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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

MONTAGEM NARRATIVA NÃO DRAMÁTICA OU


QUANDO A MONTAGEM TOMA POSIÇÃO

João Cristóvão Leitão

Dissertação
Mestrado em Arte Multimédia
Especialização em Audiovisuais

2015
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS-ARTES

MONTAGEM NARRATIVA NÃO DRAMÁTICA OU


QUANDO A MONTAGEM TOMA POSIÇÃO

João Cristóvão Leitão

Dissertação orientada pela Prof.ª Doutora Susana de Sousa Dias

Mestrado em Arte Multimédia


Especialização em Audiovisuais

2015
RESUMO

A força motriz inerente ao trabalho de investigação teórico-prático aqui em análise


possui enquanto premissa primeira a problematização filosófica enunciada por Georges Didi-
Huberman relativamente ao conceito de montagem, nomeadamente aquele que é passível de
ser derivado das práticas artística e literária protagonizadas por Bertold Brecht. Esta
problematização é, através do projecto a arte do não-retrato, transposta para o domínio da
criação artística audiovisual. Ensaia-se, por consequência, a possibilidade de as visibilidade e
audibilidade intrínsecas aos processos de montagem (audiovisual) de pendor épico (no sentido
brechtiano do termo) se revelarem tão capazes de conferir sentido narrativo-dramatúrgico aos
objectos sobre os quais agem quanto as invisibilidade e silenciosidade subjacentes aos
processos de montagem (audiovisual) valorizados, por norma, pelo cinema clássico e
congénitos das práticas teatrais de índole dramática. Deste modo, rejeita-se a correspondência
determinista e absoluta entre os conceito de narrativa e de dramatismo; declina-se a
perspectiva segundo a qual, directa ou indirectamente, se assume a operação de montagem
enquanto mera e inevitável técnica; e, simultaneamente, sugere-se a elevação desta mesma
operação à condição de ferramenta iminentemente criativa e discursiva, qual berço
epistemológico.

PALAVRAS-CHAVE

Audiovisual – Dramático – Épico – Montagem – Narrativa

ii
ABSTRACT

The driving force of this practice-based research work has as a first premise the
philosophical problematisation uttered by Georges Didi-Huberman relatively to the concept of
montage, particularly the one that can be derived from both artistic and literary practices
carried by Berthold Brecht. This problematisation is, through the project a arte do não-retrato,
transposed to the audiovisual field. Is tested the possibility that the visibility and audibility
intrinsic to the (audiovisual) montage processes of epic inclination (in the Brechtian sense of
the term) are as capable of providing narrative-dramaturgical meaning to the objects on which
they act as the invisibility and silenciosity underlying the (audiovisual) montage processes
usually valued by the classic cinema and adjacent to the theatrical practices of dramatic nature.
Thus, is rejected the deterministic and absolute correspondence between the concept of
narrative and drama; is declined the view that, directly or indirectly, conjectures the montage
operation as an inevitable and mere technique; and, simultaneously, it is suggested that this
same operation can be epistemologically thought as a creative and discursive tool.

KEY WORDS

Audiovisual - Dramatic - Epic - Montage - Narrative

iii
AGRADECIMENTOS

Agradeço à Ana Pessanha, ao Duarte Amaral Soares, à Inês Von Bonhorst, à Joana Peralta, ao
João Ferreira, à Laura Calloni, ao Manuel Ramos, à Marta Ribeiro, à Sara Garrinhas, à Sara
Leite e ao Yuri Pirondi, amigos que acreditaram no projecto a arte do não-retrato, dando-lhe,
directa ou indirectamente, corpo e forma.

Agradeço aos meus colegas de mestrado (agora, amigos) Francisca Manuel, Inês Silva, Patrícia
Andrade e Tiago Jordão, pelo companheirismo.

Agradeço ao meu Pai (José Leitão), às minhas irmãs (Cláudia Cristóvão, Catarina Cristóvão e
Joana Leitão) e à minha mais mãe do que avó (Maria de Lourdes Cristóvão), pela amizade e
pelo amor inquestionáveis.

Agradeço ao António da Câmara Manuel, por cegamente acreditar no meu trabalho e por ver
em mim coisas que, muito provavelmente, não existem.

Agradeço à família que escolhi (Ana Sampaio, Cátia Tomé, Ivo Silva, Ricardo Teixeira e Rita
Morais), com quem tenho o maior orgulho em trabalhar e com quem tenho vindo a construir o
projecto-casa que é o colectivo SillySeason.

Agradeço à Susana de Sousa Dias, que, mais do que a orientadora da presente dissertação, é,
para mim, um exemplo e alguém que me faz não só pensar, mas também querer pensar.

Agradeço ao Miguel Leitão, que, para além de irmão e incondicional amigo, é o maior
cúmplice de todo o meu percurso artístico.

Por último, dedico todo este trabalho de investigação (incluindo tudo o que o mesmo possa,
eventualmente, comportar em termos académicos, artísticos e profissionais) à pessoa indizível
que é a minha Mãe. Isto porque tenho a sorte de ser filho da Mãe que ela é e ela o azar de eu,
por vezes, ser o filho da mãe que sei que consigo ser.

iv
ÍNDICE GERAL

Resumo/Palavras-chave ...................................................................................................................... ii
Abstract/Key-words ........................................................................................................................... iii
Agradecimentos .................................................................................................................................. iv
Introdução ............................................................................................................................................ 1
1. Montagem e o século XX: uma técnica-conceito ......................................................................... 3
2. Montagem épica: entre Bertold Brecht e Georges Didi-Huberman ...................................... 12
3. Montagem narrativa não dramática ou a arte do não-retrato ................................................ 18
3.1. Dramaturgia audiovisual e conceptual ....................................................................... 18
3.2. O Retrato de Irineu ....................................................................................................... 24
3.3. O Retrato de Mónica ..................................................................................................... 31
3.4. O Retrato de Ulisses ...................................................................................................... 41
Conclusão ............................................................................................................................................ 52
Bibliografia ......................................................................................................................................... 55
Anexo 1: figuras e respectivo índice ................................................................................................ 66
Anexo 2: vídeos e respectivo índice ................................................................................................. 93
Apêndices ............................................................................................................................................ 99
Obra a arte do não-retrato ........................................................................................................... DVD

v
1. INTRODUÇÃO

A força motriz inerente ao trabalho de investigação teórico-prático aqui em análise


possui enquanto premissa primeira a problematização filosófica enunciada por Georges Didi-
Huberman relativamente ao conceito de montagem, nomeadamente aquele que é passível de
ser derivado das práticas artística e literária protagonizadas por Bertold Brecht. Esta
problematização é, através do projecto a arte do não-retrato, transposta para o domínio da
criação artística audiovisual. Ensaia-se, por consequência, a possibilidade de as visibilidade e
audibilidade intrínsecas aos processos de montagem (audiovisual) de pendor épico (no sentido
brechtiano do termo) se revelarem tão capazes de conferir sentido narrativo-dramatúrgico aos
objectos sobre os quais agem quanto as invisibilidade e silenciosidade subjacentes aos
processos de montagem (audiovisual) valorizados, por norma, pelo cinema clássico e
congénitos das práticas teatrais de índole dramática. Deste modo, rejeita-se a correspondência
determinista e absoluta entre os conceito de narrativa e de dramatismo; declina-se a
perspectiva segundo a qual, directa ou indirectamente, se assume a operação de montagem
enquanto mera e inevitável técnica; e, simultaneamente, sugere-se a elevação desta mesma
operação à condição de ferramenta iminentemente criativa e discursiva, qual berço
epistemológico.
Para o efeito e mediante a exploração do universo literário de Jorge Luís Borges ou a
convocação de autores como Gilles Deleuze, Aby Warburg ou Mary Ann Doane, é proposta
uma reflexão teórica sobre os mecanismos de montagem que constroem a componente
prático-artística do presente trabalho de investigação. Importa referir que tal componente
consiste, em termos formais, na realização de um tríptico audiovisual, composto por três
objectos distintos – a saber: O Retrato de Irineu (2014), O Retrato de Mónica (2014) e O
Retrato de Ulisses (2015) –, os quais – não obstante o facto de cada um deles deter total
independência relativamente aos restantes –, aquando da sua exibição conjunta, inter-
dialogam, inter-relacionam-se e inter-constroem uma dramaturgia comum.
Assim, no primeiro capítulo da dissertação teórico-prática aqui apresentada,
“Montagem e o século XX: uma técnica-conceito”, é contextualizada e sublinhada a
importância que alguns dos processos de montagem surgidos no início do século XX adquirem
no seio da práxis artística. São, pois, analisadas parte das práticas experimentais dadaístas;
enunciados os capitais princípios do fazer teatral épico; e expostas algumas das premissas

1
fundadoras da imagem em movimento. Reúne-se, deste modo, uma gramática transdisciplinar
que não só permite compreender o potencial técnico, discursivo e conceptual que as operações
de montagem encerram, mas que também antecipa parte da responsabilidade que Didi-
Huberman outorga à montagem.
No segundo capítulo, “Montagem épica: entre Bertold Brecht e Georges Didi-
Huberman”, é, pormenorizadamente, dissecada a obra Quand les images prennent position
(L'œil de l’histoire, 1) 1 (2008), de Didi-Huberman. Explana-se, então, a perspectiva
hubermaniana relativa às implicações conceptuais e filosóficas que as práticas de montagem
brechtianas supõem, implicações estas que são adoptadas enquanto princípios formais e
audiovisuais na e para a construção do projecto artístico em questão.
Por fim, o terceiro e último capítulo, “Montagem narrativa não dramática ou a arte do
não-retrato”, é composto por quatro subcapítulos. O primeiro subcapítulo, “Dramaturgia
audiovisual e conceptual”, consiste na transferência das coordenadas hubermanianas para o
domínio da criação artística audiovisual, cuja problematização delimita e caracteriza a tipologia
dramatúrgica (narrativa e não dramática) que subjaz aos processos de montagem propostos
pelo projecto a arte do não-retrato. Já cada um dos restantes subcapítulos corresponde à análise
sistemática do modo como esta mesma tipologia dramatúrgica é pensada e cumprida em cada
um dos três objectos audiovisuais concebidos. Tal é realizado mediante o estabelecimento de
relações entre as concepções identitário-narrativas construídas e a especificidade dos
mecanismos de montagem audiovisual utilizados, sejam eles o da acumulação e o da repetição
(O Retrato de Irineu); o da descontextualização e o da reorganização (O Retrato de Mónica);
ou o da manipulação temporal e o do loop (O Retrato de Ulisses).

NOTA:
No presente trabalho de investigação, escrito ao abrigo do anterior acordo ortográfico, opta-se
por manter as citações utilizadas no seu idioma de origem ou no idioma da tradução
consultada, sendo aplicado o sistema de citação anglo-saxónico autor-data.

1
Na presente dissertação, utiliza-se a tradução espanhola da obra em questão: Quando la imágenes toman
posición. El ojo de la Historia, 1.

2
1. MONTAGEM E O SÉCULO XX: UMA TÉCNICA-CONCEITO

Os processos de montagem não são exclusivos das práticas artísticas cujas imagens
simulam movimento. É possível perscrutar a relevância desta técnica-conceito no seio dos
percursos artísticos protagonizados por James Joyce, por John Cage, por Merce Cunningham
ou por Frank Lloyd Wright. Não obstante e no presente capítulo, procede-se à
contextualização histórica da montagem em três únicas frentes de pesquisa, a saber: as artes
visuais, as artes performativas e as artes audiovisuais. Isto porque se avalia que as mesmas
introduzem e desenvolvem um vocabulário específico e, consequentemente, necessário às
profundas compreensão e análise teórico-práticas do projecto artístico a arte do não-retrato.
Tal deve-se ao facto de, por um lado, o projecto aqui em análise se enquadrar nas práticas que
são as da vídeo arte e, por conseguinte, de ser decorrente de uma tradição histórica e visual
particular; por outro, de as funções narrativas que lhe são intrínsecas serem decalcadas de
preceitos e paradigmas teatrais específicos; e, por último, de o mesmo se julgar devedor de um
léxico iminentemente cinematográfico.
Deste modo, afirma-se que pensar o processo de montagem enquanto mecanismo de
criação artística e, simultaneamente, enquanto ferramenta de reflexão teórica implica
perscrutar parte das complexas relações que operaram no continente europeu, tanto a nível
histórico como a nível tecnológico, no início do atribulado século XX, o qual foi protagonista
de acontecimentos que, directa ou indirectamente, contribuíram para uma abrupta
fragmentação e desintegração da realidade humana de então: “[...] technological changes
impacted visibly upon the sphere of everyday-life, epistemological, ethical and scientific
certainties began to crumble and the cruelties of the First World War crudely crushed
humanist hopes for a progressive and positive development of western societies” (Schaffner,
s.d.: 118). Assim, por um lado, o positivismo herdado do século XIX2 foi substituído, aquando
do eclodir da Primeira Guerra Mundial, por um sentimento de cepticismo generalizado,
identificável não só em termos sociais, humanos e intelectuais, mas também em termos
científicos. De facto, foi instituído, face à barbárie resultante do conflito bélico, um vazio moral
e espiritual, e, concomitantemente, foram perspectivadas concepções científicas (como a teoria
quântica, antevista por Planck; a teoria da relatividade, formulada por Einstein; ou as teorias
psicanalistas, enunciadas por Freud) que valorizaram, pela primeira vez e a nível
2
Caracterizado pela crença absoluta na superioridade da civilização ocidental; na objectividade do raciocínio
humano; na previsibilidade matemática dos fenómenos; e no progresso industrial e tecnológico em marcha.

3
epistemológico, variáveis como a intuição, a irracionalidade, o inconsciente, a desordem ou a
imprevisibilidade dos fenómenos.
Paralelamente, verificou-se o surgimento e a consolidação, quer enquanto instrumento
tecnológico, quer enquanto prática artística, da fotografia. Esta nova ferramenta alterou,
decisivamente, a compreensão e os modos de criação relativos às belas artes. André Bazin
defende que, até à descoberta da fotografia, as belas artes sempre possuíram como referência a
realidade observável, isto é, sempre possuíram o realismo (entendido aqui, para o efeito, como
a tendência para aludir e/ou copiar a realidade) enquanto premissa primeira de criação. Tal
resultava do facto de as artes visuais serem, segundo a teoria exposta, um equivalente do
complexo da múmia3 – ou seja “[...] a preservation of life by a representation of life [...]”
(Bazin, 1945: 5) –, visando, desta feita, o testemunhar da efemeridade da experiência e da
existência humanas. No entanto, dado que a fotografia se revelou capaz de satisfazer e de
exceder o que, até então, tinha sido o objectivo último das belas artes – o de representar a
natureza; o de ser um substituto (fidedigno) da realidade –, volveu-se, consequentemente,
inútil e impossível às segundas competirem com a primeira. A demanda pelo realismo
metamorfoseou-se num paradoxo, uma vez que a fotografia o consubstanciava na perfeição:
“The photographic image is the object itself [...]” (ibid.: 8).
Um processo paralelo ao que foi anteriormente descrito ocorreu no seio das práticas
teatrais, aquando do surgir e do consolidar do primogénito da fotografia: o cinema. Até então,
o teatro, quer em termos interpretativos, quer em termos textuais, possuía como objectivo
primeiro o de representar a realidade observável, já que, independentemente dos pressupostos
estéticos vigentes, toda e qualquer performance teatral possuía como premissa primeira a
recriação da realidade humana, isto é, uma prática teatral de inspiração platónica e mimética
(teatro como espelho). No entanto, tal revelou-se contra-intuitivo a partir do momento em que
o cinema se assumiu capaz de realizar, de modo mais eficaz e verosímil, esse mesmo objectivo.
Deste modo, restou às belas artes e ao teatro a procura de novos conceitos de
plasticidade e de teatralidade, respectivamente; a descoberta de novos modos de expressão; e a
aquisição de novas práticas artísticas. Estas procura, descoberta e aquisição culminaram, no
caso das artes plásticas, no eclodir das vanguardas artísticas pertences ao período histórico
apelidado de modernismo4. Já no caso do teatro, verificou-se o enfraquecimento da tendência

3
Prática de embalsamar os mortos, efectuada pelos devotos da religião do Antigo Egipto.
4
Caracterizado pela autonomização da cor relativamente ao real, pelas distorção, decomposição e fragmentação
da realidade observável, bem como pelas justaposição, intersecção e sobreposição de copiosas perspectivas, sendo

4
narrativa e textocêntrica (e, por conseguinte, das dramaturgias fundadas em personagens e
respectivas psicologias5); a progressiva destruição da noção de quarta parede e a consequente
substituição da ilusão teatral pela situação teatral; ou a democratização dos materiais cénicos,
mediante a (con)fusão de vocabulários e saberes oriundos de diferentes disciplinas artísticas. É,
então, que a montagem, perante esta realidade – que não só se encontrava, visível e
inevitavelmente, mutilada e desmembrada (dado o conflito armado de que foi alvo), mas que
também incitava, ela própria, essas mesmas mutilação e desmembramento (dado o relativismo
moral e científico vigentes ou o facto de a irracionalidade e o inconsciente competirem,
legitimamente, com a razão e com a factualidade) – e, simultaneamente, perante as tecnologias
fotográfica e cinematográfica, se revela enquanto um dos princípios fulcrais da criação e do
pensamento artísticos. Aos artistas cabe olhar os estilhaços e os fragmentos – outrora
realidades (minimamente) estáveis, absolutas e unitárias – que são (ou que sobram) (d)o
mundo e (d)a arte, e assumi-los enquanto materiais de trabalho válidos, sendo a sua constante
montagem e remontagem uma inevitabilidade.
Um exemplo ímpar de tais processos são as práticas dadaístas, as quais se assumem,
política e ideologicamente, enquanto uma reflexão sobre as absurdas contradições da condição
e da moral do homem moderno. Numa reacção contra os valores capitalistas e burgueses, e
numa tentativa de negação da arte pela arte, os artistas dadaístas socorrem-se, para o efeito, de
inúmeras técnicas artísticas, através das quais se pensa e se problematiza a montagem enquanto
veículo de pensamento. Tristan Tzara, na procura da destruição do poder ideológico,
semântico e narrativo do discurso, e na demanda pela exploração da plasticidade da linguagem
e da materialidade sonora da mesma, descreve, com ironia, as instruções para a escrita poética
dadaísta 6
(1920), as quais privilegiam o seu modo de redacção – o acto de
montagem/composição –, em detrimento do seu conteúdo poético. Raoul Hausmann, na obra

tais inovações estético-formais consequências directas do facto de a fotografia ter “[...] freed Western painting,
once and for all, from its obsession with realism and allowed it to recover its aesthetic autonomy [...] [and] [...] to
admire the painting as a thing in itself whose relation to something in nature has ceased to be justification for its
existence” (Bazin, 1945: 9).
5
“The decline of interest in the psychological depth and substantiality of character toward the end of the
nineteenth century made room for the emergence of dramaturgies that were not character-generated” (Fuchs,
1996: 49).
6
“Pegue num jornal./Pegue numa tesoura./Escolha no jornal um artigo que tenha o tamanho que pensa dar ao seu
poema./Recorte o artigo./Recorte seguidamente com cuidado as palavras que formam o artigo e meta-as num
saco./Agite com cuidado./Seguidamente, retire os recortes um por um./Copie conscienciosamente/segundo a
ordem pela qual foram saindo do saco./O poema parecer-se-á consigo./E você tornou-se um escritor
infinitamente original e duma sensibilidade encantadora, ainda que incompreendida pelo vulgo” (Tzara, 1924:
42).

5
Cabeça Mecânica (O Espírito da Nossa Era)7 (1919), propõe uma inusitada comunhão entre
inúmeros objets trouvés, isto é, propõe uma composição elaborada a partir do coleccionar e do
reorganizar de copiosos objectos quotidianos, sendo, através da mobilização de um processo de
montagem física e escultórica, ignoradas as reais funções desses mesmos objectos, e,
simultaneamente, redefinidas as suas respectivas naturezas. Hannah Höch, na obra Da Dandy8
(1919), reflecte sobre as relações de género e sobre o posicionamento feminino no seio
sociedade moderna, mediante o recorrer a uma complexa colagem – fruto de múltiplos
fragmentos fotográficos –, sublinhando, deste modo, o acto de junção das diferentes partes que
constituem o todo que é a obra, isto é, o processo de montagem visual que lhe dá origem. Kurt
Schwitters, em Casa Merz9 (1922-23), constrói uma colossal assemblage – a ornamentação
exaustiva (montagem espacial) da totalidade de um compartimento habitacional –, a qual
incorpora o espaço físico e as suas potencialidades cenográficas enquanto elementos artísticos
inerentes à própria obra, outorgando-lhe, desta feita, um carácter instalativo. Já Marcel
Duchamp, através do readymade Chafariz10 (1915), promove a transferência de propriedades
plásticas para um objecto industrial e detentor de um valor meramente utilitário (um urinol),
transferência esta que é efectuada mediante diversos e complexos actos de montagem – a saber:
a selecção (cut/copy) de um determinado urinol; a inversão e a assinatura (edit) desse mesmo
urinol; e, posteriormente, a sua apresentação (paste) num contexto museológico –, sendo estes
mesmos actos de montagem os responsáveis pelo equacionar do contexto expositivo na
definição e na avaliação de um qualquer objecto artístico.
Deste modo, conclui-se que todas estas técnicas e metodologias dadaístas (assemblage,
colagem, fotomontagem, objets trouvés ou readymade) – apropriadas, desenvolvidas e
redefinidas pela vanguarda surrealista – detêm, na sua génese, processos de montagem
enquanto fundamentos primordiais de criação. Isto porque os mesmos não só operam segundo
uma lógica transdisciplinar11, mas também porque utilizam a intuição, o acaso e a aleatoriedade
enquanto dinâmicas capazes de fazer colidir (e, por conseguinte, capazes de estabelecer
diálogos entre) imagens, palavras, sons, objectos e materiais de natureza totalmente díspar,
originando, consequentemente, tensões, relações e discursos tão invulgares quanto férteis. A

7
Ver anexo 1, figura 1.
8
Ver anexo 1, figura 2.
9
Ver anexo 1, figura 3.
10
Ver anexo 1, figura 4.
11
“Disciplinary and formal purity were anathema to most of the practitioners of Dada and Surrealism. In their
productions artistic disciplines constantly overlapped; the textual, the visual, and the performative were often in a
state of free play” (Hopkins, 2004: 62).

