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Serra da Mantiqueira
A ideia idílica da vida no campo sempre fora um sonho compartilhado com Laura, minha
companheira de vida e profissão, que alguns anos antes completara sua dissertação de
conclusão de curso relatando sua experiência de cultivo de arroz em uma comunidade no
interior de Goiás.
Aprendemos que Leste é a direção onde o Sol nasce todas as manhãs, que ele supostamente
chega no topo ao meio dia e se põe no lado Oeste. Mas há uma variável importante: dias e
noites com exatamente o mesmo tempo de duração ao longo de todo o ano só acontecem na
linha do Equador – que corta a Terra na horizontal perfeitamente ao meio. Vamos fazer um
exercício mental: imagine que estamos no dia 22 de Dezembro, solstício de verão no
Hemisfério Sul e de inverno no Hemisfério Norte, ao meio dia. Temos uma pessoa
exatamente na linha do Equador, uma em Nova York e outra no Rio de Janeiro, todas
olhando para o Norte, com os braços abertos. Seus braços direitos apontam para o Leste; os
esquerdos, para Oeste.
Para a pessoa no Equador, o Sol bate exatamente no topo de sua cabeça, o dia dura 12 horas
e a noite também. Sua sombra, projetada no chão, é minúscula, arredondada, bem em volta
de seus pés. Para a pessoa em Nova York, o Sol bate abaixo da nuca, o dia dura 9 horas e
15 minutos, a noite dura 14 horas e 45 minutos e está muito frio. É o início do Inverno, e
sua sombra está projetada no chão está bem à sua frente. Para a pessoa no Rio de Janeiro, o
Sol bate no rosto, o dia dura 13 horas e 33 minutos, a noite dura 10 horas e 27 minutos e
está muito calor. Sua sombra está projetada às costas e, se ela permanecer ali por muito
tempo, sentirá sede. Em caso de desconforto por frio, calor ou luz direta nos olhos, uma
pessoa simplesmente se desloca para outra direção e localidade. Casas, plantas e estradas
não. Uma vez que seu lugar foi definido, elas ficam eternamente fadadas à exposição aos
elementos.
Já que nós habitaríamos um clima mais frio, era extremamente desejável encontrar um
terreno com a face voltada para o Norte. Como no caso da pessoa no Rio de Janeiro, eu
teria bastante exposição solar para a produção de plantas (a face Norte é desejável desde
que se tenha água em abundância), aquecimento da casa e geração de energia. Para
minimizar o calor do verão com tanta exposição solar, poderíamos plantar árvores
caducifólias, que perdem as folhas no inverno. No verão, suas sombras se projetariam sobre
os cômodos. No inverno, elas deixariam a luz do Sol passar para aquecer as paredes e pisos.
Mário, o Justo
Com a lista de atributos desejáveis na mão e a sugestão de uma amiga para conhecer
Gonçalves (MG), saímos de férias em direção à Serra da Mantiqueira no Inverno de 2004.
Me apaixonei pelo primeiro sítio que visitei com um corretor imobiliário, em Santo
Antônio do Pinhal. Era perfeito e cumpria todos os requisitos da minha lista de qualidades,
com exceção de uma: o preço. Custava o dobro do que podíamos pagar. Depois desse sítio
conhecemos mais de 30 áreas diferentes, mas nenhuma delas fez nossos olhos brilhar.
Voltamos para casa um pouco frustrados e Laura voltou ao trabalho, enquanto eu decidi
voltar à Serra e só retornar com alguma definição. Parei em todas as imobiliárias e vi todo
tipo de terra com os corretores, mas nenhuma delas era apropriada para receber nosso
sonho.
– Tenho a terra perfeita para você. 10 alqueires, no Rio Preto, em Santo Antônio do Pinhal.
Era a primeira fazendinha, pela qual havia me apaixonado. Comentei com Mário que já
conhecia essa área mas não tinha dinheiro suficiente para comprá-la.
Fiquei sem graça, mas aquela figura cativante me deixou suficientemente à vontade para
declamar um valor. Na mesma hora ele telefonou para a proprietária, explicou a situação e
fez a oferta. Obviamente, ela não aceitou. Seis meses depois, após muita insistência,
conversa, negociação e choradeira, ela cedeu. A cena do Mário, aquele homem enorme, me
abraçando aos prantos é inesquecível.
– Essa terra era sua, queria muito que vocês fechassem o negócio.
Terra comprada, conta “rapada”. Não sobrou um tostão sequer para fincar um mourão de
cerca. Assim, mesmo com o terreno comprado, ainda ficamos três anos morando na casinha
na periferia de Piracicaba. Foi preciso uma madrugada com o quarto cheio de fumaça e
quadros caindo da parede com a vibração das esteiras dos tratores de meu vizinho para
adquirir coragem e fazer a mudança – do jeito que fosse possível, com os recursos que
estivessem disponíveis.
Não dava mais para esperar a ilusão da situação ideal. Como começar?
Precisávamos construir estrada, casa, instalar energia elétrica, sistemas de água e esgoto e,
ao mesmo tempo, trabalhar e gerar receita para financiar o sonho que parecia tão distante.
