novo e apostático credo que, segundo todos, Jesus Cristo havia fundado. Assim,
era para eles apenas natural identificar o Jesus" suspenso numa véspera de Pessach por sedução à idolatria
e por feitiçaria com o Jesus crucificado numa véspera de Pessach por -como eles supunham -fundar uma
nova religião; talvez os juízes daqueles dias idos o tenham realmente considerado culpado de idolatria
com fundamento nas provas que lhes foram apresentadas, e o fato de que seus próprios contemporâneos
cristãos não eram idólatras não teria por si só afastado a possibilidade de tendências e ensinamentos
idólatras por parte do seu protótipo de outrora. E que argumento mais eficaz e convincente podia haver
contra a nova religião do que a circunstância de que seu criador fora um feiticeiro e um sedutor a serviço
da idolatria?
Veio a ocorrer, pois, que o Baraitha, que falava de um Jesus, foi emendado para falar de Jesus de Nazaré,
que o Jesus divulgado por Joshua Ben Perahya foi igualmente transformado num homem de Nazaré e que
Ben Satda foi entendido como sendo Jesus, o filho de Maria. Nós não sabemos quantos homens com esse
- 148 -
nome foram julgados por causa de acusações de sedução à idolatria ou feitiçaria; o que sabemos é que
nenhum deles era Jesus Cristo. Pode ser que o Baraitha se refira ao discípulo de Joshua Ben Perahya, ou a
Ben Satda, ou a um terceiro Jesus de quem não há outro registro; não foge à probabilidade que um dos
dois ou que ambos fossem "íntimos do governo" -coisa que Jesus Cristo não era -e que gozavam de
tratamento especial por causa dessa proximidade; nada sabemos dos outros homônimos de Jesus, e todos
ou qualquer um deles poderiam se ter qualificado para a graça particular concedida aos bens relacionados.
E todos ou qualquer um deles poderiam ter vivido em Lod e lá sido julgados, e não -como o foi Jesus
Cristo -em Jerusalém.
Se nem o Baraitha, nem o relato sobre Ben Satda têm qualquer coisa a ver com os procedimentos contra
Jesus Cristo, temos de concluir que não existe nenhum 'registro talmúdico de quaisquer tais
procedimentos, ou seja; nenhum deles jamais foi feito ou, se o foi, foi tão efetivamente suprimido, quer
por compiladores talmúdicos, quer por censores estranhos, que não sobreviveu qualquer vestígio deles.
Aventei a probabilidade de que algumas destas inserções em crônicas devem ter sido registradas na época;
apresenta-se agora a probabilidade de que as que o foram se perderam irremediavelmente. Se é este o
caso, então a não-disponibilidade de provas talmúdicas que sustentem uma teoria ou outra do que
realmente aconteceu no julgamento de Jesus, e antes dele, torna-se irrelevante. De qualquer forma,
podemos afirmar com segurança que não há tradição talmúdica confiável ou autêntica que seja
inconsciente ou incompatível com a teoria que desenvolvemos. Do ponto de vista das fontes do Tal mude,
a questão é res integra, e só nos resta buscar outras fontes.
O primeiro e mais antigo registro em que instintivamente se procuraria informação são os escritos de
Josefo. Ele se designara analista da história judia em geral e, em particular, dos acontecimentos que
precederam e que s.e passaram durante a guerra dos judeus contra Roma: e sua conhecida dedicação ao
detalhe e à importância que conferia à precisão pareceram garantir que ele nos forneceria toda a
informação de que necessitássemos. Josefo nasceu poucos anos depois da morte de Jesus e desde cedo, na
sua juventude, aplicara-se ao estudo da história judia e das tendências e doutrinas que circulavam no seio
da religião judia da sua época, os princípios dos fariseus, saduceus e essênios, e não pôde deixar de se
deparar com os novos ensinamentos cristãos, com eles se familiarizando. O fato de o cristianismo ser um
traço familiar de Roma, onde ele escreveu, transparece nos extratos que a seguir citaremos, de Tácito e
Suetônio. Na opum magnum de Josefo, as Antiguidades dos Judeus, logo após o relato do controle por
Pilatos de uma sublevação judia provocada pela apropriação indevida de fundos do Templo pelo governo,
encontramos a seguinte passagem.
Por volta da mesma época apareceu Jesus, um homem sábio, se é que se pode chamá-lo um homem, pois
ele operava milagres e era mestre de todos os homens, que recebiam a verdade com júbilo. Ele atraiu
muitos judeus e muitos gregos. Ele era o Cristo. Pilatos condenou-o a morrer na cruz, tendo sido instado a
fazê-lo pelos mais nobres dos nossos cidadãos; mas seus seguidores não o abandonaram, pois ele
lhes'apareceu no terceiro dia, estando novamente vivo, exatamente como os profetas enviados por Deus
haviam predito este e mil outros milagres a seu respeito. E até agora o povo dos cristãos, que dele tiram o
nome, não desapareceu.
Há apenas outra alusão a Jesus nas obras de Josefo: num relato do julgamento de Tiago, este apóstolo é
mencionado como "o irmão de Jesus que era chamado o Cristo".
Há um inteligente comentário de que, se a passagem sobre Jesus tivesse sido escrita por Josefo nas
palavras em que foi preservada, então "seria necessário concluir que ele próprio era um cristão, pois a
sugestão de que Jesus era mais do que um homem e a afirmação de que ele era o Cristo e ressuscitara
dentre os mortos no terceiro dia certamente não poderiam ser feitas por alguém que não partilhasse da fé
cristã". Sabemos, no entanto, que Josefo, em que pese ter procedido com deslealdade para com a nação
judia, nunca se tornou um cristão. Com efeito, um antigo autor cristão, Orígenes (por volta de 185-225),
declara expressamente que Josefo não acreditou em Jesus como o Cristo,36 e a referência a Tiago como
sendo o irmão de alguém "que era chamado o Cristo" é dada como prova de que Jesus não viu em Jesus o
Cristo real, mas apenas alguém assim chamado.37
Decorreria que a passagem não poderia ter sido escrita por Josefo. Para salvar parte de sua autenticidade,
sugeriu-lhe que a verbiagem tipicamente cristã foi interpolada depois por um compilador cristão, o que faz
com que a parte do relato a ser atribuída ao próprio Josefo seria o que resta depois de se cortarem as
- 149 -
expressões caracteristicamente cristãs. O texto, tal como retificado por um erudito francês, rezaria então
assim:
Naquela época apareceu Jesus, chamado o Cristo, um homem capaz e operador de milagres, que pregava
às pessoas que ansiavam por alguma coisa nova, e ele desencaminhou muitos judeus e também muitos
gregos. Embora, quando ele foi denunciado por algumas das principais figuras entre nós, Pilatos o tenha
condenado a ser crucificado, aqueles que o amaram ( ou que ele havia enganado) desde o início não
deixaram de se apegar a ele; e hoje em dia ainda existe a seita, a qual, por causa do seu nome, é conhecida
como cristãos.
