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O termo indústria: uma transformação

Reflexões acerca da evolução semântica do termo no Brasil

- do emprego corrente no século XIX ao no século XX

Indústria, Desenvolvimento e Projeto de Nação


IEB (Instituto de Estudos Brasileiros)
Prof. Alexandre Barbosa

Tomás Tomic
n. USP 10339521
FDUSP – Turma 190 – XI

1
“O signo é portanto um excitante – os psicólogos dizem
um estímulo, cuja ação sobre o organismo provoca a imagem
memorial de um outro estímulo; (...) a palavra evoca a imagem
da coisa. (...) O que chamamos experiência, ou conhecimento, é
apenas uma “significação” da realidade, da qual as técnicas, as
ciências, as artes e as linguagens são modos particulares;
concebe-se portanto a importância e a universalidade do
problema da significação assim apresentado; nós vivemos entre
os signos, e uma ciência geral da significação abrange o
conjunto das atividades e dos conhecimentos humanos.”
– Pierre Guiraud

A língua (...). Ela é simplesmente o mais importante


desses sistemas. Podemos portanto conceber uma ciência que
estuda a vida dos signos no seio da vida social; ela formaria
uma parte da psicologia social, e, consequentemente, da
psicologia geral; chamá-la-emos de semiologia (do grego
“semeîon”, signo). Ela nos ensinaria em que consistem os signos
e quais são as leis que os regem. (...) A linguística é apenas uma
parte dessa ciência geral, e as leis que a semiologia descobrirá
serão aplicáveis à linguística, sendo que esta assim ficará
ligada a um domínio bem definido no conjunto dos fatos
humanos
– Ferdinand de Saussure

Only trought time time is conquered.


– Thomas S. Eliot

2
indústria sf. ‘arte, destreza, engenho’ | jn-
XIV, endustria XV|; ‘conjunto de
operações destinadas a transformar as
matérias-primas em produtos adequados
ao consumo e a promover a realização
das riquezas’ 1813. Do lat. indústria1.

0. Sugestão de aproveitamentos de leitura

Para além da mera delimitação clara do significado expresso pelo emprego do termo
indústria, o que, por si, já é basilar, a presente discussão se faz valorosa para a formação de
um termo recentemente exaltado nos debates econômicos: desindustrialização. Se levarmos
em conta que uma definição é uma delimitação de contornos, conhecer a evolução do termo,
incluindo seus significados, ao longo do tempo será de grande valia para esboçar e
determinar o termo (indústria) sobre o qual a sua negação (desindustrialização) se apoia.
É desta maneira que uma reflexão semântica se aproxima com destaque dos esforços
de formação, exploração e consolidação do novo termo, corrente nos atuais debates e motivo
de controvérsias, muitas das quais facilmente superáveis por uma clara delimitação do
semântica. Não se desconsidera, no entanto, que a mera discussão semântica resolva os
problemas que superam as dificuldades geradas pelo ruído na comunicação (as motivações
geopolíticas, políticas ou, ainda, ideológicas), apenas aponta-a como uma ferramenta dotada
de grande potencial de inteligência.
Fica posta a sugestão. Além da mais óbvia (a de consolidação e domínio do próprio
termo em discussão), a leitura poderá ser feita com olhos voltados ao segundo decênio do
terceiro milênio, quando emerge com força o emprego de um termo que tem raízes
etimológicas no outro, que aqui se discute, em sentido de negar o processo no qual, de uma
forma ou de outra, pretende-se localizar o que se debate nas seguintes páginas, porque
aponta para o sentido inverso ao dele.
Não se vedem, porém, os demais desdobramentos e leituras possíveis que todo texto
pode ter.
1. Introdução

