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Porto Alegre, 2008
© CMC Editora
Texto não revisado pelo autor e estabelecido a partir
do seminário Como alguém se torna paranóico - de
Schreber a nossos dias-, ministrado na Universida­
de do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS,
Brasil, em maio de 2007.

M527c Melman, Charles


Como alguém se torna paranóico : de Schreber a
nossos dias / Charles Melman ; tradução Teima
Queiroz- Porto Alegre: CMC, 2008.
144p.
ISBN 978-85-88640-10-8
1. Psicopatologia. 2. Psiquiatria. 3. Paranóia. 4.
Paranóia: Estudo de casos. 5. Transtornos mentais. I.
Queiroz, Teima. II. Fleig, Conceição de Fátima Beltrão.
III. Título.
CDU 616.895.7
Catalogação elaborada por:
Evelin Stahlhoefer Cotta - CRB 10/1563

Reservados todos os direitos de publicação em


língua portuguesa para:
CMCEditora
Rua Mostadeiro 291/403-90430-001
Porto Alegre, RS
(51) 3062 0522
cmceditora@te1rn.com.br
www.crnceditora.corn.br

Proibida a reprodução total ou parcial


Depósito legal
Impresso no Brasil-Printed in Brazil
Tradução:
Teima Queiroz

Transcrição:
Alexandre Rubenich Silva
Gustavo Gazzana
Luciano Mattuella
Návia Pattussi Bedin
Rose Lume11z
Viviane Carla Dali' Agnol ·

Revisão da transcrição:
Luciano Mattuella

R1:!Vi são de língua portuguesa:


Lia Cremonese

capa:
Henrique Oliveira

Editores:
Caio Beltrão Schasiepen
.· . . Maria Flcig
Conceição Beltrão Fleig
Prefácio..............-..................09
Primeira parte ........ � ................. 13
- o que é a paranóia?
- A paranóia na vida cotidiana
- Paixão e perseguição: o caso Aimée
- como é que se cura uma paranóia?
- Paranóia de autopunição
- Delír�o a .dois: i_rmãs Papin ou entr�-�ãe e filho
- t;> çomple�� de Édipo - um corte deci�1v.o po;apetite
pela paranoia
- Nossa vulnerabilidade à paranóia - nossa relação com
o saber e a ciência - da máquina ao protocolo médico
- o caráter paranóico, o ponto fixo e as 1 eis da
linguagem
- o que torna as amizades tão difíceis?
- Respondendo perguntas: a questão dos impostos, a
relação do paranóico com o falo, o paranóico e a
sociedade, questão das internações.
' ! ; ' 1

segunda parte .............. ............... 33


- crime e castigo
- Amor não correspondido, sentimento de exclusão e
excluir a si mesmo
- o lugar do fundador e a distinção entre povo e nação
- o paranóico e o lugar do autodidata
- saber teórico. o que é o conceito?
- o casal perfeito entre mãe e filho e a invenção de uma
língua especial
- Delírio de grandeza, delírio de reivindicação,
delírio de ciúmes: a dimensão do sacrifício real e do
sacrifício simbólico
- o amor perfeito
- •espondendo perguntas: o limite e a necessidade da
teoria, o conhecimento paranóico
Terceira parte.......................... 51
- o objeto a, a letra, a organização do desejo
- Anorexia-bulimia. Objeto causa de desejo e desejo
sexual
- A voz, o grito e a.ang�stia
- A doença do ecletismo. A diferença entre Aristóteles
e Platão
- Multiplicidade de referências como uma forma de
defesa ·,.
- o lugar topológico do paranóico
- A paranóia e a feminilidade. o falo. A relação da
mulher com a paranóia

Quarta parte ............... _.............65


- A fala e a escrita. o ensino de Lacan
Quando as fronteiras representam um limite
paranoiogênico
- Para além do muro não está o estrangeiro, mas o outro
- Nossa posição social atual. Para que complicar a vida
com desejos?
- o Big brother e as fronteiras na relação entre os
psicanalistas
- Burocracia

Quinta parte ............................ 75


- o que a paranóia nos ensina sobre a organização
psíquica?
- o que é a autenticidade?
- A exigência de autenticidade
- Identidade
- A questão da feminilidade e o lugar da mulher
- 'Qual é a natureza material do espaço do outro?
- Declínio do Nome-do- Pai e a promoção da Mãe
- o matriarcado
- A simplicidade dos exemplos clínicos
- As mulheres como falos que passeiam
- o pacto do gozo e a virilidade do parceiro
- o semblante do poder e o poder absoluto
Sexta parte............................. 89
- Respondendo perguntas: Reações paranóicas na
adolescênci,a. Qual o sentido de povo ainda. hoje?
Relação entte patriarcado e sagrado - a evidência e ·o
símbolo. A fraternidade entre os analistas. A dupla
recusa de ser integrado e de ser excluído que
geralmente leva à violência
- Hiperatividade. Perversão e paranóia
sétima parte........................... 103
- A instância fálica e os sintomas de perseguição e a
xenofobia. A potência divina presente no real.
sacrifício simbólico. objeto a e letra. objeto a na
neurose - casos clínicos. Don Juan
- Respondendo perguntas: o terceiro sexo. A
re 1 ação da ci ên ci a com o real e a relação da
filosofia com essas duas dimensões. A lógica é a
ciência do real
oitava parte .........................121
- o que é um fato clínico?
- Por que o paranóico se sente sempre ameaçado em seu
estatuto?
- schreber: paranóico ou esquizofrênico?
- A instância fálica como instância perseguidora
- o que é a psicose social?
- voltamos, como as populações primitivas, ao temor de
desaparecer
Nona parte.............•...............135
- Respondendo perguntas: A posição do analista e o
envolvimento com o paciente. Psicose infantil e
paranóia infantil. O tratamento e a realidade do
inconsciente. A possibilidade de sustentar a heterotopia
dos 1 ugares numa si tuação de declínio da função
paterna. síndrome do pânico e paranóia
Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer a
Charles Melman, por seu seminário em torno da
pergunta "Como alguém se torna paranóico?" A idéia
desse seminário surgiu em uma conversa em Paris,
quando lhe fizemos o convite para falar na Unisinos.
Referimos que ele nunca havia se dedicado ao tema da
paranóia em suas conferências no Brasil e ele
imediatamente manifestou que o tema era oportuno,
propondo então a pergui1ta que é o título do
seminário. Logo se seguiu uma segunda interrogação:
O que é que o paranóico busca? O que quer o
paranóico?
. Tivemos também a oportunidade de ciol:ocar
i
para 11ohó cbnferencista uma série de ·pergun tas que
foram surgindo nas discussões preparatórias para esse
seminário e ele se comprometeu a nos trazer suas
respostas e ponderações às mesmas. Foram perguntas
que nos colocamos em torno, por exem plo, da
paranóia que pode se desencadear em uma mãe em
relação ao seu füho, quando !e&se ! lhe aparece como
um �·eal; da para�óia como u�a defesa em relação à
melancolia, da relação entre perversão e paranóia,
tendo em vista a uma nova economia psíquica; do urro
de Schreber como voz desprovida de toda articulação
significante; do que significa afirmar que, mesmo não
passando pelo mesmo fenômeno de Schreber,
raciocinamos como ele?; do por quê discutir a
paranóia hoje?; da hipótese de que vivemos em urna
sociedade mais paranó ica do que nas décadas
passadas?; de como se cura o paranóico? E outras
perguntas, além das que surgirão ao longo do
seminá:tio.
O termo "paranóia", apesar de já se encontrar
entre os gregos, foi estabelecido como entidade
clínica específica na nosogràfia psiquiátrica alemã do
final do século XIX por Kraepelin, que distinguia três
grupos de psicose: a loucura maníaco-depressiva, a
demênci-a precoce ou esquizofrenia e a paranóia.
Esta se organiza como um sistemà delirante constante
e inabalável, que mantém intacta_s as faculdades
intelectuais, a vontade e a ação. Freud decididamente
abordou a psicose a ·partir da paranóia,
caracterizando-a pelo delírio de; perseguição
sistematizado e interpretativo, ao qual se juntam os
delírios de ciúmes, de erotomania e de grandeza. Lacan
retoma o conceito freudiano de paranóia e propõe que
seu mecanismo psíquico determinante é a forclusão do
Nome-do-Pai, sendo que o delírio é a tentativa de
suprir a carência da metáfora pal:erna.
Os desdobramentos da pa1�anóia são muitos,
especialmente pelas tensões paranóicas que emergem
na particularidade do cotidiano e nas relações formais,
na política, na economia, etc. Contudo, a paranóia se
especifica como uma estrutura subjetiva que se impõe
a um indivíduo e penetra na organização do laço
social. A história registra a presença de paranóicos
renomados, que deixaram legados que ainda hoje são
importantes. Cabe lembrar a pessoa de J.-J. Rousseau,
acometido por uma paranóia transparente, que o levou
ao emaranhado sem fim dos complôs e de onde
produziu uma obra insuperável, na qual propõe o
contrato social como forma de vida em comum. Quais
as conseqüências da introdução do contrato, em
substituição do pacto simbólico, como dispositivo
prevalente para mediar nossa relação com o outro?

t 10
Outro nome que queremos referir é o de Ludwig
II, rei da Baviera no século XIX. Lacan, ao fazer
.menção ao rei da Baviera, afirmou que se um homem
que se crê um rei é louco, um rei que se crê um rei não o
é menos. A paranóia desse rei, que se equilibrava por
meio de seu afã de construir e de sua paixão pela arte
de Wagner, deixando uma riqueza de inestimável
valor turístico em seus· criticados castelos,
empurrou-o para o afogamento, levando consigo seu
dedicado psiquiatra. Construir castelos ou escrever
incessantemente para se fazer reconhecer, são formas
de se curar a paranóia?
E os paranóicos criminosos, como as irmãs Papin
ou a Aimée de Lacan, encontram no crime um modo de
temperar seus delírios de', dano, de erotomania e de
persegu ição? Quais os: motivos de um crime
paranóico? Lacan nos dá boàs pistas sobre o surgimento
de injunções, quando o sujeito recebe a mensagem que
vem do Outro em uma forma mortífera, anunciando a
iminência de sua morte subjetiva. Freud também nos
· ensina que o paranóico está desti'tuído eia aúto­
recriminação e seu correlato que é a crença no outro.
No paranóico há uma retirada da crença no Outro, ou
seja, é alguém que descrê.
Melman enfrentou com coragem e continua
enfrentando o terna da paranóia. Ele introduziu uma
observação sobre o que acontece na relação com o
semelhante, quefacilíta:a emergência de uma situação
paranóica, ainda que transitória. É o que ele denomina
de mur mitoyen, a parede divisória, o muro que separa
meu mundo do mundo de meu vizinho. Basta esse
vizinho falar um pouco mais alto, fazer barulho, etc. e
eu me sentir excluído, começará a surgir um
sentimento de dano e de auto-referência: começo a ter
a certeza de que ele está fazendo isso de propósito para
me incomodar. A partir disso, localiza-se a "constante
paranóica", quer dizer, a dimensão da paranóia que é

11
própria de to.dos nós, seres humanos, o que permite
reler a noção de Lacan de conhecimento paranóico.
Enfim, Lacan sempre insistiu que a paranóia, assim
como outras manifestações psíquicas particulares, não
estavam desconectadas das tepsões sociais de uma dada
cultura.
Agradeço a todos que tornaram possível a
realização desse seminário, em especial às Instituições
apoiadoras, ao Instituto Humanitas Unisinos, ao Pós­
Graduação ·e m Filosofia da Unisinos, à COPESUL, à
Escola de Estudos Psicanalíticos, e, mais uma vez, ao
Dr. Charles Melman.

Mario Fleig

12
o que é a paranóia?

Um jovem e excelente jornalista perguntou-me:


mas o que é paranóia? Dizer o que é a paranóia em
uma frase. É preciso ser um pouco paranóico para
dizer o que é paranóia em uma frase, mas eu vou fazer
isso assim mesmo. A paranóia é a certeza para um
sujeito de ter o saber da verdade, da verdade absoluta.
E a prova é que essa verdade que o sujeito possui ela é
capaz de reparar tudo o que não vai bem na sociedade,
tudo o que não vai bem no casal; o que faz com que
!Setja· u1m; saber que se apresenta tlambêm corio
salvador. E isso já é lhes dizer duas coisas!
Primeiramente, porque esse desejo de
conhecer a verdade, de apreender a realidade das
causas, esse desejo está em cada um de nós. Quer
dizer que em cada um de nós há essa tentação
paranóica. Porta�to, a paranóia pode inicialmente nos
parecer não tão grande tohl6 d qbe afeta o alienado,
mas como a tentação permanente, de todo homem e
de toda mulher, de possuir o saber da verdade, colocar
a mão na verdadeira causa das coisas. Ao mesmo
tempo, nós compreendemos que a paranóia será
particularmente freqüente em todos os reformadores
sociais. Em todos aqueles que tentaram melhorar a vida
do casal, eni numerosos inventores, enfim, em
pessoas que estão animadas pela maior boa vontade.
Eu acredi to, portanto, que é preciso com eçar
por examinar o que eu chamarei de a paranóia da vida
cotidiana. Quer dizer que, queiramos ou não, quer isso
nos agrade ou não, nós vamos, uns e outros, encontrar
situações que nos aproxima.rãa da paranóia.
A primeira dessas situações foi descrita por
Lacan na sua tese de medicina, na qual ele mostrava
que o que ele chamou de "Estádio do Espelho", que
consistia no momento em que a criança de mais ou
m enos 1 8 meses, confrontad a · com o espel h o ,
reconhecia a forma que estava nesse espelho como
sendo a sua, ou seja, essa forma qUe reunia seus
membros até então separados. Essa criança dizia: "isso
sou eu". Quer dizer, a criança tinha identificado o
objeto que era ao mesmo tempo causa do desejo de
sua m ãe e com o qual devi a daí por diante se
identificar. E quando acontecia da criança bater em
um camarada, Lacan diz que era a si própria que a
criança queria bater neste camarada, na medida em que
esse eu, ou seja, essa imagem dele vinha aliená-la a si
rhesma. l Quer dizer, fazer enti"ar num sistbna que se
tornaria para ela constrangedor, pois agora era
obrigada a assumir essa identidade, essa imagem.
Dizendo de outra maneira, muito cedo, em um
movimento de formação de sua identidade, a criança
descobre, com essa imagem, o que será seu primeiro
objeto, o verdadeiro objeto, o verdadeiro objetd do
desejo de sua mãe, a verdadeira causa do desejo de
sua mãe.
Assim, muito cedo a criança é colocada em uma
posição a qual, podemos dizer, será a matriz de todas
as outras situações paranóicas, pois ela teve aí o
exemplo primordial da descoberta do que era para ela
o verdadeiro objeto, o verdadeiro objeto causa do
desejo de sua mãe e, como sabem todos aqueles que
praticam a psicologia, a criança será atingida no seu

14
amor narcísico e no seu sentimento de onipotência
quando descobrir que o verdadeiro objeto do desejo
da mãe não é forçosamente ela, a criança, mas que o
verdadeiro objeto de desejo da mãe deve ser
procurado do lado do pai. Sabemos de que maneira
isso se constitui em um traumatismo para a criança,
um traumatismo que faz o bebê cair da posição de sua
majestade ao descobrir que o que acreditava ser o
verdadeiro objeto, quer dizer, essa imagem dele
mesmo, não era isso. E com esse "não é isso, não é
isso que eu acreditava, não é isso que eu imaginava"
está aí a entrada na sabedoria e ria humanidade. Com
efeito, somos todos condenados, a vida inteira, a viver
esse "não é isso". "Ainda não é isso! Nunca é isso! Eu
faço tanto esforço para poder realizar tudo segundo
um ideal. Eu faço tanto esforço para poder satisfazer
meus apetites e meus desejos. Eu faço tanto esforço
para satisfazer o supereu: Faço tanto esforço para
satisfazer a Deus. Mas permaneço um culpado,
permaneço üm pecador. " Só o , paranóicá p'a ra
acreditar que ele escapa desse destino!
Vocês podem ver que nessa lembrança, que eu
chamaria de elementar, nós já temos toda uma ética
que daí emana. Teremos a oportunidade de voltar a
abordar isso novamente, mas já que referi que
começaria por falar da paranóia na vida cotidiana, vou
começar por oferecer-lhes outros exemplos que podem
nos instruir sobre esse assunto.

A paranói a na vi da cot i di ana


Exemplos muitos simples:
Digamos que vocês morem em um quarto, e,
do outro lado, em outro quarto, há vizinhos. Não há
nada de extraordinário nisso, mas eles fazem barulho.
Eles falam. Isso não tem nada de extraordinário, eles

15
têm de falar; mesmo. 'Mas do quarto vocês podein
ouvir esse barulho e, aliás, não compreendem muito
bem o que eles dizem e não podem fazer parar esse
barulho. Vocês batem na porta dos vizinhos e dizem:
"Sejam gentis, façam um p9uco menos de barulho,
porque isso me incomoda e eu'não posso trabalhar no
meu quarto". Mas eles, os vizinhos, eles são muito
gentis, mas não conseguem saber de que maneira a
fala deles pode incomodá-los no seu quarto, então eles
conti nuam . E quando vocês lerem o jornal
encontrarão na coluna que se chama "Fatos diversos",
uma nota sobre um homem que pegou seu fuzil, foi na
casa do v i z i nho e o mawu . Será que ele era
paranóico? Não forçosamente, mas é a situação que o
tornou paranóico e eu lhes dou esse exemplo porque
veremos mais tarde que há condições estruturais
muito interessantes e que dizem respei to, em
particular, a uma noção que nos parece simples, mas
que na realidade é complexa, que diz respeito à nossa
relação com a fronteira, ao que seja uma fronteira.
Porque espontaneamente somos levaâos a pensar,
mesmo sendo normais, que do outro lado da fronteira
pode haver uma ameaça.
Vou lhes dar um outro exemplo: vocês sobem
em um vagão de trem, e todas as pessoas que estão ali
falam uma l íngua incompreensível, são estrangeiros.
Vocês estão seriltadds ali nols próprios lugares, e essas
pessoas muito simpáticas falam uma língua que vocês
não compreendem. Quer d izer que logo vocês se
sentem excluídos dessa pequena comunidade. E, além
disso, essas pessoas são alegres e se põem a rir entre
si, falando. E vocês têm uma impressão esquisita. De
onde vem essa impressão? Vocês têm a impressão de
que elas riem de vocês, e até mesmo a impressão de
que elas falam entre si, mas olhando para vocês.
Temos aí um tipo de situação banal, mas que nos

16
introduz igualmente na 1 qüeS:tã0 da paranóia porque
mostra como as reações paranóicas - quer dizer, o
sentimento de estar excluído, de ser observado, de que
há pessoas que riem de vocês - podem ser facilmente
provocadas pelas circunstâncias. E esse mesmo
exemplo também nos introduzirá mais tarde n a
estrutura da paranóia.
Tomemos um outro exemplo. Eu sei que vocês
vão ficar com um pouco de raiva de mim por dar esse
exemplo. Eu gostaria muito de poder evitá-lo, mas já
que eu fiz tantos quilômetros para vir até vocês é
preciso que eu corra alguns riscos e que vocês
também corram esses riscos. Então, vou assim mesmo
tentar. E perdoem-me de antemão, se isso vier a
ofender um pouco. Não é .de forma alguma minha
intenção. Não procuro me fazer excluído por vocês,
ao contrário, procuro antes rne fazer admitir. E vocês
verão que isso também traz problemas. Teremos
ocasião de abordar isso. Então, qual é este exemplo?
Eu encontro aquela ou aquele que eu sei que é o meu
;amot, ti ã� é qualquer amor, meu verdad�ircl> ambrl
Tenho muita sorte. Enfim eu o encontrei! É o ·amor
com que eu sempre sonhei, que eu sempre esperei. E
eis aí! É ele! É isso ! É isso e ninguém mais. E se esse
amor não aceita compreender que ele é meu, que é
meu verdadeiro amor, que ele não tem o direito de se
recu sar, eu me coloco a persegui-l o e eu sou
perseguido por de ie , i córrio ;sabem, esse tipo de
situação pode até levar ao crime. E isso também está
nos "Fatos diversos" ' . Vocês vêem o que pode se
passar com um dentre nós a partir do momento que ele
acredita ter encontrado seu verdadeiro objeto.

Paixão e pe rseguição : o caso Aimée


O que há na tese de Lacan sobre o caso Aimée2 ?
Essa mulher tinha encontrado, na pessoa de uma

17
estrela de teatro, seu eu ideal, quer dizer, a imagem
ideal de si mesma. Essa estrela, essa imagem era a sua,
ela lhe pertencia e então esperava da estrela que
reconhecesse essa reciprocidade, esse amor de uma
pela outra. E se alguém aqui conhece estrelas de
espetáculos, pode saber coin,,q ue freqüência essas
estrelas são regularmente objeto de apaixonados ou
apaixonadas que se tornam verdadeiros perseguidores
e que podem tornar-se ameaçadores e criminosos.
Portanto, o caso Aimée conta a história dessa mulher
que perseguira, com seu amor, essa estrela, e que
chegou até mesmo a atirar nela com urnrevólver, até o
momento em que foi detida.
E, com essa questão apaixonante podemos
perguntar: por que será que, a partir do momento em
que ela foi detida, seu delírio caiu?

como é que se cura uma paranóia?


É urna questão formidável, e é por isso que, no
momento em que o jornalista me perguntou ''Mas corno
é que se cura uma paranóia?", eu tive essa resposta
que evidentemente não pode ser satisfatória: eu disse
que o paranóico sempre procura ser batido, receber
golpes, quer dizer, ser parado. Isso quer dizer que o
paranóico funciona num sistema em que não há mais
limite. Com efeito, por ocasião desse episódio, ele
descobre qüe !há utn limite forçado. Stop ! E podemos
verificar que essas são situações que fazem cair o
delírio paranóico.

Paranói a de autopuni ção


Lacan denominou esse caso delírio de
autopunição", ou, dizendo de outra maneira, Airnée
procurou fazer-se punir, quer dizer, ela se deteve. Eu
assistia com freqüência as apresentações de pacientes

18
feitas por Lacan e, como todos sabem, havia ali uma
dúzia de alunos, e assistíamos à maneira como Lacan
ex;iminava o paciente. Ele fazia isso toda semana e
freqüentemente, como ele considerava que não tinha
ido até o fim, nos dizia que domingo de manhã, no
momento que se esperava descansar um pouco, era
preciso retornar para ver o paciente. Ele era o tempo
todo assim, "em cima do lance, sem poupar seu
trabalho nem o de seus alunos. Por ocasião dessas
apresentações, eu o assisti seguidamente procurando
no paciente uma paranóia de autopun ição. E u
examinei com ele dezenas e dezenas de pacientes e
jamais encontrei sequer uma paranóia de autopunição.
Então, por uma necessidade intelectual, fui obrigado a
perceber que não tínhamos :.muitas oportunidades de
encontrar uma paranóia ;de autopun ição até o
momento em que eu mesmo ;compreendi que todas as
paranóias terminam pelo êxito da autopuníção.
Discuti igualmente com os jornalistas a respeito
desses j ovens que, nos campus uni versi tários
americanos, chegam com armas e matarri os colegas.
1

Como é que termina isso? Sempre pela procura de se


fazer matar e, se a polícia não consegue, ele mesmo se
mata. Eu acredito que temos nesses exemplos uma
ilustração do que é a paranóia de autopunição.

Del i rio a dois : ifmãs Papin ou entre mãe e


fil ho
Há também, no trabalho de Lacan, o caso que
ele estudou e que foi muito conhecido da imprensa na
época, o caso das irmãs Papin, duas im1ãs que eram
empregas domésticas e que terminaram matando
cruelmente suas patroas. No caso das irmãs Papin,
vemos bem o fato de que uma das irmãs estava, em
relação à outra, em uma posição de espelho, quer

19
dizer, em uma pos.iç:!io em que uma das irmãs em
relação à outra vinha regularmente confirmá-la no que
a outra pensava.
Tentemos imaginar esse tipo de relação em que
o parceiro, sem cessar, confin:na o que posso dizer, e
eu mesmo confirmo o que e-l e possa dizer. Em
psiquiatria isso se constitui no que se chama o delírio
a dois, e que podemos encontrar entre uma mãe e seu
filho, por exemplo. Isso quer dizer que, pelo fato da
resposta, ou seja, da resposta sempre perfeita que o
outro lhe dá, cada um tem o sentimento da
confirmação de que juntos eles possuem a verdade. A
partir desse momento, toda intervenção que é feita é
causa de um traumatismo insuportável, e é assim que,
no caso Papin, a patroa tornou-se o perseguidor e as
irmãs não encontraram outro meio senão eliminá-la.

o complexo de Édipo - um corte decisivo no


apetite pela paranóia
Eis aí, se quiserem, alguns exemplos que dão
conta disto que Lacan chama de dimensão do
imaginário e que mostram de que maneira o que pode
haver de melhor em nós mesmos é suscetível de
encontrar o pior. Apresentando as coisas dessa forma,
vocês podem apreender de que maneira isto que Freud
chamou de Édipo é suscetível de introduzir, nesse
apetite pela paranóia, um corte decisivo. Um corte
decisivo porque o complexo de Édipo introduz não
mais a reversibilidade sempre possível dos lugares, mas
a heterogeneidade das posições.E, a partir do momento
em que a posição que se ocupa em relação ao outrem
são posições fundadas pela heterogeneidade, a partir
desse momento sou obrigado a aceitar que jamais
encontrarei em outrem a resposta perfeita às minhas
exigências, e que há na minha relação com aqueles

20
que eu amo um corte que faz com que, mesmo que nos
amemos muito, terminamos, entretanto, separados, e
como vocês sabem, esse é um dos elementos de nossa
condição.

