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Carlos Doin*
1
Este trabalho é uma nova versão do que foi apresentado como tema livre no
XVIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Recife, 2003.
2
Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
características e inclinações que os caçulas de ambos os sexos tendem a
manter em suas relações pessoais pela vida afora, a partir da posição inicial
que lhes coube na constelação familiar. Já este tema, o da organização das
famílias, tem recebido bastante atenção. Mesmo assim, parece que é mais
frequente privilegiar o relacionamento de cada filho com os pais, deixando
em segundo plano o dos irmãos entre si.
No mesmo contexto, poderíamos descrever uma síndrome do mais
velho ou do intermediário, mas a do caçula me interessou especialmente
por encontrá-la mais amiúde no meu trabalho de analista e de supervisor.
Não cabe aqui uma revisão da complexa dinâmica familiar, dos pa-
péis, muitas vezes de origem transgeracional, que são atribuídos a cada
criança pelos pais, irmãos e demais parentes, de acordo com as necessida-
des daquele grupo singular e de cada membro, com as características indi-
viduais dos componentes, com as circunstâncias da família em torno do
nascimento e criação do caçula, com as disposições somatopsíquicas deste
e inúmeros outros fatores a examinar em cada caso, sem esquecer a
especificidade ímpar da relação analítica em questão.
Existe uma vasta literatura sobre tais assuntos em diversas áreas de
conhecimento, e a psicanálise não constitui exceção. Freud lançou o tema,
em “A Interpretação dos Sonhos” (1900, p. 250):
The Waste Land “[...] foi escrito após uma série de crises pessoais
(fracasso sexual, morte do pai, abandono pela mãe), que desembocaram
em depressão e num breve período de psicoterapia” (p. 216-217). Repudi-
ava a insinuação de que o poema se inspirara na perda de um amigo íntimo
muito especial, morto na guerra. Apesar dos esforços para melhorar, vivia
exausto, indeciso, hipocondríaco, apavorado com a loucura. Fez um casa-
mento desastrado com uma psicótica, que o traiu com vários homens, in-
clusive com Bertrand Russell, o famoso filósofo e político, seu protetor,
em casa de quem o casal morou por algum tempo.
Ao nascer na família James, Alice juntou contra si duas desvantagens:
caçula e única menina, depois de quatro rapazes. Todos já pareciam satis-
feitos com a constelação estabelecida antes do seu aparecimento (ou intro-
missão?); não pôde contar com a mãe. Os homens a tratavam como uma
bonequinha, mimada, porém inferior, não levada a sério, nem por Henry,
tão sensível à condição feminina em seus romances. William tinha em re-
lação a ela condutas e declarações de teor francamente incestuoso.
Sem ninguém que a valorizasse pelo que se creditava de positivo, vi-
via reclusa em casa a maior parte do tempo, em atividades limitadas. Repe-
liu todos os pretendentes. Fraca e instável, tida como histérica e inválida
profissional, forçava as pessoas a se ocuparem com ela por meio de crises
nervosas espetaculares.
Bem perto da morte, em 1891, escreveu a William: “Quando eu tiver
partido, te suplico: não penses em mim apenas como uma criatura que
poderia ter sido outra coisa, se já tivesse nascido a ciência neurótica” – que
já estava a caminho.
Na Analise do Self, Kohut (1971) refere-se a uma paciente narcísica
cujo único irmão, três anos mais velho, roubava sempre a atenção que os
pais iam dar a ela, ao que ela dizia ou fazia cheia de orgulho.
