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Para uma História das Religiões Afro-Brasileiras: Dificuldades e possibilidades

Léo Carrer Nogueira


Doutor em História UFG/Docente da UEG, Campus Porangatu

Resumo: Abordar a história das religiões Afro-Brasileiras hoje não é tarefa fácil. Nos
estudos clássicos, autores como Roger Bastide e Pierre Verger, além de Nina Rodrigues
e Arthur Ramos, que analisaram a presença africana e sua influência na religiosidade
brasileira no início do século XX, nos apresentam um quadro de interpretação que nos
últimos anos têm sido bastante revisado por teses e dissertações e autores que trabalham
o tema. Assim, em vista das novas discussões e hipóteses sobre esta presença africana,
pretendemos dialogar com autores recentes que trabalham a influência africana nas
práticas religiosas, desde o período colonial.

Introdução: A Religiosidade Africana

As práticas religiosas dos africanos, durante o período colonial no Brasil, serviram


como uma forma de resistência ao processo de “coisificação” que o sistema escravista
impunha, negando aos negros escravos a própria condição de seres humanos. Neste
ponto, a reorganização dos códigos religiosos de vários grupos africanos em terras
brasileiras servirá também como forma de manutenção de uma identidade religiosa
africana, frente à nova identidade religiosa imposta: o catolicismo.
Aqui entra em questão o papel da religiosidade na vida de um povo. Ela sempre
expressa a forma como uma sociedade se organiza, como ela lida com os seus limites e
estabelece relações com o mundo, articulando suas prioridades. Os códigos mais
profundos de uma cultura estão arquivados na relação com o sagrado. A importância de
conhecer estes aspectos de um povo é compreender como eles dimensionam suas
relações com o mundo, com outras sociedades, isto se torna significativo, em particular,
no caso da diáspora africana.
Dentre as várias concepções que se pode ter do que chamamos de Religiões de
Matriz Africanas, entendemos que se tratam de um conjunto de expressões religiosas
que têm em comum uma origem na África e, portanto, étnico-racial. Alguns elementos
são comuns a todas elas, em diferentes graus. Podemos destacar pelo menos três destes
elementos que caracterizam este tipo de religiosidades:
1. o culto aos ancestrais, representados por diferentes formas e denominações;
2. a relação com a natureza, presente na ritualística, por exemplo o uso de ervas e
na mitologia, relação dos seres sagrados (Orixás, Voduns, Inquices) com forças
elementais, forças da natureza;
3. crença na comunicação entre os homens e o mundo do sagrado, através de
adivinhações, possessão e rituais diversos. Esta relação é direta e cotidiana. Está
presente até mesmo nas características do indivíduo.

Para iniciarmos, portanto, os estudos das Religiões de Matriz Africana, sua


formação e constituição, é necessário antes visitarmos a África no período anterior ao da
chegada do europeu. As formas religiosas dos povos africanos, suas visões de mundo e
do cosmos nos dizem muito sobre as formas com que estas práticas religiosas foram
reelaboradas no Brasil. Isto porque muitos dos elementos presentes hoje nas Religiões
de Matriz Africana que floresceram no Brasil são facilmente identificáveis com as
formas religiosas de alguns povos africanos. As oferendas e os sacrifícios feitos a seus
ancestrais, por exemplo, por vários povos africanos demonstram como estes povos
buscam se relacionar com o sagrado de forma efetiva, buscando auxílio, sempre que
necessário, a um universo sobrenatural e místico. Esta forma de se relacionar com o
universo do sagrado, próprio das religiosidades africanas é também encontrado nas
Religiões de Matriz Africanas, conforme iremos perceber.
É por isto que recorrer a estas religiosidades, recorrer à África se torna o passo
inicial, essencial, para entendermos como se dá a formação destas religiões no Brasil, a
partir do contato cultural entre negros, índios e brancos, principalmente, e que resultará
num longo processo de transculturação que culminará nas formas religiosas peculiares
do Brasil encontradas hoje, não só nas religiões de Matriz Africana, mas também no
Catolicismo Popular, Pajelança e outras práticas religiosas “abrasileiradas”.
Visitaremos inicialmente um território africano que ficou bastante conhecido no
Brasil, especialmente na Bahia. Trata-se de uma área denominada Iorubalândia, região
que compreende partes dos atuais países do Togo, Benin e Nigéria. Esta região, que não
possui fronteiras físicas nem políticas determinadas e nem uma centralização política,
compreendia, no período anterior à colonização, a existência de vários reinos, como
Egbá, Ketu, Ibeju, Ijexá e Owó, cada um com seus próprios governantes, e que
mantinham ligações, tanto espirituais quanto políticas, com duas das principais cidades
da região, que eram Oyó e Ifé1.
A religiosidade dos povos que viviam nesta região se assentava em torno do culto
aos Orixás. Segundo suas crenças, existia um Deus Supremo, criador de todas as coisas,
e este Deus havia criado os Orixás, divindades responsáveis por representar todos os
seus domínios aqui na Terra. Estes deuses estavam mais ligados aos homens, atendendo
seus pedidos e repreendendo-os quando necessário2. Quando necessitavam de algo, os
homens não recorriam ao deus supremo, mas sim a estas divindades, os Orixás, que se
ligavam a fenômenos da natureza, como a água, o trovão, as matas, os rios, e etc.
O contato com estes Orixás ficava a cargo de um especialista nos assuntos
religiosos, uma espécie de sacerdote, que era o responsável por estabelecer a ligação
entre os homens e os deuses, e interpretar os sinais que estes mandavam para a aldeia 3.
Esta ligação se dava de diferentes formas e podia variar de uma aldeia para outra. Não
eram raras as festas em homenagem a estes deuses, quando os homens, mulheres e
crianças dançavam e tocavam para eles, oferecendo-lhes muita comida e bebida. Além
disto, podiam se comunicar com os Orixás através de objetos, geralmente os cauris e
búzios, espécies de sementes que eram bastante valiosas na região. O sacerdote as
jogava para o alto e a forma como caiam era interpretado como uma resposta dos
deuses. Existia ainda a comunicação através do transe, quando o sacerdote, ou até
mesmo uma pessoa comum, era possuída por uma divindade ou um espírito ancestral,
que podia se comunicar com as outras pessoas utilizando-se do corpo possuído4.
A ancestralidade para o africano é algo muito importante. Na região dos povos
Iorubas, especialmente, podemos notar este traço constitutivo de sua religiosidade.
Consideram que os espíritos dos que morreram continuam a existir, e que, portanto
devem ser alimentados através de oferendas e sacrifícios realizados pelos vivos. O
ancestral é um espírito sagrado, e dependendo de como se comportou em vida pode se
tornar uma espécie de divindade ancestral, sendo solicitada ajuda sempre que
necessário. Para isto, a pessoa que estiver passando por uma situação difícil vai até o
túmulo em que este está enterrado, lhe faz uma oferenda, que pode ser através de
comida, bebida, flores e até mesmo um animal sacrificado, e lhe pede ajuda para
resolver seu problema5, conforme esclarece Pierucci:

1
OLIVA, 2005: 32.
2
OPOKU, 1991: 520.
3
PIERUCCI, 2000: 94.
4
PIERUCCI, 2000: 95.
5
PIERUCCI, 2000: 93.
fazer um sacrifício a um ancestral pode ser algo bastante simples. Um membro
da tribo vai até o túmulo de seu pai, por exemplo, oferece uma pequena
quantidade de comida e bebida, e pede ajuda para resolver uma situação difícil.
(PIERUCCI, 2000, p. 93).