Nossa vul ne rabi l i dade à paranói a - nossa


re 1 ação com o saber e a ci ênci a - da máqui na
ao p rotocol o médi co
Há outros exemplos, para os quais quero
chamar a atenção e que são suscetíveis de mostrar nossa
vulnerabilidade à paranóia. Trata-se de nossa relação
com o saber. O saber, ou seja, aquilo que querem me
ensinar, vem forçosamente perturbar o que é meu
saber pessoal. E por que me� saber pessoal não seria
suficiente para me conduzir na vida e me permitir
julgar? Há em nossa sociedade, como vocês sabem,
pessoas que não freqüentaram a escola e que, no
entanto, sabem muito bem se conduzir na vida, e
mesmo ter êxito na vida, e, às vezes, tornarem-se
muito ricas e poderosas. Ao mesmo tempo, há pessoas
que são muito doutas, mas isso não as impede de ter
êxito. Então, por que a aquisição de um saber pode me
colocar em uma posição de retirada, com uma
vontade de me excluir, com uma vontade de fazer com
que isso não me toque, que eu possa de uma certa
maneira adquirir esse saber para responder às provas,
aos exames, mas sem que isso me diga respeito? E eu
evoco esse ponto porque isso se tomou, em nossa
época, que é a época da ciência, uma relação muito
freqüente com os saberes. Ou, dizendo de outra
maneira, posso muito bem viver esses saberes como
uma intrusão, como algo que vem me perturbar em
. minha subjetividade e vivenciar esses saberes como
estando marcad os por uma estranheza, e que ,
portanto, não querem o meu bem; e o problema hoje

21
do saber, uma vez que ele se tornou científico: é que,
com efeito, "ele não quer o meu bem".
A ciência, é admirável - e quanto a isso só
podemos desejar seu progresso-, mas a ciência não se
ocupa da minha subjetividade" de preferência, ela
procura anulá-la. Enquanto subjetividade, eu perturbo
a ciência. Como se reconhece que um texto é
científico? É que ele exclui toda subjetividade do seu
autor, autor do texto, e também toda a subjetividade
do destinatário. E estou, portanto, confrontado com o
saber que como sujeito me forclui.
Hoje, a vida de nossos técnicos e de nossos
c ientistas se desenvolve com 'a seguinte divisão:
durante seu trabalho, eles estão ocupados com
máquinas, computadores, e o que importa é o
rendimento. Mas, como sujeitos, eles não têm nada a
ver com essas manipulações, quer dizer, eles também
têm de se comportar como a máquinas. Depois eles
chegam em casa e se põem diante da internet e ali
começam a dizer qualquer coisa, com qualquer um,
quer dizer, manifestam o tipo de subjetividade que foi
forcluída na sua atividade profissional.
Não sei como é que se passa aqui, mas no meu
país se exige atualmente do médico que ele aplique ao
seu paciente um protocolo de conduta, quer dizer,
excluindo toda dimensão subjetiva, quer seja a do
médico ou a do paciente. Não sei como acontece aqui,
mas no meu país, quando um residente de psiquiatria
examina um paciente, ele tem um certo número de
questões a fazer ao paciente, que constam em um
impresso, e, a cada vez, ele deve obrigatoriamente
marcar uma cruz diante da questão colocada ao
paciente. E se o paciente quer se pôr a falar, se o
paciente quer dizer outra coisa que não esteja nessas
questões: "não, de jeito ne nhum, i sso não me
interessa, o se nhor tem de respo nder ao meu
tti,,.,
22
questionário". É a partir desse questionário que
podemos colocar em um computador, que temos o
diagnóstico e igualmente o tratamento. Quer dizer, nós
assistimos à maneira como atualmente a ciência
procede, de modo que ela é perseguida pela minha
subjetividade porque quebra a científicidade. Ao
mes m o tem po, eu mesmo , como sujeito, sou
perseguido pela ciência, pois ela não me reconhece
como sujeito, ela me reconhece tão-somente como
indivíduo.

o caráter paranóico , o ponto fixo e as leis


da linguagem
Vemos, portanto, de que maneira o que pode
se apresentar como isolamento do ponto fixo, que me
permite dizer "é isso, eis aí a ciausa", ou, então, "eis aí
o autor de meus males , de todos os m ales",
desencadeia um conjunto de reações que devemos
dizer paranóicas, pela seguinte razão: a propriedade
da linguagem é a de organizar um movimento que
sempre é justamente instalado pela falta, pela perda
do que causou esse movimento, o que faz com que o
próprio da linguagem seja nos introduzir na dimensão
do equívoco e da incerteza do sentido.
Quando Descartes diz que eu posso duvidar do
mundo inteiro, e que é mesmo meu dever duvidar de
toda percepção e de todo saber, ele lembra o que são
as leis da linguagem. Em contrapartida, quanto_ ele
acrescenta que aquilo de que eu não posso duvidar é
que, como sujeito, eu existo, ele introduz no sistema
um ponto fixo que estará na origem do que é preciso
chamar de o caráter paranóico, que tomou nossa
subjetividade no m undo científico. Porque os
cien tistas também dizem que seu saber n ão é
forçosamente o verdadeiro. Vocês sabem que, depois

23
de Karl Popper, o saber científico não é mais que um
modelo. Dizendo de outra maneira, eu nunca estou
certo, mas como cientista eu não posso negar que eu
existo, quer dizer, ele retoma o modelo cartesiano, mas
isso quer dizer que vivemos 'agora, atualmente, cada
um de nós, com esse ponto fixo que constitui a própria
subjetividade, esse ponto fi xo que é igualmente
originário do próprio orgulho, o que Lacan em sua tese
chamava de a personalidade; minha personalidade é
esse ponto fixo.

o que torna as amizades tão difíceis?


Como vocês sabem, nossas relações sociais se
chocam no confronto dessas subjetividades, ou seja,
essa espécie de defesa que cada um de nós coloca
espontaneamente para defender esse ponto fixo, e que,
desde então, eu percebo facilmente como uma ameaça
àquele que tem uma proposta que perturbe o que em
mim é essa estranha certeza.
Por experiência própria vocês sabem que
discutir com um amigo pode ser i nteressante.
Eventualmente, vocês podem continuar amigos, mas
também podem brigar facilmente, contrariar um ao
outro, porque o que o seu amigo lhe disse, sem saber
que tocari a nesse ponto fixo, coloca-o em causa,
questiona-o.
A seguir, eu espero não ser muito duro naquilo
que conto; se eu for muito duro me digam para parar, e
eu recomeçarei mais suavemente.
Nós sabemos que, em uma discussão, jamais
podemos convencer quem quer que seja, mesmo que
se tenha razão, ou que se acredite ter razão. Será que
entre vocês há alguém que já conseguiu convencer um
dos seus amigos? Já houve alguém entre vocês, se há
um que me preste o serviço de di zer "sim , eu

24
consegui ! ". Vocês vêem que, se há em cada um de nós
essa dimensão paranóica própria do imaginário, quer
dizer, do eu (mo i), dessa imagem no espelho, há
também essa dimensão que é preciso chamar real, quer
dizer, essa de minha subjetividade, fundadora de
minha identidade. E quem tem vontade de renunciar à
sua i dentid ade? Quem de nós não é levado a
protegê-la, a defendê-la, a justificá-la? É o que torna
as amizades tão difíceis e o que faz com que tão
faci lmente, sem sabermos o porquê, possam se
transformar em inimizades.
Eu vou parar aqui para deixar-lhes o tempo de
respirar um pouco. Mas então, o que podemos fazer?
O que a psicanálise pode fazer po::- isso? Ela pode nos
ensinar, pode nos ensinar a viver uma outra relação
com nossa subjetividade, �ma relação que seria
menos paranóica. Da mesma ·maneira que ela poderia
nos ensinar a viver uma relação menos paranóica com
a imagem que temos de nós mesmos. Em todo caso, é
preciso almejar, esperar que a psicanálise seja capaz
de fazê-lo.
Podem notar que eu comecei sem tornar as
coisas fáceis, nem forçosamente agradáveis, mas isso
talvez seja incontornável. Se eu tivesse encontrado um
meio melhor para começar, procurando t alvez
seduzi - l os um pouco mais, eu talvez ti vesse
procurado outra maneira de fazê-lo. Mas eu tentei
falar-lhes, embora muitos sejam bem jovens - o que é
muito simpático -, eu tentei falar para vocês como eu
gostaria que falassem para mim mesmo. Como eu
gostaria que me ensinassem, quer dizer, que eu não
precise passar toda uma vida para fazer a experiência
disso tudo. E para terminar por reconhecer que o que
eu exponho é evidentemente o fruto de um certo
percurso. Portanto sai bam que compreenderei
perfeitamente, e aceitarei perfeitamente que o que eu

25
falo lhes pareça difícil, e difícil de aceitar, mas, como
teremos a oportunidade de discutir, e eu também terei
a oportunidade de responder a um certo número de
questões muito interessantes que me foram feitas,
ontem3 , vocês poderão tranqüilamente me dizer o que
pensam de tudo isso, e estejam certos de que tudo o
que venham a me dizer, tudo o que possam objetar,
será para mim um enriquecimento.
Res pondendo perguntas : a questão dos impostos, a
relação do paranóico com o falo, o paranóico e a
sociedade, questão das internações.
Pergunta - Eu fiz uma ponte com o meu trabalho
[campo tributário] . Aqui no Brasil só encontramos
situações surreais em relação à questão dos impostos.
E pelo que o senhor relatou, mesmo nesses 1 1 2 anos
de psicanálise, parece que de alguma forma há algo
que se refere à submissão do sujeito. Ou seja, nós só
estamos desaparecendo. Eu não sei qual seria o
melhor termo a empregar, mas tanto na França
quanto aqu i há algo de mu ito su rreal. O que a
psicanáli se pode fazer em relação a esse
enfrentamento?
P e r gunta - A partir das indicações que o senhor
trouxe sobre a paranóia de autopunição, eu fiz uma
articulação com o que o senhor também apresentou no
que se refere ao Édipo, que existiria ali alguma coisa
que, por introduzir uma dessimetría, retiraria o sujeito
da paranóia. Eu fiquei me perguntando, e não sei se
isso não será um pouco de especulação: qual seria a
relação do paranóico com o falo? Porque me pareceu
que é uma relação sempre um tanto paradoxal, no
sentido de que, nessas duas indicações, existiria
alguma coisa na autopunição como quase que um
pedido de uma intervenção a partir desse operador; e
quando o senhor coloca a questão do Édipo, me

t 26
parece se introduzir nessa lógica algo que retira o
sujeito de um funcionamento paranóico, mas, ao
mesmo tempo, o paranóico parece que está sempre em
uma recusa, tomando as i nsígnias fálicas como
perigosas, algo que tem de ser combatido. Essa parece
uma relação muito paradoxal. O senhor também
coloca, em um de seus textos, que o paranóico estaria
ali ocupando a função do falo. Ele é o falo. E ao
mesmo tempo me parece muito problemático o fato
de que ele se ressente, são problemas advindos dessa
lógica.
Pe rgunt a - O senhor colocou que o paranóico busca
ser detido. Eu trabalho em um hospital psiquiátrico e,
pensando n essas instituiçõ�s como ú l timo limite
como vislumbrar a possibilidade de retorno desses
pacientes à sociedade, visto que talvez, em sociedade,
esse limite buscado seja o corpo do outro. É possível
alguma intervenção terceira que não seja da ordem do
insuportável e que, dessa forma, não termine · em
violt�ncia·ou internação?
eh . Me lman - Obrigado pelas suas questões. Tanto
mais que elas antecipam de uma certa maneira o que
eu penso desenvolver a seguir; então elas mostram um
interesse muito bem fundamentado nisso que eu
abordei.
Sobre a questão dos impostos. Evidentemente
eu não conheço o caráter específico dos impostos aqui
no Brasil. Então, eu não posso falar do ponto de vista
do que lhes concerne aqui. Primeiramente, é claro que
o imposto, por definição, se dirige ao inàivíduo e não
ao suj eito. Ou, dizendo de outra maneira, as
considerações subjetivas não são aquilo que aquele que
prescreve o imposto possa levar em emita. O imposto
supõe que o que eu posso pensar dele, o que eu posso
vivenciar dele, não tem de intervir em sua fixação e

27
em seu arrecadamento. Eu me permito dizer, mas é a par­
tir da minha ignorância da situação, que eu não
conheço em lugar nenhum a preocupação do fiscal pelo
que se refi ra à subjetividade do contribuinte. Em
troca, o que talvez seja observado no assunto que nos
concerne hoje, é que o paranóico recusa todo imposto.
Ele considera que é uma injustiça feita a ele, mas eu
desenvolverei esse tema mais tarde. Ele se apresenta
facilmente como aquele a quem se deve pagar um
imposto. E como nós sabemos, ele facilmente tem
reivindicações para obter pensão, i ndenizações,
direitos diversos, o que o coloca na posição do coletor
de impostos certamente indife1"ente à situação real dos
contribuintes aos quais eles se endereça. É o que
chamamos, na psiquiatria clássica, de o delírio de
reivindicação.
Conheci, em um hospital, um paranóico que
foi hospitalizado por ter enviado cartas ameaçando
autoridades, exigindo pensões e que a coletividade lhe
pagasse um imposto. Eu me interessei por esse
homem, me perguntando de que maneira entrevistas
regulares poderiam talvez fazê-lo melhorar; eu era
jovem e eu tinha o direito de ter esperanças juvenis. Então,
eu chegava muito cedo de manhã no serviço, ainda era
noite, para ter tempo de conversar com ele e ver se eu
conseguia fazê-lo mudar de posição, pois ele tinha sido
internado ele maneira autoritária porque era uma
ameaça para a autoridade pública. Portanto, eu o ouvi
regularmente toda semana e obtive um resultado,
formidável : consegui transformar seu delírio de
reivindicação em um delírio de ciúmes. Não era mais o
delegado que era responsável por seus males, mas ele
tinha compreendido, graças a nossas conversas, que
era a mulher dele que o enganava. Então, como é que
isso se produziu? Tentei compreender; de uma certa
maneira, é o mesmo procedimento que ocorreu com o

28
presidente Schreber, era um efeito da transferência,
quer dizer, na transferência ele se sentiu corno
feminilizado. A partir desse momento, é a imagem de
sua mulher, à medida que ela não vinha garantir sua
virilidade integral, que se tornava a culpada, a imago
feminina, inclusive a sua própria, que se tornava a
culpada.
Em todo caso, afora toda a sua consideração
social, o fiscal conhece bem esse tipo de contribuinte
para quem pagar o imposto tem uma dimensão
inconcebível. Isso não quer dizer que eles possam ou
que eles não possam, isso não quer dizer que a
exigência é excessiva, mas é a dimensão que não é
possível. Ele não deve nada a ninguém, mas, em troca
é a ele que se deve tudo. Então, me perdoe se não
respondi de maneira exata à sua preocupação, mas eu
direi, de minha posição e ina ignorância sobre a
maneira como a questão dos impostos se coloca no
seu país, ainda não tenho os meios de responder
melhor.
A segunda questão também é uma quesUío
muito profissional, mas dessa vez de um profissional
da psicanálise. E é uma questão que trata da relação
do paranóico com o falo, questão muito importante e
que antecipa o que vou falar, o que vou esclarecer, para
justificá-lo. Mas talvez lhes dê um exemplo que foi
inventado por uma mulher. Uma mulher jovem bela e
atraente sai de sua casa, e o porteiro do imóvel a olha
com um olhar muito amigável e simpático. Ela
passeia pela rua e vê que os homens a olham muito
simpáticos, muito interessados, e, mesmo que haja
alguns homens em grupo, eles parecem falar dela
entre si quando ela passa. Eis então que essa jovem,
essa mulher, se considera o objeto .do desejo do
público, inclusive de algumas mulheres que a olham
com um olhar ao mesmo tempo crítico e, de qualquer

29
fonna, interessado, e que vê que os homens ao seu redor
p arecem falar dela. Em que lugar ela se
encontra? Ela se encontra manifestamente no lugar da
instância causa do desejo, quer dizer, ela se acha
involuntariamente no lugar 10 falo. Em geral, ela está
habituada a essa situação, e' ,com isso não se torna
obrigatoriamente perseguida, mas, em outros casos,
isso acontece. Ela está um pouco saturada dessa
grosseria permanente. E ela pode se sentir orgulhosa
da situação que provoca, mas também pode estar de
saco cheio.
Eu lhes conto essa historinha banal para
torná-los sensíveis ao fato· de que podemos ser
levados a ocupar involuntariamente o lugar do falo, e
que isso pode provocar reações de tipo paranóico. Mas
eu reitero que o exemplo que eu lhes dou aqui é
apenàs uma pequena introdução à questão. Será que
se contentam por enquanto?
Quanto à terceira questão, infelizmente, não
temos remédios milagrosos, pois se existisse um os
laboratórios teriam inventado há muito tempo. Mas,
apesar desses grandes tipos de ações pelo mercado
pub l i c i t ário , eles ainda não encon traram um
medicamento contra a paranóia. E, como eu contei há
pouco, a relação ps icoterápica expõe, com a
transferência, a um risco. As conseqüências às vezes
podem ser desagradáveis para o terapeuta, o que faz
com que não tenhamos, infelizmente, solução padrão,
e que não tenhamos protocolo de boa conduta. Mas
podemos somente vislumbrar o fato de que, quando
um paranóico continua tomado pela sua loucura, mas
que não constitui mais ameaça para outrem, nem para
ele mesmo, podemos considerar que, a partir desse
momento, ele tenha o direito de delirar, se pensamos
que ele é inofensivo. Não acredito que até o momento
possamos fazer muito mais por ele. Vocês sabem que

30
na cidade há pessoas que raciocinam, que funcionam
como paranóicos, mas que permanecem tranqüilas, e
não vemos razão para não respeitar seus modos de
raciocinar, a partir do momento em que n ão haj a
p assagem a o ato . E u gostaria d e p ropor uma
terapêutica melhor, e, se alguém tem uma melhor, eu
gostaria de conhecê-la.

1
O autor faz novamente referência a uma seção de jornal .
N. R. T.
2
O caso Aimée encontra-se em Da psicose paranóica em suas
relações com a personalidade. N.R.T.
3
O autor refere-se ao encontro com psicanalistas, na véspera do
seminário, em Porto Alegre, no qual lhe foram levantadas
questões a respeito da paranóia. N.R.T.

31
crime e casti go
Suponhamos que eu seja mesmo o culpado de
um crime é, ao mesmo tempo, vou me sentir excluído
da comunidade e interpretar as pàlavras e os olhares
como se evocassem meu ·crime. Por exemplo, para
remeter ao que Dostoievski descreve admiravelmente
sobre essa questão, vejam cpmo é estranho que, por
ter rompido o pacto socia,I , eu tenha, ao mesmo
tempo, esse sentimento de exclusão da sociedade e o
de que todo mundo sabe de meu crime e me designa
como suspeito.
A esse respeito é interessante observar que não
é necessário que eu tenha realmente cometido um
crime para me sentir culpado de um assassinato e para
que, ao mesmo tempo, eu me sinta excluído da
sociedade. Vocês sabem que, na neurose obsessiva, o
neurótico vive como autor de um crime do qual ele
não sabe como pôde cometer, um crime que ele
cometeu sem saber, mas que igualmente o exclui da
sociedade. É muito comum que, em certas formas de
neurose obsessiva, o paciente seja obrigado, quando
está de carro, a voltar atrás para verificar se não há um
cruzamento, e se no cruzamento ele não atropelou, ele
não matou alguém. Isso tem seu interesse por nos
lembrar que uma comunidade social se organiza em
torno do que Freud chamou de 6-assassinato do pai, e
que os membros dessa comunidade social caiTegam,
· regularmente, essa culpabilidade. O neurótico
obsessivo é o exemplo mais manifesto disso. Mas não
é ele o nosso assunto hoje.

Amo r n ão co r r e s pondi do , s e nt i me n t o d e
excl usão e excl ui r a s f··mesmo
Posso também experimentar, em um elã
transferencial, um amor que, se não é correspondido,
me dá o sentimento de ser excluído. Devo dizer-lhes
que, na relação dos alunos de Lacan com sua pessoa,
há muitas manifestações que vêm a se inscrever nesse
sentimento de ser mal amado e, portanto, de estar
excluído e, então, de excluir a si mesmo. Observem
que, em todos esses casos, isso supõe que há no real
uma instância, a instância Uma, urna instância
p aterna, e basta que essa instância se torne,
justamente, demasiado real, quer dizer, que ela seja
demasiadamente manifesta para suscitar reações de tipo
paranóico. Eis aí uma maneira de retomar esse outro
fenômeno de exclusão que eu evocava a propósito do
que se passa quando do outro lado do muro os
vizinhos falam sem que eu possa desligar o rádio e me
provoca esse sentimento de estar excluído, e vale
igualmente para o exemplo que eu inventei a respeito
do vagão de trem. Tais exemplos servem para dizer
que pode acontecer que um sujeito se encontre em
posição de exclusão.

o l ugar do fundado r e a di sti n ção ent re


povo e nação
Esse não é um lugar qualquer, porque é o lugar
que justamente Freud distinguiu como sendo o do pai
mo1to. Ele mesmo supôs que Moisés fora assassinado
pelo seu povo de maneira que ele não teve como
entrar no território, que ele, o fundador, havia sido

34
excluído, e que essa exclusão é o lugar fundador. É por
isso que, quando me chamam de fundador da
Association lacanienne internationale, isso me dá
sempre um pouco de medo. Então, eu me agarro, para
que não me excluam demais. Esse lugar da exclusão
também é o mesmo que Lacan individualizou como
sendo o que ele chama de ao-menos-um, que tem urna
definição lógica. Isso quer dizer que em todo sistema
formal há ao menos um lugar que esse sistema não pode
absorver, nem resolver, o que o teorema de Gõdel
formula de outra maneira, dizendo que em todo
sistema formal há ao menos uma questão que pertence
a esse sistema e ao qual . o dito sistema não pode
responder. Dizendo de outra forma, toda comunidade
é organizada pelo ao-merios-um fundador que ela
exclui. 1

Tive há muito tempo com o Padre Michel de


Certeau uma discussão para saber qual a diferença entre
um povo e uma nação. A questão que o Padre Michel
de Certeau me colocava sobre a diferença entre um
povo e uma nação é de que a resposta não está em
lugar nenhum salvo entre os psicanalistas. Uma nação
é sempre organizada em torno de um h ipotético
ancestral morto que, eventualmente, os próprios
membros dessa nação mataram; eles mesmos. E,
quando uma comunidade, por determinadas razões
históricas, não tem ancestral comum, ela faz muito
esforço para construir um para si, e, graças a essa
construção, afirmar a identidade. Da mesma maneira,
pode haver em um povo uma vontade de combater e
de morrer, de derramar seu sangue para se constituir
em nação, quer dizer, ter um ancestral comum.
Na história, para aqueles que conhecem a
história da França, o povo francês se constituiu em
nação, primeiramente, com o assassinato de seu rei e
depois por ter se organizado sob a forma de um

35
exército de c ombatentes, do qual foram mortos
milhões, com os exércitos de Napoleão, para afirmar a
existência da nação.

o paranói co e o lugar �o autodidata


Quando Lacan fundou,)ua École, ele desejou
que seus membros se organizassem para trabalhar em
pequenos grupos de pelo menos quatro mais um, e todo
mundo se perguntou: o que é esse mais um? Para que
serve? Qual é sua tarefa, seu trabalho? Será que esse
um a mais deve ser o que sabe mais? O mestre do
pequeno grupo? O que deve �istingui-lo dos outros
membros disso que ele chamou de cartel? Com efeito,
podemos responder que esse um a mais estava lá para
lembrar que em toda troca de saber é preciso levar em
conta o fato de que esse saber não é fechado, mas que
é aberto e que implica uma exclusão, que há ao menos
uma questão que esse trabalho não poderá responder.
Vocês vêem que é uma maneira de tentar prevenir o
que poderia ser a segurança narcísica que poderiam
adquirir os membros do grupo entre si e com a idéia,
que é um narcisismo fácil de partilhar, de que
compreendemos tudo. Eu posso lhes dizer que, no
grupo que nós fo rmamos na França, meu papel é
justamente funcionar como o um a mais, quer dizer
aquele que vem para perturbar a certeza do saber e
lembrar que todo sistema formal, e a própri a
linguagem, que é em si mesma um sistema formal cujos
fo nemas constituem os elementos, não nos permitem
realizar o anseio de Hegel: o do saber absoluto. O
problema é que aquele que se acha em posição de
exclusão, em posição de ao-menos-um, primeiro
escapa à castração, porque está excluído do sistema,
quer dizer que, de uma certa maneira, ele já está
mortificado. Mas, ao mesmo tempo, se ele escapa à

36
castração, a mensagem que lhe vem , pelo fato de
ocupar esse lugar, é a de que ele sabe tudo.
O problema do paranóico é que, ao vir se
constituir nesse lugar de exclusão, por um certo
número de razões sobre as quais nós voltaremos a
falar, ele se acha colocado no lugar, primeiramente,
onde ele é único, e que não há outro como ele. Ele,
então, é verdadeiramente monoteísta, há apenas ele.
Segundo, ele está no lugar de que sabe tudo . Eu
chamo a atenção de vocês para esse fato, porque
temos de nos colocar a seguinte questão: o paranóico
não é de forma alguma alucinado. Então, de onde é
que ele recebe sua própria mensagem? Quem é seu
Outro? Cada um de nós recebe a própria mensagem
de um lugar Outro. A criança a recebe de sua mãe, em
seguida receberá eventualmente do pai e receberá
também do meio social, mas 'e o paranóico? Ele que é
único, forçosamente pelo lugar que ocupa, então, de
onde ele recebe sua mensagem? Ele recebe sua
mensagem de si mesmo, quer dizer, fundamental­
mente, é um autodidata. Espero não estar ofendendo
ninguém. Acontece que eu tenho muito respeito pelos
autodidatas, conheci alguns, pessoas estimáveis, que
funcionavam numa desconfiança em relação aos
saberes que nós poderíamos lhes comunicar.
Tomem por exemplo o domínio da psicaná­
lise. Vocês assistem facilmente a esse fenômeno em
relação àquele que está em formação psicanalítica
quando diz: "quanto à teoria, nada tenho a fazer com
isso, porque eu tenho em mim o saber que basta
perfeitamente para regular minha conduta". E posso
mesmo dizer, sem com isso perturbar a memória
daquela que foi minha amiga e a quem eu admiro
muito, que é Françoise Dolto, que ela encorajava seus
discípulos a renunciar à teoria. Ela dizia que são os
rapazinhos de calça curta que se divertem com a

37
teoria, mas vocês têm em seu inconsciente seu próprio
saber e não precisam se deixar captar por essas teorias
que não sabem bem a quem servem, porque o saber de·
vocês é um saber prático, enquanto que um saber
teórico serve , sobretudo,_ para fazer suce sso,
para tentar brilhar diante do·s camaradas, mas, na
prática, para que a teoria lhes serve?
Observem algo admirável! Na formação das
religiões, ou _antes, eu diria, das con-entes religiosas, vocês
encontrarão o mesmo problema e podem
constatar -e eu peço para acreditarem em mim sem
nenhum partidarismo, porque, no que·me concerne,
não tenho nenhuma eleição religiosa -que a grande
divergência entre o catolicismo e o prote-;tantismo gira
em torno da mesma questão. Eu apenas lembro disso
para mostrar que é uma questão essencial e que
encontramos de maneira muito atual e viva no
tratamento psicanalítico e na prática psicanalítica.

s ab e r teó r i co . o que é o concei to?


Então, me dirão: é verdade. Mas o que é,
então, nesse momento, o que chamamos de saber
teórico? Porque, observem: os analistas de crianças,
raramente puderam fundar uma escola, fundar um
ensino. Eles sempre procederam por iniciação, dando
o exemplo. Então, o que é que chamamos de saber
teórico? É, evidentemente, a introdução do conceito.
O que é o conceito? O conceito é o que Lacan chama
de significante mestre, S t , quer dizer, o que tem a
autoridade do real, do que falta ao saber para tentar
dominar esse real, mas que fracassa ao dominá-lo,
assim como o demonstra a lógica que mostrei há
pouco. Então, o significante mestre é o que tira sua
autoridade do que é excluído, desse ao-mesmo-um que
" de scompleta" o sistema do saber para tentar
apreendê-lo.

38
A religião evidentemente encontrou esse
problema em seu caminho, para concluir que, apesar
de · todos os conceitos da teologia, não podíamos
pretender apreender Deus, ele continuava a nos
escapar e continuávamos no pecado que constitui para
nós a insuficiência de nosso saber. E é por isso que
podemos passar nossa vida sempre procurando o
saber.

o casal pe rfe i to ent re mãe e fi l ho e a


i nvenção de uma l í ngua especi al
O que também é interessante é que a relação
com o conceito intervém devido à instalação no
sujeito dessa instância ao-rri�nos-um, e que para nós
tem a aparência da figura paterna e que permite à
criança ter acesso à leitura, qtler dizer, à capacidade de
recortar as palavras e de reconhecê-las na cadeia
sonora . Todos aqueles que se interessam pelas
crianças sabem que há crianças que jamais conseguem
adquirir esse recorte e que, portanto, permanecem
aléxicas e não conseguem apreender o significante, o
significante mestre. Ou seja, não aquele que assegura
o domínio, mas que, ao contrário, garante que o real
de onde esse significante mestre se autoriza
permanecerá sempre um impossível. Há crianças que,
como sabem, inventam com a mãe uma língua
especial, um idioma que chamamos, com a palavra em
inglês, de babysh. Ou, dizendo de outra maneira, a mãe
e o filho têm uma língua privada, mas que jamais é
organizada pelo conceito. Os senhores não podem
fazer um dicionário de babysh. É uma língua que se
inventa permanentemente, mas que permite à criança
e à mãe que se compreendain . E; se a criança
permanece nesse dispositivo, tem possibilidade de
formar com sua mãe um casal perfeito, em que cada

39
um responde perfeitamente ao outro, em que cada um
combina perfeitamente com o outro, um casal fora do
sexo e do tipo paranóico. Portanto, se acolhemos com
simpatia o que nos trazem os psicanalistas de
crianças, com essa recusa do conceito, essa recusa do
significante mestre, essa recusa de um corte na cadeia,
de um corte que remete a um real como impossível,
como um impossível de dizer, como um impossível
de apreender. vemos bem como há, nas mães, e
inclusive nas psicanalistas, essa . nostalgia de uma
língua que permitiria, entre uma mãe e seu filho, uma
relação sem corte, uma dependência perfeita,
recíproca que permitiria evitar a castração.