6
fecundidade de tais operações (plásticas) de montagem – particularizadas na problematização
do processo que é o da colagem – é enunciada por Max Ernst12:

Enquanto que as penas fazem a plumagem, a cola não faz a colagem. [...] Uma
realidade já feita, cujo objectivo ingénuo parece ter sido fixado de uma vez para
sempre (um guarda-chuva), encontrando-se subitamente na presença de outra
muito distante e não menos absurda realidade (uma máquina de costura) num
local onde ambos se sentem fora do seu elemento (numa mesa de operações),
irá, por este simples facto, escapar do seu objectivo ingénuo e perder a sua
identidade; devido ao desvio através do qual é relativo, irá passar da falsidade
absoluta para um novo absoluto que é verdadeiro e poético: o guarda-chuva e a
máquina de costura farão amor. A forma como este processo funciona parece-
me revelar-se neste simples exemplo. Uma completa transmutação seguida de
um puro acto como o amor será necessariamente produzido sempre que os
factos fornecidos – a ligação entre as duas realidades que aparentemente não se
podem ligar num plano que aparentemente não é apropriado para elas –
proporcionarem condições favoráveis. (Ernst apud Klingsöhr-Leroy, 2005: 9)

Um outro exemplo que assume o(s) processo(s) de montagem enquanto mecanismo(s)


operante(s) manifesta-se nas coordenadas teórico-artísticas intrínsecas ao teatro épico (opostas
às do teatro dramático), encetadas por Erwin Piscator e Vsevolod Meyerhold, e amplamente
desenvolvidas por Bertold Brecht, nomeadamente durante a e no pós-Segunda Guerra
Mundial. Em termos dramatúrgicos, a acção dramática – tradicionalmente composta por cenas
que, porque necessária e evolutivamente orgânicas, se revelam interdependentes e inter-
consequentes – cede lugar à narração, à argumentação e à exposição de diversos quadros
(blocos) teatrais, os quais se revelam narrativamente autónomos e, por consequência,
permeáveis a díspares operações de combinação (montagem) entre eles. Cenograficamente, são
utilizados painéis e projecções que, através da exibição de material vário (documentos, citações
ou imagens) não só permitem a existência simultânea (leia-se montagem paralela) de
diferentes situações teatrais, dotadas de valores espácio-temporais distintos, mas também a
contradição ou a corroboração dos conteúdos discursivos verbalizados em palco.
Relativamente à função do actor, verifica-se – por oposição ao actor dramático, que se
metamorfoseia (de modo integral) na personagem representada, e que age e reage, em tempo
real, como se estivesse submergido na realidade ela mesma – uma desconstrução e uma
(re)montagem do conceito de personagem. Ao actor épico (apelidado de demonstrador) é
solicitado que assuma e se movimente segundo um duplo ponto de vista (o da personagem

12
Artista pertencente à vanguarda dadaísta e, posteriormente, à vanguarda surrealista.

7
representada e, simultaneamente, o do próprio actor)13, agindo e reagindo, assumidamente e
para o efeito, em função da repetição de um determinado acontecimento, ou seja, em função de
uma situação ocorrida numa temporalidade anterior à da sua exposição em palco. Já no que ao
espectador concerne, é proposto – contrariamente à proposta dramática, que promove a
experiência afectiva (comoção e catarse, alcançáveis através de um processo identificação com
as acções e com as personagens apresentadas), a imersão na ilusão teatral (teatro como
realidade e teatro como verdade absoluta) e, concludentemente, a recepção passiva, pela sua
parte, da informação teatralizada – o confronto com situações e com demonstrações que, de
modo algum, visam a ilusão (a artificialidade que lhes é inerentes é, deliberadamente, exposta).
Tais situações e demonstrações revelam-se portadoras de desenvolvimentos e de desenlaces
discutíveis (montáveis, desmontáveis e remontáveis), suscitando, assim e no espectador, o
pensamento e a reflexão sobre a matéria apresentada, e, por consequência, uma atitude activa,
idealmente traduzida na tomada de decisões e de posições. Como refere Brecht, “Não mais era
permitido ao espectador que, de boa fé, se identificasse com as personagens e se abandonasse
acrítica e apaticamente às emoções (das quais não retirava nenhuma consequência de ordem
prática)” (Brecht, 1930: 469).
Todos estas inovações teatrais desilusionistas – a saber: destruição das unidades
aristotélicas de tempo, de espaço e de acção; revelação da artificialidade do aparelho teatral e da
respectiva construção cénica; e quebra da coerência psicologizante (stanislavskiana) do
conceito de personagem – convergem para e constituem-se (n)aquilo a que Brecht denominou
de efeito de distanciamento (Verfremdungseffekt). Este efeito, ao convocar o sentido crítico e
dialéctico do espectador, sublinha as funções social e política do teatro, na medida em que
considera o homem não só enquanto objecto de investigação por excelência, mas também
enquanto realidade transformadora e transformável14. É, assim, que toda esta reorganização
conceptual e prática do fazer teatral permite que todas as variáveis que compõem o fenómeno
performativo sejam elevadas (ou reduzidas) a peças e a elementos altamente independentes,
passíveis de serem alvo de infinitos e profícuos processos de montagem: “[...] ao contrário da

13
“[...] o actor [...] deve tornar a personagem que representa numa terceira pessoa [...]” (Brecht, 1938: 473); “[o
actor] Nunca esquece e nunca deixa esquecer que não é a personagem mostrada, mas o demonstrador [...]. As
opiniões e os sentimentos do demonstrador não se confundem com as opiniões e os sentimentos da personagem
mostrada” (ibid.: 474).
14
“O objectivo deste efeito é fornecer ao espectador a possibilidade de exercer uma crítica fecunda, colocando-se
do lado de fora da cena para que adquira um ponto de vista social” (ibid.: 474).

8
obra dramática, uma obra épica deixa-se cortar, como com uma tesoura, em partes capazes de
continuarem a viver a sua vida própria” (ibid.: 468).
A par do pensamento sobre as práticas (implícitas) de montagem relativas aos fazeres
visual e teatral, surge o (explícito e inevitável) equacionar estético e conceptual da montagem
cinematográfica, sendo Lev Kuleshov um seus dos pioneiros percursores e o responsável pela
concepção da experiência posteriormente denominada de Kuleshov Effect. Tal experiência
consiste no intercalar sucessivo de uma mesma imagem – um homem (sujeito que deseja) –
com outras três – um prato de sopa, uma criança no interior de um caixão e uma mulher
sentada num divã (objectos de desejo)15. Este intercalar resultou, à data, em três distintas
interpretações referentes à imagem comum: um indivíduo esfomeado, um indivíduo abatido e
um indivíduo radioso, respectivamente. No entanto, não só nenhuma destas divergentes
interpretações corresponde à realidade, mas também pouco (ou nada) importa que o indivíduo
presente na imagem se encontrasse, de facto, esfomeado, abatido ou radioso. Isto porque não
existe uma real causa-efeito entre a imagem comum e as restantes, apenas uma ideia-hipótese
totalmente ficcional16, a qual é produzida pelo juntar (montar) de imagens não relacionadas.
Por esta razão, o experimento de Kuleshov afirma a natureza (potencialmente) ficcional de
qualquer sucessão de imagens. Segundo Sam Rohdie, tal resulta da conexão lógica interna que é
estabelecida entre as diferentes imagens, isto é, da relação que é estabelecida entre as suas
propriedades ficcionais de ordem narrativa – tensões dramática e psicológica (vertíveis em
sentimentos como são a fome, a tristeza e o contentamento) – e de ordem formal – a
montagem da (aparente) coexistência de diferentes imagens num espaço-tempo comum, o
fílmico: “[…] the man and the objects did not belong to the same temporal and spatial reality
to be subsequently fragmented, and the fragments then joined together in film. The only reality
for Kuleshov was that created by the editing (fictive, purely filmic)” (Rohdie, 2006: 27).
As evocação e sugestão inerentes à experiência de Kuleshov afiguram-se enquanto
cruciais premissas de trabalho para aquele que é a figura central da conceptualização da técnica
que é a da montagem: Serguei Eisenstein. O cineasta russo, aquando do seu estudo sobre o
material hieroglífico japonês, observa que a justaposição de dois ideogramas independentes
origina o emergir de um conceito particular17. Semelhantemente, constata Eisenstein que o

15
Ver anexo 2, vídeo 1.
16
“[…] as if the bowl of soup, not Kuleshov, and his arrangement of images determined the hunger on the actor’s
face” (Rohdie, 2006: 28).
17
“Eye + Water = Crying
Door + Ear = Eavesdropping

9
mesmo ocorre, por via da formulação de generalizações, aquando da presença humana face a
uma sobreposição-conflito de diferentes eventos, acontecimentos ou objectos: “Take, for
instance, a tomb in a graveyard. Put beside it a weeping woman in mourning and there can be
few who will not conclude: ‘a widow’” (Eisenstein, 1939a: 297). Por consequência, esta
dinâmica é transferida para a realidade da imagem em movimento, definindo-se o plano
cinematográfico enquanto bloco de construção base do cinema. Este último – muito embora
detenha em si mesmo e em potência uma multiplicidade de conteúdos – “[...] has in itself no
reality at all” (id., 1929: 178), ou seja, não existe, ontológica e cinematograficamente, per si.
Diz-nos Eisenstein que “[…] the desired image is not something ready-made but has to arise
or be born from something else” (id. 1939a: 309), que é o mesmo que afirmar que é
unicamente através dos processos de montagem e de justaposição que dois ou mais planos
cinematográficos independentes ascendem ao estatuto de cinema. Só aqueles (processos de
montagem e de justaposição) são capaz de activar as potências poética e discursiva inscritas
nestes (planos cinematográficos independentes), mediante a produção de colisões geradoras de
conceitos, de ideias, de material metafórico e, no limite, de conteúdo epistemológico18. De
referir, ainda, que o resultado produzido por este processo de montagem (o todo) não se
assume enquanto uma mera soma das partes (planos-realidades A e B) – “[…] the result of
juxtaposition always differs qualitatively (in dimension, or if you like in degree) from each
constituent element taken separately” (idib.: 297) –, mas sim enquanto uma relação específica
entre essas mesmas partes (um terceiro plano-realidade). Um exemplo paradigmático do que é
aqui explicitado reside no excerto fílmico da obra O Couraçado Potemkin (1925), de Serguei
Eisenstein, referente à escadaria de Odessa, no qual os planos aproximados e de pormenor
somente adquirem valores narrativos e dramáticos porque se encontram relacionados com,
interdependentes de e espácio-temporalmente situados através da utilização de planos gerais.
Infere-se, então, que tanto Kuleshov quanto Eisenstein, implícita ou explicitamente,
demonstram ou defendem que uma imagem (cinematográfica) não se comporta como se de
uma ilha se tratasse, já que o seu sentido e o seu valor comunicacionais se encontram
infinitamente dependentes da relação que esta co-cria com outras suas semelhantes; do

Child + Mouth = Screaming


Mouth + Dog = Barking
Mouth + Bird = Singing
Knife + Heart = Anxiety” (Eisenstein, 1929: 164).
18
“[…] any two sequences, when juxtaposed, inevitably combine into another concept which arises from that
juxtaposition as something qualitatively new” (id., 1939a: 297).

10
contexto que, juntas, constroem; e, incontestavelmente, dos processos de montagem que lhes
conferem existência(s).
Para terminar, importa ainda referir que todos os experimentos plásticos, teatrais e
cinematográficos anteriormente enunciados se revelam essenciais para compreender o modo
como as propriedades audiovisuais e narrativas respeitantes aos processos de montagem são
pensadas e realizadas no projecto a arte do não-retrato. Isto porque as mesmas ecoam, directa e
indirectamente, o pensamento formulado por Georges Didi-Huberman, particularmente
aquele forjado na obra Quand les images prennent position (L'œil de l’histoire, 1)
(detalhadamente dissecada e problematizada no capítulo subsequente), na qual o filósofo
francês mergulha no estudo e na investigação da prática e do pensamento brechtianos para –
colocando-os em relação não só com exemplos da história do cinema, mas também com obras
plásticas (nomeadamente dadaístas) – conceptualizar a montagem enquanto ferramenta
epistemológica, ou seja, enquanto ferramenta capaz de produzir conhecimento autêntico.

11
2. MONTAGEM ÉPICA: ENTRE BERTOLD BRECHT E GEORGES DIDI-HUBERMAN

Que nos dizem as imagens? O que pode ser nelas lido? Que verdades invisíveis pulsam
nos intervalos (espácio-temporais) que as separam e as relacionam? Estas são algumas das
questões às quais Georges Didi-Huberman, na sua Quand les images prennent position (L'œil
de l’histoire, 1), procura, tácita ou manifestamente, dar resposta, apropriando-se, para o efeito,
do conceito de montagem inerente aos pensamento e fazer teatrais brechtianos. Tais reflexões
hubermanianas – segundo as quais se pensam as imagens (nas suas dimensões iconográfica,
política e histórica) e as suas inter-relações (montagens) enquanto realidades epistemológicas,
por oposição à perspectiva platónica, que as desloca para o domínio da ilusão e do simulacro –
urgem, pois, ser dissecadas, já que consubstanciam a especificidade narrativa inerente ao
processos de montagem audiovisuais mobilizados no projecto a arte do não-retrato.
Diz-nos Huberman que “Para saber hay que tomar posición” (Didi-Huberman, 2008:
11), tomada de posição esta que implica que o sujeito (agente que procura saber) efectue –
consciente, responsável e paralelamente – um movimento de aproximação (circunscrição de
um dentro de campo) e um movimento de afastamento (delimitação de um fora de campo)
relativamente ao objecto (matéria que se procura saber). Esta implicação deriva do facto de
qualquer posicionamento fundado, de modo exclusivo, num destes dois extremos se revelar,
em termos epistémicos, vazio e inútil19. É referido, então, que o exemplo por excelência de uma
tomada de posição se traduz na figura do exilado, designadamente na figura de Brecht,
aquando do seu exílio político durante a Segunda Guerra Mundial (1933-48):

[...] Brecht […] consiguió hacer su posición de exilio un trabajo de escritura y


de pensamiento, una heurística de la situación por la que atravesaba, la
situación de guerra […]. Expuesto a la guerra, pero ni demasiado cerca (no le
movilizaron a los campos de batalla) ni demasiado lejos (padeció, aunque fuera
de lejos, numerosas consecuencias de esta situación), Brecht practicó un
enfoque de la guerra, una exposición de la guerra que fue a la vez un saber, una
toma de posición y un conjunto de elecciones estéticas absolutamente
determinantes. (ibid.: 14)

Assim, o dramaturgo, encenador e poeta alemão, por considerar o material jornalístico


(textual e imagético) produzido – através do qual se informa, diariamente, sobre a realidade
bélica (nomeadamente a alemã) – tendencioso e subordinado a interesses políticos e

19
A extrema aproximação conduz à imersão absoluta e, por outro lado, o extremo afastamento conduz à
abstracção pura.

12
financeiros, afirma, através da decomposição, da reescrita e da (re)montagem desse mesmo
material, a pluralidade significante que um qualquer documento (imagem) encerra.
Duas são as obras brechtianas (de pendor diarístico-literário) onde tal afirmação se
expressa de modo evidente: Arbeitsjournal (ou Diario de trabajo) (1938-55) e Kriegsfibel (ou
ABC/Abecedario de la guerra) (1955). Na primeira, são (con)fundidos os conceitos de
historicidade (discurso da História), de actualidade (discurso do homem) e de intimidade
(discurso do próprio Brecht), mediante a construção (montagem) de hipóteses anacrónicas e
contraditórias resultante das constantes quebras da progressão cronológica daquilo que é
relatado. Textualmente, Arbeitsjournal é composto por reflexões oriundas do cruzamento da
história pessoal de Brecht (diário íntimo), das histórias dramáticas por ele urdidas (diário
artístico) e da História política mundial (diário informativo), sendo, deste modo, esbatidas as
fronteiras entre o privado e o público, a ficção e o documento, e a literatura e a realidade.
Visualmente, a mesma obra arquitecta, como se de um dossier fotográfico se tratasse e a partir
da manipulação das imagens que lhe dão corpo, múltiplos pontos de vista e copiosas
reconfigurações ideológico-visuais sobre uma mesma realidade. Recusa-se, portanto, o
discurso dedutivo e demonstrativo da exposição linear dos factos, e efectua-se a apologia de um
saber crítico e (re)construído: “[…] [El] Diario de trabajo se presenta como un gigantesco
montaje de textos con los estatus más diversos y de imágenes igualmente heterogéneas20 que
recorta y pega, aquí y allá, en el cuerpo o el flujo de su pensamiento asociativo” (ibid.: 31)21.
Já em Kriegsfibel, Brecht elabora um atlas fotográfico, composto por imagens de guerra
e pelas suas respectivas legendas originais, as quais são inter-relacionadas e forçadas a dialogar
com pequenos epigramas (composições poéticas). Tais diálogos e relações – (quase) actos
criativos e autênticas operações de montagem – revelam-se capazes de dialectizar o modo
como as imagens em questão são lidas e interpretadas, já que as insuflam de renovados níveis
de legibilidade e que “Impide[n] leer el poema de Brecht independientemente de la imagen que
comenta22, o a la que incluso parece ‘responder’23[;] […] impide[n] que al leer la leyenda

20
“[…] reproducciones de obras de arte, fotografías de la guerra aérea, recortes de prensa, rostros de sus prójimos,
esquemas científicos, cadáveres de soldados en los campos de batalla, retratos de dirigentes políticos, estadísticas,
ciudades en ruinas, escenas bélicas, naturalezas muertas, gráficos económicos, paisajes, obras de arte víctimas del
vandalismo de la violencia militar […]” (Didi-Huberman, 2008: 31).
21
Ver anexo 1, figuras 5 e 6.
22
Ver anexo 1, figura 7, exemplo de montagem interna (efectuada no interior da imagem em questão).
23
Ver anexo 1, figuras 8 e 9: exemplo de montagem externa [efectuada mediante a relação que as imagens em
questão estabelecem no interior do espaço físico e material (conjunto de páginas) que é o da obra Kriegsfibel] e
onde a segunda (refúgios anti-aéreos) se constitui enquanto consequência directa (leia-se resposta) da (à)
primeira (guerra aérea).

13
‘original’, podamos creer que estamos informados […] sobre lo que representa la fotografía.
Introduce[n] […] una duda saludable sobre el estatus de la imagen sin que su valor documental
sea […] cuestionado” (ibid.: 48 e 49). Isto porque, defende o filósofo francês, as imagens não
são realidades opacas: “[...] para saber hay que saber ver” (ibid.: 41)24. Urge, portanto, analisá-
las, interpretá-las, decompô-las e remonta-las, para que seja destruída a errónea evidência que
enclausuram. Eis, pois, o objectivo último da obra Kriegsfibel, na qual se volvem visíveis os
paradoxos e os conflitos que, silenciosamente, jazem entre as distintas dimensões espácio-
temporais que uma mesma imagem (pode) comporta(r): a histórica (decorrente do facto que
documenta, ocorrido num tempo e num espaço precisos), a fotográfica (decorrente do intuito
da sua produção) e a física (decorrente da montagem operada por Brecht, aquando da sua
reprodução) 25.
Assim, tanto Arbeitsjournal quanto Kriegsfibel – cujos processo de elaboração ecoam
as e derivam das premissas inerentes ao fazer teatral brechtiano (explicitadas no capítulo
anterior) – se transfiguram enquanto obras-exemplos para a reflexão que Huberman realiza em
torno do conceito de montagem. Deste modo, é enunciado que tais obras-exemplos operam
segundo um princípio heurístico – o épico –, o qual pressupõe o carácter lacunar e não
absoluto da História (leia-se verdade histórica) – “[…] el carácter no ideal de la historia, es
decir la impureza innata – la incompletud, el ‘carácter contradictorio’, conflictual, lacunario –
de toda metamorfosis histórica” (ibid.: 74) –, e, simultaneamente, a sujeição daquela (da
História) a diferenças-conflitos internas. Por esta razão, os propósitos primeiros do princípio
mencionado são os de extinguir a ilusão de que existe uma verdade histórica absoluta por
descobrir e, em paralelo, de volver identificáveis e exibíveis as diferenças-conflitos que habitam
o interior dessa mesma ilusão: “No se muestra, no se expone más que disponiendo: no las cosas

24
Ver anexo 1, figura 10: “[...] un soldado americano está ante el cadáver del soldado japonés […]. El observador
ve el triunfo sobre el Japón aliado de Hitler. Pero la foto contiene otra verdad más profunda: el soldado americano
es el instrumento de una potencia colonial en lucha contra otra potencial colonial” (Ruth Berlau apud ibid.: 41).
25
“Uno percibe que la placa misma [placa nº 47 (ver anexo 1, figura 10)], en su totalidad, se ha convertido en el
escenario de un encuentro entre tres espacios o tres temporalidades heterogéneas: el primer espacio-tiempo es el
del acontecimiento que, un día de 1943, puso a un japonés – aunque se observa que hay por lo menos dos
cadáveres más en esa hermosa playa del Pacífico – a merced del soldado americano. El segundo es el de la revista
para la que trabajaba el fotógrafo y en la que el tratamiento de la imagen va a la par de una actividad de
propaganda (sensible en la indicación, no verificable, de que el americano sólo ha matado al japonés en legítima
defensa: ‘El japonés se había escondido en una lancha de desembarco y disparó contra las tropas
estadounidenses’). El tercer teatro de operaciones es el que Brecht organiza por su propia cuenta: es el espacio
negro de la placa misma desde donde surge, en contrapunto a la imagen, como en los letreros de las antiguas
películas mudas, el texto del poema” (ibid.: 48).

