Sei sulla pagina 1di 11

2889

ARTIGO ARTICLE
A Gestão Autônoma da Medicação:
uma intervenção analisadora de serviços em saúde mental

Autonomous Medication Management:


an analytical intervention in mental health care services

Rosana Teresa Onocko-Campos 1


Eduardo Passos 2
Analice de Lima Palombini 3
Deivisson Vianna Dantas dos Santos 1
Sabrina Stefanello 1
Laura Lamas Martins Gonçalves 1
Paula Milward de Andrade 2
Luana Ribeiro Borges 1

Abstract In a context of high rates of medicaliza- Resumo Em um contexto de altas taxas de medi-
tion of the population and in light of the scantly calização da população e face ao uso pouco crítico
critical use of psychiatric medications in mental de medicamentos psiquiátricos em serviços de saú-
health services, this paper reports aspects of a qual- de mental, este artigo reporta aspectos de uma
itative study that had the opportunity to inter- pesquisa qualitativa que teve a oportunidade de
vene in care practices in three major Brazilian intervir em práticas de cuidado em três grandes
cities. Following the principle of Brazilian Psy- cidades do Brasil. Seguindo o princípio da Refor-
chiatric Reform championing users’ rights to par- ma Psiquiátrica brasileira da defesa dos direitos
ticipate in decisions about their treatment, the do usuário em participar das decisões sobre seu
research intervened in psychosocial care centers tratamento, a pesquisa interveio nos centros de
(CAPS) seeking the empowerment of the users re- atenção psicossocial (CAPS) buscando o “empo-
garding the use of drugs in their therapeutic deramento” dos usuários em relação ao uso de
projects. Interviews were conducted and focus medicamentos em seus projetos terapêuticos. Fo-
groups set up. From this recorded material, the ram realizados entrevistas e grupos focais. A par-
1
Departamento de Saúde paper analyzed some situations that, among other tir desse material registrado, o artigo analisou al-
Coletiva, Faculdade de things, attested to the difficulty of avoiding the gumas situações que atestaram, entre outras, a
Ciências Médicas,
exercise of power over users via the administrati- dificuldade de evitar o uso do poder sobre os usu-
Universidade Estadual de
Campinas. R. Tessália on of psychotropic drugs. Little dialogue about ários por via da administração de medicamentos
Vieira de Camargo 126, drugs, and the existence of stigmatization spaces psicotrópicos. Também se percebeu, nos serviços
Unicamp. 13.083-887
where user rights are inhibited or “accepted with pesquisados, pouco diálogo sobre os medicamen-
Campinas SP.
rosanaoc@mpc.com.br caution,” was also detected in the services sur- tos e a existência de espaços de estigmatização onde
2
Departamento de veyed. os direitos dos usuários são inibidos ou aceitos
Psicologia, Instituto de
Key words Mental health care services, Decisi- com cautela.
Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade on-making, Personal autonomy, Psychotropic Palavras-chave Serviços de saúde mental, Toma-
Federal Fluminense. drugs da de decisões, Autonomia pessoal, Psicotrópicos
3
Departamento de
Psicanálise e
Psicopatologia, Pós-
Graduação em Psicologia
Social e Institucional,
Instituto de Psicologia,
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
2890
Onocko-Campos RT et al.

Introdução ma Psiquiátrica, a medicalização se mantém


como prática não reformada2. A hospitalização e
No Brasil, até a década de 80, os hospitais psiqui- a “renovação de receitas” sem a avaliação pre-
átricos e os asilos eram os principais locais de sencial dos usuários ainda são respostas comuns
tratamento para pessoas com problemas men- diante das demandas que aportam ao sistema2.
tais graves. A Reforma Psiquiátrica instituiu uma Essas práticas, que intencionavam evitar a inter-
nova política de saúde mental, que teve, como um rupção dos tratamentos e garantir o cuidado,
de seus principais recursos, o desenvolvimento terminaram por se tornar parte do problema,
dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) para com indivíduos usando medicamentos por tem-
o tratamento em saúde mental na comunidade, po indeterminado e submetidos a um cuidado
possibilitando o seguimento ambulatorial e a aten- fragmentado.
ção à crise. A transição de um modelo hospitalo- Outro aspecto importante é a própria parti-
cêntrico para um de saúde mental comunitária cipação do usuário nas decisões relacionadas ao
deu-se pela considerável redução dos leitos psi- seu tratamento, presente na literatura científica
quiátricos e a implantação de serviços substituti- dos últimos 20 anos. Em alguns países, como o
vos1. Estes, além das estratégias medicamentosas Reino Unido, combina-se o que se tem de evi-
e psicoterapêuticas, incluem nas suas ações os dência científica com os valores (incluindo prefe-
campos da moradia, do trabalho assistido, do rências, preocupações, necessidades e desejos) in-
lazer e da cultura como formas legítimas e efica- dividuais dos usuários e seus familiares10. Os gui-
zes na produção de vida e de saúde desta clientela. delines oficiais do sistema nacional inglês deixam
Em que pese os inegáveis avanços com novos explícito que o compartilhamento da decisão
arranjos em saúde mental, muitos são os desafi- com o usuário deve ser condição imperativa para
os a serem enfrentados no que diz respeito a uma o seguimento de qualquer tratamento11. Trata-
efetiva mudança nas práticas de atenção. Um se de algo que se iniciou na saúde mental e tem se
deles diz respeito à primazia do tratamento far- expandido para outras áreas da medicina10.
macológico no conjunto de ações dos profissio- No Brasil, a Carta dos Direitos dos Usuários
nais de saúde mental, a tal ponto que muitas ve- do Sistema Único de Saúde garante premissa si-
zes o tratamento em saúde mental reduz-se ape- milar à do sistema inglês, contudo ainda é pouco
nas aos psicotrópicos2. praticada no país2. A experiência singular e o sig-
Na cultura ocidental, cada vez mais pessoas nificado do uso de medicamentos psicotrópicos,
utilizam intervenções médicas como meio para para a pessoa envolvida, raramente são levados
atingir a transformação de seu próprio eu3. A em conta. A participação dos usuários nas deci-
medicalização e a “medicamentalização” da vida sões acerca do tratamento restringe-se, muitas
vêm crescendo ano a ano4-6, imersas em caracte- vezes, ao mero relato de seus sintomas12-14. Por-
rísticas culturais que fazem com que, no atual tanto, o baixo empowerment poder e autonomia
modo de vida estadunidense, o que anteriormen- pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais15
te seriam características pessoais tornou-se do- que os usuários dos serviços possuem em rela-
ença7. São contextos em que problemas não mé- ção ao seu tratamento, com pouca apropriação
dicos tornam-se “diagnosticáveis” e “tratáveis” de informação e centralização das decisões nos
como problemas médicos8. À medida que aumen- profissionais de saúde, torna a prática clínica
ta a série de condições medicalizantes dentro da mais vulnerável à economia de mercado e ao com-
jurisdição médica, cresce a quantidade de drogas plexo médico-hospitalar5. Daí a importância do
aprovadas para tratá-las9. O número de trans- protagonismo dos usuários em organizações e
tornos mentais reconhecidos cresceu muito nos em movimentos de empowerment.
últimos 60 anos. Mesmo que se considere que a Reconhecendo o contexto de utilização pou-
evolução científica está associada a uma maior co crítica dos medicamentos nos tratamentos em
identificação, melhor especificação e compreen- saúde mental, bem como o valor simbólico da
são do que se entende como patológico, não se medicação para aqueles que a utilizam, foi de-
pode ignorar que é justamente a indústria farma- senvolvida em Quebec (Canadá) uma nova abor-
cêutica quem financia grande parte das pesquisas dagem de intervenção denominada Gestão Au-
e eventos educativos na área, consolidando-se tônoma da Medicação (GAM)13,14.
como uma das indústrias mais lucrativas no A GAM é uma estratégia de alteração das re-
mundo e influenciando a produção científica3,7. lações de poder para garantir aos usuários efeti-
Na saúde mental brasileira, estudo anterior va participação nas decisões relativas aos seus
apontou que, independente do avanço da Refor- tratamentos, o que pressupõe como fundamen-
2891