Hendrika Halberstadt-Freud (1998, p. 45) assim se pronunciou a res-
peito de uma conhecida nossa:
5.1 Ernst
Caçula de um casal de estrangeiros, com quatro crianças. A mais ve-
lha e única menina não sobreviveu a um acidente doméstico ainda bem
pequena. Quando Ernst tinha sete anos e pouco, seu pai, muito moço, mor-
reu de infarto. A mãe criou os três rapazes com imenso trabalho e uma vida
bastante austera e sacrificada, sempre meio deprimida, preocupada em vi-
ver, ao menos, até o menor se tornar adulto, já que não tinham parentes no
Brasil e conservavam poucos laços com os que deixaram no exterior. Ernst,
agora com dezenove anos, era deprimido e acossado por fantasias culposas
que limitavam seu desenvolvimento pessoal, profissional e afetivo.
Considerava-se responsável pelo encerramento da carreira
reprodutiva dos pais – “Fechei a fábrica” –, impedindo o nascimento de
uma segunda menina que substituísse a morta. Outras vezes, se sentia obri-
gado a preencher a falta da irmã, o que reforçava suas vivências homosse-
xuais e femininas. Julgava haver causado a morte do pai e que seu cresci-
mento acabaria com a mãe, demitindo-a da função de criar meninos, sua
razão de viver. Permanecer criança, a seu modo, também implicava não
deixar inteiramente para trás a idade que tinha quando o pai morreu para
não admitir como definitiva a morte dele. Evitava avançar no tratamento e
aproximar-se da alta, o que causaria a demissão-morte do analista.
Achava o terapeuta muito sério, trajado de modo por demais conser-
vador, à semelhança da mãe. Sonhou que o via bem informal, de sandália e
bermuda, e fez uma interpretação: “A verdade só é dita quando a pessoa
está à vontade”. Comentou, então, que só naquele momento tinha percebi-
do o resfriado do analista, talvez por medo de vê-lo deprimido, esgotado
pelas preocupações, com alguma doença grave. E, logo depois, contou que
se irritara com o sobrinho pequeno, que não aprendia a respeitá-lo. O ana-
lista interpretou que o paciente o comparava à sua mãe, firme no trabalho,
mas não suportando que lhe apontassem falhas, relutante em reconhecer
quando estava cansada ou doente. Ernst acrescentou que receava estar sa-
crificando demais a mãe e que temia perdê-la, pois já não tinha pai. A
correlação transferencial ficou evidente.
Disse, então, que o chefe da mãe resolvera liberar-se de algumas tare-
fas, delegando-as a ela. Lembrou-se, em seguida, de mais um sonho: acha
que um homem quer assaltá-lo, mas, olhando bem, reconhece nele um
amigo. Trocam sorrisos. O analista lhe deu a seguinte interpretação: “Pen-
so que você mostra que não há assalto, que eu lhe passo maiores poderes
sobre a sua e nossa análise, sem desrespeito ou prejuízo para mim, até com
agrado, que você também pode interpretar os sonhos”. O rendimento da
análise foi bastante bom.
5.2 Pedro
Caçula temporão, com vários irmãos e irmãs. Embora estivesse che-
gando aos vinte anos, conservava traços muito infantis, para delícia de
quase todos os familiares. Falava errado em casa. Na faculdade de Direito,
apresentava-se mais despreparado e ingênuo do que era. Tinha medo de
crescer e contrariar os familiares, inclusive fazendo críticas muito acerta-
das sobre os erros deles. Preferia não ter razão e desistir de um argumento
que sentia válido, com medo de usá-lo de modo agressivo, por causa dos
ressentimentos acumulados contra os que o tratavam como criança boba,
embora também colaborasse para isso.
Estava acostumado a se omitir, deixando os problemas para os “gran-
des”. Por livre iniciativa, vendeu os móveis velhos da casa de campo da
família, mas entrou em confusão na hora de comprar outros. Quis passar a
incumbência para um irmão, que lhe disse o que naquele momento queria
Carlos Doin
e não queria ouvir: “Você já está bem grandinho, leve adiante o que come-
çou”.
