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COMO PENSAR TUDO ISTO?

Filosofia 11.o Ano


Domingos Faria / Luís Veríssimo / Rolando Almeida

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Resumos de matéria sujeita a avaliação externa - 10.º ano

II – A ação humana e os valores


1. A ação humana – análise e compreensão do agir

1.1 A Rede Conceptual da Ação os acontecimentos intencionalmente causados


por um agente, e apenas esses, podem ser cha-
 distinção entre ação
A mados “ações”. Portanto, haver um acontecimen-
e acontecimento to intencionalmente causado por um agente é uma
condição necessária e suficiente para que haja uma
Uma ação é um acontecimento, mas nem to-
ação. Ou seja:
dos os acontecimentos são ações. Por exemplo,
um tremor de terra, ou uma erupção vulcânica  m acontecimento é uma ação se, e só se, foi
U
não são ações. intencionalmente causado por um agente.

Assim, haver um acontecimento é uma con- A noção de “causalidade intencional” é cen-


dição necessária (mas não suficiente) para que tral para compreender esta definição. Imagina a
haja uma ação. Ou seja: seguinte situação hipotética:
 e existe uma ação, existe um acontecimen-
S A Beatriz é uma menina de 6 anos que acredi-
to (mas não o contrário). ta que se cantar consegue mudar os semáforos.
Perante um semáforo vermelho a Beatriz forma
 distinção entre voluntário
A a intenção de o mudar para verde e começa a
e involuntário cantar. Passados poucos segundos, o semáforo
O terramoto e o vulcão não são ações, porque acaba por mudar. Será que podemos dizer que
não envolvem um agente. Assim, podemos dizer estamos perante a ação de mudar a cor de um
que um acontecimento só é uma ação se envol- semáforo?
ver um agente. No entanto, nem todos os acon- Evidentemente que não. Porque, apesar de
tecimentos que envolvem agentes são ações. Por haver um acontecimento, um agente e uma in-
exemplo, se o Manuel derrubar o candeeiro en- tenção, a relação entre estes elementos não é
quanto dorme, ou se a Maria espirrar, não estão adequada, não há causalidade intencional. Para
a executar ações, propriamente ditas. Portanto, haver causalidade intencional é necessário que
parece que haver um acontecimento que envolve sejam as crenças e desejos do agente – ou seja,
um agente é uma condição necessária (mas não o seu conteúdo mental intencional – a desenca-
suficiente) para que haja uma ação. Ou seja: dear o acontecimento. Ora, não foi seguramente
 e existe uma ação, existe um acontecimen-
S esse o caso na situação anteriormente descrita.
to que envolve um agente (mas não o con- O semáforo mudou, porque estava programado
trário). para mudar naquele instante e a cantoria da me-
nina nada teve que ver com isso.
O espirro da Maria e o candeeiro partido do Ma-
nuel não são ações, porque apesar de envolverem Deste modo, para explicarmos uma ação de-
agentes, não são acontecimentos intencionalmen- vemos procurar no agente pelo menos uma cren-
te causados por eles. Assim, podemos concluir que ça e um desejo que efetivamente desencadeiem

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essa ação. Por exemplo: o Miguel deixou de fu- do acontecimento em causa, apenas 2 faz a corres-
mar porque tem o desejo de ser saudável e acre- pondência adequada entre o acontecimento e a
dita que fumar prejudica a saúde. intenção (crenças e desejos) do agente, pelo que
essa descrição do acontecimento é a única que per-
Esta definição parece satisfatória, contudo,
mite explicá-lo devidamente e deve ser preferida às
a filósofa irlandesa Elizabeth Anscombe (1919-
restantes. Por este motivo, chamou-se a este tipo
2001) sentiu necessidade de a aperfeiçoar. O pro-
de descrição (que faz a correspondência adequada
blema é que existem várias formas de descre-
entre o acontecimento e a intenção – crenças e de-
ver o mesmo acontecimento.
sejos – do agente) descrição preferencial da ação.
Consideremos o seguinte exemplo. Um dia,
quando andava de bicicleta, o Tiago levantou o  articulação entre deliberação
A
braço para indicar que pretendia virar à direita e e decisão racional
acidentalmente partiu o nariz a um transeunte
Seguramente já ouviste a seguinte recomen-
descuidado que se atravessou no meio da estra-
dação “Pensa antes de agir!”, mas o que significa
da. Posso descrever este acontecimento de vá-
isso afinal? Esta recomendação sugere que, an-
rias maneiras:
tes de fazer o que quer que seja, devemos anali-
(1) O
 Tiago levantou o braço (intencionalmente). sar as alternativas disponíveis e ponderar razões
a favor e contra cada uma delas. Este processo
(2) O
 Tiago fez sinal de que ia virar à direita
tem o nome de deliberação e, se pretendemos
(intencionalmente).
que a nossa decisão de executar (ou não) uma ou
(3) O Tiago partiu o nariz a um transeunte outra ação seja considerada uma decisão racio-
(acidentalmente). nal, ela deve corresponder ao resultado desse
As três descrições do acontecimento são ver- processo deliberativo. Caso contrário, essa deci-
dadeiras, mas ao passo que 1 e 2 descrevem acon- são poderá ser considerada emotiva, irrefletida,
tecimentos intencionalmente causados por um ou até mesmo infundada e irracional. No entanto,
agente, o mesmo não se verifica em 3. A menos existem vários fatores que interferem nas nossas
que a nossa definição de ação seja revista, este tomadas de decisão – fatores emocionais, neces-
acontecimento parece simultaneamente ser e sidades biológicas imediatas… Se aceitarmos
não ser uma ação. Mas isso é manifestamente in- que esses fatores também nos oferecem razões
consistente. Portanto, Anscombe propõe a seguin- para agir deste ou daquele modo, uma ação só
te definição de ação: poderá ser plenamente apelidada de racional se
fizer o devido balanço das várias razões para agir
Um acontecimento é uma ação se, e só se, envolvidas numa determinada situação.
é intencional (ou intencionalmente causado por
um agente) sob pelo menos uma descrição
1.2 Determinismo e Liberdade
verdadeira.
na Ação Humana
Uma vez que existe pelo menos uma descri-
ção verdadeira do acontecimento que é inten-
O problema da relação entre
cional, podemos dizer que este acontecimento determinismo e livre-arbítrio.
constitui inequivocamente uma ação. Mas é ain- As posições fundamentais
da legítimo perguntar de que ação se trata. Da de resposta a este problema
ação de levantar o braço, fazer sinal para virar ou
Um dos principais problemas associados à
partir um nariz?
filosofia da ação é o seguinte: “Será que temos
Ora, se prestarmos a devida atenção, embora os livre-arbítrio?”. O livre-arbítrio é a capacidade de
três enunciados constituam descrições verdadeiras decidir (ou arbitrar) em liberdade o que fazemos

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das nossas vidas. Conforme vimos anteriormente, americano Peter van Inwagen (n. 1942) e ficou
as nossas ações são acontecimentos intencional- conhecido como Argumento da Consequência.
mente causados por nós, ou seja, acontecimentos
causados pelas nossas crenças e desejos, mas, Argumento da Consequência
por sua vez, é legítimo perguntar se existe algo
(1) S
 e o determinismo é verdadeiro, então as
que causa as nossas crenças e desejos. Nessas
nossas ações são a consequência das leis
circunstâncias, é tentador perguntar se podemos
da natureza e de eventos que ocorreram
considerar que somos realmente livres e mo-
num passado remoto.
ralmente responsáveis por aquilo que fazemos,
ou se as nossas ações são apenas o resultado de (2) N
 ão controlamos as leis da natureza, nem
acontecimentos anteriores que escapam inteira- os eventos que ocorreram num passado
mente ao nosso controlo. remoto.
(3) S
 e não controlamos algo, então as suas
Existem diferentes perspetivas em relação a consequências não dependem de nós.
este assunto. O determinismo sustenta que, uma
(4) Se não controlamos as leis da natureza, nem
vez que todos os acontecimentos (incluindo as nos-
os acontecimentos que ocorreram num pas-
sas ações) estão causalmente determinados pelos
sado remoto, então as suas consequências
acontecimentos anteriores e pelas leis da nature-
não dependem de nós. (De 2 e 3)
za, não existe verdadeiro livre-arbítrio. O libertismo
defende que, embora o universo físico possa ser (5) A
 s consequências das leis da natureza e
determinista, a vontade e a consciência escapam dos eventos que ocorreram num passado
às cadeias causais que governam o universo físico remoto não dependem de nós.
e, portanto, o livre-arbítrio não é uma mera ilusão. (6) S
 e o determinismo é verdadeiro, então as
Quer o determinismo, quer o libertismo são teorias nossas ações não dependem de nós. (De
incompatibilistas, pois ambas consideram que o 1 e 5)
livre-arbítrio não é compatível com o determinis-
(7) S
 e as nossas ações não dependem de nós,
mo. Existem contudo, perspetivas compatibilistas
não podemos escolher agir de um modo
que sustentam que o livre-arbítrio e o determinis-
diferente daquele que agimos.
mo podem coexistir. Uma das posições que melhor
ilustra este tipo de teorias ficou conhecida por de- (8) S
 e o determinismo é verdadeiro, não pode-
terminismo moderado (por contraste com a ver- mos escolher agir de um modo diferente
são incompatibilista de determinismo que, por este daquele que agimos. (De 6 e 7)
motivo, também é conhecida por determinismo (9) S
 e não podemos escolher agir de um modo
radical). Segundo o determinismo moderado, te- diferente daquele que agimos, não temos
mos livre-arbítrio, apesar de vivermos num mundo livre-arbítrio.
onde todos os acontecimentos (incluindo as nos-
sas ações) estão causalmente determinados pelos (10) Logo, se o determinismo é verdadeiro, não
acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza. temos livre-arbítrio. (De 8 e 9)
Compete aos defensores deste tipo de perspetiva
Quer o libertismo, quer o determinismo acei-
explicar como é isso possível.
tam este argumento e a respetiva conclusão.
Então, onde é que libertistas e deterministas co-
meçam a divergir? Vejamos em seguida de que
O incompatibilismo forma estas perspetivas completam o argumento
O argumento central a favor do incompatibi- incompatibilista, de modo a fundamentar as res-
lismo foi explicitamente formulado pelo filósofo petivas teses.

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O libertismo comporta de acordo com o princípio determinista
de que tudo o que acontece é uma consequên-
Os libertistas completam o Argumento da
cia dos acontecimentos anteriores e das leis da
Consequência do seguinte modo:
natureza. O libertista tem de enfrentar o desafio
(11) Se não tivéssemos livre-arbítrio, não sería- de explicar como é que os seres humanos conse-
mos moralmente responsáveis por nada guem escapar a esse tipo de determinismo, inter-
daquilo que fazemos (nem poderíamos rompendo sistematicamente as cadeias causais
louvar ou censurar fosse quem fosse pe- naturais. A resposta que envolve o dualismo cor-
las suas ações). po/mente parece introduzir mais complicações
do que aquelas que pretende explicar. Afinal de
(12) Somos claramente responsáveis por al-
contas, como pode uma coisa não física interferir
gumas das coisas que fazemos.
no mundo físico? Não poderão existir leis men-
(13) Logo, temos livre-arbítrio e nem tudo está tais que determinem os fenómenos mentais, tal
determinado. como as leis físicas determinam os fenómenos
físicos?
Objeções ao libertismo
O determinismo
As objeções mais comuns ao libertismo são
as que se seguem. Os deterministas, por sua vez, completam o
Argumento da Consequência do seguinte modo:
Objeção da ilusão
(11) S
 e o determinismo fosse falso, então cau-
Autores deterministas como Bento de Espi- sas semelhantes teriam efeitos diferentes.
nosa (1632-1677) e Arthur Schopenhauer (1788-
1860) consideram que a ilusão de que temos (12) É evidente que causas semelhantes têm
livre-arbítrio resulta do facto de termos cons- efeitos semelhantes – este princípio é pres-
ciência dos nossos desejos, mas ignorarmos as suposto na maioria das nossas ações do dia
causas que os determinam. a dia e nas ciências da natureza.

Objeção da aleatoriedade (13) Logo, o determinismo é verdadeiro.

Os libertistas sustentam que para que as nos-


Objeções ao determinismo
sas escolhas sejam genuinamente livres, não
podem ser determinadas pelos acontecimentos As principais objeções que o determinismo en-
anteriores e pelas leis da natureza. Mas uma frenta são as seguintes:
escolha que não seja determinada por aconteci-
Objeção indeterminista
mentos anteriores é simplesmente aleatória, fru-
to do acaso, pelo que também não é livre, dado A imagem determinista do universo tem vin-
que o acaso é algo que não podemos controlar. do a ser posta em causa por desenvolvimentos
A única alternativa seria considerar que uma es- recentes numa área da Física chamada Mecâni-
colha pode ser livre apesar de ser determinada ca Quântica, que estuda o comportamento das
pelos acontecimentos anteriores, mas isso daria partículas subatómicas. No entanto, é uma teo-
razão ao compatibilista e não ao libertista. ria meramente probabilista. Uma das suas teses
centrais sustenta que, por mais informação que
Objeção da causalidade natural
tenhamos acerca de uma partícula, jamais po-
O estrondoso sucesso da ciência na expli- deremos determinar com exatidão a sua posição
cação e previsão dos fenómenos naturais dá- futura. Tudo o que podemos fazer é calcular de
-nos um forte indício de que o mundo natural se entre de um conjunto de localizações possíveis

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qual delas é a mais provável. Isto parece sugerir premissa nove do Argumento da Consequência,
que existem aspetos do universo que são inde- ao passo que a segunda pretende justamente de-
terministas, pois não dependem em absoluto dos monstrar a falsidade dessa premissa.
estados de coisas que o antecedem.
 rgumento baseado na análise
A
Objeção da responsabilidade moral condicional do Princípio das
Um dos maiores desafios que se colocam pe-
Possibilidades Alternativas
rante o determinismo é o problema da responsa- A premissa nove do Argumento da Conse-
bilidade moral. Dado que grande parte dos nossos quência afirma que só podemos ter livre-arbítrio
comportamentos quotidianos (como a admiração, (no sentido relevante para a responsabilidade mo-
a censura, o louvor e a culpa) pressupõe que, de ral) se pudermos escolher agir de modo diferente
facto, somos moralmente responsáveis pelo me- daquele que agimos. Daqui em diante esta ideia
nos por algumas das coisas que fazemos e que o será designada por Princípio das Possibilidades
determinismo implica que nenhum de nós pode Alternativas (PPA).
realmente agir de modo diferente daquele como
PPA: Só podemos ter livre-arbítrio (no sen-
age. Por conseguinte, se nenhum de nós é moral-
tido relevante para a responsabilidade moral)
mente responsável por nada do que faz, temos de
se pudermos escolher agir de modo diferente
aceitar que muitos dos nossos comportamentos
daquele que agimos.
são simplesmente absurdos, caso contrário somos
forçados racionalmente a rejeitar o determinismo. Para evitar a conclusão do argumento, os
compatibilistas sugerem que este Princípio deve
 bjeção baseada nas implicações
O ser alvo de uma análise (ou interpretação) condi-
práticas do determinismo cional, segundo a qual a expressão “poderíamos
Será que podemos genuinamente viver de acor- ter escolhido agir de modo diferente daquele que
do com a crença de que não temos livre-arbítrio? agimos” deve ser interpretada do seguinte modo:
Não será inevitável assumir que somos capazes “poderíamos ter escolhido agir de modo diferen-
de escolher genuinamente entre alternativas que te daquele que agimos, se tivéssemos crenças
efetivamente se nos apresentam à nossa consi- e desejos diferentes daqueles que efetivamente
deração? À primeira vista, parece que não somos temos”. Ou seja, para os compatibilistas o PPA in-
capazes de viver, de fazer escolhas e de agir sem clui uma espécie de cláusula hipotética adicional
pressupor o livre-arbítrio. Se alguém começar a ba- que, regra geral, não nos damos ao trabalho de
ter-nos, a menos que se trate de uma pessoa com explicitar. Segundo esta interpretação, o PPA diz
algum tipo de perturbação mental ou compulsão, explicitamente o seguinte:
é inevitável pensarmos que está no seu poder pa- PPA (com análise condicional): i) Só podemos
rar de o fazer se assim o desejar. Mas isso só mos- ter livre-arbítrio (no sentido relevante para a res-
tra que não estamos verdadeiramente dispostos a ponsabilidade moral) se pudermos escolher agir
aceitar que não podemos deixar de fazer aquilo que de modo diferente daquele que agimos; e ii) po-
fazemos e que as nossas ações decorrem natural- deríamos ter escolhido agir de modo diferente da-
mente da cadeia causal que compõe o universo, quele que agimos, se tivéssemos crenças e dese-
sobre a qual não temos qualquer tipo de controlo. jos diferentes daqueles que efetivamente temos.
Considerando que esta é a forma correta de in-
O compatibilismo
terpretar o PPA, podemos sustentar que, ainda que
Existem pelo menos duas linhas de argumen- a nossa ação seja causada pelas nossas crenças
tação possíveis para os compatibilistas. A primei- e desejos e que estes, por sua vez, sejam a con-
ra baseia-se numa interpretação condicional da sequência causal de acontecimentos anteriores e