Ciência & Saúde Coletiva, 18(10):2889-2898, 2013


tal o diálogo e a troca entre os atores envolvidos CAPS; ela propiciou também uma oportunidade
no cuidado em saúde mental. Com o suporte de para intervir nas práticas de cuidado em saúde
um material impresso (Guia GAM), a proposta mental18. Assumimos a direção indicada pelo
é de que os usuários tenham acesso a informa- movimento institucionalista, na afirmação de que
ções sobre seus tratamentos e assim possam rei- se trata de transformar para conhecer e não de
vindicar seus direitos, dialogando sobre o lugar conhecer para transformar a realidade19. A aná-
que a medicação e outras práticas ocupam nas lise institucional francesa é uma importante alia-
suas vidas, refletindo sobre suas redes sociais e da no campo da Reforma Psiquiátrica, na medi-
sua qualidade de vida13,14. da em que evidencia a dimensão política da pes-
Nascida no seio dos movimentos sociais de quisa quando trata dos processos de institucio-
defesa dos direitos dos usuários de saúde men- nalização. Portanto, o objetivo deste artigo é ana-
tal, a estratégia GAM, no Quebec, teve inicial- lisar as práticas em saúde mental valendo-se da
mente como foco o questionamento da medica- intervenção da estratégia GAM como deflagra-
ção objetivando a sua retirada. Entretanto, o seu dora dessa análise.
desenrolar propiciou a abertura de espaços de
diálogo e trocas de experiência de vida e de ado-
ecimento, colocando em cena o reconhecimento Metodologia
de que havia um sofrimento já existente antes do
uso de medicamentos, de forma que o foco da O arranjo operacional utilizado para colocar em
estratégia direcionou-se à partilha dos significa- prática a estratégia da GAM foi o Grupo de In-
dos desse uso. tervenção (GI). Três GI foram realizados em
Conforme o princípio de que a decisão quanto CAPS, um no Rio de Janeiro (RJ), um em Cam-
ao melhor tratamento se faz em uma composi- pinas (SP) e um em Novo Hamburgo (RS); e um
ção entre os saberes do usuário e da equipe de quarto GI ocorreu na Universidade Estadual de
referência, numa gestão compartilhada do cui- Campinas (Unicamp-SP). Os GI ocorreram si-
dado, e que o exercício de cogestão engendra pro- multaneamente, por dez meses, através de en-
cessos de autonomia16,17, realizou-se uma pes- contros semanais ou quinzenais, perfazendo uma
quisa-intervenção qualitativa em CAPS de dife- média de vinte encontros em cada GI. Os pesqui-
rentes cidades no Brasil. Fez-se uso, junto a gru- sadores desempenharam a função de operado-
pos de usuários desses serviços, de uma versão res dos grupos, para a qual se fez necessário aliar
traduzida e adaptada do Guia GAM do Quebec, o conhecimento em pesquisa e a experiência clí-
com vistas à elaboração do Guia GAM brasileiro nica, considerando que o trabalho grupal foi re-
(Guia GAM-BR)13. alizado com pessoas que sofrem transtornos
A versão brasileira não manteve o tema da mentais graves. Dentre esses pesquisadores, três
retirada da medicação, mas reforçou a tomada eram psiquiatras, com experiência de atuação em
de decisões compartilhadas entre usuário e pro- CAPS. Dois deles atuaram conjuntamente como
fissional de saúde. O guia é dividido em passos, operadores do grupo de Novo Hamburgo, e o
onde a pessoa é convidada a fazer um balanço da outro em um dos GI de Campinas, atuando em
própria vida para alcançar uma melhor qualida- parceria com pesquisadores de outras formações.
de. A dinâmica grupal do uso do Guia visa: a No GI do Rio de Janeiro, não houve participação
partilha de experiências, a ajuda mútua, o estí- de psiquiatras como operadores de grupo.
mulo à busca de informações sobre medicamen- Os sujeitos que participaram dos grupos de
tos e direitos. As temáticas abordadas incluem intervenção foram usuários dos serviços de saú-
questionamentos sobre qualidade de vida, rede de mental e pesquisadores, conforme a Figura 1.
social, relacionamentos interpessoais, direitos dos Nos grupos, cada participante recebeu um Guia
usuários, conhecimento sobre os medicamentos GAM, e este indicava a sequência de temas a se-
em uso e o papel da medicação na vida de cada rem abordados. Os critérios de inclusão dos usu-
um. Ao longo do processo, o guia GAM-BR con- ários que participaram foram: ser portador de
tribui para a (re)apropriação do poder decisório transtorno mental grave, usar psicofármacos há
por parte dos usuários, estimulando que eles mais de um ano, manifestar vontade de partici-
participem e discutam com os cuidadores seus par do grupo. Os critérios de exclusão dos usuá-
tratamentos13. rios foram: recusa em participar ou em assinar o
A pesquisa-intervenção não teve, porém, so- termo de consentimento livre e esclarecido, limi-
mente um sentido de produção de conhecimento tação cognitiva grave. Para o grupo realizado na
sobre a experiência do uso de psicofármacos nos Unicamp, foi critério de inclusão também a ca-
2892
Onocko-Campos RT et al.