14
mismas – ya que disponer las cosas es hacer con ellas un cuadro o un simple catálogo –, sino
sus diferencias, sus choque mutuos, sus confrontaciones, sus conflictos” (ibid.: 97).
Tais identificação e exposição efectuam-se, bem entendido, por meio do mecanismo
que é a montagem, o qual privilegia a divisão e a desordem do conteúdo (imagético)
mobilizado: “[…] un trabajo destinado, si se me permite, a dysponer las cosas, a desorganizar
su orden de aparición. […] Esto es el montaje: no se muestra más que desmembrando, no se
dispone más que dysponiendo primero. No se muestra más que mostrando las aberturas que
agitan a cada sujeto frente a todos los demás” (ibid.: 97). Assim, para o efeito e se atentarmos
nas obras Arbeitsjournal e Kriegsfibel, verifica-se a criação (montagem) e a exposição de uma
rede descontínua de relações visuais inadvertidas e não expectáveis. Esta rede é elaborada a
partir do multiplicar de pontos de vista (contraditórios) relativos ao objecto em questão; da
promoção, no interior do mesmo, de desvios, de interrupções e de saltos narrativos (lato
sensu); do nele fomentar a coexistência, à semelhança das práticas de montagem dadaístas, de
elementos díspares; e, de acordo com os ensinamentos forjados por Eisenstein, da colisão e do
embate de diferentes fragmentos de uma mesma realidade. Tal rede, em conformidade com os
pressupostos épicos, rejeita, assim, a cronologia factual e documental, isto é, a cronologia
dramática (narrativa e linear), dos acontecimentos (leia-se imagens referentes à evolução dos
eventos bélicos). A mesma confessa-se, simultaneamente, anacrónica, visto que desmonta e
remonta, de modo inevitável, as dimensões e as ordens espacial e temporal das imagens
convocadas26. Esta disposição (montagem) anacrónico-visual dos acontecimentos favorece a
produção de um afastamento entre o leitor e obra – efeito épico de distanciamento
(Verfremdungseffekt) –, possibilitando, deste modo e ao primeiro, aceder às contradições que
operam no seio da História: “Distanciar es demostrar mostrando las relaciones de cosas
mostradas juntas y añadidas según sus diferencias” (ibid.: 81). Tal verifica-se uma vez que
aquela (disposição anacrónica e visual dos acontecimentos) redefine a percepção (visual)
habitual que aquele (leitor) detém, em hipótese, sobre as relações que se estabelecem no
interior da História.
Se, segundo Huberman, o exemplo por excelência de uma tomada de posição se
consubstancia na figura do exilado, então o efeito Verfremdungseffekt – quer através da crítica
e da destruição da ilusão teatral (anteriormente explicitadas), quer, concomitantemente,

26
“El montaje es una exposición de anacronías porque precisamente procede como una explosión de la
cronología. El montaje corta las cosas habitualmente reunidas y conecta las cosas habitualmente separadas” (ibid.:
159).

15
através do assumir da artificialidade do processo de montagem anacrónica utilizado, capaz
gerar um novo modo de ler (leia-se ver) a História27 – transige, por consequência e por
extensão, que tanto o espectador de teatro épico quanto o leitor de obras como Arbeitsjournal e
Kriegsfibel assumam, eles próprios, uma posição equivalente à do exilado – posição crítica e de
observação – relativamente ao espectáculo visualizado ou à obra examinada, respectivamente:
“En este sentido, el distanciamiento es una operación de conocimiento que propone, por los
medios del arte, una posibilidad de mirada crítica sobre la historia: ‘La finalidad del efecto
distanciador consistía en procurar al espectador una actitud analítica y crítica frente al proceso
representado […]’” (ibid.: 79).
O carácter crítico de tal posição deriva, pois, do facto de o montador (autor) apenas
dispor e desorganizar – e nunca explicar – a informação (imagens) em causa, ou seja, de
apresentar as insuficiências, as descontinuidades e os intervalos inerentes à disciplina que é a
História, sendo a compreensão dialética das relações invisíveis resultantes dessas mesmas
disposição e desorganização delegada ao leitor:

[…] como en los montajes explosivos de Einstein y de Raoul Hausmann, la


dialéctica brechtiana es […] singular, parcial, incompleta, pasajera como una
estrella fugaz. El observador de los documento pegados en las placas de la
Kriegsfibel no tiene ‘la verdad’ a su disposición, sino que ve bengalas, bribas,
trocitos de verdad dispersarse aquí y allá en la ‘dys-posición’ de las imágenes,
de tal suerte que no es espectador más que haciéndose constante expectador de
la verdad en juego […]. (ibid.: 109 e 110)

Reunidas todas as condições necessárias e segundo a perspectiva que Huberman


elabora relativamente ao pensamento épico brechtiano, é permitido ao leitor, mediante uma
tomada consciente de posição relativamente à matéria (composições imagéticas) por ele
observada28, formular e adquirir novos modos de pensar, de interpretar, de problematizar e de
conhecer uma mesma realidade, novos modos estes que se decretam enquanto consequências
directas e exclusivas das operações de montagem obradas por Brecht: “[…] el montaje procede
[…] como vías abiertas, caminos hacia una nueva manera de pensar la historia de los hombres
y la disposición de las cosas. […] Es la nueva posición recíproca de los elementos del montaje

27
“Mostrar que se muestra no es mentir sobre el estatus epistémico de la representación: es hacer de la imagen una
cuestión de conocimiento y no de ilusión” (ibid.: 77).
28
Uma das limitações do pensamento brechtiano reside no facto de, dadas as funções social e política que o seu
autor atribui à actividade artística, se equacionar toda a operação de montagem enquanto um acto político e, por
extensão, qualquer tomada de posição enquanto uma tomada de partido: “Brecht ve en la toma de partido
[comunista] el objetivo natural de toda toma de posición […]” (ibid.: 143).

16
la que transforma las cosas, y es la transformación misma la que trae un pensamiento nuevo”
(ibid.: 145).
Assim, Huberman, à semelhança de Brecht, não nega que uma imagem seja um
documento; apenas afirma que tal não significa que este (estatuto documental da imagem) seja
intocável, estanque e unívoco, isto é, que este seja detentor de valores epistémico-
interpretativos absolutos. Conclui o filósofo francês, então, que uma imagem não só é uma
realidade visual por definição transformável, mas também uma generosa hóspede de ímpares
multiplicidades significantes e de infinitas pluralidades discursivas, as quais que se volvem
evidentes, visíveis e cognoscíveis aquando da sujeição daquela (da imagem) a operações de
montagem:

He aquí a lo que hay que renunciar: a que la imagen sea ‘una’, o que sea ‘toda’.
Reconozcamos más bien la potencia de la imagen como lo que la destina a no
ser nunca ‘la una-imagen’. Como lo que la destina a las multiplicidades, a las
separaciones, a las constelaciones, a las metamorfosis. A los montajes, por
decirlo todo. A los montajes que saben escandir para nosotros las apariciones y
las deformaciones: que saben mostrarnos en las imágenes cómo el mundo
aparece, y cómo se deforma. Es aquí donde al tomar posición en un montaje
dado, las diferentes imágenes que lo componen – al descomponer su cronología
– pueden enseñarnos algo diferente sobre nuestra propia historia. (ibid.: 317)

É esta equação – montagem (da imagem) enquanto ferramenta epistemológica


(conhecimento histórico) – que é convocada, aos níveis audiovisual e narrativo, para o projecto
artístico a arte do não-retrato. Para o efeito, os alicerces edificadores de tal equação são, assim,
aplicados e transpostos para o domínio da criação artística, aplicação e transposição estas
(explicitadas no capítulo subsequente) que me permitem pensar e trabalhar a montagem
(audiovisual) enquanto ferramenta narrativa (conteúdo ou conhecimento ficcional).

17
3. MONTAGEM NARRATIVA NÃO DRAMÁTICA OU A ARTE DO NÃO-RETRATO
3.1. Dramaturgia audiovisual e conceptual

A reflexão hubermaniana relativa ao conceito de montagem (explicitada no capítulo


anterior) é, através da concretização da componente prático-artística decorrente da presente
investigação, transferida, de modo problemático, para a esfera audiovisual. Assim e para o
efeito, é definida uma dramaturgia audiovisual e adoptada uma metodologia conceptual no que
à técnica que é a da montagem concerne. Estas últimas, em estreita relação com a dimensão
narrativa inerente ao projecto a arte do não-retrato, assumem os pressupostos 1. de que a
matéria audiovisual, contrariamente ao expectável, não auto-congrega informação absoluta
(não se auto-justifica), mas antes informação relativa, cujo emergir se encontra dependente do
modo como essa mesma matéria é montada e inter-relacionada; e 2. de que é legítimo e
possível, através do processo de montagem (audiovisual), transformar e multiplicar a
identidade, o valor e o estatuto diegéticos e narrativos de uma mesma imagem e de um mesmo
som.
Os três objectos que compõem o projecto artístico aqui em análise propõem-se, deste
modo, a explorar e a afirmar os mecanismos de montagem que lhe são intrínsecos enquanto
ferramentas de criação artística, geradoras, per si, de discurso e de sentido conceptuais. Tais
exploração e afirmação são concretizadas mediante o inter-relacionar das especificidades que
pautam os processos de montagem visual, sonora e textual mobilizados para a e na construção
do projecto aqui em estudo, isto é, das suas visibilidade, audibilidade e, socorrendo-me da
terminologia proposta por Brecht e por Huberman, epicidade. Uma incontornável referência
para este procedimento de epicização visual, sonora e textual reside na obra Histoire(s) du
Cinéma (1988-98), de Jean-Luc Godard, na qual o seu autor revela (leia-se epiciza) duplamente
o cinema: por um lado, ensaia e reescreve, poeticamente e segundo uma lógica arquivista, a
história da sétima arte, recorrendo, para o efeito, aos meios que lhe são específicos (material
audiovisual oriundo de obras cinematográficas histórico-simbólicas); e, por outro, por meio da
utilização de um complexo processo de montagem (visual, sonora e textual) polifónico, é capaz
de expor a artificialidade inerente a qualquer processo de montagem (audiovisual):

As coisas complicam-se ainda mais na medida em que Godard, no seu trabalho


[Histoire(s) du Cinéma], convoca incessantemente palavras para serem lidas,
vistas ou ouvidas. A dialéctica deve, assim, ser entendida como uma colisão

18
desmultiplicada de palavras e de imagens: as imagens chocam entre si para que
surjam palavras, as palavras chocam entre si para surjam imagens, as imagens e
as palavras entram em colisão para que o pensamento advenha
[audio]visualmente. (id., 2004: 177)

Assim e visualmente, o projecto a arte do não-retrato opõe-se às práticas de montagem


visual que caracterizam o fazer cinematográfico dominante. Amplamente devedoras dos
pressupostos estéticos e discursivos decorrentes do cinema clássico narrativo, tais práticas de
montagem visual, ao produzirem e ao assegurem a continuidade, a linearidade, a
homogeneidade e a diacronia espácio-temporais e narrativas do objecto fílmico em questão,
determinam enquanto primordiais objectivos, como identifica Basilico, a transmissão
verosímil e convincente de um argumento (história), e, por consequência, o substituir do seu
carácter inevitavelmente fragmentário por uma ilusão de unidade:

To achieve this aim [to tell a story convincingly], all the tricks of the trade are
brought to bear, possibly the most important one being continuity editing, a
prevalent and fundamental technique that privileges the narrative of the movie
over the imagery or form that the filmmaker may create [and that] makes
different scenes come together smoothly, without calling undue attention to the
process of fusion. (Basilico, 2004: 30)

Em termos visuais, o presente projecto opõe-se, portanto, à paradigmática montagem


cinematográfica, “[...] que não se percebe, que se apaga como ligação, que institui o filme
inteiro como um grande bloco homogêneo” (Dubois, 2004: 76), isto é, a qualquer operação de
montagem visual que se revele silenciosa, invisível e ilusória, e, por isso, contígua, de acordo
com o que foi exposto nos capítulos anteriores, a dinâmicas dramáticas e não épicas.
Privilegiam-se, então, as práticas de montagem visual surgidas no seio das artes plásticas e
videográficas29, nas quais é valorizada a plasticidade da imagem30 e nas quais “[...] as dimensões
de pesquisa e de ensaio se revelam preponderantes [...]” (ibid.: 77). Isto porque as práticas
mencionadas tornam os processos de montagem visíveis e épicos (nos sentidos brechtiano e
hubermaniano do termo), já que a fragmentação e a anacronia que lhe são inerentes são,

29
“Se [...] o cinema esteve durante décadas preso à lógica dramatúrgica (literária e teatral) [...], hoje ele parece
superar essa fatalidade estética. Cada vez mais, vemos surgir [...] uma outra e renovada categoria que não busca
unicamente a beleza da história e do drama, mas registos singulares, produzidos no limiar entre as artes [...]”
(Gonçalves, 2014: 13).
30
Não obstante o facto de as mesmas recorrerem, constantemente, ao vocabulário cinematográfico e de, não raras
vezes, se apropriarem do modelo-estratégia narrativo-ficcional que lhe é modelar.

19
assumidamente, expostas31: “[...] A mixagem [montagem videográfica] permite enfatizar o
princípio ‘vertical’ da simultaneidade dos componentes. Tudo está ali ao mesmo tempo no
mesmo espaço. O que a montagem [cinematográfica] distribui na duração da sucessão de
planos, a mixagem videográfica [montagem videográfica] mostra de uma só vez na
simultaneidade da imagem multiplica e composta” (ibid.: 90).
Já em termos sonoros, o projecto a arte do não-retrato recusa, regra geral e segundo a
categorização cunhada por Michel Chion, a exploração do som na sua dimensão casual32, a
qual concebe, pensa e legitima a matéria sonora enquanto mera inevitabilidade e simples
evidência da(s) sua(s) fonte(s) de emissão/produção, ou seja, enquanto realidade auto-
referencial, detentora de propriedades exclusivamente indiciais, representacionais e
ilustrativas: “[…] like a shadow, they [the sounds] appeared to be completely explained by
reference to the objects that gave them birth: a metallic clang was always ‘cast’ by the hammer,
just as the smell of baking always came from a loaf of fresh bread” (Walter Murch apud
Crocker, 2007: 60). Tal modalidade sonora – muito embora a equivalência que a mesma
pressupõe não seja, copiosas vezes, real, mas antes (re)criada em pós-produção33 – é aquela
que, usualmente, é favorecida pelo e no fenómeno cinematográfico. Através do recurso a
processos de sincronização entre som e imagem, a modalidade sonora enunciada contribui não
só para a concordância e para a coesão da estrutura narrativa que lhe é prototípica, mas
também para o emergir de uma montagem sonora silenciosa, invisível e ilusória, e, por isso e
dado tudo o que foi enunciado nos capítulos precedentes, dramática e não épica.
Privilegia-se, assim e no presente projecto, a exploração da matéria sonora na sua
dimensão reduzida 34 , volvida possível aquando do surgir de equipamentos de gravação
sonora35 e capaz de atribuir à matéria sonora um estatuto artístico, já que lhe outorga valores

31
Ver anexo 1, figuras 11 e 12, sendo a primeira [a obra Leap Into the Void (1960), de Yves Klein] uma metáfora
para a montagem cinematográfica e a segunda (a documentação do processo de criação da mesma obra) uma
metáfora para a montagem videográfica.
32
“Causal listening, the most common, consists of listening to a sound in order to gather information about its
cause (or source). […] When we cannot see the sound's cause, sound can constitute our principal source of
information about it” (Chion, 1990: 25 e 26).
33
“Most of the time we are dealing not with the real initial causes of the sounds, but causes that the film makes us
believe in” (ibid.: 28).
34
“Pierre Schaeffer gave the name reduced listening to the listening mode that focuses on the traits of the sound
itself, independent of its cause and of its meaning. Reduced listening takes the sound – verbal, played on an
instrument, noises, or whatever – as itself the object to be observed instead of as a vehicle for something else”
(ibid.: 29).
35
“With the invention of recording machines, sound lost its immediacy. […] The tape recorder made it possible
to disembed sounds from their original sources and [to] reembed them in another time and place, [and to]
mix[ed] [them] together with other, wholly unrelated sounds” (Crocker, 2007: 60).

20
plásticos e propriedades estéticas auto-suficientes 36 . Tais valores e propriedades são, no
projecto a arte do não-retrato, mobilizadas, deste modo, com o propósito de audibilizar, de
artificializar, de expor e, por extensão e segundo a terminologia brechtiana e hubermaniana, de
epicizar os processo de montagem sonora que o definem. Não se convoca, pois, a matéria
sonora enquanto evidência da matéria imagética que lhe é simultânea, mas antes, e devido ao
facto de esta ser descontextualizada e anacronizada37, são realçam as suas potencialidades
expressivas e plásticas. Neste sentido, importa atentar nos experimentos sonoros
protagonizados por John Cage38 (uso de instrumentos não convencionais e de sons quotidianos
na e para a criação musical); na obra Dialtones (a Telesymphony) 39 (2001-02) (sinfonia
produzida exclusivamente a partir de sons provenientes dos telemóveis dos espectadores), de
Golan Levin e Scott Gibbons; ou na afirmação da arte sonora enquanto disciplina artística.
Textualmente, duas são as operações de montagem efectuadas: uma de índole literária
e outra de índole dramatúrgia. A primeira reside no método de construção textual inerente e
comum a todos os objectos audiovisuais que compõem o tríptico a arte do não-retrato. Estas
construções resultam, à semelhança das práticas de redacção protagonizadas pelo director
artístico da companhia inglesa Forced Entertainment, Tim Etchells40, de processos como são os
da colagem, os da apropriação e os da reescrita de fragmentos textuais oriundos de diversa
matéria literária, ou seja, do relacionar (anacrónico) de distintos discursos literários (narrativo,
poético e filosófico) não só provenientes de diferentes geografias e decorrentes de distintos
períodos histórico-temporais, mas também frutos de desiguais tradições estilístico-literárias. Já
a segunda operação de montagem textual reside no facto de todas as narrativas constituintes do
projecto aqui em análise (comunicadas via mecanismos de voz-off) adoptarem concepções
temporais específicas, paradoxais e não lineares, como aquelas forjadas pelo autor argentino
Jorge Luis Borges41:

36
“When sounds no longer refer back to their sources, we are able to listen to them not for what they reveal about
the world, but for their own properties as sensations” (ibid.: 65).
37
No projecto a arte do não-retrato, nenhum dos materiais sonoros utilizados corresponde a material captado
aquando do processo de recolha/registo imagético – verificando-se, por esta razão, a inexistência de som directo e
de referência –, mas antes a material proveniente de plataformas disponíveis online (www.youtube.com e
www.freesound.org).
38
Ver anexo 2, vídeo 2.
39
Ver anexo 2, vídeos 3 e 4.
40
“[...] for me writing was so often about collecting, sifting and using from bits of other people’s stuff – copied
language like precious stones” (Etchells, 1999: 101).
41
Nomeadamente nas obras Funes ou a Memória (1942) (mobilizada aquando da construção dramatúrgica d’O
Retrato de Irineu), O Aleph (1949) (mobilizada aquando da construção dramatúrgia d’O Retrato de Mónica) e
Pierre Menard, Autor do Quixote (1939) (mobilizada na construção dramatúrgia d’O Retrato de Ulisses).

21
[...] o que sucede no espaço paradoxal das diferentes ‘mesas de Borges’ só é
possível porque um tempo paradoxal afeta todos os acontecimentos que nele
surgem. Esse tempo não é literário, nem contínuo, nem infinito: mas
‘infinitamente subdivisível’ e fragmentável, tempo que não pára de se
desmontar e remontar às suas condições mais imemoriais. [...] É assim que
‘cada presente se divide em passado e em futuro, até ao infinito’, segundo um
‘labirinto’ de que Borges terá certamente inventado várias formas [...]. (Didi-
Huberman, 2011: 64 e 65).

Tais concepções temporais insuflam, deste modo, as narrativas por mim elaboradas de
inegáveis níveis de epicidade (nos sentidos brechtiano e hubermaniano do termo), na medida
em que, ao estilhaçarem e ao fragmentarem a variável que é o tempo (narrativo), promovem,
consequente e simultaneamente, a visível (e quase necessária) aparição de múltiplas
(re)montagens anacrónicas deste último.
Todos os processos de epicização (visual, sonora e textual) anteriormente enunciados
culminam, assim, no sugerir de uma tipologia de montagem apelidada de montagem narrativa
não dramática, cujas operações actuam enquanto verdadeiros desdobramentos do efeito
brechtiano Verfremdungseffekt. Isto porque as mesmas sublinham a audibilidade e a
visibilidade que pautam os processos de montagem referentes ao tríptico audiovisual a arte do
não-retrato. Tal possibilita, desta feita e mediante a apropriação da terminologia teorizada por
Huberman, que os processos de montagem operados – e, por extensão, as imagens e sons que
os compõem – assumam uma posição e produzam um discurso narrativos particulares
(explanados no decorrer dos subcapítulos subsequentes).
Paralelamente a tudo o que foi anteriormente exposto e em termos conceptuais, o
projecto aqui em análise propõe, à semelhança da prática artística obrada por Cindy
Sherman42, uma reflexão sobre a ideia-conceito de retrato (lato sensu), reflexão esta que se
traduz na criação de três vídeo-retratos que não só desenham figuras intangíveis, destituídas de
corpo e de lugar, e privadas de sons e de imagens que se possam dizer suas, mas também se
constituem (subtilmente) enquanto negação deles próprios. Esta negação é construída
mediante o estabelecer de uma estreita relação (examinada em detalhe nos subcapítulos
seguintes) entre a) as concepções identitário-narrativas elaboradas (as quais findam no preciso
lugar que lhes dá origem); b) a especificidade dos mecanismos de montagem audiovisual
utilizados (a saber: a acumulação e repetição, n’O Retrato de Irineu; a descontextualização e a

42
Ver:
<http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysherman/#/3/>, acedido em Dezembro de 2015.

22
reorganização, n’O Retrato de Mónica; e a manipulação temporal e o loop, n’O Retrato de
Ulisses); e c) a problematização efectuada em torno do binómio memória-esquecimento,
resultante da convocação (explícita e/ou implícita) de figuras oriundas da mitologia greco-
romana (a saber: Minotauro, no caso d’O Retrato de Irineu; Lete, no caso d’O Retrato de
Mónica; Lotófagos e Ulisses, no caso d’O Retrato de Ulisses).
Importa, por fim, mencionar que a negação que é operada e que se faz operar no
interior de cada um dos objectos constituintes do projecto a arte do não-retrato evoca o
imaginário paradoxal e contraditório presente na obra Untitled Painting43 (1965), de Art &
Language (Michael Baldwin e Mel Ramsden), na qual o reflexo do espectador, aquando da
aproximação física deste último à obra, se transfigura na própria matéria artística (leia-se
retrato); e na obra La Reproduction Interdite44 (1937), de René Magritte. São estas mesmas
paradoxalidade e auto-negação as dinâmicas que justificam o título do projecto, o qual, no seu
todo, pensa a inevitável finitude da condição humana e, concomitantemente, concebe a criação
artística (formato que é o vídeo-retrato) enquanto (possível) sobrevivente do transpor dos
ponteiros de um qualquer relógio. Tudo isto porque “Toute production artistique, tout geste
artistique s’inscrit dans une résistance à la disparition, qui est notre condition, notre
inéluctable condition” (Parfait, 1999).

