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Valéria Macedo
Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil
Renato Sztutman
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil
segredou o canto sagrado às verdadeiras mães e Nhandexy kuery e sua relação com a cons-
primeiras, tituição da pessoa guarani foi inspirado pela
para que os amanhãs leitura de artigos de Goldman (2005; 2009)
colhessem, vivendo e bem, sobre ontologia e multiplicidade nas religiões
os muitos filhos eleitos para erguer-se no leito afro-brasileiras, em diálogo com o universo
terreno. conceitual de Deleuze e Guattari. Saltou aos
nossos olhos a insistência etnográfica de que
– Yvy Tenonde, a Primeira Terra (canto mbya nos rituais de iniciação do candomblé a pes-
registrado por Leon Cadogan e traduzido por soa é feita no santo ao fazer o santo; dito de
Josely Vianna Baptista) outro modo, a pessoa realiza-se como modu-
lação singular de um fundo infinito de mul-
Os termos guarani Nhanderu kuery e tiplicidade, no qual está inscrita a existência
Nhandexy kuery podem ser traduzidos como dos orixás, divindades afro-brasileiras. Tal foi
“Nossos pais” e “Nossas mães” (nhande: “nos- nossa inspiração para buscar algumas conexões
so”, -ru: pai, -xy: mãe e –kuery: sufixo coletivi- parciais (no sentido de Strathern, 1991) – um
zador)1. Os habitantes de domínios celestes a tanto arriscadas, talvez – com aspectos da no-
quem os Guarani se dirigem com esses termos minação entre os Guarani, vinculados ao que
também podem ser referidos como Nhandeja estamos chamando aqui de individuação e di-
(ou Nhandejara), “Nosso dono”. Quando fa- vinização da pessoa. Pretendemos neste artigo
lam em português, os Guarani preferem desig- centrar foco na etnografia guarani, sugerindo
nar tais criaturas celestiais como “deuses” ou certos paralelos capazes de apontar uma nova
mesmo como o “deus”, remetendo ao demiurgo trilha comparativa, que aqui só poderá ser
ou a algum dos imortais engendrados por ele. vislumbrada.
Estamos aqui diante de um problema de tra- Como formulado por um interlocutor
dução: estariam eles procurando se aproximar de Valéria Macedo na Terra Indígena (TI)
daquilo que nós, os jurua (como costumam Guarani do Ribeirão Silveira, Papa Mirĩ Poty,
chamar os brancos), entendemos como deus o nome próprio de uma pessoa diz “a parte de
ou, diferentemente, nos apresentando outro que cada um é parte”, remetendo ao domínio
conceito de divindade, por sua vez tributário celeste a que o sujeito se vincula. Tais partes
de outro universo conceitual menos preocupa- de partes dizem respeito a multiplicidades que
do com a transcendência do que com a ima- ganham modulações singulares em seu trânsi-
nência, menos atrelado à ideia de substância do to até o corpo do sujeito. A nomeação é parte
que à de movimento ou multiplicidade2? Nossa de um assentamento de forças, ou da estabi-
aposta neste artigo incide na segunda alternati- lização de um fluxo cuja proveniência são os
va, ainda que reconheçamos entre os Guarani deuses em suas diferentes moradas. Por sua vez,
um investimento em buscar correlações entre a a nomeação foi o gesto inaugural do engendra-
sua cosmogonia e a dos jurua3. mento dos deuses por obra do demiurgo, como
A reflexão que se segue deve ser compre- aponta a epígrafe deste artigo. Assim, a suces-
endida dentro de uma perspectiva mais ampla são de engendramentos de divindades presente
de comparação de “noções de pessoa” operan- na cosmogonia mbya e atualizada na produção
tes em coletivos ameríndios e afro-brasileiros4. de pessoas nesta terra pode ser lida como indi-
No nosso caso, o interesse pelos Nhanderu viduações de um fundo de multiplicidade, ou
modulações de forças que conectam e diferen- e publicados em versão bilíngue (em mbya e
ciam, fazendo e desfazendo corpos. espanhol) em sua obra clássica Ayvu Rapyta,
Todos os Guarani idealmente devem ter um de 1959. O título remete à “fonte” ou “funda-
nome próprio, vinculando-o a um domínio mento” (rapyta) da fala (ayvu) e narra a origem
celeste e animando-o com sua respectiva po- do mundo como uma sucessão de “desdobra-
tência. A despeito da magnitude estendida dos mentos”, ou engendramentos de seres, desde o
xamãs5, o devir-deus é imanente a cada pessoa “florescimento” do deus primevo como um ser
guarani, sendo experimentado com maior ênfa- compósito, com membros de ramagens, olhos
se na interlocução com os imortais celestes nos de orvalho, coração de sol. Entre os interlocuto-
cantos, danças, sonhos e consumo de petÿ (ta- res de Macedo, as designações mais frequentes
baco), entre outras situações. Particularmente, para o demiurgo são Nhanderu Papa Tenonde e
a fala (que pode ser cantada) e o nome são Nhanderu Ete, mas ambos os nomes também
expressões da imanência da divindade, daí as podem ser precedidos por Nhamandu, como
aproximações que buscamos estabelecer entre a aparece nos registros de Cadogan. Pa-pa foi
nominação e a iniciação no candomblé, tendo traduzido como “último-último” por um pajé
como ponto convergente o tema da multiplici- mbya a este autor, cuja interpretação foi de que
dade e ontologia desenvolvidos por Goldman. o demiurgo gerara tudo e a si mesmo a partir
dos confins do mundo, no mais distante pata-
Desdobramentos e individuações mar celeste, onde vive até hoje (1959, p. 16).