Além de prestar auxílio aos homens sempre que solicitado, as divindades ou Orixás
servem também como explicação mitológica para a origem do homem e do universo.
São diversas as lendas e mitos que atribuem aos diferentes Orixás papéis distintos na
criação do mundo e dos homens. Quase sempre nestas histórias, os Orixás recebem
características humanas, como raiva, inveja, amor, e elas sempre se remetem a um
passado longínquo, quando homens e deuses conviviam na terra.
Estas lendas e até mesmo os Orixás variavam bastante de um grupo para outro.
Alguns autores colocam que o número de Orixás existentes na África eram mais de
quatrocentos, enquanto que no Brasil são conhecidos pouco mais de vinte. Entre os
principais Orixás conhecidos no Brasil, podemos destacar:

Olorun é o Deus supremo, que criou as divindades chamadas Orixá para representar
todos os seus domínios aqui na terra;
Exu, Orixá guardião dos templos e das pessoas, mensageiro divino dos oráculos;
Ogum, Orixá do ferro, guerra, fogo, e tecnologia;
Oxossi, Orixá da caça e da fartura;
Xangô, Orixá do fogo e trovão, protetor da justiça;
Obaluaiê, Orixá das doenças epidérmicas e pragas;
Oxumaré, Orixá da chuva e do arco-íris;
Oyá ou Iansã, Orixá feminino dos ventos, relâmpagos, tempestade, e do Rio Niger;
Oxum, Orixá feminino dos rios, do ouro, jogo de búzios, e amor;
Iemanjá, Orixá feminino dos mares e oceanos, da fertilidade, mãe de muitos Orixás;
Nanã, Orixá feminino dos pântanos e da morte, mãe de Obaluaiê;
Ibeji, Orixá dos gêmeos e das crianças;
Omolu, Orixá da terra e da saúde;
Obatalá, o pai de quase todos orixás, criador do mundo e dos homens;
Ifá, Orixá da adivinhação e do destino6.

Originários da África, os Orixás eram cultuados em separado, sendo que cada grupo
ou reino possuía seu Orixá principal: Sàngó (Xangô) em Oyó, Yemoja (Iemanjá) na
região de Egbá, Iyewa (Iansã) em Egbado, Ogún (Ogum) em Ekiti e Ondô, Òssun
(Oxum) em Ijexá e Ijebu, Lógunnède (Logunedê) em Ilexá, Osàálà-Obàtálá (Oxalá-
Obatalá) em Ifé, e etc. Como os contatos culturais na região dos Iorubas eram grandes,
alguns Orixás ganham um status universal entre vários grupos, como é o caso de Exu,
ou Exu-Legba, Orixá mensageiro, responsável por fazer a mediação entre os homens e
os outros Orixás, e de Ifá ou Fá, Orixá responsável pela adivinhação, cultuados em
vários reinos africanos distintos.
A medida que se intensificam os contatos entre europeus e africanos, a partir do
século XV, a imagem dos cultos africanos no imaginário europeu vai se constituindo em
uma imagem de barbárie e selvageria. As religiosidades africanas são retratadas, durante
o período medieval, como sendo “práticas de bruxaria e ações demoníacas” (OLIVA,
2005, p. 14). Neste contexto, vale ressaltar as diversas teorias que foram desenvolvidas
neste período para explicar a inferioridade do negro africano, e sua associação à imagem
diabólica. Entre elas podemos destacar a da passagem bíblica dos descendentes de Cam,
que castigado por flagrar seu pai Noé nu e embriagado, teve sua descendência
condenada a servir aos seus irmãos (OLIVA, 2005).
A África seria, portanto, a região habitada pelos descendentes de Cam, que
deveriam servir aos outros homens. Esta é apenas uma, das várias idéias existentes no
imaginário medieval para justificar a inferioridade e a escravidão dos povos africanos.
Estas idéias vão ganhando força ao longo dos séculos XVII e XVIII, e ganham um
aliado científico no século XIX.

Aos preconceitos elaborados nos séculos anteriores articulam-se, no século


XIX, as crenças científicas, oriundas das concepções do Darwinismo Social e do
Determinismo Racial, que alocaram os africanos nos últimos degraus da
evolução das “raças” humanas. (OLIVA, 2005, p. 15).

A partir do século XIX, portanto, a idéia bíblica será ratificada pela ciência que,
apoiada nas teorias evolucionistas, encaixa o negro no último degrau da escala evolutiva

6
Retirado de Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Orix%C3%A1), acessado em 22/11/06.
das raças humanas. Esta escala é bem representada no sistema classificatório de Linné,
de 1778, em que o Homo Sapiens é classificado em cinco tipos, a saber, o homem
selvagem, o Americano, o Europeu, o Asiático e o Africano (HERNANDEZ, 2005). A
cada tipo corresponderiam características biológicas inatas, não só físicas como também
psicológicas. Podemos perceber a diferença entre as espécies ao analisar os perfis do
europeu e do africano:

c) Europeu. Claro, sanguíneo, musculoso; cabelo louro, castanho, ondulado;


olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo. Coberto por vestes justas.
Governado por leis.
e) Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, crespos; pele
acetinada; nariz achatado, lábios túmidos; engenhoso, indolente, negligente.
Unta-se com gordura. Governado pelo capricho (BURKE apud HERNANDEZ,
2005, p. 19).

A diferença entre o tipo europeu e o africano fica explícito nas imagens produzidas pelo
cientificismo racialista no séc. XIX por autores como Linné e Gobineu, e utilizados por
Hegel na análise do continente africano. Endossando esta imagem do africano como
atrasado e selvagem este autor afirma que a África

não tem interesse histórico próprio, senão o de que os homens vivem ali na
barbárie e selvageria, sem fornecer nenhum elemento à civilização. (...) Nesta
parte principal da África, não pode haver história. (HEGEL apud
HERNANDEZ, 2005, p. 20).

Fica estabelecida assim a gama de ideologias que justifica e endossa a imagem


de atraso do continente africano e dos povos que ali vivem. Tal justificação se dá tanto
no campo religioso quanto científico, e vai aos poucos influenciando o discurso
político-ideológico europeu que tenta legitimar o tráfico atlântico de escravos
(HERNANDEZ, 2005). Assim os europeus apareciam “como missionários que
deveriam se sacrificar para levar a civilização aos africanos bárbaros” (OLIVA, 2005, p.
17).
Neste contexto, os rituais religiosos africanos ganham contornos diabólicos, e
passam a ser perseguidos em nome da fé cristã. Entre as divindades Iorubás, recebe
papel de destaque o Orixá Exu, responsável pela intermediação entre o mundo dos
homens e dos deuses. O Prof. Anderson Oliva destaca algumas das características
atribuídas a Exu na tradição iorubá:

Para os sacerdotes e pessoas comuns entre os iorubás a função principal de Exu


é de representar a oposição à criação, sendo o infrator das regras e da ordem.
(...) Incumbido por Olodumaré7 da tarefa de mudar o que está parado, Exu
recebe o Adô, uma cabaça na qual se encontra a força da transformação. (...)
Exu destrói para recriar. É o principio da desordem, inseparável da estrutura da
ordem; um depende do outro. (...) Uma outra característica de Exu, que se alia à
idéia da modificação e da recriação da ordem, é seu aspecto fálico: (...) ele é o
senhor dos cruzamentos e dos caminhos, o que abre, penetra e liga os mundos
que formam o universo religioso iorubá. (OLIVA, 2005, p. 19).