Será visto que, à parte as supressões, algumas mudanças foram feitas no texto; por exemplo,
"desencaminhou" substitui "atraiu". Nosso erudito deve ter sentido que, se Jesus era apenas um pregador
competente e um praticante de milagres, não havia razão ostensiva para que ele fosse denunciado ou que o
governador o devesse condenar à morte. Se ele era o Cristo -isto é, se ele reivindicava uma autoridade
messiânica -, a rejeição de sua reivindicação e o desejo de apoiar a autoridade religiosa judia e a
autoridade secular romana podiam explicar essas medidas contra ele; se ele não era o Cristo, Josefo teria
certamente tornado implícita alguma outra explicação. A expressão "desencaminhou" é bastante ampla e
vaga para implicar alguma coisa, e ao mesmo tempo, não se afasta demasiado radicalmente da palavra
usada no texto original:. as pessoas podem ser "levadas" a serem atraídas por um líder, dependendo apenas
da visão do observador acrescentar ou não "por um caminho errado", isto é, " desencaminhadas
Tudo isso, no entanto, é um trabalho de adivinhação. Alguns eruditos mantêm que toda a passagem foi
interpolada e que o manuscrito original de Josefo não mencionava o julgamento e a crucificação de Jesus;
outros pensam que da passagem que precede e da que se segue, e do que sabemos das opiniões e dos
propósitos de Josefo, poder-se-ia tentar e conseguir uma reconstrução do seu verdadeiro relato, recorrendo
da linguagem preservada apenas às locuções que são identificáveis como próprias do estilo de Josefo. Da
nossa parte, contentamo-nos, negativamente, com a conclusão de que a passagem em questão, tal como
nos chegou, não pode ter sido autêntica; uma vez estabelecido que pelo menos algumas das frases que
figuram nela foram interpoladas por um compilador cristão, nenhuma de suas partes pode com segurança
ser encarada como composição de Josefo, sendo o todo suspeito. Não é relevante saber se a interpolação
pôs esta passagem no lugar de algo que Josefo escreveu mas que se perdeu, ou se fragmentos do que
escreveu estão conservados no nosso texto: é demonstravelmente impossível diferenciar, de modo claro,
entre o que teve origem em Josefo e o que não teve. Assim, a alegada denúncia de Jesus pelos cidadãos
mais nobres pode ser também uma inserção, ou pode ser genuinamente do punho de Josefo: sem um
critério objetivo e confiável para determinar o que é, nada se pode provar.
A passagem, tal como está em nossos textos, é citada verbatim por Eusébio (260-340), que é "um
historiador proveniente dos hebreus", que assim "forneceu do próprio punho um registro quase
contemporâneo" do que aconteceu com Jesus. É significativo que isso tenha tido tanta importância para os
primeiros cristãos: o eminente adversário de Eusébio, Porfírio, acabava de publicar os seus quinze livros
contra os cristãos, afirmando que Jesus nunca existira e que as histórias de sua paixão e ressurreição eram
doutrinas impossíveis, que contradiziam qualquer verdadeira concepção de Deus, e predizendo que a nova
religião logo pereceria porque "não tinha base nacional e exigia uma fé cega".45 Eusébio também
menciona memorandos que, parece, foram publicados anonimamente, nos quais Jesus era "denegrido".46
Ora, se os próprios judeus, aqueles que sofreram primeira e imediatamente com a defecção de Jesus, não
apenas admitiam que ele vivera, ensinara e praticara milagres em seu meio, mas também que ele, com
efeito, havia sido crucificado e ressuscitara, pagãos céticos como Porfírio poderiam ser decidida- mente
silenciados. Era, portanto, essencial que uma afirmação como a que está no nosso texto de Josefo figurasse
num livro escrito por um judeu e expressamente do ponto de vista judeu, e não para leitores judeus, mas
para os romanos e os gentios. Josefo preenchia perfeitamente todas estas especificações, e Eusébio tirou o
maior proveito do que convenientemente encontrou em seu livro. O fato de que ele pôde fazê-lo assinala
que a interpolação é anterior ao seu tempo; como Orígenes não tinha qualquer conhecimento dela,
presume-se em geral que foi acrescentada na última metade do terceiro século.
Como Josefo escreveu principalmente para um público romano, numa cidade onde, em seu tempo, não se
podia dizer que o cristianismo gozasse de boa reputação, e como sua preocupação era colocar os judeus
sob uma luz tão favorável quanto possível aos olhos romanos, foi dito que "ele podia ter considerado
prudente não lembrar aos seus leitores romanos que a Judéia produzira o cristianismo, além de todos os
- 150 -
outros males que recentemente afligiram o Império Romano". Esta consideração, não obstante, não se
aplicaria se Josefo tivesse pretendido escrever sobre o cristianismo em termos favoráveis; mas se -como se
pode sensatamente presumir -sua intenção fosse escrever depreciativamente, ele só poderia ter mais
motivo para mostrar de que modo os judeus, por uma vez em harmonia com os romanos, fizeram tudo o
que estava ao seu alcance para cortar pela raiz o novo movimento. Ele tinha uma oportunidade única para
dar ênfase não apenas à espantosa e altamente inteligente previsão dos judeus, que, desde o início,
souberam que o novo credo de nada valia, mas também a sábia capacidade política do governador romano,
que logo discernira os méritos das acusações judias contra Jesus e condenara um "Cristo" ominoso à
crucificação. Não é mistério, portanto, que os interpoladores cristãos que encontrassem no livro de Josefo
uma passagem anti-cristã como aquela que concebemos ficariam vitalmente interessados em apagá-la
sendo mesmo menos misterioso que, tendo decidido suprimi-la, eles a substituiriam por uma outra
adaptada aos seus próprios objetivos. É verdade que num relato de Josefo segundo o qual os judeus tinham
instado Pilatos a condenar Jesus nada havia que pudesse desservir a causa cristã. Pelo contrário, se os
interpoladores tivessem descoberto tal relato, seguramente o teriam deixado intocado e tirariam dele o
maior proveito; mas o próprio Josefo seria então suspeito de um objetivo tendencioso próprio: não menos
do que os interpoladores se esforçavam em lançar a culpa nos judeus e inocentar Pilatos, Josefo se
esforçava em creditar a crucificação de Jesus aos judeus e romanos em partes iguais. Indisputavelmente,
qualquer das duas tendências é calculada para falsificar a história.
Antes de darmos as costas a Josefo e ao seu chamado testimonium Flavium, vale a pena dar uma vista de
olhos na versão em russo antigo, ou eslavônico, do seu livro sobre a guerra dos judeus, que incorpora uma
longa passagem sobre Jesus que não sobreviveu na existente versão grega. A passagem diz:
Naquela época apresentou-se um homem -se é correto chamá-lo um homem. Sua natureza e sua forma
eram a de um homem, mas sua aparência era mais do que a de um homem. Suas obras eram divinas, e ele
praticou feitos maravilhosos, espantosos e cheios de poder. Portanto, não me é possível chamá-lo um
homem, mas, tendo em vista a natureza que ele partilhava com todos, eu também não o chamaria de um
anjo. E tudo o que ele praticava, mediante alguma espécie de poder invisível, ele o praticava por meio de
palavra e ordem. Alguns diziam dele: Nosso primeiro legislador ergueu-se de entre os mortos e mostra
muitas curas e artes. Mas outros supunham que ele foi enviado por Deus. Ele em muito se opôs à lei, e não
observou o shabat segundo o costume ancestral. Contudo, nada fez de repreensível, nem qualquer crime,
mas apenas com a palavra ele realizou tudo. E muitas pessoas do povo o seguiram e receberam os seus
ensinamentos, e muitas almas começaram a oscilar, supondo que, através dele, a tribo judia se libertaria
das mãos romanas. Era seu costume andar com freqüência fora da cidade, preferivelmente no Monte das
Oliveiras; era ali que praticava suas curas entre o povo. E ali se reuniam em volta dele cento e cinqüenta
servidores e um grande número de pessoas do povo. Quando viram o poder dele, e que ele executava tudo
que queria por palavra da boca, eles o instaram para que entrasse na cidade, massacrasse os soldados
romanos e Pilatos, e os governasse. Mas ele desprezou isto. Mais tarde, os líderes dos judeus tiveram
conhecimento disso e se reuniram com o sumo sacerdote e disseram: Somos desprovidos de poder e
demasiados fracos para nos opormos aos romanos, como um arco que está entortado. Contemos a Pilatos o
que ouvimos, e não teremos aborrecimento; se ele ouvir de outros, nossos bens podem ser confiscados,
nós próprios podemos ser decapitados, e nossos filhos podem ser exilados. Assim, eles foram e
informaram Pilatos. Ele enviou os seus homens, que mataram muitas pessoas do povo, e lhe trouxeram
aquele operador de milagres. Ele o interrogou, e verificou que ele fazia o bem e não o mal, que não era
revolucionário e que não aspirava ao poder real; e mandou-o embora. Pois ele curou a mulher de Pilatos,
que estivera para morrer. Ele foi para o lugar de costume e praticou as obras costumeiras. E como um
número de pessoas sempre crescente se reunia em torno dele, ele granjeou grande reputação entre todos.