1 A. G. da CUNHA, dicionário etimológico da língua portuguesa, Rio de Janeiro, 3a edição, 3a


reimpressão, 1982.
3
Há um modo muito particular das ciências humanas de ver e entender os homens e a
sociedade, que, atribuindo-lhe coesão e coerência, permite – e, mais, obriga – fixar o foco nas
relações, e, sendo assim, tem nelas o seu objeto de estudo. A noção de relação faz-se
intransponível no campo das modernas ciências humanas, pois é ela que permite conceber –
ou vislumbrar – nexos causais (por mais difícil e delicado que isto seja) internos ao cosmo
social. Sem ela não se pode compreender a dinâmica da vida em sociedade, como corpo
coeso, como organismo vivo com uma realidade interna própria, com suas partes
interdependentes.
Em um primeiro contato, o per se – típico do pensamento ontológico metafísico
ocidental – se faz inviável quando atribuímos às relações o foco de nossos estudos. Isto,
porque nada será em si, mas sempre em relação a algo. Os valores – religiosos, morais,
econômicos, culturais – e as importâncias sociais serão sempre fruto de relações, nunca são
um valor em si mesmos. Ou seja, não há como dizer de algo em si sem diferencia-lo das suas
proximidades. Para que possamos compreender diversas “substâncias”23 como partes de um
mesmo cosmo, é necessário, para que individuem-se, diferenciá-las, e a diferença se
estabelece em uma relação.
Assim, supera-se a incompatibilidade inicial e verifica-se uma vinculação de
obrigatoriedade entre o aspecto relacional e o aspecto individual da produção intelectual. Ou
seja, para que se possa alcançar a noção de substância, ou ainda, algo que é individualmente
reconhecível, é necessário que se estabeleça uma relação de distinção para com aquilo que
não a compõe. E, disto, podemos extrair a ideia de que, das relações que verificamos entre as
pessoas individualmente tratados, percebem-se novas homogeneidades que nos permitem
dizer de outras individuações inteligíveis, diferentes daquelas que têm, na unidade orgânica
física, sua forma e conteúdo. Estas homogeneidades, derivadas da constância na experiência
observada, é o que nos poderá levar a enformar estruturas4 sociais. O processo de elaboração

2 Substância é o conceito metafísico que origina a noção de sujeito, basilar para a construção do
edifício intelectual do Ocidente. Toda a Gramática Ocidental fundamenta-se na relação entre um
sujeito que age (verbo) sobre outra substância em um relação acusativa, dativa ou ablativa. Destas
noções são construídas as categorias gramaticais de objeto direito e indireto, e adjunto adverbial, da
Portuguesa Língua, por exemplo. São declinações ainda presentes no alemão e que têm origem nas
construções grega e latina. São fruto da cosmovisão daqueles povos.
3 Cf. TRIVIUM.
4 Cf. U. ECO, A Estrutura Ausente, São Paulo, Perspectiva, 2013. O autor apresenta em sua tese de

doutoramento a necessidade de trabalhar a noção de estrutura, quando empregada para o estudo das
culturas, metodologicamente, ou seja, ao invés de conceber a noção de estrutura com valor ontológico,
ele propõe que conceba-se como artifício metodológico, propondo a concepção do pensamento
estrutural – que tem passado na tradição aristotélica, como o próprio autor coloca em seu texto, a
qual tem como antecedente Parmênides, fundador da lógica – como sendo um método, ao invés de
4
de estruturas é no que, em um método estrutural, consiste sua pesquisa. Tomemos por
exemplo o ser humano. É neste processo de individuações que as modernas ciências
humanas encontram, com limites superior, a sociedade, e inferior, a pessoa humana, o
motivo de seus esforços, o objeto de suas observações.
Todo este trabalho ocorre, no entanto, mesmo que com base física e material na
relação entre objeto observado e pessoa observadora, em um plano imaterial, apenas
tangível, transmissível e referível através do exercício da linguagem. É um trabalho de
esforços intelectuais e localiza-se no espírito, na alma, na mente, no campo ao qual podemos
chamar essencialmente cultural, pois é aquilo que é próprio do homem e da natureza de suas
atividades. A linguagem se faz, então, condição sine qua non para a sua realização, mas não
abarca em si os limites e a essência da atividade intelectual, mas apenas almeja conferir – ou
conhecer – forma a ela. Se, por um lado, temos, nos limites da linguagem, os horizontes
definidos de nosso mundo, por outro teremos sempre a possibilidade de superá-los, se não
em uma evolução progressiva, em um processo de transformação, ou reforma. Mas isto
ocorrerá no campo da pesquisa estrutural da cultura, uma vez que em cada esforço de
enformação de estruturas, criam-se formas, ora diversas ora semelhantes entre si, e no
próprio processo de elaboração de estruturas ao mesmo tempo que se desvelem formas
internas, ocorre, também sua criação. Este processo de pesquisa estrutural, tampouco tem,
ao longo da história, um movimento cumulativo de expansão de sua abrangência, mas tem,
como percurso racional de sua atividade e exercício, ao longo da história e na experiência
pessoal, um expandir-se e um contrair-se sucessivos, sem necessária frequência homogênea.
E, na medida em que se reafirmam as estruturas já postas – desveladas ou criadas – pelo
pensamento estrutural, consolidam-se as estruturas, tornando-se formas sócio-culturais.
A supressão de todas as formas seria sua abrangência máxima5 e a pulverização do
cosmo teórico – que aqui significa um máximo de divisões e diferenciações entre as partes
desse cosmo – sua abrangência mínima. Esta relação diz respeito à dupla todo/parte,
geral/especial, comum/singular, total/individual. A noção de forma remete à de limite-
fronteira-contorno, que, por sua vez, nos leva ao processo de diferenciação. A maior