O Orixá Exu, na cosmologia iorubá, possui funções bem definidas. Por ser o
mensageiro e responsável pela ligação entre os homens e os demais Orixás, é a ele que
se destina a primeira oferenda, antes de todos os outros Orixás, pois, sem ele, não há a
comunicação com os outros, é como se eles não escutassem o chamado dos homens.
(OLIVA, 2005).
Sua importância era tanta que seu culto se estendia a praticamente todas as
regiões da Iorubalândia, marcada por uma grande diversidade de cultos e Orixás
distintos. Além disto, Exu se ligava também ao comércio e as atividades econômicas,
sendo representado sempre com cauris e búzios, consideradas importantes moedas de
troca na África Ocidental.
“Em grande medida, essas características de Exu o tornaram para os ocidentais,
um Orixá contraditório e de difícil definição” (OLIVA, 2005, p. 20). Por isto mesmo ele
será interpretado, por muitos viajantes, como sendo a personificação do mal, assumindo,
assim, toda a carga simbólica construída em torno da figura do diabo cristão.
Observamos nos relatos de vários viajantes esta associação, de forma direta ou indireta.
É o caso, por exemplo, dos irmãos Lander, que pesquisaram o rio Níger no início do
séc. XIX, e lá encontraram um sacerdote de Exu, deixando anotado suas impressões
sobre o mesmo, onde percebemos a maneira pejorativa como encaravam as religiões dos
africanos. (OLIVA, 2005). Nestes relatos podemos perceber também que

7
Deus supremo e criador dos Orixás. Não é venerado entre os iorubás (OLIVA, 2005, Nota 9, p. 32).
o cristianismo não era a única religião monoteísta a interpretar de forma
negativa as práticas religiosas dos orixás. Unia-se a ele, nesse mister, o
Islamismo. (...) Em alguns estudos realizados sobre Exu na África Ocidental, de
fato transparece a idéia de que também os muçulmanos relacionavam o orixá
com o princípio da maldade e da ação demoníaca. (DOPAMU, 1990, p. 34 apud
OLIVA, 2005, p. 22).

Outros estudiosos que voltaram sua atenção para a figura do Orixá Exu-Elegba8
demonstram fortes traços do pensamento cristão, aliados às teorias racialistas e
evolucionistas do século XIX. Podemos citar como exemplo dois padres católicos, um
europeu e um africano, que demonstram este tipo de pensamento. Nos referimos ao
reverendo Noel Baudin e o prof. da Universidade de Ilorin, na Nigéria, Ade Dopamu.
Ambos escreveram trabalhos sobre as religiões dos Orixás, onde deixam transparecer a
forte influência do pensamento cristão na análise dos Orixás, especialmente de Exu.
De uma forma geral, o que eles fazem é interpretar a religiosidade africana dos
Orixás sob a ótica cristã, e assim aplicar conceitos e julgamentos que não lhe cabem.
Baudin, por exemplo, interpreta que “a necessidade ritualística de os iorubás ofertarem
os primeiros sacrifícios sempre a Exu” decorre do “medo gerado pelo caráter perverso e
ameaçador do Orixá, em uma óbvia aproximação com a figura do Diabo na tradição
judaico-cristã” (BAUDIN, 1884 apud OLIVA, 2005, p. 24).
Já Dopamu realça apenas alguns aspectos desta entidade, como o fato de ele ser
o agente do desequilíbrio e da desordem, e sua personalidade libidinosa, contraventora e
perversa, que, para ele, são sintomas de sua maldade. Exu, inserido num mundo
maniqueísta, onde temos dois pólos distintos – o bem e o mal – passa a ocupar então o
lado maligno, e passa a representar a personificação da maldade. (DOPAMU, 1990
apud OLIVA, 2005, p. 25).
Podemos concluir então que

nos trabalhos dos sacerdotes, de forma geral, houve uma transposição das
mentalidades e concepções religiosas ocidentais para o entendimento das
cosmologias africanas. Como no imaginário cristão todas as formas de mal e de
influências negativas na vida das pessoas e na ordem do mundo são associadas
ao Diabo, suas análises sobre a cosmologia dos orixás passaram a estabelecer a

8
Légba – vodum cultuado no Benin e no Togo, que guarda grande similitude funcional e iconográfica
com Exu (ver OLIVA, 2005, Nota 15, p. 33).
mesma relação. Percebe-se, portanto, que a relação entre Exu e o Diabo foi uma
criação de sacerdotes cristãos ou muçulmanos, seguida e defendida por seus
fiéis. (OLIVA, 2005, p. 26).

Dinâmica Cultural9 no Brasil Colonial

Agora que já apresentamos as principais matrizes africanas que irão aportar no


Brasil através do tráfico transatlântico, passemos então a delimitar como estas matrizes
irão influenciar na constituição das Religiões de Matriz Africana. Em primeiro lugar, é
importante considerarmos que estas matrizes, a partir dos contatos com o colonizador,
irão se constituir em nações, que chamaremos aqui de Nações Diaspóricas10.
O conceito de nações diaspóricas é tratado por alguns autores atualmente como mais
adequado para definir o modo como foram agrupados os povos africanos em grandes
matrizes culturais, religiosas e lingüísticas, sendo os principais grupos estes que foram
apresentados aqui, a saber, as nações Iorubá ou Nagô (Orixás), a nação Jeje (Voduns) e
a nação Bantu (Inquices).
Em cada uma destas nações encontramos uma grande variedade de povos e culturas
diferentes, agrupadas segundo semelhanças lingüísticas, étnicas, religiosas e culturais. É
importante ter em mente, ao trabalharmos com o conceito de nações em sala de aula,
que nenhuma delas existiu em estado “puro” na África. Por exemplo, não podemos
dizer que existia uma cultura Nagô, ou um povo Jeje. Estas denominações se referem a
agrupamentos de povos distintos, impostos pelos colonizadores a partir do
estabelecimento do tráfico de escravos11. O estudo destas nações é fundamental para
entendermos a lógica dos Candomblés, já que cada nação irá se constituir em um
modelo ritualístico diferente desta religião.
Um dos primeiros grupos de escravos a virem para o Brasil seriam provenientes da
África sub-saariana, região onde predominavam povos de línguas de origem bantu.
Bantu é um tronco lingüístico que deu origem a várias línguas distintas, faladas pelos
diferentes povos que vivem nesta região. Aos poucos vieram também negros
provenientes da região da Iorubalândia, pertencentes aos grupos de língua gbe e fon.

9
Sobre o conceito de Dinâmica Cultural, Sá Júnior esclarece que “a sociedade vive essa dinâmica cultural
(HALL, 1997; GEERTZ, 1973; BHABHA, 1998) e através do uso da sua utensilagem mental
ressignificam e se apropriam desse universo cultural disponível de acordo com as suas percepções e
interesses”. (SÁ JÚNIOR, 2004, p. 52).
10
MATORY, 1999.
11
Idem: 2.
Estes povos, que viviam sob os domínios do império Ioruba que dominava a região,
eram chamados pelos povos Iorubas dominantes de Djedjes, palavra que na língua
ioruba significa estrangeiro12. Esta é a explicação mais aceita para a origem do termo
Jeje, que passará a ser utilizado para denominar os grupos de escravos provenientes
desta região dominada.
Aos poucos começam a surgir na Bahia, principalmente, a partir do século XVII,
cultos a divindades africanas de origem Jeje, os Voduns, e de origem Bantu, os
Inquices. Estes cultos vão sendo organizados em torno de personagens que ficariam
conhecidos como feiticeiros, curandeiros e calunduzeiros. Este último termo é o que
passa a predominar a partir da constituição dos terreiros que visavam cultuar aos
Voduns e Inquices, chamados inicialmente de Calundus. Nestes terreiros eram prestados
serviços de saúde, como curas, utilizando ervas, ungüentos, e tisanas, que aliviavam
desde os males mais corriqueiros até doenças mais graves, como a tuberculose, a varíola
e a lepra13.
Existiam também em menor quantidade escravos de origem Ioruba, também
chamados de Nagôs. O termo Nagô vem da denominação francesa atribuída aos povos
que viviam nos reinos do Daomé e Ardra, que faziam parte do império Ioruba, cuja
capital era a cidade de Oyó. A partir do século XVIII haverá uma predominância de
escravos de origem Nagô (Ioruba) na Bahia. Isto se dá pelo fato de, em meados de 1830,
a capital do império Ioruba, a cidade de Oyó, ter sido saqueada pelas tropas
fundamentalistas do califado de Sokotô e do emirado de Ilorin. A queda da capital do
império Ioruba fez com que uma grande massa de pessoas desta região fossem
capturadas e trazidas para o Brasil como escravos. Dentre os principais povos que
vieram, destacam-se os grupos ketos, oyós, ijexás e efans14.
Aos poucos estes grupos vão constituindo seus terreiros, que buscavam cultuar os
Orixás. A principal característica destes primeiros Calundus a surgirem na Bahia são a
variedade de divindades cultuadas em cada uma. Se na África cada povo cultuava um
Orixá ou Vodun principal, no Brasil eles eram assentados conjuntamente no terreiro.
Em um dos principais terreiros surgidos na Bahia durante o século XIX, por exemplo,
foram colocados no barracão da casa quatro pilares, representando os quatro principais
Orixás regentes da casa, Oxossi de Ketu, Xangô de Oyó, Oxum de Ijexá e Oxalá de