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das leis da natureza (determinismo), poderíamos  asos de Frankfurt
C
ter escolhido agir de um modo diferente daquele (ou situações Frankfurtianas)
que agimos, caso tivéssemos crenças e desejos
Num Caso de Frankfurt existe uma circunstân-
diferentes daqueles que efetivamente temos. O
cia C tal que:
que significa que, mesmo que o determinismo seja
verdadeiro, podemos ter livre-arbítrio (no sentido  m agente, A, toma uma determinada de-
(1) U
relevante para a responsabilidade moral), pois te- cisão D;
mos diferentes possibilidades de ação e a opção
(2) Se A não decidir D, por si mesmo, C entra em
por uma delas depende da nossa vontade.
ação e força A a decidir D;
Este argumento pode ser formulado do se-
(3) C
 em nada contribui para que A decida D.
guinte modo:
Por exemplo, imaginemos o seguinte caso.
(1) Só podemos ter livre-arbítrio (no sentido re-
levante para a responsabilidade moral) se Black é o chefe de uma poderosa organiza-
pudermos escolher agir de modo diferente ção criminosa e Jones é um dos mais eficientes
daquele que agimos. assassinos dessa organização. Black quer matar
o Presidente e sabe que Jones é a pessoa cer-
(2) Ainda que o determinismo seja verdadeiro,
ta para o trabalho. No entanto, existem rumores
poderíamos sempre ter escolhido agir de
de que Jones quer abandonar a profissão, razão
modo diferente daquele que agimos, se ti-
pela qual o seu compromisso com a organização
véssemos crenças e desejos diferentes da-
é incerto.
queles que efetivamente temos.
Nesse momento, Black recorda-se de uma
(3) L
 ogo, ainda que o determinismo seja verda-
das invenções mais recentes dos cientistas da
deiro, podemos ter livre-arbítrio (no sentido
sua organização – o neuroscópio. O neuroscópio
relevante para a responsabilidade moral).
é um aparelho que, uma vez introduzido no cére-
(De 1 e 2)
bro, permite vigiar e controlar os estados cere-
 rgumento baseado na rejeição do
A brais. Black apercebe-se que o neuroscópio lhe
Princípio das Possibilidades Alternativas permite resolver dois problemas de uma só vez.
Se implantar secretamente o neuroscópio no cé-
O PPA foi aceite de modo praticamente consen-
rebro de Jones, ficará a saber se este continua a
sual até à publicação, em 1969, do artigo “Respon-
ser um dos seus fiéis assassinos – pode aconte-
sabilidade Moral e o Princípio das Possibilidades
cer que ele decida, por si mesmo, matar o Presi-
Alternativas” pelo filósofo americano Harry Frank-
dente, sem que seja necessária a intervenção do
furt (n. 1929). Nesse artigo, Frankfurt concebe uma
neuroscópio – ao mesmo tempo que se certifica
engenhosa experiência mental que constitui um
de que Jones cumpre a sua missão e mata o Pre-
contraexemplo ao PPA. Por razões óbvias, este tipo
sidente – porque se o neuroscópio detetar qual-
de contraexemplos ficou conhecido como “Casos
quer indício de que ele não o vai fazer, entra em
de Frankfurt” ou “Situações Frankfurtianas”.
ação e força-o a decidir nesse sentido.
Num típico Caso de Frankfurt, existe uma de-
Imaginemos que Jones decide pelos seus
terminada circunstância – C – tal que, embora C
próprios motivos matar o Presidente. Nesse caso
não desempenhe qualquer papel causal numa
temos um situação em que existe uma circuns-
determinada tomada de decisão de um sujeito
tância em que:
– S –, C impediria S de tomar uma decisão dife-
rente daquela que efetivamente tomou, caso isso (1) Jones toma, por si mesmo, a decisão de ma-
não tivesse acontecido independentemente de C. tar o Presidente.

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(2) Se Jones não decidisse, por si mesmo, ma- relevante para a responsabilidade moral),
tar o Presidente, o neuroscópio entraria em desde que as nossas ações correspondam
ação e forçaria Jones a tomar essa decisão. às nossas crenças e desejos. (De 1 e 2)

(3) A
 presença do neuroscópio no cérebro de
Objeções ao compatibilismo
Jones em nada contribui para a sua deci-
são de matar o Presidente. Objeções à análise condicional
Numa situação como esta, o facto de não po- Para os incompatibilistas é uma trivialidade
dermos agir de outro modo em nada altera aquilo afirmar que poderíamos agir de modo diferente
que fizemos, pelo que não há desculpas para os daquele que agimos se tivéssemos desejos dife-
nossos atos, ou seja, somos moralmente res- rentes daqueles que efetivamente temos. A ver-
ponsáveis pelas nossas ações, apesar de não dade é que num mundo determinista não podemos
existirem possibilidades alternativas. Isto sig- ter desejos diferentes daqueles que efetivamente
nifica que o PPA é falso, pois podemos ter livre- temos, porque, de acordo com a imagem determi-
-arbítrio (no sentido relevante para a responsabi- nista do mundo, cada estado de coisas num dado
lidade moral), ainda que não possamos escolher momento é consequência dos estados do mundo
agir de modo diferente daquele que agimos. que o antecederam, de acordo com as leis da na-
Com este tipo de exemplos, Frankfurt ofere- tureza. Deste modo, existe apenas um estado de
ce uma defesa do determinismo moderado, pois coisas possível, em cada instante. Como se esti-
estabelece que aquilo que é fundamental para véssemos num comboio que viaja uma linha sem
que possamos considerar que temos livre- bifurcações. Isto significa que num mundo deter-
-arbítrio (no sentido relevante para a responsa- minista não tem sentido dizer que poderíamos ter
bilidade moral) não é o facto de termos possi- desejos diferentes daqueles que efetivamente te-
bilidades alternativas, mas sim o facto de as mos, pois os desejos que temos são a consequên-
nossas ações serem o resultado das crenças e cia da nossa história pessoal até ao momento e das
desejos que naturalmente adquirimos através leis da natureza. Assim, num mundo determinista
das nossas experiências anteriores. é absurdo dizer que poderíamos agir de modo dife-
rente daquele que agimos, se tivéssemos desejos
(1) S
 e o determinismo é verdadeiro, então as diferentes daqueles que efetivamente temos, pois
nossas crenças e desejos (tal como tudo isso implicaria ter desejos diferentes e, de acordo
aquilo que acontece) são a consequência com o determinismo, isso não é compatível com
de acontecimentos anteriores e das leis da as leis da natureza e os estados do mundo que an-
natureza e não existem quaisquer possibi- tecederam este momento.
lidades alternativas.

(2) Ainda que as nossas crenças e desejos se- Objeções aos Casos de Frankfurt
jam a consequência de acontecimentos an-
Existem pelo menos duas formas de desati-
teriores e das leis da natureza e não existam
var os Casos de Frankfurt. A primeira estratégia
quaisquer possibilidades alternativas, pode-
consiste em mostrar que, mesmo nessas cir-
mos ter livre-arbítrio (no sentido relevante
cunstâncias, existem possibilidades alternativas
para a responsabilidade moral), desde que
e que é justamente a existência dessas possibi-
as nossas ações correspondam às nossas
lidades que justifica a nossa intuição de que o
crenças e desejos (tal como demonstram os
agente é, apesar de tudo, dotado de livre-arbítrio
Casos de Frankfurt).
e, consequentemente, moralmente responsá-
(3) Logo, ainda que o determinismo seja verda- vel pelas suas ações. Mas como é que alguém
deiro, podemos ter livre-arbítrio (no sentido tem possibilidades alternativas se, à partida, não

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pode fazer nada para evitar tomar a decisão que numa petição de princípio – pois ao assumir que
tomou? Os defensores desta estratégia acredi- uma decisão é a consequência necessária do esta-
tam que mesmo numa situação frankfurtiana o do de coisas que a antecede, estamos a pressupor
agente pode optar entre duas alternativas: que o determinismo é verdadeiro. Nesse caso, a ex-
tomar por si próprio uma decisão; ou periência mental não seria bem-sucedida, uma vez
que não faria qualquer diferença para o incompati-
s er forçado pela circunstância C a tomar essa bilista a introdução da contrafactual (circunstância
decisão, o que significa que é uma decisão C): com ou sem a contrafactual, se o agente nunca
diferente daquela que ele teria espontanea- pode agir de outro modo, então não é moralmente
mente tomado. responsável pelas suas ações.
Assim, embora o agente disponha de um leque Por outro lado, se o sinal não for suficiente para
de opções extremamente reduzido, não deixa de a decisão em causa, isso significa que o agente dis-
ter possibilidades alternativas, por muito insigni- põe de possibilidades alternativas, pois a ativação
ficantes que possam parecer a partir de fora, daí do sinal é, ainda assim, compatível com diferen-
que esta estratégia tenha ficado metaforicamen- tes possibilidades de decisão. Isto mostra que a
te conhecida como Estratégia das Centelhas de situação frankfurtiana não é capaz de mostrar que
Liberdade. Deste modo, o agente frankfurtiano é é possível termos livre-arbítrio (no sentido relevan-
dotado de livre-arbítrio e moralmente responsá- te para a responsabilidade moral) apesar de não
vel pelas suas ações, porque decidiu agir por sua termos possibilidades alternativas. O dilema pode
própria iniciativa, quando podia ter optado por ser formulado do seguinte modo:
não o fazer.
a) Num Caso de Frankfurt, para que o elemen-
A segunda estratégia para desativar os Ca- to contrafactual funcione devidamente, é
sos de Frankfurt consiste em mostrar que os necessário que exista um sinal prévio que in-
seus defensores acabam por ficar encurralados dique que o agente vai tomar, por si mesmo,
entre duas alternativas igualmente desagradá- a decisão que era suposto tomar.
veis. Vejamos em que consiste esse dilema.
b) Ou o sinal é suficiente nas circunstâncias
Um típico Caso de Frankfurt envolve um ele- para a tomada de decisão em causa ou não é.
mento contrafactual, isto é, algo que não chega c) Se for suficiente, então Frankfurt incorre
a acontecer, mas que poderia ter acontecido se as numa petição de princípio – pois ao assumir
coisas tivessem corrido de modo diferente. Num que uma decisão é a consequência necessá-
Caso de Frankfurt, para que o elemento contrafac- ria do estado de coisas que a antecede, está
tual funcione devidamente, é necessário que exis- a pressupor que o determinismo é verdadei-
ta um sinal prévio, uma condição (ou conjunto de ro e, nesse caso, a experiência mental não
condições) que indique que o agente vai tomar, por seria bem-sucedida, visto que, para o incom-
si mesmo, a decisão que era suposto tomar, evitan- patibilista, a introdução da contrafactual
do uma ativação desnecessária da circunstância C (circunstância C) seria irrelevante, uma vez
(que acabaria por forçar essa tomada de decisão). que, de uma maneira ou de outra, o agente
O problema reside no tipo de relação que se nunca pode agir de outro modo e, portanto,
estabelece entre esse sinal prévio, ou condição não é moralmente responsável pelas suas
(ou conjunto de condições) e a tomada de decisão ações.
propriamente dita. Ou o sinal é suficiente nas cir- d) Se o sinal não for suficiente para a decisão
cunstâncias para a tomada de decisão em causa em causa, isso significa que o agente dispõe
ou não é. Se for suficiente, então o incompatibilista de possibilidades alternativas, pois a ativa-
pode simplesmente acusar Frankfurt de incorrer ção do sinal é, ainda assim, compatível com

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diferentes possibilidades de decisão. E, (4) Em T1, o complexo neuronal X estava ati-
nesse caso, a situação frankfurtiana não é vo no cérebro de Jones e, por conseguinte,
capaz de mostrar que é possível termos li- em T2, este decide matar o Presidente por
vre-arbítrio (no sentido relevante para a res- razões próprias.
ponsabilidade moral) apesar de não termos
O dilema diz-nos o seguinte:
possibilidades alternativas.
f) O
 u a ativação em T1 do complexo neuronal
e) Logo, uma situação frankfurtiana não é ca-
X é suficiente para que, em T2, Jones decida
paz de mostrar que é possível termos livre-
matar o Presidente, ou não é.
-arbítrio (no sentido relevante para a res-
ponsabilidade moral), apesar de não termos g) Se é suficiente, então Frankfurt incorre
possibilidades alternativas. numa petição de princípio – pois pressu-
põe o determinismo – e, nesse caso, a si-
Para melhor compreender este dilema, vamos
tuação frankfurtiana não é bem-sucedida,
aplicá-lo à situação frankfurtiana anteriormente
uma vez que para o incompatibilista, Jones
analisada. Recordas-te que Black instalou um neu-
não tem livre-arbítrio (no sentido relevan-
roscópio dentro da cabeça de Jones, para que, caso
te para a responsabilidade moral) com ou
ele não tomasse por si mesmo a decisão de matar
sem a presença do neuroscópio.
o Presidente, este instrumento o forçasse a fazê-lo.
Pois bem, para que o neuroscópio funcione adequa- h) Se não é suficiente, então a ativação do
damente é preciso que exista um sinal prévio que complexo X é, ainda assim, compatível com
indique se Jones vai ou não tomar por si mesmo a diferentes possibilidades de decisão, pelo
decisão de matar o Presidente. Imaginemos que os que o agente tem ao seu dispor possibilida-
cientistas responsáveis pela programação do neu- des alternativas e, nesse caso, a situação
roscópio se basearam nos dados que se seguem: frankfurtiana também não é bem-sucedida,
pois esta pretendia justamente mostrar que
(1) S
 e, num determinado instante – digamos
o agente pode ser livre apesar de não ter
T1 – um certo complexo neuronal X estiver
possibilidades alternativas.
ativo no cérebro de Jones, então, num de-
terminado momento posterior – digamos i) Logo, a situação frankfurtiana não é bem-su-
T2 – e desde que ninguém interfira, ele irá cedida em demonstrar a falsidade do PPA.
decidir, por sua própria iniciativa, matar o
Presidente. Objeção do prisioneiro voluntário

(2) Se o complexo neuronal X não estiver ativo Segundo o compatibilismo, uma ação é livre
no cérebro de Jones em T1, então, desde se é fruto das nossas crenças e desejos – ainda
que ninguém intervenha, ele não irá decidir que estes sejam determinados – e não é livre se
matar o Presidente. formos forçados a fazer o que não queremos (ou
impedidos de fazer o que queremos) por algum
(3) Se Jones mostrar sinais de que não vai deci-
agente externo. Contudo, o filósofo britânico John
dir matar o Presidente, isto é, se o complexo
Locke (1632-1704) acredita que a liberdade não
neuronal X não estiver ativo em T1, então,
depende da vontade, mas sim da existência efetiva
em T2, o neuroscópio interfere e força Jo-
de possibilidades alternativas. Locke convida-nos
nes a decidir matar o Presidente; mas se
a imaginar uma situação em que, sem se aper-
em T1, o complexo neuronal X estiver ativo
ceber de nada, um prisioneiro é trazido para um
então o neuroscópio não interfere e, em T2,
quarto de onde jamais poderá sair. Todas as suas
Jones mata o Presidente por sua iniciativa.
necessidades imediatas são satisfeitas por mãos
Agora imaginemos que: invisíveis e o prisioneiro é regularmente visitado

