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Eu sei. Eu sei que não há o Homem nem a Mulher, mas os homens e as mulheres. Não existem
generalizações, mas unicamente casos particulares. Tantos casos particulares quanto
indivíduos. Milhões de histórias para milhões de seres humanos na Terra. Eu sei que há algo de
feminino no homem e algo de masculino na mulher. Eu conheço meus clássicos. Fui
adolescente nos anos 70. Eu sei que a busca por um tipo sexual é suspeita, talvez reacionária,
ou mesmo fascista, que não existe sexo, tal somente gêneros. Impreciso, forçosamente
impreciso. Eu sei que não sou um psicanalista, nem um sociólogo, nem um filósofo, nem um
jornalista da Elle ou da Marie-Claire. Eu sei que eu não sou nem sequer uma mulher. Eu sei que
eu não preparo minha ofensiva ideológica com uma bateria de pesquisas e sondagens. Eu sei
que as relações entre homens e mulheres são o assunto central da literatura e da história das
ideias desde o alvorecer da Humanidade.
Mas eu sei também que o homem de hoje não tem nada mais nada a ver com o homem que
Jean Gabin1 encarnava quando cantava. Gabin, morto há trinta e cinco anos apenas. Um
suspiro na história do mundo. Um tempo suficiente para uma mutação antropológica
verdadeira. Um homem que não é feito de todos os homens, mas vale menos do que todas as
mulheres. Hoje, Gabin seria proibido de recitar seus diálogos retrógrados. E Ventura, e
Belmodo, e Delon, e as canções misóginas de Brel2: proibidos de abrir a boca, ou até mesmo
de gesticular. Proibidos de existir. Privado de suas próprias palavras, o homem foi pouco a
pouco sendo privado de um pensamento próprio.
Escrevo este pequeno livro com o intuito de compreender tudo isso que está acontecendo
com nós homens. Para ressuscitar esse pensamento, essa psicologia viril, para revelar o
palimpsesto sob o pergaminho feminino. Como um tratado de auto ajuda viril para a nova
1
(N. do T.) Ator e cantor de bolero francês.
2
(N. do T.) Ray Ventura, Jean-Paul Belmondo, Alain Delon e Jacques Brel.
geração de feminizados. Um trabalho mais de arqueólogo do que de polemista. Eu sei que eu
não deveria seguir esses instintos malévolos. Mas eu não sou nada mais que um homem.
Nós estávamos perdidos. O carro voltava sem parar para o mesmo cruzamento. O sol pousava
lentamente atrás do horizonte. A paisagem interiorana oferecia seus charmes de um fim de
verão, mas nós não fazíamos o esforço de admirá-la. Meu motorista tinha aquele riso amarelo.
Era um homem bem jovem, um militante que me conduzia a um jantar com os chefes da UDF3.
Almoçar, jantar, rotina de jornalista e de político. Entre simpatia sincera e instrumentalização
recíproca. Eles me confiaram a um jovem que não teve escolha. Nos engajamos em uma
discussão, no meu caso para dissimular minha irritação, no caso dele para esconder seu
embaraço. Falamos de tudo e de nada, de política, de Bayrou4, de Chirac5; ele me diz que leu e
amou meu livro sobre o Presidente. Esse jovem vai caindo no meu gosto. Eu poderia ser seu
pai, ainda que meus filhos fossem muito mais jovens que ele. A conversa torna-se mais
pessoal. Eu o interrogo sobre seus estudos, suas ambições. Suas mulheres. Ele se extasia. De
mulher, ele não teve mais do que uma em seis meses. Uma militante também. Ele é
romântico. Fiel. Eu fico incrédulo, ele insiste. Eu faço piada do registro de cumplicidade entre
meninos, confidência entre moleques, há várias outras mulheres por aí no mercado: <<Na sua
idade, francamente, qual a sua idade, vinte e dois, vinte e três? >> Ele se revolta, se justifica:
<<Com a minha ex-namorada, eu era infiel, isso só me atraiu dor de cabeça. Não, não, eu não
repito mais.>> Eu caio em gargalhada. Eu lhe descrevo o ridículo de uma geração, a sua, com
vinte anos e comprometidos como se tivessem sessenta; eu tiro sarro dos meninos de sua
idade submetidos a um sentimentalismo de meninas, um rapaz não pode ser assim, um rapaz
rapaz aventura-se; um rapaz empreende, assedia, conquista, transa sem amar, pelo prazer e
não pela vida, <<não há fortalezas impenetráveis, há apenas fortalezas mal protegidas >>
(Frase de Gérard Philipe em um filme clássico de aventura que eu assisti durante minha
infância), pega, joga, um rapaz experimenta sem se comprometer, está na multidão e não na
intimidade, está mais para Casanova que para Princesa de Cléves.
Eu rio. Inocente.
Reflito sobre o extraordinário destino dessa palavra, <<machista>>, esta descoberta linguística
genial das feministas dos anos 70 que, com uma pequena palavra, transformaram os homens,
todos os homens, em acusados culpados de ofício, logrando inibi-los, que conseguiram
reverter aquele velho dito popular <<seja um homem, não uma mulherzinha!>>, que
transmutaram o eterno ideal masculino em insulto. Uma palavra e a guerra linguística está
vencida.
As guerras linguísticas não devem ser negligenciadas. Alguns anos antes da Revolução
Francesa, a palavra <<nação>> havia pouco a pouco suplantado a palavra <<rei>> nos espíritos
franceses. Lutava-se cada vez mais pela glória da nação, cada vez menos pela glória do rei.
Todavia, Luís XVI ainda reinava.
3
(N. do T.) Union pour la Démocratie Française, partido de centro-direita francês extinto em 2007.
4
(N. do T.) Ex-presidente da UDF.
5
(N. do T.) Presidente da França na época em que o autor escrevia o livro.
Eu lhe solto, em tom depreciativo: <<Nos anos 70, nós éramos tratados de machistas, mas
eram as garotas que nos insultavam! Não nossos parceiros. Você adotou a linguagem das
garotas, você interiorizou o comportamento delas.>>
Repentinamente mais sério, sem me olhar nos olhos, como se ele falasse para ele mesmo:
<<Sim, mas nós todos fomos criados por mães solteiras, da geração de 1968 e feministas.
Pensamos como elas. Nossos pais nunca estavam presentes.>>
Seu riso se sufoca. Eu não insisto mais, engulo meus sarcasmos fáceis de cachorro velho.
Querido Éric,
Ademais, nossa época ama a transparência. Por mais que sua geração também a amasse, hoje
tudo se espalha rapidamente e nós devemos potencialmente ser capazes de dar explicações
para tudo. E eu penso que isso assusta. Esse resultado é curioso quando observamos a
quantidade de sexo nas tevês, nos discursos, nos rádios, etc., mas eu penso que há uma grande
liberalização na superfície que na prática tudo está bem mais complicado para todos. Doce
hipocrisia.
Neste momento, eu projeto, quiçá em nome de toda uma geração, minhas preocupações e
aquelas de meus melhores amigos.
Até breve.
Eu vejo no jornal das 20 horas uma reportagem sobre Laure Manaudou. Estamos no outono de
2004. A campeã olímpica de natação volta à França depois de suas conquistas na Grécia. É
tempo de férias, de relaxamento. Ela se reencontra com seu namorado, um professor de
natação. A jovem musculosa perambula no meio de nadadores. Jornalistas interrogam o
“namorado”, perguntam-lhe se sua vida mudou, se suas relações com a campeã se
transformaram, o assédio dos outros, etc. Com uma voz doce, ele dá essa resposta que me
surpreende: <<O essencial, é nossa história de amor; o importante, é que ela prossiga.>>
Penso nos meus simpáticos correspondentes, eles têm razão, os jovens de hoje estão mais
para princesa de Cléves que para Casanova. Umas moças charmosas. Fiquei sabendo, logo
depois, que esse jovem homem tão romântico se revelou igualmente ávido por dinheiro,
esforçando-se por rentabilizar, com a cumplicidade do agente da moça, as conquistas
esportivas de sua doce campeã, desviando-a dos caminhos austeros das piscinas para aqueles
dos programas de televisão e das agências de publicidade. Em suma, misturando
sentimentalismo e ambição, ele se comporta exatamente como as mulheres dos filmes
franceses dos anos 30. O jovem homem foi cassado, ele e o agente, pelos pais da moça bem
informados. Como uma amante de outras eras, interesseira e perigosa.
Uma amiga me passa uma entrevista de Eric Cantona na Vogue. Eles lhe perguntam: <<Qual é
sua mulher ideal?>>
– A Mulher ideal, seria um travesti, porque ele teria um pouco dos dois.>>
Eric Cantona é um futebolista francês que conheceu seus tempos de glória nos anos 90. Ele era
famoso tanto por sua habilidade acima da média quanto por sua personalidade forte, que o
levava a insultar os árbitros, socar um torcedor, ou chamar de <<saco de bosta>> um técnico
da seleção francesa. Era um jogador muito talentoso. Marcado por sua postura de pintor ou de
poeta, ele nunca foi querido na <<panelinha>> do futebol francês. Ele se exila na Inglaterra e
torna-se um ícone. Cantona era um esportista atípico, conectado com sua época.
Especialmente alienado pela sua época. O status de futebolista mudou bastante nesses
últimos quinze anos. Antigamente, eles eram jovens humildes que tiveram a sorte de superar
sua condição; guerreiros que não tiveram de ir para a guerra. Platini e Rochetau, nos ano 80,
tinham esse perfil. Ninguém conhecia suas mulheres, elas eram esposas comuns. Desde a
mundialização do futebol, a fortuna deles explodiu. O status deles mudou. Eles se tornaram
para os meninos aquilo que as cantoras são para as meninas. A Copa do Mundo tornou-se uma
imensa <<Academia de Estrelas>>. Eles encarnam o lado bom da sociedade mundialisada,
mestiçagem e Ferrari. David Beckham (e sua mulher) exploram friamente e racionalmente essa
<<populização>> do futebol.
Brinquinho, alta costura, creminho para a pele, Beckham é a incarnação dos novos homens
feminizados, os famosos <<metrossexuais>>. Zidane conheceu sua esposa antes de se tornar
uma estrela; por isso, ela é uma (elegante) esposa comum; Zidane é uma espécie de
dinossauro no seu meio. Para os outros, suas mulheres não são o bastante, eles querem
manequins; um dos campeões da copa 1998, Christian Karembeu, casou-se com Adriana
Sklenarikova, um manequim renomado que veio da Europa Oriental, que tornou-se famosa
graças às campanhas publicitárias para a marca de sutiãs Wonderbra. Eles incarnam uma
espécie de casal improvável, um casal Benetton, arquétipo da visão politicamente correta de
mestiçagem. Grosso modo uma reedição moderna de A Bela & A Fera, também. Durante muito
tempo atribuiu-se ao goleiro Barthez um relacionamento com Linda Evangelista; o melhor
jogador brasileiro Ronaldo acaba de se casar com um manequim. Com sua espontaneidade
habitual, Cantona entrega o jogo: não é uma mulher que ele quer, não é uma mulher o que
eles todos procuram, mas um travesti que seria um pouco dos dois. Na vida real, isso se chama
um manequim.
Sabemos vagamente o que é um manequim. Uma garota bonita. Uma garota alta. Um sonho
juvenil que substituiu as estrelas de cinema no imaginário dos rapazes. Nós não
compreendemos mais nada, não desvendamos mais nada, não percebemos o que está
acontecendo. Hoje em dia, nos ateliers de alta costura, os Drs. Strangelove da beleza nos
preparam para o mundo de amanhã. Em uma entrevista, Karl Lagerfeld6 descreve assim as
novas beldades de quinze anos que na maioria das vezes vêm da Europa Oriental: <<Elas não
têm muito seios. Elas são absolutamente impecáveis, elas entram nos vestidos sem nenhum
problema. É difícil explicar, é uma outra silhueta, uma outra atitude de corpo... O corpo “na
moda” de hoje em dia, é uma silhueta feita sob medida, de uma estreiteza inimaginável, com
braços e pernas intermináveis, um pescoço bem comprido e uma cabeça bem pequena7.>>
Umas mutantes. Com corpos de meninos. Esses manequins com suas pequenas cabeças, que
ele mesmo considera melancólicos e não muito originais, têm apenas um defeito: <<é que
mais tarde elas acabando encorpando>>. Horroroso, peitão, bundão, cinturinha definida, é
muito sensual, muito feminino: <<Isso é vulgar.>>
Logo em seguida, Karl Lagerfeld critica as beldades de sua época. De Jennifer Lopez, ele diz:
<<Ela tem uma bunda muito grande, uma pele bonita; ela corresponde ao gosto do homem
das ruas. Pois quando os manequins andam pela rua, os homens da rua não prestam atenção
nelas.>>
Finalmente, quando ele é perguntado se, <<por meio de suas imagens publicitárias, ele não
seria cúmplice de uma busca obsessiva pela magreza e pela perfeição, algo neurótico para
muitas mulheres>>, ele responde com uma rude franqueza: <<É a história do aprendiz de
feiticeiro. Eu encorajo aquilo que eu acredito corresponder à evolução da estética. Se isso
acaba causando neurose, não posso fazer nada.>>
É aquele velho bordão de Oscar Wilde (que o poeta Nicolas Boileau já dizia muito antes): <<A
vida imita a arte.>> A vida das mulheres se transforma sob o lápis dos criadores da moda. O
nosso tempo adora ridicularizar os corpetes de antigamente. Os corpetes de hoje são muito
mais ferozes. Ele trabalham sobre a mesma carne, que eles modelam à maneira deles. Seu
bisturi é a imagem. Eles convencem a humanidade a consentir com corpos de mulheres sem
seios, sem bunda, sem curvas nem doçura. Corpos de moleques, longos e secos. Esse é o
fetiche dos criadores de moda, e eles o impõe sobre toda a humanidade (que consente
calada), seus fetiches de homossexuais (porque a enorme maioria deles são homossexuais),
que preferem o corpinho de um meninão a um corpo de mulher. Eles sempre foram
homossexuais. Entretanto, em outros tempos, os grandes criadores de moda se submetiam a
um modelo feminino, que agradava aos homens. Esse não é mais o caso. Uma vez mais, com
uma rude franqueza, Karls Lagerfeld diz tudo: <<Eu penso que não se deve personalizar demais
os diálogos com suas supostas clientes. Quanto a mim, eu trabalho com uma visão quase
abstrata da cliente. Não cabe a mim criar uma realidade comercial mediante uma espécie de
terrorismo totalitário, por meio da publicidade por exemplo. Eu dou aos demais a opção de
escolher.>> Entretanto, é exatamente isso que se passa e Lagerfeld sabe disso melhor que
todos. A máquina midiático-comercial dá um poder inigualável a suas fantasias. Antigamente,
6
(N. do T.) Designer de moda alemão, diretor criativo da grive Chanel.