12
Idem: 5.
13
SILVEIRA, 2005: 19.
14
Idem: 22.
Efan15.
A partir do século XIX estes terreiros de Calundus passam a se organizar não apenas
ritualmente, mas como uma sociedade constituída pelos negros escravos. O primeiro
terreiro a ter esta característica foi o da Barroquinha, fundado atrás da capela de Nossa
Senhora da Barroquinha, no centro histórico de Salvador, e que hoje se chama
oficialmente Ilê Axé Iyá Nassô Oká, ou Casa Branca do Engenho Velho, como é mais
popularmente conhecido16.
Fora dos terreiros, em casas simples e barracões, vários líderes religiosos negros,
conhecidos como feiticeiros negros, prestavam diversos serviços à população local,
concorrendo com a Igreja Católica, e até mesmo com a medicina oficial. Alguns destes
feiticeiros ganharam notoriedade na sociedade, e quando isto ocorria o governo imperial
tratava logo de dar-lhes um sumiço. Eram condenados à prisão sob diversas acusações,
como estelionato, prática ilegal da medicina ou simplesmente acusados de praticar
feitiçaria e curandeirismo, considerados crimes na época.
Nestas casas de feiticeiros, diversas práticas se misturavam e se aglutinavam. Não
haviam códigos rígidos de conduta, nem ritualísticos. As práticas seguiam única e
exclusivamente as ordens de seu líder religioso, que podia se denominar pai-de-santo
como no Candomblé. Misturavam crenças de origem africanas, como os Orixás e Eguns
com práticas xamânicas indígenas, santos católicos, realizavam benzições, receitavam
chás e ervas com efeito de cura, entre outros.
O termo “sincretismo” foi bastante utilizado por alguns autores que estudaram esta
religião para descrever esta mistura. Segundo eles, devido à repressão católica aos
cultos africanos, os negros eram obrigados a praticar seus cultos escondidos, e uma
saída para não serem presos era associar seus Orixás aos Santos Católicos. Assim, o
catolicismo teria sido a matriz na qual os cultos africanos teriam continuado a existir.
Isso deu origem às diversas associações entre Santos e Orixás existentes hoje.
O problema desta corrente é que ela denota um processo quase automático de
associação e assimilação, e esconde a resistência dos negros africanos ao catolicismo.
As religiosidades dos negros africanos teriam se “moldado” ao catolicismo de forma
pacífica. Na prática isto não acontece desta forma. Não foi apenas o catolicismo,
enquanto religião dominante na época que influenciou os cultos afros, mas a visão
africana também penetrou fundo no catolicismo, dando origem a um Catolicismo

15
Idem: 23.
16
Idem: 22.
Popular que ainda hoje é praticado. As figuras das benzedeiras, as festas religiosas,
danças e diversas crenças fazem parte desta influência africana, rotuladas sob o nome
pejorativo de “folclore” , como forma de denotar o atraso destas práticas e crenças,
consideradas crendices, superstições, etc.
Temos que pensar a cultura como algo dinâmico. No contato cultural entre brancos,
negros e índios, de práticas culturais tão diferentes, estas matrizes culturais ficam
disponíveis no imaginário social, e são apropriadas e ressignificadas pelos indivíduos de
diferentes formas, dando origem a práticas e crenças diversas. Assim, a idéia do
“sincretismo” hoje está sendo rediscutida, e alguns autores sugerem outros termos e
conceitos para explicar este processo de mistura e troca cultural presente no Brasil
Colonial, como transculturação, hibridismo, mestiçagem, entre outros. Independente do
conceito que se utilize, o mais importante é ter em mente que a cultura é dinâmica, e
não estática como algumas teorias fazem parecer.
Assim, este quadro cultural efervescente dará origem a uma variedade enorme de
práticas, crenças e ritos, que se utilizam de elementos africanos, católicos, indígenas, em
diferentes graus. Todo este quadro religioso de práticas mágicas, baseados nas figuras
dos feiticeiros negros, é chamado por Roger Bastide de Macumba. O termo Macumba
se origina de um instrumento musical utilizado em vários rituais africanos. Trata-se de
uma espécie de reco-reco utilizado durante os rituais realizados pelos calunduzeiros,
também chamados de batuques. Sempre que ouviam as músicas africanas, alguns
diziam que estavam “tocando macumba”. Assim o termo acabou se estendendo ao culto,
e logo após passou a denominar a casa onde ele era praticado, surgindo assim as “Casas
de Macumba”.
Esta Macumba estava espalhada por praticamente todo o Brasil, e era um conjunto
de práticas desconexas, sem um corpo doutrinário que as unisse em torno de uma única
religião. Os praticantes destes cultos e rituais eram perseguidos, no início pela
Inquisição, e depois pelo Estado, que os perseguia em nome do combate ao atraso e à
barbárie. São, portanto, a Macumba e os Calundus que darão origem às duas principais
religiões Afro-Brasileiras que conhecemos hoje: O Candomblé e a Umbanda.