RESUMOS DE MATÉRIA SUJEITA A AVALIAÇÃO EXTERNA – 10.° ANO 11

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por alguém com quem adora conversar. A sua si- As principais questões que se levantam e que
tuação é de tal modo confortável que, mesmo sem deves ter em conta são as seguintes:
saber que está preso, não nutre qualquer desejo
(1) O
 s juízos de valor (como os éticos/morais)
de sair do quarto – é um prisioneiro voluntário.
têm valor de verdade?
Locke acredita que apesar de fazer exatamente
aquilo que pretende, o prisioneiro não é livre e, (2) S
 e têm valor de verdade, são verdadeiros
portanto, contrariamente ao que o compatibilista ou falsos independentemente da perspe-
possa pensar, a liberdade não depende de poder- tiva de quaisquer sujeitos?
mos fazer aquilo que pretendemos fazer, mas sim Um juízo é a mesma coisa que uma proposi-
de termos efetivamente possibilidades alternati- ção. Distinguimos habitualmente juízos de valor
vas ao nosso dispor. de juízos de facto.
Objeção da irrelevância da (in)consciência A seguinte proposição é um juízo de facto: “O
daquilo que determina a ação João mede 1m e 70 cm”. Um juízo de facto é um
A última objeção ao compatibilismo que ire- juízo descritivo, isto é, diz-nos apenas como as
mos considerar consiste em constatar que, uma coisas são e não como devem ser.
vez que o determinista está disposto a aceitar Um juízo de valor pode ser descritivo, mas
que não é livre a ação determinada por uma or- além disso é normativo, na medida em que nos
dem verbal de outrem, também deveria aceitar diz como as coisas devem ser. Por exemplo, o juí-
que uma ação determinada por ordens não ver- zo “O João agiu corretamente ao ajudar a Daniela
bais veiculadas por processos físico-químicos em a estudar” é um juízo de valor, uma vez que não
ação no nosso organismo não o é. A diferença en- sabemos determinar o seu valor de verdade, ou a
tre uma situação e outra é que, no primeiro caso, sua verdade ou falsidade depende das crenças e
temos consciência da ordem e da respetiva fonte preferências de quem o enuncia: talvez a Daniela
e no segundo não. Mas o nosso grau de consciên- devesse estudar sozinha sem ajuda, ou talvez o
cia dos fatores que a determinam não parece João tenha um interesse particular para ajudar a
ser relevante para a liberdade da nossa ação. A Daniela. Mas é um juízo normativo porque indi-
minha ação pode ser livre (ou não livre) quer eu ca como as coisas devem ser. Neste caso, diz-
tenha consciência disso, quer não. -nos que ajudar os colegas a estudar é uma ação
correta.
2. Os valores – análise e O problema filosófico presente nesta questão
compreensão da experiência é o de tentar saber se a verdade ou falsidade dos
valorativa juízos de valor pode ser objetiva, tal como aconte-
ce com os juízos de facto. Existem várias respos-
2.1 V
 alores e Valoração – tas a este problema. Vejamos as mais comuns.
a Questão dos Critérios
Valorativos A teoria do subjetivismo moral
O que são valores? São guias de ação. Orien- O subjetivismo moral defende que, apesar de
tam as nossas vidas e decisões. Muitos valores existirem factos morais, tais factos não são obje-
variam consoante a cultura ou as preferências tivos. Para esta teoria, qualquer afirmação acerca
pessoais. Significará isso que não existem cri- do bem e do mal ou do certo e do errado é subjeti-
térios que nos permitam avaliar objetivamen- va, isto é, a verdade ou falsidade das afirmações
te os valores? Muitos filósofos pensam que não é relativa aos sujeitos que as fazem. Assim, não
existem tais critérios e que a questão dos valores existem verdades universais, mas apenas opiniões
se resume a opções pessoais ou culturais. pessoais e cada sujeito tem a sua verdade. O que

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é verdade para um sujeito pode não o ser para Tal envolve uma contradição, pois se aceitarmos
outro. Os juízos morais descrevem os sentimen- que somos tolerantes em relação a qualquer juí-
tos de aprovação ou reprovação do indivíduo que zo de valor, então teríamos de aceitar um valor
julga. O certo e o errado dependem meramente tal como, “Temos de matar todos os tolerantes”.
dos sentimentos de cada um. Assim, “X é bom”
significa que “Gosto de X”. Por outro lado, a diversidade e divergência
de valores não constitui prova segura de que
 rgumentos que sustentam
A não existe verdade objetiva sobre proposições
o subjetivismo moral acerca de valores. Do mesmo modo, do facto de
diferentes pessoas defenderem ideias diferentes
Torna possível a liberdade sobre a existência de extraterrestes não se segue
que qualquer ideia sobre o assunto seja igual-
Para os subjetivistas, se os juízos morais não
mente verdadeira.
fossem a expressão dos sentimentos de cada su-
jeito, então teriam de ser impostos aos indivíduos, Também não é absolutamente seguro que os
o que constituiria uma violação da sua liberdade. valores não possuam propriedades constituin-
Só afirmamos a nossa liberdade se nos for possí- tes do mundo, pois muitas propriedades do que
vel expressar os valores e juízos segundo os sen- observamos no mundo, como as cores, dependem
timentos e preferências de cada um. do sujeito que as perceciona e, no entanto, não
afirmamos que tais coisas não existem. As cores
Promove a tolerância são, assim, propriedades secundárias do mundo e
Nesta teoria, se o certo e o errado dependem os valores podem ter a mesma consideração.
dos sentimentos de cada um, toleramos prefe-
O subjetivismo torna absurdo o debate racio-
rências e opiniões dos outros porque não há moti-
nal sobre questões morais. Se todos estão certos
vos para pensar que os sentimentos de uma pes-
porque defendem o que sentem, não tem sentido
soa são melhores ou piores do que os de outra.
pretender que mudem de opinião ou argumentar
Assim, o subjetivismo promove a tolerância uma
que estão enganados.
vez que ninguém tem legitimidade para impor os
seus valores a outra pessoa.
A teoria do relativismo cultural
 s valores não possuem propriedades
O O relativismo é uma tese subjetivista. Mas en-
materiais quanto para o subjetivista o valor de verdade das
proposições sobre valores é dependente dos senti-
Segundo os subjetivistas, os valores não pos-
mentos e apreciações do sujeito, para o relativista
suem propriedades materiais que os objetivem,
o valor de verdade é diretamente relacionado com
isto é, os valores não têm propriedades de enti-
a cultura de uma determinada sociedade. Por isso,
dades que compõem o mundo. Por exemplo, um
dizemos que para o relativista os valores são re-
livro é um objeto material composto por átomos,
lativos à cultura, sendo diferentes consoante
já o mesmo não se pode dizer de uma afirmação
as diferentes culturas. O juízo moral é verdadeiro
sobre valores.
numa sociedade quando a maioria dos seus mem-
bros acreditam que é verdadeiro e é falso quando
Objeções ao subjetivismo moral
acreditam que é falso. Para o relativista, na ética
Se ninguém estiver errado sobre valores, não não há verdades universais. Os juízos morais são
temos a possibilidade de convencer um intole- interpretados em termos de aprovação social. O
rante a deixar de o ser. Logo, segundo o subjeti- bem e o mal morais são convenções estabelecidas
vismo, temos de tolerar a própria intolerância. em cada sociedade.

RESUMOS DE MATÉRIA SUJEITA A AVALIAÇÃO EXTERNA – 10.° ANO 13

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 rgumentos que sustentam
A  bjeção ao argumento da diversidade
O
o relativismo cultural cultural

Argumento da diversidade cultural É fácil perceber que, neste argumento, a pre-


missa pode ser verdadeira, mas a conclusão não
O relativista justifica a sua posição partindo de
se segue necessariamente da premissa, pois pode
uma premissa que se baseia em factos e que nos
ser falsa. Pode acontecer que algumas culturas
diz que existem culturas diferentes com códigos
sigam códigos morais falsos. Por um exemplo, se
morais diferentes para daí retirar uma conclusão
uma dada cultura inclui no seu código moral mal-
mais geral que diz que as verdades morais, en-
tratar mulheres que não queiram aceitar o marido
tão, são relativas à cultura.
que lhe é imposto, pode acontecer que esse código
 relativismo cultural promove a coesão
O moral seja errado, e não é por ser relativo a uma
social cultura que se torna inevitavelmente verdadeiro.
Segundo os relativistas, esta coesão é funda-
mental para a sobrevivência da sociedade e, as-  teoria da objetividade e do diálogo
A
sim, para o nosso bem-estar, já que solidifica os de culturas
valores comuns de uma comunidade. Para além A ideia de objetividade é, na maioria das vezes,
disso, o relativismo cultural leva-nos a ter uma fornecida pelo paradigma da ciência. Aparente-
atitude de tolerância relativamente a valores de mente em questões como as dos valores e da éti-
sociedades diferentes. ca é muito mais difícil obedecer a este paradigma.
Segundo os objetivistas, tal é viável. Para eles,
Objeções ao relativismo cultural
os juízos morais têm valor de verdade e a sua
Uma das consequências diretas da defesa do
verdade é suportada por boas justificações ou
relativismo é que deixaríamos de poder afirmar
razões imparciais. O objetivismo caracteriza-se
que há culturas “inferiores” a outras. Para o re-
pela ideia de que um juízo moral é correto quando,
lativista esta defesa parece sofisticada, mas ao
independentemente de gostos e de convenções,
mesmo tempo teríamos de aceitar culturas com
tem as melhores razões do seu lado. Essas razões
pressupostos condenáveis. Vamos imaginar que
são imparciais. As avaliações morais têm de ser
uma cultura resolve atacar uma cultura vizinha
justificadas de uma forma que seja aceitável para
somente porque precisa de escravos para se de-
qualquer indivíduo racional, seja qual for a sua
senvolver. Segundo o relativista, esta prática não
sociedade. Quanto melhor for a justificação que
poderia ser moralmente condenável.
suporta o juízo moral, mais razões teremos para
Um dos problemas da defesa do relativismo considerá-lo objetivamente verdadeiro. Podemos
é que este conduz ao conformismo. Segundo encontrar critérios transubjetivos de valoração,
o relativista, uma prática é correta ou incorreta que ultrapassam as perspetivas e subjetividades
segundo os códigos morais de uma dada cultura. individuais ou culturais e que pode ser utilizado
Mas isto parece apelar à passividade perante os para avaliar imparcialmente a moralidade de atos
valores de uma cultura, anulando qualquer espí- e práticas, podendo ser aplicados por todos os in-
rito crítico e qualquer perspetiva de evolução e divíduos racionais (independentemente dos seus
até mudança nos hábitos e valores culturais. Por gostos ou interesses).
outro lado, assumir que os valores são relativos à
O diálogo intercultural
cultura é ao mesmo tempo aceitar que a maioria
está certa. Acontece que a maioria das pessoas O diálogo permite que cada sociedade se aper-
numa dada cultura pode estar errada e que, mui- feiçoe devido ao contacto com as outras. Faz-nos
tas vezes, os valores defendidos por elas não se- compreender melhor as razões das práticas das
jam os mais corretos. outras culturas. Através do diálogo intercultural

14 SEBENTA DO ALUNO • COMO PENSAR TUDO ISTO?

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cada sociedade pode aprender com as outras e o problema moral do aborto, por exemplo, mas
perceber o que é bom ou mau, certo ou errado, ul- da sua dificuldade não podemos concluir que não
trapassando os diferentes contextos sociais e ava- existe objetividade na sua análise.
liando de uma forma imparcial as práticas morais,
Em algumas culturas, a dissidência (a não acei-
através de critérios transubjetivos universais. As-
tação dos valores dominantes) levou, ao longo do
sim, podemos compreender que a nossa cultura
tempo, à alteração dos seus valores. Foi assim
pode estar errada em certos aspetos e igualmente
que um juízo considerado verdadeiro como “A es-
criticar racionalmente as outras práticas culturais
cravatura é moralmente aceitável” seja tido hoje
que nos parecem incorretas, contribuindo para o
em dia como falso em muitas culturas. Tal acon-
aperfeiçoamento social.
teceu, segundo os objetivistas, porque melhores
razões foram apresentadas em favor da imoralida-
 rgumentos a favor da teoria
A de da escravatura. Este argumento refuta assim o
da objetividade relativismo cultural.

Argumento das consequências indesejáveis


3. Dimensões da ação humana
A conclusão de que nenhum juízo de valor e dos valores
pode ser rejeitado pressupondo a premissa de
A Ética ou Filosofia Moral é a área da filosofia
que nenhum juízo de valor corresponde à ver-
que se dedica aos problemas relacionados com o
dade dos factos não é aceite pelos objetivistas.
modo como devemos viver (o tipo de pessoas que
Segundo eles, esse argumento pressupõe que
devemos ser, o tipo de coisas com que nos de-
teríamos de aceitar perspetivas morais conside-
vemos preocupar, o tipo de coisas que devemos
radas inaceitáveis, como a escravatura, o racis-
fazer). Dá-se o nome de ética normativa ao ramo
mo, a violência, etc. Estas perspetivas conduzem
da ética que lida diretamente com o problema da
a consequências sociais e culturais indesejáveis,
fundamentação da moral. Este problema pode ser
pelo que, para um objetivista, não temos boas ra-
formulado nos seguintes termos: “Qual o funda-
zões para o aceitar.
mento da moralidade?”, ou dito de outra forma,
Ainda que existam discordâncias em relação a “Que princípios devem orientar a nossa conduta?”,
muitos valores, há, no entanto, concordância em ou mais concretamente, “O que torna uma ação
relação a muitos outros, independentemente da moralmente certa ou errada?”
cultura ou de razões subjetivas. A música de Bach
O estatuto moral dos atos
é considerada bela em culturas muito distintas. O
De um ponto de vista moral, os nossos atos
incesto é moralmente condenável na maioria das
podem ser simplesmente impermissíveis (ou
culturas. Ou seja, apesar da diversidade, é, ain-
proibidos) – correspondem àquilo que não po-
da assim, possível encontrar concordâncias que
demos fazer – ou permissíveis – correspondem
constituam prova de que a verdade ou falsidade
àquilo que podemos fazer. Dentro desta última
dos juízos de valor são objetivas. Segue-se que
categoria existem atos obrigatórios – que não po-
a diversidade moral, sendo um facto, não é uma
demos deixar de fazer – e atos facultativos – que
boa razão para aceitar quer o relativismo, quer o
tanto podemos fazer como não fazer. Entre estes
subjetivismo e para rejeitar o objetivismo.
últimos encontram-se atos moralmente neutros
Por outro lado, mesmo que não saibamos a (realmente indiferentes de um ponto de vista mo-
verdade ou falsidade de determinados juízos, daí ral), reprováveis (embora não sejam proibidos se-
não decorre que a sua verdade dependa exclusiva- ria melhor não os realizarmos) e recomendáveis
mente da subjetividade ou do relativismo cultural. (embora não sejam obrigatórios, seria bom se os
Há problemas que são difíceis de resolver, como realizássemos).

RESUMOS DE MATÉRIA SUJEITA A AVALIAÇÃO EXTERNA – 10.° ANO 15

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3.1 A Dimensão Ético-Política – do próprio agente (egoísmo ético); mas sim
Análise e Compreensão da à maior felicidade no todo, na sua máxima
Experiência Convivencial extensão (o que inclui os seres sencientes).
Assim, aquilo que importa promover não é a
A necessidade de fundamentação da felicidade do próprio agente, mas a felicida-
moral – análise comparativa de duas de geral ou bem-estar de todos os envol-
perspetivas filosóficas (Mill e Kant) vidos numa determinada ação. Portanto,
para Mill, sacrificar o bem pessoal só tem
Nos pontos anteriores vimos a natureza da pró-
sentido se for em prol do bem dos outros, ou
pria ética e dos seus juízos. Por exemplo, “Serão os
seja, se aumentar (ou tender a aumentar) a
juízos éticos objetivos?”. Ou seja, estivemos a estu-
quantidade total de felicidade.
dar várias teorias metaéticas. Agora, vamos come-
Além disso, o utilitarismo exige que o
çar com o estudo da ética normativa, ou seja, va-
agente seja imparcial (ou seja, devemos
mos estudar os princípios da vida ética pelos quais
dar a mesma importância à felicidade e
se procura saber o que faz uma ação ser correta ou
bem-estar de todos os indivíduos). Mas,
incorreta.
por que razão teremos que promover a fe-
Assim, o problema filosófico fundamental que licidade geral? Stuart Mill argumenta que
será tratado é o seguinte: (i) existe uma base natural de sentimento
Qual é o fundamento da moral? para a moralidade utilitarista, (ii) existem
sentimentos sociais da humanidade e (iii) a
Perguntar pelo fundamento da moral é procu-
natureza humana é constituída de forma a
rar saber duas coisas:
desejar a felicidade geral.
1. Qual é o bem último?
2. Hedonismo: De acordo com Mill, a felicidade
2. E o que faz uma ação ser correta? ou bem-estar de um indivíduo consiste uni-
camente no prazer (experiências aprazíveis)
A teoria utilitarista de Mill
e na ausência de dor ou sofrimento. A feli-
John Stuart Mill (1806-1873) é o defensor da cidade, entendida como prazer, é intrinseca-
teoria ética utilitarista e responde ao problema da mente valiosa e constitui o bem supremo.
fundamentação da moral da seguinte forma: (1) o Mill defende que alguns tipos de prazeres
bem último é a felicidade e (2) produzir a maior são qualitativamente superiores a outros. Ou
felicidade para o maior número é o que faz uma seja, há prazeres intrinsecamente melho-
ação ser correta. res do que outros. E para vivermos melhor,
é preciso dar uma forte preferência aos pra-
Os argumentos e as ideias principais da teoria
zeres superiores, recusando-nos a trocá-los
utilitarista de Mill são os que se seguem.
por uma quantidade idêntica, ou mesmo
1. Princípio da maior felicidade: Um ato ser maior, de prazeres inferiores.
certo ou errado depende de um único fator: Os prazeres superiores são preferíveis pe-
a sua contribuição para a felicidade ou las pessoas que tenham uma experiência de
bem-estar. Se um curso de ação previsivel- ambos os tipos de prazer, pois estes produ-
mente produzir mais felicidade do que infe- zem qualitativamente mais felicidade que os
licidade, então é correto. Pelo contrário, se prazeres mais baixos. Os prazeres inferio-
previsivelmente gerar mais infelicidade do res dizem respeito à satisfação das necessi-
que felicidade, então é errado. dades primárias (comida, água, sexo, etc.). Os
Este padrão utilitarista da maior felicida- prazeres superiores dizem respeito à satisfa-
de não se refere apenas à maior felicidade ção das necessidades mentais sofisticadas