Del í r i o de g r ande z a , d e l í r i o de
r e i v i n d i c ação , d e l í r i o d e c i ú m e s : a
di mens ão do sac ri fício real e do s acri fí c i o
s i mból i co
Acontece que aquele que se encontra, eu
retorno a este ponto, em posi ção de exclusão,
portanto, único, não castrado e, ao mesmo · tempo,
superior a todo mundo e habitado por um saber (pelo
fato desse lugar que ocupa) que é um saber completo,
quer dizer, que não conhece nenhum corte, ele sabe
tudo. A partir dessa colocação, podemos começar a
compreender quais são os três grandes traços, a partir
da clínica clássica, referentes ao paranóico: o delírio
de grande.za, o delírio de reivindicação e o delírio de
ciúmes.
À m edida q u e ele recebe sua própria
mensagem, desse lugar Outro que é ele mesmo, então,
ele está na posição de fundador. Como sabemos, não
é raro q u e as formaç ões de sei tas dec orram
precisamente de tais personalidades, que são sempre
fascinantes e que oferecem esse sentimento, essa idéia
de que resolverão todos os problemas e que prometem
uma felicidade perfeita. Portanto, idéias de grandeza e

40
também idéias de reivindicação. Há aí também um
ponto muito interessante e que poderia interessar à
ouvinte que evocou a questão dos impostos; por quê?
Porque esse fundador existe apenas com a condição
de que sua comunidade se sacrifique por ele. O
sac1ifício é a condição para fazê-lo existir. E vocês sabem
que na cultura grega, que está na origem da nossa, os
sacrifícios, e particularmente os humanos, tinham um
importante papel, e o que era sacrificado aos deuses
eram os mais belos jovens da pólis. Era a condição para
constituir a existência desses deuses e para obter suas
benevolências.
Em todas as populações, encontra-se, sempre
de maneira central, a regulação do sacrifício que o
ancestral fundador exige. E é com nossa religião que
apareceu uma dimensão · surpreendente em que o
sacrifício exigido não é m:ais um sacrifício real, mas
um sacrifício simbólico.
Em todas as histórias que sempre são contadas
sobre Abraão e Isaac é isso que é ilustrado. Abraão
vivia num mundo onde o sacrifício real era exigido,
incl usive o de seus próprios fil hos. E o que ele
inventou com esse deus foi que o sacrifício se tornava
simplesmente simbólico.
O problema é que aqueles que se encontram
em posição paranóica exigem do seu meio ou da seita
que ele formaram sacrifícios bem reais, quer dizer, eles
ex i gem que lhes seja pago um imposto. E aí
encontramos uma relação complexa com a questão do
pagamento dos impostos, mas é por isso que o
paranóico tem um delírio de reivindicação. Ele espera
que o governo lhe pague um imposto, quer dizer, uma
pensão. Ele está no lugar onde se recebem as oferendas,
onde elas são exigidas e onde o dever dos fiéis
torna-se o de pagar; eis aí, a propósito da paranóia,
observações sobre a questão do sacrifício que pode nos
interessar.

41
o amo r pe rfe i to
Agora há esse terceiro grande traço que é o
delírio de ciúmes. O paranóico está convencido de que
sua mulher o engana. Observemos, a esse respeito,
alguma coisa. Esse fenômeno tão banal que é o ciúme
tem facilmente esse caráter paranóico. Não quero
dizer que todos os ciumentos sejam paranóicos, é
claro que não. Mas vamos dizer o seguinte: se eu
funciono no registro do significante, por exemplo, do
significante mestre, eu sei que o que eu posso
representar para aquela que eu amo é apenas uma
representação do que nela organizá o amor e, da
mesma maneira, a mulher que eu amo é a
representante, o semblante, para retomar o termo
lacaniano, do que causa o meu amor. Nesse tipo de
funcionamento, há, de certa maneira, uma aceitação
de que eu não seja o verdadeiro objeto de amor
daquela que me ama e que ela mesma esteja na
posição de semblante. Mas, no sistema paranóico, o
que importa, o que é essencial, é que eu seja o
verdadeiro, o único suporte desse amor e, na medida
em que essa exigência é difícil de satisfazer, há
mulheres que aceitam essa exigência. Mas a própria
estrutura da linguagem faz com que essa exigência
fique submetida à dúvida. Portanto, na medida em que,
como paranóico:, eu me encontro em competição com
o ao-menos-um organizador da cultura na qual eu vivo
e onde eu sinto necessidade de me afirmar como o
melhor, como o único, sou constantemente levado a
denunciar e a suspeitar desse ao-menos-um próprio do
meio cultural e com o qual eu estou em competição.
Vocês conhecem a maravilh osa peça de
Shakespeare que se chama Otelo. Shakespeare é um
lacaniano, não há dúvida quanto a isso. Ele conheceu
Lacan antes dele mesmo. Porque vocês vêem em Otelo

42
uma história formidável que é a do amor perfeito entre
Otelo e Desdêmona. Ela, que tem um nome estranho:
Desdêmona. Um amor. Todo mundo fala do amor que
há entre Otelo e Desdêmona, e aí aparece um
homenzinho que se chama lago e que introduz a
dúvida no espírito de Otelo: "Você está certo de que é
você realmente que ela prefere, está certo que você é o
verdadeiro objeto de seu amor, está certo de que não
pode ser aquele outro que a observou naquela noite?".
Vocês s abem o lugar que lago ocupa. lago vem
quebrar esse amor pe1feito porque ele ocupa o lugar do
falo . É o falo como instância excluída, instância
ao-menos-uma, como instância representativa do que
constitui corte e que faz com yue, por causa dela,
sejamos, uns e, outros, semblantes para aqueles que
amamos. Então, o que lago introduz nesse amor
perfeito é a instância fálica, é ele que a representa. E
isso nos dá uma explicação de por que o sexo, o
sujeito humano, tenta proteger-se dele. O que Freud
mostrou? Ele mostrou que o sujeito humano tenta se
proteger contra o sexo. Primeiro porque ele deve fazer
uma doação simbólica a Deus, não a doação real, mas
a doação simbólica. Então, por que não fazer também
uma doação real? Depois, com essa doação, há o fato
de que nós entramos, a partir çiaí, no domínio do
semblante e do fim de todo amor que seja perfeito e
completo, e quando ele se produz é um amor de tipo
paranóico, é uma paixão paranóica.
Portanto, ao estabelecer essa questão para
vocês, podemos compreender quais são os grandes
traços do paranóico, e por que também nós não
podemos tratar dele. Se nós tentamos introduzir um
elemento terceiro, assim como a transferência
introduz, é o que eu contava há pouco sobre aquele
paciente que eu via todas as manhãs, a transferência

43
provocava nele sentimentos de femi nilização,
refotçados pelo fato de que o falo, por ocupar esse
lugar do real, esse lugar do Outro, é feminino. Porque,
ao ocupar o lugar do Outro, ele está no lugar Outro. É
o que há de problemático para o paranóico, pois ele
representa a mulher como uma'criatura castrada e, por
sua posição, na qual ele deveria ser integral, ele não
pode aceitar essa posição castrada.
Sobre a famosa cura de Schreber, devida ao fato
de aceitar a identidade feminina, é uina cura ligada ao
fato de que ele não se torna uma mulher, mas ele se
torna a mulher, a mulher que vai gerar uma nova
h umanidade, a mãe universàl, quer dizer aquela
justamente a quem não falta nada.
Creio que para nós, no ponto em que estamos,
é notável ver de que maneira os significantes da
psicanálise, o de Freud e o de Lacan, nos permitem
não saber tudo, mas, em todo o caso, ter uma
representação do sistema que constitui a tentação
paranói c a , quer dizer, de conseguir ve ncer o
impossível, de suprimir os conflitos, de estabelecer a
paz universal e a reconciliação de todos por meio de
um ensino que não seja intrusivo. Existe entre vocês
interessados pelo trabalho de Jean-Jacques Rousseau,
Emílio, sobre o ensino e sobre como um instrutor, um
mentor, fazia a instrução de Emílio por nada além do
que a pura observação da natureza.
Devo dizer a vocês, que, de minha parte, eu
adoro a psicanálise, porque todos esses problemas se
tornam vivos no próprio interior da experiência do
psicanalista. A relação com o saber, a relação com o
ensino, a relação com a experiência, tudo isso é o que
nos conta viver na experiência psicanalítica. E vemos
como os melhores psicanalistas podem responder com
opções diferentes sobre essa questão, mas opções que
têm suas conseqüências.

44
Eis aí, por esta noite penso que eu executei
meu contrato, mais ou menos na hora e penso que
temos ainda meia hora, não sei , me informem. Então,
se vocês quiserem dizer quais seriam, eventualmente
suas questões, questões sobre esses problemas. Se
ainda têm um pouco de energia e se não tiverem
nenhuma questão, isso quer dizer que eu fui tão
perfeito que não têm mais nada a perguntar, que
sabem tudo. Isso vai me causar um choque. Obrigado.

Res ponde ndo pe rguntas : o limite e a necessidade


da teoria, o conhecimento paranóico
Pe rgunta - Sobre o limite da teoria, mas ao mesmo
tempo, de sua necessidade., Freud, no final do texto
Ensaio sobre a teoria sexual, depois de todo o
esforço, confessa seu fracasso, que toca nesse impasse
do conceito. Ele diz que há um sexual que escapa à
teoria e que só podemos ficar na condição de ensaio.
eh . Me lman - O sexual escapa à teoria, porque, como
Fretid o d i z, ele se exprime n a l i nguagem d a
psicologia e ele se queixa disso. Porque, enquanto nos
servirmos da linguagem da psicologia, não poderemos
resolver os problemas. Então, ele colo-ca muita
esperança na ciência. E ele diz que um dia é a ciência
que resolverá todas essas questões. Será que a
linguagem de Lacan é a da psicologia, a da ciência ou
qual? Será que a psicanálise é uma ciência, como nós
evocamos há pouco, a ciência é o que forclui o sujeito,
quer dizer, a ciência gera a histeria? Pois a histeria é o
sujeito forcluído, não reconhecido, o sujeito que está
no real e que não é reconhecido. Por que será que o
sujeito histérico grita? Porque não o escutam. Mas, se
temos o saber da histeria, então; será que não somos
uma ciência, mas mais perfeita do que a ciência, pois
nós psicanalistas seríamos capazes de resolver aquilo

45
que a c1encia não pode resol ver? Quanto a isso
precisamos observar que a ciência não reconhece para
si nenhum limite, que a ciência, em seu princípio,
procede interrogando o real que deve responder da
maneira seguinte: pelo sim o.u pelo não. Por exemplo,
eu trabalho em u m l abo'ratórío, eu crio um
procedimento; se as experiências que eu faço são
favoráveis, quer dizer, se o real que eu interroguei
responde por sim, nesse momento, eu, então, graças à
ciência, reduzi o impossível que existia até então e
efetivei uma operação perfeitamente realizada. Mas
isso não é a psicanálise. Porque a psicanál ise não
funciona sobre o modelo da ciência. Ela não interroga
o real para saber se ele diz sim ou se ele diz não.
Devendo interrogar o sujeito histérico para saber se a
psica.nálise sabe, vou interrogar o sujeito histérico que
está no divã e lhe direi: "Será que você acha que esse
procedimento que nós estamos seguindo é bom?". Uma
vez ele vai me responder "sim", outra ele vai me
responder "não''. E será que, por ter respondido "não",
eu vou considerar, que ao mesmo tempo, essa
experiência é desvalorizada, não tem lugar? Porque
eu sei que o que a psicanálise honra, respeita é que há
um i mpossível , que é da essência mesma da
linguagem, com a qual a ciência não tem nada a fazer,
que a lógica respeita; a partir daí, eu sei que um
sujeito terá sernpre o direito, quer ele aceite ou üão, à
condição que é de todo ser falante. Eu poderia
considerar que é um fracasso do tratamento se ele não
aceita essa condição, um fracasso da minha prática,
um fracasso do próprio paciente também, mas posso
compreender que sua recusa não invalida em nada o
próprio procedimento, a partir do momento em que
ele é teoricamente bem fundado.
Atualmente há uma exigência dos serviços de
saúde na França de avaliar os resultados de todos os

46
empreendimentos psi. Mas, no dia em que tivermos
métodos capazes de curar 1 00%, isso significará que
subjetivamente não disporemos mais de nenhuma
escolha possíve l , de nenhuma l iberdade. Então,
quanto a essa questão dos conceitos, Lacan não a
aborda da mesma maneira que Freud. Primeiramente
porque ele diz que nossos conceitos se aproximam do
real, que o real se apresenta sempre como infinito,
como aberto. Nós só podemos nos aproximar, e é por
isso que escrever um dicionário de psicanálise é muito
difícil. Mas, em troca, podemos escrever as fórmulas
da sexuação, o que Freud não estava à altura de fazer.
E podemos escrever as fórmulas da sexuação
explicando porque há entre homem e mulher um
espaço que não pode ser preenchido.
Portanto, em relaç�o ao que Freud escreveu,
há um progresso. Um progresso vindo de Lacan, se
aceitamos suas fórmulas, e devo dizer que nunca li
críticas a essas fórmulas, à.s fórmulas da sexuação, que
se encontram no seminário A inda.
Pe rgunta - A respeito do conhecimento paranóico
como conseqüência da queda do lugar de objeto causa
de desejo para a mãe devido à presença real ou
imaginária de um irmãozinho. Corno exemplo o caso
de Hans.
eh . Me 7man - A respeito do conhecimento paranóico,
Lacan o chama mais precisamente de desconheci­
mento paranóico. Isso quer dizer que constituirei o
mundo dos meus objetos a exemplo dessa primeira
imagem, que foi a minha, apreendida no espelho como
eu (moi) e como objeto do desejo da mãe. Na medida
em que essa imagem é a imagem de um outro, minha
própria imagem no espelho é a· imagem de um outro,
não somente porque ela é invertida, mas também
porque ela é sustentada por um desejo, o desejo da

47
mãe, que é Outro. Eu descubro, enfim, no espelho
aquilo que minha mãe deseja e que é esse que eu (moi)
sou, sendo a partir desse eu (moí) que eu organizarei
meu conhecimento do mundo, quer dizer, a partir do
que já é essa intrusão primeira. Quando eu encontro
esse eu (moi) sob a forma do coleguinha ou do irmão,
minha primeira reação é de querer fazê-lo cair. Então,
se seguimos esse raciocínio, o desconhecimento
paranóico é ligado a esse processo imaginário e ideal
pelo qual eu organizo o mundo dos meus
conhecimentos. Eu não posso recortar o mundo senão
por meio do exemplo dessa imagem primeira, e desde
então eu iria me afastar, recusar tudo o que não viesse
a exemplo dessa primeira imagem. Por exemplo, uma
irmãzinha, já que você evoca Hans, eu consideraria
que ela não tem lugar no mundo, n a medida que em
ela vem, justamente por ser uma menina, questionar o
que a minha imagem presentifica no mundo, a título
disso que merece existir no mundo. O problema para
Hans é que a irmã é a preferida da mamãe, portanto, é
sua própria imagem de menino que desmoronou e é
ele que, a partir desse momento, se vivenciou como
não tendo a dignidade de pertencer ao mundo. E é
também por isso que o pequeno Hans considera seu
próprio sexo como uma anomalia. De maneira que,
nessa observação, temos mais vontade de dizer que o
que se quebra com o nascimento da menin a é a
própria imagem dele. E o famoso sonho do encanador
que coloca uma torneira é um sonho suspeito.
Conhecemos o destino de Hans, pois ele se tornou um
produtor de orquestra famoso. Mas Lacan se permite
dizer que a maneira como terminou a experiência de
Hans, já que ele nunca esteve em análise, somente uma
vez ele foi com seu pai visitar Freud, nos permite
duvidar quanto ao que pôde ser para Hans a assunção
de sua virilidade. Lacan diz isso, quer dizer, como essa

48
história, como foi resolvida para Hans, a questão de
que para ele o Ideal do Eu era feminino. B em,
sabemos ser um caso n ada excepcional. Vocês
conhecem o desenho da girafa amassada, e Lacan
desenvolve muitas coisas sobre essa girafa de pescoço
longo e amassada, mas Lacan não sabia, quando falou
de Hans, que o nome de família era Graf. Soubemos
disso depois. E seria preciso rever a análise de Lacan
para ver se ela está de acordo com esse fato.

49
o obj eto a , a l et ra , a o rgani zação do
desej o
Lacan diz que a única coisa que ele trouxe para
a psicanálise foi o objeto a. Se nós q uisermos
compreender a paranóia precisamos passar pelo que
Lacan compreende com .o que seja o obj eto a. É
relativamente simples. Ei_n Freud, o fenômeno do
recalcamento incide sobre �ignificantes à medida que
eles são representantes do sexo, quer dizer, Freud não
concebe o recalcamento como separado do elemento
um que constitui o significante, que, nesse caso, é o
significante evocador do sexo. A partir desse
momento, compreendemos que seja a figura paterna
aquela acusada pela criança de ser a responsável por
suas inibições ou por suas interdições para se realizar
sexualmente, quando ela se torna adulta. A grande idéia
de Freud é que os neuróticos permaneceram crianças,
quer dizer, quando se tornaram adultos, não aceitaram
levantar a interdição sexual, que concerne à criança, e
assumir a sua responsabilidade.
Lacan observa que o jogo do inconsciente tem
um suporte material que, antes de tudo, não é o do
significante, desse elemento um, mas que o jogo do
inconsciente tem como suporte a letra. Quer dizer que,
se eu estudo . a formação dos sonhos, a formação dos
sintomas, eu percebo que, em cada caso, o jogo do
inconsciente se manifesta pela queda de uma letra, e
vocês sabem que a queda em latim se diz casus, o que em
francês originou a palavra causa [cause], quer
dizer que a língua latina teve a inteligência de
conservar o que para cada um de nós faz causa, que é
precisamente esse elemento que caiu; e o jogo do
inconsciente nos revela que ó que assim caiu foi a
letra.
Nessa perspectiva, Lacan nos dirá que o
suporte do inconsciente está nessa letra mesmo, e aí
eu lhes remeto à lição do seminário que abre o volume
dos Escritos, que se chama "A carta roubada". Lacan
vai n os mostrar como o jogo automático da
linguagem, a partir do momento em que se recorta a
cadeia literal em unidades, implica periodicamente a
queda de letras. Quer dizer, pelo fato de recortar uma
cadeia literal em unidade ternária - o que passa pela
impossibilidade de, em tal momento do corte, fazer
subir qualquer letra - há letras que são periodica­
mente impedidas de vir. E, se fundando na análise dos
sonhos e na formação dos sintomas, Lacan também
dirá que essa letra, enquanto caída, que constituí a causa
do que vem faltar à cadeia significante, organiza o
desejo.
Para nós, essa introdução feita por Lacan é de
considerável importância, primeiramente porque ela
mostra que o mito de Édipo é tão-somente a tentativa
de explicar, tendo corno referente o pai, um processo
que é completamente independente da vontade do pai,
mas que é um processo próprio desse sistema
específico do animal humano. Com efeito, a grande
diferença entre nós e os animais é que nós não somos
constituídos por signos, mas por significantes, e se verá
justamente a importância que isso tem no caso da
paranóia. Então, Lacan nos mostra - salientando,
nesse processo, que o que causa para nós o desejo é
um processo puramente automático, ligado à estrutura

52
da linguagem -, que a causa não é o falo, é a letra, a letra
à medida que vem lhe · fal tar, que ela está
interditada e que, a partir desse momento, ela se torna
o suporte daquilo que os gregos chamavam kakon, o
que é ruim, o que não se deve, o que deve ser jogado
fora. E é claro que em nossa educação são os
excrementos que se tornam para nós o protótipo real
desse objeto repugnante que nos importa jogar fora.
Lacan tem uma forma intrigante de dizer que a civilização
está toda no esgoto, o sistema de canalização que
evacua o esgoto, e, como vocês sabem, os que
inventaram os esgotos - com trabalhos arquitetônicos
magníficos - foram os romanos. Dizendo de outra
maneira, se reconhece no homem sua humanidade pelo
rastro de sua maneira de e�acuar os excrementos para
fora da cena do mundo.
.
Mas observem esta coisa essencial: o objeto a,
ele chama a porque a é a primeira letra do alfabeto,
mas também em relação ao aleph de Cantor, que
assinala o infinito, mas eu deixo isso de lado no
momento. O a é causa do desejo sem que esteja
especificado ser um desejo sexual. Estamos aí em uma
relação com a cadeia literal, uma organização em
unidade significante causa da queda obrigatória de tal
ou tal letra em tal ou tal momento e que faz com que o
significado do significante torne-se um objeto
enigmático perdido. E vocês sabem que a fórmula do
fantasmà, Lacan a escreve $O a. Essa não vale a pena
explicar imediatamente, mas temos de explicar como
esse desejo se torna sexual. Qual é a dif erença, e isto é
um ponto essencial, entre a demanda ou a necessidade
e o desejo? Com efeito, a demanda e a necessidade
não têm nenhum objeto específico, e é bem esse um
dos problemas do organismo, qüer dizer, que eu nunca
sei perfeitamente quando minha necessidade está
plenamente satisfeita, e isso explica que eu possa ser

53
tentado pela procura no registro da necessidade de um
objeto de satisfação que não existe na necessidade. Mas
isso pode me levar a certos excessos, e eu poderei
agol'a, se isso lhes interessa, falar-lhes desta doença
moderna que se chama anorexia-bulimia.

Anorexia- bul imia . objeto causa de desej o e


desej o sex ual
A anorexia-bulimia é um a ten tativa
desesperada de criar esse objeto no domínio da
demanda e da necessidade, esse objeto que, pelo jogo
de sua ausência e pelo fato de que ele venha a faltar e
depois que ele possa reaparecer e que eu poderia
absorvê-lo, viria, de algum modo, dar à necessidade
não mais o seu caráter infinito e ilimitado, mas urna
fundação legítima que permitiria introduzir aí uma
regulação, uma justa medida. E vocês reconhecem
nesse processo tão paradoxal da anorexia-bulimia, o
movimento por meio do qual, na anorexia, a jovem
tenta a1tificialmente criar essa pura faJ.ta, uma queda
como a da letra, que é causa do desejo. E como se
supõe que ela possa recuperar, na fase da bulimia, esse
objeto que foi perdido pela anorexia, mas com a
necessidade de não destruir esse objeto, e, portanto,
de restituí-lo por outro fenômeno paradoxal, que é o
vômito.
Vocês vêem que estamos aí em um registro que
clinicamente nos diz respeito, e que a questão que eu
evocava há pouco é de saber como esse objeto causa
do desejo, que poderíamos dizer "qualquer um", se
torna causa do desejo sexual , e como terá no desejo
sexual urna diferença radical de tudo que seja a
demanda ou a necessidade.
O desej o sexual se organiza a partir do
momento em que essa queda do objeto na cadeia

54
literal é identi fi cada, em seu princ1p10, em sua
generalidade, ou seja, que na cadeia não há mais furos
múltiplos. Mas, então, se considera que esse buraco se
organize no que é um furo 1 , cuja imagem do zero é a
melhor representante. E é a partir do momento em que
se dá o recorte da cadeia significante, de todos esses
pedaços, de todos esses pequenos elementos um
constituídos na cadeia que terá significado esse
elemento zero;- quer dizer que tiram suas unidades do
fato de ter como referente um zero, e vocês sabem que
a seqüência dos números se organiza segundo esse
princípio. É a partir desse momento que o significante
se torna o vetor do que Freud chamou a libido e que
Lacan conceitualizou comofalo, quer dizer, esse um,
à medida em que ele falta e·, que é, ao mesmo tempo,
esse ao-menos-um, quer dizçr, esse um fundador, esse
um gerador, esse um da procriação, esse um que dá
todo o sentido à cadeia significante.

A voz , o gri to e a ang�stia


Na clínica isso nos é de grande importância,
de enorme importância, porque o que vocês vêem,
justamente, na psicose, por exemplo, no caso Schreber,
que os lugares que para ele, na cadeia significante,
comandam, dizendo de outra maneira, o lugar de onde
isso fala, são lugares múltiplos que nos falam de
diversos lugares, ao mesmo tempo e que, ao olhar para o
céu, ele vê vários sóis. Como a cadeia significante
para ele não é organizada no lugar único, ele vive na
angústia de que ela possa desaparecer e que o mundo
desapareça; e é nesse momento aí que se produz nele
esse milagre que ele chama "o milagre do urro"; ele se
põe a urrar, pois nesse momento,. vamos dizer assim, o
grito é a única maneira de sustentar a potência da voz,
v-o-z, quando todo o sistema parece poder desabar.

55
Para nós é a mesma coisa: quando é que vocês se põem a
gritar? Não se g1ita em qualquer momento, se grita quan­
do o significante não serve para nada, quando
ninguém quer escutá-lo, então, como último meio
resta justamente ouvir a vo.z em estado puro. O
argumento supremo, tudo que resta a dizer. O quadro
de Munch, que tem uma jovem de boca aberta,
desesperada e angustiada , é uma soberba
representação do que é um grito.
Vocês vêem também o progresso que pode se
constituir na cultura, o aparecimento do monoteísmo,
então, habitualmente se diz "sim, mas o monoteísmo
já existia no Egito sob a forrria do culto prestado a
Akenaton". Isso é certo, mas a difci·ença é que
Akenaton se confundia com o poder temporal, ao
passo que na religião e; no isolamento de um Deus
Um, trata-se de um poder que antes de tudo é
espiritual, e eu diria que, com essa questão muito
delicada, que marca toda a história das religiões, quer
dizer dessa relação do poder temporal, a relação do
poder temporal com o poder espiritual.

A doença do ecl eti smo . A di fe rença entre


Ari stótel e s e Pl atão
O que é divertido e será que eu não vou falar
aqui somente de coisas muito graves? É preciso
relaxar um pouco a atmosfera, mas na psicanálise vocês
encontram esses mesmos problemas. Eles explicam
para vocês que é preciso ser eclético, não se deve ter
um único mestre, um único referente, é preciso fazer,
perdoem-me, como se faz na universidade; isso é uma
doença que Aristóteles produziu na universidade. O
que é que distingue Aristóteles de Platão? É que Platão
coloca o problema, "vamos discutir o que é a virtude",
e cada um dá sua opinião do que é a virtude; e será que

56
podemos conseguir saber o que é a virtude? Ele
mesmo chega a esta conclusão notável e muito
interessante: não se pode saber, não se pode definir a
virtude. Mas Aristóteles não procede dessa maneira,
ele começa um livro sobre a ética, ele começa com
"um tal disse tal e tal coisa, um outro disse tal e tal
. coisa, um terceiro disse tal e tal coisa, um quarto disse
tal e tal coisa e agora eu vou dizer tal e tal coisa". Quer
dizer, ele introduz de saída, como disciplina, o fato de
que é normal que, sobre esse assunto, possamos ter
numerosas referências, mas o que ele esquece é que o
objeto tratado, mesmo que ele tenha guardado o
mesmo nome, torna-se diferente segundo a maneira
como o tratamos. Quer dizer que 0s diversos autores
transformam o objeto por meio da maneira como eles
o abordam e que, portanto, e;sse ecletismo nos desvia.