Grupos focais e Grupos focais e


entrevistas antes dos entrevistas após os GI
GI (T0) (T1)

Novo Hamburgo 28 encontros, 8 usuários


GI - CAPS e 2 pesquisadores
Guia GAM

Campinas 18 encontros, 6 usuários


GI - CAPS e 2 pesquisadores

Campinas 20 encontros, 7 usuários e 3 pesquisadores


GI - Universidade

Rio de Janeiro 20 encontros, 9 usuários, 1 trabalhador


GI - CAPS e 3 pesquisadores

Figura 1. Configuração e participantes dos GI de cada campo

pacidade de circulação pela cidade, pela rede de de decisões (usuário e equipe); direitos do usuá-
serviços, e uma trajetória de participação política rio, em especial no que se refere à medicação
no campo da saúde mental. O convite aos usuá- (acesso, informação, recusa); a voz do usuário
rios foi feito nos espaços de reunião e assembleia no serviço e na relação médico/paciente; a experi-
dos serviços, e a seleção dos participantes, com o ência de uso de psicofármacos; e a visão sobre
intuito de seguir os critérios estabelecidos pela autonomia de cada um.
pesquisa, realizou-se de maneira conjunta com Os grupos focais e as entrevistas, realizados
os trabalhadores dos serviços onde os grupos por pesquisadores diferentes daqueles que con-
aconteceram. Cabe ressalvar que, para alguns dos duziram os GI, foram audiogravados e transcri-
usuários que participaram dos GI, o tratamento tos integralmente. Essas transcrições deram ori-
medicamentoso era acompanhado por médicos, gem a narrativas que foram construídas por
não necessariamente do CAPS. quem conduziu cada grupo ou realizou a entre-
Foram feitos, antes e após o desenvolvimen- vista20, sendo que cada uma dessas narrativas
to dos GI, grupos focais com os usuários partici- foi, posteriormente, validada por outro pesqui-
pantes e entrevistas com gestores e trabalhado- sador. Com os usuários, as narrativas validadas
res de cada local onde os GI aconteceram. Esses foram a eles apresentadas para outra, final “ o
trabalhadores e gestores não necessariamente que temos chamado de grupo focal hermenêuti-
participaram dos GI – sistematicamente, houve co20, com base nas formulações acerca da função
participação de duas trabalhadoras junto aos GI da narrativa21. Os usuários, no encontro com o
que se realizavam nos CAPS em que atuavam: texto produzido com suas vozes, julgaram se seus
uma no Rio de Janeiro e outra em Novo Ham- pontos de vista estavam ali contemplados, con-
burgo. No grupo desenvolvido na Unicamp, pelo tribuindo para a compreensão dos pesquisado-
fato dos sujeitos terem mais autonomia e transi- res. Na análise dessas narrativas, foram extraí-
tarem pelos diferentes serviços da rede de saúde, dos os principais núcleos argumentais que emer-
foram realizados grupos focais somente com os giam do material, relacionados ao objetivo da
usuários. O conteúdo do roteiro, tanto das en- pesquisa.
trevistas como dos grupos focais, foi: a valoriza- A pesquisa, com aprovação pelo Comitê de
ção do contexto do usuário nas condutas clíni- Ética da Universidade Estadual de Campinas, res-
cas; a capacidade de gestão e compartilhamento peitou os aspectos éticos e legais implicados no
2893