Religiosidades Afro-Brasileiras

A partir do século XIX estes terreiros de Calundus passam a se organizar não apenas
ritualmente, mas como uma sociedade constituída pelos negros escravos. O primeiro
terreiro a ter esta característica foi o da Barroquinha, fundado atrás da capela de Nossa
Senhora da Barroquinha, no centro histórico de Salvador, e que hoje se chama
oficialmente Ilê Axé Iyá Nassô Oká, ou Casa Branca do Engenho Velho, como é mais
popularmente conhecido17.
Coube ao terreiro da Barroquinha o papel de organizar o Candomblé baiano
enquanto uma sociedade, com uma hierarquia constituída e mantendo tradições e
memórias dos povos africanos que a constituíam. Pela predominância na época de
negros de origem nagô-iorubá, predominaram nos terreiros o culto aos Orixás, sendo as
casas que cultuam Voduns e Inquices em menor número.
Estas nações e suas religiosidades irão influenciar e dar origem assim a diversos
tipos e modelos religiosos em vários estados brasileiros. De origem Nagô-Iorubá
podemos destacar o Candomblé de Ketu e o Xangô do Recife; da nação Jeje temos o
Candomblé Jeje e o Tambor-de-Mina do Maranhão; e de origem Bantu podemos citar o
Candomblé de Caboclo, o Candomblé de Angola e o Omolokô, que em algumas casas
pode aparecer com maiores influências da nação ketu-nagô.
É importante frisarmos aqui que estas divisões em nações não são estáticas, e que
estes modelos religiosos não são encontrados em estado “puro”. Nos Candomblés,
assim como na maioria das religiões de Matrizes Africanas, o que predomina é a
diversidade e a pluralidade, portanto na prática encontraremos variados modelos de
rituais e crenças, algumas com maior influência desta ou daquela nação, outras
misturando elementos de diferentes nações e outros ainda criando modelos diferentes a
partir de outras matrizes religiosas distintas.
A principal característica destes Candomblés é a relação com as divindades, que
podem ser Orixás, Voduns ou Inquices, podendo haver predominância de um ou de
outro em cada casa e até aparecerem em conjunto. Os iniciados na religião são
chamados de forma geral de filhos-de-santo, sendo que outros nomes podem aparecer
dependendo da maior influência de uma ou outra nação.
Conforme afirma Raul Lody em sua obra, o Candomblé pode ser definido como
uma “congregação de sobrevivências étnicas da África.”18 Como vimos, ele está
intimamente vinculado à religiosidade dos negros africanos. Trata-se de uma
sobrevivência das práticas religiosas africanas no Brasil, através da preservação dos
negros escravos que aqui viveram. Sobrevivências estas que estão separadas pelas

17
SILVEIRA: 22.
18
LODY, 1987, p. 8.
diversas nações existentes. Vamos dar ênfase, portanto, ao Candomblé de nação Kêtu,
também conhecida como Nagô, que, como já vimos, praticam o culto aos Orixás.
O termo Candomblé é de origem bantu, e está relacionado ao local onde é realizado
o culto. Geralmente trata-se uma casa grande, pois para a realização dos cultos são
necessários inúmeros espaços, cada um com sua função específica. Assim
encontraremos em uma casa de Candomblé o peji, que é o local do santuário onde ficam
alojados os objetos sagrados do culto; os assentamentos, que são as casas dos orixás; a
casa de Exu e a de balé (dos eguns, espíritos ancestrais); cada um destes se constituindo
em um cômodo com localização e função específicas dentro do templo do Candomblé.
Temos ainda o salão de danças ou barracão, que é a área onde são realizadas as festas e
cultos públicos.19
A base do Candomblé está no culto às divindades africanas, os Orixás, Voduns ou
Inquices. Além de divindades, os Orixás também são arquétipos representativos aos
quais são associados virtudes, qualidades e defeitos. Assim, por exemplo, Oxum
representa o amor e a fertilidade, Oxóssi representa a força, Xangô à justiça, Iemanjá a
maternidade, e assim por diante. Ao contrário do que se possa pensar, porém, os Orixás
não têm um caráter normatizador da conduta humana. Isto porque no Candomblé não há
a idéia de salvação, como em outras religiões. A função dos Orixás não é a de punir
nem regular a conduta moral de seus fiéis. Seu objetivo é puramente ritualístico, sem
qualquer tipo de vinculação ética que condene ou regule a conduta de seus seguidores.20
Os Orixás, portanto, se limitam a fornecer modelos de comportamentos, que podem ser
copiados por seus filhos, ou servirem para legitimar um comportamento que a pessoa já
tenha.
É importante frisarmos que o Candomblé é formado por uma rígida estrutura, em
que o ritual e a tradição, ao contrário do que ocorre na Umbanda, são muito fortes e não
podem ser quebrados. Para se iniciar no Candomblé é necessário passar por um ritual
complexo, quando primeiro deve ser definido o santo da cabeça do candidato à
iniciação, que é seu orixá protetor. Depois o iniciando é levado para o roncó, uma sala
separada, na qual receberá orientações do babalaô, e onde é confirmado seu Orixá de
cabeça. Logo após é feita a cerimônia de feitura do Orixá na cabeça, que inclui banhos
de purificação, colocação dos paramentos (adornos em homenagem ao seu Orixá),

19
DUARTE, 2002, p. 49.
20
PIERUCCI, 2000, p. 293.
raspagem da cabeça e por último a realização de uma oferenda ao Orixá. 21 Este é apenas
um modelo de ritual de iniciação, que pode variar bastante de um terreiro para outro.
Após este ritual, ele deverá ficar recluso na camarinha, local do templo
apropriado para isto, por um período que varia de 3 a 7 dias. Este é um período de
aprendizagem, quando o iniciado deverá ser reeducado para a vida espiritual que agora
deverá levar. Somente após passar por este ritual é que ele estará apto para tomar parte
nas festas públicas, e assumir uma função dentro do templo.
Durante os cultos, que são divididos em cultos públicos e privados, o objetivo
dos participantes é se ligar aos seus orixás, realizando oferendas, banhos de purificação,
danças específicas a cada Orixá, tudo isto para agradar o Orixá de sua cabeça. O culto é
dirigido pelo babalorixá ou ialorixá, que são os pais e mães-de-santo, os chefes
religiosos do Candomblé. Eles exercem papel fundamental no culto através do jogo de
búzios, por onde os Orixás fazem revelações aos seus filhos. “O jogo de búzios sempre
se faz fora dos rituais comunitários, em sessões de atendimento individualizado, e é um
serviço pago”.22
Durante os cultos públicos há muita música, comida e presentes que as pessoas
trazem aos Orixás. Os filhos de santo entram em transe, incorporando os Orixás, que
dançam em volta do salão. Durante estes cultos, porém, os Orixás não se comunicam
com os membros do culto. Para consulta-los, a pessoa deve procurar o babalaô, que
responde a suas dúvidas consultando ao Orixá Ifá, através do jogo de búzios.23
Não há, portanto, contato entre os orixás incorporados e as pessoas. Os orixás não
conversam, apenas dançam e seguem o ritual. Por isto a função do babalorixá se torna
fundamental, pois no Candomblé, é ele quem faz a ponte entre o filho-de-santo e as
divindades, através dos búzios. Ao contrário da Umbanda, o ritual da incorporação não
se destina a dar a oportunidade da pessoa se comunicar com o mundo sobrenatural. Ele
tem apenas uma função ritualística.
Outra religião de Matriz Africana que se desenvolveu no Brasil foi a Umbanda.
Trata-se de um tipo de religiosidade bastante complexa, que não apresenta uma
constância em suas práticas, mas pelo contrário, é marcada pela variação e diversidade
de crenças e ritos de um terreiro para outro. Para explicar esta inconstância presente
nesta religião, devemos nos voltar para sua história, o modo como esta Religião de

21
DUARTE, 2002, p. 51.
22
PIERUCCI, 2000, p. 24.
23
MAGNANI, 1986, p. 36.
Matriz Africana foi se constituindo ao longo dos anos, até se chegar ao que é hoje.
Segundo alguns autores, a Umbanda teria nascido no início do século XX, mais
precisamente em 15 de novembro de 1908, num centro espírita de Niterói-RJ. Um
jovem carioca, pertencente a uma família de classe média, de nome Zélio de Moraes
sofria constantes ataques, em que parecia estar possuído, dizendo coisas sem sentido. A
família procura ajuda médica, mas todos os exames e diagnósticos não encontram
problema algum em Zélio, sua saúde estava perfeita. Eles resolvem procurar então um
padre, que após várias sessões de exorcismo, desiste do caso sem obter resultados. Zélio
não melhorava. A família já a ponto de desistir, quando já pensava em internar Zélio
numa clínica, recebe um conselho: levá-lo a uma casa espírita.
É então que, em 15 de novembro de 1908, eles o levam até a Federação Espírita de
Niterói. Lá, ao falar com o líder da casa, Zélio tem mais um ataque e começa a falar
coisas estranhas. O líder, Sr. José de Souza que era médium vidente, ou seja, capaz de
ver espíritos desencarnados, conversa com o espírito que parecia possuir Zélio:

Sr. José: Quem é você que ocupa o corpo deste jovem?