Talvez a repetição da expressão também possa
A partir de sua experiência etnográfica, conferir a “último” um sentido incessante de
Elizabeth Pissolato comenta o pouco interes- movimento ou de devir, o qual nunca chega
se dos Mbya pelos detalhes das origens de suas a termo7. Outro sentido de papa, quando não
divindades e mesmo por elas mesmas enquan- concernente ao deus, é contar (verificar a quan-
to singularidades. No entanto, enfatiza ela, tidade), numerar. Ainda, –pa pode ter a fun-
interessam-se muito sobre o tema da nomina- ção de verbo “terminar, acabar”, ou a função
ção (2007, p. 303). Mais importante do que adverbial de “tudo, todos, completamente”. Já
os laços entre pessoas com nome de mesma Tenonde significa “estar à frente”, enunciando
procedência seria o fato de elas estabelecerem a posição do demiurgo como fonte de orienta-
relações efetivas com o mundo celestial. Daniel ção, um horizonte a ser buscado, mas que está
Pierri (2013, p. 100-101), por sua vez, en- sempre à frente em relação ao referente huma-
contra nas especulações mbya sobre o mundo no. Justapondo os eixos temporal e espacial,
dos deuses algo próximo do que Carneiro da Nhanderu Papa Tenonde é assim a um só tempo
Cunha (1978) encontrou nas fabulações sobre o último e o primeiro, o que está na origem e o
o destino escatológico das pessoas krahô: em que está no término, o que abarca a todos e está
vez de pensar em termos de “pouca precisão”, nos confins. Por sua vez, Ete costuma ser tradu-
é preciso compreender a lógica das variações. zido como “verdadeiro” ou “sagrado, sublime”
Como se vê, a questão reside menos em esta- pelos Guarani, podendo ser também uma partí-
belecer a identidade dessas divindades do que cula intensificadora. Em muitos enunciados, o
em estabelecer relações particulares com elas6. que é ete diz respeito ao mundo dos imortais –
A cosmogonia mbya é tema de registros ao seu valor prototípico – e aquilo que os conec-
de León Cadogan, os quais foram analisados ta a esta terra na qual se realiza a humanidade
(por exemplo, avaxi ete é a espécie de milho que seu corpo imperecível por meio de jejuns, can-
constitui uma dádiva de Nhanderu, fortalecen- tos, danças e fumaça de tabaco à exaustão. Eles
do o corpo contra agenciamentos patogênicos). vivem em yvy marã e’ỹ, a “terra que não estra-
O demiurgo engendrou a si mesmo na escu- ga”, onde nada tem fim, também chamada em
ridão primordial (petun yma), a partir de uma português de “terra sem mal”. Segundo glosa
luz que desabrochou como seu peito (ogueroje- de P. Clastres (1974), a partir de uma conversa
ra nhamandu’i, “desabrocha o pequeno sol”), com um Mbya, o Mal seria o Um, aquilo que
razão pela qual também é chamado, conforme encarcera, estanca, faz definhar, associado à ter-
os registros de Cadogan (1959), de Nhamandu ra que os humanos habitam.
Ru Ete, “Verdadeiro Pai Sol”. Remetendo nova- Tais modulações de potências, que ganham
mente à epígrafe do texto, o demiurgo confere expressão cartográfica em diferentes domínios,
existência corpórea aos outros deuses nomean- promovem individuações ou singularidades a
do-os. De modo análogo, Kuaray, a divindade partir de uma multiplicidade infinita ou inten-
solar descendente do demiurgo, traz de volta siva, cuja engrenagem primordial é o demiur-
à vida pássaros mortos enunciando seus nomes go. O surgimento dos deuses, uns a partir dos
(KANGUA; POTY, 2003). outros, é descrito pelos Mbya nos registros de
Os domínios celestes onde vivem Nhanderu Cadogan por meio de expressões como mbo-
e Nhandexy kuery costumam ser identificados jera ou -guerojera, que o autor traduz como
pelos Guarani Mbya com referência ao trajeto “criar no curso da própria evolução” (1959, p.
do sol, a despeito de não haver consenso sobre 17), justificando não se tratar de uma criação
os habitantes de cada região. De acordo com ex-nihilo, mas de uma transformação de algo
a versão predominante entre os interlocutores que já estava lá e que se desdobra, desabrocha,
de Macedo, onde o sol nasce, no leste, a que se desenvolve, ou ainda engendra, produzindo
os Guarani chamam de nhanerenonde (“à nossa diferença sem haver desconexão.