Ciência & Saúde Coletiva, 18(10):2889-2898, 2013


trabalho com pessoas, sobretudo usuárias da ram que falar é muito difícil e apontaram os
rede de saúde mental. médicos como detentores da autoridade na rela-
ção: Teve um psiquiatra que disse que ia dar os
remédios que ele quisesse. Acontece, algumas vezes,
Resultados e Discussão de não conseguirmos falar com o médico. A voz
não sai, tranca, parece que tem uma coisa que diz
Como resultado da intervenção realizada pela assim: - Não fala e não pergunta. (GF usuários 2)
pesquisa, surgiram, no contexto dos CAPS, di- Além disso, mesmo quando o profissional
versas situações analisadoras das suas práticas. era descrito como mais disponível, sentiam-se,
Desde a abordagem inicial, gestores e trabalha- por vezes, vítimas de preconceito: achamos que os
dores mostraram-se ambivalentes com a estra- médicos dos CAPS têm preconceito com a gente e
tégia da GAM. Apesar de considerarem impor- pensam que não podem deixar a pessoa falar por
tante o empowerment do usuário, num dos cam- ser portadora de doença mental. (GF usuários 2).
pos a equipe pediu para editar partes do Guia Alguns usuários relataram que negociariam
GAM antes de usá-lo nos GI, porque temia que a com seus médicos, não fosse a falta de informa-
disponibilização de informações sobre os direi- ção e a dificuldade de comunicação, atreladas à
tos dos usuários e os efeitos colaterais dos medi- grande demanda e carência de profissionais nos
camentos resultasse em não adesão ou desistên- serviços: ... de uma forma geral, achamos que é
cia do tratamento. possível negociar a medicação com os médicos, mas
Nas narrativas dos usuários, os CAPS foram nem sempre podemos. Um de nós, inclusive, nunca
descritos ora como lugar de tratamento e cuida- perguntou isso, porque achou que eles iriam falar
do positivamente avaliado, como fomentador de um ‘não’. Outro, tem o interesse em fazer isso, mas
espaço de escuta, de troca e produção de traba- o único médico [do serviço] é muito ocupado, por
lho; ora como promotor de sentimentos de bai- isso é difícil conversar. (GF usuários 3).
xo poder de troca e de participação. Os serviços A mesma questão da insuficiência de pessoal
pareceram estar igualmente marcados por dupla também apareceu nos relatos de gestores e tra-
característica: de apoio ao usuário, mas também balhadores, comprometendo, segundo eles, a
de tutela. qualidade do tratamento oferecido: Ainda existe
Em quase todos os grupos focais, os usuári- o fato de a equipe estar sempre reduzida e acaba
os apresentaram dificuldade de dar sentido ao ficando atrelada ao cuidado dos pacientes intensi-
fato de frequentarem o serviço: para mim não vos, aqueles mais graves, que permanecem mais
está claro por que devo fazer tratamento e vir ao tempo aqui, o que impede a saída para fora do
CAPS, ao invés de ficar em casa. (GF usuários 1). CAPS. (Entrevista Gestor 2).
Mesmo quando o CAPS fazia sentido para a vida Em que pese tais dificuldades, alguns locais
ou era experimentado como um lugar de acolhi- tentavam amenizar os problemas enfrentados
mento, não promovia, necessariamente, confor- pela falta de recursos do serviço: Na tentativa de
me evidenciava a narrativa dos usuários, uma acompanhar os casos, em uma região que sofre com
melhor compreensão de sua experiência de ado- a pobreza, utiliza-se bastante o transporte dispo-
ecimento. Como mencionado em outras pesqui- nível ao CAPS, mas também o próprio carro dos
sas qualitativas, a relação consigo mesmo, com funcionários, pois consideramos o transporte in-
os outros e com o mundo é abalada pelas situa- suficiente e nos vemos sem alternativas. (Entrevis-
ções de crise. E as abordagens psicoeducativas e ta Gestor 3). Referindo-se à grande demanda que
psicofarmacológicas que predominam nos ser- chega ao serviço de saúde, um gestor relatou que
viços de saúde mental contribuem para reduzir os atendimentos de grupo são a solução. A utili-
os espaços para nomear as experiências, elabo- zação de grupos como consultas coletivas, para
rá-las e lhes dar um sentido22,23. contornar a falta de recursos, termina por evi-
Nos grupos da GAM, o contato com o médi- denciar uma prática clínica de baixa qualidade,
co e com os demais profissionais da equipe de não configurando o que seria esperado de um
saúde foi estimulado, especialmente no momen- grupo terapêutico.
to em que as dúvidas sobre os medicamentos e Os gestores relataram ainda que os serviços
os tratamentos surgiram. Em todas as narrati- estão mais voltados para tratar das crises já de-
vas os usuários relataram que sentiam dificulda- flagradas do que para dar um seguimento contí-
de em conversar com o médico e mencionaram a nuo no tratamento que propiciaria a prevenção
falta de informação que têm sobre os seus pró- delas. Acaba que as parcerias são mais intensas nas
prios tratamentos medicamentosos. Reconhece- situações de crise do que no cotidiano. Quando um
2894
Onocko-Campos RT et al.