Os professores da lei estavam envenenados de inveja dele, e deram trinta talentos a Pilatos para que o
matasse. Pilatos embolsou o dinheiro e lhes deu permissão para consumar seu objetivo eles próprios. Eles
o agarraram e crucificaram, não obstante as leis de seus ancestrais.
No mesmo manuscrito faz-se menção, em outra passagem, à inscrição na cruz em que Jesus foi
crucificado, que 'Jesus, O rei não havia reinado, mas fora crucificado pelos judeus porque predisse a
destruição da cidade e a ruína do Templo".
Estão muito divididas as opiniões quanto à autenticidade desta passagem -elas vão da crença em sua
origem em josefo, à sua rejeição como uma fraude e um embuste, com teorias intermediárias de
- 151 -
interpolação em algum texto original, do qual o "projetado ataque aos romanos em Jerusalém, que estes
últimos anteciparam e suprimiram sangrentamente" pode ou não ter sido parte. Temos de nos resignar a
concluir que não há prova da autoria por josefo de qualquer porção deste fragmento e que a incerteza
quanto à data e à autoria de seus vários componentes priva-o de qualquer valor histórico probatório.
Com todas as devidas reservas sobre este ponto, não obstante, é significativo verificarmos que o anônimo
praticante de milagres indubitavelmente a ser identificado com Jesus, é absolvido e solto por Pilatos
depois de ter sido denunciado pelos "lideres dos judeus" e pelo sumo sacerdote com malfeitor,
revolucionário e pretendente ao poder real. Quando Pilatos estabeleceu que ele praticava o bem e não o
mal, não sendo um revolucionário ou alguém que ambicionasse a realeza, em resumo, ao não encontrar
qualquer falta naquele homem, ele fez a única coisa que com equidade podia se esperar que fizesse: ele o
absolveu e libertou. A idéia de que Pilatos iria, embora não encontrasse nele falta, entrar em negociações
com "os judeus" e alimentar seu clamor incontrolável para que ele fosse crucificado é manifestamente
demasiado absurda para que o autor de nossa passagem a adote, não obstante os relados do Evangelho que
ele deve ter conhecido. Na realidade, se Pilatos não encontrara falta em Jesus, não podia por qualquer
forma ou meio tê-lo sentenciado nem permitido sua execução, enquanto exercesse suas funções judiciais
com a devida consideração à lei e ao procedimento; e nenhuma pressão de histeria judia, em ameaça ou
tumulto, poderia em qualquer hipótese tê-lo desviado desse curso. Havia apenas uma coisa -ou assim o
autor da nossa passagem, não desarrazoadamente, imaginou -que a tal poderia induzir Pilatos, e isto era o
suborno. As "trinta moedas de prata" que, segundo a tradição do Evangelho, foram a recompensa de Judas
por sua traição (Mateus 26,15) tornaram-se agora o suborno pago a Pilatos para que Jesus fosse preso sem
motivo. De novo, uma tradição do Evangelho que parece tão artificial -a traição por Judas, com vimos,
sendo tão desnecessária quanto improvável -é adaptada e reformulada para enquadrar-se numa situação de
fato em que se torna iminentemente sustentável. Contudo, diz-se que Pilatos não ordenou aos seus homens
que crucificassem Jesus, mas permitiu que os próprios judeus fossem os crucificadores: esta repentina e
acentuada queda em grosseira irracionalidade pode ser compreendida e deve ser perdoada à luz da
primordial e dogmática compulsão para estigmatizar os judeus como descidas. Tinham de ser os judeus os
crucificadores de Jesus, não apenas clamando por sua crucificação, ou assumindo, pela palavra, a
responsabilidade por seu sangue, mas na realidade, e pelas próprias mãos, executando o ato fatal. E isto a
despeito da lei de seus ancestrais, de que um homem nunca deve ser executado por crucificação; ou,
talvez, a despeito da lei dos seus ancestrais, de que um homem nunca deve ser executado, a não ser que o
seja por sentença de um tribunal competente. Não apenas - segundo este relato -não houve sentença, nem
julgamento, por um tribunal judeu, mas tampouco houve julgamento ou sentença por Pilatos -apenas uma
"permissão" para que os judeus fizessem O que quisessem com Jesus; e fica em aberto saber se a
permissão fora requerida porque Jesus estava sob custódia ou proteção romana - talvez por ter curado a
mulher de Pilatos ou apenas para evitar uma acusação por seu assassinato ou por usurpar os
procedimentos romanos oficiais de crucificação. Com efeito, o titulus que se diz aqui ter sido inscrito na
cruz nos leva de volta ao direito e ao costume romanos típicos; e é quase patético observar que, em vez de
inscrever na cruz a designação do crime cometido e nada mais, relata-se que os judeus nela inscreveram
não apenas detalhes do crime de Jesus, mas também que ele fora crucificado "pelos judeus". Além disso, o
fato de que os detalhes do crime compreenderem não apenas o que Jesus fizera -prever a destruição de
Jerusalém e do seu Templo -, mas também o que ele não fizera: 'Jesus, o rei, não reinou", como se sua
reivindicação à realeza fosse bem fundada e não ilegítima, o que faz com que, se ele "não reinou ", deveu-
se isto apenas à sua crucificação pelos judeus por fazer predições que logo se mostraram verdadeiras em
todos os casos. O titulus romano que atestava a ofensa de um criminoso prestes a ser crucificado é, assim,
transformado num titulus que atesta a culpa dos crucificadores. A ausência, nessa história, de qualquer
menção ao nome próprio de Jesus, seu nascimento de uma virgem e sua ressurreição levou alguns eruditos
a sustentar que ela foi escrita por um apologista judeu que não Josefo, que queria convencer seus leitores
judeus de que Jesus fora acertadamente crucificado pelos judeus porque podia, mas não queria, salvá-los
da opressão romana, ou porque era um impostor que simulava que podia. Mas esta teoria parece ignorar o
fato cardeal de que a história foi compilada como uma interpolação nos escritos de Josefo ou como uma
adulteração deles e que seu autor, de qualquer forma, desejava que ela fosse vista como um texto genuíno
de Josefo. Como judeu, ele não teria necessariamente aludido quer ao nascimento de uma virgem, quer à
ressurreição ou a qualquer outros atributos ulteriores de Jesus: o fato de que a eles se faz ostensivamente
- 152 -
referência na passagem original das Antiguidades já foi interpretado como uma indicação clara de que
Josefo, o judeu, não o podia ter escrito. Além disso, o fato de um apologista judeu, entre todas as pessoas,
ir ao extremo de retirar a crucificação das mãos de Pilatos, onde fora diretamente colocada até mesmo
pelos relatos do Evangelho, e fazer os próprios judeus crucificarem Jesus é algo em que absolutamente
não se pode acreditar: se um judeu fez isto, ou se fosse relatado que o fez, seria antes com o objetivo de
auto-acusação do que de apologia. Quer por obra de censores internos ou externos, quer por obra de
interpoladores e compiladores, permanece o fato de que, sejam quais forem os relatos que tenham sido
incorporados nas fontes talmúdicas e nos escritos de Josefo sobre o julgamento e a crucificação de Jesus,
eles já não são indentificáveis como tais. E enquanto os censores e compiladores judeus que revisaram os
textos talmúdicos séculos depois da morte de Jesus, numa época em que o cristianismo conseguira os seus
triunfos e em que o judaísmo reagia num espírito de desprezo e detração, faziam todo o possível para
difamar e ridicularizar Jesus e para que ele fosse identificado com toda espécie de desprezíveis criminosos
de diferentes períodos, os interpoladores cristãos eliminariam naturalmente tudo que fosse ofensivo à
Jesus e à fé cristã e o substituiriam por uma cópia espúria da auto-acusação e da culpa descida judias. As
denigrações talmúdicas de Jesus são tão pouco confiáveis e tão pouco autênticas como são as
interpolações cristãs. Mas enquanto as difamações tiveram roubadas por uma censura eclesiástica eficiente
grande parte do seu pretendido efeito, permitiu-se às interpolações, através da história, causar estragos
desastrosos.