43
Ver anexo 1, figura 13.
44
Ver anexo 1, figura 14.

23
3.2. O Retrato de Irineu

A componente narrativa inerente ao objecto O Retrato de Irineu45 – comunicada


através da figura que é a do narrador – resulta da apropriação e da montagem textuais
efectuadas a partir do conto Funes ou a Memória (1942), de Jorge Luis Borges, e do poema
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio (1914), de Ricardo Reis (Fernando Pessoa).
Desenha-se, então, o invulgar perfil do protagonista, Irineu, o qual detém uma memória
prodigiosa e infalível, sendo-lhe impossível olvidar. Simultaneamente, é sugerido e traçado,
através do material audiovisual mobilizado, um paralelismo entre Irineu e um qualquer
dispositivo de vigilância citadina, uma vez que ambos, invariavelmente e perante a ausência de
critérios de selecção e/ou de preferência, tudo registam:

Somewhere there is a video camera that has not been shut off for the last twenty
years. Its rigid, unblinking eye has tirelessly been scanning a parking lot
someplace, silent witness to all the comings and goings of the past two decades.
[…] It has seen the unbroken procession of days and nights, the cyclic changes
in the sun and moon, the growth of trees, and the perpetual variations of
weather with the accumulation of its harsh marks. […] However, this perpetual
observer has no stories to tell, no store of wisdom, no knowledge of the grand
patterns. Locked within a great immutable Now, it has no sense of past or
future. (Viola, s.d.: 477)

Assim e à semelhança do dispositivo de vigilância descrito por Bill Viola, Irineu, dada a
peculiar condição que o delimita (acima enunciada), encontra-se inscrito numa temporalidade
presente asfixiante. Não lhe é possível experienciar o tempo nas suas dimensões cronológica e
linear, mas sim apenas a inevitável (con)fusão das temporalidades presente, passada e futura.
Esta (con)fusão é ecoada pela obra Present Continuous Past(s)46 (1974), de Dan Graham, na
qual o dispositivo vídeo-espacial elaborado dilata e subverte as categorias temporais, mediante
a criação e a acumulação contínuas de imagens que não só se multiplicam autónoma e
espacialmente, mas que também assumem distintos estatutos temporais47. Em O Retrato de

45
Ver apêndice 1.
46
Ver anexo 1, figuras 15 e 16; e anexo 2, vídeo 5.
47
“The mirrors reflect present time. The video camera tapes what is immediately in front of it and the entire
reflection on the opposite mirrored wall. The image seen by the camera (reflecting everything in the room)
appears eight seconds later in the video monitor (via a tape delay placed between the video recorder, which is
recording, and a second video recorder, which is playing the recording back). If a viewer's body does not directly
obscure the lens's view of the facing mirror the camera is taping the reflection of the room and the reflected image
of the monitor (which shows the time recorded eight seconds previously reflected from the mirror). A person
viewing the monitor sees both the image of himself or herself of eight seconds earlier, and what was reflected on

24
Irineu, contemplam-se, pois, as certezas da reconstrução e da presentificação de toda e
qualquer temporalidade passada e/ou futura. O tempo (narrativo) dito presente, no objecto
aqui em análise, não mais é do que um somatório-acumulação – próximo do processo visual
inerente à obra Nijuman no borei (200000 fantômes)48 (2007), de Jean-Gabriel Périot – de tudo
o que, em teoria e em termos narrativos, foi passado e de tudo o que, em potência e em termos
narrativos, será futuro.
Deste modo e se se pensar Irineu à luz das propriedades e das potencialidades que
Susan Sontag atribui à fotografia, o protagonista da obra aqui em exame revela-se enquanto um
meio capaz de registar, de re-presentificar e, por consequência, de imortalizar tudo aquilo que
experiencia, ou seja, tudo aquilo que, por definição, se confessa efémero: “After the event has
ended, the picture will still exist, conferring on the event a kind of immortality (and
importance) it would never otherwise have enjoyed” (Sontag, 1971: 11). Porque “To collect
photographs is to collect the world” (ibid.: 3), Irineu transfigura-se num colossal arquivo
(mnemónico), o qual – similarmente àquele que é relatado por Alain Resnais (Biblioteca
Nacional de França), na sua obra Toute la mémoire du monde49 (1956) – se encontra em
perpétua expansão. Diz-nos Resnais, no excerto inicial do filme em questão, que “Parce que
leur mémoire est courte, les homes accumulent d’innombrables pense-bêtes. Devant ces soutes
pleines à craquer, les hommes prennent peur, peur d’être submergé par cette multitude d’écris,
par cet amas de mots. Alors, pour garantir leur liberté, ils construisent des forteresses”. No
entanto, tal liberdade não é passível de ser experimentada por Irineu, uma vez que este se volve
prisioneiro da sua inevitável condição (incapacidade de olvidar e eterna propensão para
arquivar), a qual, porque tragicamente incorrigível, não só o metamorfoseia num mero
espectador (passivo) do mundo, mas também desvirtua a humana natureza que (à partida) o
define. Por conseguinte, é conferido ao protagonista fílmico um estatuto inumano
(audiovisualmente representado através do paralelismo anteriormente identificado) análogo
àquele que é o da figura mitológica que é Minotauro50: o de monstro.

the mirror from the monitor eight seconds prior to that – sixteen seconds in the past (the camera view of eight
seconds prior was playing back on the monitor eight seconds earlier, and this was reflected on the mirror along
with the then present reflection to the viewer). An infinite regress of time continuums within time continuums
(always separated by eight-second intervals) within time continuums is created. The mirror at right angles to the
other mirror-wall and to the monitor-wall gives a present-time view of the installation as if observed from an
‘objective’ vantage exterior to the viewer's subjective experience and to the mechanism that produces the piece's
perceptual effect. It simply reflects (statically) present time” (Graham, s.d.: 186).
48
Ver anexo 1, vídeo 6.
49
Ver anexo 2, vídeo 7.
50
“Dá-se o nome de Minotauro a um monstro que tinha corpo de homem e cabeça de touro” (Grimal, 1951: 314).

25
Segundo o conto A Casa de Asterion (1949), de Borges, é a arquitectura labiríntica que
caracteriza o cárcere-casa de Minotauro a real responsável pelos isolamento e solidão deste:

Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não
há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um portal; são catorze (são
infinitos) os portais, bebedouros, pátios e cisternas. A casa é do tamanho do
mundo: ou melhor, é o mundo. [...] Tudo existe muitas vezes, catorze vezes,
mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: em cima, o
intrincado sol; em baixo, Asterion51. (Borges, 1949a: pp. 58 e 59)

Se Minotauro, fruto de uma relação extraconjugal, se encontra enclausurado numa


estrutura labiríntica52, o mesmo se sucede com o estanho caso de Irineu, uma vez que este
último existe e descola-se num infinito e irresolúvel caos-labirinto mnemónico – qual
purgatório dantesco –, no qual coexistem, em simultâneo, incontáveis temporalidades e, por
extensão, incomensuráveis espacialidades. Consequentemente, deduz-se que é esta sua
condição (de recluso ante o labirinto que é o seu modus operandi mental) a exata responsável
pela adopção, por parte do protagonista, de uma atitude epicurista e estoica53 perante a
realidade e o mundo, atitude esta que força a narrativa a constituir-se enquanto negação
(narrativo-conceptual) dela mesma. Através da acção de Irineu, é negada ao mundo a
possibilidade de ser concebida uma memória relativa ao indivíduo que todas as memórias em
si concentra: “[Irineu] Raramente saía de casa, pois prezava, acima de tudo, a solidão. Em boa
verdade, utilizou-a para corrigir a sua trágica natureza, assegurando, assim, a sua imediata
queda no esquecimento do mundo” (Leitão, 2014a).
Em termos audiovisuais, a dramaturgia narrativo-conceptual do objecto O Retrato
Irineu é problematizada mediante o recurso ao mecanismo que é o da repetição, ou seja, o da
constante reprodução do mesmo material audiovisual. Tal mecanismo é utilizado mediante
duas dinâmicas distintas, sendo que a primeira – a de acumulação – corresponde à abordagem
da repetição enquanto mecanismo ilustrativo. O ininterrupto recuperar e a contínua repetição
das mesmas imagens e dos mesmos sons espelham o estado e o comportamento mentais de
Irineu, isto é, a sua incapacidade de olvidar e as suas inevitáveis acções de arquivação e de

51
Nome comummente atribuído a Minotauro.
52
“[Minotauro] [...] era filho de Pasífae, mulher de Minos, e de um touro enviado por Posídon a este rei. Minos,
aterrorizado e envergonhado com o nascimento do monstro, fruto dos amores contranaturais de Pasífae, ordenou
ao artista ateniense Dédalo [...] que construísse um imenso palácio (o Labirinto), composto de um tal emaranhado
de salas e corredores que ninguém, a não ser Dédalo, conseguisse encontrar o caminho para dele sair. Foi lá que
encarcerou o monstro” (ibid.: 314).
53
Decalcada daquela que é protagonizada pelo sujeito poético do poema pessoano apropriado.

26
presentificação mnemónicas. Já a segunda dinâmica – a de diferença – corresponde à
afirmação de que o mecanismo que é o da repetição, no objecto aqui em análise, é capaz de
superar os resultados ilustrativos decorrentes da abordagem acumulativa já referida, ou seja, é
capaz de gerar e de construir uma realidade diferente daquela que repete. Um evidente
exemplo de tal dinâmica é a obra I Will Not Make Any More Boring Art54 (1971), de John
Baldessari, na qual a paradoxal relação que é estabelecida entre o acto repetitivo de redacção de
uma mesma frase e o seu respectivo conteúdo se transfigura num hábil veículo discursivo.
Esta última equação (repetição enquanto diferença) deriva da perspectiva filosófica
definida por Gilles Deleuze, a qual defende que a diferença gerada pelo mecanismo da
repetição não reside no objecto (lato sensu) repetido, mas antes no espectador dessa mesma
repetição:

Repetition changes nothing in the object repeated, but does change something
in the mind which contemplates it. […] This is the essence of modification.
Hume takes as an example the repetition of cases of the type AB, AB, AB, A...
Each case or objective sequence AB is independent of the others. The repetition
[…] changes nothing in the object or the state of affairs AB. On the other hand,
a change is produced in the mind which contemplates: a difference, something
new in the mind. Whenever A appears, I expect the appearance of B. (Deleuze,
1968: 70)

Assim e segundo a transposição audiovisual do argumento deleuziano, a diferença


extraída pela repetição de determinado material audiovisual não se manifesta na modificação
factual (leia-se das propriedades plásticas) desse mesmo material, mas antes na relação e na
expectativa originadas pela sua repetição, relação e expectativas estas que alteram a legibilidade
das imagens e dos sons em questão. Isto porque “A escuta e visão repetidas de imagens em
movimento […] propicia a construção de novas relações. [...] A repetição material de trechos
sonoros e visuais pode redundar na diferença. […] Se a imagem e som são os mesmos a espera
deles modifica quem vê pela espera e pela relação do mesmo estabelecida anteriormente”
(Moran, s.d.: 197, 198 e 204). Veja-se, dito isto, a obra Capitalism Slavery55 (2006), de Ken
Jacobs, na qual a profundidade e o movimento imagéticos (a diferença) são alcançados
exclusivamente através da incessante repetição de fragmentos ampliados referentes a duas
imagens estereoscópicas de uma mesma situação.

54
Ver anexo 2, vídeo 8.
55
Ver anexo 2, vídeo 9.

27
“Cada imagem ‘não é uma imagem justa [image juste], é apenas uma imagem [juste
une image]’56, como disse Godard numa frase célebre. Mas ela [a montagem] ‘permite falar
menos e dizer mais’, ou antes, falar melhor disso sem ter de dizê-lo” (Didi-Huberman, 2004:
172), sendo tal comprovado pelo objecto O Retrato de Irineu. Nele, a diferença operada por via
do mecanismo da repetição do mesmo material audiovisual é de ordem epistemológico-
conceptual, uma vez que este é pensado e mobilizado enquanto operação de montagem (nos
sentidos brechtiano e hubermaniano do termo), ou seja, enquanto procedimento capaz de,
através do inter-relacionar do material convocado, evidenciar a pluralidade conceptual (leia-se
diferença) que este último, potencialmente, encerra.
No objecto aqui em análise, a diferença (deleuziana) forjada pelo mecanismo da
repetição corresponde, então, à transposição espacial das experiência temporal e estrutura
mental que definem Irineu, ou seja, à construção (quase) física do labirinto (mnemónico) que o
enclausura. As imagens e os sons que, primeiramente, ilustram e representam o material
mnemónico arquivado pelo protagonista, erguem-se, aquando das suas constantes repetição e
relação audiovisuais, enquanto verdadeiros muros e corredores, por entre os quais Irineu –
física, mental e ontologicamente – deambula. Tal estrutura labiríntica é audiovisualmente
construída mediante a epicização do processo de montagem que a suporta, isto é, mediante a
evidente exibição das visibilidade e audibilidade que caracterizam as opções de montagem
modeladoras d’O Retrato de Irineu, como são: 1. o suceder (quase) aleatório e desordenado do
material audiovisual utilizado e as suas constantes e não-lineares reutilização e sobreposição57;
2. a dependência estabelecida entre som e imagem, na medida em que qualquer um deles
performa e pontua o aparecimento do outro 58 ; 3. a crescente fragmentação do espaço
audiovisual59, a qual anacroniza, temporalmente, o material audiovisual convocado, já que se
volve impossível afirmar a anterioridade (narrativa) de um determinado som ou de uma
determinada imagem relativamente aos e às restantes, respectivamente; 4. a utilização e a
sobreposição de material imagético (ruas, identificação numérica de portas, portas e
puxadores) capaz de espacializar a acção fílmica (lato sensu) numa realidade física concreta (a
cidade de Florença, berço natal do poeta e escritor Dante Alighieri); e 5. a utilização e a

56
O mesmo é aplicável à matéria sonora.
57
A partir do momento em que um determinado som e uma determinada imagem são convocadas, não mais
deixam de o ser.
58
“É preciso que imagens e sons mutuamente se sustentem, de longe e de perto. Nenhuma imagem e nenhum som
independentes” (Bresson, 1975: 73).
59
A área de projecção é habitada, em simultâneo, por diversos fragmentos de uma mesma imagem ou por
desiguais fragmentos de diferentes imagens. Neste sentido, note-se a obra A Janela (2001), de Edgar Pêra.

28
sobreposição de material sonoro (passos e abertura e/ou encerramento de portas) e de material
imagético (movimentos de câmara subjectivos) capazes de sugerir o físico deambular
purgatorial, dantesco e cíclico de um indivíduo pelo espaço audiovisual, no qual – à
semelhança do processo de esvaziamento das propriedades espaciais intrínsecas às imagens
pertencentes à obra Spacy60 (1981), de Takeshi Ito – as ruas percorridas e as portas transpostas
não conduzem a nenhum outro espaço que não àqueles já transitados, isto é, a nenhuma outra
imagem e a nenhum outro som que não àquelas já contemplados e que não àqueles já
escutados, respectivamente.
Paralelamente à construção audiovisual identificada, uma construção (montagem)
textual labiríntica é produzida. A narrativa enunciada pela figura do narrador61 reflecte, em
termos formais, o conteúdo (modus operandi mental de Irineu e estrutura dédala que o
aprisiona) do objecto O Retrato de Irineu, já que a mesma é desenvolvida segundo uma lógica
de acumulação (ad aeternum). A progressão narrativa da componente textual do objecto aqui
em análise evolui, complexifica-se e labirintifica-se mediante a constante adição de informação
e as suas posteriores repetições. Assim e à semelhança da negação que ocorre a nível narrativo-
conceptual (anteriormente exposta), os mecanismos da repetição audiovisual e textual
elaborados findam na negação deles mesmos, quer seja através da sobreposição excessiva e
caótica de informação visual e sonora – que impede, gradualmente, a legibilidade das imagens
e dos sons mobilizados –, quer seja através da construção de frases labirínticas e infinitamente
extensas – que compromete, a curto prazo, a possibilidade de as mesmas permanecerem
compreensíveis.
Diz-nos Huberman que “[…] el montaje nos muestra que ‘las cosas quizás no sean lo
que son [y] que depende de nosotros verlas de otra manera’, según la nueva disposición […]
obtenida en ese montaje” (Didi-Huberman, 2008: 87). O mesmo é extensível ao objecto O
Retrato de Irineu, na medida em que os processos de montagem (textual, sonora e visual) que o
caracterizam são pensados enquanto ferramentas criativas e conceptuais, aptas a gerar
60
Ver anexo 2, vídeo 10.
61
Decalcada da dinâmica textual inerente ao poema borguesiano El Laberinto61 (1984), o qual se debruça, mais
uma vez, sobre a estrutura que encarcera Minotauro: “Este es el laberinto de Creta. Este es el laberinto de Creta
cuyo centro fue el Minotauro. Este es el laberinto de Creta cuyo centro fue el Minotauro que Dante imaginó como
un toro con cabeza de hombre y en cuya red de piedra se perdieron tantas generaciones. Este es el laberinto de
Creta cuyo centro fue el Minotauro que Dante imaginó como un toro con cabeza de hombre y en cuya red de
piedra se perdieron tantas generaciones como María Kodama y yo nos perdimos. Este es el laberinto de Creta
cuyo centro fue el Minotauro que Dante imaginó como un toro con cabeza de hombre y en cuya red de piedra se
perdieron tantas generaciones como María Kodama y yo nos perdimos en aquella mañana y seguimos perdidos en
el tiempo, ese otro laberinto” in:
<https://es.wikibooks.org/wiki/Grandes_construcciones/Palacio_de_Cnosos>, acedido em Dezembro de 2015.

29
diferente material audiovisual a partir da repetição de um número finito de imagens e de sons.
Tal como na obra auto-referencial62 I Am Sitting in a Room63 (1969), de Alvin Lucier – na qual
os mecanismos da repetição e da (re)gravação, auxiliados pelas propriedades arquitectónicas
(ressonância e reverberação) inerentes ao espaço de actuação, se revelam capazes de
transmutar um discurso puramente semântico em matéria melódico-musical –, os processos
de montagem decorrentes do objecto aqui em análise, porque arquitectados segundo
princípios épicos brechtianos (enunciados nos capítulos anteriores e exemplificados no
presente capítulo), forçam o material audiovisual por eles mobilizado a tomar uma posição (no
sentido hubermaniano da expressão) específica – a dramatúrgica –, na qual conteúdo e forma
organicamente se (con)fundem. Ou não fosse verdade que “[…] the whole of the film is given
only in montage” (Marrati, 2003: 51).

62
Texto explicativo da obra em questão, o qual é utilizado enquanto matéria discursiva da mesma: “I am sitting in
a room, different from the one you are in now. I am recording the sound of my speaking voice and I’m going to
play it back into the room again and again until any semblance of my speech with perhaps the exception of
rhythm is destroyed. What you will hear, then, are the natural resonant frequencies of the room articulated by
speech. I regard this activity not so much as a demonstration of a physical fact, but more as a way to smooth out
any irregularities my speech might have” (Alvin Lucier apud Parkinson, 2014).
63
Ver anexo 2, vídeo 11.

30
3.3. O Retrato de Mónica

O mote narrativo-formal subjacente à elaboração do objecto O Retrato de Mónica64


consiste no arquitectar de três segmentos narrativos distintos, montados e colados, a nível
textual, mediante a exploração do conto Retrato de Mónica (1962), de Sophia de Mello Breyner
Andresen, do conto O Aleph (1942), de Jorge Luis Borges, e da obra Orlando (1928), de
Virginia Woolf. Não obstante o facto de cada um deles deter um certo grau de independência
relativamente aos restantes, estes três segmentos narrativos, através dos diálogos que cada um
dos mesmos estabelece com os demais, constituem-se enquanto tríptico, ou seja, enquanto três
parcelas integrantes de uma mesma dramaturgia, cujo objectivo diegético se revela comum: o
de desenhar a identidade de um indivíduo particular, Mónica.
O primeiro segmento 65 corresponde a uma descrição que reflecte o modo como
Mónica, aquando da sua existência, é e/ou quer ser retratada (pelo outro), isto é, corresponde a
uma auto-imagem-ficção construída pela protagonista do objecto aqui em análise. Esta
primeira descrição, porque resultante da acção directa de Mónica – e, por isso, subjectiva –,
recorre, em termos gramaticais, ao presente do indicativo, sendo o material audiovisual
utilizado uma (quase) ilustração de tudo aquilo que, narrativamente, é expresso. A descrição
inerente ao segundo segmento66, diegeticamente posterior à morte de Mónica, é cumprida a
partir do evocar (por parte de um anónimo outro) de copiosos momentos-chave relativos à
existência da protagonista, isto é, a partir da substância mnemónica – falível, por definição –
que (ainda) sobeja daquela. Tal evocação é elaborada, em termos linguísticos, mediante o uso
do pretérito perfeito, o qual pontua o discurso com contornos (aparentemente) factuais, e, em
termos audiovisuais, através da imobilização da imagem e da sua consequente aproximação ao
registo fotográfico. Já o terceiro segmento67, fruto da (expectável) inexactidão que pauta os
resquícios mnemónicos referentes à existência de Mónica, consubstancia-se no tecer (por parte
de um anónimo outro) de uma fantasiosa e pouco credível descrição da mesma. Por esta razão,
este último segmento recorre ao tempo verbal do futuro do pretérito, sendo, audiovisualmente,
devolvido o movimento à imagem.