paciente não está bem, tem que se correr pra mon- tar. (Entrevista Trabalhador 1). Por fim, os ges-
tar a rede, o que é um problema, porque acho que tores afirmaram que pouco se debate sobre os
idealmente a gente devia estar com essa rede consti- medicamentos no cotidiano dos serviços, tanto
tuída permanentemente. (Entrevista Gestor 1). com os usuários, como entre os profissionais das
Um dos trabalhadores disse sentir-se mais equipes de saúde mental.
seguro com o trabalho em equipe, mas chamou Os usuários ponderaram ainda sobre a timi-
atenção para a situação atual de falta de pessoal: dez, o receio de conversar e “ouvir um não”, ou de
acabo trabalhando que nem em pronto-atendimen- serem maltratados. Aqueles que expressaram
to, em que venho aqui, mas não sei mais o que está suas ideias para os trabalhadores, após a vivên-
acontecendo com aquele paciente, não consigo mais cia da estratégia da GAM, indicaram que isso não
fazer seguimento... Então, está bem ruim, sem qua- significou que foram ouvidos: Ganhamos uma
lidade nenhuma. Parece que você fica sem reta- lista dos nossos direitos no GAM, mas a gente tem
guarda. O processo de trabalho acaba desestrutu- três minutos de consulta pelo SUS, não dá tempo
rando o próprio trabalho... às vezes você é engolido de mostrar. Quando, certa vez, um de nós, tentou
pela demanda. (Entrevista trabalhador 3). mostrar os direitos para o médico, ele desviou li-
Esses trechos deixam claro o quanto a falta de geiro, deu a receita e já chamou outro. Ele nem leu,
investimento, a alta rotatividade de pessoal e os nem pegou pra ler, ele viu que a carta era dos direi-
recursos insuficientes interferem na qualidade do tos, deu a receita e disse pra voltar tal dia. (GF
trabalho prestado. Tal situação já foi evidenciada usuários 2). Ainda segundo os usuários, a escuta
em pesquisas anteriores, tendo sido destacada do médico era seletiva, voltada aos aspectos or-
como pano de fundo durante nosso estudo24. gânicos das experiências que lhes eram narradas:
Os usuários identificaram também que, quan- Outro colega de nosso grupo conta que os médicos
do o assunto era medicação, os demais profissio- não lhe ouvem. Só ouvem quando tem um proble-
nais do CAPS costumavam remeter a decisão ao ma simples, como: dor de cabeça, cólica... Desses a
médico e pareciam pouco apropriados sobre o gente pode falar. (GF usuários 1)
tema. Este padrão se repetiu em narrativas dos A partir da experimentação dos usuários nos
usuários das três cidades, o que mostrou a difi- grupos de intervenção da GAM, outra forma de
culdade em se discutir o tratamento medicamen- comunicação sobre os psicotrópicos pôde ser
toso. Por outro lado, os profissionais médicos vivenciada. Os usuários referiam-se ao grupo
relataram que o monopólio das decisões relacio- como um local de troca de um “saber experienci-
nadas aos medicamentos não é algo desejado por al” sobre o medicamento, onde cada um pôde
eles, mas uma exigência que experimentam em contar sua vivência singular com o uso dos psi-
função do modo como se organiza o trabalho no cotrópicos. Ao mesmo tempo, utilizaram essa
CAPS. Contaram que, no caso de queixas possi- experiência do GI como um contraponto para
velmente associadas a efeitos colaterais, os usuá- criticarem a forma de comunicação dos profissi-
rios eram remetidos diretamente a eles, como se onais que os atendiam. Criticaram a linguagem
outro profissional não pudesse conversar ou abor- dos trabalhadores da saúde, definindo-a como
dar essa questão. Reforço a importância do com- técnica e insuficiente para sanar as muitas dúvi-
partilhamento em equipe, ouvir outros pontos de das: Como chegaram à conclusão de que alguém é
vista, mesmo assim, sinto que a responsabilidade bipolar? Quando vai ser a hora de pararmos o re-
com a medicação está vinculada apenas a mim que médio? (GF usuários 2). Sem respostas para suas
sou médico, não sendo tão importante para os ou- dúvidas, os usuários revelaram alguns medos,
tros profissionais. (Entrevista trabalhador 3) como a impressão de que o tratamento com
Os trabalhadores não médicos, por sua vez, múltiplos medicamentos pode matar ou causar
referiram-se a uma tensão existente entre eles e um estado de coma permanente. Na sua percep-
os médicos, ressaltando que estes têm dificulda- ção, os médicos orientam pouco sobre o trata-
de em compartilhar o conhecimento sobre me- mento medicamentoso: falam apenas quanto você
dicamentos, o que, para eles, justificaria o fato vai tomar e em que horário, mas não conversam
dos profissionais não médicos pouco participa- sobre a adaptação ao remédio (GF usuários 3).
rem em decisões sobre o assunto. Ao mesmo A discussão suscitada pela estratégia da GAM
tempo, identificaram esse monopólio como uma fez com que os usuários chegassem à conclusão
das razões do baixo empowerment dos usuários de que tratamento e uso regular de medicamen-
em relação à sua própria medicação: Entre médi- to quase se tornaram sinônimos nos CAPS. Eu
co e paciente ainda existe aquela relação de poder; tenho medo de contar que parei os remédios por-
o médico receita o remédio e o paciente deve acei- que o CAPS é muito apegado a remédio e acho que
2895