O catálogo dos relatos contemporâneos não cristãos do julgamento e da crucificação de Jesus não estaria
completo sem uma referência a dois grandes historiadores romanos, Tácito (55-115) e Suetânio (69-140).
Ambos mencionam os cristãos. Suetânio relata que, durante o reinado de Cláudio (41-54), Christus
instigou os judeus a provocarem perturbações contínuas, motivo pelo qual os judeus foram expulsos de
Roma; e, durante o reinado de Nero (54-68), foram impostas punições aos cristãos, "uma seita que
professava uma nova e maldosa crença".60 O Christus que instigou os "judeus" não pode ter sido Jesus,
pois Jesus morrera antes de Cláudio ascender ao trono; mas que os judeus foram expulsos de Roma
durante o reinado de Cláudio nós também o sabemos pelos Atos (18,2), e o instiga dor pode ter sido um
dos cristãos ou uma pessoa que portasse um nome semelhante.61 Procurou-se provar que o nome
"Christus" era conhecido em Roma com o do fundador desta "nova e maldosa " seita religiosa a partir da
celebrada passagem nos Anais de Tácito, que diz:
Para acabar com os rumores [de que ele incendiara a cidade], Nero inventou falsas acusações contra
pessoas que eram odiadas por suas abominações e comumente chamadas de cristãos, fazendo com que
lhes fossem infligidas as mais terríveis torturas. O criador deste nome era Christus, que durante o reinado
de Tibério, fora executado por Pôncio Pilatos, o procurador. Reprimida pelo momento, esta detestável
superstição irrompeu novamente, não apenas na Judéia, onde teve origem, mas também nesta cidade para
onde flui de todos os lugares tudo que é horrível e vergonhoso e que é logo adotado. Os que confessaram
foram julgados primeiro, depois multidões de pessoas foram condenadas com base no testemunho
daqueles [que haviam confessado], não tanto por terem provocado incêndio, mas porque detestavam a
humanidade.
As punições que, no relato de Suetânio, Nero inflige aos cristãos são obviamente idênticas às terríveis
torturas no relato de Tácito; mas é apenas Tácito que agarra esta oportunidade fortuita para dar não apenas
a explicação da origem no nome, mas também para recontar o destino do epônimo Christus nas mãos de
Pôncio Pilatos. Levantou-se uma séria dúvida quanto à autenticidade desta passagem em Tácito. Foi dito
que ele é o único escritor pagão que emprega o nome de Pilatos, para não mencionar o papel
desempenhado por este na história de Jesus. Esta singularidade notável entre os historiadores romanos da
era pré-cristã levou um erudito a opinar que Tácito foi buscar sua informação em nada mais, nada menos
do que josefo, com o resultado incidental de que a autenticidade da passagem contestada em josefo tornar-
se-ia muito mais digna de crédito; mas esta opinião foi refutada de modo conclusivo. Muitos eruditos
sustentam que a fonte de Tácito foram os textos de um ou outro dos primeiros autores cristãos, se não os
Evangelhos e as próprias Epístolas de Paulo. Mas há a convincente resposta de que não havia
absolutamente necessidade de se presumir que Tácito tenha buscado uma fonte literária: ele pode ter
obtido por ouvir dizer a informação que depois comunicou na mensagem. Ele próprio fora governador de
uma província onde viviam muitos cristãos e -como seu amigo Plínio68 -certamente teria tido de julgar
muitos deles por causa de acusações de apostasia e deslealdade para com o imperador; e, interrogando-os,
- 153 -
logo teria obtido tudo o que havia para saber sobre a identidade e o fim do fundador de sua fé, por mais
lendário que fosse69. Possuidor desta informação, seria apenas natural, e bem de acordo com a integridade
intelectual pela qual Tácito era afamado, que ele peneirasse o material e rejeitasse o que a seus olhos deve
ter sido inverídico e impensável, como por exemplo, que os judeus - que ele, de alguma forma, devia
identificar com os cristãos -teriam insistido na crucificação de Jesus, mesmo contra a vontade e o
julgamento do governador romano, ou que Jesus tivesse ressuscitado dentre os mortos. Ele aceitou e
registrou apenas aquela parte do destino que, em sua avaliação, deve ter sido eminentemente razoável e,
por isso, provavelmente verdadeira, a saber, que o iniciador de toda aquela "detestável superstição",
daquele "ódio à humanidade", das "abominações" a eles ligadas foi julgado e crucificado pelo governador
romano, de acordo com a lei romana. Mas a mera afirmação de que Pilatos, o procurador, condenara Jesus,
o Cristo, à crucificação não amplia nossos conhecimentos com nada de valioso. Diferentemente, talvez,
dos estudiosos de história, não precisamos da autoridade de Tácito para uma asserção que, de qualquer
forma, estamos dispostos a endossar com fundamento nos relatos do Evangelho. E não podemos
apropriadamente extrair qualquer inferência do silêncio de Tácito sobre cada uma e sobre todas as
questões controversas.
A soma total das fontes não cristãs sobre o julgamento e a crucificação de Jesus é, pois, nula. Seja por
acidente ou de propósito, o caminho estava aberto para o monopólio cristão de todos os registros e relatos
e para sua canalização para os objetivos que a política e o preconceito cristãos pudessem ditar.

13

A PERVERSÃO DA JUSTIÇA

A profecia de Jesus se realizara: o Templo foi destruído e não ficou pedra sobre pedra (Marcos 13,2;
Mateus 24,2; Lucas 21,6). Certamente, era a vingança divina esperada pela crucificação de Cristo, e
certamente Deus não infligiria uma punição não merecida. Que melhor e maior prova poderia haver da
culpa judia? E note-se: é o povo judeu como um todo que está sendo punido, não apenas sacerdotes, ou
anciãos, ou escribas: a ira de Deus baixou sobre todos eles e sobre todos os seus filhos -a própria maldição
que eles haviam, sem o pedir, atraído sobre suas cabeças. Agora, sua cidade estava em ruínas, seu país
devastado, sua nacionalidade dissolvida, e eles foram espalhados e dispersos por toda a parte, alvos fáceis
e naturais para tortura e perseguição sem fim. Era manifestamente a vontade de Deus, também, que sua
punição não se limitasse a tempo ou espaço; era tão enorme o seu crime que, por mais perpetuadas,
indefinidas e incomensuráveis as penalidades que tinham de supor- tar, não se o podia expiar. O terrível
castigo tinha de ser sofrido eternamente.