64
Ver apêndice 2.
65
04:29-05:50.
66
06:08-07:10.
67
07:15-08:43.

31
Importa referir que as transições que unem estes três segmentos narrativos 68
correspondem a hiatos narrativo-temporais concretos, a saber: o período entre a descrição
forjada por Mónica (primeiro segmento) e a sua morte [início do segundo segmento:
“Entretanto, há já vários meses que não vejo Mónica. Isto porque Mónica morreu numa
manhã de Fevereiro” (Leitão, 2014b)]; e o período entre a morte de Mónica (segundo
segmento) e o tempo decorrido num entretanto indefinido [início do terceiro segmento: “E, no
entanto, passados tantos anos após a sua morte, continua-se a falar de Mónica” (ibid.)]. É,
assim, sugerido que é a progressão temporal que estes mesmos hiatos narrativo-temporais
acarretam a responsável pelo sucessivo surgir, no seio da descrição em curso, de variações
narrativas diferentes daquelas que caracterizam a descrição que lhe é precedente e/ou ulterior.
Deste modo e no objecto O Retrato de Mónica, o vector temporal é assumido enquanto
inevitável obstáculo à fixação e à imutabilidade da memória elaborada sobre uma determinada
realidade (Mónica), não só fomentando, dada a sua progressão unidirecional, a deterioração
daquela (da memória elaborada), mas também legitimando, por consequência, o (consciente
ou inconsciente) ficcionar desta [da realidade em questão (Mónica)]. Tal dinâmica é
diametralmente inversa àquela proposta pela obra apropriacionista Respect the Dead69 (2001-
09), de Pierre Bismuth, na qual qualquer processo de ficcionalização é interdito, uma vez que a
totalidade das componentes narrativas subsequentes às mortes das personagens
hollywoodescas convocadas é, invariavelmente, suprimida.
As diferenças narrativas (resultantes da contínua mutação da identidade de Mónica)
operadas por cada uma das três descrições que compõem o objecto videográfico em exame
revelam-se mutuamente inter-complementares, na exacta medida em que, explícita ou
implicitamente, se inter-contradizem e inter-anulam. Cada uma das três descrições (e
respectivas diferenças narrativas) não só evidencia o carácter hipoteticamente ficcional que as
restantes, em potência, encerram, mas também em nada influencia (ou depende) (d)o que foi
(previamente) expresso [(d)a descrição que substitui)] ou (d)o que será (posteriormente)
declarado [(d)a descrição pela qual será substituída]. Esta negação narrativa-conceptual – que
impele o narrador a concluir que “Às vezes, chego mesmo a pensar que Mónica nunca chegou
sequer a existir” (ibid.) – deriva do facto de qualquer descrição relativa à figura que é a de

68
Efectuadas aquando do instaurar, na superfície de projecção, de vazios visuais.
69
Ver anexo 2, vídeo 12.

32
Mónica implicar, em termos metafóricos, o mergulho desta nas águas que são as do rio Lete70,
isto é, do facto de qualquer descrição relativa à figura que é a de Mónica requerer o assumir
desta enquanto realidade imaculada e desprovida de informação, qual tabula rasa. Por esta
razão, é possibilitado à protagonista o encetar, em teoria, de infinitos recomeços e,
concomitantemente, o ser qualquer coisa, uma vez que e mediante a aplicação do presente
pressuposto segundo uma lógica ad infinitum, toda e qualquer descrição (já efectuada ou por
efectuar) foi, é e será, inalterável e consecutivamente, ignorada e/ou olvidada.
Em O Retrato de Mónica, tal dinâmica de ininterruptas negação e reiniciação – capaz
de laborar, em simultâneo, a sugestão de que nenhuma das descrições apresentadas se revela,
no limite, mais válida ou mais fidedigna (apenas mais ou menos provável) do que qualquer
outra das restantes – adopta o princípio butleriano de que a identidade humana, cuja existência
carece da existência de um qualquer outro71 é, primeiramente, o resultado directo de um
processo incorrigivelmente narrativo e ficcional: “If I try to give an account of myself, if I try to
make myself recognizable and understandable, the I might begin with a narrative account of
my life” (Butler, 2005: 37). Define-se, assim, a identidade humana enquanto realidade
subjetiva, múltipla, variável, transformável e sempre sujeita a um inevitável processo
interpretativo, processo este que lembra a obra La clef des songes72 (1927), de René Magritte,
na qual o realismo identitário que pauta os objectos representados é questionado e
multiplicado pela adição de um sistema de nomeação que contraria a habitual e previsível
correspondência entre imagem e palavra.
Tal dramaturgia narrativo-conceptual é, de modo épico (nos sentidos brechtiano e
hubermaniano do termo) e na obra O Retrato de Mónica, transposta e corroborada a nível
audiovisual. Estas transposição e corroboração são cumpridas através da mobilização dos
mecanismos de montagem que são a descontextualização e a reorganização, os quais
problematizam, afirmam e evidenciam, isto é, tornam visíveis e audíveis, a pluralidade, a
multiplicidade e a relatividade identitárias intrínsecas às imagens e aos sons por ele
convocados. Assim e primeiramente, importa mencionar que, no objecto aqui em análise, se

70
“Lete, o Esquecimento[,] [...] Deu o seu nome a uma fonte, a Fonte do Esquecimento, situada nos Infernos, de
que os mortos bebiam para esquecer a sua vida terrena. De igual modo, na concepção dos filósofos, de que Platão
se fez eco, antes de regressar à vida e de retomar um corpo, as almas bebiam desse líquido, que lhes tirava a
memória do que tinham visto no mundo subterrâneo” (Grimal, op. cit.: 274 e 275).
71
“I exist in an important sense for you, and by virtue of you. If I have lost the conditions of address, if I have no
‘you’ to address, then I have lost ‘myself’. […] one can reference an ‘I’ only in relation to a ‘you’: without the
‘you’, my own story becomes impossible” (Butler, 2005: 32).
72
Ver anexo 1, figura 17.

33
recorre, de modo exclusivo, a material audiovisual já existente e de autoria vária. Deste modo e
porque “As imagens não são obrigatoriamente produzidas para o presente, podendo sê-lo para
o futuro, onde poderão ser recontextualizadas incessantemente” (Blaufucks, 2014), efectuam-
se tantos processos de descontextualização – e, consequentemente, de apropriação – quantos
são as imagens e os sons mobilizados pelo segundo objecto integrante do tríptico a arte do não-
retrato. Estes processos, ao apartarem as imagens e os sons convocados dos seus referentes
originais (das suas verdadeiras causas), renomeiam, indiscutivelmente, a identidade do
material em questão, já que o insuflam de propriedades narrativas e/ou audiovisuais diferentes
daquelas que se encontram na sua génese ou daquelas que derivam dos seus contextos e dos
seus propósitos de concepção e de produção. Singulares exemplos de tais práticas habitam as
obras Mother73 (2005) e Father74 (2005), de Candice Breitz, nas quais a autora (ironicamente)
sublinha o modo como os estereótipos hollywoodescos de mãe e de pai operam e moldam a
compreensão ocidental que se detém relativamente a estas mesmas figuras75; ou a obra 24 Hour
Psycho76 (1993), de Douglas Gordon, na qual é amputada a componente sonora do filme
Psycho (1960), de Alfred Hitchcock, e estendida a temporalidade do mesmo (de 109 minutos
para 24 horas, isto é, de 24 frames por segundo para apenas dois), sendo, desta feita, a obra
hitchcockiana esvaziada das suas propriedades narrativas essenciais (suspense e terror) e,
concomitantemente, reduzida à sua dimensão pictórica, visto que é cruamente exposta a ilusão
que caracteriza toda e qualquer imagem dita em movimento.
A pluralidade narrativo-identitária manifestada por qualquer processo de
descontextualização audiovisual é triplamente acentuada n’O Retrato de Mónica, na medida
em que cada um dos seus três segmentos narrativos é construído a partir da reutilização de um
mesmo arquivo imagético e sonoro. Esta tripla construção ecoa a experiência proposta por
Takeshi Kitano, no nº 600 da revista Cahiers du Cinéma (2005), a diversos realizadores: a
elaboração, através da combinação-montagem de quatro ou cinco fotografias não-relacionadas
à partida77 e pertencentes a um arquivo de 6978, de diversas micro-narrativas. Diz-nos Sam
Rohdie que as micro-narrativas resultantes da experiência em exame – tendo Kitano forjado 14

73
Ver anexo 2, vídeo 13.
74
Ver anexo 2, vídeo 14.
75
“[...] Breitz digitally cuts these instants from their initial contexts, sets them against a black neutral background,
and then replays, repeats, […] reactivate[s] the excerpted instants […] and create[s] […] new possibilities of
meaning” (Ross, 2006: 92).
76
Ver anexo 2, vídeo 15.
77
The photographs […] are without apparent order, except numeric, and lack common themes” (Rohdie, op. cit.:
6).
78
Ver anexo 1, figuras 18 a 23.

34
e cada um dos realizadores desafiados uma – se revelam, simultaneamente, “[…] arbitrary and
necessary: arbitrary, because there is no evident connection between the images in a given
narrative; necessary, because once the images are grouped there appears to be a connection
(causation, linearity)” (ibid.: 7 e 8). Isto porque, à semelhança do material sonoro, as imagens –
quer sejam de natureza documental79, quer sejam de ordem ficcional –, muito embora se
constituam enquanto realidades objectivas (representam, invariavelmente, um espaço-tempo
específico), detêm, passivamente, inúmeras e subjectivas multiplicidades e potencialidades
narrativo-interpretativas, sendo estas últimas activadas aquando da relação das primeiras com
outras suas semelhantes80. Procede-se, assim, à substituição do contexto individual e original
das imagens em questão por um contexto dramatúrgico-narrativo a todas elas comum, através
do qual cada imagem convocada transforma as e, paralelamente, é transformada pelas restantes
(precedentes e/ou subsequentes). Conclui-se, portanto, que é a montagem audiovisual a
operação que legibiliza e que contextualiza o material trabalhado, sendo a sua primordial
função a de “[…] open an image up, […] disturb any univocal understanding of it, […] shatter
its unity, […] make ambiguous and […] reveal the multiplicities and variety of directions
contained in every image […]” (ibid.: 14). Exemplos significativos de tal são as obras Plot
Point 81 (2007), Stardust 82 (2010) e Tokyo Giants 83 (2012), de Nicolas Provost, nas quais
imagens citadinas inócuas (captadas nas cidades de Nova Iorque, de Las Vegas e de Tóquio,
respectivamente), cujos intervenientes ignoram o facto de as suas acções se constituírem
enquanto alvo de registo, findam em narrativas tão policiais quanto aristotelicamente
dramáticas; ou a obra Play, The Film84 (2011), de Cão Solteiro e de André Godinho, na qual,
através do aparato teatral intrínseco aos processos de dobragem e de re-sonorização

79
Comentário, da autoria de Huberman, relativamente ao material documental: “[...] o arquivo [nem] é o ‘reflexo’
puro e simples do acontecimento, nem a sua pura e simples ‘prova’” (Didi-Huberman, 2004: 131).
80
Ver anexo 2, vídeos 16 a 18, referentes à vídeo-instalação The Casting (2007), de Omer Fast, composta por
quatro projecções simultâneas e na qual os processos de montagem sonora, imagética e espacial fundem e
confundem as dimensões documental e ficcional relativas ao material audiovisual mobilizado: “The Casting is
based on an interview with a U.S. Army sergeant. In the installation, the soldier's recollections provide a unifying
soundtrack to tableaux vivants reenacting disparate moments from his experiences while stationed in Europe and
then in Iraq. The seamless narration, however, has been spliced together and extended to include the artist's
process of auditioning actors for his work. Positioned at the back of the installation, the interview plays the role of
"reality" as the more theatrical images are projected at the front. While the narrator's speech remains casual, the
tightly rendered tableaux vivants borrow from the stereotypical language of mass media even as the segments
represent an ongoing human drama. Partitioned screens in The Casting encourage an open-ended experience of
the video, offering a perspective on the Iraqi conflict that takes into account actual lives as opposed to only the
political content” (TK&ESFEH, 2010).
81
Ver anexo 2, vídeo 19.
82
Ver anexo 2, vídeo 20.
83
Ver anexo 2, vídeo 21.
84
Ver anexo 2, vídeo 22.

35
(efectuados em tempo real), se (des)montam e se (re)escrevem a imagem e a narrativa
inerentes à obra cinematográfica The Great Gabbo (1929), de James Cruze.
Um outro mecanismo de montagem que espelha e problematiza a componente
dramatúrgico-conceptual inerente ao objecto O Retrato de Mónica é o da reorganização do
material audiovisual utilizado, uma vez em que este último é reintroduzido, na sua (quase)
totalidade e segundo três disposições desiguais, por cada um dos três segmentos narrativos
daquele. À semelhança da estrutura textual que caracteriza a obra musical Construção85 (1971),
de Chico Buarque – a qual assume determinadas palavras ou pequenos excertos textuais
enquanto blocos inter-combináveis, através dos quais poeticamente se constroem variações de
uma mesma narrativa (referente à experiência operária) –, o processo de montagem subjacente
ao objecto aqui em exame revela-se capaz de gerar manifestas variações no que à identidade
audiovisual e ao estatuto narrativo pertencentes às imagens e aos sons mobilizados concerne.
Tal deve-se ao facto de o mesmo ser pensado à luz do modus operandi inato ao atlas
projectado, entre 1924 e 1929, por Aby Warburg, de nome Mnemósine (deusa da memória),
cujo propósito basilar consiste no arquitectar de uma História da Arte de pendor
antropológico, isto é, no edificar de uma investigação relativa à circulação (inconsciente e
sintomática) das imagens no, pelo e através do tempo dito histórico.
Mnemósine – constituído, em concordância com o que se verifica n’O Retrato de
Mónica, por um número limitado de elementos visuais provenientes de origens 86 e de
temporalidades 87 várias (arquivo de cerca de 1000 imagens) – implica, pois, técnicas de
visualização e de leitura anacrónicas, não dramáticas e não cronológicas, ou seja, não
delimitadoras de espaços e de tempos iniciais, intermédios e finais (ou não fosse
arquitectonicamente elíptica a biblioteca que alberga o projecto do historiador alemão).
Mnemósine opõe-se, portanto e de modo veemente, à fixação de princípios rígidos, ao
estabelecimento de um saber axiomático, hermético e unitário, e às meras inventariação,
descrição e síntese das imagens por ele convocadas. Diz-nos Huberman que “Mnemósine [...]
tem como base o pôr em crise da explicabilidade erudita” (Didi-Huberman, 2011: 238 e 239),
que é o mesmo que afirmar que o atlas warburguiano, em estreito paralelo com as deduções
extraídas da experiência proposta por Kitano, promove o insurgir de um conhecimento, no que

85
Ver anexo 2, vídeo 23.
86
“[…] art reproductions, advertisements, newspaper clippings, geographical maps, and personal photographs”
(Michaud, 1998: 277).
87
“[...] nele existem tempos heterogéneos a trabalhar de forma constante e concertada [...]” (Didi-Huberman,
2011: 18).

36
à teoria da imagem diz respeito, perpetuamente centrífugo, múltiplo e problemático, apto a
“[...] introduz[ir] no saber a dimensão sensível, o diverso, o carácter lacunar de cada imagem
[...][,] o múltiplo, o diverso, a hibridez [...]” (ibid.: 12). As imagens são, então, pensadas
enquanto unidades transitórias, sendo as mesmas, em conformidade com o material
audiovisual utilizado n’O Retrato de Mónica, constantemente distribuídas e redistribuídas.
Estas distribuição e redistribuição são cumpridas mediante a inscrição daquelas (das imagens)
no dispositivo de mesa de montagem concebido, por Warburg, para o efeito: 79 pranchas
móveis, que, porque metamorfoseadoras dos diversos elementos visuais que (provisoriamente)
as povoam em imagens compósito-conceptuais88, ascendem a um estatuto que excede o do
mero suporte: “Through the simple juxtaposition of images taken from different sources,
Warburg generates something that any one of these images taken alone would not produce”
(Michaud, 1998: 257). Neste sentido, veja-se a instalação Nouvelles histoires de fantômes89
(2014), da autoria de Georges Didi-Huberman e Arno Gisinger, na qual o espaço expositivo
(paredes e chão) não só suporta os conteúdos imagéticos que a compõem, mas também monta,
dialecticamente, os mesmos.
A perpétua mutabilidade e consequentes (des)montabilidade e invertibilidade que
caracterizam as imagens e as pranchas integradas por Mnemósine90, ou seja, as incessantes
reorganizações e montagens de que as mesmas são alvo91, possibilitam o brotar de incontáveis e
não expectáveis “relações íntimas e secretas” – “[...] configurações inéditas e [...] afinidades até
então despercebidas ou certos conflitos em ação” (Didi-Huberman, op. cit.: 250) –, as quais –
porque anacronicamente aglutinadoras de tudo aquilo que as fronteiras disciplinares, por
norma, separam – extrapolam a conexão causal (de ordens histórica, visível e superficial) que,
eventualmente, os distintos termos dessas mesmas relações inter-estabelecem e, paralelamente,
instauram visuais analogias sintomáticas (de ordem trans-histórica). Afirma-se, assim, uma
“iconologia do intervalo”, segundo a qual e à semelhança do que se verifica no objecto O
Retrato de Mónica, se evidenciam as impossibilidade de síntese e inesgotabilidade lógica das
possibilidades dadas, uma vez que um mesmo número de imagens (leia-se um mesmo material

88
“The panel is […] rephotographed in order to create a unique image, which will be inserted into a series
intended to take the form of a book” (Michaud, op. cit.: 278).
89
Ver anexo 1, figura 24, e anexo 2, vídeo 24.
90
“No atlas Mnemósine, o carácter sempre permutável das configurações de imagens assinala, por si só, a
fecundidade heurística e a desrazão intrínseca de tal projeto” (Didi-Huberman, op. cit.: 20, 21).
91
Repercutidas no romance Rayuela (1963), do escritor argentino Julio Cortázar, na qual o leitor é incitado a ler
(leia-se montar) os 155 capítulos que o compõem segundo uma qualquer ordem (não necessariamente
sequencial).

37
audiovisual) se revela potencialmente apto a criar infinitas imagens compósito-conceptuais92
(leia-se díspares descrições relativas à figura de Mónica): “[...] poderemos sempre encontrar
novas relações, novas ‘correspondências’ entre cada uma das fotografias [...]” (ibid.: 20, 21).
De mencionar ainda que este inesgotável, anacrónico e inter-imagético diálogo
warburguiano é ecoado pela concepção espacial inerente ao conto borguesiano O Aleph, no
qual a personagem Carlos Argentino Daneri alude a um espaço, denominado de Aleph93, “[...]
onde estão, sem se confundir, todos os lugares [e, consequentemente, todos os tempos]94 do
mundo, vistos de todos os ângulos” (Borges, 1949b: 135), e através do qual é possível (ao
narrador do mesmo) “[...] estabelecer um diálogo com todas as imagens de Beatriz” (ibid.: 136)
– personagem (diegeticamente) morta e, para os devidos efeitos, sinónimo de Mónica.
Constata-se, então, que a operação de montagem que subjaz ao atlas projectado por
Warburg – e, por extensão, ao objecto aqui indagado – promove o multiplicar identitário
relativo aos materiais utilizados, constituindo-se aquele enquanto um espaço epistémico-
analítico, capaz de produzir saber visual: “[...] um atlas de imagens não se limita jamais a
ilustrar um saber: constrói-o e, por vezes, chega a desconstruí-lo” (Didi-Huberman, op. cit.:
174). Posto tudo o que foi anteriormente enunciado, verifica-se que tanto a experiência
proposta por Kitano quanto a dinâmica actuante intrínseca ao atlas Mnemósine se revelam,
forçosamente, enquanto referências fundamentais para a compreensão do modo como a
imagem e o som operam n’O Retrato de Mónica. Tal operação é concretizada mediante a
epicização (nos sentidos brechtiano e hubermaniano do termo) dos processos de montagem
convocados, os quais, porque progenitores de inúmeras relações e de copiosas articulações

92
Veja-se o anexo 2, vídeo 25, referente à obra Grosse Fatigue (2013), de Camille Henrot, a qual, mediante um
suporte audiovisual, demonstra as infinitas possibilidades imagéticas que o formato que é o do atlas proporciona.
93
Definição, proferida pelo narrador do conto borguesiano em questão, de Aleph, sendo a mesma não só a
consubstanciação metafórica do propósito visual intrínseco ao atlas warburguiano, mas também (e
possivelmente) a razão pela qual (quase) nada redigiu o historiador alemão sobre o mesmo: “Chego, agora, ao
inefável centro do meu relato; começa aqui o meu desespero de escritor. Toda a linguagem é um alfabeto de
símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham; como transmitir aos outros o
infinito Aleph, que a minha tímida memória mal abarca? Os místicos, em transe semelhante, gastaram os
símbolos: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros;
Alanus de Insulis fala de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel
fala de um anjo de quatro asas que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não é
em vão que rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação elas têm com o Aleph.) É possível que os
deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas esta informação ficaria contaminada de
literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um
conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de actos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou
mais que o facto de todos ocuparem o mesmo ponto, sem sobreposição e sem transparência. O que os meus olhos
viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é” (Borges, 1949b: 137 e 138).
94
Frase adicionada.

38
audiovisuais95, não só vedam ao O Retrato de Mónica a (ilusória) possibilidade de fabricar
quaisquer continuidade e unidade espácio-temporais narrativas, mas também evidenciam – ou
seja, tornam visíveis e audíveis – a anacronia, a mutabilidade, a plasticidade e a paradoxalidade
que os materiais sonoros e imagéticos utilizados encerram. Assim e para o efeito, são
mobilizadas: 1. imagens capazes de representar duas entidades desiguais96 (Mónica-mãe e
Mónica recém-nascida); 2. imagens que, embora se refiram, em termos representacionais, à
mesma entidade, contêm em si mesmas informação distinta e conciliável (Mónica-mulher e
Mónica-chiquíssima); 3. imagens capazes de se intra-contradizer [Mónica e o seu amor-
próprio e “[...] Mónica no dia em que se achou a pessoa mais feia do mundo [...]” (Leitão, op.
cit.)]; 4. imagens que detêm, contemporaneamente, valores actanciais e valores
representacionais [o acto de “[...] dizer bem de toda a gente [...]” (ibid.) e os lábios de Mónica];
5. imagens titulares de desiguais valores temporais, ou seja, imagens que se reportam a eventos
rotineiros e, simultaneamente, a eventos particulares e temporalmente circunscritos (o acto de
Mónica se levantar cedo e o dia em que Mónica acordou mulher); 6. imagens portadoras de
referentes e de deícticos díspares (a pintura abstracta, o início do ciclo menstrual e o acto de
chorar sangue); 7. imagens capazes de deter estatutos quer simbólicos, quer literais (o cavalo
enquanto metáfora aplicada à pessoa de Mónica e o real cavalo de Mónica); 8. sons capazes de
conferir valores acrescentados97 às imagens que lhe são simultâneas, isto é, sons capazes de
recriar – de modo aparentemente natural e necessário – universos e/ou situações particulares
(um universo económico, um universo publicitário ou uma situação de descoberta); 9. sons
promotores de diferentes níveis de teatralidade (dramatismo neutro e meramente ilustrativo, e
dramatismo exacerbado); 10. sons que detêm, paralelamente, estatutos literais e estatutos

95
Sejam estas de natureza sequencial (imagem/som x, que precede a imagem/som y e que antecede a imagem/som
z), de natureza associativa (imagem/som a que acompanha a som/imagem b), de natureza intra-imagética
(duração dos planos; imagem reproduzida de modo cronológico versus imagem reproduzida sob o efeito de
rewind; velocidade interna da imagem; ou imagem fixa versus imagem em movimento) ou de natureza discursiva
(relação estabelecida entre aquilo que é dito pelo narrador, em voz-off, e o que é exibido/escutado nesse mesmo
momento). Neste sentido, veja-se a figura 25, referente à obra em A Casing Shelved (1970), de Michael Snow, a
qual consiste na exibição, mediante um formato fílmico, de uma única imagem fixa (a de uma estante), imagem
esta que, durante os 45 minutos que compõem a obra, não sofre quaisquer alterações visuais factuais. Não
obstante, o espectador, ao escutar as minuciosas descrições-memórias produzidas e expressas pelo artista sobre a
imagem em questão, descobre, gradualmente, que a mesma se transforma e se abre: aquilo que é dito altera o
modo como o espectador percepciona a imagem, na medida em que esta é transfigura em inúmeras variações dela
própria.
96
“A mesma imagem trazida até nós por dez caminhos diferentes será dez vezes uma imagem diferente” (Bresson,
op. cit.: 39).
97
“By added value I mean the expressive and informative value with which a sound enriches a given image so as to
create the definite impression, in the immediate or remembered experience one has of it, that this information or
expression ‘naturally’ comes from what is seen, and is already contained in the image itself” (Chion, op. cit.: 5).