O Espírito: Eu? Eu sou apenas um caboclo brasileiro.
Sr José: Você se identifica como caboclo, mas eu vejo em você restos de vestes
clericais.
O Espírito: O que você vê em mim são restos de uma existência anterior. Fui
padre, meu nome era Gabriel Malagrida e, acusado de bruxaria, fui sacrificado na
fogueira da Inquisição por haver previsto o terremoto que destruiu Lisboa em 1755.
Mas, em minha última existência física, Deus concedeu-me o privilégio de nascer como
caboclo brasileiro.
Sr. José: E qual é seu nome?
O Espírito: Se é preciso que eu tenha um nome, digam que sou o Caboclo das
Sete Encruzilhadas, pois para mim não existirão caminhos fechados. Venho trazer a
Umbanda, uma religião que harmonizará as famílias e que há de perdurar até o final dos
séculos24.

A conversa prosseguiu, e, ao ser interpelado sobre o motivo de mais uma religião, se


já existem tantas no mundo, o Caboclo alega que esta religião virá para “falar aos mais
humildes em uma linguagem simples e despida de preconceitos”. No outro dia, na casa
de Zélio, se iniciavam os trabalhos desta nova religião. O nome dado à casa de orações

24
SARACENI, 2003, p. 21-22, apud SÁ JÚNIOR, 2004, p. 65-66.
foi Tenda Nossa Senhora da Piedade, e lá acorreram alguns médiuns kardecistas que
haviam sido escorraçados dos centros kardecistas por terem incorporado caboclos,
pretos-velhos e crianças, entidades não aceitas nos centros kardecistas.
Esta história da fundação da Umbanda é defendida por vários autores, e reproduzida
em vários livros, alguns mais detalhistas, outros apenas citando o evento 25. Mas é cada
vez mais comum na historiografia umbandista a teoria de que esta história é, na verdade,
um mito fundador da Umbanda, que ganhará força após a década de 40, no Rio, com a
constituição do I Congresso Brasileiro de Umbanda. Note-se que, neste mito, aparecem
alguns elementos interessantes, que visam afastar a Umbanda de maiores influências da
cultura negra africana.
É preciso antes desmistificar este mito de fundação da Umbanda. Primeiramente, ela
teria nascido em um centro kardecista, religião da classe média branca carioca, que
gozava de um certo prestígio social; em segundo lugar, teria sido “revelada” através de
um médium branco, de classe média e família abastada; em terceiro lugar, o espírito que
incorporava em Zélio se identifica como um Caboclo. Mas não era um Caboclo
qualquer, e sim um Caboclo “brasileiro”. A questão da identidade nacional da Umbanda
está ai presente. Além disto, não era um primitivo aborígine qualquer, mas ele alega já
ter sido, em outras vidas, um padre católico, posição que lhe confere um certo status
social e intelectual.
Esses diversos elementos desta narrativa não são por acaso. Eles foram construídos
para forjar o status nacional, intelectualizado e embranquecido da Umbanda, e afasta-la
das práticas da antiga Macumba. É preciso notar que este mito ganha força na década de
40, justamente quando teóricos brasileiros tentavam criar uma identidade nacional para
o povo brasileiro, baseado nas teorias racialistas em voga no início do século XX, que
colocavam o negro na última posição da escala evolutiva humana, enquanto o branco
europeu ocupava o topo.
Neste sentido, criar uma identidade nacional desvinculada da figura do negro era
essencial. Autores como Silvio Romero e Nina Rodrigues reforçam estas idéias através
de suas obras, colocando a culpa pelos atrasos brasileiros na presença do negro em
terras brasileiras. Este quadro vai acabar influenciando a Umbanda, que pretende ser
uma religião brasileira, portanto imbuída destas teorias nacionalistas que pretendem
excluir o negro do processo.

25
SARACENI, 2003; PINHEIRO, 2004; DUARTE, 2002; SILVA, 2005.
Esta é a principal discussão do primeiro congresso de Umbanda realizado no Rio de
Janeiro em 1941. A preocupação dos participantes deste congresso é justamente
reafirmar a origem mítica da Umbanda, ocultando qualquer relação sua com a África,
com a Macumba carioca. É assim que este mito de fundação ganha forças e passa a
figurar nas obras de diversos intelectuais que estudaram esta religião como o
nascimento oficial da Umbanda.
Mas o processo que levou à constituição da Umbanda é muito mais longo e antigo
do que parece. Como já vimos, ele se inicia alguns anos antes, quando da chegada dos
primeiros navios negreiros às costas brasileiras, e está intimamente relacionada com a
presença do negro africano em terras brasileiras, com o nascimento dos Candomblés e
com a figura do feiticeiro negro.
O nome Umbanda passa a ser utilizado a partir do final do século XIX e inicio do
XX, e deriva do nome do sacerdote na língua africana ki-mbundo, chamado de mbanda,
e no plural, Ki-mbanda. É possível que este nome tenha se espalhado e sido apropriado
pelos líderes de terreiros, que substituíram a macumba, termo que havia ganhado uma
conotação pejorativa na sociedade, relacionando-se aos fazedores de feitiço e até
adoradores do diabo.
Com a chegada do Kardecismo no Brasil, no inicio do século XX, estes terreiros vão
sendo aos poucos influenciados pela doutrina kardecista. As explicações dadas pelos
kardecistas para os vários fenômenos que ocorriam nos terreiros de Umbanda acabam
sendo apropriadas por muitos destes, que passam a se utilizar da doutrina kardecista
dentro de seus terreiros. Outro fator que aproxima estas duas religiões era a perseguição
sofrida ainda pelos terreiros de Macumba, e a legitimidade social que tinha o
kardecismo na sociedade.
O Espiritismo Kardecista era uma religião de status social, intelectualizada e
freqüentada em grande parte por membros da elite brasileira. Para fugir das
perseguições, muitos terreiros passam a se dizer espíritas, intensificando a associação
entre estas duas religiões. Já no início do século XX, em artigos de jornais e escritos
católicos, podemos encontrar as denominações de “alto” e “baixo espiritismo”
conferidas, respectivamente, ao kardecismo e às práticas da Macumba, Candomblé e
Umbanda. Esta era uma forma de diferenciar as duas religiões, já que aos olhos de seus
perseguidores (a igreja católica e os jornais conservadores da época), espiritismo e
práticas afro-brasileiras eram tudo a mesma coisa.
Mesmo com os esforços por parte dos kardecistas em negar a associação que se
fazia entre sua religião e a Umbanda, esta associação continua durante praticamente
todo o século XX, e irá marcar profundamente esta religião de Matriz Africana em
formação. Este período de perseguição irá durar ainda por todo o século XX, com a
invasão e fechamento de vários terreiros, além da prisão de participantes dos cultos e
apreensão de objetos utilizados nos rituais.
Tal perseguição policial durou até a década de 50, quando se inicia então o movimento
federativo, principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. A
repressão no entanto não cessa neste período, ela apenas muda sua forma. Agora, ao
invés de perseguição policial, a Umbanda sofreria a perseguição ideológica da igreja
católica e da imprensa conservadora, especialmente de jornais como O Estado de S.
Paulo.
Levadas pelas críticas, as federações tendem a fugir aos seus estigmas de
origem, e tentam retirar de seus rituais tudo aquilo que possa remeter ao seu passado
negro, ou que pudesse passar a imagem de primitivo ou bárbaro. Inicia-se um forte
movimento de “branqueamento” dos rituais umbandistas. A perseguição ideológica e o
movimento federativo vão da década de 50 até o ano de 64, quando se inicia uma
expansão umbandista devido ao apoio do governo militar.
Na década seguinte a Umbanda chega ao seu ápice com nada menos do que 94,1%
dos registros em cartório sendo de terreiros umbandistas, frente a apenas 4,7% de
centros espíritas e 4,2% de candomblés, isto apenas em São Paulo 26. A partir desta
década, tirando um ou outro artigo publicado em jornais criticando a Umbanda, ela
passa a gozar de uma certa legitimidade dentro da sociedade brasileira. Apoiada por
políticos e intelectuais, tendo seus congressos regionais e nacionais, e tendo suas festas
incluídas nos calendários de vários estados, como a tradicional festa para Iemanjá que é
feita em várias praias brasileiras na virada do ano, a Umbanda vira sinônimo de
nacionalismo e passa a ser defendida por muitos intelectuais como sendo a “legítima
religião brasileira”.
Seu crescimento ao longo de todo este período se deu em duas frentes distintas. “De
um lado, ao expandir-se, (a Umbanda) atingia setores da classe alta, e de outro lado era
invadida pelo Candomblé”.27 O crescimento polarizado continuou, portanto, presente
dentro da Umbanda. Isso foi possível graças ao intenso hibridismo que a marcou desde
seu início, não tendo ela nascido com corpo doutrinário estabelecido e modelos