Mul t i pl i c i dade d e refe r ê n c i as como uma


fo rma d e defesa
V3.le mais para o trabalho do espírito aceitar o
poder, reconhecer que o que provoca o trabalho do
pensamento é um lugar Um, e que não é, eu diria,
vindo destruir essa unicidade pela multiplicidade das
referências que eu vou, de certa maneira, conseguir
circunscrevê-lo justamente. Ou,. dizendo de outra
maneira, a mul tiplicidade das referências é uma
defesa contra o que há pouco eu apresentava a vocês
como significante Um, quer dizer, o que Lacan
chama de significante mestre.
Enganamo-nos muito, em geral, sobre o que
Lacan quer dizer com isso. O significante mestre quer
dizer que ele sustenta sua unidade a partir de um zero,
um zero único, e que ele tent<t apr��nder o que a
palavra em alemão Begriefdiz, ele tenta apreender esse
real, mas esse real, esse significante mestre apenas se

57
aproxima; quer dizer que o significante mestre é
fundá.do no que já será a sua incapacidade de ser
totalitário. O significante mestre não pode realizar o
Tudo, ao contrário do significante na psicose, que vocês
sabem ser o significante que rtã() tem nenhum limite, e
que o doente é obrigado a seguír como um autômato,
ele é obrigado a obedecer a esse significante sem estar
de maneira alguma dividido em relação a ele. Pelo fato
mesmo do significante mestre, e pelo fato de que ele
não pode dominar o real, ele autoriza a divisão
subjetiva, quer dizer que, corno sujeito, você existe
em relação a esse significante mestre, e você tem o
direito de pensar a seu respeito." Você tem o direito de
se opor a ele, o direito de discuti-lo, o direito de dizer
"você não é o verdadeiro mestre, pois corno sujeito,
você não me domina"; e é isso a histeria. O sujeito
histérico diz ao mestre: "você é impotente, mostre que
você é um homem !". Quer dizer, é o poder, como
sujeito de dominar a mim mesmo, de cessar com essa
divisão que você me causa. Portanto, cu tento ilustrar
para vocês de que maneira estamos com essas
instalações que parecem teóricas no centro mesmo de
nossa psicopatologia da vida cotidiana, e a partir daí
podemos compreender melhor o que é a paranóia.
Por quê?

o lugar topol ógico do paranóico


Porque o paranóico, quando se exclui da
coletividade, vem ocupar um lugar que topologicamente
é muito preciso, que é forçosamente o do objeto que
caiu, quer dizer, ele se torna um objeto a, se torna
um excremento. E aqueles entre vocês que tratam
d a psicose , e até mesmo de certas neuroses,
conhecem muito bem esses sintomas em alguns
pacientes, o sentimento de cheirar mal. Eles estão

58
persuadidos de que as pessoas em torno verificaram
que eles têm mau cheiro. É um sentimento, é uma idéia
que é muito comum, talvez não sej a por nada que de
manhã se coloque pchi, pchi 1 , talvez todos nós
tenhamos essa crença, é preciso mascarar isso com
um pouco de pchi, pchi, mas é sobretudo para ilustrar
que, para o paranóico, ele se acha forçosamente,
topologicamente, pelo fato dessa exclusão - e que
acontece para qualquer um que se acha na posição de
exclusão -, em uma posição, portanto, desse objeto,
desse objeto repugnante, e, a partir de então, ele
empreende uma luta para tr;msformar sua posição de
objeto na posição do Um, quer dizer, se elevar à
dignidade, sai r da infelicidade de ser um objeto
repugnante para se tornar o ao-menos-um fundador. E
como ele ocupa esse lugar que:também é da causa, pois
bem, esse Um vai facilmente ser vivenciado pelo
paranóico como aquele que deve refonnar o mundo, criar
uma nova humanidade e se fazer reconhecer.
O problema notável com Schreber é. que ele
conheceu a evolução inversa, quer dizer, que por
muito tempo ele empreendeu a luta com seu delírio
para se fazer reconhecer como Um, p ara que sua
dignidade fosse reconhecida, e depois ele vai
bruscamente compreender que finalmente ele é um
objeto a. Mas a quem ele vai restituir sua dignidade
fazendo desse objeto a o que suporta a feminilidade?
Esse é um ponto formidável, porque ele diz respeito a
essa questão que não é fácil de tratar, e que se
relaciona, certamente, ao que funda a feminilidade.
Uma vez que a luta contra a feminilização é
absolutamente clássica no caso do paranóico, que ele
percebe bem qµe, no lugar em que ele se pôs, há o
risco de ser tratado como uma mulher, é por isso que
ele se sente perseguido como se em torno dele todos

59
quisessem transar com ele. Portanto, ele está n a
obrigação de provar sem cessar sua virilidade, porque
ele ocupa um lugar que é o da feminilidade.

A paranói a e a femi nN ,i dade . o fal o . A


rel ação da mul her com a paranói a
Há alguns dias, alguém que eu não conheço
me enviou fotografias de mulheres com véus, tiradas
por De Clérambault. Querem que eu as mostre? É
difícil vê-las, eu posso fazer passar na sala, mas é
preciso prometer que me devolverão (risos). Não são
os originais, mas é preciso que me devolvam assim
mesmo. Vocês sabem que D e Clérambault se
interessou muito pelo drapeado, ele escreveu um livro
sobre o drapeado, ou seja, as pregas que fazem o
tecido, assim como o recalcamento faz na linguagem.
A linguagem não é um espaço plano, um espaço
euclidiano, a lin guagem se faz de dobras, há
elementos que caem. Então, será que faz furos no
drapeado? No drapeado não se faz furos, isso vai ser
arrumado, isso é notável; mas se eu quero usar esse
tecido, é preciso, de qualquer forma, que eu o
organize em torno de um furo, que seja para passar
pela cabeça se eu sou um gaúcho, ou, se eu sou grego.
E vocês com certeza já observaram na estatuária
grega a beleza e a importância do drapeado, tem-se o
sentimento de que a forma humana não pode aparecer
em sua beleza senão com a condição de ser de certa
maneira tomada por esse tecido ; e há algumas
semanas eu fiz, em Paris, na École, na Association,
uma conferência sobre o tema da importância da
tecelagem nos gregos, trabalho que era entregue às
mulheres. Para aqueles en tre vocês que lêem em
francês há uma obra formidável de um latinista e de
um helenista, John Scheid e Jesper Svenbro2 , que

60
escreveram um livro chamado O trabalho de Zeus, e ve­
rão como a linguagem é representada como um
tecido , um pano. Evidentemente vocês podem
perguntar de onde vêm as figuras topológicas de Lacan,
qual é a materialidade delas, a figura do toro, do cross­
cap , da garrafa de Klein, qual é o tecido desses objetos?
Bem, é nesse livro, escrito por latinista e helenista,
que se encontra a resposta.
A materialidade da linguagem não é de ser
linear, não é também de ter camadas, uma consciente
e outra inconsciente, mas sim de fazer o tecido. E
observem o seguinte: vocês não encontram na
natureza, nos vegetais, nada que seja construído como
um tecido, quer dizer, pela união (!e uma trama e de
uma cadeia. Vocês encontram fibras superpostas, mas
nunca essa distinção entre dois elementos que são a
cadeia e a trama; quer dizer, 'o que passa por baixo e
por dentro do furo. O tecido não é a pele do animal,
nem a roupa feita de folhas, isso já é um trabalho
humano essencial. Mas, então, por que eu conto tudo
isso a vocês?
Eu lhes conto tudo isso devido ao fato de um
significante, uma mulher tem um estatuto incrível, pois
aqueles que são levados a ocupar a cena do mundo
devem ser castrados, quer dizer, marcados falicamente,
e se isso traz problemas para vocês, eu vou lhes
explicar porque castrado quer dizer falicamente
marcado. Mas o que eu já disse a respeito do S 1 já foi
compreendido, o significante mestre S t , represen­
tante da libido, tem um significado sexual porque ele
é castrado, quer dizer, porque lhe carece poder
apreender o real, porque ele é amputado pelo real. Ao
mesmo tempo, vocês compreendem porque a
castração é puramente simbólica, pois não se espera
do indivíduo humano que seja castrado; porque a
castração é uma operação puramente simbólica e, ao

61
mesmo tempo, complexa. Se o significado tem um senti­
do sexual, e se é o objeto perdido, quer dizer, o objeto a,
que é a causa do desejo , o lugar de uma
mulher é esse lugar específico que Lacan chama o
lugar Outro, quer dizer, es�e real que justamente
escapa do poder do significante mestre.
É por isso que eu sempre posso tentar,
qualquer que seja minha coragem, ou minha loucura,
pretender ser mestre de urna mulher. E para que a
operação seja efetiva é preciso que eu a prenda com
co1Tentes ou que eu a deixe trancada. Há homens que
fazem isso, assim eles estão certos de tê-la, porque
com o significante mestre, quer dizer, aquele que tira
o seu poder desse lugar, desse objeto que lhe falta, não
pode pretender apreendê-lo. Mas uma mulher só tem
o valor de ser o representante, o suporte do desejo de
um homem porque se torna a representação desse
objeto a.
Como vocês vêem eu diria que é uma fonte de
complicações, e em primeiro lugar, é claro, para urna
mulher, pois ela está definitivamente confinada em um
espaço, o espaço Outro; e ela não tem, na origem,
direito de cidadã, direito de estar presente na cena do
mundo. Há um ponto que, no meu entender, não foi
suficientemente observado: que no mundo grego e no
mundo romano esses dois espaços eram claramente
distintos; reprovou-se a democracia ateniense por ela
excluir as mulheres da vida política, mas ela as
excluía da cena do mundo. Urna mulher era confinada
nesse espaço Outro que era a casa e isso ainda é mais
verdadei ro entre os roman os, e teve corno
conseqüência que, nesse lugar, ela era a mestre
absoluta, era a matrona. E quando as mulheres
romanas apareciam na cena do mundo, quando elas
deviam sair, elas usavam o véu, saíam com véus,
absolutamente como essas mulheres cujas fotos eu

62
mostrei há pouco. Estavam com o véu, quer dizer, não se
deveria vê-Ias na cena do mundo. Então, quando vocês
olham para a fonna que elas têm com o véu, podem ver
claramente que elas apresentam a fmma de pequenos falos,
pequenos falos que passeiam, mas com o véu, escondi­
das, como deve ser o falo. E Lacan já dizia que chamar
essa instância de falo já era demais, porque já era fazer
entrar na cena do mundo. É como o nome de Deus, que
deveria permanecer impronunciável, pois, se eu o pro­
nuncio, eu o desloco do lugar que é o seu, do espaço
Outro, e eu o ponho na cena do mundo.
Eis aí uma lembrança do elemento de estrutura
que nos esclarece a propósito da paranóia sobre a
questão da feminilidade, que é preciso que se diga que
é fracassada em Freud, é fracassada por Freud porque
Freud não pôde ver uma mulher senão como um
menino diminuído, alguém que deve aceitar ter um
órgão menor que o do menino, e que deve aceitar
deslocar seu erotismo do clitóris para a vagina. É uma
operação que não parece evidente, mas, com isso que
Lacan introduz a propósito do objeto a, vemos surgir a
verdadeira questão no que diz res peito à
feminilidade, e que também nos esclarece sobre a
questão da paranóia e do que pode ser a relação da
mulher com a dimensão paranóica.
Estou muito contente de poder deixar vocês
nesse suspense [risos]. Portanto, a novela prossegue
na próxima vez, após o meio-dia.

1
O autor imita o som do spray do desodorante. N.R.T.
2
le métier de Zeus, Ezzance. N .R.T.

63
A fala e a escr i ta . o ensi no de Lacan
Tudo o que vemos , inclusive nossos
conceitos, não passam de metáforas ou metonímias.
Metáforas, quer dizer, que podemos tentar dar a ouvir,
e metonímia, pela qual podemos tentar nos aproximar
do objeto, pois o próprio objeto não posso dizê-lo, mas
posso escrevê-lo. E é essa a' diferença maior entre a
fala e a escrita.
Tomemos por exemplo a questão do infinito
em matemática. É uma grandeza que por si mesma
não existe, pois cada vez que escrevo um número, pode
haver u m m aior; mas acontece que eu posso
escrevê-lo, posso escrever esse número que está
sempre além. Vocês dirão: "Qual o interesse disso?".
A partir do momento em que está escrito, posso
calcular com ele. É o que aconteceu com Cantor, quer
dizer, ele pôde mostrar que havia vários infinitos e que
nos cálculos esse puro escrito se tornava operatório. É
por isso que no ensino de Lacan vocês encontram esta
dupla face : por um lado, uma face metafórica e
metonímica, por outro, outra face, que é a da escrita -
por exemplo, aquela do objeto que não se pode dizer,
mas que se pode escrever, e a partir do momento que
eu posso escrever, eis sua importância na teoria.
Então, essa dependência na qual estamos em
relação ao significante teve, con10 o professor Fleig
acabou de evoc ar, grandes conseqüências n a
transmissão ela ps:icanálise, pois, para sermos fiéis a
Freud, quisemos transmitir esses significantes como
se fossem sagrados e, a partir desse momento,
deixamos aos psicanalistas a escolha entre ser ora
comentadores ora heréticos. J:I;á uma outra escolha para
os psicanalistas além de ser comentador ou herético.
Essa escolha é a de tratar o conceito de maneira justa,
quer dizer, certamente não como um imperativo
categórico, mas como significante que se dá a ouvir e
que convida à escrita disso que causa esse conceito, do
que causa esse significante.

Quando as frontei ras representam um l imi te


paranoi ogênico . Para al ém do muro não está
o estrangeiro , mas o Outro
. No final de sua vida , Lacan terminava
praticamente por não mais falar, ele dava as costas para
o auditório e passava seu tempo fazendo desenhos no
quadro. Era muito desagradável para o auditório, mas
isso tinha também um grande va.lor de ensino, pois o
nó borromeu, com o qual ele terminou sua vida,

Q
nó da
parnoóia

G'C::) nó borromeu

e ele chegou mesmo a desenhar, como vocês sabem, o


nó borromeu da paranóia, é a escrita daquilo que a
prática psicanalítica, daquilo a que os conceitos da
psicanálise nos convidam. O nó borromeu não está na
fala, mas é um efeito da fala, ao mesmo tempo que é a
causa, portanto, há para nós, no que chamamos de a
relação de fidelidade, uma lição maior para guardar.
Será que Lacan esperava de seus alunos que eles se
contentassem em repetir seus conceitos? Posso dizer

66
que sim e, entretanto, acredito que posso dizer aqui,
diante de vocês, que eu tinha uma posição original na
École Freudienne. Primeiramente porque eu tinha um
grupo semanal de leitura dos Escritos de Lacan, dito de
outro modo, eu sempre mostrei meu investimento e
minha ligação ao que Lacan dizia. Mas, ao mesmo
tempo, eu percebo que eu também procurava
adicionar, fazer avançar, discutir esse ensino e, a
questão a qual eu devo responder é: será que o lugar a
partir do qual eu fazia esses trabalhos é um lugar
lacanianamente fundado? Será que estava incluído no
ensino de Lacan?
Por exemplo:
O primeiro trabalho! que eu apresentei frente
à Societé Psychanalytique, foi antes da criação da École
Freudienne, num grupo que; se chamava de Societé
Française de Psychanalyse� no qual havia Lacan,
Lagache, Boutonier, Anzieu, Laplanche, e fiz uma
intervenção nesse grupo (eu era ainda como vocês, bem
jovem) em um momento justamente que o grupo ia se
separar, e imaginem que minha intervenção foi a
propósito da paranóia. Na época, eu era residente de
psiquiatria e apresentei um trabalho original, não era
uma repetição, e nele eu mostrava aquilo que eu
trouxe para vocês no início, que a fronteira, por si
mesma, na medida em que ela separa daquilo que
parece estrangeiro, é causa da paranóia. Mas eu
mostrei que seria preciso que a fronteira n ão
funcionasse como um limite paranoiogênico, mas que
fizesse apenas a separação como espaço outro, seria
preciso que a fronteira tivesse uma estrutura moebiana.
A banda de Moebius parece muito teórica para vocês?
Eu garanto que na clínica das psicoses e em nossa
própria clínica; na de cada um de-nós, é essencial. Por
quê? Precisamente porque a estrutura moebiana é o
que põe no exterior o que funciona como objeto a, ou

67
seja, a partir desse momento, o que está no exterior está
também em meu interior, é essa figura que vocês en­
contram em Lacan, do oito interior, quer dizer que o
que está além desse muro não é o estrangeiro, mas é o
Outro.
Eu farei em breve um desenvolvimento do que
é o Outro. Não compreendemos muito bem o que é
isso, mas o Outro, embora esteja fora, é também o que
está em mim, de tal maneira que exterior não é
vivenciado por mim como ameaçador, mas que fora
também estou em casa. Portanto, para responder ao
Mario, eu encontrei sem ter procurado, a possibi­
lidade de um trabalho que nãó repetisse Lacan, mas
que mostrasse a validade de seus conceitos, em
particular da banda de Moebius em nossa clínica. De
uma c.erta maneira, posso dizer que isso faz avançar a
clínica. Não preciso dizer que, na época, eu trabalhava
com um bando de colegas, posso dar o nome deles,
mesmo para prestar homenagem a eles: tinha Claude
Conté, que depois morreu tragicamente, ele moITeu das
infelicidades que se fez ao ensino de Lacan, ele morreu
verdadeiramente vítima da maneira como tratamos o
ensino de Lacan. Tinha também Claude Dumézil e
Christian Simatos, tinha um rapaz encantador que se
chama René B ailly. Nós formávamos um bando,
porque justamente nos chamavam de A B anda de
Moebius. Aqueles que nos chamavam assim queriam
dizer que tínhamos apenas uma única face como a
banda de Moebius, mas não eram autênticas, e nós
tomamos isso mesmo como um cumprimento.

N o s s a p o s i ç ão s o e i al at u al . Para q u e
compl i car a vi da com desej os?
É evi dente que, na paranóia, o conceito é
tratado como na psicose, não como um significante

..,
·;
"···..
�··
68
!,,"·
mestre, um significante que não é mais do que um
semblante [sembfant] de mestre, os homens têm de
fazer semblante de serem mestres, isso faz parte da
parade2 sexual. Mas para o paranóico, assim como para
o psicótico, o significante é totalitário, é atetTorizante,
como eu evocava há pouco. Vocês têm de obedecer sem
ter a possibilidade de nenhum lugar que lhes permita
existir em relação a esse significante. Podemos, em
alguns casos, constituir um ideal, mas em
circunstâncias muito precisas e que teriam, sem dúvida
alguma, a sua justificativa, qualquer que fosse. Com essa
experiência psicanalítica, nós temos a sorte de ser
levados a não estudar esses problemas, mas a vivê-los.
Tomem por exemplo a qu::stão em relação à
autoridade, que é uma questão que, do ponto de vista
político, e mesmo do ponto' de vista religioso, é muito
mal tratada. Pois bem, na prática psicanalítica, vi vemos
essa questão e vemos de que maneira ela pode
legitimamente ser abordada; e se não respeitamos a
autoridade, à medida que ela é incontornável, que ela é
necessá1ia, na autoridade que se apreserüa corno guardiã
do limite, nos expomos ao poder totalitário do
significante, e hoje estamos todos captados pelo poder
totalitário do significante. Essa é hoje nossa posição
social, e é o preço que pagamos por não mais aceitar
respeitar essa instância guardiã dess·a autoridade que faz
limite, na medida em que esse limite é causa do desejo.
Pois bem, já estamos cheios do desejo, isso nos fatiga,
já estamos cheios disso, queremos viver num mundo
onde todas as necessidades serão satisfeitas.
Para que complicar a vida com desejos? Nós
somos organismos, temos necessidades, a tecnologia
hoje permite satisfazê-las e permite satisfazê-las sem
li mi tes, é a isso que a anorexia-bu limia tenta
responder, trabalha sozinha tentando restabelecer um
limite. Vocês vêem que sempre, a partir de nossa

69
pequena prati ca, nós encontramos problemas
essenciais da vida social e, devo dizer, temos um saber
que não é negligenciável.

o B ig brother e as fror:,tei ras na rel ação


ent re os psi canal i stas
Em Paris, temos amigos da Association
lacanienne, que chamamos de International para
lembrar que entre psicanalistas não .há motivo para
haver fronteiras, porque para os psicanalistas o objeto é
o mesmo. É o objeto a, e esse objeto não é um objeto
que tem causas nacionais especfficas. É o objeto que
causa cada um, qualquer que seja sua língua, qualquer
que seja seu hemisfério, e, portanto, há uma espécie de
fraternidade normal entre os psicanalistas, pois o objeto
que lhes i nteressa - da mesma manei ra que os
químicos, os geógrafos, etc. têm o mesmo objeto para
todos -, os psicanalistas têni o mesmo objeto, e ao
mesmo tempo não há motivos, razões para haver
fronteiras entre eles. Sim, mas será que não haveria
alguém que nessa fraternidade seria o grande irmão e
depois os outros seriam irmãos menores? Será que os
irmãos menores devem aceitar seu estatuto e aceitar
ser irmãozinhos? Será que, se eles ficam no lugar
deles, não poderão ser grandes irmãos?
Entre os psicanalistas, não há grandes irmãos
nem pequenos irmãos, não há irmãos mais velhos nem
irmãos mais novos. Eu sei por experiência, e, ao
mesmo tempo, eu digo com a confiança que Lacan me
atribuiu, mesmo eu sendo bem jovem. Imediata­
mente, na medida em que eu mostrava um interesse
justo pela psicanálise ele me considerou alguém
responsável, ele me tratou, posso dizer, como um
irmão, nem maior nem menor, um irmão de trabalho,
quaisquer que fossem minha idade, meus limites e

70
minhas possibilidades. Mas talvez eu tivesse, cotn meus
limites e minhas possibilidades, a faculdade de ver e de
dizer coisas que para ele mesmo necessariamente não
apareciam. Entretanto, nós éramos irmãos de trabalho,
e eu, evidentemente, reconhecia que ele era muito mais
capaz, mais experiente do que eu. Mas estávamos, entre­
tanto, ligados ao mesmo trabalho.
Portan to, o en s i n o , no seio de m i n h a
Associação, que eu tento proteger a todo preço, é
fundado nesse princípio; no trabalho vocês são todos
iguais, vocês são todos tão ignorantes quanto os
outros, porque tudo o que nós temos para fazer,
precisamente nós ignoramos.
Ninguém jamais pensou que a psicanáli se
estivesse terminada, que eq1 uma ciência fechada,
quanto mais atualmente. Cpnforme tento dizer, a
economia psíquica muda, e os psicanal i s tas
continuam a falar a adolescentes ou a homens que eles
acreditam formar em suas famílias, quer d izer,
formados pelo complexo de Édipo, enquanto uma vez
em cada duas não há mais família, então onde é que se
formam esses jovens? O que pode significar para eles
o complexo de Édipo , qual é a relação com o
Nome-do-Pai? Qual é a relação com o desejo? Como
é que eles constituem sua identidade sexual ?
E i s um mundo que mudou, trazendo a
questão: será que os psicanalistas são capazes de
lê-lo? A resposta que eu tento dar é que eles têm os
meios de ler os fenômenos que acontecem atualmente
no mundo. Lacan lhes deu os mei os, e, no meu
entender, não há razão para que não seja de maneira
fraterna, sem questões de poder, que eles trabalhem as
suas questões.
Eu posso dizer a vocês que, na França, apesar
de todas as histórias, eu tento sempre fazer com que
os analistas possam discutir entre eles o que quer que

71
desejem; e eu tento mesmo fazer com as pessoas da
IPA, para que tentemos discutir. Eles convidam
lacanianos para os congressos deles. A mim eles não
convidam, eu causo medo, eu real mente tenho
aparência de dar medo! Mas talvez eles tenham razão,
talvez eu pudesse perturbá-los';eu conheço um certo
número deles, e certamente alguns que eu estimo, que
são, com efeito, psicanalistas, outros que são
burocratas, assim como pode hav.er em todos os
cantos. Mas eu sei que, na minha Associação, tento
lutar contra a burocracia, a burocracia é .um fenômeno
universal.

Burocracia
Eu acho que foi um grande autor russo,
chamado Gogol , que começou a falar sobre a
burocracia. A burocracia é muito poderosa, vocês vêem
facilmente como ela pode se instalar para nós
mesmos, psicanalistas. Mesmo entre amigos e alunos
muito simpáticos há uma atração, um fascínio pela
burocracia. O que quer dizer a burocracia? Quer dizer
aplicar um saber que é acabado, que é rígido, e que
pretende ser o certo. E isso é o fim da psicanálise.
Eu vou concluir imediatamente, e você vê,
Mario, que eu intervim a partir de sua questão. Vou
concluir com a maneira que Lacan tinha de praticar.
Quando Lacan escutava seu paciente, seu analisante,
ele escutava sempre não como se ele soubesse de
antemão o que o paciente estava dizendo, mas como
se o saber estivesse do lado do analisante, o que é
verdade. Mas que ele, na posição de analista, tinha de
decifrar não a aplicação universal dos conceitos
psicanalíticos, mas questionar permanentemente, ao
escutar seu paciente, o que era o saber do psicanalista,
e ele escutava seu analisante não como suj eito

72
suposto saber, mas como aquele que não sabia e que pro­
curava saber, a pattir desse sujeito suposto saber que está
em cada analisante. É nele que está o sujeito suposto sa­
ber, quer dizer, essa era uma m aneira de
proceder, que é muito rica para nossa reflexão.
Obrigado por terem devol vido as fotos,
obrigado pela sua atenção.

1
Da aventura pf\ranóica: o caso Schreber,- ·in Ch. Melman.
Retorno a Schreber, Porto Alegre: CMC Editora, 2006.
2
?arade significa afetação, exibição, ostentação, desfile. N.R.T.