7
Françoise-Marie Santucci et Olivier Wicker, « Karl Lagerfeld : «Des bras et des jambes interminables et
une très petite tête» », Libération, 28 de janeiro de 2005.
Madame Bovary arranjava um amante para conhecer a vida encantada das Parisienses, cujas
aventuras ela lia em livros de quiosque. Hoje em dia, as garotas, sempre à beira da anorexia, se
fabricam um corpo de molecote para agradar alguns criadores de moda homossexuais que
odeiam mulheres, que as consideram um simples <<cabide>>, e as aterroriza por causa de três
gramas a mais, alguns centímetros de cintura, de doçura, de feminilidade que lhes dá nojo. O
esnobismo mimético dos homens –ter a mulher que provará aos olhos dos outros que eles
triunfaram na vida, assim como um carrão importado – os impele a desejar a desejar essas
mulheres. Dessa maneira, a batalha da elite está ganha. No sentido oposto, como comenta
Lagerfeld, sempre muito fino, o homem das ruas resiste. Ele continua a desejar <<a bunda
volumosa>> de Jennifer Lopez, as curvas de Sophie Morceau ou Monica Bellucci, a beleza
grega de Laetitia Casta. E continua insensível aos charmes andróginos dos manequins russos.
Tal atitude, cada vez mais, rende afrontamentos ao homem comum, que é ridicularizado,
diminuído, chamado de ogro arcaico, ultrapassado. Uns <<homens do povo>>, insulto
supremo. Um machista que ama as paniquetes. Um vulgar.
A imprensa feminina encarrega-se de expor sob uma imagem lustrosa as belezas andróginas. A
evolução foi lenta, mas irresistível. Os corpos esculpidos e musculosos das esportistas foram
de início apresentados como modelo. Os homens, voluntariamente ou não, reticentes ou não,
foram impelidos a adotar esse novo ideal de beleza. Uma mutação sem precedentes. Durante
séculos, a formosura languida dos corpos sinuosos foi o padrão incontestável.
De uns anos para cá, a televisão tem amplificado o processo de condicionamento dos gostos e
dos desejos.
A ampla exposição de personagens andróginos como Steevie ou Vicent McDoom seria algo
inimaginável alguns anos atrás. Com o programa <<Queer, cinco especialistas da moda>>, uma
série que teve grande sucesso nos Estados Unidos, a rede TF1 propôs, como anunciado nos
comerciais, <<a história de uma equipe de aficionados em moda a serviço de um só homem
que eles transformam em um verdadeiro Pretty Man: compras, cabelereiro, instituto de beleza
– um pouquinho de cera dará jeito nesses pelos das costas, pleft! – com parada incluindo a
sala de esportes para que ele reconheça na frente do espelho que “sim, eu era um descuidado,
mas agora decidi mudar”. E uma passadinha no florista e no supermercado, para que ele
aprenda a preparar um jantar romântico, amorosamente preparado, com flores para ajudar.
(...) Os Queer estão prontos para fazer de sua cobaia um verdadeiro ideal masculino.>>
A aliança não é fruto do acaso. O feminismo é uma máquina a fabricar o mesmo. Sabe-se que o
desejo depende da atração entre diferentes. Ao reduzir as possibilidades de desejo entre
homens e mulheres, ele expande o campo de ação dos homossexuais. As feministas se
aproveitam disso também porque elas sempre consideraram, abertamente ou implicitamente,
a penetração como uma conquista, uma invasão, uma violação – ainda que consentida. O que
não é totalmente falso. Todas as palavras do vocabulário viril que evocam o ato sexual estão
relacionadas à força e à astúcia: pegar, possuir, foder, furar, penetrar. Mas no final das contas,
as mulheres se tornaram reféns dos homossexuais. Elas amarraram sua sorte ao destino de
seus inimigos.
Eu me dei conta do poder dos movimentos engajados num dia de inverno, quando eu
vislumbrei em um imenso outdoor umas formas harmoniosas, enroladas em um delicado
tecido vermelho e azul, com bordados em volta. Minha visão míope compreendeu logo em
seguida que se tratava de uma publicidade de roupas de baixo, dentre tantas outras. Era
meiga, delicada, charmosa. Deliciosamente feminina. Só faltavam as meias e as ligas. De mais
perto me pareceu que o corpo da modelo era bastante musculoso. Eu imaginei, brincando, que
as manequins russas tinham tomado os anabolizantes que sobraram da época em que as
atletas da URSS e da RDA faziam sucesso. Eu revi essa peça publicitária em todos os pontos de
ônibus de Paris durante o início de 2005. Foi sentado em um deles que eu percebi que as
coxas, a bunda, a costa perfeitamente lisinha pertencia a um homem. Desde então eu perdi a
vontade de rir. Desta vez, era algo que ia além da temática homossexual, mesmo estando
impregnada de mensagens gays; não, tratava-se de uma campanha totalmente feminina para
roupas de baixo masculinas. Algo inédito.
Eu lembrei das campanhas alegremente mestiças da Benetton nos anos 90. Naquela época, as
sociedades ocidentais ainda se interrogavam sobre os prós e contra do retorno da imigração e
do processo da integração. A França avançada nesse debate. Ela escolheu a <<integração>>. A
sociedade multicultural, aquela ditada pelas campanhas da Benetton, nós a internalizamos.
Dez anos depois, somente. Para o bem e para o mal. O publicitário não é um profeta; ele é o
braço armado da ideologia dominante. Sob ares lúdicos, ele é um oficial superior do
capitalismo. Afinal, contrariamente a aquilo que os emuladores de Marx repetem, o
capitalismo não é nem reacionário nem conservador. O capitalismo é autenticamente
revolucionário, fazendo parte da esquerda desde o século XVII, primeiro na revolução inglesa,
depois na holandesa, depois na americana, e enfim na francesa. A favor dos burgueses contra
os aristocratas. Durante mito tempo, o sistema capitalista precisou de produtores, de
poupadores para financiar seu desenvolvimento. Depois de consumidores prudentes para
comprar carros, máquinas de lavar, fogões e micro-ondas. O capitalismo protegia então a
família tradicional. Esses tempos terminaram. A produção, os chineses se ocupam dela. Os
europeus, com a nova divisão internacional do trabalho, estão encarregados de consumir os
produtos que não têm nenhuma realidade, os produtos-marca, cujos preços dependem
primordialmente da força imaginativa deles: <<Oh la la la vie en rose/Le rose qu’on nous
propose/d’avoir les quantités d’choses/qui donnent envie d’autre chose8.>> E indo mais além:
«On nous inflige/des désirs qui nous affligent9.» Os novos consumidores alvo não são mais as
8
<<Oh la la la vida cor de rosa / A rosa que nos é proposta / de ter a quantidades de coisas / que dão
vontade de querer algo mais>> Trecho da música “Foule Sentimentale” de Alain Souchon. (N. do T.)
9
<<Ela nos inflige/ desejos que nos aflingem>>. Idem.
famílias, com hábitos de consumo austeros e chatos, mas os indivíduos ligeiros como bolhas de
sabão, que <<se estouram>>, compram imagens. Indivíduos-marca, mercado transparente. Os
publicitários não anunciam a sociedade que está por vir; eles se encarregam de impô-la por
meio de propaganda ostensiva. Eles são muito bem pagos para realizar esse serviço. Eles
julgaram que, homossexuais ou heterossexuais, todos os homens deveriam adotar os valores
lúdicos e festivos dos <<gays>>: homossexual é uma palavra de outros tempos, significava uma
tentativa científica de cataloga-los, enquadrá-los, contê-los, em proveito de uma visão familiar,
heterossexual da sociedade. Para traduzir a nova sociedade, na qual os homossexuais não
apenas não são mais discriminados, como também incarnam a humanidade futura, uma nova
palavra era necessária: gay. Para opor-se a <<macho>>. As duas faces de uma mesma
medalha. O gay é a luz, o macho é a sombra. O gay é o bem, o macho é o mal. O gay é o
homem feminizado colocado nas nuvens. O macho é o homem estupidamente viril, denigrido,
menosprezado. Ostracizado.
Essa peça publicitária prova, como aquelas de Benetton há dez anos, que o capitalismo – ou ao
menos as grandes corporações transnacionais, que são sua quintessência – após haver optado
pela sociedade multirracial e multicultural, escolheu mais uma vez um lado para apoiar, o da
feminização dos homens. O último toque de um projeto autenticamente revolucionário de
fabricação frankisteniana de um homem sem raízes nem raças, sem fronteiras nem país, sem
sexo nem identidade. Um cidadão do mundo mestiçado e assexuado. Um desterrado em sua
própria terra.
<<Em dois anos, o mercado de cosméticos masculinos dobrou e o de bijuterias parece tomar o
mesmo caminho. Prova de que a demanda vai indo bem, o espaço que lhes é reservado nas
grandes revistas aumentou consideravelmente. A Printemps Hommes visava criar logo nas
páginas iniciais da revista um espaço dedicado a essa nova onda. São incontáveis as marcas (de
Dior a Vuitton, passando por Le Manège e Lecrlerc) que criaram linhas masculinas. Colares,
braceletes, anéis vêm trazer mais brilho aos homens. Se os homos foram os pioneiros, hoje os
héteros ousam cada vez mais... David Beckham tem orelhas cravejadas de brincos que fazem
qualquer mulher colecionadora de diamantes morrer de inveja... Os metrossexuais e suas
companheiras se uniram aos homos... Antes os idiotas diziam “isso é coisa de gay”, mas hoje
isso acabou, há menos preconceito, estima Christian, trinta e sete anos10.>>
10
Véronique Lorelle, « L’homme se refait une beauté », Le Monde, 28 de maio de 2005.
negligência. <<Antigamente eles vinham nos ver para atualizar o corte de tempos em
tempos11>>, explica Max Laffite, cabelereiro do estúdio Jean-Louis David. <<A visita deles
revelava mais de necessidade que de vaidade. Hoje, eles querem ter o cabelo
permanentemente bonito e mudar de visual regularmente...12>> A próxima etapa será a
cirurgia estética. Os primeiros audaciosos já se aventuraram nesse campo. Sobre o peitoral
liso, cuidadosamente depilado, eles enxertam próteses de silicone.
O pelo não é cortado por acaso. Nem é erradicado do corpo dos homens por razões
puramente mercantis. O pelo é um traço, uma marca, um símbolo. Do nosso passado de
homem das cavernas, de nossa animalidade, de nossa virilidade. Da diferença entre os sexos.
Ele nos lembra que a virilidade vai de par com a violência, que o homem é um predador sexual,
um conquistador. Ele é a prova ao adolescente que o homem se distancia da criança que ele
foi; e da mulher que ele jamais será. Durante séculos, natureza e cultura deram as mãos. As
mulheres cortando os raros pelos que elas possuíam, os homens os exibindo orgulhosamente,
como um estandarte viril. A depilação masculina marca uma vontade de dar fim a nossa
virilidade ancestral; ela assinala uma busca de infância perdida, de pureza, de inocência, de
doçura, de fraqueza. De feminilidade. De confusão sexual. É uma autêntica ruptura histórica.
<<A lisura feminina e a aspereza masculina constituíram, com algumas exceções, o paradigma
de beleza e de normalidade na história do Ocidente.13>>, relembra Christian Bromberger,
professor de etimologia da Universidade de Provence em Marselha.
Por trás desses corpos cuidadosamente podados se desenha um outro mundo. Nietzsche dizia:
<<A mulher não teria tanta disposição para cuidar de sua aparência se ela não soubesse por
instinto que tem um papel secundário.>> Agora é o homem que aprende a cuidar de sua
aparência. Ele aprende rápido.
No final de 2004, o primeiro secretário do Partido socialista, François Hollande, responde uma
entrevista. Ele vem de vencer um referendo interno no PS sobre a Constituição Europeia. Ele
incarna a nova esquerda, a mudança, os cinquentenários da política. Ele quer ser o Sarkozy do
Partido socialista. Ele triunfa, e galhardeia, já com uma dose de melancolia, sobre um passado
tão próximo que já não está mais lá, sobre a excitação da luta, da companha eleitoral, da
batalha, dos argumentos que se trocam, desse medo da derrota, dessa vontade de vencer, de
convencer, de massacrar o adversário, dessa adrenalina que sobe, verdadeira droga para as
feras da política. Para explicar isso que ele sente, esse grande vazio instantâneo depois desse
período tão cheio de emoções, ele tem essa fórmula admirável: <<É como uma depressão pós-
parto.>> Como se um homem dessa geração devesse buscar na mulher a expressão de suas
sensações, de suas impressões.
Os homens políticos são, mais do que imaginamos, o reflexo de nossa época. Eles estão às
vezes acima, às vezes aparte, e por vezes no meio de seus contemporâneos. Quando eles os
perdem, seus assessores lhes indicam onde sopra o vento. No Partido socialista, François
Hollande é justamente criticado por sua franqueza, sua busca de consensos, sua dificuldade de
decidir, de tomar uma decisão categórica; um de seus pseudônimos é <<Guimauve le
conquérant14>>. Hollande acomoda e reacomoda. Enrola, rola e desenrola. Muito inteligente, é
11
Marie-Hélène Martin, « Les bijoux roulent sur l'homme », Libération, 17 de junho de 2005.
12
Claire Mabrut, « Le boom de la couleur au masculin », Le Figaro, 18 novembre 2005.
13
Christian Bromberger, Pascal Duret, Jean-Claude Kaufmann, David Le Breton, François Singly et
Georges Vigarello, Un corps pour soi, PUF, 2005.
14
Jogo de palavras intraduzível. “Guillaume le Conquérant” foi um rei da idade média. Guimauve
significa marshmallow em francês. (N. do T.)
dotado de um instinto de sobrevivência excepcional, mas ele não possui instinto de morte.
Ninguém surge para matá-lo, mas ele também não mata nenhum de seus inimigos. Machiavel
escreveu que um príncipe deve ser às vezes raposa e às vezes leão; Hollande é somente uma
raposa. Ele não é um patrão, mas um animador; ele não é um rei, ele é um regente. Ele possui
poucas virtudes viris, mas todas as qualidades femininas. Surpreendentemente moderno. Para
justificar sua incapacidade de incarnar a esquerda à maneira imperiosa e monárquica de um
Mitterrand, de um Jospin, ou ao menos de um Fabius, Hollande proclama: <<Eu não
represento a tradição do homem provedor.>> Ele crê dessa maneira se unir uma toda história
da esquerda antibonapartismo e antigaullismo. E se a palavra mais importante da frase não
fosse <<provedor>>? No casal que ele forma com Ségolène Royal, é ela, corpo magro e porte
de testa imperiosa, que manda e desmanda. Ségolène Royal é uma feminista impaciente,
vindicativa mesmo, que nunca perde a ocasião de denunciar – ou de provocar habilmente – o
“machismo” de seus camaradas socialistas. Ela é também a adversaria mais determinada –
junto de Christine Boutin – da pornografia, mesmo aquela que se quer “chique” na
publicidade. Não é em absoluto em nome da moral que ela ameaçadoramente se proclama,
mas em nome da proteção da infância e da dignidade das mulheres. Assim, Ségolène Royal
incarna a síntese do velho puritanismo católico de sua infância e o feroz igualitarismo
feminista. Ela está na confluência de dois movimentos históricos que se confundem hoje em
dia. Sua popularidade surpreendente atesta a pertinência de seu posicionamento midiático e
político.