Mostrava muita pressa em concordar com as interpretações do analis-
ta antes de ter insights verdadeiros, pretendendo agradar, mas também fu-
gir das pechas de “retardado e ignorante”, que lhe atiravam em casa. Ma-
goava-se ao achar que o analista perdia a paciência com sua “burrice”. Por
outro lado, pedia-lhe conselhos a torto e a direito. Certa vez, quando o
analista lhe disse que poderia solucionar por conta própria um pequeno
problema, Pedro voltou a falar como criança, atrapalhando-se com as pala-
vras.
Na sessão seguinte, comunicou que não conseguira resolver o proble-
ma, cometendo erros que pareciam exageradamente grosseiros, talvez para
provar a sua incapacidade e acusar o analista.
Também se rendia depressa aos argumentos da primeira e única na-
morada, temendo perdê-la. Mas favorecia a posição dela de uma maneira
tão tendenciosa que ela não se convencia de sua sinceridade. Essa entrega
acintosa servia para mostrar que ele estava fazendo um jogo, uma zomba-
ria, que não era tão bobo nem tão submisso. Examinando a repetição dos
esquemas, a mistura de tendências opostas e respectivas defesas em seus
diversos relacionamentos, especialmente na transferência, foi possível
abrir caminho para o seu desejo de crescimento.
5.3 Cristina
Última de uma série grande de irmãos e irmãs. A mãe estava bem
perto da menopausa e não contava ter outra criança. Gravidez e parto fo-
ram tumultuados. Cristina vivia sempre insegura, como se não tivesse nas-
cido completa, bem-feita, não possuísse um lugar garantido na família e no
mundo. Suas angústias se acentuavam com as brincadeiras, muitas vezes
sádicas, que ouvia desde pequena: “sobra de massa, raspa do tacho”, “Você
só ficou porque a cegonha não aceitou te levar de volta”. Esse sentimento
de ser diferente para pior se acompanhava de outro, o de não ter sido vista
como diferente no bom sentido, como uma pessoa original. Parece que o
cansaço da mãe e a experiência com muitos filhos não lhe permitiram aco-
lher uma criatura nova, o que talvez se denotasse nas frases habituais:
“Criança é tudo igual, para quem já criou tantos, não tem mais novidade”,
“Quando você nasceu, não precisamos comprar nada, já tinha de tudo aos
montes”.
Buscando impor-se individualmente, ter traços e opiniões próprias,
tornava-se extremamente crítica em relação aos “dogmas dos donos da
verdade”, às ideias políticas do pai e dos irmãos, às beatices da mãe, às
interpretações do analista. Em casa, era a única torcedora de determinado
time de futebol, dos menos populares, e de uma escola de samba quase
desconhecida, com os quais se identificava, tomando aguerridamente sua
defesa. Em outros momentos, se mostrava bastante dócil, carente de uma
dependência confiante, o que se comprovava pelos esquecimentos, no divã
do analista, de óculos, livros, documentos e do seu diário íntimo.
Num equivalente transferencial, reclamava: “Vocês, analistas, querem
encaixar a gente nas suas teorias, parece que já sabem tudo!”. Ficava extre-
mamente injuriada quando o analista não entendia direito alguma de suas
frases, errava ao designar um dos seus sentimentos, esquecia-se de algum
detalhe do que ela dissera, ou confundia o nome dos irmãos e amigos.
Obteve ótimos resultados numa análise que durou longos anos.
5.5 Tadeu
Tinha um único irmão, cinco ou seis anos mais velho. Sempre perdido
entre submeter-se ou revoltar-se contra um mundo pronto, sentia-se humi-
lhado por querer acompanhar o desenvolvimento do irmão, sem se dar bas-
tante conta da diferença de idade. De outra parte, já tendo vinte e dois anos,
a sua vivência de tempo, a noção de prazos ainda era bastante confusa.