39
simbólicos (o tiquetaque do relógio e o tempo necessário para que uma flor murche); 11. sons
que servem entidades distintas (Mónica ela mesma e aqueles que falam de Mónica); 12. sons
que antagonicamente se relacionam com as imagens (sons que motivam as imagens e sons que
decorrem das imagens); ou ainda 13. sons que indiciam intenções diferenciadas (precisão e
calculismo, e determinação).
“[…] un documento encierra al menos dos verdades, la primera de las cuales siempre
resulta insuficiente” (Didi-Huberman 2008: 41). Tal é comprovado pela epicidade que pauta os
processos de montagem inerentes ao objecto O Retrato de Mónica, na medida os mesmos
transformam imagens e sons provenientes de contextos distintos e despojados de quaisquer
inter-relações prévias em pequenas e distintas narrativas coesas, validando, desta feita, a
observação proferida por Jean-Luc Godard, segundo a qual “Editing [...] can transform chance
into destiny” (Godard, 1956: 1). Simultaneamente, esta mesma matéria audiovisual assume-se
enquanto espelho conceptual dos conteúdos que o segundo objecto do projecto a arte do não-
retrato, em temos narrativos, labora: cada uma das imagens e cada um dos sons mobilizados é
impelido a tomar uma posição (no sentido hubermaniano da expressão) dramatúrgica, isto é, é
impelido a transmuta-se em incontáveis Mónicas-símbolos, os quais, por defeito, se confessam
em perpétuas e inevitáveis metamorfose e auto-anulação.

40
3.4. O Retrato de Ulisses

A variável narrativa inerente ao objecto O Retrato de Ulisses98 é efectuada mediante a


reescrita do conto Pierre Menard, o autor do Quixote (1939), de Jorge Luis Borges, e,
simultaneamente, mediante o relacionar desta última com excertos textuais oriundos do conto
O Imortal (1947), do mesmo autor, da obra A Gaivota (1896), de Anton Tchekov, e de alguns
aforismos relativos ao conceito filosófico, formulado por Friedrich Nietzsche, de eterno
retorno. Arquitecta-se, então, uma vertiginosa viagem pelo tempo e pela literatura, a qual é
iniciada aquando da rotineira releitura99, por parte de Ulisses, do canto IX referente ao marco
primeiro da literatura dita de viagem – a obra Odisseia (VII a.C.), de Homero –, cujo herói
cede nome ao protagonista do objecto aqui em análise e no interior do qual habita um
anónimo manuscrito. Primeiramente, tal manuscrito relata, na primeira pessoa, o impossível e
anacrónico desejo do seu incógnito autor: o de redigir um romance pré-existente – a saber:
Don Quijote de la Mancha (1605), de Miguel de Cervantes –, sendo, inevitavelmente e para o
efeito, assumido um espaço-tempo histórico, cultural e literário dissemelhante daquele que
caracteriza a primeira aparição da obra em questão. Posteriormente e dada a concretização do
desejo já enunciado, é explanado o raciocínio que motiva o autor do manuscrito a incorrer na
destruição da sua impossível proeza: a paradoxal réplica cervantesca. Este raciocínio é extraído
da crença na eternidade e na infinitude da substância temporal, e, concomitantemente, da
crença na finitude da matéria que compõe a realidade e o universo, as quais, se inter-integradas
e em consonância com o Teorema do Macaco Infinito100, implicam não só a finitude das
relações estabelecíveis entre diferentes fragmentos da matéria que compõe a realidade e o
universo, mas também a repetição dessas mesmas relações, ou seja, a repetição da realidade e
do universo eles mesmos (concepção e redacção do romance Don Quijote de la Mancha
incluídas).
A concepção temporal e material acima definida ecoa, em parte, os pressupostos
inerentes ao conceito nietzschiano de eterno retorno, expresso no aforismo 341, da obra A
Gaia Ciência:

98
Ver apêndice 3.
99
“Ulisses [...] propôs-se a reler – talvez pela milésima vez [...]” (Leitão, 2015).
100
“[...] an infinite number of monkeys typing at random on an infinite number of typewriters will eventually
produce the complete works of Shakespeare […]” (Spiegelhalter e Smith, 2010).

41
O maior peso. Como seria, se um dia ou uma noite um demónio
imperceptivelmente se arrastasse até à tua mais isolada solidão e te dissesse:
‘Esta vida, tal como a vives agora e tens vivido, terás de vivê-la uma vez mais e
mais vezes sem conto; e não haverá nela nada de novo, mas sim te hão-de voltar
cada dor e cada prazer, e cada pensamento e suspiro, e tudo o que é
indizivelmente pequeno e grande na tua vida, e tudo na mesma ordem e
sequência, e de igual modo esta aranha e este luar entre as árvores, e também
este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência está sempre de
novo a ser virada, e tu com ela, ínfimo grão de pó da poeira!’ Não te lançarias
ao chão, rangendo os dentes e amaldiçoando o demónio que assim falava? Ou
experimentaste alguma vez um portentoso instante, em que lhe responderias:
‘Tu és um deus e eu nunca ouvi nada de mais divino!’ Se aquele pensamento se
apoderasse de ti, transformar-te-ia, tal qual tu és, esmagando-te talvez; a
questão em relação a tudo e todos, sobre se ‘queres tu isto uma vez mais e mais
vezes sem conto?’ permaneceria com maior peso sobre as tuas acções! Ou
então como terias de te sentir bem em relação a ti próprio e à vida para não
reclamares mais nada senão esta última eterna confirmação, esta última eterna
sanção? (Nietzsche, 1882: 244 e 245).

Segundo o aforismo em questão, o universo e a experiência humanas constituem-se


enquanto eterna e perfeita alternância entre criação e destruição, isto é, enquanto sucessivos e
circulares encadeamentos repetitivos, desprovidos de quaisquer acréscimos ou de quaisquer
subtracções e através dos quais cada potencial evento detém, paralelamente, valores temporais
passados, presentes e futuros. A impossibilidade da permanência daquele (do potencial evento)
numa temporalidade presente consubstancia, pois, a certeza da sua passagem para uma
temporalidade passada e, concomitantemente, a certeza da sua passagem para uma
temporalidade futura: […] the moment must be simultaneously present and past, present and
yet to come, in order for it to pass (and to pass for the sake of other moments). The present
must coexist with itself as past and yet to come. The synthetic relation of the moment to itself
as present, past and future grounds it relation to other moments. The eternal return is thus an
answer to the problem of passage” (Deleuze, 1962: 48).
Em O Retrato de Ulisses, esta hipótese nietzschiana é apropriada, sendo, não obstante,
ligeiramente modificada: a circularidade sequencial e ordenada da repetição dos potenciais
eventos que a mesma supõe cede lugar à circularidade imperfeita e irregular da repetição dos
mesmos. Se, numa primeira instância, o evento x precede o evento y e o evento y precede o
evento z, é possível que, numa segunda instância, o evento y preceda o evento x e que o evento
x preceda o evento z. Promove-se, deste modo101, o vigorar de uma temporalidade caótica, na

101
E à semelhança da obra A Persistência da Memória (1931) (ver anexo 1, figura 26), de Salvador Dali, na qual
“Os indicadores do tempo [...] sofrem uma transformação muito extensa, quase impossível de compreender
através do uso da lógica” (Klingsöhr-Leroy, 2005: 8); e da obra La Jetée (1962) (ver anexo 2, vídeo 26), de Chris

42
qual passado, presente, futuro e respectivos concatenamentos são, incessante e
imprevisivelmente, redefinidos, na medida em que a sucessão dos potenciais eventos opera
mediante uma dinâmica não cronológica, não linear e, no limite, não funcional. Isto porque, e
em concordância com Jorge Luis Borges, é inexequível “[...] precisar a direção do tempo. Que
flui do passado para o porvir é a crença comum, mas de modo nenhum é mais ilógica a sua
carreira contrária [...]. Ambas são igualmente verosímeis – e igualmente inverificáveis”
(Borges, 1936: 12).
Conclui-se, deste modo, que a variação operada, pelo objecto aqui em análise, sobre o
conceito nietzschiano de eterno retorno supõe, portanto, uma concepção espácio-temporal
idêntica àquela delineada por Robert Cahen, na obra Sanaa, passages en noir102 (2007), isto é,
uma concepção espácio-temporal caracterizada pela continuidade espácio-temporal, pela
linearidade espacial e pela anacronia temporal. Esta última (anacronia temporal) é, assim e em
termos dramatúrgico-conceptuais, laborada mediante a elaboração da subtil sugestão de que é
Ulisses o real autor do anónimo manuscrito e, por extensão, o real (re)autor do romance Don
Quijote de la Mancha. Tal sugestão – legitimadora da expressão anacrónica do vector temporal
– é, a nível narrativo, efectivada através do equacionar, por parte do autor do manuscrito, da
possibilidade da repetição dos eventos por ele relatados103; da construção, mediante o uso de
igual matéria textual104, de um paralelismo entre o desejo que consome o autor do manuscrito e
o desejo que invade Ulisses; do facto d’O Retrato de Ulisses ser iniciado e finalizado com igual
matéria textual105; e da ausência de delimitações temporais concretas no que aos eventos
narrativos concerne106.
Importa ainda referir que a sugestão mencionada é exterior à própria narrativa, ou seja,
é somente apreensível pelo espectador e nunca pelo protagonista d’O Retrato de Ulisses, uma
vez que, de modo silencioso, se insinua que a memória que Ulisses detém relativamente aos

Marker, na qual se conjectura a possibilidade de “[…] rewind, fast-forward, and erase time and memory at
random will. Jumping forward to the past and backward to the future, La Jetée asserts a nonlinear idea of time,
undermining the basic assumptions we live by” (Aitken, 2006: 280).
102
Ver anexo 2, vídeo 27.
103
“Do mesmo modo, é possível que, de novo, escreva Dom Quixote, de Cervantes; que, de novo, redija todos
estes factos aparentemente fantásticos; que, de novo, esqueça que escrevi Dom Quixote, de Cervantes; e que, de
novo cheguem estas mesmas páginas às minhas mãos” (Leitão, op. cit.).
104
“[...] sem qualquer razão aparente, foi invadido e obcecadamente consumido por um desejo que adjectivou de
impossível” (ibid.).
105
“Ulisses, no dia 18 de Março do presente ano, entediado – mais por hábito do que por convicção –, deu entrada
na biblioteca local e propôs-se a reler – talvez pela milésima vez – o canto IX da Odisseia, de Homero” (ibid.).
106
Por um lado, o manuscrito encontrado por Ulisses carece de data, e, por outro, a acção narrativa é
indefinidamente temporalizada por via da expressão “[...] no dia 18 de Março do presente ano [...]” (ibid.).

43
eventos relatados pelo autor do manuscrito é, aquando do término da obra videográfica,
esvaziada. É-lhe, assim, impossível estabelecer uma associação entre o desejo expresso pelo
autor do manuscrito (e respectiva identidade) e o seu próprio desejo (e respectiva identidade).
Esta insinuação – que ecoa o esquecimento vivenciado pelo protagonista (de nome Ulysse) da
obra Ulysse107 (1982), de Agnès Varda – é cumprida através do equacionar, por parte do autor
do manuscrito, da possibilidade da repetição dos eventos por ele relatados103; da (indirecta)
alusão inter-textual referente ao fragmento literário lido por Ulisses (versos 82-104 do canto IX
da obra Odisseia), o qual se reporta ao mitológico povo Lotófago108; do simbolismo inerente ao
período de tempo (nove dias) dormido pelo protagonista109 (após a leitura do manuscrito); e do
facto de este último, após o repouso efectuado por Ulisses, inexplicavelmente se evanescer do
bolso do casaco do protagonista fílmico110.
É, assim e no objecto O Retrato de Ulisses, defendido que o eterno retorno da realidade
– materializado na e pela acção viciosa da redação, por parte de Ulisses, da obra Don Quijote
de la Mancha – se transfigura possível apenas na medida em a realidade repetida é,
invariavelmente, olvidada pelo agente dessa mesma repetição: “I repress because I repeat, I
forget because I repeat. I repress, because I can live certain things or certain experiences only in
the mode of repetition. I am determined to repress whatever would prevent me from living
them thus […]” (Deleuze, 1968: 18).

107
Ver anexo 2, vídeo 28, referente à obra em questão, na qual o protagonista se revela incapaz de recordar a sua
prestação enquanto modelo da homónima obra fotográfica (1954) (ver anexo 1, figura 27), da autoria da mesma
artista:
“Agnès Varda: Et de cette photographie? De ce jour là? As tu des souvenirs?
Ulysse: Aucun, réellement. Non.
Varda: Tu ne te vois pas sur cette plage?
Ulysse: Non, pas de tout.
Varda: Tu ne te souviens pas de cette bête?
Ulysse: Non plus.
Varda: Et le type là dedans?
Ulysse: Non, j’ai réellement aucun souvenir.
Varda (narrateur): Et pourtant à l’époque le petit Ulysse avait fait une peinture d’après ma photographie. […] Ce
souvient-il de ce dessin?
Ulysse: Non. Je l’ai vu à la porte intérieure à placard de ton bureau.
Varda: Mais oui, il y était tout le temps.
Ulysse: Je n’ai pas le souvenir de l’avoir faite.
Varda: Et pourtant ce sont des témoignages, des preuves de ton enfance. Mais tu n’y crois pas. Tu n’en veux pas.
Je veux dire, même pour toi cette image elle est imaginaire”.
108
“Os Lotófagos são um povo a cuja terra Ulisses acostou, depois de ter sido desviado da sua rota por um violento
vento [...]. Acolheram hospitaleiramente o herói, e deram-lhe a comer um fruto que eles próprios consumiam: o
fruto do lótus, que fazia perder a memória” (Grimal, op. cit.: 286).
109
Número nove (meses) enquanto tempo-símbolo intrínseco ao período necessário para que a gestação humana
seja concluída: “Chegado a casa, aninhou-se na cama e dormiu durante nove dias consecutivos” (Leitão, op. cit.).
110
“Lido o manuscrito, Ulisses dobrou-o meticulosamente e guardou-o no bolso do seu casaco. [...]. Ao acordar,
procurou nos bolsos do seu casaco um cigarro. Encontrando-os vazios [...]” (ibid.).

44
Diz-nos Borges que Schopenhauer sublinha:

[...] a pura atualidade corporal em que vivem os animais, o seu


desconhecimento da morte e das memórias. E acrescenta logo [...]: ‘[...] o gato
cinzento que está a brincar no pátio é o mesmo que brincava e fazia travessuras
há quinhentos anos, [...] [sendo] loucura [...] imaginar que fundamentalmente
é outro’. E a seguir: ‘Destino e vida de leões requer a leonidade que,
considerada no tempo, é um leão imortal que se mantém por meio da infinita
reposição dos indivíduos, cuja geração e cuja morte formam o pulso desta
imperecível figura’. (Borges, op. cit.: 18)

Esta incomprovável hipótese, segundo a concepção temporal que opera no objecto


aqui em análise, é aplicável à realidade humana, já que é somente por via do esquecimento que
a repetição e o eterno retorno da realidade se revelam humanamente suportáveis e
experienciáveis. Eis, então, a negação dramatúrgico-conceptual subjacente ao objecto O
Retrato de Ulisses: o protagonista, enclausurado por uma circularidade narrativa, temporal e
conceptual que ignora111, regressa, continuamente e à semelhança da personagem homérica
Ulisses112, à casa de partida, isto é, à releitura do canto IX da obra Odisseia, cujo interior é
habitado por um anónimo manuscrito.
Tal dramaturgia narrativo-conceptual é, em termos audiovisuais, transposta mediante
a problematização da relação estabelecida entre a concepção espácio-temporal anteriormente
definida (continuidade espácio-temporal, linearidade espacial e anacronia temporal), a
concepção espácio-temporal vulgarmente atribuída à realidade humana (continuidade e
linearidade espácio-temporais) e as propriedades que, por defeito, se pensam enquanto
intrínsecas ao plano-sequência, nomeadamente a afirmação de que a continuidade espácio-
temporal audiovisual que o mesmo, indiscutivelmente, implica pressupõe, de modo inato, quer
a linearidade espacial quer a linearidade temporal audiovisuais do mesmo. Segundo André
Bazin, a arte da imagem em movimento corresponde à arte do real, uma vez que esta se revela
capaz de, fidedignamente, expor a unitária, linear e contínua realidade espacial (e, por isso,
temporal) ocupada pela matéria registada: “[Para Bazin] [...] o centro do realismo
cinematográfico não provém do realismo do tema ou da expressão, mas de um autêntico
realismo espacial, sem o qual as imagens-movimento não se constituiriam em cinema” (Grilo,
s.d.). No entanto, afirma, concomitantemente, o teórico francês que, por vezes, a gramática
111
Circularidade congénita do aprisionamento resultante da relação estabelecida entre o dispositivo de exibição e a
montagem audiovisual respeitantes à obra Il Nuotatore (va troppo spesso ad Heidelberg)111 (1984) (ver anexo 2,
vídeo 29), do colectivo Studio Azzurro.
112
Na obra Odisseia, Ulisses, após 20 anos de viagem, regressa à sua terra natal, Ítaca.

45
cinematográfica – nomeadamente a operação de montagem (relação de planos
cinematográficos detentores de díspares espaços-tempos) –, ao permitir que o cinema exista e
se construa enquanto tal, compromete a função que lhe está destinada, ou seja, o realismo
espacial (e, por isso, temporal) mencionado: “Thus we see that there are cases in which
montage far from being the essence of cinema is indeed its negation” (Bazin, 1958: 50). Isto
porque a montagem cinematográfica se revela capaz de derivar significado a partir da relação
resultante da união de distintos fragmentos audiovisuais relativos a uma mesma realidade. Esta
relação, não raras vezes, transfigura e artificializa as imagens cinematográficas em questão – e,
por extensão, a realidade (leia-se unidade espácio-temporal) à qual as mesmas se reportam –,
asseverando, consequente e implicitamente, que o significado produzido pela montagem
cinematográfica é exterior e, no limite, alheio às imagens cinematográficas que,
paradoxalmente, o compõem: “[...] the creation of a sense or meaning not objectively
contained in the images themselves but derived exclusively from their juxtaposition” (ibid.:
25).
Conclui-se, portanto, que a contradição inerente às operações de montagem
cinematográfica definidas anteriormente e apelidadas, segundo a terminologia baziniana, de
interditas, reside na intenção de exibir o real através das suas adulteração e sequente omissão,
isto é, através da criação “[...] [de] um tempo abstracto[,] [d]e um espaço indiferenciado […]
[e de uma] continuidade mental à custa de uma descontinuidade perceptiva" (Grilo, op. cit.).
Deste modo, verifica-se, por parte de Bazin, a apologia e o favorecimento da transparência do
discurso fílmico; e do privilegiar de práticas de montagem capazes de preservar a unidade, a
linearidade e a continuidade espácio-temporal das imagens cinematográficas mobilizadas, ou
seja, de práticas de montagem capazes de exibir, realisticamente, a realidade registada. Por esta
razão, valoriza-se, evidentemente, o recurso ao plano-sequência, cujas continuidade e
linearidade espácio-temporais aparentam ser conformes às continuidade e linearidade espácio-
temporais moduladoras da realidade humana: “Bazin prefere nitidamente este tipo de
construção às soluções tradicionais de montagem, por três motivos fundamentais: porque ele é,
em si mesmo, mais realista; porque a autenticidade de certos factos exige mesmo este tipo de
tratamento mais realista; e, finalmente, porque se ajusta, muito melhor, à nossa forma
psicológica (óptica e visual) de assimilação da realidade” (ibid.). Uma paradigmática tentativa
demonstrativa do que foi anteriormente exposto consubstancia-se na obra Rope (1948), de
Alfred Hitchcock.

46
Esta aparente conformidade, no que à variável temporal diz respeito, deriva da
assunção de que a temporalidade inerente à matéria audiovisual se revela capaz de representar
e de comprovar, na perfeição, o modo como o homem experiencia o tempo, isto é, de se
constituir enquanto equivalente da durabilidade e da irreversibilidade intrínsecas à
temporalidade que é a da realidade. Como refere Mary Ann Doane:

Film incarnates the certainty and inevitability of temporal direction only at the
cost of enslavement to its status as an indexical record. The automatic
assumption that film indicates ‘real’ or accurate temporal direction is
coincident with the automatic assumption of its direct and unmediated
referentiality. From this point of view, the filmic image must be read as the
imprint or trace of a specific moment in time. (Doane, 2002: 119)

De facto, a vasta maioria das produções cinematográfica e videográfica assume a


temporalidade audiovisual enquanto arquivo e espelho de uma temporalidade que lhe é
exterior, ou seja, de uma temporalidade que, ontologicamente, não pertence à matéria
audiovisual ela mesma, mas antes à realidade que lhe confere existência. É por esta razão que
“A single shot inevitably produces the effect of temporal continuity and, hence, of ‘real time’”
(ibid.: 184).
Diz-nos Huberman que “Siempre, ante la imagen, estamos ante el tiempo” (Didi-
Huberman, 2000: 31). Já ante uma imagem fílmica, múltiplos são os desdobramentos que a
variável temporal comporta, uma vez que a primeira congrega, inevitavelmente, cinco distintas
temporalidades: a temporalidade de captação (relativa ao processo de captação/registo
fílmica/o), a temporalidade de reprodução (relativa ao funcionamento do dispositivo de
reprodução fílmica), a temporalidade de recepção (relativo à experiência perceptiva
protagonizada pelo espectador), a temporalidade narrativa (relativa à dramaturgia da obra em
questão) e a temporalidade audiovisual (relativa às propriedades imagéticas e sonoras da
imagem). Perante um plano-sequência, todas estas temporalidades – à excepção da
temporalidade narrativa, a qual é, invariavelmente, construída e ficcionada, e, por isso, de
ordem abstracta, psicologizante e, potencialmente, anacrónica113 – parecem ser não só exactos e
recíprocos equivalentes umas das outras, mas também rigorosos substitutos da temporalidade

113
Veja-se a obra A Piscina (2004) (ver anexo 2, vídeo 30), de João Viana e Iana Ferreira, na qual, dado o plano-
sequência utilizado, a sincronia existente entre as temporalidades de captação, de reprodução, de recepção e
audiovisual diferem da temporalidade narrativa: “A forma como atravessamos de uma só vez uma piscina pública
faz lembrar a vida desde que nasce até ao fim” in:
<http://www.curtas.pt/agencia/filmes/120/>, acedido em Dezembro de 2015.