Nos anos 70, Jacques Chirac animava seus jantares (regados a bom vinho) com seus
companheiros de partido declamando esses versos cavalheirescos <<A nossas mulheres, a
nossos cavalos, e a aqueles que os montam!>> Após cada uma de suas campanhas
presidenciais, um Jean-Marie Le Pen afunda em um vazio melancólico que não é muito
diferente daquilo exprimido por François Hollande . Simplesmente, para explicá-lo, ele
emprega outras palavras que não renegariam um Chirac: <<Post coïtum animal triste.>> Com
François Mitterand, a sacralização da amizade foi tal que ela acabaria por impor-lhe graves
dificuldades políticas; Mitterrand parecia com aqueles personagens dos filmes franceses dos
anos 70, de Claude Sautet (Vincent, François, Paul e les autres) ou de Claude Lelouch
(L’aventure c’est l’aventure), com bandos de homens que vivem, riem paqueram, amam e
brigam, como num vestiário de futebol.
Nos embates políticos, é sempre o macho dominante que acaba ganhando, o rei da selva, o
crocodilo. Aquele que, à força da ferocidade, revela a fraqueza de seus rivais, a feminilidade
inconsciente deles, que os transforma em languidas amantes, conseguindo favores deles. É
assim que Mitterrand revelou e destruiu Rocard, Chirac fez o mesmo com Séguin ou Pasqua. A
essência da política é o Éros – suscitar o desejo dos eleitores e seus aliados – e o Thanatos –
matar o adversário. Os homens políticos dedicam tanta energia vital para seduzir seus
eleitores que eles se tornam máquinas de suscitar desejos. Aqueles que são mais inibidos – um
Édouard Balladur por exemplo – são impiedosamente eliminados pelo sufrágio universal. Os
outros os dominam facilmente. A maior parte dos políticos são conhecidos por serem
conquistadores insaciáveis, sem que a qualidade de “amáveis” lhes seja atribuída. Nossos três
últimos presidentes, Giscard, Mitterrand e Chirac, renovaram as práticas de nossos antigos
reis. O poder continua manifestadamente um afrodisíaco excepcional. O chofer de François
Mitterrand conta que à partir de maio de 1981, uma mulher diferente vinha visitá-lo no Élysée.
Ele chegou a ver maridos oferecerem literalmente suas esposas ao “monarca”. O chofer de
Jacques Chirac conta a mesma coisa, partindo da época de quando ele ainda era apenas
prefeito de Paris.
Em nossa época de estrita igualdade, todo mundo amaria que o inverso fosse verdade. A
boataria adoraria que nossas mulheres políticas tivessem vidas sexuais alucinantes, dignas de
Catarina II da Rússia. Entretanto, as raras que ousam tocar no assunto, como Roselyne
Bachelot (deputada europeia pelo UMP) ou Clémentine Autain (adjunta comunista na
prefeitura de Paris), confessam que acontece o contrário, o novo papel social delas parece
desencorajar os pretendentes. <<Ao contrário de nossos colegas masculinos, nós somos umas
freiras>>, proclama com uma pontada de arrependimento Roselyne Bachelot. <<Não me
paqueram mais>>, confessa Clémentine Autain com seus belíssimos olhos azuis. Como se essa
feminista militante descobrisse, para seu enorme desgosto, a relação estreita que sempre
existiu entre o poder e o falo, relação que ela adoraria negar.
As regras da política não mudam, mas suas formas se transformam. Há apenas dez anos,
jamais uma esposa de político comparecia aos encontros ou convenções do partido. Hoje em
dia, elas se fazem notar nas primeiras fileiras, lutam por títulos honoríficos em disputas dignas
da corte de Luis XIV. Exceto Bernadette Chirac, nenhuma foi eleita pelo sufrágio universal. Essa
intrusão de esposas não tem nada a ver com paridade. Trata-se de um fenômeno que pode ser
qualificado como <<casalização> da vida política. Ela parece inexorável, acentuada pela
popularização da política. Paris-Match, Elle, e a televisão são vetores eficazes. Essa
<<casalização>> é uma maneira bastante eficaz de feminizar a vida política, quando a paridade
apresenta falhas. As eleitoras são menos dogmáticas, elas ousam menos, votam menos nos
extremos, menos no Front National em particular, as ideias importam menos que a
personalidade. O casal é o valor feminino por excelência. Nicolas e Cécilia Sarkozy viveram essa
evolução ao máximo. Cécilia era ambiciosa, como seu marido; Nicolas estava disposta a tudo
para se tornar presidente da República. Os estudos de opinião, apoiados no exemplo
americano, lhe convencera de os franceses a partir de então elegeriam um casal e não um
homem apenas. A presença de Cécilia a seu lado feminizava, adocicava uma imagem que
repousava até então na ação, na decisão, na virilidade exacerbada. Essa estratégia se revelava
bastante perigosa, como se pôde notar entre a primavera e o verão de 2005. Ela fragiliza o
casal porque a esposa torna-se uma presa mais atraente; a fraqueza de um prejudica a
imagem política do outro; a pressão midiática é difícil de suportar.
Quando Cécilia some subitamente para Amman, toda a atenção da mídia se volta para o casal.
Nas redações só se fala disso. Entretanto, nós estávamos na véspera do referendo sobre a
Constituição europeia de 29 de maio. Um jornal suíço conta em detalhes as extravagâncias de
Nicolas que explicariam a <<vingança>> da esposa abandonada. Estávamos em plena novela
mexicana. Os conselheiros de Sarkozy ficaram em dúvida se os franceses se identificaram com
o homem abandonado ou desvirilizariam o corno. Sakozy inventara um novo gênero, a tele-
realidade política. Ele corajosamente assumiu a situação que ele mesmo criou. Depois de um –
curto – momento de hesitação, Sarkozy se convida para o jornal France 3. Ele demonstra uma
vez mais sua excepcional capacidade de falar a língua de sua época. Em nenhum momento ele
diz <<eu sou corno>>, o que lembraria uma tragédia grega; nem <<minha esposa me pegou no
flagra com uma amante, calças no joelho, então para se vingar ela arranjou um amante>, o que
lembraria uma pornochanchada. Não, ele diz: <<como milhões de famílias, a minha conheceu
algumas dificuldades. Essas dificuldades, nós estamos em vias de superá-las. Mas eu tenho
esperança. As coisas vão se arranjar.>> Ele repete assim, sem mudar uma só palavra, o
discurso convencional da imprensa feminina, cujas manchetes <<como lidar com seus
problemas de casal>> é tão comum como <<perca 3 kilos antes do verão>>. Hoje, não há
corno, nem infortúnio, nem mulher enganada e homem traído, ninguém é ridículo ou infeliz,
há apenas <<problemas de casal>>. Pois não há mais indivíduo, homem ou mulher, há apenas
casais. Com suas dificuldades, seus problemas. O casal, seu nascimento, sua vida, sua morte.
Essa feminização chegou de vez no tabuleiro político. Le Pen lança sua filha para <<adocicar>>
a imagem do FN. Mesmo os trotskistas, antigamente os puristas e insensíveis da Revolução,
descobrem a ternura: <<Os sentimentos escolheram nosso campo. Amar é compartilhar. É
fazer a revolução também. A revolução é o contrário da violência, ela é um engajamento
tenro. Ela responde à aventura coletiva que adormece em cada um de nós. Ela é um princípio
de vida.>> Essas linhas foram tiradas de Révolution, 100 mots pour changer le monde de Oliver
Besancenot, uma obra que precisa ser comparada com os textos marciais, verdadeira
convocação para o massacre das massas, de Léon Trotski. Antigamente, a Revolução era matar
os inimigos da classe operária sem hesitar. Hoje, ela é um gesto de amor. Mais vida e menos
morte. Acusado de antissemitismo nos palcos de Thierry Ardison, Obvier Besancenot chora.
Suas lágrimas são o fundo do poço no mundo dos homens da casuística revolucionária; elas
são a arma mais importante em um mundo feminino de emoção televisual. Com Besancenot,
os trotskistas renunciaram definitivamente a tomar o poder real, eles visam influenciar a
midiosfera virtual, para transformar a sociedade a partir da influência midiática.
A dama do Ifop está desde então em fase de evolução no seio das empresas, onde a
administração autoritária de seus colaboradores elegidos a dedo pelo patrão, um
administrador viril, cede pouco a pouco lugar para um administrador novo, onde a consulta, a
concertação permanente, o diálogo, a busca incessante de consensos, a luta obsessiva pela
segurança são privilegiados. O paternalismo é substituído pelo maternalismo. Seminários de
15
Entidade de representação patronal francesa. (N. do T.)
16
Livro de Émile Zola que conta a história de um trabalhador das minas de carvão. (N. do T.)
<<administração feminina>> são organizados para formar homens e mulheres nos novs
métodos em voga. <<A empresa tornou-se um universo complexo repleto de incertezas, onde
a administração hierárquica e vertical ultrapassada dá lugar a uma versão mais intuitiva onde é
preciso mobilizar a inteligência coletiva por meio do diálogo e da compreensão. Essas
exigências dão hoje um lugar privilegiado aos talentos femininos>>, galhardeia assim no Le
Nouvel Économiste um certo Vincent Lenhardt, patrão (não se ousa mais utilizar essa palavra
em desuso)do gabinete Coaching Transformance. O antigo discurso tecnocrático-militar é
substituído por um vocabulário eufemizado, adocicado, menos <<traumatizante>>. Feminino.
Grandes grupos como IBM ou Total nomearam <<diretores da diversidade>>, afim de
impulsionar as mulheres nas altas esferas dirigentes onde elas raramente pisam. É verdade
que os homens, bem treinados, já desempenha papéis femininos sem complexos. Alguns
reclamam que a vida das empresas esteja a partir de então dominadas por esses novos
administradores que não ousam ordenar, dirigir, impor, recusar, sancionar, mesmo quando
isso se revela necessário. Mas eles o fazem a meia voz, com medo de serem repreendidos. Não
é femininamente corretos.
E há também a vida, as pessoas comuns como se diz nos partidos políticos, aquelas de todos os
dias, os homens e as mulheres, e as crianças, os amores e os desamores, os romances e as
rupturas, os casamentos e os divórcios, as crianças e as novas famílias, as histórias de uns e de
outros, as confidências entre filhos, os coléricos silêncios entre garotos, o que elas contam
entre risos e confusão, o que eles dizem entre fanfarronices e besteiras, a história do tipo que
<<sofre no corpo>> o abandono de uma mulher, perde seis quilos, não quer mais viver uma
<<nova aventura>>, que <<quer curtir seu luto>>; aquela do marido que, no nascimento de
seu filho, brinca de mãe de família incansável, levantando-se todas as noites, mamadeiras,
fraldas e bolsa-canguru no parque, depois ao fim de um ano ele se vai com outra. Um homem
que abandona sua mulher, a mãe de seus filhos, porque ele conheceu uma aventura, e diz a
ela: <<Você não me faz mais sonhar e não me protege mais.>> As histórias – cada vez mais
numerosas – que mostram garotos encantadores, divertidos, sensíveis, que encontram uma
garota, a paqueram, convidam-na par jantar, e no momento de ir à casa dela ou à casa deles,
eles recuam, se desfazem, como em pânico, e dão desculpas que antigamente eram exclusivas
às mulheres: <<Não, você entende, não é razoável, uma aventura sem amnhã, eu tenho a
impressão que nós estamos em momentos diferentes.>> Antigamente, as mulheres temiam
ceder e depois não ver o amante de uma noite; hoje, elas reclamam de não ter mais tempo
nem possibilidade de ceder. Em um filme recente, Tout pour plaire, Mathilde Seigner confia a
suas amigas: <<Eu só saio com homens casados, porque não há mais aqueles caras pra
transar.>>
E as mulheres que dormem com suas crianças, enquanto os maridos se encolhem no sofá. Os
consultórios de psiquiatras (psicanalistas e psiquiatras) lotados de garotas anoréxicas, porque
elas rechaçam de maneira violenta suas famílias nas quais os pais já não são pais, são mais um
filho da todo-poderosa mãe. E os juizados abarrotados de meninos cada vez mais violentos,
sem reparos, sem limites. Hoje, inclusive, começamos a ver meninas violentas e garotos
anoréxicos! A <<hiperatividade>> das crianças torna-se um lugar nas conversas. Crianças que
não obedecem, que não se concentram, crianças que se descolarizam, que se dessocializam.
Crianças violentas, crianças tirânicas. Ritalina, Concerta, mais de sessenta mil de caixas de
<<pílulas de obediência>> foram compradas em 2004 na França. Três vezes mais do que em
2000. Nos Estados Unidos, tratar com medicamentos os problemas comportamentais das
crianças é um velho hábito. Não por acaso, os Estados unidos foram também o primeiro país
ocidental a jogar a “lei do pai” para o lixo da história familiar, o que impulsionou sobremaneira
a associação explosiva entre matriacardo e crianças-reis. Modelo que nos serviu de exemplo
nos anos 60. Quando a lei do pai desaparece, é sempre a química quem vence.
Homens, mulheres, crianças. A velha trilogia secular caiu por terra. Todos são suspeitos, todos
são desconfiados, todos se vigiam. A incompreensão nunca foi tão grande. Ou talvez, todos se
compreendem até demais.
Ela tem uma boca carnuda e grandes olhos charmosos de criança. Ele tem um rosto marcado,
um olhar inquieto, um ar de sedutor rude. Eles têm dois meninos, o mais velho, quinze anos,
julga que seu pai é um sujo, enquanto que o mais novo defende o ídolo de sua infância. Eu não
sei quais são seus nomes, não sei quem são os atores, nem sei qual o nome desse filme que eu
descobri por total acaso numa tarde qualquer em março de 2005.