16 SEBENTA DO ALUNO • COMO PENSAR TUDO ISTO?

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(como a leitura, a reflexão e o estudo). A este Objeções à teoria utilitarista de Mill
propósito, Stuart Mill argumenta que, ainda A ética utilitarista de Mill é suscetível de algu-
que os prazeres de um porco fossem mais mas objeções, como as seguintes.
intensos e duradouros do que os de um ser
humano, os de um ser humano seriam prefe-  utilitarismo parece demasiado
O
ríveis aos de um porco, pois o porco apenas
permissível
pode ter prazeres inferiores. Isto porque não admite restrições deontológi-
Com isto, vemos que o hedonismo de Mill se cas. Para um utilitarista é correto matar ou tortu-
distingue do hedonismo de Bentham: para rar inocentes se isso resultar numa maior felici-
este último, o hedonismo é puramente quan- dade geral. Mas, parece que atos desse tipo não
titativo, ou seja, o valor de um prazer depen- são justificáveis pelo simples facto de produzi-
de apenas da sua duração e intensidade, ao rem as melhores consequências. Porém, os utili-
passo que para Mill o hedonismo é quanti- taristas (como Sidgwick) alegam que a sua teoria
tativo e qualitativo, isto é, há prazeres que, não é demasiado permissível, fazendo notar que
pela sua natureza intrínseca, são superiores esta não deve ser usada sistematicamente para
a outros. tomar decisões e que existem outras motivações
úteis para agir.
3. M
 aximização do bem: Se queremos avaliar
se um dado ato é certo ou errado, tudo o que  utilitarismo parece demasiado
O
precisamos de saber é em que medida, com- exigente
parado com atos alternativos, este contribui Pois diz-nos que é sempre errado fazer algo
para a felicidade geral. Assim, a melhor es- que não contribua para a felicidade geral no maior
colha será aquela que, de um ponto de vista grau possível. Nunca é aceitável fazer menos do
imparcial, mais beneficia e promove a feli- que maximizar a felicidade geral por maiores que
cidade ou bem-estar de todos os envolvidos sejam os sacrifícios pessoais que isso implique.
numa determinada ação. Portanto, é impor-
A teoria deontológica de Kant
tante analisar, num determinado ato, qual é
o maior benefício. Immanuel Kant (1724-1804) defende que o
princípio ético fundamental (que fundamenta a
4. Consequencialismo: O utilitarista avalia as moral) é o imperativo categórico. E por isso res-
ações atendendo somente às suas conse- ponde ao problema da fundamentação da moral
quências. Assim, em qualquer situação, o da seguinte forma: (1) o bem último é a vontade
melhor ato é aquele que, comparado com boa e (2) cumprir o imperativo categórico é o
os atos alternativos, tem consequências que faz uma ação ser moral.
mais valiosas. Ou seja, o correto é agir de
tal modo que geremos o melhor estado de Os argumentos e as ideias principais da teo-
coisas possível. Assim, para se determinar ria deontológica de Kant são os seguintes.
o valor das consequências de um ato, basta 1. Distinção das ações: Kant distingue três ti-
ponderar-se imparcialmente os prejuízos e pos de ações: (i) contrárias ao dever, (ii) me-
benefícios que a sua realização trará a to- ramente conformes ao dever e (iii) por dever.
dos os indivíduos. Além disso, na avaliação Kant estabelece esta distinção para demons-
de um ato, o que interessa são as conse- trar que apenas um tipo de ações tem valor
quências (o que resultará desse ato), sendo moral, e que são as realizadas “por dever”.
irrelevante o motivo do agente (a razão pela As ações (i) contrárias ao dever são as
qual queremos fazer algo). que violam o dever, que são impermissíveis

RESUMOS DE MATÉRIA SUJEITA A AVALIAÇÃO EXTERNA – 10.° ANO 17

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ou proibidas (p. ex.: roubar, matar, torturar, Também já vimos nos pontos anteriores
mentir, quebrar promessas). As ações (ii) que para Kant as ações que têm valor moral
meramente conformes ao dever são as são realizadas por dever. Agir por dever é
que cumprem o dever não porque é corre- agir somente motivado pela razão e não em
to fazê-lo, mas porque daí resulta um be- função de inclinações ou desejos, ou seja, é
nefício ou a satisfação de um interesse (p. ter autonomia da vontade. E chama-se a
ex.: não roubar por receio de ser apanhado, esta vontade que cumpre o dever pelo pró-
não mentir por medo de ser castigado). E prio dever de vontade boa – é este o bem
as ações (iii) realizadas por dever são as último para Kant.
únicas que têm valor moral, uma vez que Ao agirmos exclusivamente pela razão, por
cumprem o dever porque é correto fazê-lo dever e com vontade boa, estamos a obede-
– cumprir o dever é o único motivo da ação – cer ao imperativo categórico, isto é, uma
(p. ex.: não mentir para cumprir a obrigação ordem incondicional que nos dá uma obri-
moral, não roubar porque é correto fazê-lo). gação moral. Então, o que faz uma ação ser
correta é cumprir o imperativo categórico.
2. Agir por dever: De acordo com Kant, as
Isto significa que, para Kant, o imperativo
nossas ações só têm valor moral quando
categórico é o único critério válido que de-
agimos por dever. Agimos por dever quan-
vemos seguir para decidir quando é que uma
do estamos a agir racionalmente, isto é,
ação é moralmente correta, apresentando-
não estamos a agir por outros motivos não
-se como uma obrigação absoluta. Kant for-
racionais (como por exemplo, inclinações,
mulou este imperativo categórico de várias
desejos, sentimentos). E o que nos faz agir
formas:
por dever é a vontade boa. A vontade boa é
a condição de toda a moralidade, é a única  rimeira fórmula do imperativo categó-
P
coisa boa em si mesma, é desinteressada rico: Age sempre segundo uma máxima
e pura. Ou seja, só esta vontade boa funda- tal que possas ao mesmo tempo querer
menta o valor moral de uma ação. que ela se torne lei universal.
A ideia é que devemos agir apenas de
3. Máxima: A máxima é uma regra ou princípio
acordo com regras que podemos querer
que indica o motivo do agente. Exemplos
que todos os agentes adotem. Isto não
de máximas: “Nunca mentirei porque não
consiste em ver se seria bom ou mau
quero ser descoberto”, “Devo ajudar os ou-
que todos agissem de acordo com uma
tros”, “Cumprirei promessas só quando isso
determinada regra. Consiste, antes, em
for do meu interesse”. O valor moral de uma
mostrar se é ou não possível todos agi-
ação depende da máxima que lhe subjaz, ou
rem segundo essa regra.
seja, a nossa ação só tem valor moral quan-
De uma forma mais prática, o teste para
do agimos segundo máximas ditadas pelo
se determinar a moralidade de uma
nosso sentido de dever (p. ex.: agir segundo
ação é o seguinte: (A) Que regra (máxi-
a máxima “Devo ajudar os outros”).
ma) estamos a seguir se realizarmos esta
4. Imperativo categórico: Vimos que na avalia- ação? (B) Estamos dispostos a que essa
ção moral das ações, para Stuart Mill o que regra (máxima) seja seguida por todos
interessa são as consequências da ação. Pelo e em todas as situações? Se a resposta
contrário, para Kant o que interessa são os for positiva, então essa regra (máxima)
motivos do agente e não as consequências torna-se lei universal e, consequente-
da ação. Analisar os motivos é ver por que ra- mente, o ato é moralmente permissível.
zão o agente realiza uma determinada ação. Caso a resposta seja negativa, então essa

18 SEBENTA DO ALUNO • COMO PENSAR TUDO ISTO?

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regra (máxima) não pode ser seguida e,  tica, Direito e Política – liberdade
É
consequentemente, o ato é moralmente e justiça social; igualdade e
proibido. diferenças; justiça e equidade
 egunda fórmula do imperativo ca-
S Relação Ética, Direito e Política
tegórico: Age de tal maneira que uses
A Ética, também conhecida por Filosofia Moral,
a tua humanidade, tanto na tua pes-
procura responder a um problema fundamental: o
soa como na pessoa de qualquer outro,
que é uma vida boa?
sempre e simultaneamente como fim e
nunca simplesmente como meio. Para E o que são Direito e Política? O termo “polí-
respeitar as pessoas devemos respeitar tica” deriva do grego polis que significa “cidade”.
a sua racionalidade, devemos sempre A Grécia Antiga organizava-se politicamente em
tratá-las como seres autónomos e não cidades-estado, que correspondiam, cada uma, ao
como meros instrumentos que estejam que hoje definimos como um país. A política res-
ao serviço dos nossos planos. peita então a todos os assuntos da polis, ou seja,
a organização do Estado, as suas funções e a orga-
 bjeções à teoria deontológica
O nização da sociedade como um todo.
de Kant
A organização da sociedade pressupõe a exis-
A ética deontológica de Kant é suscetível de al- tência de leis, que definem um conjunto de de-
gumas objeções, como as seguintes: veres e direitos dos cidadãos. O incumprimento
dessas leis traduz-se em sanções para os incum-
Conflito de deveres
pridores. Chama-se Direito à disciplina que estu-
Kant diz-nos que existem deveres absolutos. da as leis que organizam uma sociedade e que
Isto significa que nunca é permissível fazer o que configuram direitos e deveres dos cidadãos.
estes deveres proíbem (p. ex.: mentir). Logo, se
Acontece que muitas vezes consideramos de-
aceitarmos estes deveres absolutos iremos ser
terminadas leis imorais ou mesmo injustas. Por
conduzidos a conflitos de deveres que não têm
exemplo, em determinados países, existem leis
solução. Para resolver este problema, David Ross que proíbem as mulheres de estudar ou até esco-
(1877-1971) propõe a existência de deveres pri- lherem com quem casar. Em sociedades autocrá-
ma facie, ou seja, deveres morais como o de não ticas muitas leis são consideradas injustas, já que
mentir. À partida, é errado mentir, mas em certas não permitem a igualdade e a mesma liberdade
circunstâncias excecionais, será permitido fazê-lo. entre os cidadãos. Estas situações levantam um
problema, o de procurar saber se o que é moral
Além das pessoas
deve ser legal ou se, de uma outra forma, toda a
Uma pessoa é um agente racional e é nossa legalidade deve traduzir tudo o que é moral.
obrigação respeitá-la. Mas os recém-nascidos, os
deficientes mentais profundos não são pessoas. Três conceções diferentes do Direito
No entanto, consideramos ter obrigações morais Para compreender melhor as relações entre
para com eles, não é permissível tratá-los de qual- Ética e Direito, vejamos brevemente três conce-
quer forma. ções diferentes de Direito e de consequente or-
ganização política da sociedade: Teoria do Direito
Limites da razão
Divino, Teoria do Direito Natural e Teoria do Di-
A razão não pode ser o único fundamento da reito Positivo. Estas conceções diferem quanto à
moralidade. Os nossos sentimentos, desejos e origem e fundamento das leis e quanto à rela-
emoções também têm um papel a desempenhar. ção estabelecida entre ética e direito.

RESUMOS DE MATÉRIA SUJEITA A AVALIAÇÃO EXTERNA – 10.° ANO 19

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Assim, no Direito Divino a origem e funda- tempo a mudar leis injustas. Por outro lado, muitas
mento da lei reside em Deus ou nos livros sa- vezes os canais legais dos regimes democráticos
grados. A palavra de Deus é também a lei. Aos estão muito bloqueados e nesse caso justifica-se
Estados organizados segundo o Direito Divino a desobediência civil. Acontece com frequência
também se chamam teocracias. Neste tipo de or- que a revisão de uma lei é resultado justamente da
ganização política da sociedade não existe qual- ação de um queixoso que praticou a desobediência
quer distinção entre ética e direito, já que o que é civil, é levado a tribunal e julgado, resultando des-
lei é também moral, uma vez que traduz a pala- te processo nova jurisprudência.
vra de Deus.
Objeção: uma vez que estabelecemos um contra-
Segundo a teoria do Direito Natural, as leis de- to com outros membros da sociedade, estamos
vem traduzir princípios morais universais que todo obrigados à obediência à lei. Se vivemos num Es-
e qualquer ser racional é capaz de descobrir por tado e beneficiamos das suas leis, devemos obe-
si. Significa isto que toda e qualquer lei deve deri- decer-lhe.
var destes princípios fundamentais. Assim, para o
Resposta: a existência de uma lei injusta que, por
Direito Natural, Ética e Direito são áreas diferen-
exemplo, negue às mulheres ou aos negros de-
tes, mas o Direito depende diretamente da Ética.
terminados direitos, implica que esses grupos de
Quem defende o Direito Positivo defende ao pessoas não estejam de todo incluídos na lei. Se
mesmo tempo que Ética e Direito são áreas dife- não são membros de pleno direito, não têm de
rentes e independentes. Desta forma, uma lei não obedecer.
tem de ter qualquer expressão moral, mas antes a
Objeção: A desobediência civil não passa o teste
expressão de cada sociedade e das suas conven-
da universabilidade de Kant, uma vez que, se toda
ções sociais.
a gente a praticasse, a sociedade acabaria numa
O problema da desobediência civil anarquia completa.

Se considerarmos que existem leis injustas, Resposta: esta objeção é que ela comete a falácia
será que a desobediência civil se justifica moral- da derrapagem. Isto é, do facto de se desobedecer
mente? Este é um problema que os filósofos pro- a uma lei injusta não se segue necessariamente
curam resolver. A desobediência civil é uma forma que a sociedade acabe numa anarquia. Outra res-
de protesto a uma lei que se considera injusta. Por posta possível é que a anarquia é sempre melhor
exemplo, Martin Luther King, um afro-americano, que uma sociedade com leis injustas. Um Estado
combateu leis que considerava injustas apelando à anarquista pode ser mau, mas um Estado despó-
desobediência civil, desrespeitando, de forma pa- tico será sempre pior. Segundo uma perspetiva
cífica, leis de segregação racial. A desobediência utilitarista, o risco da anarquia pode ter melhores
civil caracteriza-se por ser não-violenta e, em resultados do que a obediência a leis injustas, ape-
norma, os seus praticantes aceitam as sanções. sar de quer a desobediência, quer a obediência po-
O seu objetivo pode ser o de chamar a atenção derem ser prejudiciais.
para uma lei considerada injusta. Analisemos
brevemente algumas objeções à desobediência  problema da relação entre
O
civil e as possíveis respostas às objeções. liberdade política e justiça social
Objeção: a desobediência civil não se justifica A teoria da justiça de John Rawls
num regime democrático, pois as leis injustas po-
Será justa uma sociedade na qual a distribui-
dem ser sempre alteradas.
ção de rendimentos e riqueza é desigual? Ou ape-
Resposta: os meios legais podem levar demasiado nas será justa se tal distribuição for igual?

20 SEBENTA DO ALUNO • COMO PENSAR TUDO ISTO?

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Imaginemos uma sociedade em que grande de riqueza são aceitáveis apenas na medida
parte das pessoas vive em grande pobreza, apesar em que resultam desta igualdade de opor-
de existir uma pequena elite de pessoas multimi- tunidades.
lionárias. Será esta sociedade justa? Imaginemos 3. Princípio da diferença: A sociedade deve
outra sociedade em que as pessoas têm exata- promover a distribuição igual da riqueza,
mente a mesma riqueza e em que tudo é distribuí-
exceto se a existência de desigualdades
do igualitariamente. Será justa uma tal sociedade
económicas e sociais gerar o maior bene-
onde todos têm o mesmo, independentemente do
fício para os menos favorecidos. A ideia é
que trabalhem, do que se esforcem ou dos dons
que se as desigualdades na distribuição da
que tenham? Afinal, o que é efetivamente uma
riqueza acabarem por beneficiar todos, es-
sociedade justa?
pecialmente os mais desfavorecidos, então
A este problema Rawls (1921-2002) responde, justificam-se.
numa perspetiva tendencialmente mais igualita- Mas como é que Rawls justifica estes seus
rista, que numa sociedade justa deve-se asse- princípios da justiça? Existem duas vias de jus-
gurar iguais liberdades e oportunidades para tificação: (A) a partir da metodologia do equilíbrio
todos e que a redistribuição do rendimento e da refletido e (B) a partir do argumento da posição
riqueza deve ser feito à luz deste objetivo. Por original e da regra maximin.
isso, não aceita distribuições muito desiguais, uma
vez que limitam consideravelmente as liberda- (A) Argumento do equilíbrio refletido
des e as oportunidades dos mais pobres. Aliás, as Consiste em avaliar os princípios sugeridos
desigualdades na distribuição só são aceitáveis se por Rawls à luz das nossas intuições morais e,
trouxerem benefícios para todos, de modo espe- assim, ver a sua pertinência. Então, segundo (A),
cial para os mais desfavorecidos. Se não for esse que razões temos para escolher os três princípios
o caso, então o Estado deve intervir, por exemplo, da justiça?
com impostos e outras tributações, de modo a
O princípio (1) justifica-se, pois a liberdade é um
manter este padrão de justiça que assegure iguais
bem social primário e é fundamental para concreti-
oportunidades e liberdades para todos.
zarmos os nossos objetivos e projetos de vida. Por-
Em suma, para John Rawls uma sociedade é tanto, as liberdades protegem as diversas formas
justa se seguir os seguintes três princípios: individuais de vida. Seria imoral privar as pessoas
de liberdade, uma vez que não se poderia assumir
1. P
 rincípio da liberdade: A sociedade deve as-
expressa e conscientemente uma determinada
segurar a máxima liberdade para cada pes-
soa compatível com uma liberdade igual para conceção de bem, como também seria impossível
todos os outros. Segundo este princípio, o im- existir expressão, pensamento e ação livre.
portante é assegurar liberdades (de expres- Do mesmo modo, o princípio (2) justifica-se por-
são, de religião, de reunião, de pensamento, que as pessoas não são moralmente responsáveis
etc.), que não devem ser violadas em troca de pelas circunstâncias do seu próprio nascimento
vantagens económicas ou de outro tipo. e, mais especificamente, por nascerem numa fa-
2. Princípio da oportunidade justa: As desi- mília de perfil socioeconómico baixo ou alto. Ou
gualdades económicas e sociais devem es- seja, constata-se que, na realidade, existe uma
tar ligadas a postos e posições acessíveis a lotaria social (as pessoas nascem em contextos
todos em condições de igualdade de opor- socioeconómicos muito diferentes) e certos indiví-
tunidades. De acordo com este princípio, duos podem ficar impedidos de aceder a funções
deve-se promover a igualdade de oportu- e cargos por falta de oportunidade de educação
nidades, e as desigualdades na distribuição e de cultura. Este tipo de contingências sociais é