frente”, já que é para lá que devem se voltar os Mais importante do que as singularidades
humanos em sua interlocução com os deuses) dos deuses guarani é portanto a ideia de des-
é onde vivem Nhamandu kuery, cuja potência dobramento ou engendramento, que faz com
é associada ao sol; no oeste, onde o astro so- que eles apareçam ora como um só, ora como
lar se põe, nhandekupe (“às nossas costas”), é a muitos. Em vez de monoteísmo ou politeísmo,
morada dos Tupã kuery, associados ao trovão; os Guarani seriam adeptos daquilo que Gabriel
já a região a que chamam nhandeke (“no nosso Tarde (2007) designou como miriateísmo, uma
lado”), ao norte, vivem Jakaira kuery, associa- proliferação que faz do Um uma modalidade do
dos à neblina, por sua vez vinculada à fumaça Múltiplo e vice-versa, um processo contínuo de
do tabaco por sua potência vivificante (ogue- diferenciação. Da mesma maneira que o demiur-
romonhemonhã; CADOGAN, 1959); e ao sul, go desdobrou-se, gerando os demais deuses aos
nhandekerovaikaty (“do nosso lado na outra di- nomeá-los e segredar-lhes um canto, esses deuses
reção”) vivem Karai kuery, associados ao fogo8. são os engendradores das “almas-palavras” dos
Num patamar mais próximo à terra estão os humanos. A cada Guarani que é gestado na terra
Nhanderu Mirĩ (“pequeno”, expressão também é enviado um nhe’ẽ porã, a “alma-palavra”, na tra-
muitas vezes associada ao que é sublime e pro- dução clássica de Cadogan (1959).
vém das moradas celestes), que foram humanos Como amplamente abordado na li-
e conseguiram adquirir imortalidade, fazendo teratura etnológica voltada para essas
de forças que constitui a pessoa, nhe’ẽ porã é comuns. Eles participam e fortalecem as ses-
também uma multiplicidade individuada, cuja sões de cura xamânica e os cantos e danças na
modulação foi sendo constituída no itinerário opy, a casa ritual onde se efetiva a interlocução
desde sua proveniência até o corpo do sujeito. coletiva com os deuses. Por sua capacidade de
Um conjunto (não consensual) de nomes, mas- proteção, comunicação e agência, os Guarani
culinos e femininos, é associado às diferentes Mbya costumam referir-se a nhe’ẽ como “an-
moradas dos Nhanderu e Nhandexy. Assim, por jos” quando buscam explicar sua existência aos
exemplo, novamente de acordo com os inter- brancos, na língua portuguesa.
locutores de Macedo, uma mulher que se cha-
me Takua (“taquara”, em referência ao bastão Assentamentos
de ritmo feminino) ou Para (“água”), ou um
homem que se chame Tupã (“trovão”), ou Vera Tal cartografia guarani de corpos-afetos em
(“relâmpago”), tem o nhe’ẽ vindo da região do domínios celestes e terrestres nos parece ir ao
sol poente, domínio de Tupã. Por sua vez, tive- encontro da ideia da pessoa como multiplicida-
ram os nhe’ẽ vindos da região do sol nascente, de individuada, em que os nomes/nhe’ẽ promo-
domínio de Nhamandu, os homens que se cha- vem singularidades, ou, na expressão deleuziana
mam Mirĩju (“pequeno brilho dourado”, em re- mobilizada por Goldman, modulações de um
ferência ao sol nascente), Kuaray (outro nome fundo infinito de multiplicidade. Para pensar a
para o sol), Papa ou Xape’i, e as mulheres cha- construção da pessoa no universo do candomblé,
madas Jaxuka, Poty (“flor”) ou Ara (“tempo”). Já Goldman atenta para a dimensão imanente dos
do lado de Jakaira vieram, por exemplo, aque- deuses afro-brasileiros, os orixás ou inkisses, que
les que se chamam Xunû e Jeguaka (“cocar”), não são simplesmente “dados” – personagens mi-
ou aquelas que se chamam Tataxin (“fumaça”) tológicos com características fortemente marca-
ou Yva (“céu”). E do domínio dos Karai vêm das –, devendo também ser feitos, individuados.
aquelas que se chamam Kerexu e uma variedade Os adeptos do candomblé angola conhe-
de nomes masculinos compostos, como Karai cem um número mais ou menos finito de
Tataendy, Karai Mirĩ, entre outros. Todos os orixás distribuídos pelo cosmos, mas haveria
nomes podem ser compostos, correspondendo uma multiplicidade de orixás pessoais que só
a modalizações da individuação que empreen- ganham existência mediante sua feitura em ri-
dem por meio do primeiro nome9. Por exemplo, tuais de iniciação. Iniciar-se seria fazer o santo
há os Vera Popygua (relâmpago e clave de som e ser feito no santo ao mesmo tempo, ganhar
que constitui um dos modos de interlocução um nome de santo. A feitura do orixá seria um
entre os homens e os deuses), Karai Tataendy modo de domesticar forças poderosas e, assim
(“chama da vela”); Para Mirĩ (“pequena água”), sendo, produzir uma singularidade. Cada orixá
Tupã Mirĩ (“pequeno trovão”), entre inúmeros possuiria qualidades diversas e zonas de indis-
outros exemplos que podem inclusive conter cernibilidade com outros orixás, configurando
mais nomes, como o mencionado Papa Mirĩ uma multiplicidade que precisa ser atualizada.