Sei apenas que se trata de mais um filme dentre tantos outros televisionados pela TF1, um
daqueles que essa grande cadeia televisiva compra a granel, como mochileiras do interior que
compram roupas no centro da cidade, sem analisar muito. Assim como eu, que o vejo
distraído. E logo depois não consigo mais tirar o olho dele. O tipo se engraça com uma
deslumbrante jovem negra de cabelo curto e riso sensual. Uma prostituta que tem algumas
dores de cabeça com seu cafetão violento. Ele volta para casa. O acolhimento é caloroso mas
desconfiado; da boca dos garotos nós ficamos sabendo que o pai no passado já havia sido
largado pela mãe, porque ele tinha <<uma outra mulher>>, mas ele foi perdoado, prometendo
consertar sua conduta. Mais tarde, o tipo está no carro. Ele busca sua bela negra. Não a
encontra. Para diante de uma outra puta. Quanto é? Abre sua carteira, dá de cara com uma
foto de sua esposa e de seus filhos; pego por um golpe de culpabilidade, ele se prepara para
partir, quando uma jovem mulher tira de sua bolsa uma insígnia da polícia; é uma agente
federal. Detido, o tipo chama sua esposa. Ele é expulso de casa de novo. Ameaçado de um
processo de divórcio. A não ser que ele aceite uma terapia. É nesse momento que o filme
torna-se interessante. O diagnóstico é implacável: o tipo é um drogado do sexo. Sob um olhar
compassivo mas severo de sua esposa (a mãe de seus filhos!), o tipo tem que se explicar, se
justificar, diante de uma terapeuta pedante. O cara reclama, recusa-se a evocar sua
recordação paternal, não aceita a imagem de drogado que o adjudicam. O combate é vão. À
noite, o filme o mostra no bar com as putas, ou em um sex-shop, tomado de impulsos
incontroláveis. Tudo é feito, nos diálogos, na maneira de filmar, para suscitar a comparação
entre o alcoolismo ou a toxicomania. Ele deve se conformar, e o espectador junto com ele: ele
é um grande doente. Ele volta à terapia, inspirada nos Alcóolicos anônimos. Diante dos seus
colegas curados, ele ainda tem reflexos viris, ele diz: <<Ver a lingerie e experimentar as pulsões
sexuais, é normal para um homem, não?>> Vem alguém e o interrompe: <<Um copo de vinho
à noite também, é normal, e isso não impede o alcóolatra de encher a cara.>> Ele se inclina.
Diante de seu filho mais velho, ele demonstra arrependimento, e lhe explica <<que ele faz mal
a sua mãe e a suas crianças>>, mas que não é sua culpa, que ele é um doente, mas que ele se
trata, que é culpa de seu avô, um grande doente, que fingia levá-lo ao estádio para aprontar às
escondidas, enquanto ele esperava pacientemente no carro. E o filho do velho garanhão
cresceu e quis imitar seu exemplo. Um repugnante, sim. Mas felizmente este aqui se revoltou,
não vai mais jogar esse jogo. Nossos filhos são bem melhores que nós. Eles nos trazem de volta
para o bom caminho. Nós devemos escutá-los, obedecê-los. Nós devemos encontrar em nós a
boa criança, pura, que nós já fomos. Nós devemos nos submeter à lei benfeitora da esposa-
mamãe, às vezes bela e boa, sensual e doce. Como ele pode ir buscar algo diferente fora de
casa se não por culpa de um impulso maldito? Todo pecado merece misericórdia, mas o padre
foi substituído pelo terapeuta.
Acima de tudo, o tratamento não é mais o mesmo. A Igreja não queria mudar o homem, mas
canalizar seus apetites. Afastá-los da vista para fazer como se eles não existissem. A
modernidade crê-se eminentemente superior. Ela não demoniza o sexo. Ela o assume com
facilidade. Ela é liberada. Ela não obriga nem o casamento mais. Ela respeita a liberdade de
cada um, os Direitos do homem, etc. É por isso que ela tolera cada vez menos os desvios, as
perversidades, o sexo sem amor, o sexo pago, horror, o sexo pelo sexo, a pulsão sexual
repetidas vezes, sem objeto preciso, sem sentimento, sem passado, sem futuro.
No final do filme, o homem acossado por remorsos, termina por se confessar. Depois ele se
retrata, querendo conservar seu jardim secreto. Com um sorriso charmoso, sua esposa diz:
<<Nós tínhamos dito que os segredos tinham terminado.>> Stalin também detestava os
segredos. Esse é o primeiro princípio dos regimes totalitários. O segundo é <<mudar o
homem>>. Lá também, essa grandiosa empreitada terminava sempre com tratamento
psiquiátrico. Em resumo, o tipo do filme deve renegar seu pai; o filho deve denunciar seu
próprio pai; para mudar o homem, ele precisa romper o elo milenar de pai e filho. O acusado
não deve mais ter segredos. O patriarca é a acumulação de pequenos e grandes segredos, pois
é o contrário da mãe; a matriarca é a transparência, a morte de todos os segredos, a fusão
placentária. Como em todos os regimes totalitários, o segredo, torna-se o inimigo. O homem
termina por se resolver. É ele que precisa curar-se. Que deve se transformar. Que deve ligar
desejo e sentimento, sexo e família, pulsão e fidelidade. É o homem que deve tornar-se uma
mulher. Na programação de TV, eu encontrei um filme que me deixou fortemente interessado.
Seu título era Au-delà de l’infidélité (Para além da infidelidade).
Imaginávamos ter superado há trinta anos essa imagem <<tradicional>> da mulher. Tínhamos
lido Catherine Millet. Tínhamos visto na televisão todas essas jovens mulheres publicarem
novelas baratas (ilegíveis). O desejo das mulheres se anunciava, se impunha, se vendia. Iríamos
ver o que iríamos ver. Durante anos, havíamos decretados que as mulheres poderiam também,
assim como os homens, separar o desejo e o amor, ter um, dois, três amantes; a imprensa
feminina havia divulgado orgulhosamente o adultério; as mulheres não estariam mais na
espera de um príncipe charmoso. Elas seriam uns homens, indo pega o prazer onde ele se
encontrava, quando elas o encontravam. Eu me lembro de um filme dos anos 80 no qual a
atriz Miou-Miou tinha dois maridos, Roger Hanin e Eddy Mitchell, em duas cidades diferentes.
E tudo acontecia normalmente, no melhor dos mundos. Vida dupla, tripla, quádrupla, as
mulheres faziam tudo igual aos homens. Eu mesmo vi uns filmes e li uns livros no qual uma
mulher pagava um homem para ele deitar com ela. Um verdadeiro prostituto. Não somente
um gigolô com quem, apesar de tudo, uns sentimentos, umas amizades, uma afeição acaba
nascendo forçosamente.
Tudo se passa hoje em dia como se essa época estivesse acabada. Tudo se passa como se as
mulheres reconhecessem sem dizer que elas estavam fingindo, que elas até se divertiram por
um tempo, não muito tempo, mas que elas não chegaram a assumir por completo e sem
sofrimentos uma agenda que lhes foi imposta por uma geração iconoclasta. As jovens gerações
são as mais reacionárias, as mais revoltadas contra as lições libertárias ensinadas por suas
mães. O casal, esta é a única verdade. Mesmo se ele é efêmero. Tão mais efêmero quanto
mais sacralizado. Nenhuma infidelidade será tolerada, como diziam nossas avós. É a mais
estreita distinção entre desejo e amor. Se as mulheres, em sua maioria, pararam de se
comportar como os homens, elas se recusam a abandonar os sonhos românticos que as
guiaram por toda a eternidade; elas tiraram desse paradoxo uma conclusão radical, mas lógica:
porque elas não foram bem sucedidas quando tentaram se transformar em homens, agora
elas devem transformar os homens.
Não, pensando melhor, o cliente é um inadaptado a modernidade, ele não suporta o novo
papel das mulheres, é um retrógrado, ele quer continuar dominando as mulheres, ele paga
para perenizar uma relação desigual. Um machista infame, um ejaculador precoce, um caçador
de carne humana. Indagam-se ainda como ele pode viver livremente em uma sociedade
evoluída. Entre o sentimental enamorado e o primata, há talvez apenas um homem que queria
satisfazer uma necessidade sexual, mas nenhum pesquisador enxergou assim.
Claro, repetem-nos a exaustão, esses estudos são realizados sem nenhum viés ideológico,
nenhuma vontade de denigrir, só de denunciar. Denunciar o escândalo do amor pago que só
conhece vítimas, moças e clientes. Denunciar, a palavra é essa mesmo. Denunciar o culpado,
denuncia o doente. Antes de criminalizar. Como na Suécia. No momento, o cliente é um
doente que deve ser tratado. Na China maoísta, havia uma palavra mais pertinente: reeducar.
Na Franças, nós estamos sempre <<atrasados>>, como nos contam os bem-pensantes. Mas
nós seguimos a marcha do mundo. No nosso ritmo. Desde que Nicolas Sarkozy começou a
trabalhar no governo francês, em 2002, ele engajou-se na caça às prostitutas que se
proliferavam nas portas de Paris. Elas vinham da Europa Oriental ou da África. Elas estavam
sob o julgo de cafetões albaneses. Elas eram o subproduto de três eventos que, todavia, eram
enaltecidos por nossa mídia: a queda do muro de Berlim e o final da URSS, a <<liberação>> de
Kosovo pelas tropas da Otan, a abolição das fronteiras europeias graças aos acordos de
Schengen. É a <<globalização feliz>>, poderia argumentar um cidadão qualquer com ar de
sabedoria, como por exemplo esses magnatas que justificam suas empreitadas colossais
apontando a existência de um mercado mundial que impõe suas regras e seus preços. Mas o
cidadão qualquer não tem o direito de se meter nesse assunto. Ele é um criminoso, o cidadão
qualquer. Ele ousa estabelecer uma relação entre o sexo e o dinheiro. Ele deve ser punido.
17
Vincennes é um parque de Paris frequentado por prostitutas.
18
Éric Leser, « Les clients des prostituées de Chicago mis au pilori sur Internet », Le Monde, 28 de junho
de 2005.
Mas nesse combate eminentemente progressista, a esquerda está como sempre um passo à
frente. Foi na época em que Lionel Jospin era o primeiro ministro que o debate sobre a
<<criminalização dos clientes>> foi lançado. Um balão de ensaio. Que foi bastante útil para
algumas pessoas. Eu vi na televisão um debate entre um jovem agricultor que confessava
ligeiramente envergonhado que, sem as prostitutas, ele não teria jamais conhecido as
mulheres. Anne Hidalgo, adjunta socialista na Prefeitura de Paris, com um olhar assassino,
solta ferozmente: <<Esse doente precisa de tratamento!>>
O cliente – e todos os homens são clientes em potencial – deve renunciar todo tipo de relação
que não seja santificada pelo amor. Muito além da prostituição, é a concepção de um desejo
masculino distinto do amor que é o alvo da perseguição. O homem não deve mais ser um
predador do desejo. Ele não deve mais paquerar, seduzir, pegar, atrair. Toda sedução é
assemelhada a uma manipulação, a uma violência, um abuso. Faz alguns anos, uma lei de 1992
proíbe o assédio sexual de um superior hierárquico contra um subordinado. <<Nenhum
assalariado pode ser pode ser punido ou ser objeto de medida discriminatória por ter
suportado ou ter se recusado a suportar os atos de assédio de qualquer pessoa cujo objetivo
seja obter favores de natureza sexual.>> Aqueles raros que protestaram contra essa vigilância
do judiciário sobre o desejo, obtiveram a promessa que a lei tentava unicamente evitar o
abuso de posições sociais dominantes, a chantagem no escritório, o teste do sofá. Era uma
isca. Um primeiro passo. Na nossa sociedade feminina, toda sedução é assemelhada a uma
violência insuportável do macho infame. A sequência não tardaria. No dia 17 de janeiro de
2002, a lei amplia seu escopo, passando a proibir também o <<assédio horizontal>>: Alguém
pode ser assediado por um colega e não apenas por um superior. A diretiva do Parlamento
Europeu de 23 de setembro de 2002 define assim o assédio sexual: <<A situação não qual um
comportamento com conotação sexual – que se manifeste fisicamente, verbalmente, ou não
verbalmente – tenha por objeto ou por efeito atentar contra a dignidade de uma pessoa e, em
particular, criar um ambiente intimidador, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo.>> As
fotos de mulheres nuas nas oficinas e as piadinhas de escritório foram proibidas. As alusões, os
subentendidos, a sedução, o desejo. É a criança monstruosa de Tartuffe de Simone de
Beauvoir. O homem não tem mais o direito de desejar, nem de seduzir, nem de paquerar. Ele
só tem o direito de amar.
19
O livro completo de Rousseau pode ser acessado neste link:
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/desigualdade.html
enquadrada pelo casamento e pelo ritual de cortesia. O casamento era arranjado e o prazer
tarifado. Essas duas travas precisavam então ser arrancadas para abrir caminho ao todo
poderoso império do amor. E das mulheres. O casamento foi o primeiro a ser destruído. Ele
tornou-se o casamento do amor. Um oximoro. O ritual de cortesia segue o mesmo caminho.
Daí vem a ofensiva contra a prostituição. Constata-se que a prostituição não é mais
condenada em nome da moral, mas da condição das mulheres e do amor. Terrivelmente
eficaz. É o homem que deve se transformar, quer ele queira quer não. Ele deve compreender a
si mesmo. Ou então será forçado. A educação, em primeiro lugar. Vejam meus senhores,
mulher não era motivo de preocupação na nossa geração. Agora, com as novas gerações é
bem diferente, eles não perdem mais suas virgindades com prostitutas, mas com suas
namoradas, na humilhante e desengonçada primeira vez. É bonito, é fofo, é puro. É o amor. Os
tempos são outros. É educação, nos dizem. A mistura generalizada em todos os espaços (até
nos estádios de futebol), mas sobretudo nas escolas anestesia a virilidade dos pequenos
homens que precisam se soltar de suas mães e de seus clones (todas as outras mulheres) para
desenvolver suas verdadeiras personalidades.
Nós vivemos, em efeito, uma época de mistura totalitária e castradora. Desde o maternal, as
crianças, solicitadas por mamães admirativas, são incitadas a desenhar <<amorosamente>>. É
bonitinho, é doce, é o começo do adestramento. As meninas são bem mais soltas, os meninos
são desajeitados, tímidos. As meninas passam de um <<coraçãozinho>> a outro sob os risos
felizes e às vezes preocupado das mamães; os meninos se adaptam, imitam, jogam o jogo. O
jogo do amor, assim, é alegremente misturado à amizade e ao desejo. Dessa maneira os
garotos são habituados a não mais distinguir uma garota que lhes agrada e uma garota
<<amorosa>>. Em casa é a televisão quem introduz essa nova realidade. Em um reality show
como <<Ilha da Tentação>>, o casal é submetido à tentação da infidelidade. A equação
implacavelmente feminina entra em ação: se a gente <<trai>>, é porque a gente não se ama
mais, então a gente separa. Alguns psicólogos se inquietam. Assim, no Le Figaro de 9 de agosto
de 2005, Paul Bensussan chamava o programa de <<pornografia sentimental>>: <<A frase
revela uma confusão entre sexualidade e relação afetiva. Colocar o desejo sexual como a prova
de solidez de um relacionamento amoroso é favorecer o amálgama entre essas duas noções.