Os judeus partilhavam a convicção de que a ruína de Jerusalém e do seu Templo e a fragmentação do povo
judeu entre os gentios eram a sentença de Deus: se Ele enviava o mal, este devia ser merecido.
Encontramos no Tal mude uma longa lista de pecados e transgressões de que a geração contemporânea
fora ou se acreditava culpada e pelos quais foi atingida pela vingança divina; e durante centenas de anos
discutiu-se sobre por que mal específico esta ou aquela retaliação pode ter sido merecida.1 Não houve, é
claro, entre as muitas e várias vilanias da geração, nem a crucificação de Jesus, nem a maldição que os
judeus supostamente fizeram cair sobre si próprios: quanto a tudo que se ligava à morte de Jesus, a
consciência judia permaneceu, naquela época e desde então, limpa e tranqüila. Por mais implacável e
freqüentemente, através das épocas, que os judeus tenham sido duramente lembrados da sua chamada
culpa como descidas, o seu próprio autojulgamento não se abalou: bem à parte de sua descrença na
divindade de qualquer criatura humana, sem excetuar Jesus, eles podiam, com perfeita boa fé, responder
aos seus adversários que, se um tribunal judeu daquela época tinha, com efeito, considerado Jesus culpado
de um crime capital, devia estimar-se que ele fora corretamente condenado e que o tribunal havia agido e
julgado segundo a lei e como melhor entendia e podia. E embora, talvez, não fosse da alçada deles negar
que Jesus fora julgado e condenado por um tribunal judeu, pois podiam, quanto a este fato fundamental,
ter pensado que tinham de agir na presunção de que não possuíam toda a informação de que dispunham os
seus adversários, eles realmente também o negaram e chegaram a afirmar que, quarenta anos antes da
destruição do Templo, os tribunais judeus já não exerciam jurisdição capital e que estes, portanto, não
- 154 -
podiam ter julgado Jesus no ano 30 por uma acusação capital. O que os judeus infelizmente deixaram de
fazer foi enfrentar os seus desafiantes cristãos quanto à premissa cristã e fundamentar os argumentos sobre
a inocência judia com base numa análise dos próprios relatos do Evangelho. Mas acontece que os livros
santos dos cristãos (Sifrei Minim), desde os primeiros tempos talmúdicos, têm sido um tabu proibido: não
apenas nenhum erudito judeu podia estudá-los, seja por curiosidade intelectual ou pelo desejo de obter a
necessária compreensão das armas do adversário, mas há mesmo pronunciamentos no Tal mude de que
tais livros devem ser queimados. Eles devem ter sido, e em alguns círculos ainda devem ser; encarados
como material de efeito altamente perigoso, demasiado perigosos para ficarem ao alcance da mão num lar
judeu -uma apreensão, ouso dizer, nascida antes da ignorância que da informação. A consciência tranqüila
dos judeus não lhes seria de qualquer vantagem e, de fato, se tornou totalmente irrelevante. Desde os
primeiros dias, a culpa judia na crucificação de Jesus serviu como um ponto de partida natural e
conveniente para imputar aos judeus toda espécie de outros assassinatos, reais e imaginários. Assim, nos
textos apócrifos do primeiro século, já encontramos os judeus, seja em geral ou nas pessoas dos seus
principais sacerdotes e anciãos, estigmatizados pelo injustificado assassinato de Ananias e de Cleofas,
descritos como dois amigos de Jesus; ou pelo encarceramento de José de Arimatéia, e por depois deixá-lo
morrer ou passar fome ou, em outra versão, morrer por envenenamento; e também se diz que Longino, o
centurião que viu Jesus morrer na cruz e disse: "Verdadeiramente, este homem era o filho de Deus"
(Marcos 15,39; Mateus 27,54), ou, como parece mais ,provável -"Verdadeiramente, este homem era justo"
(Lucas 23,47), foi morto em Roma por Pilatos, que os judeus subornaram para tal, e que sua cabeça
cortada foi levada a Jerusalém como prova do assassinato. E diz-se que Maria, mãe de Jesus, foi queimada
até morrer pelos judeus; de Marta e Lázaro diz-se terem sido afogados por eles no mar de Jafa, e de
Simão, o cireneu, que naturalmente foi o primeiro a ser crucificado pelos judeus, por ter feito aquilo que o
próprio Jesus devia fazer -carregar a sua cruz. Como se provou que foram capazes de assassinar até o filho
de Deus, os judeus certamente não hesitariam em assassinar seus parentes próximos e seguidores; assim,
assassinos inveterados que eram, uma morte não natural para a qual não se encontrava qualquer outro
culpado podia, quase que automaticamente e, pelo menos, convenientemente, lhes ser atribuída. Assim,
em pouco tempo e inevitavelmente, os judeus tornaram-se o bode expiatório para responder por qualquer
morte cristã violenta e não punida: uma necessidade premente de sangue cristão para os rituais judeus não
foi apenas a primeira, mas também a mais duradoura invenção a justificar a insaciável sede de sangue dos
judeus. No devido curso de uma evolução lógica e inexorável, os judeus foram, em última análise,
considerados responsáveis por todos os desastres e calamidades que afligiram o mundo cristão: já não se
tratava mais de punições divinas, mas de crimes judeus abomináveis. Sempre que irrompia a peste ou uma
calamidade -e havia uma profusão delas -eram os judeus que a provocavam, envenenando águas e pastos,
esquecendo-se facilmente de que os judeus bebiam nos mesmos poços que os cristãos, ou subornando e
contratando leprosos para espalhar doenças, ou fazendo exatamente aquilo de que se diz que Jesus foi
acusado: fazer pacto com o diabo e com demônios malignos. As fábulas sobre combinações judias de
assassinato e magia, veneno e feitiçaria, sangue e ritual, voltadas para a destruição total da cristandade,
eram "repetidas com bastante freqüência, de várias maneiras, indicando que de modo geral se acreditava
nelas".
Não se trata apenas de que a culpa judia pela crucificação de Jesus tornara-se virtualmente um artigo
dogmático de fé: a caracterização dos judeus como descidas e, portanto, como assassinos impenitentes
havia sido de tal forma implantada na consciência de sucessivas gerações de cristãos que, em toda parte,
as elaborações modernas de anti-semitismo encontraram um solo fértil. O ódio aos judeus foi - pelo menos
originariamente - motivado por uma questão de fé, a saber, a verdade do Evangelho quanto à culpa judia
na qual os fiéis tinham de crer sem questionar, que não podia ser contrariada por argumentos: qualquer
tentativa de negar a verdade do Evangelho era apenas mais um argumento para repulsa e aversão.
Não é nosso propósito investigar, de um ponto de vista teológico, os fenômenos cristãos de calúnia e de
tormento contra os judeus: a discrepância extremamente óbvia entre as pregações de Jesus ( cf. Mateus 5 ,
44 ) e os ensinamentos de Paulo ( cf. Romanos 9-11) e a prática cristã através dos tempos levantou
problemas que não nos cabe resolver. Mas é apenas eqüitativo reconhecer, nesse contexto, os notáveis e
impressionantes esforços ecumênicos dos tempos recentes, por parte tanto da teologia católica como
protestante, para retificar algumas das imemoriais tolices que foram santificadas, e mesmo incluídas na
liturgia. O Segundo Concílio do Vaticano, em sua sessão de 1965, declarou que as "autoridades judias e os
- 155 -
que seguiam sua orientação pressionaram para que Cristo fosse morto; contudo, o que ocorreu em Sua
Paixão não pode ser atribuído a todos os judeus, sem distinção, que viviam na época, nem aos judeus de
hoje". Mesmo este decreto mínimo e, com feito, subentendido, suscitou considerável oposição, o que
contribui para mostrar quão profundamente enraizados são estes preconceitos. O decreto implica que não
pode haver, ou não deve haver, por enquanto, qualquer mudança na crença fundamental de que as
autoridades judias em Jerusalém, no dia da crucificação, foram, de fato, responsáveis pelo assassinato de
Jesus, uma implicação que não apenas perpetua os erros fatais e as deturpações de tempos idos, mas
também deixa intacta a base emocional e a justificação pseudo-ética e pseudoteológica para o preconceito
e a animosidade tradicionais contra os judeus. Podem ter-se passado dois mil anos, mas os judeus de hoje
em dia ainda são, e afirmam ser, descendentes dos assassinos de Jesus e, o que é pior, muitos escolhem
identificar-se com seus ancestrais, em lugar de repudiá-los e a seus feitos: é somente culpa deles se, se
permite à má vontade persistir.