Ciência & Saúde Coletiva, 18(10):2889-2898, 2013


podia ser um pouco mais na conversa também (GF diante de um usuário que, com o juízo crítico
usuários 3). Alguns contaram ainda que já fo- preservado, recusa fazer uso de medicamento,
ram ou são ameaçados de serem internados se varia da não aceitação à aceitação com ressalvas.
não tomarem os medicamentos. Outros recur- Alguns trabalhadores relataram que recusar o
sos terapêuticos surgiram nas narrativas, mas tratamento sugerido significaria a “não adesão”
não alcançaram o mesmo valor dado ao trata- e, por conseguinte, o desligamento do usuário
mento psicofarmacológico. do serviço. Na recusa do usuário de tomar a medi-
As narrativas desta pesquisa indicam que, nos cação, muitos profissionais têm a conduta de fazê-
CAPS onde foi feita a intervenção, não havia sufi- lo assinar em seu prontuário e desligá-lo de todo o
cientes espaços de fala sobre o tratamento medi- tratamento. Explica-se que o CAPS está de portas
camentoso com o usuário ou entre os profissio- abertas, mas que ele terá que iniciar de novo todo
nais das próprias equipes. Foram identificados o processo: ir ao posto de saúde, consultar com o
vários problemas associados à dificuldade de co- médico clínico, pegar o encaminhamento, trazer
municação sobre esse tema: relações desiguais de para cá, fazer o acolhimento, etc. E, caso o usuário
poder, coerção, medo, timidez, uso de linguagem faltasse três vezes, por exemplo, ou faltasse duas
técnica, ausência de escuta para a vivência pessoal vezes ao grupo de medicação e uma ao grupo de
e atribuição exclusiva de competências. Conside- depressão, seria também desligado do tratamento.
rando-se a mudança do modelo centrado na do- Assim, seria desligado aquele que não estivesse cum-
ença para o modelo de atenção psicossocial pre- prindo com o plano terapêutico (Entrevista Ges-
conizada pela política nacional de saúde mental tor 2). Apesar de criticar tal ação, o gestor assu-
atual, é marcante o fato de que o que mereceu me que essa é a prática em seu serviço.
atenção dos trabalhadores, no discurso dos usu- Ainda no discurso de um trabalhador: eu fri-
ários, foi justo aquilo que poderia ser de pronto so que o direito de não usar medicamento não pode
subsumido ao jargão técnico, de modo que as ser encarado como se o paciente pudesse fazer tudo
experiências pessoais não eram ainda considera- o que quer. Eu não costumo dizer aos pacientes di-
das ou ficavam relegadas ao segundo plano. Cha- retamente que eles têm o direito de não usar, prefiro
mou-nos atenção que, no relacionamento com salientar que eles devem falar com o médico caso
os trabalhadores dos CAPS, os usuários se senti- achem que o medicamento está lhes fazendo mal, de
ram estigmatizados, sendo um dos objetivos des- modo que possam trocar por outro. (Entrevista tra-
se dispositivo justamente diminuir o preconceito. balhador 1). Em outros relatos, os trabalhadores
A esse respeito, um estudo qualitativo indicou disseram que não se deve deixar de atender os
que as intervenções intensivas de saúde mental na usuários de forma alguma. No caso destes deci-
comunidade podem ser percebidas como coerci- direm não aceitar a medicação ou não frequentar
tivas e intrusivas pelos usuários, indo contra o o CAPS, ainda assim, tentariam manter e adaptar
princípio de livre escolha e de apropriação do o acompanhamento, ora com visitas domicilia-
poder, podendo contribuir assim para a estigma- res, ora com conversas com os familiares. Entre-
tização23. Outro estudo, com 120 equipes que re- tanto, ao adotarem essa prática, sentiam medo
alizavam seguimento intensivo, na comunidade, de serem responsabilizados caso algo indesejável
de pessoas com problemas mentais, visando a acontecesse e fosse associado ao acompanhamen-
sua desinstitucionalização, demonstrou que mes- to do usuário sem o uso do psicofármaco. Além
mo tal modelo pode veicular a ideia de que a ade- disso, tem toda uma questão legal que pode me en-
são às prescrições farmacológicas é a sua princi- volver, caso eu banque junto com ele a possibilidade
pal finalidade, apesar das evidências científicas dos de ficar sem a medicação, em que poderá haver co-
efeitos limitados desse tipo de tratamento na re- branças (Entrevista trabalhador 3).
dução ou eliminação de sintomas face ao proces- Percebeu-se a existência de um limite tênue en-
so de restabelecimento e melhora geral na quali- tre o cuidado com a saúde dos usuários e o geren-
dade de vida dos usuários25. Mais significativa ain- ciamento de suas vidas. Considero importante a
da foi a constatação de que a mudança na política inclusão do contexto do paciente no atendimento
de saúde mental, com a reforma psiquiátrica, que realizo, pois isso ajuda em muito na administra-
impulsionada pelos trabalhadores da saúde1, não ção da vida deles, bem como em meu
garantiu mudanças das práticas, predominando trabalho...Tentamos fazer o possível para que os pa-
o modelo biomédico, centralizando o tratamento cientes venham ao CAPS diariamente, que tomem
no uso de medicamento. os medicamentos aqui. (Entrevista trabalhador 1).
Nos três campos da pesquisa, a forma rela- Além disso, quando um usuário piora clini-
tada pelos gestores quanto à atitude do serviço camente, após a equipe “confiar” na sua capaci-
2896
Onocko-Campos RT et al.

dade de seguir corretamente o uso do medica- luntárias como forma de proteção. Infelizmente,
mento prescrito, há dificuldade em reinvestir na não foram exploradas, no estudo, quais situa-
corresponsabilização e permitir que o usuário ções eram consideradas de risco pelas equipes e
autoadministre sua medicação, por considera- qual a possibilidade de negociação. Não houve
rem que, quando ele se sentir bem, interromperá menção à possibilidade da elaboração de um pla-
novamente seu uso. Com o grupo de interven- no para a crise, combinado previamente com o
ção da GAM, alguns trabalhadores perceberam usuário, corroborando a ideia de que há dificul-
que os usuários reclamaram de não poder discu- dade de inclusão do usuário na negociação da
tir a medicação com o psiquiatra e os demais direção do seu tratamento.
profissionais da equipe. Identificaram que exata- No momento em que o Guia GAM abordou
mente os usuários mais críticos eram os que os direitos dos usuários, estes apontaram os es-
menos aderiam aos dispositivos clínicos oferta- paços onde está previsto que falem: as “assem-
dos pelo CAPS e não seguiam “corretamente” o bleias”, a associação de usuários do CAPS e ou-
tratamento indicado. Esses trabalhadores não se tros grupos. Nos espaços criados para garantir a
indagaram se os tratamentos oferecidos no CAPS democracia institucional, a participação é acolhi-
atendiam aos desejos dos usuários, que fizeram da e respeitada, segundo os próprios usuários.
reclamações apoiados em seus próprios objeti- Todavia, quando o assunto está relacionado à
vos e expectativas com o tratamento. gestão de seu próprio tratamento, como o direi-
Verificamos, a partir do que se mostrou na to de recusá-lo, os usuários não se sentiram ou-
pesquisa, que o usuário frequentemente ocupa vidos: se isso ocorre [recusa ao medicamento],
uma das duas posições frente ao tratamento pres- põem remédio pela garganta, dão injeção ou, na
crito: a de sujeito ou com pouca voz e pouca par- internação, amarram logo (GF usuários 1). A re-
ticipação no projeto terapêutico atribuído ou ex- cusa ao tratamento medicamentoso coloca o usu-
cluído de seu próprio direito ao tratamento, cor- ário diante da ameaça de ser transferido para um
rendo o risco de tampouco ter apoio da família lugar pior ou de desencadear uma nova crise, cau-
que, muitas vezes, reforça e garante sua adesão sando o retorno ao uso dos psicotrópicos.
irrestrita ao prescrito no serviço de saúde. Nos Após as discussões abordando os direitos dos
casos de exceção, em que os usuários mostraram usuários nos GI, alguns fizeram pedidos às equi-
maior protagonismo em seu tratamento, os tra- pes dos CAPS para ter acesso ao prontuário e à
balhadores pareciam manter uma ligação mais bula de seus medicamentos, porém sentiram di-
frágil com eles e, ao mesmo tempo, enfrentavam ficuldades em obter o que reivindicavam. Ques-
a oposição de colegas, o medo de responsabiliza- tionaram também a impossibilidade de escolha
ção e punição pelo que pudesse advir a esses usu- do profissional que os atendia e os empecilhos
ários em função de seu protagonismo. para conversar com as pessoas com quem se sen-
Nas entrevistas com os gestores, foram refe- tiam mais à vontade. Eu liguei para o CAPS e falei
ridas diversas situações em que se justificava a que queria parar os remédios, que queria conver-
impossibilidade do manejo de crise sem o uso de sar com a médica de quem eu mais gosto. E eles
psicotrópicos: É o nosso mandato, se a gente não falaram que quem vai me atender é uma outra que
fizer, o paciente estará aí, correndo risco... fazendo eu não gosto. O paciente não pode escolher quem
alguém correr risco. Não é desejável que ele vá pa- ele quer que seja sua referência (GF usuários 3).
rar no campo jurídico ou penal. Às vezes, tem risco Estudo brasileiro já apontou essa mesma difi-
que você não imagina! (Entrevista Gestor 1). Es- culdade na atenção básica26.
sas falas evidenciaram a predominância do papel A partir dos objetivos desta pesquisa-inter-
de tutela sobre o de cuidado. venção, cujas práticas-alvo foram o comparti-
Nos momentos descritos como aqueles em lhamento de decisões e a garantia do direito dos
que o usuário se coloca em risco ou expõe outros usuários a participarem de seus próprios trata-
a risco, foi defendido um agir de forma mais “fir- mentos, a metodologia de trabalho da GAM foi
me”, impondo a internação e/ou o uso do me- vista como algo não habitual, seja para os usuá-
dicamento, mesmo que involuntariamente. Jus- rios, seja para os trabalhadores e os gestores. Em
tificou-se como um cuidado necessário, ao jul- que pese os seus méritos, a Reforma Psiquiátrica
garem extintas as possibilidades de negociação. brasileira foi fundamentalmente uma reforma
Quando o usuário se coloca numa situação de ris- estrutural, com aumento do financiamento aos
co, a gente obrigatoriamente interfere (Entrevista serviços extra-hospitalares de base comunitária,
Gestor 1). Neste ponto, todos os discursos fo- resultando na forte expansão do número de CAPS
ram congruentes, apontando para ações invo- em território nacional27 e, mais recentemente, na
2897