Em meio a todos esses devaneios, depois da noite mal dormida, Laura – que sempre fora a
parte sensata e pé no chão do casal – disparou:
A edícula no sítio do amigo que supostamente nos abrigaria por um mês nos acolheu por
nove, em troca de alguns trabalhos de web design e da ajuda para montar um café. Depois
de férias e licença maternidade vencidas, foi natural pedir demissão do trabalho. O FGTS
financiou as primeiras obras e, enquanto Laura cuidava do bebê, eu intensifiquei minhas
viagens pelo interior do Brasil fazendo auditorias para certificação socioambiental como
consultor autônomo.
Escolher o lugar da casa é tarefa das mais importantes quando a eficiência energética e a
proteção das intempéries são itens prioritários no projeto. Para planejar e realizar um
projeto de design ecológico da paisagem, o passo fundamental é observar.
É preciso conhecer o local de implantação do projeto no verão para observar quais são as
áreas mais ensolaradas e onde estão as sombras; nas chuvas mais intensas, é importante
descobrir como a água escorre pelo terreno e onde se acumula. Quais são as partes mais
úmidas e as mais secas? Também é preciso vivenciar o inverno. Na Mantiqueira, a 1.200
metros de altitude, o inverno muitas vezes tem temperaturas próximas do 00 C e a água
congela nas tubulações (um grande problema pois, como o gelo ocupa um volume maior do
que a água líquida, os canos se rompem). Onde fazer a horta? Onde plantar milho e feijão?
Como gerar receita com o trabalho local?
Afim de buscar respostas para todas essas perguntas – e já que os recursos para construir
uma casa não existiam – decidimos morar em um trailer por tempo indeterminado e
observar de perto todas as dinâmicas do lugar. Quem já viajou ou acampou de trailer sabe:
aquele caixotão com rodas é uma verdadeira estufa quando toma sol. Na chuva, não demora
muito antes de começar a apresentar deterioração e vazamentos. Precisávamos de um
“estacionamento”, relativamente protegido de sol e chuva (foi a primeira obra, que hoje
chamamos de ranchão).
Se morar em um trailer já é um desafio, agora imagine fazê-lo com uma criança de um ano
e a esposa grávida. Nossos amigos viam nosso Turiscar Diamante, um dos maiores modelos
de trailer disponíveis no Brasil, e comentavam: “Nossa, que trailer enorme!”. Eu sempre
respondia que era grande para um trailer e pequeno para uma casa.
Vivemos no Turiscar por dois anos e, em boa parte desse tempo, eu comia, dormia e
trabalhava exatamente no mesmo lugar. A salinha servia de mesa para o café da manhã e
para almoçar e, logo após o almoço, eu tirava a louça e a substituía pelo modem e pelo
laptop – a configuração escritório. À noite o escritório dava lugar à sala de jantar, que em
seguida se transformava em cama – essa dinâmica se repetia todos os dias até que construí
um escritório no ranchão.
Vista da "sala de jantar" do trailer, que também funcionava como quarto e escritório.
Abaixo, reuni alguns dos principais passos e tarefas que ocuparam esses nossos primeiros
momentos no Sítio Gralha Azul. As dicas podem ser úteis para quem também pensa em
deixar a cidade para trás:
Para que fosse possível enxergar a topografia, caminhar e fazer um pequeno trecho
de estrada até o platô onde seria feito o abrigo para o trailer, a primeira intervenção
foi a roçada do terreno. Consegui emprestado com o tio de um amigo um nível
óptico da Kern da década de 60 ou 70 lindo, com tripé de madeira e uma caixinha
metálica parecida com uma marmita (tenho adoração por ferramentas).
Depois que definimos um ponto de entrada e um traçado para a primeira estrada (só
assim seria possível receber materiais de construção na obra), desenhamos e
projetamos o ranchão, afim de definir as dimensões do platô que abrigaria a
construção. Com o projeto do ranchão em mãos, encomendei a madeira. Assim,
enquanto o platô era trabalhado, fui comprando e juntando os materiais para a
construção. Essa logística é muito importante para que a obra aconteça de forma
ininterrupta e o pessoal não fique esperando por material para poder trabalhar.
Queria uma estrada com declive bem leve, suficiente para que a água da chuva
escorresse a baixa velocidade, sem criar poças. Contratamos o “Paraíba”, à época
dono da única retroescavadeira das redondezas, para executar o serviço. Uma
retroescavadeira comum pesa em torno de sete toneladas, e qualquer deslize com
uma máquina desse porte causa danos de difícil reparação. A retro do Paraíba era
tosca: velha, com pouca manutenção e pneus carecas. Quanto maior a impulsividade
do operador, maior o risco; e geralmente operadores de retro são caras bem
impulsivos. Um homem montado em uma máquina desse porte precisa estar com a
cabeça e o ego no lugar para realizar apenas o necessário, sem exageros. Lição
aprendida na prática.