O que nos preocupa, a nós advogados, primariamente é o fenômeno, nunca tão vívida e terrivelmente
demonstrado como no julgamento de Jesus, de que o efeito dos procedimentos judiciais no espírito e na
opinião públicos e a reação do público a eles não dependem tanto da sua natureza ou do que realmente
aconteceu em seu curso quanto da maneira pela qual são relatados e para qual propósito. Se este ponto de
vista se aplica a relatos contemporâneos, deve-se a fortiori aplicar a relatos escritos décadas depois do
acontecimento, não se contando mais do que com tradições orais para confiar; e se também se aplica a
relatos modernos com a ajuda de meios de informação de massa como a imprensa, o rádio e a televisão,
deve a fortiori aplicar-se a relatos da antiguidade, que só contavam com os mais primitivos meios e
recursos. Os mais vulneráveis e, portanto, os mais suspeitos de todos são os relatos dos assim chamados
julgamentos históricos: enquanto os procedimentos judiciais são normalmente relatados em proveito
próprio, isto é, para proporcionar informação quanto à forma como foram conduzidos e seu propósito, e
quanto ao que realmente aconteceu no seu decurso, logo que um julgamento se torna "histórico" o
primeiro e constante objeto dos relatos rotineiros é automaticamente substituído por avaliações
conscientes ou subconscientes sub specie aeternitatis. Apenas o historiador das leis poderia interessar-se
por relatos rotineiros de julgamentos passados há muito tempo, mas então ele é uma avis raríssima,
mesmo entre advogados. Na medida do interesse do público em geral, os relatos de julgamentos passados
de há muito deviam sempre buscar, para sua justificação, algum significado extralegal: à parte seu
conteúdo puramente legal e independentemente dele, eles devem contribuir para a história política, social,
religiosa ou cultural. Um historiador das leis pode explorar o relato que Platão faz do julgamento de
Sócrates, por exemplo, para enriquecer nosso conhecimento do procedimento penal ateniense, mas Platão
não escreveu para preservar este tipo de informação; ele escreveu porque considerou a conduta de
Sócrates durante e depois do seu julgamento, e as palavras que dirigiu aos seus juízes, uma demonstração
prática da filosofia platônica; e foi esta filosofia, e sua comprovada praticabilidade, que ele desejou
imortalizar -e logrou êxito. O exemplo de Platão -e ele poderia ser multiplicado -mostra que mesmo
quando o relato de um tal julgamento "histórico" serve a objetivos outros que não os de relatar o
julgamento em si, isto não significa necessariamente que os fatos serão suprimidos, para não dizer
falsificados ou deturpados; mas a tendência e o objetivo idiossincráticos do relato podem claramente
transparecer da identidade do relator ou dos leitores a quem o relato é dirigido, ou da ênfase particular
dada a um fato ou da pouca ênfase dada a outro, ou -especialmente quando o relato não é contemporâneo
-do que é ainda lembrado pelo relator e do que caiu no esquecimento. Para uma avaliação apropriada da
validade e confiabilidade do relato, o observador crítico deve sempre submetê-lo a um escrutínio severo,
primeiro quanto ao seu objetivo e tendência, depois quanto aos meios e fontes de que dispunha o relator.
Foi isso o que tentamos fazer com as narrativas do Evangelho sobre o julgamento de Jesus.
Quanto à identidade do relator, é impossível exagerar a importância de um outro ponto: o relator pode ter
possuído alguma autoridade legal ou religiosa especial, ou pode post hoc ter sido investido de tal
autoridade. Isto pode, por um lado, dissuadir os céticos de suscitar dúvidas quanto à exatidão do relato e,
por outro, conferir ao próprio relato a autoridade do seu autor. É uma experiência comum, mesmo hoje em
dia, que um relato publicado num jornal de província pouco conhecido seja facilmente desprezado como
não digno de crédito, mas o mesmo relato, se publicado por um prestigioso jornal metropolitano, será
aceito por todos como absolutamente digno de confiança; o diário provincial depende, para ser acreditado,
da boa vontade e da confiança dos seus leitores isolada- mente; o seu competidor gigante possui por trás
- 156 -
dele a reputação, e quase o postulado de que tudo o que publica é verdadeiro. A mesma distinção subsiste
entre os relatos jurídicos oficiais, que são conhecidos por serem editados e compilados sob supervisão
judicial, ou assim se presume, e os relatos privados, cuja confiabilidade depende da perspicácia e do
renome dos relatores individuais; e, com maior razão, entre os relatos jurídicos feitos por advogados
competentes e os feitos por jornalistas e publicados na imprensa diária. Mas isto nem sempre contribui
para o louvor do relator que tem autoridade: em nossa investigação particular, temos de lidar com o
prejuízo que os relatos autorizados podem causar, exatamente por possuírem autoridade. Qualquer relato
falso ou enganador, se publicado por uma autoridade legal ou religiosa ou por decreto governamental, terá
de ser aceito por qualquer pessoa sujeita a esta autoridade ou governo como verdade que não se pode
contestar: ou ele é assim aceito ou a pessoa repudia não apenas o relato, mas também a autoridade do
relator. Normalmente, a autoridade que uma pessoa reconheceu, seja voluntariamente por convicção
pessoal, ou por força da tradição e da educação, ou como um seguidor das condições políticas, sociais ou
religiosas da sua vida, será bastante forte para resistir a quaisquer possíveis dúvidas ou desconfianças
quanto à exatidão dos aspectos particulares de qualquer tal relato; e em vez de ceder aos seus sentimentos
de incerteza quanto a ele, a pessoa confiará na autoridade. Quanto mais antiga e sacrossanta a autoridade,
tanto mais inexpugnável será o relato; quanto mais tempo as pessoas tenham acreditado em sua verdade, e
quanto maior o número de pessoas que tenham acreditado nela, tanto mais fácil e mais firmemente o relato
se estabelecerá como uma verdade que não pode ser contestada nos espíritos das gerações vindouras. Por
estranho que isto possa parecer ao observador moderno, a presunção de verdade ainda é
consideravelmente aumentada, se fortalecida pela antiguidade e um concurso de pessoas que nela
acreditam. É assim que os relatos revestidos de autoridade, por falsos e distorcidos que possam ser,
"fazem" história: enquanto a verdade real e histórica será, inconscientemente, esquecida, a "verdade"
fabricada, porém autorizada, persiste indestrutível.