73
o q u e a p a r an ó i a n o s e n s i n a s o b r e a
o r gan i zaç ão p s í q u i c a? o que é a
autent i c i dade? A exi gênci a de
autenti c i d ade . Ident i dade .
Concernente à quesião do que é a autentici­
dade. O que é autenticidade? A questão nos interessa
porque, como vocês sabem, é um problema maior para
o paranóico. Ele quer ser autêntico, e vocês têm um
exemplo maravilhoso em Jean Jacques Rousseau, cuja
exigência, justamente, é que cada um v iesse a se
exprimir em sua autenticidade, que não escondesse
nada de si mesmo, que não houvesse nenhuma zona
de sombra. E vocês têm a surpresa de constatar que,
por ocasião de um tratamento psicanalítico, cada um
de nós pode ter a mesma exigência. Mas em que
consiste a autenticidade? Quando é que eu sei, quando
eu falo, que eu sou autêntico? Será que é na relação
com a minha famíl i a fundadora, com a m i n h a
nacionalidade, com a minha religião, com o meu sexo?
As obrigações sociais fazem com que eu seja
forçosamente tomado, em um consenso, por
exigências de polidez, de conveniência, o que faz com
que eu possa dizer aquilo que está muito distante do
que eu penso na realidade. Será que eu traio minha
autenticidade quando eu paiticipo das conveniências
sociais? Quando se vê um povo como o japonês,
tem-se o sentimento de que ele está constante­
mente em representação, e que as trocas verbais são
estritamente reguladas pelo que as exigências sociais
impõem. Será que eles têm menos sentimento de sua
autenticidade? Por outro lado, pode acontecer de eu
falar justamente a paitir de uma representação ideal
de mim mesmo, que está muito distante do que seja
minha autenticidade e que pode surpreender a mim
mesmo, embora essa representação ideal de mim
mesmo faça parte de minha identidade.
Então, em que momento eu sou autêntico? Será
que vocês têm reflexões a esse respeito? Poderemos
trabalhar juntos sobre aquilo qúe permite reconhecer
o que é ser autêntico. Vocês têm sugestões a fazer a
respeito do que permite reconhecer que somos
autên ticos? Um outro exemplo: nós f al amos
sistematicamente sob o olhar do Outro. Isso também
se chama o ideal, ao qual eu me referi há pouco. Será
que, satisfazendo esse ideal, e justamente por querer
satisfazer a esse olhar - suponhamos que seja, por
exemplo, o olhar da minha mãe que organiza a
representação ideal de mim mesmo -, será que sou
autêntico ao procurar satisfazer o olhar da minha mãe?
Vocês não querem me ajudar para que possamos
compreender o que é a autenticidade? O exame dessa
questão nos lembra que podemos falar de lugares muito
diferentes, mas em todos os casos o que nós
encontraremos é a imagem onde o significante que nos
representa é, por definição, um semblante. Um
semblante de quê? Um semblante do objeto a que
escapa. Isso nos permite abordar um pouquinho a
questão da identidade, mas numa abordagem que não
é de maneira nenhuma satisfatória nem para os
filósofos, nem para os psicólogos.
Lacan diz uma coisa estranha. Ele diz que a
verdade de um homem é sua mulher. Isso nos põe no

76
caminho do que está em questão, quer dizer ·que, em
ú l tima instância, eu ape n as sou autêntico n a
expressão pública ou privada de meu fantasma. É uma
circunstância ao mesmo tempo priv ada, uma
circunstância limitada, entretanto é o que podemos
chamar para cada um de seu momento de verdade. Aí
não estamos mais no semb l ante, mas nos
aproximamos do que é o real de um sujeito.
Vocês sabem que uma das primeiras questões
da filosofia foi a do ser: o que é o ser do homem?
Vocês também encontram essa questão em Platão, a
questão sobre o que é o ser de tal e tal homem, porque
não pode haver maior autenticidade do que a de seu
ser. Mas para nós o que é o ser? E particularmente o
ser de cada um? Pois bem, o ser de cada um é
justamente esse objeto a. É isso o ser, esse objeto a
organizador de seu fantasma. Dizer tal coisa tem suas
conseqüências. Lembro de uma discussão na Itália,
penso que foi em Milão, com o filósofo Agamben,
justamente sobre o que constitui o ser do homem, e fui
obrigado a observar que o que constitui nosso ser
deveria fazer cair nosso narcisismo. Isso nos ajudaria
com bastante ênfase sobre o que é a humanidade e o
humanismo. Devo dizer que, na medida em que os
psican a l istas têm forçosamente uma re l ação
profissional com o objeto a, seus comportamentos
estão constantemente sob ameaça de uma expres�ão,
precisamente, demasiado real deles mesmos como
objeto a, quer dizer, um objeto que por definição é
destinado a ser evacuado . Na vida de alguns
psican alistas há muitos que se pren dem a esse
dispositivo, e eu diria, que nessa medida, somos
obrigados a refletir a respeito da questão de saber se,
para o psicanalista, ele está condenado a dever ser o
dito objeto ou então há um além desse objeto, ou seja,
se nenhum psicanalista é obrigado a ser um canalha e se é

77
permitido ao psicanalista ser autêntico ao mesmo tem­
po não confundindo seu ser com tal objeto. Estamos
discutindo com Mario Fleig sobre a oportunidade de
um colóquio sobre a ética da psicanálise, e sobre
retomar, portanto, o seminário de Lacan sobre essa
questão e , nessa oportunidàde, refrescar nossa
inten-ogação sobre esse tema.
Em todo o caso, como vocês vêe m , a
exigência ·do paranóico de ser autêntico é uma
exigência que resulta forçosamente em fazer com que
essa representação muito exigente e moral que ele dá
de si mesmo resulte enfim em_ mostrar por meio dos
fatos que, apesar de sua exigência de pureza e de
autenticidade, ele pode se comportar muito mal, mas
isso não o i ncomoda , ele não vê a í nenhuma
contradição.
Eu evoco essa questão da autenticidade a
propósito de um filósofo canadense chamado Charles
Taylor, e podemos adivinhar como o fato de viver em
u ma terra de imigração possa colocar cores
particulares para cada um a respeito da questão da
autenticidade, e eu diria, de várias maneiras, que, no
meu entender, se mantém não resolvida. Isso pode ser
uma razão para retornar essa questão a propósito
desse seminário e dessa exigência própria a cada um
de nós de não constituir semblante.
Os americanos, os autores americanos, outra
terra de imigração, chegaram mesmo a inventar um
conceito sobre isso, que eles chamavam de o falso self.
A partir de que momento eu posso dizer que a
representação que eu ofereço aos outros é falsa ou,
então, em que momento, apesar de seu caráter de
semblante, eu a reconheço como fazendo parte da
minha identidade? Eis aí uma questão que nos
pennite de uma maneira inesperada retomar aquilo em

78
que nos detemos anteriormente, quer dizer, a questão
da feminilidade.

A questão da femi n i l i dade e o 1 ugar da


mul h e r
Na medida em q ue a m ulher escapa da
castração, na medida em que ela é representada por
esse significante que em Lacan se chama S2, uma
mulher ocupa o lugar do Outro. Ou seja, ela não está na
cena do mundo, ela está em seu lugar, que e u
evoquei como sendo dessa maneira para os romanos,
o lugar doméstico. E vocês sabem o quanto é recente,
isto é, com o movimento feminista do final do século
XIX, o nascimento da exigência de que as mulheres
tivessem acesso ao espaço social. Vocês podem opor a
isso que, de qualquer maneira, havia criaturas
femininas na vida pública dos romanos. Eram as
escravas e as cortesãs, isso quer dizer que eram as
mulheres estrangeiras. As prostitutas eram mu lheres
estrangeiras, mas as mulheres romanas estavam
confinadas na casa, o que faz com que, de acordo com
o exemplo dessas imagens das fotos apresentadas, elas
só podiam aparecer diss imulada s , pois s endo
representativas do que causa o desejo, elas estão, de
um ponto de vista estrutural, localizadas no lugar
Outro.

Qual é a nat u r eza mate ri al do es paço do


Out ro?
O que quer dizer S2? Vocês já o viram muitas
vezes em Lacan, mas o que quer dizer, por que S2? S2
quer dizer que, a partir da posição do significante
mestre S 1 , eu interpelo o real para tentar apreender o
objeto de meu desejo, e só encontro um outro

79
significante, e é por isso que é escrito S2, uma vez que
ele representa o objeto causa do desejo. Mas, como
Lacan ensina, esse objeto causa do desejo, a, é o que
caiu, o que foi animado por uma queda, que se tornou
a causa e que está, portanto, entre os dois significantes.
E o buraco que tal queda ocasiona entre os dois
significantes rese rva o lugar desse sujeito do
inconsciente, desse sujeito barrado, barrado porque ele
não está mais no campo da realidade e que é o sujeito
do fantasma $ Oa.
O espaço do Outro, qual é sua natureza
material? O espaço do Outro é formado por uma
cadeia li teral contínua que não é marcada por
nenhuma cesura, o que quer dizer que no Outro, no
i nconsciente, por exemplo, não falta nada. Mas a
surpresa, que também era a de Lacan, é a de constatar
que nesse Outro havia assim mesmo ao-menos-um,
que, entretanto, havia um elemento nessa cadeia
contínua que se isolava como Um.

oecl íni o do Nome -do-Pai e a p romoção d a


Mãe
Este ponto nos permitirá abordar uma questão
até então negl igenciada , mas q ue diz respeito
eminentemente ao problema do paranóico. Esse
problema se atualiza por ocasião do que se chama hoje
em dia de o declínio do Nome-do-Pai, e o que nós
assistimos é a uma promoção da mãe. Nisso que vou
lhes dizer, eu gostaria que vocês não entendessem
nenhum julgamento de valor de minha parte. Em
nenhum momento me permitirei dizer que o
matriarcado é pior que o patriarcado, ou o inverso. Eu
direi apenas que o patriarcado é uma cr iação
relativamente recente na história da humanidade e que
a forma natural de func i onamento dos grupos

80
humanos sempre foi espontaneamente o matriarcado.
O que quer dizer isso? Quando vocês abrem o livro
clássico sobre o matriarcado, que é o l ivro de
Bachoffen, um jurista suíço que trabalhou no século
XIX, vocês encontram uma coleção de mitos que não
nos esclarece, mas nós psicanalistas, em virtude de
nossa prática, podemos responder à questão sobre o
que é o matriarcado.

o matri arcado
O matriarcado é a possibilidade que uma mãe
tem de transmitir o falo a um de seus filhos de uma
outra maneira que não seja pela castração, mas por um
processo de doação. Nós todos conhecemos, no
funcionamento de noss�s famílias, meninos que
devem sua virilidade ao Jato de que sua mãe lhes
investiu como tal e espera deles que venham a
satisfazer seu orgulho materno. Isso se realiza por uma
operação de doação, de reconhecimento, em uma
virilidade concluída, perfeita e mesmo por vezes, a
exigência de que essa viril idade seja sem limite.
Eu me encontro freqüentemente no meu
trabalho com psicanalistas em ilhas que não são muito
distantes do Brasil, em ilhas que pertencem ao Mar do
Caribe. Há casos que esses psicanalistas me trazem
nos quais sempre o pai é ausente e as crianças se
encontram em um mal-estar, porque somente a mãe
tem de se ocupar delas. Eu os faço observar que,
nesses casos, essa manifestação do matriarcado tem
regras, tem leis, tem princípios, sendo importante
reconhecê-los, identificá-los e que não se trate para
nós de considerá-los como se fossem simplesmente
falhas do regime patriarcal. É uma outra maneira de
viver e de pensar, e que não é 1:ara. Portanto, a questão
é saber porque há uma tal censura sobre esses

81
problemas,. sobre essa questão. É evidente que, para
uma mãe, e esse é um traço desse dispositivo,
permanecemos sempre crianças, qualquer que seja a
nossa i dade, e esse é um ponto que não deve
ser negligenciado. Mas u111a questão se coloca sob o
ponto de vista estruturai':· qual é, nesse caso, o
referente que garante a autoridade da mãe? Qual é o
referente por meio do qual ela tem a possibilidade de
garantir a doação do falo para seu filho preferido, o
que, como sabemos, nunca deixa de causar problemas
não apenas para os outros irmãos, mas, sobretudo para
os próprios filhos dele. E nós todos sabemos o tipo de
drama familiar que isso pÓde suscitar. Sempre no
caminho do que nos permite compreender a paranóia,
essa excursão pelo lado do matriarcado ainda nos
permite compreender que há no Outro uma instância
Uma à qual a referência pode se fazer por outro viés
que não o da castração. Quer dizer que esse outro viés
faz com que seja a própria mãe, em sua realidade, que
encarne essa instância e que tenha, portanto, todos os
poderes para dar ou não dar o reconhecimento fálico a
tal ou tal de seus filhos.
Evoco essa situação porque vejo a dificuldade
que me toma para falar sobre isso. Devo dizer que
tanto em minha clínica, como na de vocês, esses são
fatos claros e evidentes.

A simplicidade dos exemplos clí nicos


As mulheres como falos que passeiam
Vamos passar para a simplicidade de exemplos
clínicos.
Vêm para análise um homem de quarenta anos
que trabalha no mundo da comunicação, deprimido,
que está mal no seu trabalho e que tem um irmão mais

1\.
' ,,.
�­

82
velho que é o eleito da mãe e que tem êxito naquilo
que empreende. Ele, que é o segundo, vem para a
. análise com seus fracassos profissionais, sentimentais,
com suas decepções. É um caso exemplar que não tem
nada de excepcional. Mas, na análise, que tipo de
processo vocês tentarão elaborar para lhe permitir sair
desse estado? Porque, corno vocês vêem, ele é vítima
de privação e não de castração. Entretanto, ele
sempre pode dizer: "é meu destino, eu sou destinado a
ser assim". Com a questão que ele nos coloca, como é
que vamos desaloj á-lo desse lugar? Porque, ao
escutá-lo não vemos imediatamente que progresso no
tratamento, forçosamente poderá se produzir.
Eu lhes dou esse exemplo a propósito de um
homem, mas é bem evidente que ele não se coloca
menos a respeito das mulheres. Vocês vêem, mesmo
que n os acreditemos ; mu i to li vres em n osso
pensamento, que acreditemos não ter limite, ou se
consideramos que os limites não sejam para nós, se
queremos falar dos problemas clínicos, que não são
negligenciáveis, vocês encontrarão imediatamente uma
reticência; como se não se devesse falar nisso, e, já
que eu tento refletir um pouco sobre essa questão,
então, por que é que há sobre isso urna tal proibição?
Pois bem, vocês têm a resposta. Porque, querendo
tentar conceitualizar esse processo, eu me introduzo
em um procedimento que, tomando sua autoridade do
significante mestre, resulta em que ele queira à força
sexualizar a mãe, fazendo-a entrar em uma economia
sexual comum. Isso mostra tão-somente, que, em
nosso inconsciente, para cada um de nós, uma mãe é
fundamentalmente virgem. O que pretendemos com a
conceitualização, é fazê-la entrar em uma economia
geral, que é uma economia libid_inal ; seria como
. exercer na mãe uma violência sexual que não é
conveniente. E é por isso que eu devo dizer que nós

83
temos aí um imenso capítulo que permanece, se assim
posso dizer, uma terra virgem, porque não é
conveniente abordá-lo. Devo dizer q ue, no meu
trabalho, quando cheguei a essas considerações, eu
mesmo fiquei embaraçado e·e.u as evoco para fazê-los
ouvir que é na medida em que ela se sustenta no lugar
do Outro, em que ela pode se apoiar nessa instância,
que ela encarna, como essas mulheres que vimos
nestas fotos, esses falos que passeiam. Pois bem,
acontece que uma mãe, mas também uma mulher, está
particularmente exposta ao ciúme, à reivindicação a
respeito dela, e isso apesar dela. Mas isso aí também
está ligado simplesmente ao lugar que ela ocupa.

o pacto do gozo e a virilidade do parceiro


Esse lugar, como eu lembrei anteriormente é
organizado pelo fato de que o significante mestre, que
tira sua autoridade do real, não tem o poder de
dominar o real, e que há sempre esse espaço Outro.
Mas sendo verdade que esse espaço Outro é o lugar de
acolhimento do objeto a, ele se acha ligado ao
significante mestre por um pacto que é o do gozo, um
pacto simbólico. S 1 e S2, que são unidos por um pacto
de um gozo possível partilhado, mas há homens que
recusam esse gozo comum partilhado, porque não
aceitam a amputação do significante mestre. Eles
querem uma virilidade que seja acabada, perfeita, e
que o parceiro seja ele mesmo viril. E, como vocês
sabem, há mulheres que não acei tam esse gozo
partilhado, porque consideram que esse lugar é um
lugar inferior àquele que seu companheiro macho
ocupa na cena. Portanto, ela considera ser tratada
injustamente e, em conseqüência, concomitantemente,
ela vê a relação com o falo apenas como um
traumatismo. Vocês todos conhecem os trabalhos de

84
Freud do período ele começou a análise. Em todas as
mulheres que ele encontrava , a introdução à
sexualidade se fazia por violências sexuais, por um
traumatismo. É muito comum verificar entre os
pacientes de vocês a evocação de um traumatismo na
entrada da sexualidade, por uma violência exercida
pelo pai ou por algum amigo da fam ília, etc . .
Evidentemente isso pode se produzir, não estou em
desacordo a respeito disso, mas freqüentemente é
somente um fantasma, e logo vocês vêem o que é um
traumatismo, é a entrada na sexualidade num lugar que
lhes parece desfavorável.

o semblante do poder � o poder absol uto


Haveria muito a dizer nesse ponto porque,
como o Presidente Schreber, ipoderíamos apreender que
esse lugar do Outro é o de um poder absoluto, não
somente como é o da mãe, mas - eu não sei como
vocês são - uma mãe não pode ser discutida.
Primeiro, porque isso não serve para natla, depois
porque a idéia nem mesmo vem devido a razões
estruturais, porque o significante do qual ela se
prevalece não é S 1 , mas é o significante que não é S2,
mas um significante que não tem nenhum limite e é o
que dá à mãe esse poder mágico, que nós honramos e
resp e i tamos, inc lusive quando j á estamos nos
arrastando c om reumatismo, e que nos faz
continuarmos permanentemente crianças. Isso é para
sublinhar que esse lugar do Outro é também o do
poder absoluto, não do semblante de poder, que é
aquele de um homem, e eu devo dizer que uma
mulher sabe bem que um homem só tem poder na
medida do semblante que ela lhe oferece e que
nomialmente, se isso não lhe convém, ela sempre pode
desvelar esse semblante. É por decência, respeito e

85
pudor que ela aceita esse semblante. Mas ela sabe que o
poder real está do seu lado. Com essa instância
ao-menos-uma, que não é dependente de nenhum zero,
que funciona num sistema onde não há nenhuma falta,
nenhum buraco. Eu diria que há apenas a incapaci­
dade das crianças para satisfazer perfeitamente a
expectativa materna.
Por que eu faço esse desvio, correndo o risco
de lhes parecer difícil ou talvez não necessariamente
agradável? Como eu mencionei, não podemos nos
contentar em repetir sempre a mesma coisa. É preciso
que também tentemos levantar as interdições feitas ao
pensamento no domínio que podem nos ajudar a
viver. Além disso, se queremos compreender o
paranóico, é preciso ter uma representação dessa
instância Uma no Outro, mas que não é ao-menos-uma,
já que ela é decididamente homogênea no mesmo
terreno que os outros elementos da cadeia e que, ao
mesmo tempo, seu estatuto normal é de ter uma
autoridade absoluta.
Uma nota mais leve, porque que eu sinto vocês
um pouco cansados, é um pouco pesado isso. Se
alguém de vocês quer trazer algum esclarecimento
sobre isso, ou objeções que possamos considerar como
válidas, eu lhes asseguro que serão bem-vindos, e eu
ficarei muito contente que venham a contrariar ou
desmentir o que estou trazendo.
O que abordo tem interesse em função do
assunto que nós estamos estudando, mas também por
causa do fato de estarmos num período de declínio do
patriarcado e justamente não se deve acreditar que no
lugar do declínio do patriarcado instale-se a desordem.
De forma nenhuma, porque o que se instala é uma outra
ordem , que é a ordem, se me perm i tem dizer,
tradicional, que precedeu o patriarcado e que durou
muito mais tempo, que é a ordem materna. E se vocês
1
�{
� 86
querem compreender a nova sintomatologia com a qual
l idam, será melhor que aceitem abrir os olhos a
respeito desses fenômenos quer isso seja agradável ou
des agradável, e assim poderemos responder às
questões dos nossos pacientes, como daquele que eu
mencionava há pouco. Mas eu tenho muitos outros
exemplos que são absolutamente de mesmo tipo, com
uma única surpresa de minha parte, que é a de saber
como se deu que até aqui essa barreira de estrutura
imposta ao pensamento é promovida à identidade de
imp o s s i bilidade, quando n a verdade se trata
simplesmente de impotência de nosso pensamento? E
como eu tenho a reputação de correr riscos, sobre esse
p on to eu também qu,ero _correr o risco ao
submeter-lhes essas questões, ao convidá-los a refletir
sobre isso, e eu ficaria muito feliz em escutá-los se
exprimir um pouco sobr6 essa questão. Vocês me
colocarão talvez alguma objeção de que isso que eu
conto não é Jacaniano, não é freudiano; mas, se não é
lacaniano, então tem de ser melma.niano?
Pois bem, considerem que vocês têm em Lacan
um ponto que ele não desenvolveu e que está em seu
seminário A lógica do fantasma, mais precisamente
no momento em que, na lógica do fantasma, ele
analisa a estrutura do cross-cap, em que ele isola no
cross-cap não um falo, mas dois, e que não têm a
mesma propriedade topológica. Pois bem, é exatamente
isso aqui que eu tento lhes falar. Portanto, ess a
diferença me dá um pouquinho de coragem. Eu saúdo
a coragem de vocês de terem recebido tudo isso, não
ti veram reações violentas , foram p acíficos n o
conjunto, mas não hesitem, por ocasião das perguntas,
de dizer tudo o que pensaram sobre isso, e eu me
permito dizer de novo, serão bem..;vindos, e eu lhes
agradecerei .

87
Respondendo perguntas : Reações paranói cas
na adol escênci a . Qual o senti do de povo
ai nda hoj e? Rel ação ent re pat ri arcado e
s ag r ado - a evi dênci a e o s í mbol o . A
fraterni dade entre · os anal i stas . A dupl a
recusa de ser i ntegrado e de s e r excl u í do
que ge ral mente l eva � vi ol ênci a .
Hi pe rativi dade . Pe rv� rsão e paranói a .
Pe rgunta - Na clínica com adolescentes se observa
com freqüência sintomas de paranói a - pessoas que os
observam , que os excl uem e também temem ser
excluídos, etc. Poder-se-ia pensar em uma possível
paranóia de autopunição no adolescente? O limite que
ele procura poderia ser uma saída para uma não
instalação desse quadro? Como o senhor vê a clínica
com pré-adolescentes e adolescentes em relação à
paranóia?
eh . Me lman -- Quando esse fenômeno se produz em
um adolescente, e, a partir do que nós trabalhamos até
agora nesses dois dias, é possível facilmente concluir
que se trata de um adolescen te que está e m
dificuldades para encontrar sua identidade sexual, e , a
partir desse momento ele se sente excluído, e essa
posição de exclusão, conforme já evoquei, é a fonte
.dessas reações de tipo paranóico. É por isso que a
maneira de abordá-lo não é de forma alguma se
interessar pelas suas reações paranóicas, mas se
interessar por suas dificuldades em s e fazer
reconhecer, e, se for um adolescente, para se fazer
admitir como um homem. Isso pode ajudá-lo. Com as
adolescentes é um pouco diferente, pois eu diria que o
meio social reconhece a feminilidade
',,
delas mesmo
quando elas nem sempre têm Vontade disso, mesmo
quando é a despeito delas. E, se nesse momento, se há
reações desse tipo numa adolescente, a conclusão é
diferente. Vocês podem pré-julgar, concluir que elas
não aceitam ocupar esse lugar ao qual as convida o
meio social . Vejam, então, de que maneira ter uma idéia
u m tanto clara dos mecanismos das reações
paranóicas pode nos ser útil pára fazer intervenções a
partir de um bom lugar. Porque se vocês começam a
questionar as próprias reações paranóicas em si, vocês
se encontram à margem do verdadeiro problema.
Sobre essa interessante questão eu posso dizer isso.
Pe rgunta - Fiquei instigada pelo fato do senhor ter
dito que a resposta referente à diferença entre povo e
nação não está senão com o analista. Eu também
pens o algo as sim. Penso que um povo tem a
incumbência de progredir, não como indivíduo, mas
como um grupo muito específico. Tendo em vista que
estamos formados em uma nação, uma pergunta que
me faço, e para a qual não tenho respostas, pergunto
ao senhor: a resistência de um povo é anacrônica? Qual
o sentido de povo ainda hoje?
eh . Me lman - Eu sou muito bobo, então eu faço como
Lacan, quando não sei responder, procuro pelo lado
da etimologia . Pop ulus, em francês é uma
palavra que designa o p eup lier 1 , conhecem essa
árvore? São árvores retas, muitas altas e que formam
um. Mas um povo é uma reunião de indivíduos.
Nação, etimologicamente, se refere a uma reunião de
nativos, quer dizer que se reconhecem numa mesma

90
origem. Po1tanto, é a reunião de indivíduos com o povo,
mas que se reconhecem na mesma origem, no mesmo
ancestral, e, como Freud mostrou muito bem com
Totem e Tabu, esse ancestral é sempre um ancestral
morto. Portanto, a subjetividade entre aquele que é
membro de um povo e aquele que é membro de uma
nação - quer dizer, organizados por esse assassinato
original, que se reúnem em torno desse pecado
original, desse crime original -, a subjetividade é
completamente diferente, e a conduta é completa­
mente diferente. Portanto, para que u m povo se
organize em nação, há u m tempo que pode ser
historicamente identificável, e é por isso que eu dei o
exemplo que para mim é o mais fácil, o exemplo da
França, e que fez uma naç�o a partir da execução do
rei. Até então havia o poyo francês e nenhum dos
membros do povo reconhecia para si um dever
nacional, o exército era constituído por mercenários,
e, freqüentemente, por mercenários estrangeiros,
suíços. E isso é antes da invenção do cofre-forte, os
suíços eram mercenários na época. Então, a pa·rtir do
momento em que se operou a morte do rei, cada membro
desse povo transformou-se em soldado e tornou-se um
defensor da nação. Vejam a mutação extraordinária que
se produziu ! Eu poderia dar outro exemplo europeu,
que diz respeito à história da Itália, por exemplo.
Havia um militante · socialist2, em 1 920, um grande
militante socialista que se dirigia ao povo italiano e
que se chamava Mussolini. Esse militante que se
dirigia ao povo e que constatou que ele não conseguia
transformar as pessoas do povo em verdadeiros
partisans, ele renunciou então de se dirigir ao povo,
para doravante se dirigir à nação. Ele não matou o rei,
ele simplesmente o prendeu no seu palácio, mas em
contrapartida a constituição de nação se dá quase
sempre com derramamento de sangue, com uma

91
dívid a de sangue, e, se não pode ser o sangue de
ancestral, que nem sempre existe, então se convida um
membro do povo a derramar o seu sangue, a fim
constituir a nação. É o que eu posso lhe dizer sobre
isso e se têm melhores percepções eu aceito.
Pe rgunta - O sagrado diz respeito ao patriarcado?E
o declínio do patriarcado também é um declínio do
sagrado? E se esse matriarcado é o que está surgindo
agora como urna nova questão não será justamente
porque não há uma inversão do S 1 em relação ao S2?
Então, porque não há uma inversão lógica?
eh . Me lman - Primeiro, eu peço permissão para lhe
felicitar por estar em dúvida. Isso é urna conduta
científica, e eu estou pronto para duvidar consigo.
Freud mesmo observa que a passagem do matriarcado
ao patriarcado foi, como ele diz, um progresso da
humanidade. Por quê? Por que um progresso? Porque
passamos do que até então era a evidência ao símbolo.
A evidê.ncia é que o agente da reprodução é a mãe.
Isso é a evidência. É a realidade. E o papel do pai, pelo
menos na questão, faz sonhar muito e nem sempre
pareceu eviden te. Há uma d i fi culdade com a
evidência. É que a ciência para se estabelecer tem
sempre de renunciar à evi dência. No entan to, é
irrecusável que a TeITa sej a plana. Quando saio eu
posso afirmar isso, permi t am-me fazê-lo, é
absolutamente plana. Isso não é evidente? E todo o
progresso da ciênci a foi recusar a evidência para
passar ao cálculo, quer dizer, ao uso do puro símbolo. O
patriarcado é atribuído à fecundidade, a uma autori­
dade que não é mais da ordem da evidência. Significa
reconhecer, na figura do genitor, o s ímbolo dess a
potênci a, que, apes ar de meus olhos e d e meus
ouvidos, apesar de minha tentativa de tocá-lo, não
posso pegar.