Poty (“divindade das pequenas flores”)10. Trata-se, assim, de um sistema que privilegia
Para além daqueles que habitam os corpos
humanos, nhe’ẽ kuery também transitam entre fluxos contínuos e cortes (e não puras desconti-
domínios celestes e terrestres na forma de pás- nuidades), multiplicidades (e não qualquer dia-
saros ou em corpos invisíveis para os humanos lética entre o um e o múltiplo) e agenciamentos
eficazes (e não formas de ordenamento e sua im- sempre conta com algum tipo de pedra. Esta,
plementação prática que pode ser transmitido que se torna o orixá após o assentamento, já é o
ou ensinado). (GOLDMAN, 2005, p. 5). orixá desde o começo, por isso sua escolha não
é tida como arbitrária. Contudo, a pedra precisa
Goldman extrai desse processo de feitura ser feita – lapidada – no ritual para efetivar-se
de orixás e singularização de pessoas uma on- como orixá, ou seja, para que sua positividade
tologia que postula que todos os seres e coisas ou virtualidade seja atualizada (GOLDMAN,
do cosmos são modulações do axé (“força”), os 2009).
orixás sendo a encarnação de uma modulação O axé como fluxo de energia que precisa de
específica do axé, que nada mais é que um fluxo corte e como fonte de individuação de seres e
que precisa ser cortado. Os orixás seriam, assim, coisas pode então nos transportar novamente ao
qualidades gerais que devem ser individuadas. nhe’ẽ no universo mbya, a palavra-fluxo que en-
O autor vislumbra nessa ontologia uma teoria gendra seres e coisas do mundo11. Assim como
da pessoa: entre o Ser dos orixás – ser que deve é preciso fazer, no candomblé, um assentamento
ser melhor compreendido enquanto multiplici- para o orixá, a chegada do nhe’ẽ ao corpo de uma
dade – e o não-ser dos não iniciandos; haveria criança guarani é referida com a expressão gue-
todo um caminho, percorrido por meio dos mimboapyka, “tomar assento”, bem como “ser
cultos e da possessão, em que é possível uma concebido” é nhemboapyka, “ser dado assento12.
espécie de divinização, um devir-deus. Se o Ser “Assentar” revela-se, em ambos os casos, como
dos orixás é inacessível, o devir-deus é possível uma metáfora eficaz para o corte do fluxo.
e nele reside o esforço da fabricação da pessoa. A aproximação do nhe’ẽ e seu assentamento
Assim como tudo que existe, a pessoa pre- no corpo são parte do processo de construção da
cisa ser extraída de um fluxo, individuada. pessoa, que inclui uma série de procedimentos
O ritual de iniciação corresponde, no candom- e cuidados. Inicialmente o nhe’ẽ fica mais pró-
blé, à feitura do santo, efetivando o nexo en- ximo do pai ou da mãe da criança, a qual não
tre iniciando e orixá. Como desenvolvido por deve fazer gestos bruscos, trabalhos pesados ou
Goldman, a divindade é feita ao mesmo tem- se afastar muito de casa, entre outras medidas
po em que o iniciando que deverá ser possuído necessárias para que o nhe’ẽ não se machuque ou
por ela em cerimônias específicas. Mas tanto se perca. O olhar perdido e a falta de controle
pessoas como divindades já existem antes de dos bebês sobre seu corpo indicam a ausência
serem feitas, ainda que não da mesma manei- ou distância do nhe’ẽ. Já o aprendizado da fala
ra (2009, p. 120). A distinção entre os orixás, e do caminhar apontam a presença do nhe’ẽ no
que existem em numero mais ou menos finito, corpo, tempo propício para a revelação do nome
e a multiplicidade intensiva dos orixás pessoais da criança, que irá fortalecer o vínculo entre o
ganha forma pelo uso do termo “santo”, já que nhe’ẽ e corpo, ao situar a pessoa nessa cartografia
nunca se diz “fazer o orixá” e sim “fazer o santo”. cósmica, ou enunciar a “parte de que ela é par-
O iniciando não se faz “santo”, mas é “feito no te”, sua proveniência e destino após deixar esta
santo”, de modo a se transformar com o santo terra. Como traduzido por Cadogan, erymo’ã
e não se transformar nele. O orixá é plantado, a, o “nome mantém erguido o fluxo do dizer”
fixado, simultaneamente na cabeça do filho de (1959, p. 42), de modo que o nome assenta a
santo e no que chamam de assentamento, um linguagem-afeto que ergue o corpo e anima o
conjunto de objetos cuja composição varia, mas sujeito.
O nome já era da pessoa desde a chegada do de onde veio. É preciso então recorrer a outro
nhe’ẽ, mas o vínculo só se estabiliza quando é xamã para que ele encontre o nome correto da
enunciado, geralmente por um xeramõi (“meu pessoa, de modo a fortalecer o nhe’ẽ e, conco-
avô”, uma das designações mais recorrentes mitantemente, sua saúde e vontade de viver.