uma doutrina. Afirma-se, então, o estruturalismo metodológico. “o estruturalismo é um método e não


uma doutrina”, “Estrutura é aquilo que ainda não existe”.

5 Na teoria cognitiva pitagórica seria impossível a supressão de todas as formas, ou seja, é impossível
a concepção do que, em sua teoria aritmética, ele chama de 1, pois só é possível conhecer através de
distinções, e o 2 é o primeiro número fruto de uma distinção: divide-se o que é uno em duas partes,
distintas sob algum critério, obtendo-se, assim, duas metades. É ainda nesse campo semântico que
encontra motive a afirmação que diz ser, na concepção pitagórica dos numeros, o 2, simultaneamente
o ½, porque é oriundo de uma divisão daquilo que é inteiro.
5
abrangência intelectual é, então, tomar tudo como o mesmo, e sua menor amplitude é tomar
a existência em suas mais ínfimas partes. É no trânsito entre o geral e o particular que a
inteligência consegue elaborar seus produtos.
Há aqui, então, etapas distintas, que não ocorrem necessariamente à ordem aqui
exposta. A primeira etapa é de ignorância, na qual o que será conhecido e a pessoa que
conhece coexistem sem vínculo inteligível – sem a linguagem, que nos permite apreendê-lo
sem o esforço criativo ou positivo inicial de afirmar uma primeira distinção. A segunda etapa
é de contato, ou percepção do objeto conhecido pelo conhecedor, que é na qual se nota a
existência, intui-se uma singularidade, sem, no entanto, conhece-la claramente. A terceira
etapa é de conhecimento, na qual há uma decisão por conhecer, e que ocorre através do
esforço de distinção entre a singularidade intuída e o demais. Nesta etapa o que ocorre de
mais relevante é o estabelecimento dos aspectos que fazem o objeto singular conhecido
divirja dos demais, e que estabeleçam os seus contornos. É a etapa distintiva, que estabelece
a forma do objeto, através das diferenças entre o que é e o que não-é. A terceira etapa tem
fim com a perfeição da delimitação do objeto, de seus contornos. A quarta e última etapa é a
de exercício da organização criada, na qual se poderá testar a ordem teórica firmada, ora
reconhecendo suas qualidades e eficiências inteligíveis, ora testando suas insuficiências,
inadequações ou incompatibilidades com o que pretendeu organizar.
É assim que no direito se pode dizer de pessoas jurídicas, por exemplo. A noção de
pessoa tem fundamento físico, mas tem sua dimensão teórica explicitada quando usada para
se referir à pessoa jurídica. Esta pode abranger um conjunto de pessoas físicas, como nas
sociedades ou nos Estados, ou não, e é, no universo jurídico, individuada como pessoa
singular. É assim, também, que os sociólogos e antropólogos criam simplificações teóricas
que permitem a inteligência de estruturas sociais, ou seja, as relações sociais constantes em
um dado recorte no tempo/espaço que representam os signos da ordem expressa no
determinado cosmo social enfocado.
A noção de indústria no Brasil remonta aos tempos coloniais, quando uma cadeia de
atividades econômicas e suas relações coesivas eram aquilo ao que se referia o termo. José
Bonifácio, em seu discurso pela abolição da escravatura na Primeira Assembleia Constituinte
Brasileira, emprega indústria nas seguintes frases:

Além disto, a introdução de novos africanos no Brasil não aumenta a


nossa população, e só serve de obstar a nossa indústria [destaque
nosso]. Para provar a primeira tese bastará ver com atenção o censo
de cinco ou seis anos passados, e ver-se-á que apesar de entrarem no
Brasil, como já disse, perto de quarenta mil escravos anualmente, o

6
aumento desta classe é nulo, ou de mui pouca monta: quase tudo
morre ou de miséria, ou de desesperação, e todavia custaram imensos
cabedais, que se perderam para sempre, e que nem sequer pagaram o
juro do dinheiro empregado.
Para provar a segunda tese, que a escravatura deve obstar a nossa
indústria [idem], basta lembrar que os senhores que possuem
escravos vivem, em grandíssima parte, na inércia, pois não se veem
precisados pela fome ou pobreza a aperfeiçoar sua indústria [idem], ou
melhorar sua lavoura. (...) As artes não se melhoram; as máquinas, que
poupam braços, pela abundância extrema de escravos nas povoações
grandes, são desprezadas. Causa raiva, ou riso, ver vinte escravos
ocupados em transportar vinte sacos de açúcar, que podiam conduzir
uma ou duas carretas bem construídas com dois bois ou duas bestas
muares.6

Indústria aqui refere-se a uma cadeia produtiva de processamento da matéria e, por


isto, diz-se de um continuum que tem no trabalho o seu elemento constitutivo, que permite
dizer de uma “indústria colonial”, ou ainda, nos termos que coloca Frédéric Mauro (“Pode-se
falar de uma Indústria Brasileira na Época Colonial?”, 1983), uma “verdadeira indústria
colonial”. O que, ao mesmo tempo que reconhece traços nocionais que aproximam a noção
de indústria pré-moderna à moderna, apontam para uma diferença, evidenciada pela ênfase
que imprime com “verdadeira”, que, antes, na maneira com que é empregada, significa o seu
oposto. Ocorre que a racionalização das atividades empregadas nessa “verdadeira indústria”
pré-moderna permite a concentração de suas atividades no tempo e no espaço, o que nos
leva a – apesar da continuidade verificada – distinguir a indústria pré-moderna, a
“verdadeira indústria colonial”, da forma pós-colonial de indústria, a indústria moderna. Há
de se ressaltar que as duas concepções de indústria são polos distintos do mesmo continuum,
e que encontram entre si uma graduação evolutiva que significa o processo de modernização
da indústria brasileira (lato sansu), que vem a se concretizar completamente mais de um
século após a Independência.
Tal emprego do termo, em seu sentido amplo, aquele adotado para referir-se à
“indústria colonial”, aproxima-se, muito mais, do significado encerrado por Darcy Ribeiro
quando forja a o termo moinhos de gastar gente. Darcy, colocando deste modo, refere-se à
mesma indústria referida por José Bonifácio. Isto porque tanto um quanto outro referem-se à
noção de coordenação. Uma máquina é um corpo que funciona com uma dinâmica
coordenada de suas partes. Um moinho é uma espécie de máquina. Assim como o conceito
de indústria homogeneíza uma série de atividades coordenadas. O que fica claro no paralelo

6M. DOLNIKOFF (org.), Projetos para o Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva, São Paulo, Cia. das
Letras, 1998.
7
entre as noções “gastar” e de estagnação do censo escravo, aquele colocado por Darcy e este
por José Bonifácio, é a impertinência da aplicação do termo indústria para referir-se à
realidade colonial brasileira, pois a ideia de coordenação de atividades humanas é apenas
comparável metaforicamente com a coordenação que há no funcionamento de uma máquina.