Oscilava entre chegar muito atrasado ou adiantado para os encontros, entre
afobar-se ou relaxar na realização das tarefas. Começou a treinar cedo para
o exame vestibular, entrou com a idade mínima na faculdade em que o
irmão estudava, mas custou a vencer os primeiros anos. Tanto reclamava
da duração longa da análise quanto se tranquilizava com a ideia de que os
tratamentos são mesmo demorados. Fazia esforços concentrados numa
sequência de sessões e depois desaparecia por uma semana ou mais.
Vacilava entre o desejo de suplantar o pai e o irmão em termos profis-
sionais, e a suposta obrigação de ficar sempre atrás deles. O mesmo verifi-
cava-se na relação analítica.
Às vezes se queixava de que o analista dizia as coisas muito devagar,
como se Tadeu fosse um idiota e não pudesse acompanhar seu raciocínio.
Outras vezes o acusava de precipitar-se nas interpretações, não respeitan-
do seu tempo de entendimento. Achava que o analista podia estar impaci-
ente com sua demora, talvez o considerasse “lerdo” e tivesse pressa de se
livrar dele, à semelhança dos familiares. Até a namorada o pressionava,
queria que se excitasse rapidamente na cama. Com isso, ele sentia-se mais
à vontade com uma prostituta que lhe dedicava todo o tempo que quisesse.
No momento do registro do material, o tratamento prosseguia com boas
perspectivas.
5.6 Ester
Filha caçula de um ministro religioso muito severo, tinha mãe e ir-
mãos submissos ao que lhes era passado como a vontade de Deus, a lei, a
ordem natural das coisas, e que incluía obediência aos mais velhos, ao pai,
à mãe, aos irmãos, numa sequência hierárquica rígida em que Ester ficava
sempre por último. Debateu-se, desde cedo, entre acatar o código ou rebe-
lar-se abertamente contra ele, sempre com medo do castigo humano e divi-
no, de perder o amor e o lugar entre os “bons”.
Às vezes, tentava assumir o posto mais alto da escala, criticando
ferinamente os “pecados” do pai, a contradição entre seus sermões e o
comportamento em casa. Fiava-se na “ordem natural das coisas” para se
dispensar de ter pressa, já que viveria muito, ainda teria bastante tempo
para fazer o que quisesse, iria enterrar todos. Mas entrava em perplexidade
e revolta quando a suposta ordem era contrariada pela morte de algum
jovem.
O pai mostrava um xodó pela caçulinha (“minha herege”), o que fazia
Ester desejar a quebra de uma outra ordem, fantasiando inconscientemente
namorar o pai. Tinha, na verdade, um namoro distante com um colega dele.
Mas continuava solteira e virgem, aos vinte e tantos anos. O amor de trans-
ferência não chegou a configurar-se bastante. As vantagens de permanecer
a filhinha querida na casa dos pais se opunham à análise, que já começara
sem muita convicção (“porque todo mundo está fazendo”), como se a
ambivalência e a irresolução também pertencessem à “ordem natural das
coisas”, em relação aos caçulas. O tratamento não foi longe.
5.8 Murilo
Jovem caçula com dificuldades narcísicas e sexuais graves. Quando
menino, até além dos seis anos, fora tratado como um bonequinho pelos
muitos irmãos e manipulado sexualmente pela irmã mais velha, bastante
problemática, com aparente complacência ou conivência de todos, inclusi-
ve dos pais: “Que mal faz, criança não tem malícia! E ele não é mesmo
uma gracinha?”. Produziram-se danos graves à sua identidade e caráter.
Aprendeu desde cedo a se fazer de bobo, afetando inocência para tirar pro-
veito de situações escusas. Tornou-se usuário e traficante de drogas. Pro-
curou análise “por modismo”. O terapeuta resistiu, criteriosamente, às ten-
tativas de Murilo de seduzi-lo por intermédio de presentes cada vez mais
caros, visando obter concessões antianalíticas e mesmo antiéticas. Inter-
rompeu a tentativa de análise em poucos meses.