para os xamãs e mais velhos sabedores em ge- Outra razão para a mudança de nome é a
ral)13. Os nomes geralmente são comunicados morte do xamã que batizou a pessoa. Dizem os
pelos Nhanderu e Nhandexy a um xeramõi em Mbya que, ao dar o nome, o xamã cria um vín-
sonhos ou durante os cantos-reza. Nhemongarai culo com aquele sujeito que não se interrompe
é uma das designações do ritual coletivo de no- no momento da morte. Assim, a porção agenti-
minação das crianças. Mas a revelação do nome va da parte putrescível do corpo que fica na terra
também pode ser feita de modo particular, por (enquanto o nhe’ẽ volta ao seu domínio celeste),
meio de três dias e três noites de cantos-reza o ãgue, tem maior potencial patogênico junto
e fumaça do petyngua (cachimbo com tabaco) àqueles vinculados ao xamã em vida. Podemos
na opy. Algum dos pais, tios ou pessoas próxi- assim inferir que o xamã não apenas escuta e
mas a eles também podem sonhar com o nome comunica o nome, mas faz (ou desfaz, caso não
da criança, mesmo que não sejam xamãs, mas a nomine corretamente, ou que a afete com seu
geralmente essa revelação deve ser confirmada ãgue) a pessoa, sendo em grande medida res-
por um xeramõi, que assume o lugar de um ini- ponsável por sua saúde e por seus infortúnios.
ciador ou ainda de uma espécie de “padrinho”. Para além da agência do xamã, cabe ao sujei-
O xeramõi escuta o nome da criança e o co- to atualizar constantemente o vínculo com seu
munica, mas em alguma medida ele também nhe’ẽ, fazendo com que ele goste de viver na terra
faz a pessoa, efetuando aquilo que até então e no corpo por meio de práticas como o canto, a
era pura virtualidade, e assim participando da dança, fumar petyngua, comer alguns alimentos
individuação do sujeito. Nomear aqui aparece (entre os quais se destacam avaxi ete, espécie de
como um modo de cortar o fluxo, dar um con- milho, e ka’a, erva-mate), entre muitas outras que
torno, assentar, ao mesmo tempo que atualiza reiteram conexões entre aqueles que vivem na ter-
o nexo entre a pessoa e aquilo em relação ao ra e os habitantes imortais dos domínios celestes.
qual ela se individuou. Por meio do nome, sa- Esse processo constante de construção da
berá a parte de que é parte, para voltarmos à pessoa, por meio das relações que as constituem,
expressão de Papa Mirĩ Poty. Tal individuação pode nos remeter novamente ao universo do
ou feitura da pessoa pode não ser bem sucedi- candomblé, particularmente no que diz respei-
da caso o xamã tenha se equivocado na escuta to aos cuidados dos filhos-de-santo com os ob-
do nome. De modo que entre os diagnósticos jetos investidos da agência dos orixás. Segundo
mais recorrentes de crianças, e mesmo jovens Sansi (2008), referindo-se ao candomblé ketu
ou adultos, que adoecem com frequência, ou no Recôncavo baiano, é preciso compreender a
que não logram se curar de alguma enfermida- relação entre os objetos que compõem os assen-
de – incluindo a melancolia, a falta de discer- tamentos e o corpo dos iniciados. Ambos devem
nimento ou a agressividade desmedida –, é que ser preparados, feitos, seja para serem guarda-
seu nome está errado. Por essa razão, o nhe’ẽ dos ou para dançarem nas festas. Nessa direção,
está desconfortável no corpo, não se acostuma Goldman (2009) conta ter comprado uma es-
(ndovy’ai) nele, como se estivesse no lugar er- tátua de Exu, que ficou em sua casa como um
rado, querendo voltar para o patamar celeste objeto (quase) ornamental. Posteriormente, ele
e deixa esta terra para habitar o patamar celeste imagem o “influxo germinal”, como presente
de yvy marã e’ỹ na condição de Nhanderu Mirĩ, na mitologia dos Dogon, implicando um esta-
espécie de “homem-deus” (eram assim chama- do pré-cosmológico anterior às distinções entre
dos, aliás, os “profetas” guarani e tupinambá pe- humano e não humano. Viveiros de Castro as-
los cronistas dos séculos XVI e XVII)16. sinala, com isso, a necessidade de se pensar o
Xamãs guarani e pais/mães de santo seriam parentesco em consonância com a mitologia,
ambos engendradores, estabelecendo relações na qual abundam menções de uniões interes-
de filiação com seus “iniciandos”, a qual não pecíficas. O autor afirma, distanciando-se do
passa necessariamente pela relação consanguí- viés africanista de O Anti-Édipo, que o cosmos
nea ou cognática. Para continuar esse esforço mitológico ameríndio privilegia imagens de
comparativo seria preciso que nos debruçás- aliança intensiva ou “demoníaca” – entre se-
semos mais a fundo sobre as diferenças entre res de natureza diferentes, tais como homens e
essas duas modalidades de “filiação espiritual”, deuses, ou humanos e animais –, em detrimen-
termo deslocado do contexto cristão. Esse es- to daquelas de filiação intensiva – figuras como
forço comparativo não poderá ser perseguido ovos cósmicos, figuras unas que se desdobram
aqui; no entanto, arriscamos dizer que a anti- etc. Estas últimas estariam mais presentes nas
nomia que a literatura antropológica estabe- mitologias africanas, que prezariam pelo valor
leceu entre xamanismo e possessão talvez seja da descendência e pela ideia de ancestralidade.
menor do que se poderia imaginar, exigindo Já nas Américas, as figuras do sogro-canibal, da
um redimensionamento do olhar. Dito de ou- onça ou carniceiro doadores do fogo etc. se-
tro modo, em vez de tipos (concretos ou ideais) riam bem mais salientes.