Ciência & Saúde Coletiva, 18(10):2889-2898, 2013


implementação de redes de atenção psicossocial. os usuários a dialogar e a negociar com os seus
Entretanto, no tangente aos tratamentos medi- prescritores, a fim de incluir o saber experiencial
camentosos, na forma como são oferecidos, a no projeto terapêutico? Esta questão torna-se
prática ainda não superou o modelo biomédico mais premente em um contexto onde o conceito
prevalente. Além disso, subsistem, nesses servi- de tratamento raramente se divorcia da prescri-
ços, espaços de controle, de dominação e estig- ção medicamentosa.
matização, onde os direitos dos usuários são ini- A pesquisa levou-nos à constatação de que
bidos ou aceitos com cautela. ainda são necessárias mudanças nas práticas em
Alguns autores, como Bleger28, já identifica- saúde mental, especialmente no que se refere à
ram a tendência das organizações em reproduzir valorização da experiência do usuário em seu tra-
os problemas que elas se propõem responder. tamento. Estimular a autonomia e o poder de
Em outro estudo qualitativo, alguns CAPS estu- agir dos usuários e mobilizá-los para que descu-
dados se apresentaram como espaços de captu- bram ou redescubram seus interesses e desejos,
ra, de anulação da potência dos coletivos de usu- segue sendo um desafio para o cuidado em saú-
ários29. A tendência à tutela, existente em diver- de mental – um cuidado cujas principais preocu-
sos serviços de saúde, justificada pelos “riscos pações deixem de ser o diagnóstico, a doença e a
potenciais” de um usuário de serviços de saúde prescrição medicamentosa. A direção proposta é
mental para a sociedade, faz persistir a ideia de que o usuário, em vez de ocupar um lugar de
que o usuário não é capaz de discernir o que é o dependência na relação com o serviço, tenha o
melhor para ele, reforçando sua exclusão no pro- serviço como espaço a partir do qual retome o
cesso decisório de seu tratamento30. seu lugar de cidadão. Tem-se como exemplo, a
O tratamento medicamentoso revelou-se um partir do relato de usuários, o Movimento de
assunto pouco debatido, seja pelos usuários, seja Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim em
pelos trabalhadores. Percebeu-se que os traba- Fortaleza (CE)31. Através de iniciativas como a
lhadores não médicos pouco se apropriaram do estratégia da GAM, afirmamos a possibilidade
tema, endereçando as decisões acerca da prescri- de avançar, para além de uma reflexão sobre as
ção medicamentosa exclusivamente aos médicos. práticas, em direção a mudanças e à possibilida-
Sem deter esse saber, como poderão incentivar de de um cuidado compartilhado em saúde.

Colaboradores

RT Onocko-Campos, E Passos, AL Palombini,


DVD Santos, S Stefanello, LLM Gonçalves, PM
Andrade e LR Borges trabalharam juntos em to-
das as etapas do manuscrito.
2898
Onocko-Campos RT et al.