5.9 Lourival
Desde pequeno, foi estimulado a seguir os três irmãos mais velhos por
razões famíliares, já que os pais trabalhavam fora e havia facilidade de
colocar os meninos no colégio de amigos. Lembrava-se de estar sempre
correndo, desde muito pequeno, para acompanhar a caminhada dos irmãos,
ou de ter que se pôr na ponta dos pés para ver, pela janela, o que eles
estavam fazendo lá fora. Era considerado precoce. Chegou à análise como
um jovem professor bem-sucedido, na esteira dos pais, irmãos e tios, mas
com um desconforto interno indicativo de falso-self – não se sentia nunca
“na sua”. Bem educado e falante, algo posudo, caprichava no “jogo do
contente”, do “familiarmente correto”, seguindo a carreira que já o espera-
va, namorando a garota maravilhosa que a família sonhara para ele,
caprichando para ser o paciente ideal, porém, incapaz de realizar-se em
termos pessoais e afetivos. Dolorosas palavras que o autodefiniam: “Um
garoto precoce [que] continua garoto”. Depois de um ano e pouco de trata-
mento, conseguiu uma bolsa de estudos no exterior, o que valeu como um
avanço – “desgrudar-se da família” –, mas, por outro lado, do ponto de
vista inconsciente, significou obediência a um destino familiar pré-traçado
que a análise poderia atrapalhar.
Carlos Doin
5.10 Natália
Caçula temporã e indesejada, teria arruinado definitivamente a pouca
saúde materna. A interrupção da gravidez foi seriamente cogitada pela mãe
e pelo cardiologista, tendo prevalecido os escrúpulos religiosos do lado
paterno. No entanto, o ressentimento familiar contra a menina parecia ex-
travasar-se nas referências constantes às infelizes circunstâncias do seu
nascimento, ou nos ditos maldosos que a feriam e enchiam de culpa (“filha
da tabelinha”, “sobra de massa”, “raspa do tacho”, “extranumerária”,
“lanterninha”, “rabada”, “refugo”). Tal situação determinou em Natália um
modo de ser exageradamente manso, submisso e concessivo. Raramente
se queixava ou exigia, à diferença dos irmãos, como se ela não tivesse os
mesmos direitos.
Quando procurou análise, já tinha alguma noção das suas dificulda-
des, que se estendiam a outros setores, principalmente ao profissional,
onde se esmerava em fazer gentilezas, deixava-se “passar para trás” e não
reivindicava o justo reconhecimento e paga pelo seu trabalho, como se
também ali estivesse condenada a ser uma “extranumerária”, pessoa de
segunda classe ou intrusa, sem direito ao posto.
A repetição transferencial desses dramas permitiu que se liberassem
sentimentos de toda ordem, a começar pelos de revolta contra as injustiças
que sempre sofrera. Pôde um dia dizer com toda a convicção: “Não pedi
para nascer”, reformulando por completo seu modo de posicionar-se na
família, na análise, no mundo.
5.11 Rodrigo
Quando nasceu, depois de duas meninas, os pais haviam acabado de
se separar. Foi totalmente negligenciado pela mãe, que logo passou a viajar
com o novo companheiro, deixando-o entregue a parentes e babás e a um
pai desconsolado e perplexo. Rodrigo apresentou desde cedo um compor-
tamento que mobilizava toda a família: dar sustos, criar suspense, sumir.
De início, se escondia dentro dos armários, debaixo dos móveis, e foi pas-
sando para esquemas sempre mais ardilosos e surpreendentes. Adorava
saber das aflições e comentários que promovia. Já rapazinho, saía sem avi-
sar, ou dava informações insuficientes, ou deixava pistas falsas, e desapa-
recia por alguns dias, criando enorme alvoroço e sofrimento, até ser encon-
trado ou aparecer de volta com cara de triunfo mal disfarçado, para ser
coberto de abraços e beijos, e não poucas repreensões e castigos.