poderíamos imaginar modulações de um mes- No entanto, ainda acompanhando o autor,
mo problema, que é o do devir. não seria possível negligenciar certas figuras da fi-
Voltemos ao problema da filiação que, em liação intensiva na mitologia ameríndia. Ele cita
ambos os casos, não pressupõe um sentido gene- o exemplo rio-negrino: o mito da cobra-Canoa,
alógico, podendo ser descrita, apenas em princí- em que um ser cromático se desdobra em todas
pio, como “filiação espiritual”. No caso guarani, as diferenças existentes. A cosmogonia guarani
foco deste artigo, estaríamos diante de algo como também apresentaria essa configuração na figura
um modelo vegetal de filiação, já que não pressu- de Nhanderu Ete, mas é importante destacar que
põe reprodução sexuada. Particularmente entre o “parentesco intensivo” mbya não se restringe
os Guarani Mbya, “pais” celestiais engendram ao eixo vertical da filiação, pois produz também
nhe’ẽ com nomes masculinos, e “mães”, nhe’ẽ cônjuges e irmãos. Lembremos que também na
com nomes femininos. Tal configuração poderia mitologia do alto rio Negro, paisagem clássica
conduzir ao conceito deleuze-guattariano de “fi- da descendência na Amazônia, a figura da ger-
liação intensiva” – conceito, vale notar, extraído manidade sobrepõe-se ativamente à da filiação,
da etnografia da África Ocidental. sendo a idade relativa do grupo de germanos
Viveiros de Castro (2007) se vale dessa no- mais saliente do que a filiação propriamente dita
ção desenvolvida em O Anti-Édipo de Deleuze (ANDRELLO, 2013). Ainda de acordo com os
e Guattari (1972), no qual se delineia uma registros de Cadogan (1959), cada Nhanderu
crítica à teoria “humanista” do parentesco, em engendrou suas respectivas esposas, as quais são
que predominam noções “extensivas” de filia- Nhandexy, mães das nhe’ẽ femininas. Há ainda o
ção e aliança. A “filiação intensiva” teria como exemplo da narrativa mítica de Kuaray (“Sol”),
que fabrica seu irmão Jaxy (“Lua”) na versão proveniências cósmicas. Ou seja, em uma fa-
mais recorrente entre os Mbya. De modo que mília cujos irmãos compartilham o mesmo
um corpo não engendra apenas filhos, mas tam- pai e mãe, a filiação de seus respectivos nhe’ẽ
bém cônjuges e irmãos. Nessa direção, quando dependem de seus nomes. Irmãos com o mes-
alguns interlocutores de Macedo mencionam mo nome (por ex., ambos se chamam Tupã,
as moradas celestes, costumam referir-se a seus ou Karai etc.) têm o nhe’ẽ oriundo do mesmo
habitantes como irmãos e irmãs, por exemplo lugar, pois têm o mesmo nhe’ẽ ru ete (pai ver-
que Takuakuery são irmãs de Tupãkuery. Na dadeiro do nhe’ẽ), mas irmãos com diferentes
relação com os deuses, os Guarani Mbya tam- nomes têm diferentes pais do nhe’ẽ, e por ex-
bém frequentemente se posicionam como ir- tensão diferentes proveniências e destinos após
mãos caçulas destes, em referência à paternidade a estadia nesta terra. Assim, cada sujeito é o
primordial de Nhanderu Ete. Em suma, dados ponto articular entre o plano sociológico e o
como filiação, germanidade e conjugalidade se plano cosmológico do parentesco, que não são
confundem de maneira intrigante. necessariamente coincidentes.
O coletivizador kuery é frequentemente No domínio celeste, ou no plano do mito,
acionado na menção aos deuses ou aos donos podemos reconhecer também engendramentos
extrahumanos de diferentes domínios desta terra que não constituem modulações de um mesmo
(ija kuery), nos enviando àquilo que Deleuze e bando, ou “matilha”. Na cosmogonia mbya, ao
Guattari formularam como “potência de ma- lado do deus que se desdobra, há seu irmão e
tilha” em jogo no devir. “Num devir-animal, antagonista Xariã, que se associa ou justapõe à
estamos sempre lidando com uma matilha, um imagem de Anhã17. Há narrativas em que Xariã
bando, uma população, um povoamento, em é reconhecido como engendrador dos brancos,
suma, com uma multiplicidade” (1997, p. 19). outras em que ele aparece como motivo da dis-
Contudo, ressalvam os autores, o devir-animal córdia entre o demiurgo e sua esposa, Nhandexy.
se estabelece com um indivíduo excepcional que A seu turno, Kuaray, o Sol, é filho do de-
efetua essa potência. Cada indivíduo é assim miurgo e sobrinho de Anhã18, ou Xariã. Na ver-
uma multiplicidade infinita, mas uma multi- são mais recorrente entre os Mbya no sudeste
plicidade individuada (1997, p. 39). O mesmo brasileiro, Kuaray faz seu irmão Jaxy, persona-
se passa no devir-deus entre os Guarani. Quem gem atrapalhado que desfaz o que o irmão fez,
se chama Tupã, traz consigo a potência de Tupã remetendo ao complexo mitológico difundido
kuery, os Tupã, ao mesmo tempo que constitui em toda a América do Sul dos gêmeos desseme-
uma modulação singular dessa potência. lhantes e, de modo mais amplo, do “dualismo
Tupã kuery, contudo, encontram-se dis- em perpétuo desequilíbrio” que move o pen-
persos nas aldeias desta terra onde se realiza a samento ameríndio (LÉVI-STRAUSS, 1993).