Uma armadilha extremamente perigosa para o relator equânime, e uma das técnicas mais simples para o
tendencioso, consiste em exagerar a ênfase sobre o papel representado num julgamento pela assistência,
ou pelos expectadores, ou pelo público em geral. Os procedimentos são ou podem facilmente ser
deturpados, como se as reações ou interferências dos membros do público fossem um fator decisivo no
resultado, não diferentes do papel de terminante do coro numa tragédia grega. Os leitores sem formação
ou experiência em questões legais, mais particularmente nos dias idos, não alimenta- riam a menor
suspeita quanto à exatidão de um relato que acentuasse a aprovação ou o aspecto desastroso que a reação
popular dá aos acontecimentos. Pelo contrário, quanto mais se acentuar o papel do público, com maior
complacência o leitor, ele próprio um membro do público e uma figura potencial num julgamento público,
aceitará o relato. As reações públicas, no entanto, geralmente não têm nada a ver com os aspectos legais
dos procedimentos: o público, via de regra, não se preocupa com a lei como tal, nem se interessa pela
significação a ser atribuída a esta ou aquela medida procedimental para se atingir o resultado final. O que
costumeiramente intriga o povo é ou a personalidade do acusado, ou uma revelação sensacional de fatos
até então desconhecidos ou não provados, ou um item no julgamento ao qual, nas condições que
prevalecem, é atribuída alguma importância política particular. Mas quanto mais vivo o interesse público e
mais rigorosa e ostensiva a participação pública no julgamento, mais grave o risco de se superestimá-la; e
o relator não profissional, assim como o leitor não formado, podem inclinar-se a pensar que uma
interferência exaltada por parte do público, especialmente se não contida com rigor pelo juiz, exerceu uma
influência no resultado que, de fato, não podia ter exercido. Além disso; este tipo de intromissão no curso
de um julgamento presta-se a ser tomada como a expressão da opinião pública em geral, da verdadeira vox
populi, quando pode não passar de explosões espontâneas e acidentais de espectadores fortuitos e
desorganizados. E se o relato de um julgamento é tornado falso e enganador pela inocente deturpação da
influência inerente às reações públicas que de fato ocorreram, então inventar tal reação apenas para os
objetivos do relato e dotá-la de uma virtual usurpação do poder judicial, como se o juiz fosse expulso do
seu assento e despido do poder de arbítrio, transformará o relato em mera ficção ou, se reivindica uma
autoridade obrigatória, pura falsificação.
Tudo isso aconteceu nos relatos do julgamento de Jesus. Os primeiros relatores -se descartarmos, como é
preciso, os escassos e ambíguos ditos atribuídos a Pedro e Paulo -foram os evangelistas: nem eles nem
seus leitores se preocuparam com os aspectos legais ou técnicos do julgamento ou com o objetivo legal
dos acontecimentos que foram descritos. Seu objetivo era teológico e missionário, seus relatos feitos e
- 157 -
calculados para absolver o governador romano de toda responsabilidade pela crucificação, embora não
houvesse como escapar à premissa inicial de que foi ele quem ordenou que a crucificação fosse executada,
e para colocar esta responsabilidade diretamente sobre os ombros dos judeus. Foi com este propósito e
com esta tendência no espírito que seus relatos foram escritos; mas uma vez que tais relatos foram
canonizados e elevados à condição de Escritura, seu propósito e tendência desapareceram da memória e
eles assumiram um caráter sacrossanto próprio. Tal era a autoridade religiosa e eclesiástica de que se
revestiam, que importava em heresia duvidar do seu aspecto factual e da sua exatidão. Permitiu-se ou fez-
se que aquilo que realmente aconteceu caísse no esquecimento; o que havia sido relatado inexata e
tendenciosamente como tendo ocorrido tornou-se a verdade do Evangelho e foi transformado em história.
Nunca nos anais da história um julgamento foi tão ampla e competentemente relatado, e nunca um
relato falso foi investido de uma autoridade mais alta e exaltada.
O efeito imediato e direto deste relato inverídico, mas santificado, foi duplo. Em primeiro lugar, seu
objetivo foi atingido -o governa- dor romano foi representado como um juiz justo e correto, embora tímido
e ineficaz; os judeus são mostrados como tendo-o manipulado, como se ele fosse um mero instrumento
para cometer um assassinato planejado. Em segundo lugar, o resultado do julgamento é representado como
um assassinato judicial: Jesus foi crucificado, não porque fora devidamente condenado, seja pelos judeus
ou pelo governador romano, mas porque os judeus haviam conspirado para matá-lo; e quaisquer
condenações e sentenças registradas contra ele não passaram de procedimentos simulados, levados a efeito
para salvar as aparências, e que na realidade importaram num abuso de processo judicial. Nesta
representação, que resultou num assassinato judicial, o julgamento de Jesus foi estigmatizado como a pior
"perversão da justiça" jamais registrada, a pior de todas, pois Jesus foi o melhor dos homens, "na verdade,
este homem era justo" (Lucas 23, 47), e merecia menos do que qualquer outro ser condenado e
crucificado. É, com efeito, um lugar-comum em nossos dias encarar sua crucificação como o exemplo
mesmo do assassinato judicial, revelando todas as características que se pode imaginar. Enquanto o
assassinato judicial "normal" pode ser devido a um erro do juiz, possivelmente cometido em boa fé, o
motivo alegado para a crucificação de Jesus não foi um erro, quer do Sinédrio, quer de Pilatos, e
certamente não um erro cometido em boa fé, mas uma coação sobre o juiz, pela ameaça e o furor de
multidões frenéticas e ruidosas, para que ele pervertesse a justiça conscientemente e contra a sua vontade e
discernimento, e o que é pior: uma coação empregada em seguimento a uma conspiração prévia para o
assassinato de Jesus. O que os relatos do julgamento lograram foi, em outras palavras, não apenas a
transposição da responsabilidade do governador romano, a quem esta pertencia, para os judeus, que eram
totalmente inocentes, mas também a transformação de um julgamento regular e rotineiro, que
normalmente terminaria na aplicação da justiça, numa tumultuosa sublevação das massas, que dificilmente
poderia terminar em outra coisa que não um erro judiciário.
A possibilidade de que uma injustiça possa ter sido cometida no julgamento de Jesus está fora de dúvida.
Mas nem toda injustiça equivale, em lei, a um erro judiciário: um homem pode ser inocente do crime de
que é acusado e, do ponto vista moral, seria sumamente injusto infligir-lhe qualquer punição; contudo, se
ele decide declarar- se culpado, a justiça legal exigiria que ele sofresse a punição, como se tivesse
cometido o crime. A atitude da lei, de fazer de cada um o árbitro final do seu próprio destino, permitindo-
lhe admitir ou negar sua culpa, é, de modo certo, coerente com a dignidade humana e com o direito
individual de autodeterminação. E uma pessoa pode ter razões perfeitamente válidas para alegar culpa de
uma acusação de que na verdade é inocente: trata-se de uma prática muito comum em casos menores, nos
quais o tempo que, de outra forma, precisaria ser gasto no tribunal e as despesas que precisariam ser feitas
não guardam qualquer relação razoável com a multa que a admissão de culpa causaria; ou a pessoa pode
decidir assumir uma penalidade que deveria ser cumprida por outra que ela deseja proteger ou cuja
identidade quer ocultar; ou pode a pessoa resolver ser julgada e sentenciada, quer tenha ou não cometido
um crime, para poder merecer a glória do martírio. Se Jesus confessou-se culpado da acusação que lhe foi
feita diante de Pilatos, não o fez necessariamente porque fosse ou achasse ser de fato culpado; talvez
quisesse que suas profecias se realizassem #Lc 9,22; #Jo 17,11-13; et al. Qualquer que seja o motivo que o
instigou, sua deliberada admissão de culpa foi, como vimos, bastante legal para garantir sua condenação.