26
NEGRÃO, 1996, p. 99.
27
Idem, p. 122.
fechados de rituais. Pelo contrário, cada pai-de-santo, cada líder de terreiro manteve sua
autonomia para conduzir o culto conforme seus interesses e conhecimentos, podendo ele
agregar elementos de diversas outras religiosidades, desde a doutrina kardecista até
elementos das chamadas religiões da Nova Era. Para entender este hibridismo e esta
diversidade que caracteriza a Umbanda e a torna tão rica, passaremos agora ao estudo
de suas principais características.
Surgida da união de vários elementos trazidos de outras religiosidades, a
Umbanda herdou da Macumba suas práticas mágicas e rituais africanizados; do
Kardecismo a doutrina dos espíritos; do Candomblé o panteão dos orixás; do
xamanismo indígena suas ervas e curas; além de ter sofrido influências orientais,
ciganas, islâmicas e até mesmo das religiões holísticas da chamada Nova Era. Dentro
deste quadro de elementos, cada terreiro pôde se estruturar a seu modo, agregando as
influências que o líder achasse mais convenientes para o desenvolvimento de seu
trabalho, o que provocou esta diversidade em torno dos rituais umbandistas.
Portanto, para buscarmos compreender a Umbanda, devemos primeiramente
buscar aquilo que a define e a caracteriza. Para isto, se torna fundamental despirmos
seus cultos de todos aqueles elementos que sejam indiferentes a ela, elementos que
ajudam a dar forma ao seu culto, mas que não fazem parte do conteúdo da Umbanda em
si. Como define Durkheim, temos de reduzi-la ao indispensável28, àquilo sem o qual ela
não pode existir.
Não é difícil identificarmos estes elementos indispensáveis. A Umbanda se
caracteriza pelo fenômeno da incorporação de caboclos, pretos-velhos, crianças, exus, e
diversas outras entidades. O que estas entidades tem em comum é sua condição de
“inferioridade” em relação a um tipo ideal de homem civilizado. Na Umbanda há uma
inversão de poder, em que o homem branco “civilizado” é submetido ao poder de
entidades consideradas “inferiores” na escala social, como negros, índios, malandros,
crianças, ciganos, baianos, e vários outros. Portanto, “podemos dizer que o poder
religioso da Umbanda decorre disto, de uma inversão simbólica em que os
estruturalmente inferiores na sociedade são detentores de um poder mágico particular,
advindo da própria condição que possuem”.29

28
DURKHEIM, 1996, P. XII.
29
BIRMAN, 1985, p. 46.
São estes tipos de manifestações, de espíritos considerados “subalternos e
inferiores, em comparação com a imagem ideal de homem e civilização”30 que,
incorporados ao médium, prestam consultas aos pacientes que procuram o centro em
busca de ajuda espiritual ou física.
Fica assim estabelecido, portanto, os três elementos que definem a Umbanda. O
primeiro é o fenômeno da incorporação, que a distingue das religiões de veneração
como o cristianismo; o segundo o trabalho com espíritos que são marginalizados na
sociedade “civilizada”, o que a distingue do Kardecismo, que trabalha com entidades
consideradas “evoluídas”, como médicos, padres, etc., e do Candomblé, que trabalha
diretamente com os Orixás; e o terceiro a conversa direta entre a entidade incorporada e
o paciente que procura o centro de Umbanda, que a distingue do Candomblé, em que os
Orixás incorporados não conversam com os freqüentadores do culto.
O culto de Umbanda pode ser simples ou complexo, dependendo dos rituais e
das influências utilizadas em cada centro. Geralmente se iniciam com os pontos
cantados pela assistência, que se dispõem em círculo ao redor da gira, e entoam cantos
específicos da Umbanda, que em suas letras louvam aos Orixás e chamam pelas
entidades. Outra característica são os pontos riscados. Tratam-se dos desenhos que as
entidades realizam no chão, com giz, que trazem símbolos considerados sagrados para a
Umbanda, como o pentagrama, a cruz, a flecha ou seta, espadas e etc. Os pontos
riscados podem ser simples como uma espiral desenhada por um caboclo, ou
complexos, com símbolos hindus, como o ying-yang, o olho, a estrela de Salomão, entre
outros. É raro um centro que não trabalha com estes pontos cantados e riscados.
Durante a gira as entidades podem fumar e utilizar bebidas alcoólicas,
principalmente o vinho dos caboclos e pretos-velhos, a cerveja dos baianos, a pinga dos
exus e a champanhe e sidra das pombagiras. Tais bebidas não são apenas ingeridas
pelos médiuns, mas também servem como forma de benzer e dar os passes nos
freqüentadores, assim como os cigarros, charutos e cachimbos. Já a decoração do centro
varia muito. Alguns trazem adornos diversos, como flechas, estátuas de caboclos e
pretos-velhos, quadros de santos e Orixás, altares, etc. Outros apresentam decoração
simples, com no máximo um altar de flores no centro.
O trabalho da Umbanda é dividido em duas linhas ou falanges principais, que
são a esquerda e a direita. Cada uma destas linhas apresenta um tipo de culto específico,