humanidade, assim como outros nhe’ẽ engen- Anhã é enganado por Kuaray (o qual rouba car-
drados pelos imortais. O nome de cada um ne de seu anzol, ou peixes de sua armadilha, a
sinaliza a origem e o destino post-mortem de depender da versão), mas devora Jaxy (o qual é
seu nhe’ẽ, inserindo a pessoa numa rede de re- mal sucedido em imitar o irmão). Anhã tenta
lações que está além do parentesco no plano imitar Kuaray na criação de seres que povoariam
estritamente sociológico, o qual não espelha a terra, mas suas criações são mal-acabadas ou
a configuração das aldeias celestes. Parentes imperfeitas (como a galinha, sem penas no pes-
consanguíneos podem ter nomes de diferentes coço, ou os porcos e as vacas). Como comenta
essa filiação primordial etc., que a de determinar o sentido desse laço é em princípio a filiação,
de onde provém essa intensidade (2007, p. 123). é preciso compreender que esta possui rami-
ficações mais complexas que as reconhecidas
De onde, afinal, provém essa intensidade? como verticais. Pois a relação entre humanos
Voltamos, assim, à expressão de Papa Mirĩ Poty e deuses não é apenas uma relação de filiação
sobre as intensidades que configuram a cartogra- (no sentido genealógico ou mesmo hierárquico
fia do corpo e do cosmos guarani e que deu um do termo), mas sobretudo de devir. E sem essa
título a este artigo: “A parte de que se é parte”. ideia de devir, que transversaliza o cosmos, não
há como constituir a pessoa guarani, pois a sua
Palavra final e desdobramentos sem fim individuação já pressupõe a sua divinização.
Anpocs, em 2012, coordenado por Marcio Goldman corda invisível que corresponde a um vento fino) que
e Beatriz Perrone-Moisés. liga o centro da terra aos quatro patamares celestes,
5. Não há espaço aqui para discorrer sobre a maximiza- sendo o mais alto a morada de Nhamandu (2013, p.
ção dessa potência que ocorre entre os xamãs, tampou- 108). O autor ainda apresenta versões em que esse
co processos de iniciação xamânica. mundo celeste é a um só tempo aquático, e que as
6. O tema da nominação é central nos estudos tupi-gua- moradas dos deuses correspondem a ilhas.
rani. Viveiros de Castro (1986) enfatiza a característica 9. Alguns Guarani afirmaram a Macedo que há casos em que
exonímica dos sistemas tupi em contraste com o endo- os nomes compostos indicam a presença de mais de um
nímia dos sistemas jê. Ele denomina os sistemas ono- nhe’ẽ porã, mas a maioria afirma que são modalizações de
másticos tupi de “canibais”, visto que buscam nomes um nhe’ẽ, de modo que o segundo nome indicaria a posi-
no Exterior, por exemplo, entre os inimigos de guerra, ção ou o papel que exerce no domínio celeste de onde veio.
como é o caso clássico dos antigos Tupinambá. No 10. Aqui novamente não se encontra consenso no que diz
mundo guarani, haveria uma transformação do devir- respeito à região de proveniência de cada nome. Por
-inimigo tupinambá em uma espécie de devir-divin- exemplo, de acordo com os informantes de Ladeira
dade; no entanto, o critério de exonímia se manteria. (2007) junto a Nhanderu Ete estão nomes como
Ainda que concebidos como ancestrais, e não como Takua, que segundo os interlocutores de Macedo e os
inimigos (caso Araweté), os deuses seriam Outros e, registros de Cadogan localiza-se em Tupã kuery, no sol
ao mesmo tempo, destino de todo ser humano. poente. Segundo Cadogan, Para vive junto a Tupã, e
7. Cadogan ficou intrigado com a expressão, por geral-
de acordo com Ladeira junto a Nhamandu; Ara vive
mente não ser usada nos cantos que presenciava nas com Nhamandu segundo Cadogan, e junto a Tupã de
aldeias, e sim nos momentos em que os pajés os re- acordo com as informações obtidas por Ladeira, en-
produziam para que ele transcrevesse. Também ou- tre outras discrepâncias. De todo modo, a despeito da
viu de pajés que Papa é uma expressão dos cristãos, variação entre os termos, mantém-se a configuração
mas o autor não descarta a hipótese de ser um termo relacional em que os nomes são distribuídos em dife-
autóctone. rentes domínios de modo a promover individuações
8. Essa disposição corresponde à versão dada por in- naqueles que os portam.
terlocutores mbya de Macedo na mencionada TI 11. Goldman (2005) acrescenta que o axé teria uma fon-
Ribeirão Silveira. Mas ela não é consensual, de modo te comum, Olorum ou Zambi, divindade suprema
que Cadogan (1959), por exemplo, aponta outra que não recebe qualquer culto, mantendo-se de certo
configuração narrada por seus interlocutores mbya modo transcendente. Seria tentador estabelecer um
no Paraguai: Karai corresponde ao leste (onde nasce paralelo entre Olorum e Nhanderu Ete. No entanto,
o Sol), Tupã ao oeste (onde o sol se põe) e Jakaira ao nossa sugestão é que a ideia guarani de desdobramento
zênite. A seu turno, segundo informantes de Ladeira impede qualquer transcendência. Este ponto careceria
(2007) Nhamandu kuery vivem no zênite, enquanto de melhor desenvolvimento.