Do ângulo puramente legal, uma vez que se confessou culpado, deixou de importar se ele era ou não de
fato culpado; e embora não expressemos qualquer opinião, contra ou a favor, sobre a teoria (recentemente
outra vez manifestada com grande força) de que Jesus foi na realidade um insurreto, tendo sido julgado e
- 158 -
condenado como tal, podemos assumir que ele realmente nada fez que merecesse a pena capital ou outra,
sendo sentenciado apenas por causa da posição que decidiu adotar no julgamento diante de Pilatos. Sobre
esta suposição, da mesma forma, não se pode dizer que a crucificação teve a natureza de um assassinato
judicial; pelo contrário, foi a execução de uma sentença adotada no devido curso da justiça. A posição que
Jesus escolheu adotar pode ter sido suicida e tragicamente deplorada. Pode ter sido moral ou taticamente
mal avisada. Mas nenhum erro de julgamento da parte de Jesus pode ter refletido sobre a justiça
ministrada por Pilatos.
Embora, como afirmamos, se tenha dado à "perversão da justiça " no julgamento e crucificação de Jesus o
caráter de protótipo e precursor de muitos assassinatos judiciais posteriores, até agora não se voltou
bastante atenção para o fato de que a perversão da verdade e da justiça nos relatos do julgamento foi a
primeira e tem sido a causa persistente não apenas de assassinatos judiciais e quase-judiciais e de
tormentos inumeráveis, mas de assassinato em massa e de perseguição numa escala sem precedentes.
Ouso afirmar que os próprios relatores, que afinal escreveram primariamente para a propagação da sua fé,
nunca poderiam ter imaginado que imensos e indizíveis sofrimentos estavam-invocando ao contarem seus
relatos fictícios. A perversão da verdade num relato de julgamento tem isto em comum com o assassinato
judicial: exatamente como a justiça pervertida, ainda que posteriormente reparada não pode devolver a
vida de um condenado enforcado, da mesma forma a verdade pervertida, por mais que seja depois
corrigida, não pode restituir a vida às multidões assassinadas por causa da sua sinistra força. E enquanto
lhes for permitido persistir na sua desonestidade, a justiça pervertida e a verdade pervertida serão com
toda probabilidade desastrosas para vidas inocentes.
Tivesse o impacto dos relatos do Evangelho sobre o julgamento de Jesus se confinado à esfera religiosa,
como presumivelmente seus autores desejavam, servindo, assim como os relatos sobre a vida e os
ensinamentos de Jesus, para edificar os fiéis e para recrutar e ensinar os não-iniciados, poder-se-ia talvez
argumentar que não seria de interesse dos historiadores do direito, talvez diversamente dos historiadores
da religião, investigar sua precisão e confiabilidade. Ou se não estivessem armados de uma autoridade
inexpugnável, professando estabelecer, de uma maneira obrigatória que fosse imune a qualquer desafio, a
verdade dos fatos como realmente aconteceram, o historiador da lei poderia tê-los ignorado e os
consignado ao limbo da tradição lendária e inverificável. Mas quando, com base em tais relatos, são
cometidos atos de vingança e de perseguição que são, devido ao caráter sacrossanto sobreposto aos
relatos, aprovados e encorajados sob o aspecto de lei religiosa, então eles já não são documentos apenas de
importância religiosa. Todo preconceito e ódio que conduzem a perseguições e discriminações ilegais são
- especialmente em nossos dias de crescente consciência dos direitos humanos e de condenação à
parcialidade racial e religiosa -um assunto que cabe ao advogado, não menos que ao educador e ao
sociólogo, examinar. Se um preconceito que ainda produz seus efeitos sinistros em nosso tempo está
enraizado na história distante, impõe-se seguramente ao historiador da lei intervir e proporcionar aos
advogados praticantes, assim como aos educadores, sociólogos e outros, a informação necessária para
combater e extirpar tal preconceito. E o imperativo torna-se quase categórico se, mesmo em nosso tempo,
apresentam-se eminentes advogados promovendo as histórias do Evangelho à condição de autênticos
relatos legais: é diante desta erudição legal pseudocientífica que se devem formular os protestos e ordenar
as questões na perspectiva correta.
O julgamento de Jesus é parte integrante da história legal judia. Não apenas foi Jesus um judeu que viveu,
ensinou, lutou e morreu no meio do seu povo, em Jerusalém, mas alega-se que o Sinédrio, o grande
conselho dos judeus e seus mais alto tribunal, tomou parte nos acontecimentos que levaram ao seu
julgamento e crucificação. É do maior interesse possível para o historiador do direito judeu a questão de
saber qual foi o papel, se houve algum, que o Sinédrio representou nestes acontecimentos. O fato de o
julgamento diante do c governador romano ter sido conduzido de acordo com a lei romana e segundo os
procedimentos romanos acrescenta mais interesse aos problemas implicados: o direito e o procedimento
aplicados pelo poder ocupante na Judéia naqueles dias é também certamente parte integral da história legal
judia. Se os judeus em geral, e os historiadores judeus da lei em particular negligenciaram gravemente o
julgamento de Jesus, deve-se isto a uma tradicional, porém inteiramente irrefletida, abstenção do estudo
do Novo Testamento e à escassez de fontes judias pertinentes. Esta infeliz omissão custou à história legal
judia a informação a ser extraída deste mais notável de todos os julgamentos relatados no período,
criando, além disso, uma apática indiferença à autenticidade atribuída aos relatos do julgamento no
- 159 -
Evangelho e às conclusões a serem deles extraídas. Conforme aconteceu, permitiu-se que a alegação de
responsabilidade judia pela crucificação de Jesus permanecesse praticamente incontestada, se
descontarmos os muitos esforços apologéticos e defensivos para limitá-la aos judeus da época, ou a certos
indivíduos entre eles, ou ao sumo sacerdote e seu círculo de colaboradores com Roma. É deprimente
pensarmos que foi o cânon judeu, com sua proibição ao estudo do Novo Testamento, que por tanto tempo
protelou uma investigação legal imparcial do julgamento de Jesus; por mais atrasada que possa estar a
investigação, nem os seus problemas, nem os seus resultados terão perdido a atualidade.
Centenas de gerações de judeus, através do mundo cristão, têm sido indiscriminadamente esbulhados por
causa de um crime que nem eles, nem seus ancestrais, cometeram. Pior ainda, eles têm sido obrigados há
séculos, há milênios, a sofrer toda espécie de tormento, perseguição e degradação pelo papel que se diz
terem desempenhado seus ancestrais no julgamento e na crucificação de Jesus, quando, em solene
verdade, seus antepassados não tiveram qualquer parte nos mesmos, mas fizeram tudo que possível e
humanamente podiam para salvar Jesus, a quem amavam e queriam como um deles, do seu trágico fim nas
mãos do opressor romano. Se podemos encontrar um grão que seja de consolo para esta perversão da
justiça, encontra-se ele nas próprias palavras de Jesus: "Bem-aventurados os perseguidos por causa da
justiça, por que deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e
perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso
galardão nos céus (Mateus 5,10-12).

Capa.

Muitos livros foram escritos sobre o julgamento e a morte de Jesus, mas pouquíssimos deles por juristas.
Aqueles que o fizeram, se basearam nos relatos dos evangelhos, como se este fossem fatos indiscutíveis.
Haim Cohn, juiz da suprema Corte de justiça de Israel, apresenta uma nova e aguda versão. Baseando-se
no direito romano e na lei judaica em vigência a época do julgamento, o juiz Cohn esmiúça demorada e
analiticamente os pormenores do caso, lançando uma nova luz sobre os fatos. Esse julgamento, que influiu
como nenhum outro na história da humanidade, despertou durante séculos um ódio profundo ao povo
judeu, ódio esse que derivou em perseguições e derramamento de sangue inocente. O juiz Cohn
demonstra, de um ponto de vista jurídico, que esse ódio foi totalmente gratuito.

Potrebbero piacerti anche