47
inerente à realidade que lhes deu origem, isto é, todas estas temporalidades aparentam partilhar
das propriedades temporais que caracterizam a temporalidade da realidade, nomeadamente a
da irreversibilidade.
No entanto, se tal é aplicável a três destas quatro temporalidades (temporalidades de
captação, de reprodução e de recepção) – na medida em que as mesmas não são passíveis de
serem humanamente experienciadas de modo reversível –, o mesmo não é extensível à
temporalidade audiovisual da imagem, já que esta, através do recurso a operações de
montagem interna, é manipulável e reversível: “Film in its mainstream form seems to embody
the very principle of irreversibility. At its most basic level, the film moves forward relentlessly,
reproducing the familiar directionality of movements with regularity despite its capability of
doing exactly the opposite” (Doane, op. cit.: 112).
Conclui-se, deste modo, sendo o objecto O Retrato de Ulisses evidencia de tal, que
existe uma temporalidade audiovisual interna à imagem fílmica e independente, em termos
absolutos, da temporalidade referente à realidade à qual a imagem se reporta. Neste sentido,
veja-se a obra Oil workers (from the Shell company of Nigeria) returning home from work,
caught in torrential rain 114 (2013), de David Claerbout, na qual, a partir de material
exclusivamente fotográfico, se constrói uma temporalidade visual que não colhe existência a
não ser no interior da própria imagem, ou seja, que não estabelece qualquer tipo de vínculo
para com a temporalidade relativa à realidade fotografada115. Simultaneamente, constata-se,
então, que esta mesma temporalidade audiovisual difere, ontologicamente, da temporalidade
referente à realidade ela mesma, o que inviabiliza, por consequência, a crença de que a imagem
em movimento se revela apta a reproduzir, com exactidão, a realidade, mesmo na
eventualidade de ser capaz de assegurar a linearidade espacial e a continuidade espácio-
temporal da mesma: […] the use of camera stoppage and editing allowed the film to construct
its own temporality, independently of the external event or situation. The specific technology

114
Ver anexo 2, vídeo 31.
115
“Like several of his works, this video is composed of countless individual shots of each of the characters which
were then carefully staged and digitally manipulated in the studio. Claerbout decelerates and moulds time not as
the measure of motion; instead he casts motion as the structure of time and further underlines this by the absence
of sound. Temporal and formal boundaries between past, present and future and between painting, photo­graphy
and video are dissolved and become fluid. The men slip from view as though we were in capable of holding their
gaze. Only the oily reflections in the water remain until the infinite loop projection allows the camera to slowly
home in on them again. With the warped logic of a dream the reproduced infinity of a photographic source image
is invested with surreal motion. It recharges the “frozen” image with the life of which it had been robbed by the
photographic process” in:
<https://www.dropbox.com/s/myrhc7vls9qsdym/Staatsgalerie%20Stuttgart%20Silent%20Cinema%20March%202
015.pdf?dl=0>, acedido em Dezembro de 2015.

48
of the cinema – its apparent ability to represent the contingent without limit – posed the threat
of an overwhelming detail, a denial of representation itself” (ibid.: 31).
Assim e em O Retrato de Ulisses, recorre-se, formalmente, à utilização de um único
plano-sequência, o qual assegura não só a continuidade espácio-temporal da imagem fílmica
(e, por extensão, a da realidade à qual a mesma se reporta), mas também a linearidade espacial
da mesma116 (e, por extensão, a da realidade à qual a mesma se reporta). Por outro lado e dada a
evidente manipulação interna (operações de montagem) produzida sobre a variável temporal
que lhe é inerente (constantes reversibilidade e imobilização da imagem), o plano-sequência
utilizado compromete, distorce e nega a linearidade temporal respeitante à imagem fílmica em
questão. É possibilitado, desta feita, o surgir e o instaurar audiovisuais das condições espácio-
temporais requeridas pela perspectiva dramatúrgica elaborada sobre o conceito nietzschiano de
eterno retorno (a saber: continuidade espácio-temporal, linearidade espacial e anacronia
temporal).
Importa, então, referir que, no objecto aqui em análise, tal concepção espácio-temporal
é (audiovisualmente) laborada mediante a epicização (nos sentidos brechtiano e hubermaniano
do termo) do processo de montagem convocado, isto é, da manipulação interna da
temporalidade audiovisual da imagem, a qual visibiliza e audibiliza a anacronia e a plasticidade
que insuflam as imagens e os sons mobilizados. Tal é concretizado através: 1. da utilização de
efeitos imagético-temporais (slow motion, rewind, fast-forward e freeze), os quais não só
reiteram a afirmação proferida por Doug Aitken segundo a qual “Editing is about sculpting
time” (Aitken, 2006: 107), mas também contrariam a concordância usualmente estabelecida
entre temporalidade audiovisual e temporalidade de captação, impossibilitando, deste modo e
à semelhança da obra The Reflecting Pool117 (1977-79), de Bill Viola, e da obra Relation118
(1982), de Toshio Matsumoto, que o espectador percepcione a temporalidade real (leia-se
temporalidade de captação) inerente ao objecto O Retrato de Ulisses (cerca de nove
minutos)119; 2. do recurso a material sonoro capaz de contradizer e de anacronizar o espaço
físico real (praia) por via da construção de invisíveis espaços físico-mentais, sendo que e à
semelhança do que ocorre em termos visuais, aquele (o material sonoro mobilizado) só se

116
Tal linearidade espacial é sublinhada pela dinâmica panorâmica convocada, a qual ressoa a obra La chambre
(1972), de Chantal Akerman (ver anexo 2, vídeo 32).
117
Ver anexo 2, vídeo 33.
118
Ver anexo 2, vídeo 34.
119
A temporalidade real (de captação) inerente à obra O Retrato de Ulisses é devolvida à imagem apenas aquando
da presença física do protagonista nesta (início e término da obra).

49
revela real (credível e fidedigno), aquando da presença física do protagonista na imagem
(início e término da obra); 3. da criação de ilusões fílmicas temporais (como a alteração, a
introdução e a subtração de objectos ou a aparição/desaparição do próprio protagonista),
ilusões estas construídas a partir da expectativa-crença de que a temporalidade de captação
coincide com a temporalidade audiovisual da imagem; 4. do facto de, sem nunca se incorrer na
elaboração de elipses de natureza audiovisual (concretizadas mediante a montagem de
diferentes planos audiovisuais), se efectuar copiosas e contínuas elipses narrativo-conceptuais;
e 5. da constante repetição do material imagético, o qual, perante a anacronia temporal
audiovisual operada e respectiva dramaturgia relativa ao conceito nietzschiano de eterno
retorno, detém, simultaneamente e à semelhança da obra Der Sandmann (1995), de Stan
Douglas, valores temporais narrativos passados, presentes e futuros, independentemente dos
momentos narrativos e audiovisuais em que aquele (material imagético mobilizado) é
apresentado e/ou repetido.
Importa ainda mencionar que um outro mecanismo de montagem audiovisual
intrínseco ao objecto O Retrato de Ulisses é o loop120, o qual, porque epicizado e pensado “[…]
as a genuine part of the temporality of the work” (Ross, 2006: 96), se revela capaz de laborar
conteúdo dramatúrgico-conceptual. No entanto e na obra aqui em análise, o mecanismo em
questão não é, efetivamente, concretizado, mas antes sugerido (através da repetição de igual
matéria textual tanto no início quanto no término da mesma104). Tal opção deriva do facto de,
se, por um lado, o objecto O Retrato de Ulisses se encontra ontologicamente (e não
visualmente) dependente do mecanismo que é o loop, isto é, dependente da operação temporal
que o mesmo supõe, por outo, este último (loop) não depende, por sua vez, da repetição das
imagens que, eventualmente, o concretizam. Tal deve-se ao facto de repetição mencionada

120
Ver anexo 2, vídeo 45, referente à obra Non-Specific Threat (2004), de Willie Doherty, na qual o artista “[...]
articulates a looping that plays an active part – a necessary role – in the renewal of the viewer's perception.
Presenting a motionless man standing in a dark, deserted warehouse but filmed by a camera that slowly and
insistently rotates around him, the projection stages a male voice-over that seems, at least at first, to express the
protagonist's thoughts in relation to the viewer. All statements are about a relation to an ‘other’ and power over
this other (‘Your death is my salvation... I am the face of evil. I'm self-contained. There will be no music. I'm your
victim. You are my victim. There will be no newspapers. I share your fears. I know your desires…”). The
threatening awe of these statements is nourished both by the site and the skinhead, gangster look of the white man
– elements that suggest malignancy. But as the camera circles and circles around the body and, more important, as
the loop repeats and repeats the scene to make the viewer aware of the initially imperceptible expressive
movements of the body, the orientation of the words becomes less and less settled. These expressions appear
gradually to be reactions to the words which might not after all be referring to the man's thought but to the
viewer's. Slowly disclosed, therefore, is the viewer's attempt to define the face of evil in an age of generalized
terrorist threat, as well as the ways in which this attempt is marked by how media (and the politicians using
media) define evilness. Along with this disclosure comes a loosening-up of our initial reading of the man and the
incitement to reinterpret that past and let it signify differently” (Ross, op. cit.: 98).

50
implicar, no presente contexto, a substituição dos valores temporais e dramatúrgicos que lhe
são próprios por valores de ordem meramente funcional (referentes à utilização do mecanismo
que é o loop enquanto mero dispositivo de exibição).
“Monta o teu filme à medida que o filmas” (Bresson, 1975: 34), recomenda Bresson,
enquanto Godard assevera que “Knowing just how long one can make a scene last is already
montage […]” (Godard, op. cit.: 2), sendo ambas as afirmações validadas pelo objecto O
Retrato de Ulisses, cujo processo de montagem audiovisual se manifesta indissociável da acção
de realização cinematográfica que o precede e mediante o qual se problematiza a
temporalidade audiovisual inerente ao plano-sequência elaborado. Para tal, em jeito de
conclusão e considerando a citação que Huberman cumpre relativamente ao pensamento
deleuziano – “La imagen misma es un conjunto de relaciones de tiempo del que el presente no
hace más que derivar, ya sea como un común múltiple o como el divisor más pequeño. Las
relaciones de tiempo nunca se ven en la percepción ordinaria, pero se ven en la imagen, desde
el momento que es creadora. Vuelve sensible, visibles, las relaciones de tiempo irreducibles al
presente” (Gilles Deleuze apud Didi-Huberman, 2008: 213) –, inúmeras relações (montagens)
internas temporais são geradas, relações estas que, ao (con)fundirem aspectos formais com
premissas narrativas, ensaiam as condições necessárias para que seja legítimo à matéria
audiovisual convocada assumir uma tomada de posição (no sentido hubermaniano da
expressão) iminentemente dramatúrgica.

51
CONCLUSÃO

“Las imágenes no nos dicen nada, nos mienten o son oscuras como jeroglíficos […]”
(ibid.: 44). Reformula-se a afirmação de Huberman para se asseverar que o mesmo é extensível
ao material sonoro. Uma imagem-som não é apenas uma imagem-som, mas antes múltiplas
imagens-sons, sendo tal multiplicidade passível de ser revelada (não só, mas também) através
dos processos de montagem que sobre elas agem. Rejeita-se, portanto, a assunção de que os
objectos aqui apresentados se revelam necessários, uma vez que, a partir do material
audiovisual que lhes dá corpo, inúmeros e dissemelhantes outros são possíveis de ser
elaborados.
Deste modo, pensam-se os processos de montagem (audiovisual) para além das suas
finalidades técnicas, na medida em que os mesmos são equacionados enquanto autênticas
ferramentas dramatúrgicas, criativas e conceptais. Tal equação, contextualizada e comprovada
mediante a análise da práxis dadaísta, do fazer teatral brechtiano ou dos primeiros
experimentos cinematográficos soviéticos (primeiro capítulo), é aqui realizada e
problematizada à luz da proposta hubermaniana relativa à prática artística épica sugerida por
Brecht (segundo capítulo). Adopta-se, então, a perspectiva segundo a qual a responsabilidade
atribuída aos processos de montagem (audiovisual) reside no legitimar, no compor e no
legibilizar de imagens-sons maiores que os termos constituintes dessas mesmas imagens-sons,
ou seja, maiores que as individualidades referentes às imagens e aos sons que as compõem. Esta
responsabilidade é, por sua vez e em conformidade com o que é explanado no primeiro
subcapítulo do terceiro capítulo, exposta através da construção de três objectos audiovisuais,
cujos processos de montagem privilegiam a audibilidade e a visibilidade épicas das relações
estabelecidas entre os sons e as imagens mobilizadas. É defendido que os conteúdos narrativos
inerentes às obras aqui perscrutadas não se encontram, de modo algum, subordinados às
variáveis dramáticas de montagem que são o silêncio e a invisibilidade. Tal porque se sugere,
mediante o dissecar dos processos de montagem utilizados na feitura do projecto a arte do não-
retrato (segundo, terceiro e quarto subcapítulos do terceiro capítulo), que é por via do
deliberado assumir dos primeiros enquanto processos de montagem que as componentes
narrativas do segundo são cumpridas.
Godard afirma que “A montagem [...] é o que faz ver” (id., 2004: 176). Já na presente
dissertação é declarado que, no caso específico do projecto a arte do não-retrato, é a

52
visibilidade (e a audibilidade) da montagem o que faz ver (e ouvir). Por esta razão, os
mecanismos de montagem convocados não detêm a mera função de apresentar o material
audiovisual que, não obstante, apresentam. Em boa verdade, são eles, em parte, que geram os
conteúdos narrativos laborados. Isto porque estes mesmos mecanismos, ao se constituírem
enquanto verdadeiros desdobramentos do efeito brechtiano Verfremdungseffekt, (con)fundem
o binómio forma-conteúdo. Tal metodologia de montagem, aqui apelidada de montagem
narrativa não dramática, força, então, os processos de montagem mobilizados a produzirem
um discurso específico, ou seja, a assumirem uma tomada de posição (no sentido
hubermaniano do termo) narrativa específica: aquela que é a do narrador.
De facto, os processos referidos não só esculpem a moldura dos retratos audiovisuais
laborados, mas também (e sobretudo) constroem, veiculam e problematizam as questões
dramatúrgicas, conceptuais e identitárias que cada dos mesmos convoca. Em O Retrato de
Irineu, os mecanismos de montagem que são a acumulação e a repetição edificam o labirinto
geográfico-mental que enclausura o indivíduo retratado; em O Retrato de Mónica, os
mecanismos de montagem que são a descontextualização e a reorganização traduzem a
dificuldade em fixar a identidade da protagonista; e em O Retrato de Ulisses, os mecanismos de
montagem que são a manipulação temporal e o loop forjam um espaço-tempo que permite
pensar a ciclicidade conceptual que aprisiona o sujeito descrito. Conclui-se, assim, que os
mecanismos enunciados se manifestam enquanto verdadeiras ferramentas discursivas, tão
fundamentais quanto os conteúdos decorrentes das componentes textuais referentes a cada um
dos objectos audiovisuais mencionados. É lícito, pois, afirmar que, se estas mesmas
componentes – porque verbalizadas via mecanismos de voz-off – implicam, inevitavelmente, o
assumir da existência de narrador(es), semelhantes funções são conferidas aos processos de
montagem utilizados. Tais processos, porque volvidos épicos, ou seja, porque volvidos visíveis
e audíveis, legibilizam, aprofundam e narram, a nível audiovisual e a nível conceptual, as
dimensões dramatúrgicas inerentes ao projecto a arte do não-retrato, sendo, no limite,
autênticos substitutos quer das componentes textuais do mesmo, quer do(s) narrador(es) que
as verbaliza(m).
Para terminar o presente trabalho de investigação, importa apenas adicionar que se
pretende, em projectos futuros, dar continuidade a todo o pensamento e a todo o
questionamento aqui forjados, nomeadamente através da concepção de instalações
audiovisuais multi-tela, capazes de convocar processos de montagem que extrapolam o espaço

53
fílmico. Isto porque “[…] narrative [doesn’t] [end] with the image on the screen. Narrative can
exist on a physical level” (Aitken apud Birnbaum, 2001: 16).

54
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ANEXO 1: FIGURAS E RESPECTIVO ÍNDICE

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objets trouvés], em linha e disponível em:
<https://en.wikipedia.org/wiki/Raoul_Hausmann#/media/File:MechanicalHead-
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66
Fig. 2
HÖCH, Hannah, (1919), Da Dandy, [fotomontagem], em linha e disponível em:
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2015.

67
Fig. 3
SCHWITTERS, Kurt, (1922-23), Casa Merz, [assemblage], em linha e disponível em:
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68
Fig. 4
DUCHAMP, Marcel, (1915), Chafariz, [readymade], em linha e disponível em:
<https://egonturci.wordpress.com/2012/09/10/a-fonte/>, acedido em Dezembro de 2015.

69
Fig. 5
BRECHT, Bertold, (1955), apontamento referente à entrada de dia 29 de Agosto (1940) da obra
Arbeitsjournal in DIDI-HUBERMAN, Georges, (2008), Cuando las imágenes toman posición:
El ojo de la historia, 1, trad. Inés Bértolo, Madrid: A. Machado Libros, p. 69.

70
Fig. 6
BRECHT, Bertold, (1944), apontamento referente à entrada de dia 14 de Junho (1944) da obra
Arbeitsjournal in DIDI-HUBERMAN, Georges, (2008), Cuando las imágenes toman posición:
El ojo de la historia, 1, trad. Inés Bértolo, Madrid: A. Machado Libros, p. 90.

71
Fig. 7
BRECHT, Bertold, (1955), placa nº 2 da obra Kriegsfibel in DIDI-HUBERMAN, Georges,
(2008), Cuando las imágenes toman posición: El ojo de la historia, 1, trad. Inés Bértolo,
Madrid: A. Machado Libros, p. 64.

“¿Qué hacéis, hermanos?” – “Un vagón.”/“¿Y qué de esas planchas al lado?”/“Proyectiles que
atraviesan paredes de hierro.”/“¿Y por qué eso, hermanos? – “Para vivir.”.

72
Fig. 8
BRECHT, Bertold, (1955), placa nº 21 da obra Kriegsfibel in DIDI-HUBERMAN, Georges,
(2008), Cuando las imágenes toman posición: El ojo de la historia, 1, trad. Inés Bértolo,
Madrid: A. Machado Libros, p. 61.

73
Fig. 9
BRECHT, Bertold, (1955), placa nº 42 da obra Kriegsfibel in DIDI-HUBERMAN, Georges,
(2008), Cuando las imágenes toman posición: El ojo de la historia, 1, trad. Inés Bértolo,
Madrid: A. Machado Libros, p. 62.

74
Fig. 10
BRECHT, Bertold, (1955), placa nº 47 da obra Kriegsfibel in DIDI-HUBERMAN, Georges,
(2008), Cuando las imágenes toman posición: El ojo de la historia, 1, trad. Inés Bértolo,
Madrid: A. Machado Libros, p. 42.

75
Fig. 11
KLEIN, Yves, (1960), Leap Into the Void, [performance/fotomontagem], em linha e disponível
em:
<http://www.forbes.com/forbes/welcome/>, acedido em Dezembro de 2015.

76
Fig. 12
KLEIN, Yves, (1960), Leap Into the Void, [performance/fotomontagem], registo documental
do processo criativo, em linha e disponível em:
<https://glewispa2403.wordpress.com/2014/04/02/the-performativity-of-performance-
documentation/>, acedido em Dezembro de 2015.

77
Fig. 13
LANGUAGE, Art &, (1965), Untitled Painting, [espelho sobre tela], em linha e disponível em:
<http://www.tate.org.uk/art/artworks/art-language-michael-baldwin-untitled-painting-
t12331> acedido em Dezembro de 2015.

78
Fig. 14
MAGRITTE, René, (1937), La Reproduction Interdite, [óleo sobre tela], em linha e disponível
em:
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museum-of-modern-art-through-january-12th-2014/>, acedido em Dezembro de 2015.

79
Fig. 15
GRAHAM, Dan, (1974), Present Continuous Past(s), [obra instalativa/videográfica], esquema
explicativo, em linha e disponível em:
<http://www.newmedia-art.org/cgi-bin/show-oeu.asp?ID=150000000020624&lg=FRA>,
acedido em Dezembro de 2015.

80
Fig. 16
GRAHAM, Dan, (1974), Present Continuous Past(s), [obra instalativa/videográfica], registo
documental, em linha e disponível em:
<http://www.newmedia-art.org/cgi-bin/show-oeu.asp?ID=150000000020624&lg=FRA>,
acedido em Dezembro de 2015.

81
Fig. 17
MAGRITTE, René, (1927), La clef des songes, [óleo sobre tela], em linha e disponível em:
<http://www.wikiart.org/en/rene-magritte/the-interpretation-of-dreams-1927#close>, acedido
em Dezembro de 2015.

82
Fig. 18
KITANO, Takeshi, (2005), arquivo fotográfico referente à experiência “Ciné-manga” in
Cahiers du Cinéma, trans. Basile Doganis, nº 600, Avril, supplément, p. 6.

83
Fig. 19
KITANO, Takeshi, (2005), arquivo fotográfico referente à experiência “Ciné-manga”
[continuação] in Cahiers du Cinéma, trans. Basile Doganis, nº 600, Avril, supplément, p. 7.

84
Fig. 20
KITANO, Takeshi, (2005), micro-narrativa proposta relativa à experiência “Ciné-manga” in
Cahiers du Cinéma, trans. Basile Doganis, nº 600, Avril, supplément, p. 11.

85
Fig. 21
DOILLON, Jacques, (2005), micro-narrativa proposta relativa à experiência “Ciné-manga” in
Cahiers du Cinéma, trans. Basile Doganis, nº 600, Avril, supplément, p. 29.

86
Fig. 22
LANZMANN, Claude, (2005), micro-narrativa proposta relativa à experiência “Ciné-manga”
in Cahiers du Cinéma, trans. Basile Doganis, nº 600, Avril, supplément, p. 33.