92
Então, é verdade que há uma certa homologia entre
a dimensão do sagrado e a dimensão d o
patriarcado, mas é preciso dizer por que a relação com
a mãe não é menos sagrada. Mas também seria
preciso tentar compreender o que é essa "de outra
maneira", e, se posso me permitir dar um exemplo
dessa diferença, direi que eu posso maldizer Deus, mas
eu não posso maldizer a mãe. Posso ser um infiel; eu
não posso ser infiel em relação à minha mãe, etc, etc.
Então, vejam aí que é uma fonna de sagrado que não é
a mesma nos dois casos. Agora, isso que você fala da
relação do S1 e do S2, é um problema interessante.
Abordaremos adiante e poderemos desenvolver isso e
evocar qual é o poder do S2. Obrigado pela questão.
Pe rgunta -A questão é a respeito da fraternidade dos
analistas. Isso me remeteu a uma questão de seu livro
Retorno a Schreber, no qual o senhor refere que
jamais constatou grande simpatia dos analistas entre
si. Já nos outros três discursos que não o do analista há
sempre a tentativa de reconciliação até o horizonte da
utopia de uma harmonia possível entre senhor e
escravo, mestre e aluno. O fato é que no discurso
analítico não h á a menor possib ilidade de
reconciliação. Entre o sujeito e o objeto há uma
situação de exclusão mútua. Para que um apareça é
preciso que o outro desapareça. E, em fu nção disso, a
propósito dos analistas, o que só se oferece a eles como
modalidade do laço social é a configuração ordenada
do d iscurso psicanalítico . Entendendo-se isso,
podemos compreender sua vontade de exterminação
possível. Mas podemos pensar que aquele que passou
pelo discurso psicanalítico, que foi atravessado pelo
discurso analítico tivesse chegado àquilo que Lacan
chama também de a liberdade incurável, sujeito que
pode exte1minar suas próprias pretensões. P011anto, pa-

93
rece que esse alguém nessas condições não entraria
justamente na situação paranóica com o outro, porque
fica a alternativa "ou eu ou ele". Portanto, eu não vejo
porque entraria numa rel ação de exterminação
suicida. Então, não seria porque não foi atravessado
pelo laço do discurso analífico, e aí ele caí pelos
passos dos outros?
eh . Me lman - Muito obrigado, Antonio Carlos. O que
eu gosto muito na sua questão é que você é absoluta­
mente animado pela esperança de que, se avançamos
suficientemente a análise, chegaremos finalmente a
resol ver o problema das nossas rel ações, e que,
portanto, se há sintoma nas relações entre os analistas,
por exemplo, é porque não se leva suficientemente em
conta a lição de nossa experiência. O que tenho
vontade de responder a 'você é que a razão pela qual os
psicanalistas não conseguem se entender entre si é
primeiramente uma razão lógica e que se liga a isso. É
que vocês podem aqui, manter juntos, unidades. Ora,
seja formando uma classe ou formando um conjunto.
Vocês podem reunir essas unidades, mas na medida
em que o analista se mostra um representante do objeto
a, quer dizer justamente daquilo que cai entre duas
unidades, e que não pode ser ele mesmo, ao mesmo
tempo, identificado como uma unidade, vocês não
podem mais reunir esses elementos, pois eles não têm
suporte de re'presentação unária. É por isso que vocês
têm essa formulação muito bizarra de Lacan que diz:
não há analistas, quer dizer, elementos reunidos na
classe dos analistas, ele diz, há analista. Assim como
se diz no c afé da manhã que tem manteiga. A
manteiga que está ali, na manteigueira, não é unidade,
eu preciso ir com a faca. E, portanto, eu diria que há
aí, uma estrutura que não é sintomática, mas lógica, e
que faz com que os analistas tenham dificuldade de se

94
manterem juntos, a não ser, eu diria, identificando-os
por ocasião de tarefas comuns e em que cada um, a
partir de tal momento, se torna por exemplo, o
trabalh ador para ajudar em uma tarefa comum.
Quando Lacan fundava não uma associação, mas uma
escola, todos os analistas eram representados não
pelos seus seres, nem pelo saber, mas pela tarefa de ter
de aprender. Somos todos alunos, temos todos de
aprender. E isso eu posso realmente reunir, os alunos
se põem numa classe comum. Numa associação, os
problemas já são diferentes. Há, portanto, aí um efeito
do qual os psicanalistas são vítimas e que se duplica
com outro problema. É que numa relação a dois não
pode haver o estabelecimento de uma paz senão com
a condição de uma heterotopia de lugares, essa que o
encontro com o mestre instala, que diz que há dois
lugares e que ele liga os dois lugares, e aquele que
ocupa os dois lugares por um gozo comum. Mas, na
medida em que os próprios analistas estão situados no
mesmo lugar, quer dizer, no Outro, não há heterotopia
de lugares. Eles estão no mesmo espaço e, a partir desse
momento, fica o afrontamento dual, restando apenas
ou eu ou ele. Então, eu lhes direi que aí também há
problemas, e que são problemas estruturais que regem
a situação. Será que os analistas são informados disso,
talvez? E, se forem informados, isso pode cessar?
Talvez ! Mas é corno todo o saber, não basta aprender
para aplicá-lo. Eis aí, caro Antonio Carlos, o que eu
posso responder sobre essa questão.
Pe rgunta - Não considero que a sociedade patriarcal
tenha caído, mas há lares em que absolu tamente não
existe mais o pai. Como é que o senhor poderia nos
explicar a paranóia nessas crianças sem pai e com uma
mãe também nem tão autoritária para sustentar o seu
papel ?

95
eh. Me lman - Evidentemente estou em dificuldades
para lhe responder sobre situações locais que eu não
conheço perfeitamente. Eu não gostaria de me lançar
em interpretações muito fáceis, mas eu acredito que
nesses casos vocês também. podem aplicar o que eu
falei há pouco. Uma posiçã0 de exclusão lança o
sujeito numa situação de estilo paranóico, e essas
crianças são evidentemente colocadas nessa posição
de exclusão, o que faz com que aí um eventual
tratamento só possa consistir numa tentativa de
integração que redunda infelizmente num fracasso,
porque na posição de exclusão há vantagens narcísicas
que são claras. Esse sentimento de estar à parte e de
ser único, mesmo que seja uma unicidade que seja
repetida por milhares de outros, oferece sustentáculo
narcísico ao qual a criança pode ter dificuldade de
renunciar. Mas a forma que eu proponho para vocês
talvez seja eficaz para decifrar esses casos, e, nesse
momento aí, medir bem a maneira como o procedi­
mento terapêutico pode levar em conta essa posição
ambivalente da criança, quer dizer, a recusa das duas
posições: recusa de ser integrado e recusa de ser
excluído, e é essa dupla recusa que geralmente leva à
violência, que não deixa mais nenhum lugar para ser
ocupado. O que resta para alguém quando não há mais
nenhum lugar, quando nenhum lugar lhe parece
próprio para ser habitado? Tentemos imaginar o tipo
de dor profunda que pode provocar esse sentimento
de que não temos mais nenhum lugar, nem dentro nem
fora, é como se estivéssemos mortos. É isso que pode
levar a matar o outro, quer dizer, a matar a si mesmo
no outro. E isso deve ser levado em conta nesses
casos.
P e r g u n t a - A respeito da clínica com crianças,
haveria uma relação entre o gozo da mãe, o gozo

96
Outro, e a manifestação de sintomas de hipercinesia
e défici t de atenção, situação em que o pai está
desvalorizado em sua potência de pai?
eh . Me lman - No excelente livro que se chama O
Homem sem Gravidade2 , eu conto a históri a de uma
criança, e eu peço perdão àqueles que leram esse livro
por repetir essa história, mas ela me ensinou muito e
me impressionou muito. Era um maravilhoso menino
de três anos e meio que se chamava Louis e vinha com
sua mãe, que era professora de uma universidade.
Ela o trazia porque na escola maternal não podiam
mantê-lo na medida em que ele se mexia o tempo todo,
e conseqüentemente incomodava as outras crianças, e
não conseguia ficar sentado numa cadeira. Quando a
criança entrou com a mãe no meu consultório, eu pude
constatar imediatamente ql,le era verdade. Eu estava
tratando com uma espécie de mosca que voava sem
cessar de um lugar para outro, de cima para baixo, em
todas as direções, que não conseguia parar. E eu fiquei
surpreso com o gasto de energia que ele fazia e eu lhe
dizia que ele acabaria caindo se mexendo assim. E
realmente ele terminava caindo, adormecendo
durante alguns minutos entre o pé de meu divã e a
parede, onde havia um pequeno espaço. Eu nem podia
imaginar que ele iria para lá e então deitava e dormia.
Dom1ia cinco minutos, acordava e recomeçava.
Eu o recebo várias vezes e tento imobilizá-lo
fisicamente, para poder falar com ele, m as isso lhe
provocou uma angústia absolutamente manifesta, o que
fez com que eu o largasse, e, ao final de quatro
semanas, cu me perguntava sobre o que eu podia
fazer. Será que eu tinha de lhe prescrever ritalina? E
então eu me disse: vou tomar coragem ! Diante da mãe
ele sempre ia por todo o canto. Eu lhe disse: "O que
não agrada a você é que na sua casa a sua mãe recebe

97
amigos que sã.o diferentes e você não gosta de vê- los
ficar de noite na casa. E quando você vai ver seu pai o
que não lhe agrada é que ele vive com outra mulher,
que não é sua mãe, e, neste momento, não lhe agrada
saber que você vai ter um m�io irmão." Quando eu
disse isso, a agitação extraordinariamente parou , e
depois ele exige ir embora. Pega a mão da mãe, e
então eu me digo que talvez aquilo fosse um mau
sinal. O meu consultório era situado em cima da sala
de espera. Era preciso descer as escadas para chegar à
sala de espera. Para descer a escada de madeira ele
pulava sempre vários degraus ao mesrrio tempo, com
risco de se machucar muito· e de se matar, mas
mostrando o homem que ele era. Mas, nesse dia, ele
parou no meio da escada, e, havendo pacientes na
minha sala de espera, esse menino de três anos e meio,
diz, núma voz muito alta para que os pacientes
escutassem, e eu, que estava no alto da escada,
também escutasse, ele diz : "Psiquiatra mau ! ".
Psiquiatra... Depois ele chega embaixo, são e salvo
(não quebrou o pescoço), volta e diz: "Vou lhe dar um
beijinho !" e vai embora.
A mãe voltou uns dias depois para me ver e
para me dizer: "Estão muito contentes na escola e
perguntam se posso lhes dar o seu endereço." Isso quer
dizer. . . é preciso refletir um pouco, apesar do prazer
que uma história dessas provoca. Isso quer dizer duas
coisas: a primeira é que se essa criança é hiperativa é
simplesmente porque não tem domicílio. Na casa de
sua mãe, com aqueles homens diferentes que vêm, onde
não é possível para ele nenhuma identificação viril,
ele não está em casa. Quando ele vai à casa do pai,
com essa mulher que não é sua mãe e que vai ter um
filho, com uma relação problemática com o menino,
ele também não está em casa. Portanto, é uma criança

98
sem domicílio fixo. Ele não tem nenhum lugar onde
se colocar, onde ele possa dizer, "aqui eu estou em
casa". Tentemos refletir o que pode ser para uma
criança não ter nenhum lugar no espaço onde ele
possa dizer: "aqui estou em casa". E o que isso
provoca como sintoma? É que ele não pode se afirmar
em sua existência e em sua identidade de menino
senão em um movimento o tempo todo, quer dizer,
essa motricidade permanente tornou-se a prova de sua
virilidade e de seu estatuto de menino. É a prova de
que não encontra em um lugar, pelo fato desse lugar
ter referência a um pai isso lhe permitiria construir sua
identidade.
A segunda coisa que me inte1Togo muito é por
que provocou um efeito favorável o que eu dissera.
Por que motivo? Ficamos qom facilidade contentes!
Então, eu suponho que, com essa intervenção, essa
criança havia encontrado um lugar, um lugar onde
havia sido escutada. E, pelo fato de ter encontrado um
lugar onde havia alguém que podia escutá-la, pode
encontrar essa sedação que lhe permitiu pousar, havia
um lugar onde ela era escutada. Eu acredito que não
desempenhei outro papel senão esse. Então, eu
penso que a hiperatividade, que hoje é um sintoma
freqüente, está ligada a um mecanismo semelhante.
São crianças que não têm domicilio, porque o
domicílio não é um quarto de hotel. Há pessoas que só
conseguem viver em um quarto de hotel porque
temem o que significa um domicílio. Não vou
desenvolver esse ponto no momento, mas há muitas
crianças que, por causa do esfacelamento da família e
da vida de cada um dos membros do casal, sem
preocupações maiores em relação ao que produziram,
apresentam essa ausência de domicílio. A questão do
gozo da mãe é uma questão muito ampla. Posso

99
somente responder agora dizendo que ela não se
confunde com o gozo Outro, mas, se me permitem
também poderemos voltar a esta essa questão.
P e r g u n t a - O senhor poderia fazer al gumas
aproximações teóricas entre à perversão e a paranóia?
eh. Me lman - Obrigado, por sua escuta. Você abre
uma questão importante. Eu apenas chamei a atenção
sobre o fat9 de que, na medida em que o paranóico
acredita que tudo lhe é permitido, comportamentos de
tipo perverso, inclusive, por exemplo, o incesto, e
eventual mente com os próprios firhos, não são
excepcionais. Mas não é propriamente falan do,
perversão. É psicose. É uma psicose com comporta­
mentos perversos sempre possíveis, justamente por
causa dessa ignorância na qual está o paranóico, da
interdição, sobretudo da interdição que · lhe diria
respeito. E temos tantos exemplos, por meio da
imprensa, como o do organizador de uma seita que
tem comportamento que nós chamamos perverso em
relação a diversos membros da seita. E isso pode não
lhe acarretar propriamente um problema moral. O
perverso pode ter problemas morais. Ele é sensível ao
fato de que atravessa um limite, mas o paranóico não.
Isso parece para ele normal. É o seu direito. Ele
apenas realiza um direito. Como o rei antigamente, da
mesma maneira, tinha todos os direitos sobre os seus
súditos. E ninguém protestava. Portanto, o paranóico
pode se surpreender que venhamos censurar o seu
comportamento que, para ele, não parece de jeito
nenhum irrepreensível. Eis aí o que eu posso dizer
sobre essa questão.

100
1
Em português, de acordo a edição eletrônica do Dicionário
Houaiss, "choupo, designação comum às árvores do gên. Populus,
da fam. das salicáceas, ger. cultivadas como ornamentais ou
pelas madeiras; álamo". N.R.T.
2
Rio de Janeiro, Cia. De Freud, 2003

101
A i n s t ân c i a fál i c a e o s s i n t o m a s d e
p e r s e g u i ç ão e a x e n ofo b i a . A p o t ê n c i a
d i v i n a p r e s e n t e n o r e a l . s ac r i f í c i o
s i mból i co . obj eto a e l et r a . obj eto a n a
n e u ros e - casos cl í ni cos . Don J uan
Respondendo O terceiro sexo. A
p e r g u n t as :
relação da ciência com o real e a relação da filosofia
com essas duas dimensões. li\ lógica é a ciência do real
Nós examinamos j untos um grande número de
fenômenos paranóicos muito diferente uns dos outros
e vamos agora tentar pôr um pouco de ordem em tudo
isso.
Como vocês sabem, um autor alemão, de nome
Kretschmer, escreveu, no início do século XX, uma
obra que se intitula A Paranóia Sensitiva, e nessa obra
ele traz várias observações do que ele chama de
paranóia sensitiva. E o interessante é que algumas
dessas paranóias se curaram espontaneamente. Dentre
as formas clínicas há uma que ele chama de paranóia
das solteironas e dos masturbadores. Ele relata casos,
masculinos e femininos, de pacientes em que o caráter
inegavelmente paranóico dos seus sintomas, quer
dizer, o sentimento de ser observado por todo mundo,
de ser criticado, de que falam mal de si às escondidas,
então, essas preocupações paranóicàs se davam pelo
fato de que se tratava de solteironas e de masturbadores,
e são os mesmos casos que, por meio de entrevistas
psicoterápicas, podiam curar-se espontaneamente, quer
dizer, no curso da psicoterapia.
Como é que n ó s podemos compreender
esses casos? Trata-se, de maneira bastante clara, de
pacientes que, estando à partr do comércio fálico,
sentiam-se, portanto, excluídos: ocupando um lugar
de excluídos em relação ao comércio fálico, o que de
um ponto de vista estrutural, é evidentemente muito
interessante:
Mas vou tomar um outro caso, um grande caso
clínico que todos vocês conhecem, porque eu acredito
que no Brasil todos conhecem Brigitte Bardot. Eu vi
sua estátua de bronze, em Búzios. Quando passeamos
em Búzios, vemos uma bela jovem sentada num
banco - e a única pena é que ela é de bronze, mas é
Brigitte Bardot, que atualmente é uma senhora idosa;
e essa mulher, de quem não se pode dizer que estava
excluída do comércio fálico, mas que se pode dizer
que foi muito mais um símbolo fálico, denuncia hoje
vigorosamente toda essa exalta,ção viril. Ela se tornou
uma militante de extrema direita e defe nsora dos
animais, desses pobres animais, desses animais gentis
que os homens perseguem o tempo todo - o que quer
dizer que atualmente ela parece vivenciar, ela mesma,
um pobre e gentil animal que durante toda a sua vida
foi perseguida pelos homens.
Então, af já não compreendemos muito bem;
nos casos das solteironas e dos masturbadores é
porque eles estavam excluídos do comércio fálico, e
no caso de Brigitte Bardot, ao contrário, é porque
ela estava plenamente no comércio fálico. Como é
que nós podemos compreender isso? Podemos
compreender isso como a manifestação do que se
passa para um sujeito quando a instância fálica, que
não aparece na cena do mundo, cujo lugar natural é o
real, por razões diversas, começa a se tornar presente

104
um tanto demasiadamente no real, e assini corre o
risco de aparecer na cena do mundo, pois bem, é nesse
momento que aparecem sintomas de perseguição. É
exatamente o que se passa com o que provoca em cada
um de nós a própria xenofobia.
Podemos ser muito inteligentes, liberais, mas
espontaneamente somos xenófobos. Por quê? Porque
a presença de um estrangeiro na cena do mundo faz ao
mesmo tempo aparecer, de maneira evidente demais,
a instância fálica da qual ele se prevalece, e ao mesmo
tempo faz aparecer a minha. Portanto, eu tenho raiva
dele tanto por fazer aparecer na cena a instância fálica
da qual ele se prevalece quanto por fazer aparecer a
minha, e a partir desse momento é inevitável que haja
um conflito, a fim de determinar quem dos dois,
sozinho, tem o direito de ex,stir. A necessidade na qual
cada um dos dois se acha preso é de tentar suprimir o
outro. Essa reação xenofóbica que é espontânea em
cada um de nós é, evidentemente, uma das grandes
fr aqu e z a s d a h u m a ni d a d e , m a s v o c ê s s a b em
p o r experiência própria quão difícil é superar isso.
Evidentem ente, ninguém ousa c onfessar.
Culturalmente, em nossos dias, não é politicamente
correto, mas em cada um de nós está vivo; portanto,
vocês vêem que desse lado temos ainda alguns
progressos espirituais e culturais a fazer para que
possamos reconhecer a humanidade do estrangeiro sem
ter esse tipo de reação paranóica.
No caso de Kretschmer, o que faz aparecer essa
instância no real é o fato de faltar a celebração do
culto dessa instância, de não celebrá-la pelos
sacrifícios que convém; a solteirona e o masturbador
se sentem , a partir daí, como sendo de uma
sexualidade egoísta e que não rende os deveres que
convêm à instância fálica. Mas vocês vêem também
que, no caso de Brigitte Bardot, talvez seja por ter

10 5
abusado de tal instância, ou por ter sido responsável por
uma presentificação demasiado grande dela
mesma, porque ela era um símbolo sexual, porque ela
mesma encarnava esse falo. Portanto, vocês vêem
como finalmente é o mesmo dispositivo estrutural,
mesmo que seja causado por c1rcunstâncias opostas,
que é suscetível de provocar uma situação
paraniogênico.
Desse modo, penso que as coisas começam a
se precisar para nós. A situação paranóica me cativa a
partir do momento em que tenho o sent.imento de que
no real, no Outro, há alguém. E aí eo me permitiria
retomar uma bela distinção que Lacan faz, e que Letícia
Fonsêca citou durante as questões que alguns de vocês
me fizeram: é o fato de que, com essa instância, estou
numa relação que é a seguinte: é um negócio
gramatical, não é mais que eu acredite nessa instância,
"eu acredito nela", e essa é toda a diferença da crença
em Deus. Deus, eu creio nele; ou não creio. Essa
i n s tância, "eu creio nela", é a passagem do
complemento de objeto direto ao complemento de
objeto indireto, e "eu creio nela" a partir do momento
em que, em lugar de estar confinada no real, ela me
parece prestes a aparecer na cena do mundo. É muito
justo que, nas narrativas bíblicas, o aparecimento de
Deus possa ser aterrorizante e que até mesmo cegue,
porque eu não posso ver a cena do mundo senão com a
condição de que essa instância falte, que é causa de
nosso mundo de representação. [Neste momento falta
luz na sala de conferência.] É formidável, eu falo do
desaparecimento da cena do mundo. . . , vou começar a
ter medo de mim mesmo. [Logo após, retorna a
energia.]
Pois bem, o milagre continua ! Quando vocês
estudam a cultura romana, vêem que um papel
essencial na determinação das ações coletivas era

106
desempenhado pela tentativa de captar as mensagens
que uma instância no real enviava para decidir se
deveri a ser empreendida ou não essa ação. E na
cultura romana vocês conhecem o papel dos
videntes. Por exemplo, Jú lio César, esse general
formidável e tão racional, não se engajava em uma
batalha sem que seus especialistas, os videntes,
examinassem as entranhas dos pássaros para saber
se os deuses eram favoráveis ou não ao início da
batalha. Vocês vêem que, bem antes de nossa religião,
já temos o testemunho de que numa cultura evoluída
como a cultura romana � que não era uma cul tura
tribal, nem totêmica - há essa crença na existência
de uma potência no real e da importância que há em
obedecer a essa potência. � isso pôde levar o mesmo
general, Júlio César, a r�tardar batalhas de uma
maneira que lhe foi nefasta, mas ele respeitava a
vontade expressa por essa potência divina presente
no real.
Da mesma maneira, em todas as populações se
observou o temor a essa potência, à qual era
igualmente atribuída a potência da fecundação e da
fecundidade e, portanto, a potência viril; origem,
então, do temor, no qual viviam espontaneamente as
culturas, de que essa potência viesse a desaparecer, e
que com o desaparecimento dessa potência fosse o
mundo que se e x t inguisse . É por isso que a
esterilidade de uma mulher ou a impotência de um
homem eram vividas corno se essa pessoa tivesse sido
abandonada pelos deuses. Vocês sabem que havia
numerosos cultos para fazer voltar a primavera, para
que as folhas aparecessem novamente nas árvores,
para que os animais tivessem crias, para que, no final
do inverno, a vida recomeçasse, como se nunca
estivessem seguros. E, por outro lado, se mantinha com
essa potência essa relação inquieta, quanto ao amor que

107
ela podia ter, porque ela sempre podia abandonar, se se­
parar e, ao mesmo tempo, fazê-los morrer.
Vocês vêem que, neste contexto cultural que é o
da humanidade ocidental (porque não vou falar da China
nem de tudo isso), nossa religião _veio constituir uma forma
de segurança inteiramente nova.pois veio afirmar o amor
de Deus pela criatura que estaria desde então em situação
de filiação com essa instância, o que não era de modo
algum o caso nas religiões romanas e gregas e, portanto,
que em relação a esse Deus estivéssemos seguros desse
amor, pois ele nos amava como um pai e ele se regozijava
por nos ver nos multiplicarmos, da mesma maneira que
um pastor se regozija de ver seu· rebanho crescer.
E, por outro lado, o fato que eu já evoquei a
respeito dos sacrifícios humanos, que não eram mais
necessários, nem mesmo os sacrifícios animais, mas
sim um sacrifício que se tornou simbólico. Então, o
q u e quer dizer um sacrifício simbólico? O que
poderíamos dizer sobre isso?

sac r i fí ci o s i mból i co
Pois bem , vamos d i zer que o s acrifíc io
simbólico consiste em remeter minha potência sexual
ao poder dessa instância e à regulação por essa
instância; quer dizer, o que agora eu devo a essa
instância é de apenas exercer minha sexualidade em
proveito dela e ao seu interesse, reservando minha
sexualidade para a procriação. Essa instância só se
regozija com minha potência sexual, ela só a concebe
com a condição de que ela sirva a esse Deus; quer
dizer que esse Deus só se constitui por esse sacrifício,
que não é o de um órgão, mas do uso desse órgão. É
uma ruptura completa com o mundo romano, mas é
também, e ao mesmo tempo, fazer depender a atividade

108
sexual do respeito por uma lei, por um certo número de
interdições, e que isso se tome a condição para o exercí­
cio da minha sexualidade.

objeto a e letra
Atualmente, nesse sistema, seria como se
fosse o respeito por uma lei que se tornasse a condição
da possibilidade de meu desej o e de minha
sexualidade. Portanto, é um sacrifício, do qual se pode
dizer que é exclusivamente simbólico. Sobre isso,
Lacan, sempre ele, vai acrescentar algo de estranho.
Ele dirá que esse sacrifício também tem um elemento
real, o que ele chama de-objeto a, e que esse objeto a,
cujo primeiro suporte m�terial é a letra, adquire
nomes diversos.Eu mencio�ei o excremento, mas pode
ser também o olhar, a voz, o seio, portanto ao menos
quatro objetos que correspondem a orifícios corporais
e que precisam ser perdidos, realmente sacrificados,
para que esses orifícios acedam a uma ati vidade
pulsional e desejante. No sacrifício simbólico, temos
a li bra de c arne, o termo vem de uma peça de
Shakespeare, O mercador de Veneza, em que todo o
drama se dá entre cristãos e judeus, porque o judeu
reclama do cristão o sacrifício da libra de carne.
Quando eu era um jovem psiquiatra e entrava na
sala em que estavam os · meus pacientes, eu
reconhecia de imediato os que eram psicóticos pela
maneira como suas bocas estavam como que
abandonadas, não vascularizadas, com a pele escamosa
em torno da boca, dentes que caíam, como se não
houvesse mais investimento erótico na boca, e mesmo
nos olhos, com secreções em torno das pálpebras, como
se aí também o olhar tivesse se tornado cego.

109
obj eto a na neu rose - casos c l í n i cos
Para não evocarmos somente o campo das
psicoses, mas observar a presença, a ação desse objeto
a na neurose, tomemos a neurose obsessiva, que é
caracterizada justamente pelo'f<t�O de que o neurótico
obsessivo não quer fazer o sacrifício real desse objeto
a. Ele aceita muito bem fazer as preces, ele aceita
fazer o sacrifício simbólico, mas o objeto a ele não
quer ceder, ele quer continuar gozando dele porque,
em seu espírito, ele imagina que, como esse objeto a é
o suporte do mais-de-gozar, ele não quer ceder a Deus
esse mais-de-gozar: ele quer gozar dele ele mesmo. É
por isso que o obsessivo, antes de tudo, é um constipado,
tanto organicamente quanto no espírito, porque do que
ele sofre é de uma constipação mental; e isso são as idéias
obsessivas. É sempre a mesma idéia que está ali, que
estagna, que é retida, que permanece; ele não consegue
passar para outra coisa.
Portanto, vocês vêem que o problema da
relação com essa instância Uma no real se encontra
notavelmente ilustrada em nossa clínica quando eu
aceito esses dois tipos de sacrifício, o sacrifício
simbólico, mas também o sacrifício real, isto é, essa
libra de carne, esse objeto a, cujo suporte estrutural é
uma letra, mas do qual uma das materializações é essa
parte do corpo. Então vocês me dirão: "Atenção ! O
excremento é evidentemente um suporte material, mas
e o olhar, e a voz e ainda o seio, vá lá! Também tem
um suporte material, mas não se separa do corpo".
Então, como fazer a equivalência entre esses diversos
elementos que não dependem da mesma materialidade
e, n o entanto , poderíamos entrar n u ma ampla
descrição clínica que poderia mostrar a vocês a
natureza propriamente real do que Lacan chama o olhar
como objeto a, a voz como objeto a, o seio como

110
objeto a. É preciso que eu renuncie ao olhar para ter
acesso à visão, quer dizer, à visão do mundo de
represent ações ; o significante está em Freu d ,
Vorstelungrep rasentanz, quer dizer q u e há u ma
instância que eu posso considerar como a represen­
tante do que causa nosso mundo de representações, do
nosso mundo de semblantes, o que faz com que
renuncie a ver o real.
Eu recorto o real, eu aceito esse mundo de
semblante , e , se por algum acidente ou alguma
infelicidade eu encontro esse objeto a olhar, o que para
mim funciona como objeto a organizador da minha
visão, pode então produzir fenômenos psicossomáticos
que abolem a minha visão. .
Eu tenho uma história muito bonita, de tão
incrível, e espero que ela lhçs pareça aceitável, e não
obscena demais. Era um paciente que participava de
um grupo de trabalho: eles estavam sentados no chão,
em cima de tapetes, e nesse grupo de trabalho havia a
mulher que ele adorava, sem jamais · ter podido
aproximar-se dela. E ele estava assim, deitado no chão,
no tapete, e essa mulher se desloca, e talvez com um
pouco de charme, ela passa por cima dele; e ela não
usava roupa íntima. Ele estava ali diante do que tanto
tinha desejado sem jamais ter podido atingir. Pois bem
- perdoem-me por essa história porque ela é um tanto
triste no final -, foi iJniciso levá-lo:com urgência a um
hospital porque ele havia tido uma hemorragia
retiniana.
Eu tenho outras histórias assim, inclusive
atualmente, entre os meus pacientes. Eu tenho uma
paciente, uma mulher notável, que, por peculiaridades
ligadas à sua mãe, ela nunca pôde renunciar ao olhar -
será que isso quer dizer que ela não está no campo da
visão? Ela teve uma hemon-agia da mácula da retina,

111
quer dizer, o que permite a visão precisa, de urna
maneira que os oftalmologistas jamais tinham visto. Ela
veio para análise por conselho de um amigo, pelo temor
de que isso acontecesse com o outro olho, pois no olho
q ue tinha sido atingido. ela não tinha mais
visão central, visão precisa,' ·eJa tinha apenas uma
visão periférica e um pouco borrada; vamos dizer que
essa história pára aí. Pois bem, ela tinha igualmente
com o espaço uma relação bem particular, porque não
podia se orientar no espaço. Acontece que, em sua
infância , ela viveu no mesmo quarteirão do meu
consultório, então, quando ela vem de carro e, na
medida em que o meu consultório se encontra ali, de
certa maneira no meio do espaço, ela nunca consegue
situar qual rua deve tomar para chegar até lá.
. É uma forma, · podemos dizer, de agnosia
visual. E quando ela era criança já tinha o primeiro
sintoma visual, que é muito raro e que os oftalmolo­
gistas não encontram freqüentemente: ela tinha um
olho que via de longe, um olho que via de perto, mas
ela não podia acomodar a visão num plano médio; é
extraordinário! Vocês vêem com esse exemplo como
o plano das representações não é somente um
fenômeno biológico, um fenômeno simplesmente
orgânico, mas sim ligado a uma instalação que
implica a renúncia desse objeto a, o olhar.
E vocês sabem também, para retomar o
exemplo do obsessivo, que a retenção do objeto a
suspende sua sex ualidade; então, giramos nesse
momento em torno das condições que são feitas para
nós obtermos a benevolência dessa instância Uma no
real, e que funciona não somente nos oferecendo o
sentimento de que, em troca de nossos sacrifícios,
seremos amados por ela, mas ainda que ela autoriza
nossa sexualidade com a condição de fazermos o uso
dela que ela nos prescreva.