RESUMOS DE MATÉRIA SUJEITA A AVALIAÇÃO EXTERNA – 10.° ANO 21

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arbitrário do ponto de vista moral, pois os indiví- pertencem, seria irracional prejudicar um deter-
duos que nasceram nesses contextos não são res- minado grupo (por exemplo, os pobres) ou tirar a
ponsáveis por isso. Assim, de forma a minimizar a liberdade a um certo setor da sociedade, uma vez
lotaria social, precisamos do princípio da oportu- que poderiam estar a prejudicar-se a si mesmas.
nidade justa. Para isso, é necessário, por exemplo, Assim, quer-se uma liberdade igual para todos.
que o Estado garanta a todos o acesso à educação
Da mesma forma, as partes escolheriam na
(independentemente do contexto social).
posição original os princípios (2) e (3), porque se-
Por fim, o princípio (3) justifica-se, pois as pes- guem a regra maximin. Esta regra é um princípio
soas não são moralmente responsáveis pelos seus de escolha a aplicar em situações de ignorância,
dotes naturais, isto é, por nascerem com boas ca- (como é o caso de se ser abrangido pelo véu de ig-
pacidades cognitivas ou com deficiência mental, norância). De acordo com esta regra, se as partes
por nascerem com bons ou maus talentos, habi- não sabem quais serão os resultados que podem
lidades, saúde, motivação, etc. Portanto, os indi- obter ao nível dos bens sociais primários, então
víduos têm diferentes dotes naturais e talentos e é racional jogar pelo seguro e escolher como se
estes são desigualmente remunerados pelo mer- o pior lhes fosse acontecer. Além disso, a regra
cado. Além disso, nenhuma forma de igualdade de maximin é acompanhada de três condições:
oportunidades permite retificar esta lotaria natu-
ral. Estas contingências naturais que conduzem a a) a
 s partes não têm conhecimento de proba-
grandes desigualdades de riqueza são arbitrárias bilidades;
do ponto de vista moral, pois os indivíduos não são b) a
 s partes têm aversão ao risco;
responsáveis pela lotaria natural. Logo, de forma
a minimizarmos a lotaria natural, precisamos do c) as partes estão especialmente interessadas
princípio da diferença que procura beneficiar os em garantir a exclusão de resultados abso-
menos favorecidos. lutamente inaceitáveis.

(B) Argumento da posição original Por exemplo, imagine-se os seguintes padrões


de distribuição de bens primários em sociedades
Este argumento completa a justificação do
com apenas três pessoas:
equilíbrio refletido. A metodologia da posição
original é (I) uma experiência mental através da (S1): 10, 8, 2
qual se imagina uma situação em que as pessoas
(as partes) de uma sociedade são levadas a ava- (S2): 6, 5, 5
liar os princípios da justiça. Mas as partes estão (S3): 9, 7, 3
cobertas por (II) um véu de ignorância que as fa-
zem desconhecer quem são na sociedade e quais Na posição original, com o véu de ignorância
as suas peculiaridades individuais, o que não e seguindo a regra maximin, as partes escolhe-
garante a imparcialidade na escolha dos princí- riam viver na sociedade (S2), pois o pior que lhes
pios da justiça. Do mesmo modo, as partes têm poderia acontecer seria melhor do que nas ou-
interesse em (III) obter bens sociais primários, tras sociedades. As partes, ao seguirem a regra
ou seja, coisas que são valiosas em qualquer pro- maximin, olham apenas para os mais desfavore-
jeto de vida, tais como liberdades, oportunidades, cidos, querendo-lhes oferecer as melhores con-
rendimento e riqueza. dições possíveis. Por isso, escolheriam os princí-
pios (2) e (3).
Tendo em conta a experiência mental (B),
as partes escolheriam na posição original o Serão estes argumentos plausíveis? Será que
princípio (1), pois, pelo facto de não saberem as temos realmente uma sociedade justa se seguir-
suas posições na sociedade ou a que grupo elas mos os três princípios propostos por Rawls?

22 SEBENTA DO ALUNO • COMO PENSAR TUDO ISTO?

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Críticas de Nozick do princípio da diferença. Portanto, algumas
ações livres (trocas, ofertas, apostas, seja o
Robert Nozick (1938-2002), no livro Anarquia,
que for) conseguem quebrar o padrão.
Estado e Utopia (nomeadamente no sétimo ca-
pítulo), faz uma das mais consistentes críticas 3. Para que o padrão inicial fosse reposto, a
à teoria da justiça de John Rawls. Um dos mais propriedade teria de ser redistribuída. O Es-
famosos argumentos que Nozick concebe é o de tado teria de intervir através de meios como
Wilt Chamberlain, que serve para criticar o prin- a cobrança de impostos. Deste modo, para
cípio da diferença de Rawls e outros princípios da se concretizar o padrão do princípio da dife-
justiça padronizados e finalistas. Na página 206 rença, o Estado tira a alguns indivíduos (sem
da versão portuguesa, Nozick diz que “a lição o seu consentimento) parte daquilo que pos-
ilustrada pelo exemplo de Wilt Chamberlain (…) suem legitimamente para beneficiar os mais
é que nenhum princípio finalista ou princípio dis- desfavorecidos.
tributivo padronizado de justiça [como o princípio
da diferença] pode ser continuadamente realiza- 4. Porém, de acordo com Nozick, esta redistri-
do sem interferir continuadamente na vida das buição interferirá consideravelmente com
pessoas”. Ou seja, para se conseguir manter um a liberdade e os direitos de propriedade de
princípio padronizado de justiça será preciso que as pessoas deviam gozar. Segundo No-
violar a liberdade individual e os direitos de zick, esta interferência do Estado é etica-
propriedade. O seguinte esquema poderá ajudar mente inaceitável, pois viola os direitos de
melhor à compreensão desta crítica de Nozick: propriedade dos indivíduos e desrespeita a
liberdade individual. Para além disso, No-
Ações livres zick defende claramente que “a tributação
D1 D2
(2) dos indivíduos dos rendimentos do trabalho é equiparável
(1) ao trabalho forçado” (p. 213).
Padrão
(Princípio da diferença) Padrão quebrado Em suma, Nozick considera que a interferên-
cia do Estado é eticamente inaceitável, uma vez
Interferência (3) que viola direitos de propriedade e desrespeita a
do Estado liberdade individual de cada um gerir o seu ren-
(Impostos)
dimento e riqueza como bem entender. Por isso,
(4) Nozick avança com uma conceção alternativa de
Eticamente inaceitável justiça que é libertista.

Interferência do Estado viola direitos de propriedade


e desrespeita a liberdade individual
Outras objeções à teoria da justiça
1. O
 princípio da diferença é uma conceção Objeção kantiana
padronizada da justiça: a propriedade deve
Segundo o imperativo categórico de Kant, nun-
ser distribuída de forma a que os mais des-
ca devemos tratar os outros apenas como meios
favorecidos fiquem o melhor possível. De
para atingir fins alheios.
acordo com Rawls, se não se respeitar este
Ora, violar o direito à propriedade legitimamen-
padrão, então a sociedade será injusta.
te adquirida para beneficiar os mais desfavoreci-
2. M
 as, uma vez dado o rendimento e riqueza dos implica tratar os mais favorecidos como meios
às pessoas segundo o princípio da diferen- para fins alheios.
ça, algumas gastá-lo-ão, outra obterão mais Logo, o princípio da diferença viola o imperati-
e, assim, a sociedade acaba por se afastar vo categórico de Kant.

RESUMOS DE MATÉRIA SUJEITA A AVALIAÇÃO EXTERNA – 10.° ANO 23

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Objeção do acordo considera que os juízos estéticos não se referem
Segundo a teoria de Rawls, os princípios da jus- a propriedades objetivas dos objetos, mas sim às
tiça são o resultado de uma situação hipotética de impressões subjetivas despertadas pelos mesmos.
negociação. Mas na posição original não pode ha- Por sua vez, o objetivismo estético sustenta que
ver genuína negociação, pois não sabemos o que as propriedades estéticas não são meros estados
temos para oferecer nem exatamente o que vamos subjetivos projetados nos objetos, mas sim proprie-
receber em troca e, por conseguinte, não podemos dades reais e objetivas dos mesmos.
oferecer nada em troca de coisa alguma.
Subjetivismo estético
Objeção das probabilidades
Assim, para um subjetivista estético, afirmar
A teoria de Rawls menospreza o cálculo de pro-
que “x é intenso” significa: “Eu tenho uma sensa-
babilidades. Rawls considera que, se não souber-
ção de intensidade perante x”. Tal significa que,
mos qual vai ser a nossa posição na sociedade, é
de acordo com o subjetivismo estético, a verdade
racional escolher os princípios da justiça como se o
ou falsidade dos juízos estéticos depende exclu-
pior nos fosse acontecer, sem ter em linha de conta
sivamente dos estados subjetivos de quem os
o cálculo de probabilidades e a ponderação dos ris-
formula.
cos – benefícios. Perante determinadas probabili-
dades, digamos 10% de hipóteses de ficar numa si- O principal argumento a favor do subjetivis-
tuação de pobreza extrema para 90% de hipóteses mo estético é o seguinte:
de ficar numa situação de riqueza extrema, alguns (1) Existem diversos e profundos desacordos
podem considerar que é mais racional apostar nas no que diz respeito a propriedades estéticas.
probabilidades do que jogar pelo seguro.
(2) S
 e as propriedades estéticas fossem pro-
priedades reais e objetivas dos objetos, não
3.2 A Dimensão Estética – existiriam diversos e profundos desacordos
Análise e Compreensão a seu respeito.
da Experiência Estética (3) As propriedades estéticas não são proprie-
dades reais e objetivas dos objetos. (De 1
A experiência e os juízos estéticos
e 2)
Qual a natureza dos juízos estéticos? Este é
(4) O
 u as propriedades estéticas são proprieda-
um dos principais problemas estudados por uma
des reais e objetivas dos objetos, ou são pro-
área da filosofia designada “estética”. Geralmen-
jeções das nossas impressões subjetivas.
te, usamos a palavra “juízo” para nos referirmos
ao ato de estabelecer uma relação entre um su- (5) Logo, as propriedades estéticas são proje-
jeito e um predicado. A particularidade dos juízos ções das nossas impressões subjetivas. (De
estéticos reside no facto de os seus predicados 3 e 4)
serem propriedades estéticas. As propriedades Por se basear na existência de desacordos na
estéticas são propriedades disposicionais que atribuição de propriedades estéticas, este argu-
dizem respeito à dimensão qualitativa dos ob- mento ficou conhecido como argumento dos de-
jetos, como, por exemplo, a intensidade, a ele- sacordos.
gância e a monumentalidade e contrastam com
as propriedades físicas, que são estudadas pe- Objeções ao subjetivismo estético
los físicos e puramente quantitativas, como, por
Existem vários autores que se opõem forte-
exemplo, o peso, a altura e a largura.
mente ao subjetivismo estético. As principais ob-
Existem diferentes perspetivas em relação à na- jeções que esta perspetiva enfrenta são as que
tureza os juízos estéticos. O subjetivismo estético se seguem.

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Objeção ao argumento dos desacordos não apreciássemos, ou apreciarmos um objeto
que reconhecemos ser inteiramente destituído
O argumento dos desacordos afirma que a
de valor estético. Ora, uma vez que tal impossibi-
existência de acordos generalizados na atribui-
lidade não se verifica, devemos rejeitar o subjeti-
ção de propriedades estéticas aos objetos é uma
vismo estético.
condição necessária para que estas possam ser
consideradas propriedades reais e objetivas dos
Objetivismo estético
mesmos. No entanto, os opositores ao subjeti-
vismo estético fazem notar que, se esta perspe- O objetivismo estético sustenta que os juízos
tiva fosse verdadeira, não haveria verdadeiros estéticos se justificam apelando às propriedades
desacordos entre os indivíduos na atribuição não estéticas das quais as propriedades estéticas
de propriedades estéticas, pois, considerando envolvidas nesses juízos sobrevêm e, por conse-
que cada um estaria a falar das suas impressões guinte, a sua verdade ou falsidade é independen-
subjetivas e não de quaisquer propriedades reais te dos estados subjetivos de quem os formula.
e efetivas do objeto em causa, qualquer possível A superveniência é um tipo de relação entre
desacordo entre dois indivíduos na atribuição de duas propriedades (ou dois tipos de proprieda-
uma propriedade estética a um objeto seria ape- des). Diz-se que uma propriedade F sobrevém de
nas aparente. uma propriedade G quando as coisas têm a pro-
priedade F em virtude de terem a propriedade G.
 bjeção da aprendizagem por ostensão de
O
termos para propriedades estéticas O principal argumento a favor do objetivismo
estético baseia-se numa analogia entre as pro-
Esta objeção baseia-se no facto de aprender-
priedades estéticas e outras propriedades que,
mos a usar os termos que designam propriedades
embora sejam igualmente supervenientes, não
estéticas por ostensão – isto é, apreendemos o
deixam de ser propriedades reais e objetivas, como
sentido de termos como intenso, delicado, monu-
as propriedades cromáticas, por exemplo. A analo-
mental porque vemos outras pessoas utilizar es-
gia pode ser formulada do seguinte modo:
ses termos na presença de objetos com um deter-
minado conjunto de características – para concluir (1) As propriedades cromáticas são dependen-
que o subjetivismo estético é falso. Isto porque, se tes de reação que sobrevém de outro tipo de
o subjetivismo fosse verdadeiro, as pessoas limi- propriedades dos objetos, mas não deixam
tar-se-iam a fazer projeções das suas impres- de ser propriedades reais e objetivas das coi-
sões subjetivas, e uma vez que essas impressões sas.
são privadas, não seríamos capazes de considerar (2) Tal como as propriedades cromáticas, tam-
a mesma característica dos objetos que os nossos bém as propriedades estéticas são proprie-
educadores. Nesse caso, a aprendizagem por os- dades dependentes de reação que sobrevém
tensão de termos relativos a propriedades estéti- de outro tipo de propriedades dos objetos.
cas seria impossível.
(3) Logo, tal como as propriedades cromáticas,
 bjeção da diferença entre juízos
O também as propriedades estéticas não dei-
estéticos e juízos de gosto xam de ser propriedades reais e objetivas
das coisas.
Esta objeção sustenta que se o subjetivismo
estético fosse verdadeiro, os nossos juízos es-
téticos não passariam de meras expressões dos
Objeções ao objetivismo estético
nossos gostos pessoais, ou seja, seriam apenas O objetivismo estético também não está isen-
juízos de gosto e, nesse caso, seria impossível re- to de objeções. As principais objeções que o obje-
conhecermos o valor estético de um objeto que tivismo estético enfrenta são as que se seguem.