87
Fig. 23
SANT, Gus Van, (2005), micro-narrativa proposta relativa à experiência “Ciné-manga” in
Cahiers du Cinéma, trans. Basile Doganis, nº 600, Avril, supplément, p. 36.

88
Fig. 24
GISINGER, Arno e DIDI-HUBERMAN, Georges, (2014), Nouvelles histoires de fantômes,
[obra instalativa], registo documental, em linha e disponível em:
<http://www.almanart.org/le-palais-de-tokyo-prevoit-l-etat-du-ciel.html>, acedido em
Dezembro de 2015.

89
Fig. 25
SNOW, Michael, (1970), A Casing Shelved, [obra videográfica], em linha e disponível em:
<https://iffr.com/en/2013/films/a-casing-shelved>, acedido em Dezembro de 2015.

90
Fig. 26
DALI, Salvador, (1931), A Persistência da Memória, [óleo sobre tela], em linha e disponível
em:
<http://virusdaarte.net/dali-persistencia-da-memoria/>, acedido em Dezembro de 2015.

91
Fig. 27
VARDA, Agnès, (1954), Ulysse, [obra fotográfica], em linha e disponível em:
<http://maze.fr/cinema/10/2015/ulysse-agnes-varda-1982/>, acedido em Dezembro de 2015.

92
ANEXO 2: VÍDEOS E RESPECTIVO ÍNDICE

Vídeo 1
KULESHOV, Lev, (1920), [experimento audiovisual, posteriormente apelidado de Kuleshov
Effect], em linha e disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=grCPqoFwp5k>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 2
CAGE, John, (1965), Radio Music, [obra sonora/musical], 6:02 minutos, em linha e disponível
em:
<http://www.ubu.com/sound/cage_nova.html>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 3
LEVIN, Golan e GIBBONS, Scott, (2001-02), Dialtones (a Telesymphony), [obra sonora],
entrevista sobre o processo criativo, em linha e disponível em:
<https://vimeo.com/5362108>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 4
LEVIN, Golan e GIBBONS, Scott, (2001-02), Dialtones (a Telesymphony), [obra sonora],
excerto, em linha e disponível em:
<https://vimeo.com/4166428>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 5
GRAHAM, Dan, (1974), Present Continuous Past(s), [obra instalativa/videográfica], registo
documental segundo a perspectiva do espectador, em linha e disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=aLNfUB7JtA4>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 6
PÉRIOT, Jean-Gabriel, (2007), Nijuman no borei (200000 fantômes), [obra videográfica],
10:54 minutos, em linha e disponível em:
<https://vimeo.com/11457021>, acedido em Dezembro de 2015.

93
Vídeo 7
RESNAIS, Alain, (1956), Toute la mémoire du monde, [obra cinematográfica], 20:42 minutos,
em linha e disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=i0RVSZ_yDjs>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 8
BALDESSARI, John, (1971), I Will Not Make Any More Boring Art, [obra videográfica],
excerto, 32:21 minutos, em linha e disponível em:
<https://vimeo.com/25452374>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 9
JACOBS, Ken, (2006), Capitalism Slavery, [obra videográfica], 03:10 minutos, em linha e
disponível em:
<https://vimeo.com/94001787>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 10
ITO, Takeshi, (1981), Spacy, [obra videográfica], 09:56 minutos, em linha e disponível em:
<https://vk.com/video-91475109_171232813>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 11
LUCIER, Alvim, (1969), I Am Sitting in a Room, [obra sonora], 45:24 minutos, em linha e
disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=fAxHlLK3Oyk>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 12
BISMUTH, Pierre, (2001-09), Respect the Dead, [obra videográfica], 32:07 minutos, em linha e
disponível em:
<https://vimeo.com/84346431>, acedido em Dezembro de 2015.

94
Vídeo 13
BREITZ, Candice, (2005), Mother, [obra videográfica], 13:15 minutos, em linha e disponível
em:
<https://vimeo.com/74745827>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 14
BREITZ, Candice, (2005), Father, [obra videográfica], 11 minutos, em linha e disponível em:
<https://vimeo.com/74739468>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 15
GORDON, Douglas, (1993), 24 Hour Psycho, [obra videográfica], excerto, 24 horas, em linha e
disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=UtLg5TqqVeA>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 16
FAST, Omer, (2007), The Casting, [obra videográfica], projecções frontais, 14:10 minutos, em
linha e disponível em:
<https://vimeo.com/54402884>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 17
FAST, Omer, (2007), The Casting, [obra videográfica], projecções traseiras, 14:10 minutos, em
linha e disponível em:
<https://vimeo.com/54402885>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 18
FAST, Omer, (2007), The Casting, [obra videográfica], entrevista sobre o processo criativo, em
linha e disponível em:
<https://vimeo.com/50408846>, acedido em Dezembro de 2015.

95
Vídeo 19
PROVOST, Nicolas, (2007), Plot Point, [obra videográfica], excerto, 15 minutos, em linha e
disponível em:
<http://www.nicolasprovost.com/films/454/>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 20
PROVOST, Nicolas, (2010), Stardust, [obra videográfica], excerto, 20 minutos, em linha e
disponível em:
<http://www.nicolasprovost.com/films/476/>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 21
PROVOST, Nicolas, (2012), Tokyo Giants, [obra videográfica], excerto, 22 minutos, em linha e
disponível em:
<http://www.nicolasprovost.com/films/528/>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 22
SOLTEIRO, Cão e GODINHO, André, (2011), Play, The Film, [obra teatral], excerto, em linha
e disponível em:
<https://vimeo.com/32300684>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 23
BUARQUE, Chico, (1971), Construção, [obra musical], 6:26 minutos, em linha e disponível
em:
<https://www.youtube.com/watch?v=jzWI_JjFBr0>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 24
GISINGER, Arno e DIDI-HUBERMAN, Georges, (2014), Nouvelles histoires de fantômes,
[obra instalativa], entrevista sobre o processo criativo, em linha e disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=WFyCBhcdzGo>, acedido em Dezembro de 2015.

96
Vídeo 25
HENROT, Camille, (2013), Grosse Fatigue, [obra videográfica], entrevista sobre o processo
criativo, em linha e disponível em:
<https://vimeo.com/86174818>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 26
MARKER, Chris, (1962), La Jetée, [obra videográfica], 26:37 minutos, em linha e disponível
em:
<https://vimeo.com/48757412>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 27
CAHEN, Robert, (2007), Sanaa, passages en noir, [obra videográfica], excerto, 07:07 minutos,
em linha e disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=jSrSU9QIPBw>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 28
VARDA, Agnès, (1982), Ulysse, [obra videográfica], 20:42 minutos, em linha e disponível em:
<https://vimeo.com/94117079>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 29
AZZURRO, Studio, (1984), Il Nuotatore (va troppo spesso ad Heidelberg), [obra
videográfica/instalativa], registo documental, em linha e disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=xn6stTGqYEM>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 30
VIANA, João e FERREIRA, Iana (2004), A Piscina, [obra cinematográfica], 16:22 minutos, em
linha e disponível em:
<https://vimeo.com/32276396>, acedido em Dezembro de 2015.

97
Vídeo 31
CLAERBOUT, David, (2013), Oil workers (from the Shell company of Nigeria) returning
home from work, caught in torrential rain, [obra videográfica], excerto, 20 minutos, em linha e
disponível em:
<https://vimeo.com/92601741>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 32
AKERMAN, Chantal, (1972), La chambre, [obra cinematográfica], 10:24 minutos, em linha e
disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=8AGakyb3eBU>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 33
VIOLA, Bill, (1977-79), The Reflecting Pool, [obra videográfica], 06:54 minutos, em linha e
disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=GHdX7sApIMc>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 34
MATSUMOTO, Toshio, (1982), Relation, [obra videográfica], 08:02 minutos, em linha e
disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ig7a8JEvzkI>, acedido em Dezembro de 2015.

Vídeo 35
DOHERTY, Willie, (2004), Non-Specific Threat, [obra videográfica], excerto, 7 minutos, em
linha e disponível em:
<https://vimeo.com/78252959>, acedido em Dezembro de 2015.

98
APÊNDICES

Apêndice 1
Componente textual do objecto O Retrato de Irineu:

i.
Naturalis Historia, de Plínio, o Velho. 24º capítulo, 7º livro: casos de memória prodigiosa: 1.
Ciro, rei dos persas, sabedor de todos os nomes de todos os soldados de todos os seus exércitos; 2.
Mitrídates, capaz de discursar, fluentemente, nos 22 idiomas falados no seu império; 3. Simónides,
inventor da mnemotécnica; 4. Metrodoro, capaz de repetir, com uma precisão irrepreensível, o
escutado uma única vez.
Faltou a Plínio incluir uma quinta ocorrência: o estranho caso de Irineu.

ii.
Este é Irineu.
Este é Irineu, incapaz de esquecer.
Este é Irineu, incapaz de esquecer e dotado de uma memória infalível.
Este é Irineu, incapaz de esquecer e dotado de uma memória infalível, que reconstruiu, não
raras vezes, dias, inteiros.
Este é Irineu, incapaz de esquecer e dotado de uma memória infalível, que reconstruiu, não
raras vezes, dias inteiros; e que, após ter lido, uma única vez, a versão original d’A Divina Comédia, de
Dante Alighieri, foi capaz de reproduzi-la na íntegra.
Este é Irineu, incapaz de esquecer e dotado de uma memória infalível, que reconstruiu, não
raras vezes, dias inteiros; e que, após ter lido, uma única vez, a versão original d’A Divina Comédia, de
Dante Alighieri, foi capaz de reproduzi-la na íntegra; e que, um dia, projectou um sistema original de
numeração, o qual, em pouquíssimos dias, excedeu o algarismo vinte e quatro mil, e no qual os
números árabes, como os números cinquenta e três ou doze, foram substituídos por expressões como
dias inteiros ou A Divina Comédia, respectivamente.
Este é Irineu, incapaz de esquecer e dotado de uma memória infalível, que reconstruiu, não
raras vezes, dias inteiros; e que, após ter lido, uma única vez, a versão original d’A Divina Comédia, de
Dante Alighieri, foi capaz de reproduzi-la na íntegra; e que, um dia, projectou um sistema original de
numeração, o qual, em pouquíssimos dias, excedeu o algarismo vinte e quatro mil, e no qual os
números árabes, como os números cinquenta e três ou doze, foram substituídos por expressões como
dias inteiros ou A Divina Comédia, respectivamente; e que, num outro dia, construiu um idioma
impossível, no qual cada coisa individual – cada rua, cada porta e cada puxador – detinha um nome

99
próprio, pois não só recordava cada puxador de cada porta de cada rua, como também cada uma das
vezes que tinha visto cada puxador de cada porta de cada rua.
Este é Irineu, incapaz de esquecer e dotado de uma memória infalível, que reconstruiu, não
raras vezes, dias inteiros; e que, após ter lido, uma única vez, a versão original d’A Divina Comédia, de
Dante Alighieri, foi capaz de reproduzi-la na íntegra; e que, um dia, projectou um sistema original de
numeração, o qual, em pouquíssimos dias, excedeu o algarismo vinte e quatro mil, e no qual os
números árabes, como os números cinquenta e três ou doze, foram substituídos por expressões como
dias inteiros ou A Divina Comédia, respectivamente; e que, num outro dia, construiu um idioma
impossível, no qual cada coisa individual – cada rua, cada porta e cada puxador – detinha um nome
próprio, pois não só recordava cada puxador de cada porta de cada rua, como também cada uma das
vezes que tinha visto cada puxador de cada porta de cada rua; e que se pensava enquanto um lúcido
espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exacto, e enquanto um
prisioneiro de um purgatório labiríntico, vertiginoso e destituído de tempo, já que, sozinho, possuía
mais recordações que todos os homens, vivos ou mortos.

iii.
Irineu morreu de uma congestão pulmonar. Uns meses após a sua morte, foi encontrada, no
seu quarto, uma carta por ele assinada, mas não datada. Dizia ela: “Não sou apenas tudo aquilo que
recordo, mas, sobretudo, tudo aquilo que não sou capaz de esquecer. Por isso, vem sentar-te comigo,
Lídia, à beira do rio. Sossegadamente, fitemos o seu curso, sem nunca enlaçarmos as mãos. Assim,
quando partires, lembrar-me-ei de ti, sem que a tua lembrança me arda ou me fira ou me mova, porque
nunca enlaçamos as mãos”.
É improvável que Irineu tenha, alguma vez, conhecido alguma Lídia. Raramente saía de casa,
pois prezava, acima de tudo, a solidão. Em boa verdade, utilizou-a para corrigir a sua trágica natureza,
assegurando, assim, a sua imediata queda no esquecimento do mundo.

100
Apêndice 2
Componente textual do objecto O Retrato de Mónica:

i.
Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser uma boa mãe de
família; ser chiquíssima; ajudar o marido nos negócios; nadar todas as manhãs; ser pontual; ter imensos
amigos; organizar muitas tertúlias; ir a muitas tertúlias; não fumar; não envelhecer; gostar de toda a
gente; gostar dela; dizer bem de toda a gente; toda a gente dizer bem dela; ser uma coleccionadora nata;
deitar-se tarde; levantar-se cedo; gostar de pintura abstracta; gostar de música; ter segredos; ser culta e
um belo exemplo de virtudes. Todos os vestidos de Mónica são bem escolhidos e Mónica nunca tem
uma distracção. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações.
E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso,
tudo lhe corre bem, até os desgostos. Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. A
comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida para
o mesmo jantar pessoas que possam ter opiniões contrárias. A chegada de Mónica é, em toda a parte,
sempre um sucesso e Mónica todos os anos parece mais nova. Muito embora nunca se esqueça de que a
vida continua, a miséria, a humilhação e a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Por trás
de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer
que Mónica trabalha de sol a sol.

ii.
Entretanto, há já vários meses que não vejo Mónica. Isto porque Mónica morreu numa manhã
de Fevereiro. Nesse dia, os painéis publicitários da avenida principal da cidade renovaram um qualquer
anúncio de cigarros. O vasto universo não tardou, pois, a afastar-se de Mónica e essa pequena mudança
foi a primeira de uma série infinita. Mas Mónica continuou a olhar o mundo, intocável, através dos seus
muitos retratos e das muitas imagens que, outrora, foram dela: Mónica antes de saber que se chamava
Mónica; Mónica-menina; Mónica no dia em que descobriu que era feita de sangue; Mónica no dia em
que viu o mar pela primeira vez; Mónica e o seu primeiro vinil; Mónica no dia em que se tornou
mulher; Mónica-mulher; Mónica quase mãe; Mónica-mãe. A fúria de Mónica; as flores de Mónica; o
cavalo de Mónica; a colecção de selos de Mónica; a obsessão de Mónica pelo tempo; o filho morto de
Mónica; os inúmeros amigos de Mónica; o 1º marido de Mónica; os lábios carnudos de Mónica; Mónica
de costas; Mónica no dia em que se achou a pessoa mais feia do mundo; Mónica no dia em que sonhou
dormir e nunca mais acordar; Mónica na manhã do seu 30º aniversário; Mónica no jantar do seu 30º
aniversário; Mónica no dia em que chorou e em que ninguém soube o porquê; Mónica na sua biblioteca
de babel; Mónica, com máscara, num qualquer carnaval. Porém, nenhum destes retratos é capaz de

101
recuperar a voz de Mónica: muito embora a vida continue, Mónica encontra-se perdida para sempre.
Isto porque a mente humana é porosa para o esquecimento. Eu próprio começo a falsear os traços de
Mónica.

iii.
E, no entanto, passados tantos anos após a sua morte, continua-se a falar de Mónica. Diz-se
que Mónica terá vivido mais de 300 anos, que terá nascido rapaz e que o seu nome primeiro terá sido
Orlando. Diz-se que Mónica terá sido um dos maiores guerreiros de que há memória e que terá vencido
infinitas batalhas. Diz-se que Mónica se terá ferido apenas uma única vez e que, um dia, terá chorado
sangue em vez de lágrimas. Diz-se que Mónica não terá conseguido morrer no dia em que quis fazê-lo.
Diz-se que Mónica terá encontrado resposta para todos os enigmas humanos. Diz-se que Mónica, um
dia, terá acordado mulher e que, desde então, não mais se reconheceu no espelho. Diz-se que Mónica,
um dia depois de ter acordado mulher, terá decidido conquistar o mundo e tornar-se mundialmente
relevante. Diz-se que Mónica terá jantado com todas as pessoas com quem importa jantar e que terá
conhecido todas as pessoas que importa conhecer. Diz-se que Mónica terá tido muitos amantes e que os
terá amado, a todos e a todas, melhor que qualquer outro amante. Diz-se que Mónica terá sobrevivido a
um naufrágio, que terá cruzado todos os oceanos a nado e que terá salvado vidas humanas. Diz-se que
Mónica terá sido a primeira a afirmar que a arte não imita a vida, mas sim o inverso. Diz-se que terá
sido Mónica quem escreveu a Odisseia. Diz-se que Mónica terá conseguido inverter todas as leis da
física e que terá percorrido, pelo menos uma vez, todas as ruas que podem ser percorridas. Diz-se
também que Mónica terá sido a responsável pelo murchar de todas as flores. Não sei ao certo o porquê
de Mónica ser falada, mas fala-se dela como se fosse impossível não o fazer, como se fosse impossível à
vida continuar sem se falar dela. Às vezes, chego a pensar que Mónica nunca chegou sequer a existir.

102
Apêndice 3
Componente textual do objecto O Retrato de Ulisses:

Ulisses, no dia 18 de março do presente ano, entediado – mais por hábito do que por convicção
–, deu entrada na biblioteca local e propôs-se a reler – talvez pela milésima vez – o canto IX da Odisseia,
de Homero. Retirado o livro da estante, folheou-o, sem urgência, até à página desejada, onde encontrou
um pequeno manuscrito, meticulosamente dobrado. Quase indiferente, Ulisses desdobrou-o e leu as
suas primeiras linhas: “Tudo aquilo que aqui é relatado corresponde a um conjunto preciso de factos.
Não os escrevi imediatamente porque o meu primeiro propósito foi esquecê-los, para que não perdesse
a razão. Agora, volvida, talvez, uma década, penso que se os escrevo é para que os outros leiam estes
mesmos factos como um conto, como um produto de ficção, e para que, com os anos, eu próprio os leia
como tal”.
O manuscrito – desprovido de data e de assinatura – redigido com uma caligrafia minúscula,
era composto por pouco mais de sete páginas. Nele, o seu autor começou por relatar o dia em que, sem
qualquer razão aparente, foi invadido e obcecadamente consumido por um desejo que adjectivou de
impossível: o de escrever o romance Dom Quixote.
Escreveu o autor do manuscrito que o seu desejo não era o de compor um outro Dom Quixote
– o que seria fácil –, mas o Dom Quixote, ele mesmo. Nunca encarou a possibilidade de uma transcrição
mecânica do original, pois não se propunha a copiá-lo. A sua admirável ambição era a de conceber
páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Cervantes.
O seu método inicial, de acordo com o manuscrito encontrado por Ulisses, era relativamente
simples: conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros e esquecer parte
da história da Europa. Em suma, ser Cervantes. No entanto, ser, de algum modo, Cervantes e escrever o
Dom Quixote pareceu, ao autor do manuscrito, menos árduo e, por conseguinte, menos interessante do
que continuar a ser ele próprio e escrever o Dom Quixote, através das suas próprias experiências e das
suas próprias contingências.
Leu Ulisses, na terceira página do manuscrito: “Escrever o Dom Quixote no início do século
XVII era um feito razoável, necessário, porventura até fatal; no início do presente século, é quase
impossível. Não foi em vão que, no entretanto, transcorreram vários séculos, carregados de
complexíssimos factos, entre os quais, para mencionar um único, o próprio Dom Quixote”.
Na página seguinte, é referido que, passados vários anos de árduo trabalho diário, o impossível
desejo do autor do manuscrito revelou-se – miraculosamente – cumprido. Leu Ulisses, na quinta
página: “Sim, consegui a proeza de escrever, de modo espontâneo e num idioma alheio, um livro pré-
existente. E é por esta mesma razão que decidi destruir todo e qualquer vestígio desta minha proeza, que
me transforma em artista, filósofo, cientista, herói, demónio e deus”.

103
Ulisses olhou à sua volta: a biblioteca encontrava-se vazia. Foi, então, que, ávido, leu e releu as
últimas linhas do manuscrito: “Eis a minha terrível descoberta: o tempo é infinito e a matéria é finita.
Por esta razão, num prazo infinito todas as coisas podem, teoricamente, ocorrer a todos os homens. O
número de todos os átomos que compõem o mundo é finito, e só capaz, como tal, de um número finito
de permutações. Num prazo infinito, todas as ordens e todas as combinações possíveis ocorrerão um
número infinito de vezes. O universo, com todos os seus pormenores, até os mais minúsculos, foi
elaborado e aniquilado, e será elaborado e aniquilado: infinitamente. A História humana repetiu-se,
repete-se e repetir-se-á: nada há que não haja sido e o que foi será. Assim, todo o homem pode, em
potência, ser capaz de todas as ideias e entendo que no porvir o será, que é o mesmo que afirmar que,
porventura, tenho, em mim, a alma de Alexandre Magno, a de César, a de Shakespeare e a de Homero.
Sabe-se que A Odisseia foi escrita. Dado um prazo infinito, com finitas circunstâncias e mudanças, o
impossível seria que ninguém escrevesse, sequer uma vez, a Odisseia. Do mesmo modo, é possível que,
de novo, escreva o Dom Quixote, de Cervantes; que, de novo, redija todos estes factos aparentemente
fantásticos; que, de novo, esqueça que escrevi o Dom Quixote, de Cervantes; e que, de novo, cheguem
estas mesmas páginas às minhas mãos”.
Lido o manuscrito, Ulisses dobrou-o, meticulosamente, e guardou-o, no bolso do seu casaco.
Atordoado, olhou o motivo da sua presença naquela biblioteca: a Odisseia. Decidiu, então – mais por
hábito do que por convicção –, ler um pequeno fragmento do canto IX (do verso 82 ao verso 104) da
obra comumente atribuída a Homero. Seguidamente, repôs o livro na respectiva estante e saiu.
Chegado a casa, aninhou-se na cama e dormiu, durante nove dias consecutivos. Ao acordar,
procurou, nos bolsos do seu casaco, um cigarro. Encontrando-os vazios, saiu de casa, quase por impulso
e com o intuito de obter tabaco. Absorto, caminhou, em silêncio e pelas ruas vazias, durante alguns
minutos, até que, sem qualquer razão aparente, foi invadido e obcecadamente consumido por um
desejo que adjectivou de impossível.

104

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