112
Don J ua n
Há esta peça admirável que se chama Don Juan,
de Moliere, que ele retomou de um autor espanhol,
Tirso de Molina, se bem me recordo. Don Juan se
autoriza todas as mulheres, mil e três; nada mal; ele a
freqüenta, a deixa de lado e passa para uma outra; ele
ocupa agradavelmente o seu tempo até o momento em
que aparece, no real, a estátua do comandante, quer
dizer, justamente dessa instância que o seu uso do sexo
ofendeu, e esse comandante representa, é claro, a
figura paterna.
Será que Moliere escreveu uma peça
religiosa? Moliere não era religioso; escreveu uma peça
da maneira que para nós, em nossa cultura e em nosso
tempo, funciona a estrut�ra. Evidentemente somos
capazes de mudar as conpições de nossa cultura, e
podemos fazer com que tenhamos relação com uma
outra estrutura.
É justamente o que tento contar nesse livro
sempre tão excelente, O homem sem gravidade, e que
terá com certeza conseqüências para que isso apareça
mais claramente. Essa continuação do meu livro já tem
um nome. O livro não está inteiramente escrito: já
tenho vários começos desse livro, mas eu hesito sobre
se o l i v ro deve ser diri g i do a um público de
psicanalistas ou ao grande público. O problema com
os psicanalistas é que eles preferem não me ler: é o
direito deles, assim eles ficam tranqüilos, e eu
respei to aqueles que procuram a tranqüi lidade;
portanto é verossímil que será um livro para o grande
público - o qua l , lhes asseguro, n a França,
compreende admiravelmente o que eu refiro. E esse
livro do qual eu falo teve, na França, uma audiência
pública extremamente ampla e totahnente inesperada.
Então, vou de qualquer forma lhes dizer que esse livro
deve, portanto, falar da modificação estrutural do

113
sistema no qual entramos. Esse livro se chamará Como se
livrar das mulheres [risos do público].
Vejam o que aconteceu com Don Juan; se ele
tivesse lido meu livro ele também estaria tranqüilo
como os psicanalistas porque ..� modificação estrutural
na qual entramos tem por objetivo primeiro, em nome
da igualdade e da paridade, de se livrar das mulheres,
o que quer dizer, ao mesmo tempo, do sexo. E como
eu gosto sernpre de manter um pouco do suspense, a
continuação se dará daqui a pouco.

Res pondendo perguntas : Sobre o terceiro sexo. A


relação da ciência com o real e· a relação da filosofia
com essas duas dimensões.
P e r g u n t a - Pensei muitas coisas, a partir da sua
colocação sobre uma outra possibilidade de referência
ao falo. Um sambista, do morro carioca, chamado
Nelson tem um sambinha que diz assim: "nosso amor
é tão bonito; ela finge que me ama, e eu finjo que
acredito". A minha segunda consideração é que essa
outra referência ao falo me fez l embrar de um
psicanalista brasileiro, chamado MD Magno, que o
senhor, com certeza, conhece. Alguns anos atrás, MD
Magno teve uma proposta de pensar para além dos dois
sexos, conforme Lacan : o sexo homem, e o sexo
mulher. Insatisfeito com esses dois sexos, propõe um
terceiro, que os psicanalistas brasileiros entenderam
mal como um sexo gay ou andrógeno, o que não é.
Uma terceira questão diz respeito à relação da ciência
e do real: sou levada a pensar no que os cientistas
falam do seu trabalho; haveria uma distância muito
grande entre aquilo que os cientistas acreditam querer
dizer, ou aquilo que os cientistas dizem que fazem com
o seu trabalho, e aquilo que os filósofos da ciência
dizem que e l es fazem ? ... Fico pen sando se os

114
cientistas não estão mais próximos de fazer uma
espécie de semblante de apreensão do real e que são
os filósofos da experiência que acham que eles
apreendem o real.
eh . Me 7man - Todos temos a experiência, com a
comprovação da vida familiar, de que há duas
autoridades diferentes, e que cada uma dessas
autoridades se apóia numa instância diferente. Todos,
na medida em que fomos crianças, fazemos a
diferença entre a autoridade paterna e a autoridade
materna. E, como já tive a oportunidade de observar, a
autoridade materna não se discute. É, portanto, para
todas as crianças, inclusive para todos os adultos, um
problema muito grande. É também uma autoridade que
não é racional. Evidentemente que, em geral, ela quer
o bem das crianças, e que :em geral isso se justifica,
mas não é forçosamente sempre o caso. Entretanto,
isso não se discute. Eu j á contei isso, mas as
psicanalistas de crianças que eu já conheci eram
mulheres notáveis, e uma delas, notável, com um
certo gênio, e, justamente, uma dessas que eu conheci,
se chamava Jenny Audry, a mãe de Roudinesco.
Conheci bem Françoise Dolto, conheci bem Maud
Manonni, e estava claro que seu tipo de autoridade e
seu tipo de exposição não eram os mesmos que o de
Lacan. Elas tinham o hábito, gostássemos ou não, de
tratar os homens como crianças. Quando estávamos
com elas tínhamos sempre a impressão, qualquer
que fosse nossa idade, de estarmos de calças curtas.
É isso a autoridade materna. O que quer dizer que,
espontaneamente, somos sensíveis ao fato de haver aí
dois referentes, avalistas da autoridade, e que não são
o mesmo. Qual é a grande diferença? É que há um,
pelo lado paterno, que não pode ser perfeito,
completo; quer dizer, o Pai é apenas o representante

115
dessa autoridade, ele tem o Nome-do-Pai, na medida
em que, justamente, ele só tem o seu poder por ser o
representante de uma sexualidade que só continua a
existir no real com a condição de que o poder do Pai
não se pretenda como mestre· çlo real; e qu ando o Pai
pretende ser o mestre do real ele'exerce um poder que é
do t i po paranóico. O poder da mãe não deixa
nenhum lugar ao real; dizendo de outra maneira, é um
poder fora do sexo. E é por isso que. disse ontem que
somos levados, espontaneamente, a pensar que uma
mãe é sempre virgem; e todos sabem da dificuldade da
criança para aceitar que sua mãe possa também ser
uma mulher. Essa divisão também é muito freqüente
entre as mulheres, entre a posição da maternidade e
a posição sexuada, nós sabemos isso. Isso quer
dizer, portanto, que há, na referência a essa instância,
elementos que tomam a mãe onipotente, tanto mais que
ela não é a representante dessa instância, ela não é a
sua metáfora: ela é a própria instância, como real. Quer
dizer, ela tem o direito ao capricho; ela tem o direito de
exercer um poder caprichoso; portanto, devo dizer, que
cada um de nós tem uma experiência bem direta dessa
duplicidade fálica, salvo que uma não tem a mesma
função que a outra. Poderíamos continu.ar com esse
tema durante muito tempo, pois é comum que um
homem despose uma mulher que ele desej ará fazer
funcionar como uma mãe. Isso faz parte de nossa vida.
Não é nenhuma psicopatologia; faz parte da vida
cotidiana.
Quanto à sua segunda questão, a do terceiro sexo,
eu posso dizer que já ouvi falar do caráter genial de
Magno, mas que esse terceiro sexo, de minha parte,
ainda não encontrei ; então, se ele exíste, justificado por
um gozo que seria perfeito; porque se é para chegar a
um gozo igualmente falho, quer dizer, se aí também o

116
gozo nunca é perfeitamente realizado, não adianta,
talvez, inventar um terceiro sexo. Mas espero
encontrar, quer sej a na literatura, quer sej a na
experiência clínica, as modalidades de expressão
desse terceiro sexo. Também não creio que na
literatura tenhamos muitos traços. Sabemos que,
nesse domínio, a ficção precede sempre a realidade;
então, quais são as obras da ficção que evocam o que
seria o modo de existência de um terceiro sexo?
E, enfim sua questão concernente à relação da
ciência com o real e à relação da filosofia com essas
duas dimensões, eu diria que a filosofia das ciências é
sempre decepcionante. Eu acho que Karl Popper não
fornece da ciência uma boa definição. Quando se
pergunta a um cientista - que é sempre muito seguro
em relação ao psicanalist�, muito orgulhoso de ser
rigoroso -, quando lhe perguntamos: "O que é a
ciência? Dê-me uma definição de ciência, uma
definição que seja científica e não filosófica como
aquela de Popper" (porque ele sempre responde
citando Popper). Para obter essa resposta, eu gostaria
muito de que viessem me d izer que h á aí u m
procedimento que reconheço como científico, porque
h á numerosos procedimentos que se parecem
com procedimentos científicos, mas que não o são. Por
exemplo, Pitágoras, será que é científico? É claro que
é científico, e, no entan to isso é falso. Portanto, não há
a noção de que uma verdade seria eterna e que é o
critério do aval. Tomem a definição euclidiana das
paralelas: paralelas são duas linhas retas que não se
cruzam. A definição foi verdadeira naquele momento
da ciência. Hoje, duas paralelas se encontram no
infinito. Será que isso é menos científico que a
primeira resposta? Será que a primeira é falsa? Não !
Como reconhecer se um procedimento é científico se
não há verdade eterna? Como eu tentava dizer, um

117
procedimento é considerado científico, na medida em
que resolve o que até então era impossível.
Havia, por exemplo, a equação Fermat, que
ninguém podia resolver, e, há um ou dois anos, houve
um matemático que resolveu a.equação de Fermat. Isso
é científico. Quer dizer, isso repousa em um domínio
daquilo que num momento cultural dado se apresenta
como um impossível. No campo da psicanálise há,
entretanto, esse fenômeno que eu mencionei ontem.
E, com uma interpretação rigorosa, vocês tentam, no
paciente, dominar o que para ele constituí o real. Com
isso vocês podem provocar duas coisas: seja uma
resposta que diz "não, não é isscr de jeito nenhum, você
não compreendeu nada". É normal que, se vocês
pretendem dominar o que para o seu paciente é seu
real - quer dizer o que lhe permite existir -, vocês
terão uma resposta de tipo histérica. Então, vocês
podem se apresentar como sendo especial istas da
histeria, mas um especialista da histeria não deve
pretender dominar a histeria. Ele deve simplesmente
tirar o chapéu, quer dizer, respeitar o fato de que há
sempre um impossível, e que é desse real que subsiste
o sujeito e seu desejo, inclusive o seu desejo de se
queixar, e de dizer que o mundo nunca é assim, nunca
é perfeito, que ninguém para ele é um parceiro
perfeito, e que ele mesmo é um imperfeito. Então ele
tem o direito de dizer, mas vocês podem ter uma outra
resposta, com uma interpretação que é definitiva­
mente exata, que é o desencadeamento de uma
psicose, e alguém justifica que a interpretação marca,
se possível, um dizer metafórico, mesmo alegórico,
mas que ela não procu re , j ustamente, ser "a
verdadeira".
Ao longo das questões que foram colocadas,
havia uma que era, em relação a isso, muito boa. Quer
dizer, a psicose podia ser desencadeada por uma

118
resposta que chegou antes que a questão fosse
colocada pelo sujeito. Foi Lacan que disse isso, é
bonito como fórmula. O que quer dizer que uma
psicose pode ser desencadeada por uma resposta que
tenha chegado antes que a questão tivesse sido
colocada pelo sujeito, e isso quer dizer, justamente,
que a resposta vem fechar a abertura na qual se
mantém o sujeito, ela vem obturá-la antes mesmo que
o sujeito tenha podido manifestar essa abertura: essa
abe1tura que é essa de sua questão e da questão de sua
existência.
Há pais que são assim, que dão às crianças as
respostas antes mesmo que as questões delas sejam
feitas; pais que têm tanto medo que falte algo à
criança que funcionam assim. Não deixam nem
mesmo tempo para que ela� façam sua demanda; eles
antecipam. Isso torna a criança muito inteligente, ou
um pouco desregulada.

A. 1 ógi ca é a ci ênc i a do real


Já que temos ainda alguns minutos, e sua
questão merece ser reconsiderada: qual é a relação da
psicanálise com a ciência; será que a psicanálise pode
ser científica? Lacan dizia que não! Por quê? Porque,
justamente, a vocação da ciência é de fechar toda
impossibilidade, enquanto que a vocação da
psicanálise só pode se referir à lógica que, como eu já
falei para vocês, funda a impossibilidade, funda o real,
mostrando que nenhum sistema formal pode impedir
a instalação disso que resiste a toda formalização de
um sistema, mesmo quando essa formalização é
perfeita. É preciso que eu passe para um metassistema
para resolver a impossibilidade própr_i a a esse sistema.
E é por isso que Lacan diz que a lógica é a ciência do
real, e isso é uma definição, mas não estou certo de

119
que os lógicos a compreen dam, m a s para o
psicanalista ela é formidável. E a psicanálise é a
maneira de experimentar os sistemas formais próprios
de cada neurótico que o põem em relação com o real, e
que podem ter para ele conseqüência de inibição e de
impotência. Disso podemos ac;êditar que não sejam
os melhores e que eles podem ser levados a se
queix ar. Portanto, o trabalho da análise é de lhes
permitir se colocar em ordem com o impossível, que é
própri o e específico da linguagem e que é a
impossibilidade do rapport sexual. Não é a relação
sexual, isso se tem o tempo todo 1 • E talvez
precisemos explicar o que isso quer dizer, porque
justamente o paranóico denuncia sua m ul her,
suspeita que ela o engana porque ela é incapaz de lhe
assegurar não uma relação, mas um rapport sexual.

1
Neste ponto do seminário, Charles Melman sugere que na
tradução se conserve o termo de Lacan, rapport sexual para
diferenciar de relação sexual. N.R.T.

12 0
O que é um fato clínico?
Po r q u e o p a r an ó i co s e s e n t e s e m p r e
ameaçado em s e u estatuto?
schrebe r : paranói co ou esqui zofrãni co?
A i n s t ân c i a fá 1 f c a c o m o i nst ânc i a
pe rsegui dora
o que é a ps i cose soci al ?
Vol tamos , como as popul ações pri mi t i vas , ao
temor de desaparece r
A partir de que momento vocês dizem que
estão em presença de um fato clínico? É o paranóico
que vai nos instruir, porque, à medida que ele vive na
ilusão de que conseguiu dominar o real, opera-se nele
uma modificação e ssencial: o significante se
transforma em signo. Tudo agora se constitui em
signo para ele, e vocês sabem muito bem que, quando
encontram esse sintoma num paciente, isto é, que no
mundo das representações haja elementos que para ele
constituem signo, vocês têm o direito de continuar
atentamente o exame. Graças a Lacan, encontramos a
diferença entre significante e signo: o significante é o
que representa um sujeito para um outro significante,
quer dizer, ao mesmo tempo o significante significa
um enigma. O que é esse sujeito que em mim fala?E o
que é que ele quer? O signo, diz Lacan, é o que
representa alguma coisa para alguém. Quer dizer que,
a partir do momento em que essa mutação se operou,
do significante para o signo, primeiramente eu me
tornei alguém, e por trás de cadç1. signo eu suspeito que
'.
a Coisa está presente.
O movimento normal do significante, que a
figura do toro representa perfeitamente, é de ser um
movimento · circular organizado em torno de dois
furos. Vamos supor que o furo que está no centro do
toro seja aquele que funciona no Outro, e que o furo
que está no interior do toro seja o que a minha fala
constitui girando em torno de uin vazio, o qual vocês
vêem que tem uma certa relação topológica com o furo
central. Mas, a partir do momento em que eu acredito
ter conseguido fechar esse buraco, a circulação do
significante se detém, estagna. E é nesse momento aí
que vocês têm esse fenômeno que faz com que o
paranóico tenha um pensamento fixo, parado, que diga
sempre a mesma coisa e que ele não seja suscetível de
produzir um progresso no seu pensamento.
Mas, então, vocês objetariam: se o paranóico
tem o saber da verdade e, ao mesmo tempo, a verdade
do saber - eu retomo aí a fórmula que Ana Cristina
Rocha me propunha durante o almoço -, do que é que
ele ainda pode se queixar? Por que é que ele tem essa
idéia estranha de que o alguém que ele representa está
sempre ameaçado e que ele se sente exposto ao risco
de ser destituído do seu lugar? Dito de outra forma, o
que é que está faltando ainda aí, já que ele sabe tudo?
Ele se afirma como sendo alguém, e, mesmo, em ex­
tremo, o único que existe, e que os outros se tornam
simplesmente coisas para ele. Ele não tem alterego,
não tem parceiro, está totalmente sozinho em um
mundo onde os outros estão resumidos ao estado de
coisa, é isso o signo.

12 2
Eu queria lhes fazer a seguinte questão: será que
um sujeito q ue vamos qualificar de banal, de
·normal, nunca encontra signos? Ou, dizendo de outra
maneira, será que o signo é a assinatura definitiva da
patologia mental, ou será que um sujeito comum não
consegue encontrar, no campo das representações,
elementos que lhe façam signo?
Isso acontece para ele em uma circunstância: é
quando a representação com a qual ele lida constitui
signo para ele, quer dizer, representa uma coisa que
para ele tem significação sexual. Isto é, por exemplo,
para o homem pode ser a mulher, ela constitui signo
para ele, e mesmo freqüentemente ele acredita que ela
constitua signo para ele, que ela dá sinal verde,
quando na verdade ela não deu nenhum, ele imagina
que ela deu um sinal para :ele, mas isso é um efeito da
estmtura. E como vocês sabem que a reivindicação .
habitual de uma mulher é justamente não ser tratada
como uma coisa, mas ser tratada como um sujeito, ela
não quer ser identificada como uma coisa. Essa
famosa coisa, a causa que suporta para o homem o seu
desejo, ela exige ser tratada como um sujeito, mas, a
partir desse momento, ela corre o risco de perder o seu
atrativo sexual. Portanto, vocês vêem que há nessa
histó1ia uma pequena complicação, o que também quer
dizer que, na vida, nesse estatuto que chamamos o da
normalidade, eu possa encontrar signos sem que seja
uma manifestação patológica, mas com a condição de
que a tensão provocada pela presença da coisa possa
ser sexualmente resolvida, quer dizer, resolvida pelo
gozo. E é i8so o que faz com que digamos que em
psicopatologia um fato clínico é um signo, signo de
alguma coisa, que não pode ser resolvido pelo gozo
sexual, que não se presta ao g·ozo sexual, e é por isso
que a função tradicional do curandeiro está reservada
à instância fálica.

12 3
o que é um fato cl í n i co?
Em todos os povos, a instância curadora se
confunde com a instância fálica, de tal maneira que,
em uma população dada, m�smo primitiva, haverá
sempre essa idéia de que ex'i'ste em seu seio uma
instância curadora, e que essa instância curadora tem
forçosamente representantes especializados, quer
dizer, curandeiros, médicos. E é por isso que eu diria
que a medicina sempre existiu em todos os povos muito
antes de ser minimamente eficaz. É claro que o
empirismo terapêutico sempre existiu, mas esse
empirismo não teria existido se não houvesse essa idéia
de que está forçosamente presente no grupo essa
instância cuidadora, cu radora, e que tem forço­
samente representante.
Contando isso tudo, eu me lembro de um belo
artigo de Lévi-Strauss, penso que está no seu livro
chamado A ntropologia Estrutural, que conta a
história de um jovem que, em uma tribo determinada,
foi levado a ocupar o lugar do xamã, porque esse
havia morrido, então, era preciso que houvesse um.
Então, o grupo escolheu um desses jovens para ser o
xamã, o curandeiro. E esse jovem contou muito bem
ao i nvestigador - que era Lévi- Strau ss - seu
constrangimento ao ter de fazer um conj unto de
gestos rituais, presumidos curativos, quando na
verdade ele mesmo sabia não ter nenhum poder de
curandeiro, mas os outros lhe atribuíam esse poder, o
que faz com que, no final de certo tempo, ele tenha
efetivamente se tornado o xamã. Eu conto essa
história porque ela continua se reproduzindo todos os
dias em todas as nossas culturas refutadas como
científicas; aparecem sem cessar novos curandeiros, e
há sempre clientela para eles, para esses novos

124
curandeiros. Sem dúvida, como vocês mesmos, eu
conheci pacientes que tinham esta particularidade de
percorrer sem cessar o mundo inteiro à procura do
verdadeiro curandeiro. Quando vocês têm esses
pacientes em análise, apreendem imediatamente que
eles colocam problemas particulares em relação à
transferência, e que isso também implica uma
disposição estrutural muito especial, mas, muito
interessante e que em geral gira em torno disto, que
eles não puderam confiar no próprio meio familiar e
que procuram sem cessar no mundo essa instância à
qual eles poderiam finalmente se remeter e na qual
eles poderiam acreditar efetivamente.

Po r que o p a r anó i co se s e nt e s empre


ame aç ado em s e u esta�uto?

Há pouco eu coloquei a questão para vocês:


mas por que o paranóico se sente sempre ameaçado
em seu estatuto? Pois bem, é justamente porque,
pretendendo se constituir à imagem de um Um fálico e
do Um fálico onipotente que já mencionei a propósito
do matriarcado, ele se põe em concorrência com o
Outro, e desde então isso se torna uma espécie de
conflito que não podemos mais dizer que é um
conflito de eu a eu, mas de Um a Um, conflito dual . E,
justamente, por causa do seu conflito, ele acusa sua
mulher, que freqüentemente faz muito esforço para ser
sua coisa perfeita, essa que obedece a ele em tudo, que
partilha seu delírio. Pois bem, apesar disso, mas, pelo
fato da presença do Outro Um e pelo fato de que seu
sistema não o torna mais capaz de possuir essa coisa,
ele vai acusar a sua mulher de traí-lo com um outro
Um, que está sempre ali. Logo, vocês vêem que o
delírio de ciúmes e de reivindicação significa a

12 5
reivindicação de se fazer reconhecer como sendo a
autoridade superior, e é por isso que o paranóico vai
fatalmente escrever para o Presidente da República ou
para o Papa, para se fazer reconhecer como sendo a
verdadeira autoridade. Vocês v'ê�m, portanto, porque
o paranóico está nessa situação instável e que se torna
para ele, eu diria, evidentemente insuportável. A partir
do momento em que ele acredita ter conseguido a
apreensão perfeita da coisa pela transformação do
significante em signo, ao mesmo tempo, ele aboliu o
lugar da alteridade e também, na sua relação com
outrem, não há mais a heterotqpia dos lugares que
permite que cada um aceite a diferença, que cada um
aceite o lugar que ocupa, e precisamente em nome do
gozo e inclusive talvez simplesmente narcísico.
O que ocorre no caso Aimée, com as irmãs Papin
ou com relações que são ditas puramente duais é que a
exclusão de todo elemento terceiro, quer dizer, da
instância fálica, suprime essa heterotopia dos lugares,
e, no momento em que aconteça que com outrem eu
ocupe o mesmo campo, o mesmo espaço, isso se
torna, então, a Juta pela vida, porque só pode ficar um.
Isso quer dizer que é preciso eliminar o outro, que vem
abusivamente ocupar meu lugar.
Vocês vêem ainda de que maneira nossos
elementos estruturais permitem apreender a clínica do
paranóico e inclusive o fato de que, se ele não
consegue vencer a instância fálica Uma à qual ele se
opõe, é ele que é transformado em coisa, em coisa
sexual , e é por isso que o paranóico vive sempre no
temor de que queiram transar com ele, de que queiram
abusar dele, aproveitar seu sono para penetrá-lo ;
finalmente, seu desejo secreto profundo é d e ser
batido pela instância Uma, à qual ele se opõe, a fim de
ganhar um outro estatqto que não esse do signo, mas

12 6
p ara que, sendo amputado, ele tenh a acesso à
dignidade de significante.
Vocês conhecem o trabalho notável de Freud
que se chama Uma criança é batida, no qual Freud
observa esse fato paradoxal no qual a criança
procura ser batida por seu pai , e isso vale para ela
corno prova de amor, quer dizer, o que ela procura é
uma operação que simbolicamente represente a
castração, mesmo sob uma forma traumática, e que,
a partir daí viria identificá-la a seu pai .
Há c r i anças q u e s ão p arti cu l arm e n te
desagradáveis por uma razão muito simples: é que elas
procuram ser batidas. E como hoje é proibido bater
em uma criança - na Franç,a se uma criança é batida,
há um número de telefone especial e ela pode acusar
os seus pais. Vocês vêerh que isso é u m pouco
desconfortável para a criança, que seus pais não
possam mais, quando é preciso, bater nela, tanto mais
que, a partir desse momento, há tão-somente uma
solução interessante, que vocês conhecem bem, mas
que os educadores, os professores, não compreendem
de j eito nenhum: que as crianças se batam entre si, é
isso o que foi ganho.

sch rebe r : paranói co ou esqui zofrêni co?


Telma Queiroz me fez chegar urna questão de
alguns dentre vocês, que são particularmente sensíveis
à dúvida, questão que alguns se colocam a propósito
da minha maneira de tratar Schreber, quer dizer: como
um paranóico, quando ele seria na realidade u m
esquizofrên ico? É urna questão interessante e que
acompanha o caso Schreber desde que ele foi
publicado. Os psiquiatras gostam muito de discutir entre
si - Schreber: esquizofrênico ou paranóico?

12 7
A esquizofrenia é muito diferente da paranóia
pela seguinte razão: é que, para o esquizofrênico, há
no Outro uma multiplicidade de lugares, uma
multiplicidade de furos de onde isso lhe fala, e a partir
desse momento aí, essas vozes que lhe falam, a partir
dessa multiplicidade de furos pbdem adquirir todos os
sentidos. Há, por exemplo, algumas que lhe dizem
injúrias ao mesmo tempo em que há outras que lhe
dizem palavras de amor. Há algumas que o convidam a
ser um homem e outras que o convidam a ser uma
mulher ; e quando a esquizofren_ia ev olui , as
alucinações podem terminar por não ter nenhum
sentido.
Nesse contexto, podemos considerar a paranóia
como uma tentativa de cura da esquizofrenia, porque
ela isola um lugar Um de onde isso lhe fala e ela põe o
próprio paranóico em um lugar Um. A partir desse
momento, a multiplicidade de sentidos se organiza
nessa unicidade monótona que é a do paranóico, quer
dizer que o paranóico encontra aí um modo de saída
da esquizofrenia e é, efetivamente, o que acontece com
Schreber: ele sai da esquizofrenia pela adoção de uma
posição paranóica, e, a partir do momento em que ele a
assume, ele se sente indiscutivelmente muito melhor.