Este padrão narcísico-sadomasoquista se repetiu várias vezes na rela-
ção analítica, com atrasos e chegadas nos últimos minutos, ou já na hora do
outro paciente, enganos sobre o horário, faltas, pedidos de sessão extra a
que não comparecia, mal-entendidos quanto a feriados e férias, recados
confusos deixados na secretária eletrônica do consultório ou na casa do
analista, despertando neste as mesmas reações que Rodrigo conseguia para
si e para a família: produzir angústias, culpa e raiva, sentimentos de impo-
tência; por outro lado, conseguia para si poder e importância, obrigando a
tomada de providências desesperadas e atabalhoadas para localizá-lo e,
finalmente, para o alívio geral.
Aos poucos, a trama transferencial-contratransferencial foi sendo tra-
balhada. O analista parou de se envolver nos acting-outs, à medida que
aumentava sua confiança nos recursos da análise. Ajudou muito a ambos
compreenderem a identificação do paciente com a mãe irresponsável e
fugidia. A partir da relação analítica, Rodrigo passou a encontrar outras
formas de afirmação pessoal, obtendo crescente sucesso em uma carreira
artística que lhe permitia exibir-se à vontade e conseguir o reconhecimento
justo.
5.12 Taís
Nasceu da “grande virada” da mãe, que decidiu lançar-se numa “vida
livre”, depois de se desiludir com os homens, principalmente com o ex-
marido, pai das duas primeiras filhas. Repetindo teorias e expressões ma-
ternas, Taís se declarava “fruto da modernidade”, resultado de uma “pro-
dução independente”, do sêmen doado por um “grande amigo” homosse-
xual, que Taís não chegou a encontrar, embora soubesse de sua existência
Carlos Doin
em detalhes. A mãe nunca lhe escondeu suas peripécias, porque “hoje em
dia o principal é a transparência, é a opção”.
Claro que Taís sofreu o reverso de tanta “modernidade”, pois as men-
talidades e os superegos não mudam tão depressa quanto os comportamen-
tos, e as desilusões maternas deixam, quase sempre, sobras amargas e mar-
cas indeléveis, à revelia dos discursos. Taís se tornou uma “tiete selva-
gem”, das que assediam cantoras de sucesso até nos camarins, donde foi
muitas vezes retirada com violência. Conseguiu ter um caso tormentoso
com uma de suas “ídolas”, em que não faltaram drogas, espancamentos,
quebradeiras, interferências policiais e passagens pelo pronto-socorro. O
seu desejo de ter uma vida “mais normal” esbarrou na gravidade da patolo-
gia, na facilidade com que satisfazia, embora precariamente, as urgências
primitivas e, com certeza, nas muitas angústias e algumas atuações bastan-
te inadequadas do psicanalista.
5.13 Karin
Era a sexta e última numa série de irmãos e irmãs. Nasceu três anos
depois de Margareth, a qual continuou como se fosse a caçula, excessiva-
mente frágil, dependente e paparicada. Restou a Karin portar-se como a
mais velha, a mais individualizada, independente, amadurecida e forte. Em
diversos pontos, denunciava-se o teor artificioso e defensivo dos seus es-
forços exagerados. Fazia muita questão de ter hábitos alimentares bem di-
ferentes dos da família, recusando os petiscos da casa. Gostava quando
comentavam que ela era a única a ter tal ou qual característica, como o
interesse precoce pelo idioma japonês, que começou a aprender com vizi-
nhos e ao qual dedicava horas e horas de estudo sacrificado. Negava-se a
herdar a roupa das irmãs e ficava extremamente irritada quando trocavam
o seu nome pelo de outra.
Procurou análise por causa da tensão, insegurança e mau humor cons-
tantes. Reclamava das interpretações, alegando que eram clichês que o
analista usava com todos os pacientes, ou que ele tinha aprendido com
outros e lhe aplicava indiscriminadamente, sem nada específico da pessoa
dela; ou, ainda, que o analista a estava confundindo com outra paciente,
“mais querida”, que ele lhe atribuía frases e fatos pertencentes à “outra”.