Se o amor é classicamente considerado como uma garantia de solidez, sabemos que as
relações perduram mesmo quando o apelo carnal esmaece. Isso que na terapia de casais nós
chamamos de apego está muito longe de ser negligenciável. A inversão de valores promovida
pelo programa fragiliza então o conceito de casal ao medir sua solidez – seu valor – de acordo
com o poder de resistência à tentação sexual.>>
Mas o psicólogo seria considerado ultrapassado pelos jovens. De acordo com uma enquete
realizada pela Ifop em diversas organizações estudantis, dos quase dez mil entrevistados, entre
18 e 25 anos, 84% deles diziam estar apaixonados; 58% disseram ter um namorado ou
namorada. Somente 2% confessaram ter mais de uma relação de uma vez, e 87% dos que
namoravam diziam que sua relação afetiva era <<excitante>>.
Eles podem ser avistados nas ruas de Paris e redondezas, andando de mãos dadas, vestindo o
mesmo uniforme: calças cumpridas e disformes, tênis, camisa larga e pull-over amassado, os
cabelos meio longos. Um mesmo corpo de molecote andrógino para os dois. Eles são a
encarnação da velha metáfora de Platão sobre os copos cortados em dois que a amor
ressoldava miraculosamente. Eles são mais que irmãos e irmãs, eles são gêmeos. Desde a mais
jovem idade, eles andam em casais. Eles não são capazes de conceber a vida, o desejo, o
encontro, senão em um marco instalado imediatamente. Às vezes, os elementos de um casal
mudam, mas é cada vez mais uma ruptura. Mas pouco importa, não são os indivíduos que
contam, é o casal. E eles transam na casa dos papais. Antigamente, ninguém jamais ousaria
<<fazer isso>> em uma casa de família. Ela era sagrada. Mas hoje não há mais diferença entre
sagrado e profano. Mas não há mais diferença entre sagrado e profano. O amor é o sagrado
desta época. Antigamente, já fazem trinta anos, nós sem saber vivíamos em tempos arcaicos: o
chefe da manada, o pai, queria ser a potência, o único pênis em ação, o falo exclusivo de casa.
Essa era lei do pai, que obrigava os filhos a irem buscar alguma ação ou transar fora de casa.
Hoje em dia, eles não arriscam mais nada, não há mais um pai na casa da mãe, eles podem
então transar em liberdade, sob a proteção acolhedora da mãe, orgulhos de ver seus
pequenos tornarem-se adultos. Sob sua dominação e proteção.
De todas as maneiras, não se passa grande coisa. É isso que nós aprendemos em um recente
estudo sociológico sobre a sexualidade dos jovens entre 15 e 25 anos. Os pesquisadores, todos
eles da geração de 1968 que pregava o sexo livre, ficaram impressionados com a
<<banalidade>>, a <<trivialidade>> que o sexo representa no cotidiano dos mais novos. A
velha guarda demorou para se dar conta disso, cegos que estavam por seu próprio discurso.
Eles não entenderam nada: esses jovens se <<amam>> de verdade. Amam de uma maneira
muito distinta daquela descrita nos romances do século XVIII, pois não se pode querer tudo.
A modernidade rejeita com horror essa velha dicotomia entre mamãe e puta. <<Eu não sou
puta nem mamãe>>, nos fazem engolir goela abaixo nossas companheiras de hoje em dia. O
que elas são? Mulheres, respondem elas orgulhosas. Mas o que é uma mulher na sociedade
atual? É um homem, com certeza.
Na corte de Versalhes, do Rei Sol, os casais que ousassem demonstrar gestos de ternura eram
ridicularizados. Na sociedade moderna, um casal que confessa que sua ligação repousa em
outra coisa não o amor – interesses, amizade, religião, crianças – é motivo de desprezo. Na
sociedade patriarcal, separava-se, distinguia-se, dividia-se. Na sociedade feminina
contemporânea, quer-se recolher todos os pedaços esparsos. As mulheres podem enfim
realizar seus sonhos unificadores, totalizantes e totalitários, elas querem tudo junto: amor,
desejo, status. Casamento e prazer, crianças e romantismo. Querem tudo. Mas acabam com
nada. Esse abismo, essa quebra de expectativas, é a fonte de todo ódio. Os homens também
adotaram o discurso feminino. Eles querem ser amados também. Antigamente, isso era um
discurso artificial que servia às mulheres para conquistar os homens. Lembremos daquela
velha máxima: <<Os homens estão dispostos a tudo para transar, até amar; as mulheres estão
dispostas a tudo para amar, até transar.>> Máxima de um outro tempo, de um tempo e de um
mundo viril, dominado pela psique masculina. Máxima proibida pela diretiva europeia de 23
de setembro de 2002 que trata sobre assédio sexual. Nossos amigos eurocratas podem dormir
tranquilos nos seus hotéis em Bruxelas. Esse mundo está morto. Os homens são sinceros.
Alienados, mas de boa fé. Eles querem amar e desejar ao mesmo tempo. Eles querem se
tornar mulheres.
Constata-se ainda uma descolagem entre os atos e as palavras dos homens: seus corpos, seus
instintos, suas células ainda estão vivas, o velho homem ainda existe dentro deles, sem que o
cérebro do novo homem chegue a expressá-lo em palavras, fica um sentimento de vazio.
Quando ele se sente seduzido por outra mulher, quando ele é infiel, ele deveria dizer: <<Eu
tenho uma vontade, uma impulsão, um desejo, tenho uma vontade de transar, ela me agrada,
me excita, mas minha querida, é você que eu amo.>> Palavras de um homem cuja
personalidade está alinhada com sua realidade, que dizem a verdade, a sinceridade do desejo
masculino. Palavras ridicularizadas, humilhadas, pelos romances modernos, filmes, colunas de
jornal. Palavras proibidas. Palavras apagadas. Pobres palavras palimpsestas, pensamentos
suprimidos do disco rígido. Hoje, os homens usam as novas palavras que lhe ensinaram, que os
autorizaram a pronunciar, eles dizem: <<Eu amo, eu cometi um erro, eu vivi uma aventura, eu
não posso resistir a esses sentimentos impuros, em imploro perdão, eu amo, você não pode
compreender, a paixão, eu mesmo me sino enganado.>> Pouco importa que eles repitam
essas paixões tórridas a cada três meses. As mulheres que escutam esse discurso se sentem
como que olhando para um espelho. É o discurso delas. Elas compreendem muito bem essas
palavras. São destrutivas porque elas as creem autênticas, quando na verdade são factícias.
Mas ninguém sabe disso, ninguém assume isso. Nem ele nem ela.
Não há nada mais misterioso e frágil que o desejo masculino. Na sua obra magistral, Vérité
romanesque et désir romantique, René Girard nos desvendou, há mais de quarenta anos, o
submundo desconhecido de um desejo. Girard disseca com rara fineza as grandes obras da
literatura à luz de sua teoria. Assim, em L’Eternel Mari, Dostoïevski nos mostra os
relacionamentos complexos entre um viúvo e o antigo amante de sua mulher.
Relacionamentos feitos de ódio e de admiração, de ressentimento e de dependência. Quando
o viúvo deseja se casar novamente, ele leva o amante até sua prometida; ele o elogia diante da
jovem. Os dois homens terminam por se afastar. No final do romance, o grande escritor russo
nos mostra seu viúvo casado com uma charmosa jovem, dentro de um trem. Ao lado deles há
um alegre soldado. E Girard nos explica que o amante precisava de um amante – que ele
admira – para legitimar, renovar, enriquecer o desejo que ele sente por sua mulher. É o
amante – às vezes admirado e detestado, às vezes cúmplice e rival – que permite o desejo pela
mulher amada. Da mesma maneira, em Don Quixote, Girard revive para nós esta cena
esquecida de um casal apaixonado. O homem pede a seu melhor amigo para seduzi-la, para
testar a fidelidade dela. O amigo se nega, o marido insiste, ele faz de tudo para aproximá-los.
Finalmente, ele conhece seu infortúnio, que ele tanto buscou, e se mata. Ele queria
secretamente que seu melhor amigo – querido e admirado – fizesse renascer o desejo por sua
mulher; mas ele não aceitou ver a realidade cruel de seu desejo triangular. O pensamento
freudiano tem uma resposta pronta: esses homens são homossexuais enrustidos. Com uma
grande fineza, Girard dá a volta no argumento: E se numeroso homossexuais não fossem
vítimas de um erro de perspectiva ao confundir seu desejo mimético pelo famoso
intermediário com um desejo homossexual mesmo? Paulo não deseja Pedro, ele deseja Valéri
em Pedro. Nuances.
Todos os grandes livros, todos os grandes filmes pressentiram essa tese girardiana. O trio
marido, mulher e amante deve ser revisto com lunetas. Em César e Rosalie, de Claude Sautet,
Yves Montand e Sami Frey disputam a sublime Romy Schneider. Na verdade, Yves Montand, o
self-made man dos anos 70, admira a fineza, a cultura do desenhista Sami Frey, que por sua
vez é fascinado pela força animal de Montand. No final do filme, os dois homens se tornam os
melhores amigos do mundo, e se reencontram para evocar a imagem adorada daquela que
abandonou os dois. Ela retorna, finalmente mas os dois homens ainda a querem? Nos filmes
franceses dos últimos anos, sempre há também um terceiro, mas ele geralmente é um
bissexual, que <<consome>> tanto Ele quanto Ela. O mediador do desejo dos homens passa a
ser então o homossexual. O motivo de piado do passado tornou-se o gay admirado de hoje em
dia, aquele que legitima o desejo do pobre <<heterossexual>> - <<homem comum>>, machão
desprezável. Para agradar as mulheres, o homem deve se comportar como um homossexual.
Face a essa pressão feminista, indiferenciada e igualitarista, o homem perdeu seu senso de
direção. Alguns renunciam seu desejo, outros se apegam a seus hábitos. Era a diferença que
era o motor tradicional o desejo. A máquina secular do desejo entre homem e mulher
repousava na admiração (simulada ou real, pouco importa) da mulher por aquele que tem
aquilo que ela não tem entre as pernas. Pascal Quignard, no seu admirável livro Le Sexe et
l’Effroi (O Sexo e o Medo), nos ensina que, na Roma antiga, o phallos grego deu origem a
palavra fascinus. O mulher deveria se fascinar para desejar; e é essa fascinação, que pode ser
lida no olhar feminino, que tranquiliza o homem sobre suas capicidades, das quais o homem
duvida terrivelmente. E isso não é somente fruto de uma história <<machista>>: no momento
em que um homem precisa se excitar para penetrar uma mulher, seus mecanismos
psicológicos entram em marcha. Dado que as mulheres não farão mais que um filho por ano,
elas buscam o macho que melhor proteja seu futuro filho. Acreditávamos que a seguridade
social, os subsídios dados pelo governo às mães solteiras e outros mecanismos de ajuda social
tranquilizariam as mulheres dessa angústia. Isso não é nada.
Como para compensar, desenvolve-se na mesma época o pornô amador, supostamente para
recuperar aquele frescor do passado. Mas rapidamente, amador ou não, o pornô torna-se nos
anos 90 cada vez mais violento, cada vez mais escatológico. Aparecem os filmes de zoofilia,
proibidos pela legislação francesa, e impostos pelos serviços de Bruxelas em nome da
liberdade de comércio. Os alemães são os reis desse pornô colossal. Não há mais rito de
iniciação, nem busca de felicidade, nem casal. A única lógica, além da financeira, é fazer mal,
cada vez mais mal, às mulheres transformadas não em objetos de desejo, mas em máquinas
de prazer. A humilhação das mulheres é o único argumento de venda dessa indústria. Nos
anos 70, o pornô era perfeitamente em linha com a ideologia de liberalização sexual. Nos anos
90, ao contrário, quando as mulheres se impõem por todos os lados, quando se fala
constantemente de paridade política ou na empresa, que os valores femininos dominam a
sociedade, o pornô entra na contramão da sociedade e introduz uma violência raivosa. Como
se os homens, ultra maioria entre os consumidores do gênero, se vingassem violentamente em
segredo em uma realidade em que eles se sentem cada vez mais dominadores. Como se,
sentindo-se destronados, eles se apegassem desesperadamente a seu velho estado. Com a
energia, a violência, o ódio do desespero. Com raiva daquilo que eles se tornaram. Daquilo que
eles quiseram se tornar.
O filme teve um sucesso enorme. Um desses sucessos que surpreendem todo o mundo,
críticos, atores, diretores, produtores. Um sucesso que vai além do filme, do talento dos atores
ou da originalidade da obra. Um sucesso que alcança milhares de espectadores, rendendo
milhões de euros em receita. Um sucesso que ultrapassa as tradicionais distinções de classes
sociais, de gostos culturais, de sexos, nisso que os jornalistas chamam de <<um fenômeno da
sociedade>>. Três Solteirões e um Bebê completa vinte anos. Qual era o enredo desse filme?
Três jovens bon-vivants, solteiros convictos, pegadores impenitentes, baladeiros, precisam
tomar conta de um bebê. No começo, os jovens ficam perdidos, irritados, furiosos. Recusam-se
a mudar de hábitos. Mas depois eles se acostumam. E pegam gosto. Não podem mais ficar
sem ele. Quando o bebê é recuperado pela mãe, eles ficam desesperados. Felizmente, aquela,
acometida de um trabalho muito demandante, lhes devolve a criança. Felicidade para os
rapazes! A mensagem ideológica é transparente: os homens são mães, assim como elas. Eles
podem trocar fralda, fazer carinho, e isso faz eles felizes, muito mais felizes que nos seus
trabalhos, ou nas suas badalações. Post filmum: o instinto maternal não existe; as mulheres
não sabem mais criar um recém-nascido nem amá-lo; versão cinematográfica das teses de
Elisabeth Badinter. Nós podemos evocar a mensagem política do filme tranquilamente, até
porque seu diretor é uma militante feminista assumida. Mas o filme fez tanto sucesso que esse
detalhe ficou escondido.
O público não era militante, tanto os homens quanto as mulheres que viram o filme o
apreciaram. Os homens não recusaram essa imagem deles mesmos e até gostaram dela.
E se esse desejo, essa pulsão, essa fantasia constituísse o fio condutor de uma história do
século XX? Não é a única chave de um século prometeano e terrorista, mas uma chave que
abriria certas portas que permanecem obstinadamente fechadas, diferentemente daquelas
que estão escancaradamente abertas há trinta anos. E que algum ar fresco entre enfim.