2. Darcy Ribeiro, José Bonifácio e a figura do pensador participante

O emprego da expressão moinhos de gastar gente tem um fundo cognitivo, por um


lado, vez que reflete na linguagem uma diferenciação que pode ser considerada importante:
a atividade econômica nos períodos colonial e imperial, pré-industrial, mesmo que à época
se adotasse o termo indústria, da atividade econômica e seus modos de organização no
século XX brasileiro. E, assim, carrega a noção de coordenação de uma conotação impessoal
ao aproximar a cadeia de atividades humanas do funcionamento de um objeto, sem vida.
José Bonifácio, por outro lado, era um homem de uma elite restrita que viva em um
momento de planejamento da nação. A Independência acabava de ser proclamada e José
Bonifácio tinha planos para a formação do Novo País, assim, o emprego do termo indústria
em seu texto demonstra intenção e esforço de imprimir na realidade colonial, um significado
nacional, que então nascia na ideia de um país “industrializado”, tomando como referência o
conhecimento que tinha da experiência europeia. Em discursar com o termo indústria, José
Bonifácio inclinava o país a uma “modernização”, uma vez que introduzia nas práticas que
pela inteligência europeia de sua época eram tidas como pré-modernas formas conceituais
“modernas”, em um esforço de educação da elite à que se dirigia em seu discurso na
Assembleia Constituinte.
Criava-se, assim uma tensão entre a realidade referida, a brasileira, e as formas
conceituais adotadas para a ela referir-se, transmitindo, assim, à inteligência brasileira, o
sentido da transformação social necessária para a inserção do País no mundo como nação
independente: a redução da ampla cadeia produtiva, esparsa no espaço e no tempo – com
imagem real dos vinte escravos que carregam as vinte sacas de açúcar – a produtos culturais
já elaborados n’outras terras, de modo a garantir um melhor aproveitamento da energia e da
força de trabalho disponíveis, então, à nação que urgia emergente. Vinculava-se, então,
idealmente, a realidade brasileira à realidade europeia7.

7 Cf. C. PRADO JR, Formação do Brasil Contemporâneo: o sentido da colonização, São Paulo,
Brasiliense, 1942: O sentido da colonização7 colocado por Caio Prado Jr. faz-se em certa medida de
8
Neste sentido o pensamento de um e de outro aproximam-se: são ambos pensadores
participantes, vinculados a um projeto nacional, eles mesmos o são. O processo de auto-
entendimento nacional em ambos os casos está vinculado ao projeto nacional que se
pretende e, principalmente, à plateia à qual cada um dos dois refere-se. José Bonifácio
escrevia no início do XIX século. Darcy Ribeiro em meados do XX. São muito diversos quanto
à classe, a profissão, à realidade social na que vivem. O primeiro pensa em uma sociedade
imperial recém formada. O segundo, em uma República que superava, então, um regime
autoritário, uma recém instaurada democracia. São completamente distintos. O que se
pretende, no entanto, com esta breve comparação, é a indução de uma práxis típica: o
exercício intelectual como inserido na dinâmica social à que se refere. É um ponto de vista
interno e participante, o que ambos adotam. É nisto que nos baseamos para entender ambos
como intelectuais participantes. É obvio que todo intelectual é parte da sociedade em que
vive, sendo, assim, internos a ela. Mas não é a isto que nos referimos quando dizemos
participante. O que se pretende dizer é que não há, no estilo de escrita de ambos, o rigor
formal exigido pela prática científica moderna, mas o estilo adotado pretende que os escritos
insiram-se e guardem-se não nos arquivos frios da Academia, mas que ressoem na viva alma
da sociedade.
As personagens históricas escolhidas são mera conveniência de nosso objeto: falamos
aqui do Brasil e da noção de indústria nele usada em épocas diferentes, e nos valemos disto