RESUMOS DE MATÉRIA SUJEITA A AVALIAÇÃO EXTERNA – 10.° ANO 25

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Objeção da analogia fraca Kant e o prazer desinteressado
Esta objeção pretende estabelecer que, uma Kant considera que, enquanto os juízos cogni-
vez que existem diferenças relevantes entre as tivos pretendem descrever as propriedades obje-
propriedades estéticas e as propriedades cromá- tivas das coisas, os juízos estéticos, ou juízos de
ticas – por exemplo, existem amplos consensos gosto, referem-se a uma particular forma de pra-
na atribuição de propriedades cromáticas aos ob- zer que os sujeitos experimentam na presença de
jetos, mas o mesmo não se verifica no que toca certos objetos e não aos próprios objetos ou às
às propriedades estéticas – a analogia que funda- suas propriedades. Por esse motivo, Kant admite
menta o objetivismo estético é demasiado fraca e que os juízos estéticos são subjetivos.
está condenada ao fracasso.
No entanto, Kant considera que existem dife-
Objeção dos desacordos rentes tipos de prazer que podemos experimentar
na presença dos objetos: o prazer do agradável, o
É frequente vermos pessoas igualmente aten-
prazer do bom e o prazer do belo. Quer o prazer
tas e informadas fazerem juízos diferentes relati-
de comer chocolate (prazer do agradável), quer o
vamente às propriedades estéticas de um mesmo
prazer de conseguir arranjar um eletrodoméstico
objeto. Se o objetivismo estético fosse verdadeiro,
avariado (prazer do bom) são prazeres que de-
então as propriedades estéticas de um objeto de-
pendem da satisfação de determinados interes-
penderiam das suas propriedades não estéticas e,
ses e desejos pessoais e, por isso, não são desin-
nesse caso, não se justificaria a existência de tais
teressados. Mas o prazer da beleza é o prazer que
discrepâncias. Portanto, o objetivismo estético é
sentimos perante a representação de um objeto
falso.
(sem que seja sequer necessário que este exista
Objeção do condicionamento cultural de facto) e, portanto, é um prazer sem qualquer
interesse envolvido, meramente contemplativo e
Os defensores do objetivismo estético susten-
genuinamente desinteressado.
tam que a convergência que se verifica na atri-
buição de certas propriedades estéticas a deter- Assim, para Kant, uma vez que têm a sua ori-
minados objetos se explica graças à existência gem num prazer desinteressado, despido dos nos-
de propriedades objetivas nos objetos que fazem sos interesses e desejos pessoais, embora sub-
com que essa seja a reação adequada perante os jetivos, os juízos estéticos são universais porque,
mesmos. Mas o condicionamento cultural consti- quando os formulamos, não nos referimos apenas
tui uma explicação alternativa, e altamente plau- a uma certa impressão subjetiva, mas sim à im-
sível, para essa convergência. Grande parte das pressão subjetiva que, em condições ideais, todos
pessoas reage da mesma maneira perante de- teriam.
terminados objetos porque foi cultural e social-
mente condicionada para considerar que essa é a Objeções à perspetiva kantiana
reação adequada perante os mesmos. A perspetiva de Kant enfrenta as objeções que
se seguem.
Duas perspetivas intermédias
 bjeção do desacordo entre pessoas
O
Para além das posições extremas do subjeti-
igualmente desinteressadas
vismo estético radical e do objetivismo absoluto,
existem posições mais moderadas, relativamente Se os juízos estéticos são universais, por que ra-
ao problema da natureza dos juízos estéticos. Im- zão subsistem os desacordos? Kant afirmaria que
manuel Kant (1724-1804) e David Hume (1711- estes se devem ao facto de certas pessoas con-
1776) defenderam ambos posições subjetivistas seguirem abster-se dos seus interesses pessoais
que se distanciam do subjetivismo radical. imediatos para contemplar desinteressadamente

26 SEBENTA DO ALUNO • COMO PENSAR TUDO ISTO?

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os objetos, ao passo que outras não. Mas esta res- estaria disposta a reconhecer a superioridade de
posta não é inteiramente satisfatória, pois podemos um dos elementos do par relativamente ao outro.
imaginar duas pessoas que contemplam desinte- Hume acrescenta que quem quer que emitisse
ressadamente o mesmo objeto experimentarem um parecer diferente estaria simplesmente a ser
sensações diferentes e até opostas (por exemplo, pouco razoável e acaba por concluir que, apesar
uma pode sentir agrado, a outra desagrado). de os juízos estéticos serem apenas a expressão
dos sentimentos de prazer e desprazer em relação
Objeção da superveniência aos objetos, existe um padrão do gosto que serve
Se existe algo nos objetos que faz com que, em de referência comum para os juízos estéticos.
condições ideais, todos tenhamos o mesmo tipo O argumento central de Hume pode ser formu-
de experiência, por que razão não assumimos que lado do seguinte modo:
essa experiência sobrevém das suas propriedades
não-estéticas, tal como acontece, por exemplo, Argumento dos pares desproporcionais
com a cor? Kant sustenta que existe uma diferen-
(1) N
 inguém razoável estaria disposto a admi-
ça significativa entre juízos como “Esta rosa é ver-
tir a igualdade de génio e elegância entre
melha” e “Esta rosa é linda”, porque no primeiro
Ogilby e Milton (ou Bunyan e Addison).
caso estamos a aplicar o conceito de vermelho ao
objeto, procurando fazer uma afirmação verda- (2) Se ninguém razoável estaria disposto a ad-
deira sobre o mundo, ao passo que no segundo mitir a igualdade de génio e elegância entre
estamos apenas a falar do prazer que sentimos Ogilby e Milton (ou Bunyan e Addison), en-
perante a rosa. Mas, se prestarmos atenção, a ver- tão existe um padrão do gosto que serve de
melhidão também não está na rosa, pois depende referência comum para os juízos estéticos.
igualmente da forma como criaturas como nós (3) L
 ogo, existe um padrão do gosto que serve
reagem perante objetos com certas propriedades. de referência comum para os juízos esté-
Assim, podemos considerar que a diferença entre ticos.
os dois juízos apresentados não é tão significati-
Para explicitar a noção de padrão do gosto,
va como Kant pretendia. Trata-se apenas de dois
Hume recorre à figura do crítico ideal. Segundo
exemplos diferentes de superveniência.
Hume, um juízo estético verdadeiro é aquele que o
crítico ideal faria. O crítico ideal tem as seguintes
Hume e o padrão de gosto características:

Hume considera que os juízos estéticos são a  m gosto refinado e delicado, que seja capaz
u
expressão dos nossos gostos pessoais, dos nossos de fazer distinções subtis;
sentimentos de prazer e desprazer em relação aos  rática de fazer juízos, ou seja, a sua sensibi-
p
objetos. No seu ensaio Sobre o Padrão do Gosto, lidade não está enferrujada por falta de uso;
Hume chega mesmo a afirmar que “procurar es-
 ma vasta experiência de vida, que possibili-
u
tabelecer uma beleza real, ou uma deformidade
ta comparações relevantes;
real, é uma investigação infrutífera como procurar
determinar uma doçura real ou um amargor real”.  capacidade de ultrapassar o preconceito,
a
afastando-se das modas e distanciando-se
No entanto, Hume considera que os gostos
dos seus sentimentos em relação aos auto-
não valem todos o mesmo e, para justificar esta
res das obras;
ideia, recorre a exemplos de pares despropor-
cionais – obras de arte com valores claramente  om senso, ou seja, dispõe de algumas capa-
b
diferentes, uma grande obra e uma obra medío- cidades cognitivas de que se serve para pro-
cre –, mostrando que qualquer pessoa razoável ceder a uma correta avaliação das obras;

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 ma “perfeita serenidade da mente” (para usar
u obras mais emblemáticas da arquitetura moder-
a expressão do próprio Hume), ou seja, o esta- na. Ora, a teoria do padrão do gosto leva-nos a
do de espírito adequado para que possa pres- preferir o que ao longo dos tempos permaneceu
tar a devida atenção às obras que são alvo dos como merecedor de atenção e, por conseguinte,
seus juízos. conduz a um certo conservadorismo. E embora
Hume esteja disposto a assumir que o padrão
Assim, segundo Hume, um juízo estético é do gosto evolui ao longo dos séculos, cria uma
verdadeiro se corresponde àquele que o crítico situação bastante desfavorável para certos mo-
ideal faria perante o mesmo objeto. O que sig- vimentos vanguardistas que, não obstante a sua
nifica que, embora os juízos estéticos se refiram qualidade, só poderão ter o seu valor reconhecido
a sentimentos e não a propriedades objetivas das nos séculos vindouros.
coisas, podemos afirmar que, colocando de parte
pequenas variações de gosto, existem situações
A criação artística e a obra de arte
em que há claramente sentimentos mais adequa-
O problema da natureza da arte é uma das
dos do que outros.
principais preocupações dos filósofos da arte e
Objeções à perspetiva humeana pode ser intuitivamente formulado do seguinte
modo: O que é a arte? Para muitos autores, qual-
 bjeção dos juízos incompatíveis
O
quer resposta satisfatória a este problema impli-
entre especialistas
ca encontrar uma definição explícita de arte, ou
Segundo esta teoria, um juízo estético é ver- seja, estabelecer as condições necessárias e sufi-
dadeiro se corresponde àquele que o crítico ideal cientes para que algo possa ser considerado arte.
faria perante o mesmo objeto; mas duas pessoas Vejamos de seguida algumas das mais famosas
diferentes podem satisfazer os requisitos exigi- tentativas de solução deste problema.
dos para que sejam consideradas críticos ideais e
ainda assim emitirem juízos incompatíveis sobre A teoria mimética da arte
o mesmo objeto. Nessas circunstâncias, como A teoria mimética da arte (do grego mimesis,
podemos decidir qual dos juízos é verdadeiro? imitação), ou “teoria da arte como imitação”, re-
Por exemplo, há especialistas que reconhecem monta a Platão e Aristóteles. Estes pensadores
nos filmes de Quentin Tarantino uma enorme refletiram sobre a poesia, a pintura, a música e a
qualidade cinematográfica, ao passo que outros arquitetura do seu tempo e concluíram que aqui-
os encaram como uma sucessão de banalidades lo que existe de comum a todas as obras de arte
algo grosseiras. Qual dos juízos é verdadeiro? Se- é o facto de envolverem sempre alguma forma de
gundo a teoria do padrão do gosto, ficaríamos in- imitação. Daí terem defendido que:
capacitados de dar uma resposta a esta pergun- x só é uma obra de arte se for uma imitação.
ta, pelo que somos levados a admitir que há algo
Isto não significa que estes autores pensavam
de insatisfatório nesta teoria.
que só a arte tinha a propriedade de imitar a rea-
Objeção do conservadorismo lidade. Existem muitas outras atividades que en-
Aquilo que é muitas vezes considerado aber- volvem imitação e, no entanto, não são arte. Por
rante, de acordo com o padrão do gosto de uma exemplo, é frequente as crianças imitarem o com-
determinada época, vê, muitas vezes, o seu valor portamento dos adultos, mas isso não significa que
ser reconhecido nos séculos subsequentes. Por essas brincadeiras sejam manifestações artísticas.
exemplo, quando foi inaugurada, em 1889, a Torre Assim, a teoria mimética limita-se a dizer que a
Eiffel foi desdenhada por muitos críticos influen- imitação é uma condição necessária para a arte,
tes na época e hoje é reconhecidamente uma das que é o mesmo que dizer que algo só é arte se for

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uma imitação, o que é muito diferente de susten- aparecimento da fotografia contribuiu em larga
tar que a imitação é uma condição suficiente para a medida para essa mudança de rumo nas artes
arte, o que implicaria que toda a imitação fosse arte. visuais. Visto que a fotografia era perfeitamente
Embora concordassem a respeito do caráter capaz de copiar a aparência das coisas, a pintu-
imitativo da arte, Platão e Aristóteles tinham opi- ra começou a ser usada com outros intuitos. Por
niões muito diferentes em relação à importância da exemplo, em vez de se limitarem a representar
arte. Platão considerava que a arte era uma mera friamente a aparência das coisas, os pintores
simulação de aparências, que nos afastava do ver- expressionistas, como Van Gogh, procuraram
dadeiro conhecimento, ao passo que Aristóteles exprimir as suas emoções face aos objetos re-
acreditava que o carácter imitativo da arte tinha presentados. Outros estilos de pintura, como o
uma função terapêutica, pois permitia ao especta- cubismo, a action painting e a pintura minimalis-
dor libertar e purificar as suas paixões. Aristóteles ta, afastaram-se tanto dos seus referentes que
chamou catarse a este efeito purificador da arte. os tornaram irreconhecíveis ou até mesmo ine-
xistentes. De modo que, depois de quase um sé-
A influência desta teoria ainda hoje se faz sen-
culo de pintura abstrata, somos forçados a rejei-
tir. Há quem diga que uma boa pintura deve asse-
tar a teoria mimética da arte por ser demasiado
melhar-se aos elementos retratados; ou que um
restritiva, uma vez que deixa de fora algumas das
filme é bom porque consegue captar a realidade
mais célebres obras de arte de todos os tempos,
tal como ela é. Analogamente, há quem conside-
juntamente com todos os museus dedicados à
re que a pintura abstrata não é arte, porque não
arte contemporânea.
se parece com coisa alguma; ou que um filme não
é arte, porque não tem qualquer relação com a Objeção da arte decorativa
realidade. No tempo de Platão e Aristóteles, isto
Embora a pintura abstrata seja relativamen-
era ainda mais evidente, pois os exemplos mais
te recente, no contexto da história da arte, a arte
relevantes de arte eram imitativos. Quer se tra-
visual puramente decorativa é tão antiga como a
tasse de esculturas, quer de tragédias, todas as
história da arte figurativa. Várias tapeçarias, ce-
manifestações artísticas imitavam pessoas, deu-
râmicas e alguns dos extraordinários padrões or-
ses, heróis, ações, etc. E uma vez que a música e
namentais islâmicos são bons exemplos de obras
a dança eram encaradas como elementos da re-
de arte que não imitam a realidade. Por conse-
presentação teatral e não como formas artísticas
guinte, também na arte decorativa se encontram
autónomas, também elas eram encaradas como
contraexemplos à teoria mimética da arte.
artes imitativas.
Objeção da arquitetura
Objeções à teoria mimética da arte
Também a arquitetura constitui um bom exem-
As principais objeções que a teoria mimética plo de um tipo de arte que não tem qualquer pre-
da arte enfrenta são os contraexemplos oriun- tensão de imitar seja o que for. A Basílica de São
dos das diversas artes não imitativas como, por Pedro, no Vaticano, não é uma imitação da casa de
exemplo, a pintura abstrata, a arte decorativa, a Deus, ela é a casa de Deus, o Palácio de São Bento
arquitetura, a música instrumental, a found art e tem como função albergar, e não imitar, a Assem-
algumas formas de teatro, dança, cinema e lite- bleia da República, etc.
ratura, que não têm qualquer intuito imitativo.
Objeção da música instrumental
Objeção da pintura abstrata
Por vezes, a música tem como principal função
Desde o final do século XIX que os artistas foram acompanhar as palavras dos cantores, como acon-
abandonando a pretensão de imitar a Natureza. O tece, por exemplo, na ópera e em alguns cânticos

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religiosos, mas nem sempre é esse o caso. Desde arte é justamente o que está em causa. É como se,
inícios do século XIX que a generalização da músi- ao ser confrontado com os contraexemplos de arte
ca puramente instrumental deixou bem claro que não imitativa, o defensor da teoria mimética disses-
nem toda a música pertence ao domínio das artes se “Mas isso não é arte” e acrescentasse “porque
imitativas. não imita coisa nenhuma”.

Objeção da found art A teoria expressivista da arte


Em 1917, Marcel Duchamp expôs um vulgar Com a expansão do movimento artístico ro-
urinol de porcelana, a que chamou A Fonte, como mântico, ao longo do século XIX, a arte afasta-se
sendo uma obra de arte. A Fonte inaugura um definitivamente do objetivo de imitar a aparência
novo género artístico, a found art, que cria obras das coisas e passa a ser encarada, sobretudo,
de arte a partir de objetos vulgares inalterados como uma forma de dar corpo ao mundo subjeti-
pelo artista, ou apenas ligeiramente alterados ou vo da experiência interior, dos estados de espírito,
incorporados pelo artista noutras estruturas. Uma das emoções e das atitudes. Os teóricos da arte
vez que se trata de objetos inalterados pelo artista, sentem necessidade de propor uma definição de
este tipo de criações ficou conhecido como ready- arte que dê conta desta nova forma de encarar a
-mades (“já feito”). Os ready-mades de Marcel Du- criação artística. Surge, assim, a teoria expressi-
champ e outros casos de found art (ou objets trou- vista da arte.
vés) são objetos comuns do quotidiano que não
Uma das versões mais difundidas desta pers-
imitam coisa nenhuma e, no entanto, constam de
petiva é atribuída ao romancista russo Leão Tolstoi
qualquer coletânea de história da arte. Portanto,
(1828-1910). Na sua obra O que é a arte? defende
também estes constituem contraexemplos à teo-
que “A arte é uma atividade humana que consiste
ria mimética da arte.
nisto: um homem comunica conscientemente a
Outros contraexemplos outros, por meio de certos sinais externos, os sen-
timentos de que teve experiência, e outras pes-
Também no teatro, na dança, no cinema e na
soas são contaminadas por estes sentimentos e
literatura se encontram exemplos de obras de arte
também deles têm experiência.” Ou seja, segundo
que não têm o objetivo de imitar seja o que for. São
Tolstoi:
simplesmente exercícios formais que proporcio-
nam experiências percetivas ou emotivas intensas x é uma obra de arte se, e só se, transmite as
e interessantes. emoções do seu criador a um público.