A i n s t ân c i a fál i c a como i n s t ân c i a
pe r seguidora
Para concluir, preciso evocar o que acontece
nessa mutação que nós conhecemos e que visa a fazer
da instância fálica não mais a instância reguladora de
nossas relações, mas uma instância perseguidora. É a
época na qual estamos, e isso que hoje nós chamamos o
declínio do pai não é outra coisa senão o declínio do
representante dessa instância fálica. Isso é tanto mais
justificável, pois como os fiz observar anteriormente,

128
a ciência conseguiu resolver esse imp ossí vel,
conseguiu fechar esse real, que era o l ugar dessa tal
. instância fálica, pois hoje, graças à ciência, nós nos
transformamos nos mestres da reprodução, e nenhum
sociólogo e nenhum moralista pode dizer que
importância tem tal fato para a nossa organização
psíquica.
Anteriormente eu contava de que maneira os
povos viviam na preocupação de que a instância
divina, guardiã da reprodução, viesse a desaparecer,
de que maneira nós aguardávamos as sugestões dos
deuses e o quanto nós procurávamos seus favores no
temor que essa instância viesse a desaparecer.
Pois bem, acontece que os cientistas, nos seus
pequenos laboratórios; real izaram sem saber o
sacrilégio supremo, pois :não somente desvelaram a
face de Deus, mas ao mesmo tempo mostraram que
ele não existia, ou que, pelo menos, não precisávamos
dele, que podíamos prescindir dele, tornando-nos os
mestres da fecundação, pois podemos agir à vontade.
O progresso científic o c hega até a suprimir a
diferença no nível das células, pois antes era preciso a
união de uma célula macho e de uma célula fêmea, ou
seja, a distinção dos sexos ficava no nível biológico
essencial para a reprodução.
Vocês sabem que agora, a partir das células­
tronco de um mesmo indivíduo, podemos diferenciar
células macho e células fêmeas e fazê-las se
fecundarem entre elas, quer dizer, o indivíduo será de
ce11a maneira seu autogenitor, e isso é schreberiano. É um
fantasma schreberiano poder fecundar a si mesmo e
isso está em Schreber. Formidável que a ciência
realize o fantasma do presidente Schreber ! Mas, ao
mesmo tempo, com essa forclusão da instância fálica,
entramos em um novo regime que se aparenta com a

129
psicose. Encontramos em L acan uma estranha
fórmula, em algum lugar ele fala de psicose social.

o que é a psi cose soci al ?


A psicose social é s·e guramente a de uma
sociedade que forclui a castração� que está inteiramente
organizada em torno de uma exigência de satisfação
de demandas e de necessidades.
É dé uma certa maneira o que vemos se
produzir com todas essas conseqüênci as clínicas
que s ão tão evidentes, quer dizer, primeiramente
as rei vindicações de igual_dade. A igu a l d ade,
evidentemente, tem sentidos políticos precisos e
particulares, segundo os diferentes países do planeta, mas
tem prim eiramen te um sen tido estrutural . A
igualdade quer dizer que não há mais diferenças de
lugares, que todos ocupam o mesmo lugar, com as
conseqüências que eu mencionava há pouco. Ocupar o
mesmo lugar quer dizer também que não há mais
dist1i rn; ão dos sexos, e que há mesmo ui:na exigência
pelo unissex ou para que uma mulher possa, da
mesma maneira, ocupar uma função masculina ou ter
uma representação masculina, um homem uma
representação feminina, sem que isso venha a fixar a
iden tidade. E é i s so que vocês vêem n o que
chamamos hoje de a liberdade dos costumes, é o que
vem se produzir. Ao mesmo tempo, isso transforma a
sexualidade, que se torna muito menos um desejo e muito
mais uma demanda e uma necessidade.
Alguns dentre vocês colocaram a questão: qual
é a diferença entre privação, frustração e castração? A
mesma questão que se coloca a propósito da diferença
entre demanda, necessidade e desejo. A demanda e a
necessidade se dirigem a um objeto que figura na
realidade, sem que o seu consumo seja garantia de

i30
qualquer saciedade. É por isso que, nos países que
c h am am o s ricos, o grande s i n t o m a atu al é a
· obesidade, que se tomou um sintoma social. Acredito
que nos Estados Unidos a percentagem de obesos na
população deve ultrapassar 30% e n as crianças ainda
é pior.
O desejo se sustenta não por um objeto real, é
raro que na realidade se coma a mulher, existem
alguns casos excepcionais em que isso aconteceu, mas,
são casos que permanecem excepcionais. O desejo se
sustenta por uma imagem que é causada por um objeto
que o suj eito ignora, mas que é causa de uma
satisfação, que é suscetível de introduzir pelo menos
para o homem uma saciedade. Quando, em uma
situação presente, a sexualidade torna-se uma simples
necessidade, o resultado é o que vocês vêem na
maneira como isso funcicina entre os nossos jovens. É
uma necessidade satisfeita, normal, sem importância
particular, uma satisfação que não constitui ato.

vol tamos , como as popul ações primitivas , ao


temo r de desaparecer
Portanto, vocês vêem que, como em todos os
domínios, essa forclusão da instância fálica, essa
exclusão da função paterna tem evidentemente um
certo número de efeitos, e dentre eles também há o
fato de que agora os · significantes com os quais
lidamos são imperativos, são totalitários. E vocês me
dirão: mas, se forcluímos a instância fálica, e se
escutamos Lacan, ela deve reaparecer no real, e para
nós o que é que reaparece no real, será que reaparece
alguma coisa? Pois bem, ó que reaparece para nós no
real - assim como para o povo primitivo - é uma
. instância misteriosa que ameaça a existência do
planeta e que é suscetível de levar à extinção da

13 1
espécie humana. Atualmente vocês sabem de que
maneira vivemos todos nessa ameaça que diz respeito
ao globo, que chamamos aquecimento do planeta e que
pode resultar - nenhum de nossos cientistas é capaz
de julgar perfeitamente - na extinção da vida no
planeta. Então, vocês me dirã�' justamente: sim, mas
isso é real , não é um fantasma ! É verdade, é
puramente real, mas é preciso dizer o seguinte: todos
esses fenômenos de poluição não ex,istiriam se nossas
populações não estivessem engajadas nesse
superconsumo permanente, isto é, precisamente essa
rejeição, essa perda de todo o l)mite, que faz com esse
hiperconsumo, que tem uma relação com a forclusão
da instância paterna, tenha também esse resultado, que
também tem incidências reais, coordenadas
fantasmáticas. Nós · voltamos, como as tribos
primitivas, ao temor de uma potência que é
ameaçadora, que se manifesta todos os dias pelo
degelo, pela elevação do nível do mar, por esse
fenômeno El Nino, a desertifi cação de certos
territórios; e nós voltamos, como as populações
primitivas, ao temor de desaparecer.
Eis aí de que maneira, sem ter procurado e
sem ter querido, nos colocamos em uma certa posição
paranóica; e será interessante ver, no futuro, de que
maneira isso se tomará um tema político maior, quer
dizer, já existem homens políticos que compreenderam
que seu futuro consiste em se apresentar às popula­
ções para defendê-las contra essa instância destrutiva
e maléfica, e nós veremos no que politicamente vai
dar. Mas, posso dizer a vocês que, em meu país,
por exemplo , o tema da ecologia foi u m dos
temas centrais da campanha eleitoral , e que o novo
Presidente da República fez com que o segundo
ministro em importância de sua equipe ficasse
encarregado da ecologia.

132
Eu queria, para concluir, antes que venham suas
questões, queria lhes dizer, que, no que me diz
· respeito, não sou de maneira alguma alguém que
denuncia os fenômenos, eu tento apenas analisá-los,
lhes oferecer uma leitura a fim de ser capaz de
responder aos problemas que meus pacientes vêm me
colocar. No que me diz respeito pessoalmente, não
tenho nenhuma outra ambição, e se me acontece, no
que eu escrevi, de me dirigir a um público mais
amplo, é somente para mim mesmo, para refletir. Os
analistas, que pertencem freqüentemente a outros
grupos e a outras escolas, não se interessam pelo que
conto, da mesma forma que não se interessavam pelo
que Lacan também contava, da mesma maneira que
Freud permaneceu muito": tempo sem ser escutado.
Quando Freud qonstatou que ele não era
escutado pelos médicos, nem pelos psicólogos, nem
pelos educadores, ele fez um livro que se chama
Conferências introdutórias à psicanálise para se
dirigir ao público, para verificar pelas reações do
público se suas teses não tinham nenhum interesse ou
se elas obteriam um certo eco. O que faz, portanto,
com que quando eu escrevo um livro para um público
maior e que esse público responde, presente, que ele
está ali, isso não me transforma em um pregador. Um
psicanalista não é um pregador, ele se contenta em
tentar analisar os fenômenos, quer dizer, não os
elementos neuróticos de tal ou tal personalidade.
Vários colegas de quem gosto muito, durante a
campanha eleitoral na França, falaram na imprensa da
personalidade de tal ou tal candidato à presidência;
mas essa personalidade, eles não a conhecem, eles só
conhecem a representação que é dada pela mídia e é,
portanto, um pouco abusivo e mesmo um pouco
intrusivo pretender dar uma análise da neurose ou do
caráter de alguns candidatos quando não o tivemos no

133
divã. Em troca, o que é permitido é analisar o discurso do
candidato, não a personalidade neurótica, mas o que ele
diz, e a pa1tir do que ele diz saber a que tipo de autorida­
de ele se refere e que tipo de autoridade ele propõe aos
eleitores. É divertido pe�sar q ue na ú ltima
campanha eleitoral na França o:� dois falos, dos quais
eu falava há pouco, estavam perfeitamente bem
representados, de tal maneira que um e outro dos
candidatos não se apoiavam no mesmo referente. Eu
acho que isso pode ser dito. Eu mesmo fui levado a
dizer isso na imprensa e pude constatar que fui muito
bem escutado, que os leitores estavam tão atentos
quanto vocês estão, e o pior · é que a evolução da
campanha e seus resultados mostraram que eu não
estava errado.
Com efeito, vocês vêem que os psicanalistas
possuem, sem o ter procurado, uma percepção da
estrutura que lhes dá, e somente a eles, uma legibilidade
possível dos fenômenos. Acredito que seja honesto
nesses casos permitir aos cidadãos ter uma certa idéia
da análise desses fenômenos e que sejam convidados
a partilhar essa legibilidade. Até aqui havia um grande
sistema de interpretação, muito forte, e que era muito
justo para analisar os fenômenos sociais e, n uma
pequena medida, os fenômenos psíq uicos, era o
marxismo. Como nós sabemos é um modo de leitura
que desapareceu de tal maneira que hoje ninguém mais
tem um esquema de leitura dos fenômenos, a não ser
indivíduos estranhos e às vezes um pouco malucos que
se chamam psicanalistas e que tiram o seu saber de
uma prática. Isso faz com que, ao ser esclarecida essa
prática, e particularmente pelo ensino de Lacan, ela
possa resultar útil, interessante e estimulante.
Espero que eu mesmo tenha conseguido
estimular vocês um pouquinho, e saibam que eu sou
muito sensível à atenção que quiseram me dar. A vocês,
a palavra.

134
Respondendo pe rguntas : A posição do analista e o
envolvimento com o paciente. Psicose infantil e
paranóia infantil . O tratamento e a realidade do
inconsciente. A possibilidade de sustentar a heterotopia
dos l ugares numa situação de declínio da função
paterna. Síndrome do pânico e paranóia
Pe rgunta - Sobre o envolvimento do analista com
um paciente e as conseqüências para o analisante.
eh. Me lman - O que é interessante observar é que os
pskanalistas se sentem freqüentemente tentados a
encontrar meios mais diretos do que os da fala. Por
exemplo, se vocês prestarem atenção em Ferenczi, uma
figura histórica da psicanálise que instaurou como
método o fato de poder beijar ou acariciar suas
pacientes; com os pacientes, aí eu não sei o que ele
fazia. Mas, quando Ferenczi fazia isso, podemos
muito bem analisar por quê: é que ele próprio tinha se
sentido frustrado por não receber de Freud todo o amor
que ele esperava. E particularmente quando Freud
escolheu Jung para lhe suceder, isso ocasionou uma
grande crise em Ferenczi. Então, nessa ocasião
compreendemos por que, tendo essa reação diante do
seu analisante, o analista faz apenas agir o que· ele
teria desejado que o seu próprio analista fizesse por
ele próprio.
Há um outro caso famoso na literatura, é o de
Sabina Spielrein, que foi analisante de Jung, e da qual
Jung fez a sua amante transitória e, em seguida, ele a
deixou, a abandonou; Sabina foi encontrar Freud para
se queixar para ele. Devo diZ"<r que a posição de Jung
nessa história é notável. Primeiro porque os pais de
Sabina vieram lhe encontrar para perguntar o que ele
tinha feito e Jung lhes escutou, não disse nada, mas
pediu a eles para pagarem a consulta. A posição de
Freud quando Sabina foi vê-lo é interessante, porque
Freud não pronuncia nenhuma condenação, ele não se
coloca como o guardião da moral, o que quer dizer
que ele parece considerar esse acontecimento como
fazendo parte do que pode acontecer, sem que ele, no
entanto, jamais tenha encoraj ado isso, pois ele
recomendou especificamente a abstinência.
Considerando isso, querer fazer passar essa
passagem ao ato como sendo motivada por uma
intenção terapêutica é difícil de aceitar porque, no
final de contas, se podemos reconhecer que, nas
relações inter-humanas, manifestações inesperadas,
mesmo ilícitas, possam se produzir, querer fazê-las
passar como sendo animadas por uma intenção
terapêutica, isso tem um nome, isso se chama a
perversão. Então, será que a perversão é uma forma de
cura da neurose? Em todo caso, não é a que podemos
considerar como sendo a melhor.
Acredito, portanto, que, sobre isso, sem
assumir a posição moralista, trata-se de conservar ao
mesmo tempo o lugar do analista, talvez admitir que
em alguns casos essa posição possa ser difícil de se
sustentar e isso também acontece, eu diria, em outras
situações em que a abstinência é rigorosa. Mas, em
todo caso, não poderíamos de maneira alguma fazer
dessa passagem ao ato uma regra, e menos ainda, eu
diria, aceitar que isso possa encontrar sua justificativa

136
no que seria uma intenção terapêutica, à não ser que
destinado a nos fazer rir.
É isso que eu posso dizer a vocês. Quanto às reações
que se pode provocar no analisante, porque pode
acontecer que a psicanalista mulher seja provocada
sexualmente por um analisante homem, as conse­
qüências do que isso pode ter para um anal isante
são totalmente imprevisíveis, vocês não podem pre­
dizer o que vai acontecer para ele, e nem para o
analista. Ninguém sabe quais conseqüências poderá
ter para ele essa passagem ao ato. É isso o que eu
posso dizer sobre essa questão.
Pe rgunt:a - Quais seriam os sinais psíquicos mais
precoces que se poderia encontrar em uma criança, ou
mesmo em um bebê, no risco de estruturação
paranóica? Seria pos�ível fazer um trabalho de
prevenção da paranóia em crianças?
eh . Me lman- Obrigado, agradeço por essa questão,
mas posso observar que eu creio já ter mencionado
para vocês que o comportamento de grandeza, de
ciúme e de reivindicação, a certeza de ter razão e de
não querer escutar ninguém é uma posição
relativamente comum na evolução de uma criança.
Acredito que não nos viria ao pensamento dizer que
isso levará a temer por uma evolução paranóica. Há
fases possíveis nas quais esse tipo de reação se
produz, e isso faz parte, eu poderia dizer, de uma
banalidade que não inquieta muita gente, apenas o
vizinho que pensa que essa criança mereceria umas
boas palmadas. E acontece que isso possa simples­
mente curar, dessa maneira.
Podemos observar verdadeiras psicoses na
criança, sabemos perfeitamente que há psicoses
autênticas, delirantes e alucinatórias nas crianças. Esse
é um ponto que estranhamente Lacan não tinha visto

137
muito bem, que nunca foi falado com ele porque ele dizia
que não pode haver psicose na criança.
Quando vocês vêem uma criança solitária que
começa a se manter com as mãos nos ouvidos,
parecendo estar completamei:ite absorvida do que
acontece, vocês podem legitimàmente temer que ela
tenha fenômenos alucinatórios auditivos. Portanto,
indiscutivelmente, a psicose infantil existe, mas eu diria
que a paranóia infantil não é, de maneira nenhuma,
presságio de uma evolução psicótica nem de uma
evolução paranóica.
Pe rgu nta - Eu tenho uma questão de dois
momentos, o primeiro justamente, me parece que os
psicanalistas não podem tomar a mesma posição que
Ulisses tomou em relação ao canto da sereia, tendo
em conta que a psicanálise não se pretende uma
Weltanschauung. O segundo ponto, que tem uma
articu lação com isso, concerne a quais são as
articulações entre o real e a realidade, uma vez que
Lacan, ao se referir à transferência, coloca-a como uma
atualização da realidade do inconsciente, u m
inconsciente que é sexual e que está para ser
realizado. Então, são esses dois pontos: um teria a ver
com u m a v isão pol ítica, e sobretudo sobre a
participação, e outro relativo a essa articulação entre
real e realidade, e a não-realidade do inconsciente.
eh. Me lman - No que diz respeito à questão de saber
se a psicanálise é uma Weltansc hau ung, u m a
concepção de mundo, a psicanálise não o é por uma
razão muito simples: porque se ela tem uma ética, ela
não tem uma moral, quer dizer que ela tem uma
análise das morais existentes, mas não privilegia
especialmente uma tal ou tal moral. Por outro lado, a
psicanálise não promete nenhum novo gozo, nem um
terceiro sexo - justamente para retomar uma das

138
questões anteriores -, quer dizer, ela permanece cativa
dos gozos existentes. Em troca, ao exemplo de Freud, ela
· pode, por sua legibilidade dos fenômenos, falar da reli­
gião, como Freud fez em o Futuro de uma ilusão, ela
pode falar sobre a organização social, como Freud o fez
em Psicologia das massas e análise do eu, e, portanto,
ela pode perfe itamente den u nc iar os
fenômenos que constituem ameaça o u entrave à
realização de um sujeito.

Em 1 925, e sem jamais ter ido à Rússia, Freud


tinha meios de decifrar os fenômenos que lhe
permitiam dizer que o bolchevismo não tinha futuro e
não era recomendável; i_s so é muito forte da parte de
alguém que não é de jeito nenhum especi alista em
política, que jamais tinl\a ido à Rússia, numa época
em que numerosos intelectuais estavam fascinados
pela revolução soviética. Ele foi capaz de dizer: não,
isso não é assim, que isso constituía um entrave ao
desenvolvimento a ser esperado e desejado do
indivíduo. Agora, Ulisses, será que ele teve razão de tapar
os ouvidos? Essa é uma outra questão, é uma outra
históiia.
Com relação à sua segunda questão, quando
Lacan diz que o tratamento é a colocação em ato da
realidade do inconsciente, foi pensando nisso, não é,
que me perguntou: o que ele quer dizer? A realidade
do inconsciente é para cada um de nós, e por causa do
recalcamento, sexual. Dizendo de uma outra maneira,
as manifestações do inconsciente vão forçosamente
falar do sexo. Afinal de contas por que um sintoma
não falaria do tempo que faz, ou então de tal filme que
o paciente viu, ou então de qualquer outra coisa? Como
é que pode ser que as manifestações do inconsciente
· venham sempre falar do sexo? Pois bem, porque até
hoje essa formação, sua constituição, era ligada a um

13 9
recal camento do sexual, ou, dizendo de outra
maneira, o limite, ele mesmo tinha um sentido sexual e é
por isso esse limite foi chamado castração.
Então, se o tratamento é a colocação em ato da
realidade do inconsciente é pqrque, para que essa
realidade sexual do inconsciente'·possa se exprimir, é
preciso que haja alguém que esteja disposto a
escutá-la. Se não houvesse ninguém para escutá-la,
essa realidade do inconsciente, em. suas diversas
mani festações sintomáticas , n ão seria jamais
escutada. Por isso Lacan diz que o psicanalista faz paite
da realidade do inconsciente do paciente, ou, dizendo
de outra maneira, para que o caráter sexual que foi
recalcado possa passar para a realidade é preciso um
analista que faça parte dessa realidade; quer dizer que o
inconsciente freudiano não é qualquer inconsciente.
Será que há no inconsciente outros elementos que não
os sexuais? Será que poderíamos encarar um incons­
ciente que se diz dessexualizado? Por exemplo, se não
há mais recalcamento , será que a :realidade do
inconsciente ainda é sexual? É preciso responder a essa
questão, mas, em todo caso, até o momento acho que
podemos responder a ela como eu a evoco.
As manifestações do inconsciente já existiam
antes de Freud. Como é que elas eram eventualmente
interpretadas? Sabemos mais ou menos : ou eram
desconhecidas ou eram interpretadas como diabólicas,
quer dizer, animadas por um senti do sexual, mas
independente da vontade do sujeito. Ou seja, o sujeito
era apresentado como clivado em relação a essas
manifestações diabólicas que se produziam inde­
pendentemente de sua vontade, ele era habitado pelo
diabo. Foi preciso o estabelecimento do tratamento
por Freud para reconhecer nessas manifestações a
verdade do sujeito, não o diabo, mas o que constituía a
verdade do desejo de um sujeito. E é por isso que Lacan

140
diz que Freud operou um deslocamento do sujeito que é
essencial, posto que dessa vez nós lidávamos com um
sujeito que dizia a verdade, que dizia a verdade pelo seu
próprio sintoma, que dizia a verdade do seu desejo, e
para retomar a fórmula formidável de Spinoza, que esse
desejo constituía para esse homem sua própria essêricia.
E isso era, por parte de Spinoza, dizer que o
desejo é a essênçia do homem. Que fórmula ! A
necessidade e a demanda para um animal, mas o que
constitui a essência do homem é o desejo. Já é o que
tinha dito Antígona. O que Antígona tinha dito a seu
irmão é que ela não podia recusar uma sepultura para
Édipo porque, com a expressão do seu desejo, ele
apenas tinha manifestado a.essência mesma do homem;
então, devia-se recusar uma sepultura àquele que era a
vítima da sua própria essência? Eis então, algumas de
1

minhas observações.
Pe rgunta - O senhor referiu que o matriarcado não é
nem melhor nem pior que o patriarcado, é uma outra
forma de falo, mas hoje o senhor di sse que n a
exclusão d a função paterna nós fomos lançados em
uma situação que parece acarretar uma psicose
schreberiana. No Seminário Retorno a Schreber, o
senhor pergunta em que ordem nós podemos nos apoiar
para sustentar a heterotopia dos lugares numa
situação de declínio da função paterna. Eu entendo que
essa pergunta vale tanto para o nível da clínica, em
cada caso singular, quanto para um n ível da
intervenção que os psicanalistas gostam de sustentar
na cultura, à qual o senhor, por exemplo, não se furta.
Como sustentar aí uma posição que não seja nem
relativista, nem, por um outro lado, a nostálgica de um
pai a recuperar?
eh. Me lman - Muito obrigado. A função paterna é o
suporte de todas as neuroses, de todas as perversões e

141
até mesmo das fobias, e, em escala social, ela é capaz
de provocar psicoses coletivas sob a forma de
man ifestações extremas de nacionalismo ou de
integrismo ou de fascismo. Portanto, qualquer que seja
a transferência que possamos ter com a instância
paterna, não podemos desconhe'cer o preço que se paga
por essa transferência. E se somos fiéis à psicanálise e
a Freud, se colocamos que o objetivo do tratamento é
o que se chama a liquidação da transferência, o que
isso quer dizer? Significa o convite a manter um
rapport com o real que não necessitaria mais de urna
autoridade, de um agente policial ou · de um general
para fazer respeitar esse real.
A liquidação da transferência não tem outro
sentido, e eu diria que isso vale da mesma maneira
para a situação do matriarcado, na qual , como
imaginamos, a liquidação da transferência coloca
outros tipos de problemas. Entretanto, se há u rna
finalidade no tratamento é, bem, a análise e a
resolução da transferência. Logo, como · você.s vêem,
trata-se menos de tentar avaliar a quantidade de
sintomas; nós devemos, seja de um lado ou de outro,
antes nos interrogarmos: será que somos capazes de
liquidar a transferência? Não é evidente ! Quando
vemos os alunos em torno de Freud será que não
podemos refletir que há uma forma maior p ara
conservar a transferência, há uma forma que é bem
mais fo1te do que o amor? É o ódio, porque o amor
pode terminar por se acalmar, se esgotar, mas o ódio é
uma paixão para a vida toda. E na história do
movimento analítico, tanto para Freud quanto para
Lacan, vocês podem classificar o que aconteceu em
torno deles dessa maneira.
Por exemplo, evidentemente eu não vou dar
nomes, mas conheci em torno de Lacan alguns
discípulos cujo amor de transferência se transformou em

142
ódio, sob o pretexto de não ser mais vítima desse
amor. Mas o ódio no qual entraram, e que os ligava
. definitivamente a Lacan, durou não somente a vida
inteira deles, mas habitou todo seu trabal h o e
pensamento, ou, dito de outra maneira, eles eram
muito mais escravos da transferência com esse ódio,
que era suposto liberá-los, e não procuraram uma
outra resolução para o amor de transferência. Então,
se me permite, é dessa maneira que eu relativizaria a
avaliação que teríamos a fazer das conseqüências
sintomáticas do patriarcado ou do matriarcado, para
lembrarmos s i m plesmente. que . o obj et i vo da
psicanálise é a resolução da transferência num e no
outro caso.
Se vocês não têm mais questão, eu tenho
algumas belas questões em estoque, de reserva.
Mar ia Fle ig - Nós teinos uma pilha de questões
inscritas. Outra questão diz respeito à diferença entre
rapport e relação, mas como Ivan Corrêa lembrou j á
há muito tempo, o termo utilizado por Lacan vem da
matemática, relativo à equação no que diz respeito à
relação entre os termos. A essa relação denominamos
proporção, e em francês chama-se rapport. Então,
Lacan afirma que não há uma proporção [rapport]
perfeita no sexual. E nisso Melman sugere que se
deixe rapport em francês, é uma sugestão. Bem, mas
há uma questão por escrito que acho que poderíamos
sugerir, se me permitem essa escolha, que é o rapport
que haveria entre a síndrome de pânico e a paranóia. E
se haveria diferença no modo do tratamento entre a
síndrome de pânico e a paranóia.
eh . Me lman - Obrigado. O fenômeno do pânico é
extremamente simples.Ele se produz quando você tem a
impressão que o saber do- qual d ispõe não lhe
permite de maneira alguma tratar de maneira válida a
situação que pode ser urgente e diante da qual você se

14 3
encontra. Situação que pode mesmo pôr em causa a
sua existência, e se, nesse momento, você tem o
sentimento de que seu saber é incapaz de responder
de maneira válida a essa urgência, pois bem, se produz
esse efeito de paralisia angustiante que se chama
pânico e que evidentemente tem uma certa relação com
o crédito que se têm da relação com a instância fálica.
Essa
. instância fálica está ela mesma ligada ao saber que
se têm . Há, com efeito, no paranóico um temor
permanente de ser quebrado em sua rivalidade com o
outro falo, e, portanto, de cair no pânico, mas devo
dizer que isso se observa raramente ·. Mas, em todo
caso, eu penso que, situando os problemas nesse
terreno, é assim que vocês têm uma relação possível a
estabelecer entre pânico por um lado e paranóia do
outro.

O que é o pânico? É uma angústia paralisante,


quer dizer, o momento em que você não sabe mais de
jeito nenhum o que é esperado de você, o que você
deve fazer, como reagir, como tratar a situação.
Entretanto, acredito que definindo a síndrome do
pânico como uma angústia paralisante integrando o
fenômeno do pânico - e eu acredito que seja uma
integração válida - quer dizer, que não questione os
nossos saberes e não provoque nosso próprio pânico.
De acordo?
Vocês estão certos de que ainda têm questões a
colocar? Eu acho que graças à atenção vocês, a qual
eu tentei contribuir com meu trabalho, penso que
fizemos um grande percurso e que merecemos parar
agora. Agradecendo aos organizadores desta ocasião,
agradecendo a Mario Fleig e a Conceição Fleig,
agradecendo a Teima Queiroz, por sua excelente
tradução e dizendo, portanto, a vocês: até um dia
desses.

144

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