Eu queria apenas colocar como hipótese que a histórica não se escreve somente dessa
maneira. Tomar perspectiva. Imagine que o homem revanchista queira tudo isso que está
acontecendo sem ousar confessar. Foi ele mesmo, e não sua companheira, quem lançou a
máquina infernal da indiferenciação sexual. E isso muda tudo com relação a nossa visão de
passado, mas também de presente e de futuro.
Voltemos ao começo do século XX. A máquina pouco a pouco substitui o trabalho do homem
no campo e na usina. Sua força física, sua coragem, seu vigor são cada vez menos úteis. Mas
ele não se dá conta. A guerra de 1914 vai revelar tudo. A guerra é a última marca da
identidade masculina. De Júlio César a Napoleão, a arte da guerra não mudou
verdadeiramente; os soldados das guerras imperiais continuam heróicos como os cavaleiros da
Idade Média. Mas a guerra moderna muda tudo. Pela primeira vez na Europa, todos os
homens válidos de um país devem se tornar guerreiros. Mesmo nas batalhas da Revolução e
do Império, os conscritos eram apenas parte da população. Não em 1914. Esta guerra é aquela
do heroísmo mutilados, das ofensivas vãs, da lama, dos gazes, dos ratos, dos massacres em
massa. <<Dos leões dirigidos pelas antas>>, diziam os alemães sobre os soldados franceses. O
primeiro conflito mundial não foi somente o sepulcro das nações europeias. No horror das
trincheiras, a imagem da guerra muda, a imagem do homem branco muda, a imagem do
homem muda. Todos se tornam vítimas, defeituosos, objetos de um destino que os tornou
ultrapassados.
O chavão feminista nos explica pedantemente que a guerra de 1914 foi a ocasião em que as
mulheres mostraram que elas poderiam substituir os homens, que elas poderiam também
fazer a economia funcionar. E que elas não se esqueceriam disso jamais. Os homens também
não se esquecerão jamais de sua degradação mecanizada. Basta ler Céline e todos os escrivãos
da Grande Guerra. A virilidade não é mais heroicizada, mas ela é humilhada, aviltada. Pela
horda de imbecis do Estado Maior, pela lama das trincheiras. Nada será como antes. Os
homens renunciam a eles mesmos. O preço a pagar é muito caro, o ceptro é muito pesado.
Nas relações entre homens e mulheres, estas últimas se afirmam, e eles vão em busca de
outra coisa. Desde 1916, uma peça de Sacha Guitry, Faisons un rêve, dá uma indicação do
sismo que está em vias de se produzir sorrateiramente. É o trio de sempre do teatro popular, o
marido, a amante, a esposa. O marido é infiel e a mulher também. Esquema clássico. Mas a
tradição é sutilmente subvertida: a mulher infiel vai dormir na casa de seu amante. Nas peças
dos anos 1910s, ela nunca ficava para dormir. Nunca. O amante ficava contente de se livrar da
mulher de outro cara. Já ela até gostaria de ficar nos braços do amante, mas ela não poderia
ficar muito tempo longe de sua cada. Desta vez, eles ficam juntos – eles dormem juntos – mas
uma vez acordados, o amante propõe casamento a mulher do outro cara. O homem não
somente aceita a visão feminina do amor, como ela a encarna.
Depois da guerra, tudo se passa muito rápido e de maneira confusa. Uma elite rejeita com
frenesie o racionalismo e o progressismo cientista, que eram no século XIX o apanágio dos
homens enquanto que as mulheres tinham em sua maior parte se recusado a abandonar as
doces consolações do misticismo religioso e do sentimentalismo pudico. Artistas e intelectuais
cultivavam a emoção e o anti-intelectualismo. Mas o <<povo>> desvia esse movimento anti-
intelectual, e o coloca a serviço da força bruta. O povo masculino não aceitou completamente
a morte de sua antiga virilidade. Em seguida, abalado pela destruição de 1914, para se
consolar, para comungar isso que ele acreditava ser seus bons e velhos valores de honra e de
força, sobretudo nos países vencidos, mas também nos países vencedores, o homem
empreende um culto da força. De maneira ostensiva, desmesurada, engraçada se não fosse
trágica, virilidade simbolizada tanto pela mandíbula de Mussolini como pelos desfiles de
trabalhadores na praça Rouge, ou pelo furor de Hitler em Nuremberg. Essa necessidade de
ostentar virilidade era uma prova de fraqueza. Essa virilidade fascista ou comunista era uma
fantasia homossexual.
No furor das resistências, autênticas ou de última hora, quando as mulheres que colaboraram
com nazistas têm o cabelo depilado, redescobrimos o sofrimento do homem desvirilizado pela
derrota, que se vinga na mulher que deitou com o alemão, o vencedor, o Homem.
As crianças desses homens e dessas mulheres serão a geração de 1968, todos de cabelos
longos iguais mocinhas. Como se eles quisessem dizer a seus pais que a hipocrisia tinha durado
muito tempo, que eles não mais jogariam esse jogo, no qual o homem incarnava a guerra, a
morte, e que a partir de então eles queriam jogar no campo do bem, da paz, da vida. Paz e
amor. Uma parte desses jovens adere ao esquerdismo, ao trotiskismo, ao maioismo, ou
mesmo a ação terrorista. Da mesma maneira que os povos colonizados, da mesma maneira
que as mulheres. Os anos 70 são o tempo de todas as experimentações, transgressões,
inversões; John Lennon se aposenta para fazer papel de dona de casa reclamona, enquanto
que Yoko Ono incarna o papel de mulher de negócios, dura, impiedosa. Viril. Os homens
assistem ao parto de suas mulheres, e vão até em reuniões de mulheres grávidas. Eles
descobrem <<a feminilidade que há dentro deles>>, eles se ocupam de pequenas coisas, eles
falam abertamente de sua sensibilidade, eles dialogam. Os homens modernos são galinhas que
botam, chocam, e dão comida na boca. Eles querem ser também os portadores do Amor e não
somente da Lei. Eles querem ser mães, não pais. Mulheres, e não homens.
Num primeiro momento, as mulheres aplaudiram tudo isso; elas sempre sonharam ter do lado
delas segundas mães. Num segundo momento, elas se desencantam; no romance La Tache de
Philip Roth, a jovem francesa confessa que nenhum homem americano lhe atrai, porque os
homens daquele país não para de falar de faldas, de noites brancas, de mamadeiras; elas os
chamam de <<papais Pampers>>. Muito tarde. A máquina já está em pleno vapor. Os homens
são felizes, como se eles tivessem se livrado de um peso. De acordo com uma pesquisa
realizada por Enfants magazine em junho de 2005, 38% dos homens gostariam de engravidar
se a tecnologia permitisse. E 40% das mulheres aprovariam. Ao mesmo tempo, as mulheres os
abandonam, o número de divórcios explode sem que ninguém ouse fazer uma relação entre
isso a desvirilização dos homens.
Entretanto, essa não é a primeira vez que o homem é seduzido a abandonar o pesado fardo
que ele carrega entre as penars. No séxulo XVII, Montesquieu e Rousseau reclamavam contra
o poder das mulheres e contra a sociedade feminizada. Não sem razão. As mulheres da alta
sociedade tinham adquirido um poder considerável. Madame de Pompadour governa
realmente sob Luís XV. É ela quem inspira a grande reversão das alianças (em favor da Áustria,
nossa velha inimiga, e contra a Prússia, nossa aliada desde Richelieu) e que termina por atacar
os jesuítas. A esquerda filosófica a aplaude. Nos grandes salões, são as mulheres que
organizam o encontro profético das duas elites: aquela aristocrática de nascença, e aquela
burguesa e inteligente. Mistura autenticamente revolucionária. São elas que selecionam os
felizardos eleitos, de acordo com seus próprios critérios, para a grande tristeza de um
Rousseau que nunca foi de fazer muito sucesso nas altas rodas. Desde o final do século XVI,
Madame de Maintenon tivera uma influência real sobre os assuntos políticos e religiosos;
aliada de seus confidentes jesuítas, ele lucra com a ignorância do rei em matéria religiosa (ele
nunca abriu a Bíblia, ele acreditava totalmente naquilo que os padres lhe diziam, na grande
tradição católica). Alguns anos mais tarde, as mulheres do poder são expostas de maneira
incisiva.
As feminista de hoje não gostam quando nós lembramos daquela época. Somente as mais
moderadas tentam reabilitar essas grandes damas. Lembremos da magnífica Allé du roi, que
fazia um elogio vibrante da Madame de Maintenon. As outras repetem em couro que somente
as mulheres da alta sociedade estavam preocupadas com essa evolução – bem se sabe que o
rei pedia conselho a homens plebeus! – e que as mulheres deviam passar pela cama do rei
para poder ganhar influência. Podíamos entretanto contar nos dedos de uma mão as mulheres
políticas, de estatura nacional, que não haviam passado pelos brações de um dos três
monarcas franceses desses últimos trinta anos: Giscard, Mitterrand, Chirac. E a lei sobre
paridade descentralizou o direito ao “teste do sofá”, sobrecarregando as listas para as eleições
municipais e regionais de esposas e de amantes. Mas parece que isso é proibido de mencionar.
Para voltar ao século XVII, Pampadour não se mantém por muito tempo como amante do rei,
mas guarda até sua morte sua influência política. Os homens não tinham a mesma sorte. O
duque de Saint-Simon, que aborrecia a Madame de Maintenon, a culpou da revogação do
edito de Nantes. Lembremos que, desde a metade do século XVII, Molière tirava sarro das
mulheres que preferiam as novelas ao saber, e já naquela época tentavam controlar a
linguagem e os apetites masculinos. Três séculos antes do <<politicamente correto>>! No final
do século, a reação antifeminina toma forma. Rousseau se posiciona contra essas mulheres
que não se ocupam mais de seus filhos (ele, que abondou seus filhos); ele queria que elas
retornasse ao <<estado de natureza>>; as novas gerações a acompanham, e salientam a
importância da amamentação. Naquela época, os austríacos afeminados são desprezados pelo
povo, e os sans-cullotes são o símbolo do machão infame.
A Revolução guilhotina o rei (e então o pai, como notou brilhantemente Balzac). Se alguns
nobres são condenados a morte, é porque eles não foram fortes o bastante para resistir à
influência dos austríacos afeminados. Não havia um pai para substituir o rei, não havia o
homem viril da nobreza que todos esperavam. Quando o rei apresentou seu filho ao povo,
todos disseram que não era seu filho, porque ele era corno. Impotente. Sua impotência sexual
do início do seu casamento era conhecida por toda Paris. O único rei da França que não tinha
amantes foi também o único guilhotinado.
Napoleão, o rei das batalhas, recupera o valor da coroa que estava jogada na sarjeta. A
República nunca negou essa herança. Ela será viril e orgulhosa de sê-lo. Os historiadores
franceses do séculos do século XXI analisaram friamente os números da Primeira República e
eles mostraram que ela não era favorável a inserção das mulheres na vida política. Por isso
durou pouco.
Essa história conhece sua última encarnação em Yvonne de Gaulle. Católica fervorosa,
discreta, admiradora de seu grande homem ao ponto da devoção, ela parece incarnar os
valores femininos ais quais sonhava a sociedade do século XIX saída da Revolução Francesa.
Supomos durante muito tempo que ela havia impedido Obvier Guichard de tornar-se ministro
porque ele tinha uma ligação com uma mulher casada. O rumor era falso. Mas ele diz muito
desse mundo cujo espírito Yvonne incarnava. E isso não é um acaso. Como escreve Philippe
Muray nos Histoires: <<É em maio de 1968 que ecoa pela última vez a voz do pai, aquela de
Charles de Gaulle. Depois dele virá o tempo dos papais afeminados.>>
20
Margaret Mead, L’un et L’Autre Sexe, Gonthier, 1966 (Folio, 1988).
Eles estão sinceramente persuadidos que devem viver uma grande história de amor, mesmo se
ela não dure mais que algumas semanas.
Os homens não costumam ficar sozinhos. As mulheres sim. Elas sempre sonham com o
príncipe charmoso, mesmo negando. As mais finas descobrem, um pouco tarde, que encontro
após encontro, história após história, é sempre a mesma coisa, as mesmas desilusões, os
mesmos contratempos. Se, como diz Lacan, o amor é o encontro entre dois desequilibrados,
ele não pode existir de outra maneira. Cada um encontrará aquele cuja neurose se encaixará
melhor na sua. Elas descobrem então, mas um pouco tarde, que o sonho de <<refazer sua
vida>> revela-se um mito, que o divórcio foi vão. Como a maior parte dos divórcios. Elas ficam
sozinhas. Com suas crianças. Todos os jornais femininos descreveram à exaustão a fusão
divorciada e o filho. Os homens ficam sozinhos. O papel deles de pai foi ingrato: eles deviam
separar a mão de seu filho, a soltar da fusão original, a abrir ao mundo. Ele deviam aguentar o
furor do filho e da mãe. Fazer o papel de mau. Eles fizeram isso durante muito tempo,
estoicamente. As mulheres liberaram-nos desse papel de malvado. Eles comemoram em
silêncio. A maior parte deles desertou. Esse papel de pai era pesado, mas eles nunca disseram
nada. Tirando um punhado de pais que ainda levam seu papel a sério, qual a chance que um
filho tem de ser abandonado pelo pai? É puro acaso. Antigamente, os pais não se ocupavam
muito da vida do filho, mas o nutriam, e serviam como um símbolo, de virilidade, de lei, do
mundo. Era fatigante. Os novos homens estão fartos de incarnar a lei. A repressão. De início,
eles quiseram incarnar o amor, a vida. Os papais mãezonas. Depois eles se cansaram disso
também. Adeus mamadeiras, chupeta, fraldas. Hoje, as mulheres ficam sozinhas com sua
progenitura. Na melhor das hipóteses, os homens pagam para se livrar de sua
21
Bovarismo = Disposição ou propensão para a evasão ou o desajuste em relação à realidade,
geralmente por insatisfação ou tédio. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
http://www.priberam.pt/dlpo/bovarismo [consultado em 28-01-2016].
responsabilidade. Na pior, eles não pagam nada. As mães solteiras nunca foram tão
numerosas, nem tão pobres.
Diante dessa negação de responsabilidade, diante dessa fuga jubilatória dos homens, as
mulheres ficam ressentidas, azedas, rancorosas. Como elas se livraram dessa emaranhado que
representava a religião, o dever, o sentimento de proteção que se havia inculcado nos
homens, elas são obrigadas a apelar para a sociedade, a lei, ao poder coercitivo, em suma a
uma nova força para substituir os homens dispersos na pompa jocosa da irresponsabilidade.