Em suma, se a pintura abstrata, a arte decora- Assim, de acordo com esta teoria existem três
tiva, a arquitetura, a música instrumental e a found condições necessárias, e conjuntamente suficien-
art, bem como alguma poesia, filmes, peças de tea- tes, para a arte:
tro e coreografias, sem qualquer caráter imitativo, i) a condição experimentalista: o artista tem
são obras de arte, então a teoria mimética da arte de experimentar um sentimento;
é falsa. É óbvio que um defensor desta teoria pode
ii) a condição expressivista: o artista tem de
recusar-se a atribuir o estatuto de arte a algumas
criar uma obra que exprima esse sentimen-
destas obras, mas uma vez que esse estatuto lhes
to; e
é amplamente reconhecido, terá de fornecer uma
boa justificação da sua recusa. Essa justificação iii) a condição identitária: o público tem de ser
não se pode basear no facto de estas obras não se- contagiado por esse sentimento.
rem imitativas, pois isso seria uma justificação vi- Por exemplo, a participação de Tolstoi na guer-
ciosamente circular, visto que saber se a imitação é ra despertou nele certos sentimentos. Escreve o
ou não uma condição necessária para que algo seja romance Guerra e Paz como forma de expressar

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esses sentimentos. Por fim, o público lê a obra e artística que surge a partir de elementos
deixa-se contagiar por esses sentimentos. Satisfei- aleatórios, fruto do acaso, precisamente com
tas conjuntamente as três condições necessárias o objetivo de eliminar da criação artística
propostas por Tolstoi, temos assim uma condição qualquer vestígio dos estados emocionais do
suficiente para que Guerra e Paz seja considerada seu criador. Para esse efeito, os artistas subs-
uma obra de arte. tituem os processos subjetivos de decisão,
A teoria expressivista consegue abarcar muitos por procedimentos objetivos, fortuitos e alea-
dos contraexemplos não imitativos anteriormente tórios como, por exemplo, compor obras cole-
apresentados à teoria mimética pois, embora não tivas em que cada interveniente desconhece
imitem coisa nenhuma, podemos considerar que os restantes elementos da composição, sal-
essas obras contagiam o público com os sentimen- picar tinta ao acaso sobre uma tela, espalhar
tos dos seus criadores e, por conseguinte, seriam aleatoriamente objetos sobre uma superfície,
encaradas como obras de arte pelos defensores da utilizar programas de computador para com-
perspetiva expressivista. por estruturas musicais, etc. Estas obras sur-
gem como consequência destes processos e
Objeções à teoria expressivista da arte são mais aproveitamentos do acaso do que
propriamente uma manipulação consciente
Objeção à condição experimentalista
de certos meios para dar corpo a um determi-
A condição experimentalista é demasiado res- nado sentimento ou emoção. Assim, também
tritiva, porque deixa de fora muitas obras que não por este motivo, a teoria expressivista é consi-
tiveram na sua origem uma determinada expe- derada excessivamente restritiva, pois exclui
riência emocional do artista. determinadas obras apenas por não corres-
Segundo a teoria de Tolstoi, para haver arte é ponderem à expressão das emoções dos seus
necessário que o artista seja afetado por um sen- criadores, independentemente dos seus mé-
timento que o leva a criar uma obra de arte. No ritos formais, plásticos ou sonoros.
entanto, é possível imaginar um artista desapai-
Contraexemplo da arte conceptual: A arte
xonado a criar grandes obras de arte. Aliás, a
conceptual não tem como principal intuito
história está cheia destes exemplos. Muitas obras-
-primas da história da arte são encomendas de transmitir emoções, mas sim despertar de-
arte religiosa. Contudo, sabe-se que muitos dos terminadas ideias no seu público. Por exem-
seus autores não sentiram uma única vez a devo- plo, grande parte da arte moderna e con-
ção religiosa que as suas obras inspiram, sem que temporânea visa deliberadamente desafiar a
isso signifique que tais obras não são arte. nossa compreensão do próprio conceito de
arte (de escultura, pintura, música, dança,
Objeções à condição expressivista etc.), como acontece com as obras de Mar-
A segunda condição necessária da teoria ex- cel Duchamp, Andy Warhol, John Cage, Yvo-
pressivista sustenta que qualquer obra de arte ne Rainer, Steve Paxton, etc. Portanto, uma
tem de corresponder à expressão dos sentimen- vez que recusa o estatuto de arte às obras
tos do seu criador. No entanto, há muitas obras destes autores, a teoria expressivista revela-
de arte que não expressam qualquer tipo de emo- -se, mais uma vez, demasiado restritiva.
ção e que, por conseguinte, constituem sérios  ontraexemplo da arte percetiva: A chama-
C
contraexemplos a este requisito. Vejamos em se-
da arte percetiva é criada com o único propó-
guida alguns desses contraexemplos.
sito de estimular as nossas estruturas senso-
 ontraexemplo da arte aleatória: Designa-
C riais. A arte decorativa, por exemplo, com
-se arte aleatória todo o tipo de composição os seus padrões geométricos e arabescos,

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não visa necessariamente exprimir nenhuma desejo de consumir um produto quando sentem
emoção em particular. O mesmo acontece vontade de manipular o seu auditório, ou incenti-
com alguns estilos musicais e alguns tipos de var a devoção religiosa quando sentem pena dos
performance. Trata-se de criações que visam crentes, etc.
apenas ser agradáveis para os sentidos, sem
Nem toda a transmissão de emoções é arte
qualquer pretensão de comunicar as emoções
do artista. Estas obras não exprimem prazer, Embora possamos considerar que a teoria ex-
limitam-se a provocá-lo através das suas con- pressivista apresenta condições necessárias de-
figurações formais, plásticas e/ou sonoras. masiado restritivas, também a podemos acusar de
Ou então procuram apenas explorar a forma ser excessivamente inclusiva no que diz respeito
como certos efeitos visuais interagem com o a condições suficientes, pois podemos imaginar
nosso aparelho ótico, como acontece com a uma situação em que:
Op Art (arte ótica). Com efeito, aceitar a teoria a) alguém experimenta um sentimento: por
expressivista, teria a estranha consequência exemplo, a tristeza de perder um familiar;
de recusar o estatuto de arte à arte percetiva.
b) e
 ssa pessoa exprime esse sentimento atra-
Tanto a objeção experimentalista, quanto a ob- vés das suas ações: chora convulsivamente
jeção expressivista são instâncias daquela que fi- e grita algumas palavras de revolta;
cou conhecida como falácia genética, pois ambas
c) a
 lguém se deixa contagiar por esse sentimen-
cometem o erro de avaliar uma coisa, não pelos
to: essas ações fazem com que essa pessoa
seus próprios méritos, mas antes por aspetos re-
se recorde de como se sentiu quando ela pró-
lacionados com a sua origem.
pria perdeu um familiar, despertando nova-
Objeções à condição identitária mente esse sentimento.
A condição identitária também pode ser bas- De acordo com a teoria expressivista, estão
tante restritiva, pois considera que algo só é arte reunidas as condições suficientes para estarmos
se o público experimentar as mesmas emoções na presença de uma obra de arte, mas isso seria
que o artista. Desde meados do século XX, grande absurdo, pois não permitiria distinguir uma obra
parte dos críticos e filósofos da arte consideram de arte de um qualquer desabafo emocional entre
que apreciar uma obra em função da intenção que duas pessoas amigas. Deste modo, podemos con-
o artista tinha quando a criou é cometer aquilo que cluir que há transmissão de emoções que não
apelidaram de falácia intencional. Segundo estes é arte e, uma vez que não consegue excluir estes
autores, a intenção original do artista é irrelevan- casos, a teoria expressivista deve ser rejeitada por
te para se apreciar genuinamente uma obra, que ser demasiado inclusiva.
deve valer por si e pelas interpretações que susci-
A teoria formalista da arte
ta, independentemente de estas corresponderem
ou não àquilo que o artista pretendia transmitir A primeira formulação explícita e acabada da
quando a concebeu. teoria formalista da arte é geralmente atribuída a
Clive Bell (1881-1964). No seu livro de 1914, inti-
Na verdade, é muito estranho pretender que as
tulado Arte, Bell defende que:
emoções do público têm de ser idênticas às do ar-
tista. Isso não se verifica (nem pode verificar) em x é uma obra de arte se, e só se, foi (princi-
diversas ocasiões. No cinema, no teatro, na publi- palmente) concebido para exibir forma sig-
cidade, na pintura, na escultura, etc., os artistas nificante.
podem nunca experimentar as mesmas emoções Segundo Bell, uma forma significante é uma
que despertam no seu púbico. Podem inspirar configuração de linhas, cores, formas e espaços
medo quando sentem ódio, podem despertar o que tem a capacidade de provocar um determinado

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tipo de emoção no espectador – uma “emoção es- tenha sido concebida com o principal intuito de
tética”. Neste sentido, atribuir o estatuto de obra de exibir forma significante. Por exemplo, a chamada
arte a um objeto é dizer que as suas linhas, cores, “arte demoníaca” é geralmente concebida com o
formas e espaços foram (principalmente) conce- principal intuito de assustar os seus observadores,
bidos com o intuito de gerar esse tipo de emoção como acontece com as gárgulas nos castelos e nas
naqueles que o contemplarem. catedrais, ou as gravações presentes em armadu-
Diz-se que o objeto foi principalmente conce- ras ou outros instrumentos de batalha tradicionais.
bido com propósito de exibir forma significante e Ora, é manifestamente implausível afirmar que es-
não simplesmente que exibe forma significante, tas obras foram simultaneamente concebidas com
pelo seguinte: o objetivo de proporcionar deleite estético, assus-
tar o observador e exibir forma significante. Por-
1. H
 á objetos que foram concebidos com vá-
tanto, ainda que algumas manifestações artísticas,
rios propósitos, e assim, tudo o que se exige
concebidas com mais do que um propósito (como a
para que o objeto seja uma obra de arte é
arte política e a arte religiosa) possam ser enqua-
que o propósito de exibir forma significante
dradas pela teoria formalista, desde que o seu prin-
seja o principal e os outros secundários.
cipal propósito seja exibir forma significante, isso
2. Há objetos naturais que podem gerar uma seguramente não acontece com a arte demoníaca.
emoção estética no seu espectador, mas não
são obras de arte porque não foram concebi-  conceito de forma significante
O
dos com esse propósito. é difícil de definir
3. Uma teoria geral da arte deve permitir dis- A definição deste conceito é circular ou de-
tinguir o uso classificativo (descritivo) do masiado lata. Bell define forma significante como
uso valorativo (avaliativo) da palavra “arte”. uma configuração de linhas, cores, formas e es-
O facto de um objeto ter sido concebido paços que tem a capacidade de provocar uma
com o objetivo de produzir uma emoção es- emoção estética no espectador; mas simulta-
tética no espectador é uma condição neces- neamente define emoção estética como o tipo de
sária e suficiente para que seja considerado emoção que sentimos quando estamos perante
uma obra de arte no sentido classificativo, certas configurações de linhas, cores e formas,
o que não significa que seja uma boa obra ou seja, quando estamos perante uma forma sig-
de arte, isto é, uma obra de arte no sentido nificante. Esta definição é viciosamente circular,
valorativo. Para isso, terá ainda de ser bem- pois recorre à noção de emoção estética para
-sucedido nos seus intuitos e provocar, de definir forma significante e recorre a esta última
facto, uma emoção estética nos seus espec- para definir a noção de emoção estética. Deste
tadores. modo, o significado de ambos os conceitos per-
Uma vez que abandona os requisitos imitativos manece por esclarecer.
e expressivistas das teorias anteriores, a teoria for- O formalista pode tentar definir forma signifi-
malista acomoda facilmente os contraexemplos cante como qualquer configuração, ou forma, que
da arte moderna e contemporânea que afetam relacione de modo adequado as diferentes partes
essas perspetivas. de um todo. No entanto, não só existem obras de
arte que não relacionam partes de um todo – a
Objeções à teoria formalista da arte
arte minimalista, por exemplo, é frequentemen-
 em toda a arte tem como principal intuito
N te constituída por um único elemento, pelo que
exibir forma significante dificilmente podemos considerar que relaciona
A teoria formalista é demasiado restritiva, pois de modo adequado diferentes partes –, como
deixa de fora toda e qualquer obra de arte que não também seria impossível distinguir obras de arte

RESUMOS DE MATÉRIA SUJEITA A AVALIAÇÃO EXTERNA – 10.° ANO 33

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de outros objetos comuns que relacionassem de duas ou mais maneiras de obter um determinado
modo adequado diferentes partes de um todo resultado opta por uma delas por considerar que
pois, nesse caso, qualquer coisa, desde um carro é mais elegante. Por exemplo, um atleta, um jo-
até uma esferográfica, teria forma significante. gador de futebol, um caminhante, etc., todos eles
podem desencadear um conjunto de ações que
 á obras de arte com formas
H têm como principal objetivo ser uma combinação
indistinguíveis de objetos comuns de movimentos, linhas e formas que suscitam
A teoria formalista sustenta que aquilo que dis- uma determinada emoção nos seus espectado-
tingue uma obra de arte de um objeto comum é res, mas isso não significa que estejam a produzir
o facto de este ter sido concebido de modo a que obras de arte.
as suas propriedades formais produzam uma de-
terminada emoção no seu espectador. No entanto,
existem muitas obras de arte que têm exatamente 3.3 A
 Dimensão Religiosa –
as mesmas propriedades formais de certos obje- Análise e Compreensão
tos do quotidiano aos quais esse estatuto não é da Experiência Religiosa
reconhecido, como acontece por exemplo com os
ready-mades. Pela teoria formalista, isso não seria  religião e o sentido da existência –
A
possível. Assim como não seria possível distinguir a experiência da finitude e a abertu-
o valor artístico de uma obra genuína do valor de ra à transcendência
uma falsificação bem executada pois, de um ponto
Diz-se muitas vezes que o problema do sen-
de vista estritamente formal, seriam indistinguí-
tido da existência emerge da nossa finitude. Ge-
veis.
ralmente, usa-se o conceito de “finitude” para de-
 or vezes a forma é inseparável
P signar o sentimento que resulta da constatação
do conteúdo de que somos seres finitos e limitados. Assim, o
problema surge porque nos apercebemos que,
Muitas vezes, é impossível apreciar o valor
por mais importante que a nossa vida pareça de
de uma obra de arte concentrando-nos apenas
um ponto de vista subjetivo, de um ponto de vis-
nas suas propriedades formais e ignorando intei-
ta mais alargado ela parece ser absolutamente
ramente o seu conteúdo imitativo e/ou expres-
insignificante. Podemos, por isso, formular o pro-
sivo: o que há de apelativo em muitas formas é
blema do seguinte modo: “Pode uma vida huma-
justamente o modo cativante como dão corpo a
na ter objetivamente sentido?”
determinados conteúdos. Nesses casos, forma e
conteúdo tornam-se inseparáveis a ponto de ser Chamamos pessimistas àqueles que respon-
impossível sustentar que o conteúdo é irrelevante dem negativamente a este problema e otimistas
para a apreciação da obra. àqueles que lhe dão uma resposta afirmativa.
Pode ser tentador pensar que sem Deus a vida não
 em tudo o que foi concebido
N
tem objetivamente sentido, pois, aparentemente,
com o principal intuito de exibir
só Deus atribui permanência e um propósito trans-
forma significante é arte
cendente àquilo que fazemos, permitindo a supe-
A teoria formalista também pode ser acusa- ração da nossa finitude. Esta perspetiva é partilha-
da de demasiado inclusiva, pois há muitas coisas da tanto por filósofos pessimistas, como é o caso
que foram concebidas com o principal intuito de de Albert Camus (1913-1960), como por filósofos
possuir e exibir forma significante que não são otimistas, como Philip L. Quinn (1940-2004). No
obras de arte. Basta imaginarmos qualquer situa- entanto, a conclusão que cada um deles extrai
ção em que uma pessoa que tem ao seu dispor desta ideia é muito diferente.