Todo cuidado foi tomado na demarcação do perímetro do platô no terreno. Medidas
foram realizadas no mínimo duas vezes (seguindo um princípio que aprendi cedo -
meça duas vezes, corte uma), e os pontos de corte com a retroescavadeira foram
marcados com estacas de bambu altas, para que do posto de trabalho da máquina o
operador pudesse visualizar onde trabalhar, sem dificuldades. Eu tinha por princípio
estar sempre presente na obra, mas como nem tudo acontece dentro dos planos; fui
convidado para um trabalho de campo em Pernambuco. Não estava em posição de
negar trabalho e fui. Erro enorme. Por razões inexplicáveis, o Paraíba cortou três
metros a mais da face Sul do platô, e foi necessário refazer o projeto e comprar mais
materiais. O alarme da conta bancária no vermelho não parava de tocar.
O ranchão é uma construção bem particular: feito em estrutura de eucalipto roliço
tratado, possui um telhado de grama que funciona como mirante e tem uma
eficiência térmica absurda. É muito fresco no verão e, no inverno, isola bem o calor
dentro da edificação. Por ser o primeiro do tipo na região, fiquei conhecido como o
“moço da cidade que planta grama no telhado”. A construção foi uma odisseia. A
manta de vinil que impermeabiliza o telhado e pesa meia tonelada foi colocada lá
em cima com uma junta de bois. Para economizar no transporte fui pessoalmente
buscar a manta na fábrica em Embu das Artes, distante cerca de 215 Km, com
minha Land Rover 130 bicombustível (movida a Diesel e óleo vegetal usado).
Quando o operador de empilhadeira soltou o pacote na caçamba de meio metro de
altura e a Land balançou como uma gangorra, percebi por que só haviam carretas na
fila de retirada.
O telhado de grama do Ranchão.
Nas áreas adjacentes à horta, ao ranchão e ao local onde hoje está a sede, fizemos
uma aração com uma junta de bois. O terreno estava totalmente ocupado por um
capim conhecido como “rabo de burro”. Ele é alto, muito fibroso e forma belos
cachos de sementes na ponta, mas nada nasce onde ele está. Quando fazemos uma
aração ou gradagem, movimentamos a terra de modo a “desestabilizar” o sistema ali
existente. No caso em questão, era um sistema extremamente simples, com apenas
uma planta. Logo após a movimentação de solo, planta-se um coquetel com a maior
diversidade possível de plantas de diversas famílias, como gramíneas, leguminosas
e outras.
Cada espécie de planta do coquetel tem uma função específica.
As leguminosas
tem uma habilidade que quase nenhuma outra planta tem: elas associam-se a um
tipo de bactéria (Rhizobacteria) que vive em suas raízes e possui a habilidade de
retirar nitrogênio do ar e tornar esse elemento disponível para as plantas. O
nitrogênio é um dos principais nutrientes para os seres vivos, e é ele que forma os
aminoácidos – tijolos construtores das proteínas. Sabendo utilizar as plantas certas
nos momentos certos, podemos captar serviços fornecidos pela natureza utilizando
pouca energia, sem gerar resíduos que podem se tornar poluição. São estratégias
desenvolvidas pelo planeta Terra e testadas por seu departamento de Pesquisa e
Desenvolvimento nos últimos 3,5 bilhões de anos.
Nesse período, havíamos dado início à construção de um pequeno galpão de serviço. Com
estrutura de madeira local, o fechamento das paredes foi todo feito com adobes – tijolos de
terra crua – produzidos localmente. De acordo com cada tipo de solo, utiliza-se uma
mistura com proporções específicas de argila, areia e um pouco de esterco de vaca fresco
(ou uma palha bem fibrosa como arroz e trigo). Uma vez feita a pilha com os materiais nas
medidas corretas, é necessário molhar tudo até formar uma pasta e pisar bastante para que
as o material ganhe “liga”. O próximo passo é fazer grandes bolas de argila, jogar com
força em uma forma e retirar o excesso de terra que fica na superfície da forma. Quase
prontos, os tijolos de adobe são então desenformados e colocados à sombra para secar.
Passamos alguns meses dançando no barro até fabricar a quantidade adequada de tijolos.
Quando a obra estava pela metade, recebemos a visita de um grande amigo que bateu os
olhos na construção e falou:
Foi exatamente o que aconteceu. O que era para ser um galpão de trabalho virou, depois de
algumas adaptações, a casa onde vivemos até hoje. A mudança para a casa foi um marco
importante no processo de habitação do lugar: tínhamos mais espaço para organizar as
coisas e a vida ficou um pouco mais fácil. A fase 1 de desbravamento do terreno estava
vencida.
Faz 9 anos e três filhas – a Valentina nasceu em 2012 – que tomei a decisão mais
importante de minha vida: materializar um sonho, hoje chamado Sítio Gralha Azul. A cada
novo desafio, algumas sábias palavras de meu avô repetem-se em minha mente:
“Você está disposto a enfrentar todas as dificuldades, problemas; você está disposto a sair
da zona de conforto, a abrir mão de luxo e recompensas imediatas para realizar essa
empreitada? Então, vá.”