30
Idem, p. 45.
com entidades diferentes para cada uma e seus cultos são realizados, geralmente, em
dias e locais separados. Na linha da direita o trabalho é realizado com caboclos, pretos-
velhos, crianças, baianos, e outros espíritos que se caracterizam por já possuírem uma
elevada condição moral, não realizando trabalhos para prejudicar outras pessoas.
Já os trabalhos de esquerda, também conhecidos como Quimbanda, que seria
uma espécie de subdivisão da Umbanda, são realizados com espíritos de exus e
pombagiras. Estas entidades são marcadas por um profundo dualismo dentro da visão
umbandista. A priori eles não possuem uma distinção moral elevada como as outras
entidades. Sua forma muitas vezes se aproxima com a de um demônio, como
demonstram suas estatuetas, e durante o culto eles falam palavrões e andam mancando
ou arrastando os pés, bebem pinga e fumam charuto. Por essa amoralidade e pelo seu
poder, que lhe atribuem os umbandistas, são espíritos considerados potencialmente
perigosos, que podem fazer trabalhos tanto para ajudar quanto para prejudicar outras
pessoas, dependendo apenas que lhe seja pedido.
Alguns centros não possuem restrições ao trabalho destas entidades, deixando-os
livres para fazer o mal ou o bem, dependendo do interesse de quem os procuram; outros
utilizam-se deles somente como proteção, realizando apenas trabalhos benéficos, não
permitindo que sejam realizados trabalhos com o intuito de prejudicar ou interferir
diretamente na vida de outras pessoas. Vemos, assim, que o trabalho da Quimbanda não
está necessariamente vinculado à prática do mal, como alguns autores colocam.31
Esta associação ocorre porque durante muito tempo a Quimbanda foi sendo
associada à prática da Magia Negra. Os próprios praticantes umbandistas por vezes
fazem esta identificação, atribuindo sempre ao outro esta prática, nunca a si mesmos.
Eneida Gaspar coloca que

criou-se o hábito, entre pessoas pouco escrupulosas, de utilizar a Quimbanda


para fazer o mal, vingar-se de desafetos e obter vantagens por meios pouco
honestos. Entretanto, as pessoas que trabalham a sério com estas entidades
sabem que elas podem ser boas protetoras de seus fiéis, como o exu que guarda
a porteira da casa (DUARTE, 2002, p. 184).

Inserido na teoria da evolução dos espíritos kardecista, Exu é considerado como

31
MAGNANI, 1986; BIRMAN, 1983; MACHADO, 2003; PIERUCCI, 2000. Uma interpretação mais
apropriada dos Exus pode ser encontrada em NEGRÃO, 1996; e DUARTE, 2002.
um espírito ainda em evolução, que deve prestar trabalhos de caridade para evoluir e
deixar sua condição de espírito inferior. Sua condição de espírito inferior vem de sua
própria encarnação, marcada sempre pela falta de uma conduta moral rígida, e pelos
erros e pecados cometidos. Esta ausência de uma moral definida em vida, permanece
após a morte, e é responsável pela neutralidade com que este espírito se apresenta nos
terreiros, aceitando fazer tanto trabalhos de caridade, de ajuda espiritual, quanto
trabalhos considerados a-morais, que visam influenciar na vida de outras pessoas
através da magia.
Nas palavras dos próprios praticantes da Umbanda percebemos estes elementos:

Exu é um espírito elementar, não tem origem. A gente pensa por ele, por isso
ele aceita tanto fazer o bem como o mal. (...) Exus são espíritos de pessoas
sofredoras. (...) São pessoas que em vida fizeram alguma coisa errada. Exu todo
mundo recebe, porque ele é uma segurança para nós. (...) São espíritos sem
doutrina, vieram para cumprir missão. Eram espíritos rebeldes na outra
encarnação (MAGNANI, 1986, p. 46-47).

As noções de evolução, missão, caridade e doutrina estão fortemente presentes


no imaginário umbandista. Sua missão aqui na Terra seria a de trabalhar através da
prática da caridade, para assim se doutrinarem e conseguirem evoluir. Neste sentido, sua
identificação com o diabo cristão é substituído pela identificação a um espírito atrasado,
sem luz, que ainda não tem um conhecimento moral definido. Nas palavras da líder de
um centro Umbandista, Exu não deve ser identificado com o diabo:

É uma idéia muito errada que as pessoas fazem do Exu. Claro que tem alguns
que ainda não tá bem esclarecido, (...) não tem conhecimento de nada, (aí) as
pessoas usam ele pra fazer essas coisas; ele faz aquilo pra ganhar o que eles
prometeram, ele não sabe se tá fazendo o bem, se tá fazendo o mal, não tem
distinção.(...), mas depois que ele começa um esclarecimento, ele quer crescer,
ele tem compreensão que ele precisa crescer, ele não faz isso mais
(NOGUEIRA, 2005, p. 55).

Percebemos que dentro dos próprios terreiros é feita uma distinção entre os que
se utilizam de Exu para fazer trabalhos sérios, para conseguir proteção e atender a
pedidos relacionados à problemas diversos, sejam de saúde, trabalho, amorosos, entre
outros; daqueles que se utilizam dos Exus para fazerem trabalhos maléficos, conhecidos
como magia-negra, que visam prejudicar ou influenciar de alguma forma na vida de
outras pessoas.
Assim é atestada a neutralidade da entidade Exu, podendo ele fazer tanto o bem
quanto o mal, dependendo apenas do pedido que lhe é feito. Neste caso, a
responsabilidade não está na entidade ou espírito que realiza o ato mágico, mas sim
naquela pessoa que fez o pedido. A entidade é apenas um instrumento, um agente
utilizado, e não se responsabiliza pelo teor do pedido feito. Este caráter é atestado pela
própria literatura umbandista. Rubens Saraceni coloca que:

Quem conhece a entidade Exu sabe também que é uma entidade neutra. Para
eles não existe a divisão entre bem e mal, apenas objetivos a serem atingidos. Se
direcionados para o bem, fazem-no à sua maneira, e se para o mal, também.
(SARACENI, 2006, p. 87).

Ao contrário do que pensa a maioria, o culto aos Orixás não faz parte da essência
da Umbanda. Em primeiro lugar, eles não estão presentes em todos os centros e nem são
indispensáveis ao exercício do culto umbandista. Em segundo lugar, quando estão
presentes é no sentido de divindades, de deuses distantes, que devem ser venerados. Os
Orixás estão para os umbandistas assim como os santos estão para os católicos.
Inclusive a correspondência entre Orixás e santos católicos ainda prevalece na maioria
dos centros e terreiros, resultado do profundo processo de transculturação que esta
religião se inseriu. A Umbanda, portanto, não trabalha com os Orixás como ocorre com
o Candomblé, onde há a incorporação dos mesmos no terreiro. Na Umbanda, apenas os
eguns, espíritos dos antepassados, é que incorporam durante o culto.
Baseado nisto, podemos afirmar que a identidade africana na Umbanda não é tão
forte quanto no Candomblé. Apesar de suas origens negras, a Umbanda nunca esteve
preocupada com a idéia de preservação das raízes africanas e nem mesmo se empolga
hoje com o movimento de reafricanização que perpassa as suas congêneres,
principalmente o Candomblé.32 Claro que há líderes dentro da Umbanda que estão
inseridos neste projeto de reafricanização e utilizam a Umbanda como manutenção de
uma consciência negra e identidade afro. Mas esta não é uma preocupação presente na
Umbanda como um todo.

32
PIERUCCI, 2000, p. 298.
Isto ocorre devido ao próprio modo como a Umbanda cresceu e se estabeleceu
enquanto religião. Conforme já vimos, este crescimento se deu entre dois pólos
distintos. No primeiro pólo, ela era “embranquecida” pelas influências do Kardecismo,
enquanto que no segundo pólo era invadida pelo Candomblé, sendo “africanizada” pelos
rituais deste último. Portanto, a diversidade da Umbanda permite que os centros se
estruturem como queiram, e a tendência é de que os centros fiquem entre estes dois
pólos mencionados, aproximando-se mais de um ou de outro, dependendo dos interesses
e necessidades do líder do centro. 33
Podemos concluir assim que apesar das várias tentativas de unificação e
codificação de uma doutrina única dentro da Umbanda e da uniformização de seus
rituais, já propostas por várias federações através dos congressos realizados pelo país, a
Umbanda mantém a diversidade como sua principal característica, continuando a ser
reinterpretada e reinventada conforme as idéias e vivências de seus líderes, o que, de
certa forma, acaba se tornando o grande atrativo desta religião brasileira, cada vez mais
procurada nos dias de hoje, inclusive por membros das classes média e alta.

Referências

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