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Camus conclui que, uma vez que Deus não assenta em dois pressupostos errados, a saber:
existe, não podemos deixar de encarar as nossas que a vida não pode ter sentido se não for imortal
vidas como absurdas ou destituídas de qualquer e que a vida não pode ter sentido se não tiver um
espécie de sentido, pois existe uma enorme des- propósito atribuído por Deus. Segundo estes auto-
proporção entre as nossas aspirações e a realida- res, existem severas críticas a estes pressupostos.
de. Queremos viver para sempre, mas a sombra Vejamos em que consiste cada uma delas.
da morte ameaça interromper, mais cedo ou mais
Críticas ao pressuposto da imortalidade:
tarde, tudo aquilo em que nos empenhamos; que-
1º Uma vida mortal sem sentido não o ganha
remos compreender o mundo, mas este escapa
pelo simples facto de se prolongar indefini-
permanentemente à nossa compreensão; quere-
damente.
mos que o mundo seja um lugar bom, justo e igua-
litário, mas, em vez disso, está repleto de injusti-  º Uma vida mortal com sentido não o perde
2
ça e sofrimento injustificado; queremos encontrar só porque termina com a morte.
um propósito que nos realize, mas constatamos Críticas à Teoria do Propósito Divino:
que, de um ponto de vista alargado, nada do que
 º Se o valor de um propósito dependesse ape-
1
fazemos realmente importa. Em suma, queremos
nas do facto de ser atribuído por Deus, então,
que a realidade se adeque aos nossos projetos e
a menos que haja boas razões para que Deus
objetivos, mas esta permanece indiferente aos
o valorize, esse propósito é completamente
nossos desejos e surda aos nossos apelos.
arbitrário. Portanto, a importância de um pro-
Quinn considera que uma vida humana tem pósito não depende exclusivamente da pers-
sentido completo se, e só se: petiva de Deus, mas sim do facto de haver (ou
1. t em sentido axiológico, isto é, tem valor in- não) boas razões para o perseguirmos.
trínseco positivo e é boa para a pessoa que  º A ideia de um propósito atribuído às nos-
2
a vive; e sas vidas a partir do exterior deixa de fora
2. tem sentido teleológico, isto é, tem, pelo me- algo crucialmente importante: a nossa vonta-
nos, uma finalidade alcançável e relevante de – o nosso profundo interesse naquilo que
com valor positivo e envolve uma entrega efe- fazemos (como salienta o filósofo Richard
tiva a atividades com essa finalidade. Taylor).
De acordo com esta perspetiva, a existência de De entre os autores pessimistas que subscre-
Deus confere às nossas vidas um propósito trans- vem estas críticas destacam-se os defensores de
cendente: cumprir os desígnios divinos – sentido uma perspetiva subjetivista do sentido da vida.
teleológico – e oferece-nos a vida eterna e a devida Estes autores sustentam que, ainda que as nos-
recompensa pelas nossas realizações terrenas – sas vidas não tenham objetivamente sentido, po-
sentido axiológico –, pelo que podemos concluir demos contentar-nos com o facto de o terem de
que Deus proporciona as condições necessárias e um ponto de vista subjetivo – mesmo que Deus
(conjuntamente) suficientes para que a nossa vida não exista (ou até precisamente porque Deus não
tenha sentido completo. A estas premissas, Quinn existe). É o que acontece, por exemplo, com filó-
acrescenta a ideia de que Deus existe, para con- sofos como Richard Taylor (1919-2003) e Thomas
cluir que uma vida humana pode ter objetivamente Nagel (n. 1937) que defendem que o problema do
sentido. sentido da vida deve ser resolvido no interior da
própria vida.
Contudo, existem filósofos – quer pessimis-
tas, quer otimistas – que não estão comprometi- Os críticos do subjetivismo afirmam que não
dos com a ideia de que só Deus pode dar sentido estamos apenas interessados em ter uma vida
à existência. Para esses autores, esta perspetiva com sentido a partir do interior, caso contrário

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i) aceitaríamos ligar-nos a uma máquina que sub- de justificar racionalmente a crença na existência
jetivamente nos desse a ilusão de que vivemos de Deus e são vários os argumentos que têm sido
uma vida com sentido; e ii) não teríamos condi- apresentados com esse propósito. Em seguida
ções para afirmar que certas vidas (assim como procuraremos avaliar alguns deles.
certas atividades) valem objetivamente mais do
que outras. O argumento cosmológico
Também existem autores otimistas que rejei- Segundo o argumento cosmológico, tudo o que
existe tem uma causa exterior a si, exceto Deus,
tam a ideia de que Deus é uma condição necessária
que existe necessariamente e é a causa primeira
para o sentido da existência. Os defensores de uma
de tudo o que existe. Explicitamente formulado o
perspetiva objetivista em relação ao problema do
argumento diz-nos o seguinte:
sentido da existência consideram que, uma vez
que existem valores objetivos – que não dependem (1) T
 udo o que existe tem uma causa ou razão
de qualquer perspetiva (nem mesmo da perspetiva de ser exterior a si.
de Deus), uma vida pode ter objetivamente sentido
(2) Se tudo o que existe tem uma causa ou razão
desde que envolva uma entrega ativa a projetos
de ser exterior a si, então ou há uma regres-
que promovem esse tipo de valores. Peter Singer
são infinita de causas e efeitos, ou há uma
(n. 1946) e Susan Wolf (n. 1952) são dois filósofos
causa primeira, que existe necessariamente.
contemporâneos que advogam esta ideia.
(3) Ou há uma regressão infinita de causas e
Os críticos do objetivismo afirmam que i) de efeitos, ou há uma causa primeira, que exis-
um ponto de vista abrangente, a menos que Deus te necessariamente. (De 1 e 2)
exista, nada resultará daquilo que fizemos; e ii) difi-
(4) Se há uma regressão infinita de causas e
cilmente se compreende de que forma existem va-
efeitos, então não existe algo de exterior à
lores que não dependem das nossas preferências.
sucessão infinita das causas e efeitos como
um todo que lhe dê origem.
 eligião, razão e fé – tarefas
R
e desafios da tolerância (5) N
 ão há uma regressão infinita de causas e
efeitos. (De 1 e 4)
A filosofia da religião dedica-se a investigar e
analisar racionalmente os fundamentos das cren- (6) H
 á uma causa primeira, que existe neces-
ças religiosas como, por exemplo, a crença de que sariamente. (De 3 e 5)
Deus existe. Para simplificar a discussão iremos (7) O único Ser necessariamente existente que
focar-nos numa conceção de Deus comum a vá- tem em si mesmo a razão da sua existência
rias religiões – o teísmo. O Deus teísta é um ser é Deus.
único, pessoal, omnisciente (que tudo sabe), om- (8) L
 ogo, Deus existe. (De 6 e 7)
nipotente (que tudo pode), sumamente bom (ou
seja, moralmente perfeito), criador do mundo e de Objeções ao argumento cosmológico
tudo quanto existe, intervindo esporadicamente
A ideia de que há um ser que existe necessa-
na sua criação – através de milagres e da sua pro-
riamente e que tem em si mesmo a razão da sua
vidência para nos salvar. Será que este ser existe?
existência contraria o que é afirmado na primeira
Que razões temos para acreditar na sua existên-
premissa: “Tudo o que existe tem uma causa ou
cia ou inexistência?
razão de ser exterior a si”. Que razões podemos
Os teístas acreditam que Deus existe, os ateus apresentar para considerar que Deus é a única ex-
acreditam que Deus não existe e os agnósticos ceção legítima a esse princípio geral? Não podem
suspendem a crença em relação à existência de razões semelhantes ser apresentadas a favor de
Deus. A teologia natural corresponde à tentativa outras exceções? A ideia de um ser necessário

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que justifique a sucessão das causas e efeitos a (1) O
 s relógios têm uma estrutura complexa e
partir do exterior é, à primeira vista, tão plausível as suas partes apresentam um ajuste per-
como a ideia de que o próprio universo físico exis- feito, pelo que é de supor que tenham um
te desde sempre. criador inteligente.

Tal como foi aqui formulado, este argumento (2) Tal como os relógios, também os seres vivos
é contraditório, pois a partir das suas premissas e a natureza têm uma estrutura complexa e
podemos concluir validamente que é falso que as suas partes apresentam um ajuste per-
tudo o que existe tem uma causa ou razão de ser feito.
exterior a si: (3) Tal como os relógios, também os seres vivos
e a natureza como um todo devem ter um
(1) Se tudo o que existe tem uma causa ou ra-
criador inteligente. (De 1 e 2, por analogia)
zão de ser exterior a si, então ou há uma
regressão infinita de causas e efeitos, ou há (4) A complexidade e o perfeito ajuste das par-
uma causa primeira, que existe necessaria- tes na natureza são infinitamente superio-
mente. res aos de um relógio.

(2) Se há uma regressão infinita de causas e (5) Se a complexidade e o perfeito ajuste das
efeitos, então é falso que tudo o que existe partes na natureza são infinitamente supe-
tem uma causa ou razão de ser exterior a riores aos de um relógio, então o seu cria-
si, pois não existe algo de exterior à suces- dor é infinitamente melhor do que qualquer
são infinita das causas e efeitos como um artífice humano.
todo que lhe dê origem. (6) O criador da natureza é infinitamente melhor
do que qualquer artífice humano. (De 5 e 6)
(3) Se há causa primeira, que existe necessaria-
mente, então é falso que tudo o que existe (7) Se o criador da natureza é infinitamente me-
tem uma causa ou razão de ser exterior a si, lhor do que qualquer artífice humano, então
pois um ser que existe necessariamente não é Deus.
precisa de ter uma causa ou razão de ser ex- (8) Logo, Deus é o supremo criador de toda a na-
terior a si. tureza (e, por conseguinte, existe). (De 6 e 7)
(4) Logo, é falso que tudo o que existe tem uma
causa ou razão de ser exterior a si.
Objeções ao argumento do desígnio
Uma analogia que não se baseia em semelhan-
Por fim, resta acrescentar que, tal como foi aqui
ças relevantes ou que ignora diferenças relevan-
apresentado, o argumento não oferece qualquer
tes entre os elementos da comparação é uma fra-
razão para aceitarmos que existe um único ser ne-
ca analogia. Ora, i) existem diferenças relevantes
cessário (pode haver mais do que um) e que esse
entre os artefactos e a natureza; e ii) as semelhan-
ser tem os atributos de Deus.
ças entre ambos não são suficientemente relevan-
tes para que a analogia seja eficaz.
O argumento do desígnio Conhecemos a causa habitual de um relógio,
A ideia básica por detrás do argumento do de- por comparação com outros exemplos conhe-
sígnio é que, tal como os relógios, os seres vivos cidos, mas não temos conhecimento de outros
possuem uma estrutura complexa e as suas par- universos e dos seus processos de criação para
tes apresentam um ajuste perfeito, por isso, à se- que a nossa inferência seja tão segura no caso do
melhança do que acontece com os primeiros, tam- universo como acontece no caso dos relógios.
bém os últimos devem ter um criador inteligente. Além disso, ainda que o argumento pudesse
Podemos formular o argumento do seguinte modo: estabelecer a existência de um criador inteligente

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para o universo, dificilmente seria suficiente para proposição é falsa porque tem implicações absur-
demonstrar que esse criador é o Deus teísta, por- das ou contraditórias. Assim, o argumento ontoló-
que: i) a conceção e a criação do universo pode gico parte da suposição de que Deus existe apenas
muito bem ser obra de várias entidades; e ii) as no pensamento e não na realidade para concluir
falhas que o mundo apresenta podem ser enca- que essa proposição é necessariamente falsa, pois
radas como uma prova de que este não é obra de é absolutamente contraditório que um ser perfeito
um ser perfeito. não exista. Vejamos como fica o argumento expli-
citamente formulado.
Por fim, há ainda quem considere que a teo-
ria evolucionista de Charles Darwin (1809-1882) (1) Deus existe no pensamento.
constitui uma explicação alternativa para o apa- (2) Se Deus existe no pensamento, então ou Deus
rente desígnio da natureza que é, pelo menos, existe apenas no pensamento e não na reali-
tão plausível como a ideia de que o universo foi dade, ou, para além de existir no pensamento,
concebido e criado por uma inteligência supre- também existe na realidade.
ma. De acordo com a teoria de Darwin, a atual
variedade e complexidade de organismos vivos, (3) Ou Deus existe apenas no pensamento e não
bem como o ajuste perfeito das suas partes para na realidade, ou, para além de existir no pen-
as funções que desempenham deve-se à intera- samento também existe na realidade. (De 1
ção entre dois fatores: i) diferenças, ou variações, e 2)
aleatórias entre os membros de uma espécie; e (4) Deus existe apenas no pensamento e não
ii) seleção natural – algumas dessas diferenças na realidade. (Suposição da reductio)
aumentam (ou diminuem) as hipóteses de sobre- (5) S
 e Deus existisse apenas no pensamento
vivência (e, consequentemente, de reprodução) e não na realidade, então poderíamos con-
dos seus portadores no meio em que vivem. A ceber um ser maior do que Deus que, além
repetição deste processo ao longo de milhares de existir no pensamento, também existis-
de anos faz com que os organismos (e as respe- se na realidade.
tivas partes) pareçam ter sido desenhados para
(6) Mas Deus é, por definição, o ser maior do que
se adaptarem às condições do seu ambiente (ou
o qual nada pode ser pensado, portanto, não
para desempenhar determinadas funções), quan-
podemos conceber um ser maior do que Ele.
do, na realidade, são fruto de variações aleató-
rias que foram sendo preservadas de geração em (7) Logo, é falso que Deus existe apenas no
geração pelo facto de representarem uma maior pensamento e não na realidade. (De 5 e 6)
eficácia adaptativa.
Objeções ao argumento ontológico
O argumento ontológico
O argumento ontológico parte do princípio de
O argumento ontológico baseia-se na ideia de que Deus existe no pensamento para concluir que
que Deus é um ser perfeito (maior do que o qual Deus não pode deixar de existir fora do pensamen-
nada pode ser pensado) para concluir que Deus é to. Mas a verdade é que Deus pode nem sequer
um ser que existe por definição (pois não existir existir no pensamento. A ideia de Deus pode as-
seria já uma espécie de imperfeição). O argumen- semelhar-se à ideia de círculo quadrado, ou seja,
to ontológico já teve várias formulações ao longo pode conter em si mesma propriedades que se au-
dos tempos, mas é recorrente apresentá-lo sob a toexcluem, pelo que nem sequer estaríamos auto-
forma de uma redução ao absurdo (reductio ad rizados a dizer que temos essa ideia de uma forma
absurdum). clara e bem definida.
A redução ao absurdo é uma forma argumen- O argumento ontológico parte do princípio que
tativa que pretende mostrar que uma determinada um ser perfeito (ou ser maior do que o qual nada

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pode ser pensado) existe necessariamente pois É a Epicuro (341-271 a. C.) que se atribui a for-
seria imperfeito (incompleto) se assim não fos- mulação clássica deste argumento. Epicuro faz
se. No entanto, ao fazê-lo, o argumento trata a notar que há uma inconsistência lógica entre os
existência como um predicado real, que pode ser atributos de Deus e a existência de mal no mun-
usado para definir um conceito. Mas na realidade, do. Eis o argumento na sua forma canónica:
as definições limitam-se a estabelecer as con-
(1) Se Deus existe, é omnipotente, omnisciente
dições de aplicação dos conceitos. A existência
e sumamente bom.
depende do facto de essas condições serem, ou
não, satisfeitas por algo ou alguém e, como tal, (2) Se Deus é omnipotente, pode acabar com o
não pode fazer parte da definição. mal no mundo.
O argumento ontológico comete o erro de (3) Se Deus é omnisciente, sabe que existe mal
comparar a extensão de um ser que existe apenas no mundo.
no pensamento com a extensão de um ser que,
(4) Se Deus é sumamente bom, então quer aca-
além de existir no pensamento, também existe na
bar com o mal no mundo.
realidade. Mas não é possível medir a área ocupa-
da por um ser que existe apenas no pensamento e (5) Se existe mal no mundo, então ou Deus não
acrescentar-lhe a área do universo físico para con- pode acabar com o mal no mundo, ou Deus
cluir que um ser que tenha a soma das duas tem não sabe que existe mal no mundo, ou Deus
uma área maior do que um ser que tenha apenas não quer acabar com o mal no mundo.
a área de uma delas. Se imaginarmos um estádio (6) Existe mal no mundo.
onde cabem 500 pessoas e o compararmos com
(7) Logo, Deus não existe
um estádio real com capacidade para 300, pode
parecer tentador dizer que no nosso estádio ima-
ginário cabem mais pessoas do que no estádio Respostas ao problema do mal
real. Mas na realidade, uma vez que se trata de Uma das possíveis respostas para o problema
um estádio imaginário, não tem qualquer exten- do mal consiste em sustentar que Deus é suma-
são, pois não ocupa efetivamente um determinado mente incompreensível e que os seus desígnios
espaço físico e, por isso, não tem espaço para uma são insondáveis. O que significa que aquilo que nos
única pessoa. parece ser um mal, a nós meros mortais, pode não
Isto significa que este tipo de comparação en- ser realmente um mal aos olhos do criador.
tre pensamento e realidade não faz sentido, pelo A resposta clássica para o problema do mal
que não podemos dizer que o argumento ontológi- é considerar que o mal é uma consequência do
co é bem-sucedido na sua tentativa de demonstrar livre-arbítrio. Santo Agostinho (354-430) foi um
que Deus é um ser que existe necessariamente. dos mais destacados defensores desta estraté-
gia. Na sua opinião, é melhor viver num mundo
O problema do mal onde temos livre-arbítrio, apesar de podermos
Uma das objeções clássicas à ideia de que Deus fazer escolhas erradas e causar algum sofrimen-
existe é o chamado “Problema do Mal”. O proble- to, do que viver num mundo onde não passamos
ma é o seguinte: como conciliar a existência de um de fantoches nas mãos do Criador. Assim, ainda
criador perfeito – Deus – com a existência de mal que Deus fosse suficientemente poderoso para
no mundo? O argumento baseado no problema do criar um mundo sem mal, a sua bondade fez com
mal pretende justamente mostrar que o mal que que nos concedesse liberdade de escolha. Deste
vemos no mundo à nossa volta não é compatível modo, o mal que existe no mundo não resulta di-
com a existência de um criador omnisciente, om- retamente da criação divina, mas sim das nossas
nipotente e sumamente bom. escolhas livres.

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Além do mal moral (que decorre das nossas de justificar a existência do mal natural. Contu-
escolhas) o mundo está repleto de tragédias na- do, os teístas consideram que também para este
turais, como furacões, terramotos, tsunâmis, etc. tipo de mal existe uma justificação. Segundo eles,
Este tipo de flagelos não dependem em absoluto Deus permite o mal natural porque esse tipo de
da vontade humana, portanto, ainda que a res- tragédias traz ao de cima o que de melhor existe
posta do livre-arbítrio seja capaz de explicar a na nossa natureza, promovendo o nosso aperfei-
existência do mal moral, dificilmente será capaz çoamento moral.

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