A definição e consolidação da sua identidade verdadeira e o aumento
da confiança no valor próprio, a superação dos funcionamentos compulsó-
rios, reativos, rígidos e torturantes se fez ao correr do tratamento, em gran-
de parte por meio da elaboração de vivências transferenciais, como as cita-
das acima.
5.15 Marcílio
O último de três rapazes, nasceu uns quatro anos depois do segundo.
Este, sendo muito submisso e pouco criativo, tornou-se alvo da competi-
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ção e das zombarias de Marcílio. Enquanto os pais e os irmãos eram profis-
sionais de engenharia e informática, o caçula se distinguiu desde cedo por
gostar de bichos e plantas, tendo seguido uma carreira ligada às ciências
biológicas. Procurou tratamento analítico por indicação do clínico, devido
à tensão permanente e ao medo de vir a sofrer um infarto do miocárdio,
“mal de família” – fatalidade com a qual cooperava, inconscientemente, já
pelos excessivos esforços em sua área profissional, sob a justificativa de
que tinha de chegar rapidamente ao topo da carreira para se impor diante
dos colegas. Conseguiu um bom resultado terapêutico, sobretudo com a
elaboração das questões de identidade e valor pessoal. Acabou descobrin-
do por que detestava quando diziam que o gosto por seres vivos, que con-
siderava como um distintivo seu, não era original, pois provinha da “força
do nome”: o avô, Marcílio, havia sido uma autoridade de fama mundial em
um ramo da biologia. E o pai, José Marcílio, teve que fincar pé para não
ceder aos empurrões da família para que seguisse a mesma especialidade.
5.16 Nairo
Depois de três rapazes, a mãe tinha como certa a chegada de uma
menina, que receberia o nome da avó materna, e preparou o enxoval para
ela. “Nairo” corresponde a uma versão masculina, inusitada, desse nome.
O menino cresceu sem problemas aparentes quanto à identidade sexual,
apesar de saber da origem do seu nome, que abominava, e da decepção que
causou à mãe. Acompanhava o pai e os irmãos em suas atividades e, curi-
osamente, adotou alguns traços duros da mãe, o jeito autoritário de falar e
os gestos ríspidos que ela usava com seus empregados, numa profissão
tradicionalmente masculina em que ela obtinha muito sucesso. Nairo se
preparava para uma carreira no mesmo ramo, fazendo cursos superiores
para ultrapassar a formação técnica da mãe. Procurou tratamento psicana-
lítico por suas dificuldades com as namoradas. Estava prestes a perder a
terceira, com quem desejava casar-se, e que reclamava, como as anterio-
res, dos seus modos de machão. A análise se desenvolvia promissoramente
no momento deste registro.
The title includes habitual features of personality and behavior of those who
were born in the last series of siblings. Although most of these traits are not exclusive of
the youngest, they tend to express it more clearly and collected, to form a more or less
typical situation, subject to variations resulting from the family dynamics and the indivi-
dual dispositions. The recognition of such relativisms warns against the current stereotypes
about the youngest. In each one of them occurs a peculiar mixture of contradictory
characteristics, resulting from the interaction of different determinisms, inclinations and
defenses, acceptance and refusal of familiar and social roles. Only in this terms it is possible
to understand “the youngest’s syndrome” and take good advantage of its application in
clinical psychoanalysis. Among the many components of the syndrome, those on narcissism,
identity and self-worth, personal development, diversity of relationships and group
commitments, guilt and unconscious need for punishment, shine through. The text includes
quotes from psychoanalytic authors and related areas, as well as references to several
youngest and their families, biblical and literary characters and personalities of our time,
besides some patients.
Brothers. Family. Narcissism.