Referências

1. Jacob KS, Sharan P, Mirza J, Garrido-Cumbrera M, 18. Passos E, Barros RB. A cartografia como método da
Seedat S, Mari JJ, Sreenivas V, Saxena S. Global men- pesquisa-intervenção. In: Kastrup V, Escóssia L,
tal health 4 - mental health systems in countries: organizadores. Pistas do método da cartografia: pes-
Where are we now? Lancet 2007; 370(9592):1061-1077. quisa-intervenção e produção de subjetividade.
2. Onocko Campos R, Gama CA, Ferrer AL, dos San- Porto Alegre: Sulina; 2009. p. 17-31.
tos DVD, Stefanello S, Trape TL, Porto K. Mental 19. Lourau R. Objeto e método da análise institucio-
health in primary care: An evaluative study in a nal. In: Altoé S, René Lourau R, organizadores.
large brazilian city. Cien Saude Colet 2011; 16(12): Analista em tempo integral. Campinas: Hucitec; 2004.
4643-4652. p. 66-86.
3. Elliot C. Better then well: American medicine meets 20. Onocko Campos RT, Furtado JP. Narratives: Use in
the american dream. New York: W.W. Norton; 2003. qualitative health-related research. Rev Saude Pu-
4. Bell SE, Figert AE. Medicalization and pharmaceu- blica 2008; 42(6):1090-1096.
ticalization at the intersections: Looking backward, 21. Ricouer P. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus;
sideways and forward. Soc Sci Med 2012; 75(5):775- 1997.
783. 22. Corin E. Se rétablir après une crise psychotique:
5. Conrad P, Leiter V. Medicalization, markets and Ouvrir une voie? Retrouver sa voix? Santé Mentale
consumers. J Health Soc Behav 2004; 45(Supl.):158- Au Quebéc 2002; 27(1):65-82.
176. 23. Rodriguez L. Nouveaux paramètres pour l’élabo-
6. Illich I. A expropriação da saúde: Nímesis da mecici- ration des pratiques de soutien communautaire:
na. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1975. Contribuition des organismes communautaires et
7. Elliot C. White coat, black hat: Adventures on the alternatifs au québec. Santé Mentale Au Quebéc 2011;
dark side of medicine. Boston: Beacon Press; 2010. 36(1):35-56.
8. Conrad P, Barker KK. The social construction of 24. Santos NR. [Public healthcare policy in brazil: Cros-
illness: Key insights and policy implications. J He- sroads and choices]. Cien Saude Colet 2008; 13(Supl.
alth Soc Behav 2010; 51(Supl.):S67-79. 2):2009-2018.
9. Conrad P, Mackie T, Mehrotra A. Estimating the 25. Davidson L, Drake RE, Schmutte T, Dinzeo T, An-
costs of medicalization. Soc Sci Med 2010; dres-Hyman R. Oil and water or oil and vinegar?
70(12):1943-1947. Evidence-based medicine meets recovery. Commu-
10. Fulford KWM. Bringing together values-based and nity Ment Health J 2009; 45(5):323-332.
evidence-based medicine: UK department of heal- 26. Onocko Campos RT, Campos GW, Ferrer AL, Cor-
th initiatives in the ‘personalization’ of care. J Eval rea CR, Madureira PR, Gama CA, Dantas DV, Nas-
Clin Pract 2011; 17(2):341-343. cimento R. Evaluation of innovative strategies in
11. Deegan PE, Drake RE. Shared decision making and the organization of primary health care. Rev Saude
medication management in the recovery process. Publica 2012; 46(1):43-50.
Psychiatr Serv 2006; 57(11):1636-1639. 27. Goncalves RW, Vieira FS, Delgado PG. Mental he-
12. Lopes TS, Dahl CM, Serpa Júnior OD, Leal EM, alth policy in brazil: Federal expenditure evolution
Campos RTO, Diaz AG. The process of recovery in between 2001 and 2009. Rev Saude Publica 2012;
the perspective of persons with schizophrenia spec- 46(1):51-58.
trum disorders and of psychiatrists working at 28. Bleger J. Psico-higiene e psicologia institucional. Por-
psychosocial health care services. Saúde Soc. São to Alegre: ArtMed Editora; 1984.
Paulo 2012; 21(3):558-571. 29. Figueiró RA, Dimenstein M. The daily life of users
13. Onocko Campos RT, Palombini AL, Silva AE, Pas- of CAPS: Empowerment or capture? Fractal: Rev. de
sos E, Leal EM, Serpa Júnior OD, Marques CC, Psicologia 2010; 22(2):431-446.
Gonçalves LLM, Santos DVD, Surjus LTLS, Arantes 30. Carson D. Good enough risk taking. Int Rev Psychi-
RL, Emerich BF, Otanari TMC, Stefanello S. Multi- atry 1997; 9(2-3):303-308.
center adaptation of the guide for autonomous 31. Silva Melo AK, Godoy MGC, Bosi MLM, Ximenes
management of medication. Interface (Botucatu) VM, Carvalho LB. Inovação em saúde mental sob a
2012; 16(43):967-980. ótica de usuários de um movimento comunitário
14. Regroupement des ressources alternatives en santé no nordeste do brasil. Cien Saude Colet 2012;
mentale du Québec (RRASMQ). Balises pour une 17(3):643-651.
approche alternative des pratiques de soutien com-
munautaire en santé mentale. Québec: RRASMQ;
2006.
15. Vasconcelos EM. Dispositivos associativos de luta
e empoderamento de usuários, familiares e traba-
lhadores em saúde mental no brasil. Revista Vivên-
cia 2007; (32):173-206.
16. Campos GWS. Um método para análise e co-gestão
de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000.
17. Onocko Campos RT, Campos GWS. Co-constru-
ção de autonomia: O sujeito em questão. In: Mi-
nayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Car- Artigo apresentado em 25/03/2013
valho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coleti- Aprovado em 28/04/2013
va. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-714. Versão final apresentada em 11/05/2013
1319

ERRATA
Ciência & Saúde Coletiva
volume 18 número 10 - 2013

p. 2889

onde se lê:
Laura Lamas Magalhães Gonçalves

leia-se:
Laura Lamas Martins Gonçalves

volume 19 número 2 - 2014

p. 609

onde se lê:
Pharmaceutical care and evenly hovering attention:
commitment formations between pharmacy and psychoanalysis

leia-se:
Pharmaceutical care and suspended attention:
compromise-formations between pharmacy and psychoanalysis

34 errata REV.pmd 1319 1/4/2014, 16:09

Potrebbero piacerti anche