Os juízes, na sua maioria mulheres, apresentam a conta aos maridos. As leis empilham
obrigações <<alimentares>> para o marido. A sociedade é confrontada por uma contradição
maior: estimulando a liberdade individual exclusiva, ela favorece cada vez mais o divórcio self-
service. Mas para corrigir os efeitos devastadores desse divórcio em massa, ela acumula
obrigações para enquadrar os desdobramentos da sexualidade masculina. Em nome do
progresso e da igualdade evidentemente. É assim que a sociedade adotou uma lei igualando os
destinos das crianças <<legítimas>> e das <<naturais>>. Em nome da sacro-santa igualdade,
transmite-se assim uma mensagem simples ao homem: tu serás obrigado a reconhecer todos
teus filhos e bancá-los todos. Mas não para aí. As escapadas sexuais do homem são cada vez
mais mal vistas. Lembramo-nos sempre do corpo de Yves Montand saído da terra para fazer
atender às reivindicações de uma jovem menina cuja mãe fora uma dentre várias amantes do
sedutor. Mesmo morto, Don Juan é vigiado. Um recente projeto de lei propõe-se a alongar de
dois a dez anos o intervalo que um jovem dispõe, depois de atingida a maioridade, para entrar
com uma ação de busca pela paternidade. Fazemos tudo para permitir à mulher forçar o
homem a tornar-se pai. <<Quando buscamos compreender por que os homens são tratados
dessa maneira, dizemos que eles deveriam ter prestado atenção, quer dizer, usar o
preservativo. Esse argumento nos lembra entretanto daquele outro argumento que nós
usávamos no começo dos anos 70 precisamente para se opor ao direto das mulheres à
abortar, dado que elas já possuíam a pílula...22>>
Esse mundo está morto e enterrado. As mulheres possuem autoridade sobre o desejo e sobre
a reprodução; os homens não mais têm o poder sobre nada na família; em troca, eles se livram
de suas antigas responsabilidades. Eles não querem reparar. Eles não querem nada entre a
pílula e o aborto. Quando as mulheres ficam grávidas, eles fazem pressão sobre elas para que
elas abortem. Os psiquiatras sabem bem que acidente não existe, que o inconsciente entrega
um <<desejo de criança>>. As mulheres descobriram assim o preço a pagar por seu novo
poder: elas dormem sem obter nada em troca. Quando elas querem uma criança, o homem
desaparece. Furiosas com essa situação, apavoradas com a marcha inexorável do seu relógio
biológico, elas declaram guerra, pela lei – paternidade obrigatória – e pela enganação: elas
escolhem o pai de suas crianças sem ele saber. Elas <<esquecem>> de tomar a pílula. Os
homens são enganados, mesmo se eles não se casam. Em um mundo sem regras definidas,
todos os golpes são permitidos. O mais comum, a morte das almas, elas se resignam a abortar.
22
Marcela Iacub, « Géniteur sous X », Libération, 25 de janeiro
O aborto, outra conquista histórica. <<Nosso corpo nos pertence>>, todos nos lembramos
desse slogan. Os homens não entenderam nada. Eles queriam que elas deitassem com eles,
sem intervenção do pai ou do marido. Obsessão dos homens. As mulheres pensavam no seu
ventre, nas suas entranhas, nas suas crianças. Elas queriam dizer: nossas crianças nos
pertencem. Temos direito de vida ou de morte sobre eles. Como os homens na Roma antiga.
As crianças sempre pertenceram ao mestre do seu tempo, seja Deus, a cidade, a pátria ou
partido. Desde os anos 70, nas sociedades ocidentais, as crianças pertencem às mulheres. Nas
discussões sobre o aborto dessa época, Simone Veil dizia que queria acabar com o sofrimento
de mulheres que abortavam ilegalmente. O presidente de então, Giscard, acrescentou a essas
considerações humanitárias outras de ordem tática, mas que se revelaram erradas: atrair o
eleitorado de esquerda, que ia votar em Mitterrand; mas o eleitorado católico se revoltou e
votou contra ele em 1981. Mas o marco prudente que os autores dessa lei traçaram foi
rapidamente superado. O número de abortos se estabiliza ao redor de duzentos mil, para
quase oitocentos mil nascimentos, de acordo com os últimos números divulgados. Em um
artigo recente do Figaro, Emmanuel Le Roy Ladurie expõe essa relação (um para quatro)
correspondente a taxa de mortalidade infantil, no sentido clássico, do reino de Luís XV23. A
França avançou para voltar ao mesmo lugar.
Dois séculos para isso. Esses números não são sem consequência sobre o destino do nosso
país. Os grandes demógrafos nos alertam quanto ao futuro da Alemanha ou da Itália, a
população deste último país devendo diminuir em 20 milhões de pessoas em algumas décadas.
Há trinta anos, todos celebravam essa combinação perfeita, entre contracepção e aborto, para
a fecundidade das mulheres. Não se diz jamais que o fim dessa história é funesta, que ela se
conjuga justamente com o fim da história, aquela do desaparecimento programado dos povos
europeus. Como se um espectro desejasse essa feminização das sociedades ocidentais, que
começa sob uns auspícios deveras otimistas, como se esse apelo à vida, ao amor, make love
not war, devesse terminar tragicamente pela desaparição coletiva. Como se o homem fosse
maldito, e encontrasse ao final essa morte que ele não queria casar.
23
Emmanuel Le Roy Ladurie, « Jacques Chirac et l’héritage de Louis XV », Le Figaro, 5 de maio 2005.
Europa, tornada uniformemente feminina, se declarasse terra aberta, esperando ser
fecundada por uma virilidade vinda de fora.
Trinta anos mais tarde, o jovem é o mais forte da sociedade francesa, sem que ninguém o diga.
Ele é às vezes rejeitado e desejado, odiado e fantasiado. É o inaceitável e o fundamental. As
feministas o detestam, mas elas não ousam dizer por causa da herança colonialista. Elas estão
furiosas de ver as cidades voltarem à idade da pedra antifeminista e, ao mesmo tempo, estão
maravilhadas de encontrar um contraponto masculino tão perfeito. Ele é o bárbaro de Roma, o
lobo entrando em Paris. Ele tem uma linguagem próxima daquela de um Neandertal. Ele é o
homem pré-civilizacional. Ele reage de maneira binária, <<vadia>> ou <<moça de respeito>>,
putas em mini-saia ou santas com véu, puta ou virgem. Ele não leu Stendhal. Ele não leu René
Girard. Nem Dostoïevski. Mas ele oferece às vezes sua conquista a seus amigos durante as
famosas <<rotações>>. Ele não leu nada mas sua carne é às vezes triste. Arquétipos
masculinos. Caricaturas. Eles vem de um universo onde os homens não são feminizados, onde
eles se conduzem de acordo com suas pulsões, mas onde suas pulsões são contidas por uma
moral rígida, familiar e religiosa. Entretanto, eles vieram viver em um país onde essa moral
rígida foi explodida. Eles são conquistadores em uma vila aberta. Os outros jovens os
observam com uma mistura de medo e inveja. Os árabes fazem tudo aquilo que as mamães
dos europeus os proibiram. Da mesma maneira, apenas os jovens negros podem se apropriar
do imaginário macho; os cantores de rap confessam e assumem um donjuanismo alegre, sem
complexos, às vezes violento. Nossas crianças tão bem educadas não ousam confessar que elas
adorariam os imitar. Nem que fosse só um pouquinho.
Alguns ousam. Eles transgredem. Eles reagem. Eles imitam sem saber. Competem entre eles.
Eles frequentam os bairros de periferia, eles são rivais na paquera. Eles são trabalhadores,
empregados ou desempregados, brancos. Eles votam em Le Pen. Em massa. Em 2002, como
em 1995. Eles não votam para os comunistas, nem mesmo para os trotskistas. Isso é bom para
os jovens das escolas. Como se Le Pen, sua cara grande, suas provocações, suas fanfarronices,
sua fala crua, suas poses de gladiador, desenhassem um emblema viril. O <<Menhir>>, como
ele mesmo se nomeia. Uma espécie de falo por procuração, que afirma sua virilidade contra
aquela, desinibida, de seus rivais árabes. Nos Estados Unidos, essa recuperação política da
nostalgia viril tomou uma amplitude nunca vista. Ela é reparada, diagnosticada, calibrada.
George Bush não abandona mais suas botas texanas e seu chapéu de cowboy. Ele tem um falar
rugoso, com um ar simples e com sarcasmos anti-intelectuais. Esse homem, que na França é
chamado de imbecil, é descendente de uma linhagem nobre, fez seus estudos em Yale. Mas
ele interpreta, muito bem, esse papel: o cara à antiga, o herdeiro de John Wayne, o homem
que não suporta as novas maneiras de viver e de pensar femininas, vindas da Costa Leste. É
bastante eficaz. Depois de sua triunfal reeleição em 2004, George Bush abocanhou o
eleitorado negro e hispânico, graças ao suporte de jovens homens de classes populares.
Numerosas mães de família votaram nele, enquanto que o adversário democrata ganhava os
votos das mães solteiras. Dois mundos. Pode ser que, na próxima eleição, se Hillary Clinton
fosse a candidata escolhida pelo partido democrata, os republicanos buscariam como
substituto de George Bush o sósia de John Wayne. E ganhariam mais uma vez.
Na França, nós ainda não chegamos nesse nível. Nossos políticos estão trinta anos atrasados,
quando comparados com a América. Eles ainda imitam Kennedy, como Nicolas Sarkozy que
não largava a mão de Cécilia e fazia fotografar seu último filho em seu escritório na praça
Beauveu, como o célebre John-John dentro do palácio oval. Nossos políticos estão ainda a
descobrir as delícias e os venenos da <<casalização>>. É verdade que a Europa se recusa a
seguir o caminho considerado <<machista>> na América. Ela se quer um modelo de doçura, de
paz, de tolerância. De feminidade. Nos quarteirões populares, nenhum político consegue ser
unanimidade. Nem todos podem votar em Le Pen, evidentemente. Então alguns encontram
estratégias de substituição.
O caso dos jovens judeus nos quarteirões populares, em Paris ou no interior, é bastante
instrutivo. Eles encontraram uma virilidade por procuração. Eles são sionistas. Israel e seu
exército, seus tanques, seus aviões, todos esses falos de fero e de ações, o desprezo às
organizações internacionais, os discursos viris de Ariel Sharon. Eles não se enganam. O
sionismo é desde o início uma tentativa histórica de acabar com a imagem feminizada do
judeu europeu, esse judeu de mãos finas e fragilidade santa, estudante de teologia, fustigado
pelos cossacos brutais, esse judeu intelectual dos países do Ocidente, amador de livros e de
objetos raros, esse judeu que não coloca suas mãos na terra nem na guerra, esse judeu
religioso que recusa toda atividade esportiva. O sionismo quer se livrar desse judeu
desprezível, ele quer regenerá-lo pelo trabalho da terra (os kibboutz) e pela guerra. O soldado-
cidadão é o modelo do sionista, para enterrar definitivamente o judeu feminizado do exílio.
Essa regeneração explica que os dirigentes israelenses como Sharon continuem surdos aos
apelos daqueles que os interpelam em favor do fim da política brutal contra os palestinos em
nome de <<valores judeus>>. Essa regeneração explica também a irredutível oposição do
mundo árabe contra Israel. No imaginário milenar dos árabes, o judeu sempre venceu às
custas deles, pacificamente, mas ele não podia carregar uma arma, ele tinha um estatuto
jurídico inferior. Eles aceitavam voluntariamente que os judeus mais bem dotados, mais
inteligentes, mais instruídos, se tornasse conselheiros do rei, financistas ou escrivãos. Espíritos
refinados e delicados como das mulheres, que eles veneram como tendo um estatuto
secundário, inferior, submisso. Mas uma <<mulher>> que faz nascer laranjas no deserto e
ganha todas as guerras contra os soldados árabes, verdadeiros homens. Eles não são
superados nunca.
Não é de se surpreender que nessas condições os árabes das periferias francesas queiram se
vingar dos judeus que estão bem próximos deles. Eles não entendem nada do jogo político.
Eles querem apenas vingar a virilidade perdida de seus irmãos. E eles o fazem de maneira
ancestral. Com os judeus ou com as mulheres. Ou com os <<pequenos brancos>> parecidos
com meninas, como vimos em 8 março de 2005 nas manifestações escolares contra a lei Fillon.
A violência e a ferocidade dessas agressões racistas anti-brancos foram destaque até no jornal
esquerdista Le Monde. A maior parte dos comentaristas de esquerda queriam ver um conflito
social. Alguns ousaram fazer uma leitura étnica. Eu vejo o ódio visceral dos verdadeiros
homens contra as <<mocinhas>>, o ódio daqueles que sabem bater contra aqueles que não
sabem se defender. Esses jovens, que se manifestaram em abril de 2002 contra <<o
fascismo>>, viram a verdadeira face do fascismo, que é sempre virilmente exacerbado,
virilidade humilhada que, por reação, por medo de sua própria feminilidade que eles vêm no
espelho que os outros os apresentam, torna-se selvagem. Bárbara.
Como todos os jovens rapazes desde o começo da humanidade, os jovens árabes têm medo
das mulheres. Medo dessa máquina de castrar, medo de não estarem à altura do apetite delas
que eles temem que seja insaciável. Ao redor do Mediterrâneo, esse medo da feminilidade
tem sido compensado pela expressão de uma virilidade exacerbada, teatralizada, dissimulando
os charmes da sensualidade feminina, cabelos e panturrilha, peito e coxas, sob roupas amplas,
sem forma. Os árabes reagem a isso. Os mais religiosos obrigam suas irmãs a colocar o véu, os
outro exigem das mulheres que elas portem as mesmas roupas que eles, casaco, tênis. Assim,
disfarçadas de rapazes, elas causam menos medo. Se elas continuam a se querer femininas, a
querer lhes fazer medo, a desafiar a virilidade incerta e frágil, eles aplicam outro método
masculino, o plano B dos homens desde o Homo sapiens, a profanação militante, tão furiosa
quanto violenta e inquieta. Somente a <<vadia>>, a <<puta>> pode acordar o desejo sexual
frágil do homem.
Nas sociedades ocidentais e cristãs, esse violência potencial era canalizada pelo casamento e
pelo bordel. Nas sociedades muçulmanas tradicionais, pela religião e pela poligamia. A lei do
pai, sagrada, ensinada a golpes de bastão, e o amor da mãe, incondicional. É esse mundo que
eles não encontram nas nossas regiões. A reação masculinista é deslocada em uma sociedade
que condena o carnaval machista, e onde cada vez mais os jovens recusam ou temem o
conflito, o combate, a violência. Antigamente, para atrair as mulheres, os homens imitavam as
mulheres. Hoje em dia, eles as imitam.