Nhanderu Ete vive na região do sol nascente. Seja como 12. Para uma aproximação da noção afro-brasileira de
for, a despeito da variação dos termos, pensamos que o axé com o universo ameríndio, ver Vanzolini, neste
que é relevante são as relações implicadas, em que os volume.
deuses se distribuem em diferentes domínios celestes 13. Note-se um paralelo interessante com os antigos Tupi da
com referência ao trajeto do sol. Pierri também atenta costa: quando um matador saía da reclusão, que sucedia
para essas variações e apresenta outras tantas em sua a execução ritual, ele ganhava um novo nome e também
dissertação, havendo uma em que a referência princi- escarificações, objetivando sua relação com o inimi-
pal não é o trajeto do sol e sim um eixo vertical (uma go. Nessa saída, ele devia também entoar para outros
homens adultos certos cantos, reconhecidos como can- BAPTISTA, Josely. Roça barroca. São Paulo: Cosac Naify,
tos apropriados do inimigo. Nesse ato de enunciação – a 2011.
um só tempo de um nome e de um canto – o matador BARCELOS NETO, Aristóteles. Apapaatai: rituais de
fazia-se uma pessoa plena, podendo inclusive procriar, máscaras no alto Xingu. São Paulo: Edusp, 2008.
fazer outras pessoas (SZTUTMAN, 2012). CADOGAN, León. Ayvurapyta. Textos míticos de los
14. A ideia de que é preciso alimentar certos objetos para Mbyá-Guaranídel Guairá. São Paulo: FFLCH-USP,
manter sua agência ou mesmo amansá-los é algo que 1959.
também se verifica na etnografia das terras baixas sul- CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os mortos e os ou-
-americanas. Ver, a esse respeito, o cuidado que se tem tros: uma análise do sistema funerário e da noção de pes-
com as máscaras de apapaatai entre os Wauja do alto soa entre os índios Krahó. São Paulo: Brasiliense, 1978.
Xingu (BARCELOS NETO, 2008). CLASTRES, Hélène. Terra sem Mal. O profetismo tupi-
15. Como mencionado, entre os Guarani o sujeito corres- -guarani. São Paulo: Brasiliense, 1978.
ponde a uma configuração relacional que inclui outros CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. In:
agentes para além do nhe’ẽporã. Há ainda o agenciamen- ____. A Sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac
to de donos (-ja) responsáveis por diferentes estados de Naify, 2003 [1974].
espírito ou sentimentos, tais como poxyja (dono da ______. Do um sem o múltiplo. In: ____. A Sociedade
raiva), takãte’yja (dono do ciúme), tavyreija (dono do contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2003 [1974]
desejo sexual), entre outros. Os corpos também podem a.
sofrer o efeito patogênico de donos de diferentes domí- DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’Anti-Oedipe:
nios desta terra, como ka’aguyja (donos da mata), yakãja Capitalisme et Schizofrénie. Paris: Eds. de Minuit, 1972.
(donos das nascentes dos rios), itaja (donos das pedras), ______. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. São
entre outros com potencial patogênico (ver MELLO, Paulo: Editora 34, 2004 [1980].
2006; MACEDO, 2013; PIERRI, 2013; RAMO Y FAUSTO, Carlos. “Se Deus fosse jaguar: canibalismo e cris-
AFFONSO, 2014, entre outros). tianismo entre os Guarani (séculos XVI-XX)”. Mana, v.
16. Para uma discussão atual sobre o aguyje como transfor- 11, n. 2, p.385-418, Rio de Janeiro, Contracapa, 2005.
mação corporal – como devir capaz de ser efetuado em GALLOIS, Dominique. Movimento na cosmologia
diferentes movimentos, sem implicar necessariamente waiapi: criação, expansão e transformação do universo.
deslocamentos em extensão – ver Macedo (2009) e, de Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em
modo mais desenvolvido, Pierri (2013). Antropologia Social, Universidade de São Paulo,
17. Xariã aparece como Nhanderu Mba’ekuaa (mba’e: algo São Paulo, 1988.
ou alguém não-humano; kuaa: conhecer, sabedoria) GOLDMAN, Marcio. Histórias, devires e fetiches das
em alguns registros de Cadogan (1959) ou Mba’ePoxy religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropo-
em versões registradas por Pierri (2013). lógica. Análise Social, v. XLIV, n. 190, 2009.
18. Sobre a figura de Anhã como “efeito-espírito” em ou- ______. Formas do saber e modos do ser: observações so-
tras cosmologias tupi, ver Viveiros de Castro (1986) e bre multiplicidade e ontologia no candomblé. Religião
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Renato Sztutman
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade de São Paulo (PPGAS/USP), Professor Adjunto do Departamento
de Antropologia da Universidade de São Paulo (DA/USP) e Pesquisador do
Centro de Estudos Ameríndios (CEstA)
Recebido em 05/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/ 2014