com tom nesta altura do trabalho. Ao mesmo tempo que endossa, quando diz do alto desperdício de
capital típico do sistema colonial brasileiro, escravista, o que é evidenciado por Bonifácio (quando
diz que “a introdução de novos africanos no Brasil não aumenta a nossa população”, aspecto
coincidente já mencionado entre este e D. Ribeiro, que refere-se à atividade colonial como moinhos de
gastar gente), pode servir de motivação para a divergência de significados entre os empregos do
termo indústria. Isto porque Caio Prado afirma que para uma boa compreensão da economia colonial
brasileira, deve-se inserir o Brasil no sistema-mundo, buscando neste todo que o abrange, a sua
função. Evidencia-se que do conflito entre a dinâmica interna e a externa, a externa exerce influência
predominante nas formas econômico-sociais da colônia, sendo, a dinâmica interna, incapaz de
determinar as formas de sua atividade. José Bonifácio, localizado no limite entre o Brasil colônia e o
Brasil império independente, leva em conta a consolidação de uma dinâmica interna de modo a fazer
frente aos fluxos que sobre ele (o Brasil) incidiam, fazendo da principal atividade econômica a de
exportação de matéria-prima (agricultura e mineração). Não se deve incorrer no erro de interpretar
a leitura de Caio Prado como apontando para uma completa inércia interior, totalmente ditada pelos
fluxos externos do Capital, uma vez que aponta para a existência incipiente de um dinâmica interna,
que com o tempo se esforça para consolidar seu espaço no referido sistema-mundo.
9
para extrair uma conclusão com alto potencial de fertilidade: houve ao longo do tempo no
Brasil personagens que, assim como na história do mundo, pensaram e legaram suas
reflexões como que participantes dos processos nos quais estavam inseridos. Assim, Darcy
Ribeiro, tal como José Bonifácio, deve ser lido como intelectual participante. O potencial de
fertilidade desta chave de leitura é o de superar o estilo retórico numerosamente usado para
desqualificar o trabalho do autor, reduzindo-se sua importância intelectual, quando o que
em verdade temos é um tipo de escrita específica, que se comunica com as almas vivas e que,
muito mais do que um rigor descritivo, visa na descrição do país projetar um futuro. E isto é
claramente explicitado pelo próprio autor em diversas passagens de seu texto.
Por exemplo, no prefácio à quarta edição venezuelana d’ O Processo Civilizatório,
Darcy evidencia suas intenções discursivas de reconstrução de uma narrativa histórica:

Os clássicos (...) nos provém no máximo de orientações, diretrizes, a


partir das quais temos é de abrir os olhos para olhar e ver e rever a
experiência vivida dos povos, como única fonte de saber referente à
sua vida e ao seu destino. Nosso papel é, pois, o de nos fazermos
herdeiros do discurso da ciência, apenas para refazê-lo com base na
exploração exaustiva do valor explicativo tanto dos contextos sociais
concretos que observamos, como das circunstâncias de lugar e
posição, desde as quais vemos a eles e aos seus contornos. Para fazê-lo
com a ousadia de Marx, porém, é indispensável observar, comparar e
interpretar de olhos postos no trânsito entre o que foi e o que pode
ser, e com a predisposição de conhecer para intervir e influir, no
sentido de que venham a se concretizar na história, amanhã, as
possibilidades mais generosas dela.8

Assim como já dito, as personagens comparadas são mero acaso da conveniência. Mas
seu tipo, aquele que aqui pretende ter a forma extraída, não é exclusividade da história do
País. Serão aqui brevemente trazidos dois outros exemplos que, em maior ou menos grau,
poderão ser aproximados dos exemplos já citados. O primeiro deles é Cícero, uma grande
personagem do universo romano, um senador. Chegou a ser cônsul da República Romana e é
tido como um dos principais introdutores da filosofia grega no mundo latino. Um
representante, portanto, do berço ocidental greco-romano. É possível lê-lo como filósofo,
mas para os fins desta comparação, afirma-se que é tomando-o como partícipe da do
processo de formação da cultura romana9 que se poderá ter uma leitura mais aprofundada e
compreensiva de sua produção. Os escritos de Cícero têm sua dimensão atemporal, mas