Nos anos 70, dizia-se que os imigrantes deveriam fazer vir suas mulheres e suas crianças para
evitar que eles buscasse a prostituição. Mas por trás desse humanismo, encontramos um
raciocínio econômico sólido e clássico. O capitalismo <<precisava de braços para fazer o
trabalho que os franceses não queriam fazer>>. O raciocínio era enviesado. Não era o trabalho
que estava em causa, mas sim o preço pago pelo trabalho. Essa questão se coloca com tanta
de maneira assaz pontual nos anos 60, quando o crescimento interrompido do pós-guerra dá
aos trabalhadores meios de pressão únicos na história do capitalismo. A grande greve geral de
maio de 1968, o sonho do anarco-sindicalismo francês desde Amiens em 1905, é a glorificação
desse movimento histórico. Os salários explodem, apesar de corroídos pela inflação. A divisão
entre salários e lucros é feita em benefício dos primeiros. Face a essa baixa tendencial do
lucro, já analisada por Marx em seu tempo, o capitalismo mostra sua arma tradicional,
também analisada pelo barbudo alemão, <<o exército de reserva>>, um sub-proletariado de
desempregados, sub-qualificados, imigrados, que aceitam remunerações inferiores a preço de
mercado, e jogam para baixo os salários dos trabalhadores. Mas essa resposta tradicional não
é suficiente. A imigração mesmo em massa não permite o retorno dessa evolução desfavorável
da taxa de lucro. Os patrões franceses refinaram o sistema ainda mais, porque, com o
reagrupamento familiar, eles garantiram sua mão de obra de segunda geração. Até a queda do
muro de Berlim, eles não poderiam buscar seus trabalhadores em nenhum lugar do planeta.
Depois, o capitalismo apresentou seu coringa, uma arma nunca utilizada desde sua nascença.
A invenção do segundo exército de reserva: as mulheres.
As mulheres são o exército de reserva do capitalismo. Entre as três milhões e quatrocentas mil
pessoas que trabalham por um salário mensal inferior ao mínimo da indústria, 80% são
mulheres. A distância de 25% entre a receita dos homens e das mulheres explica-se
essencialmente por conta dessas profissões menos qualificadas e menos reconhecidas
socialmente. Quando a qualificação e a anterioridade no trabalho é a mesma, a
<<discriminação>> é de apenas 6%. <<Essas diferenças representam um muro conceitual:
mesmos estudos, mesmas trajetórias, a igualdade estaria no começo do caminho. Mas ela nem
sempre está lá24>>, espanta-se Margaret Maruani, socióloga, diretora de pesquisa no CRNS.
Essas discriminações são incompreensíveis se nós não voltarmos a história da entrada das
mulheres no salário remunerado, se nós continuarmos a ver essa história como uma conquista
das mulheres, e não como ela verdadeiramente é: uma armadilha sorrateiramente colocada
pelo capitalismo ameaçado. Ninguém compreenderá nada se todos se recusarem a ver que as
mulheres querem – mesmo com diplomas iguais – profissões de serviço, ao invés de funções
de poder. Se todos preferem ver uma alienação do modelo patriarcal, se todos se recusam a
ver um <<modelo feminino> que rejeita o poder como uma pulsão de morte, então todos nos
condenamos a não compreender nada. Se todos se recusam a ver a relação problemática entre
o dinheiro, o poder e o falo, então todos usam voluntariamente viseira de cavalo.
Assim, todos se proíbem de compreender esse surpreendente jogo de cadeiras musicais que
segue desde trinta anos o progresso do salário feminino. Tudo se passa como se as mulheres
preferissem os lugares abandonados pelo dinheiro e pelo poder: Educação, magistratura,
medicina, procedimento judicial, jornalismo. Todas essas profissões atraíram a mesma dupla
raivosa da feminização e da proletarização, sem que ninguém saiba distinguir o ovo da galinha.
Um advogado civil me contou que as mulheres preferiam fazer carreira no direito penal, lá
onde havia menos dinheiro para ganhar; o direito civil, o mais lucrativo, continua um domínio
dos homens que, cada vez mais, utilizam-se das competências de técnicas colaboradoras,
enquanto o contato com o cliente continuava sendo exclusividade deles. De todas as maneiras,
acrescenta-se <<a partir de uma certa soma de dinheiro, os patrões não aceitam falar com
mulheres>>. Como se isso fosse um tabu. Como se isso fosse íntimo, sexual. Como se essa
ligação inconsciente entre o falo, o dinheiro e o poder continuasse indefectível, a despeito das
campanhas de reeducação que as mídias nos submetem regularmente. É preciso reconhecer a
habilidade tática do capitalismo que, confrontado com um impasse estratégico – a pressão
pela alta de salário dos trabalhadores e das folhas de pagamento -, encontrou uma vez mais a
saída pretensiosamente progressista, a exploração sem vergonha, por um preço ridículo, dos
exércitos de reserva bem formados, corajosos, organizados e conscientes, descobrindo com
entusiasmo as novas <<liberdades>> oferecidas pelo mundo do trabalho e da autonomia
financeira. O capitalismo transformou essas novas armadas ambiciosas em novas <<idiotas
úteis>>. Uma vez mais, as profecias de Karl Marx estavam certas, o capitalismo, autêntica força
24
Anne Chemin, « Margaret Maruani, sociologue, directrice de recherche au CNRS : « La discrimination
se développe dès le premier emploi », Le Monde, 25 de março de 2005.
revolucionária da história, destruiu conscientemente todos os lugares tradicionais; a família
patriarcal – a famosa mistura – era o último bastião que resistia, o último obstáculo a
mercadização do mundo.
A mundialização do fim dos anos 90 permitiu a passagem para uma nova etapa: não são mais
as mulheres que perseguem os homens, mas o inverso, não são os salários femininos que
perseguem os masculinos. São os salários dos homens que descem cada vez mais ao nível dos
salários femininos.
Com exceção dos cargos dirigentes mais altos (dominados por homens), as folhas salariais,
médias e superiores, femininas e masculinas, estão sendo pouco a pouco achatadas. As
condições de trabalho das classes não dirigentes pioram cada vez mais. Desmotivadas,
proletarizadas, precarizadas. Feminizadas. Professores, magistrados, jornalistas, todas as
profissões não-manuais feminizadas em massa encara o mesmo destino de uma proletarização
anunciada.
Após sua reeleição em 2002, o presidente Chirac apresentou três prioridades: plano contra o
câncer, plano para os deficientes, e plano contra a mortalidade das estradas! Objetivos dignos
de um presidente de conselho geral! É a realidade do poder de hoje em dia. O que lhe resta? O
social. De bolsa desemprego à política de bairro, o eleito tornou-se assistente social de um
capitalismo mundializado, financeirizado, nômade, que ri dos trabalhadores sedentário dos
velhos países industrializados. Desde muito tempo, os deputados se transformaram em
assistentes sociais. Os governantes fazem sua política passional parecer um espetáculo
televisivo. Nosso presidente é um antigo mestre na arte de forjar essa mistificação. Mas,
entretanto, ele dessacralizou a função presidencial. Seu titular não é mais o monarca
consagrado pelo sufrágio universal como queria o general de Gaulle. Como disse cruelmente
Français Hollande: <<Hoje, todo mundo pode ser presidente da República, porque até Jacques
Chirac já o foi>>. Agora, meu senhor, todo mundo pode ser também uma dama.
Essa é sem dúvida a razão profunda pela qual há uma pletora de candidatos em perspectiva da
campanha presidencial de 2007. Tanto à direita como à esquerda, nenhum presidenciável se
impõe verdadeiramente, ninguém se destaca. Não por coincidência, é a primeira vez que a
questão das mulheres candidatas se impõe. Ségolène Royal à esquerda, Michèle Alliot-Marie à
direita, enfrentam-se na corrida presidencial. A credibilidade delas como chefe de estado e
zero mas as sondagens são boas. Os rivais masculinos preferem rir - <<Quem vai cuidar das
crianças?>> - quando na verdade eles deveriam chorar. Eles estão estigmatizados como
<<machos infames>>, e caem assim nas redes midiáticas dessa damas. Sorte ou necessidade?
Concomitância ou causalidade? É justamente quando a política não tem mais a realidade do
poder e quando nenhum presidenciável se destaca – à maneira de um Pompidou, de um
Giscard ou de um Mitterand - que a presença de uma mulher no Élysée torna-se uma hipótese
provável, apesar de não ser muito crível. Como se, seguindo um esquema preestabelecido,
fosse tempo de passar o bastão para as mulheres na política. Velha reivindicação das
feministas. Mas a lei sobre a paridade, cara à Lionel Jospen, tem falhas que seus autores não
tinham previsto. Nada bobas, elas perceberam que a vida política ocupava as noites e os fins
de semana. Mais ainda, os homens políticos não ligam para isso. A paridade então se torna
uma hipocrisia, o UMP e o OS devem pagar multas porque eles não encontram candidatas;
entretanto, eles preencheram as listas com suas esposas, amantes, irmãs, primas, secretárias,
velhas namoradas e agregadas da imprensa. Há ainda lugar para preencher.
É um paradoxo feminino.
As mulheres conduzem quando a velocidade é limitadas, elas fumam quando o tabaco mata;
elas obtêm a paridade quando a política já não serve para grande coisa; elas votam na
esquerda quando a revolução já está acabada; elas tornam-se um argumento de marketing
literário quando a literatura está morta; elas descobrem o futebol quando a magia de minha
infância tornou-se uma caixa-registradora. Há uma maledição feminina que é o inverso de uma
bendição. Elas não destroem nada, elas protegem. Elas não criam nada, elas entretêm. Elas
não invertem, elas conservam. Elas não forçam, elas preservam. Elas não reinam, elas
governam. Em se feminizando, os homens se esterilizam, eles se proíbem de toda audácia,
toda inovação, toda transgressão. Eles se contentam em conservar. Geralmente, explica-se a
estagnação intelectual e econômica da Europa como resultado do envelhecimento de sua
população. Mas Cervantes escreveu Dom Quixote aos setenta e cinco anos e de Gaulle chegou
25
Daniel Bernard, Madame Royal, Jacob-Duvemet, 2005.
ao poder aos sessenta e oito, e o chanceler alemão Adenauer com mais de setenta. Ninguém
ousa acusar a feminização.
Os raros homens que querem conservar a realidade fálica do poder se protegem eficazmente
contra a feminização de sua profissão. Eles agem como se eles estivesse em ilhas de virilidade
em um mundo feminizado. Eles são tratados como <<machistas infames>> incuráveis. Eles
aprovam leis sobre a paridade tomando cuidado para não trazer o tema aos conselhos de
administração. Porque o poder, é a capacidade de aguardar o momento apropriado para
matar o adversário. É ter instinto de morte. Por isso que o poder é um grande tabu na nossa
época.
O grupo de pesquisas Sociovision Cofremca submeteu esta afirmação aos entrevistados: <<As
coisas seriam melhores se mais mulheres comandassem governos e empresas>>. Mais de 70%
dos interrogados, homens e mulheres de todo o mundo, disseram que sim. Patrick Degrave,
presidente do conselho de pesquisas da Sociovison Cofremca, fez esse comentário pertinente:
<<As análises mostram que as mulheres são em média menos atraídas pelo poder, quando
comparadas com os homens. Elas estão na liderança do movimento de destruição de
comportamentos hierárquicos e busca de uma sociedade mais harmoniosa. Aos
comportamentos masculinos orientados pela competição, pelos prazeres intensos, pelo
respeito aos papéis tradicionais, pela racionalidade, elas opõem a emoção, a sensibilidade, a
sociedade protetora, a qualidade de vida, o desejo de dar um sentido à vida. Se há busca de
conquista de poder entre as mulheres, ela está voltada a flexionar a marcha da sociedade.
O poder, é o mal, a morte, o falo, o homem. Ninguém, nas jovens gerações de nosso país, quer
assumir esse fardo. O homem branco deseja sair da história, após assistir assustado à sua
própria história, grandiosa e sanguinária. Deseja também escapar da tirania da razão que
ilumina, para o bem ou para o mal, a história do ocidente. A feminização dos homens e da
sociedade é considerada como uma alternativa afortunada, a busca de uma idade de ouro, o
Segundo Advento universal. O sonho feminista foi substituído pelo sonho comunista. Sabemos
como esses sonhos terminam.
Face a essa evolução, as sociedades europeias e americanas arriscam se afastar cada vez mais,
um desvio de continentes onde a Europa encarnaria a mulher e a América o homem. Ou então,
como habitualmente na história do século XX, as evoluções na América prefigurariam as
nossas vinte anos antes? Mas essa revolução masculinista se fará em um contexto delicado e
inédito. Nos bairros, a islamização, demográfica ou cultural, realizou seu trabalho de separação
rigorosa de sexo e enquadramento das mulheres Quando alguém pergunta a Malek Chebel,
escritor, psicanalista e antropólogo, por que escolher o islã ao invés do cristianismo, ele
responde: <<Por sua virilidade>>. Alguns acreditam que isso seria uma provocação gratuita,
mas Chebel descreve com uma rara fineza isso que está acontecendo agora mesmo nas
periferias francesas: <<Eu me surpreendo com a força da convicção daqueles cristãos que se
convertem ao islã. O que eles buscam? Uma virilidade e uma segurança que eles já não
encontram mais no cristianismo... O calcanhar de aquiles do cristianismo é ter prometido uma
religião de bondade, de misericórdia, mas também de sofrimento. Alguém bate na sua cara,
você oferece a outra face. É uma religião compassiva. No oriente, essas são virtudes femininas.
O que Maomé propõe? Um reforço do patriarcado, mesmo se ele respeita as mulheres e
restaura o status delas. O valores fortes como a riqueza, a força, a guerra não são colocados
em questão. Religião masculina, por definião26.>>
26
Catherine Golliau, « Malek Chebel : « L’avenir est à l’islam », Le Point, 22 de setembro de 2005.
Resumo
Como se parece o homem ideal? Ele se depila. Ele compra produtos de beleza. Ele usa
bijuteria. Ele sonha com o amor eterno. Ele decididamente crê nos valores femininos. Ele
prefere o compromisso à autoridade. Prefere o diálogo, a tolerância, à luta. O homem ideal é
uma verdadeira mulher. Ele entregou suas armas. Aquilo que ele carregava entre as pernas lhe
parecia muito pesado. Algumas feministas se aproveitaram desse vazio de poder, persuadidas
de que a igualdade era a similitude.
Hoje, as jovens gerações integraram essa confusão. Os rapazes sonham com relacionamentos
de longa duração. Eles não querem mais ser aquilo que eles são: homens. Todo que se
apresenta com masculino ganhou uma conotação negativa. Um disparate. Mas a revolta está
por vir. Os homens têm uma identidade a recuperar. Para que ninguém mais diga a seus filhos:
<<Você será uma mulher, meu garoto.>>