8 D. RIBEIRO, O Processo Civilizatório, 6a edição, Petrópolis, Editora Vozes, 1981.


9Cf. N. D. FUSTEL DE COULANGE, A Cidade Antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da
Grécia e Roma, São Paulo, Hemus, 1975.
10
introduzi-los em seu contexto de elaboração deve permitir uma compreensão mais sutil e
fértil. É esta dimensão localizada, da experiência pessoal do indivíduo na história que une os
autores aqui colocados. Toda a cultura é, do suporte secular no qual se insere, reagentes e
produtos, em uma livre analogia ao universo teórico da Química.
A outra personagem é Marx. Este é tido como insuperável nos estudos da história da
Economia Política. Não é possível entende-la sem passar por Marx. Isto porque sua
contribuição metodológica alavancou a economia ao status de Ciência Moderna pelo grau de
objetividade que conseguiu encerrar em seu pensamento, e gerar pela sua incidência e
recepção. No entanto é, ao mesmo tempo, escritor participante. Não por toda a sua obra, que
é denso conteúdo e alta erudição, mas sim por partes dela. O Manifesto do Partido Comunista
é lido majoritariamente como uma obra política, e não mera produção acadêmica ou
científica. Sua recepção pela sociedade teve influências históricas graves, de modo a poder-
se afirmar ser impossível compreender a história dos dois últimos séculos em sua
completude sem passar pela obra. Por obra política refere-se aqui a uma obra participante
de um processo histórico, não apenas indiretamente como produto inevitável de seu tempo,
mas como conteúdo intelectual que exerceu, também, força sobre a realidade social,
compondo parte do mover-se interno que caracteriza a evolução da cultura no tempo, aquilo
que imprimimos sob o nome de História.
Darcy Ribeiro tem também seu lugar na história. Lugar o qual aproximava-se muito
do núcleo do fenômeno do poder no Brasil. E, assim como os demais autores, seu
pensamento é parte obrigatória do processo no qual está inserido. A elaboração d’ O povo
brasileiro insere-se na história do Brasil como resgate da categoria, abstrata e geral, povo.
Darcy Ribeiro escreve-o, em linhas gerais, para responder a seguinte pergunta: o que é o
povo brasileiro? Ou ainda, quem é o povo brasileiro? E desta indagação faz renascer o
elemento humano da unidade nacional. Busca incluir em uma obra o amálgama que faz da
população inserida no território do Brasil ser o povo brasileiro. É uma construção conhecida
no processo de formação dos Estados nacionais. Eis que houve o entendimento de que
haveria de se afirmar a nacionalidade da população brasileira em fins do século XX. E é com a
publicação da obra de Darcy que a noção de povo ressurge no discurso político do Brasil10.

10 Há também a ocorrência do termo povo em falas de intelectuais como as do cineasta Glauber


Rocha, amigo pessoal de D. Ribeiro e conhecedor de seus trabalhos, dividiam, portanto, uma
linguagem comum. Está disponível ao fim do texto um link para acesso de material audiovisual que
sustenta e expõe o que aqui se afirma. O que se pretende dar relevo quando se diz que Darcy
reintroduz o termo nos debates politicos do Brasil, não é a uma fantasiosa genialidade pessoal do
intelectual (sem, no entanto, reduzir o seu mérito), mas de sua atividade enquanto partícipe dos
processos sociais que o rodeiam e, portanto, como canal, na acepção que Eco adota, op. cit. (p. 4), de
comunicação interna do corpo social.
11
Dos materiais encontrados dos discursos da personagem política, então ascendente, Lula, é
apenas após 1995 que emite-se o termo povo como sujeito político de direitos. Alguns links
serão anexados ao final do trabalho para que a pesquisa de verificação do que se afirma fique
facilitada. Em discursos nos fins dos anos 70 e nos anos 80, as categorias que são
empenhadas pelo então líder sindical é classe operária, trabalhador(es) e classe
trabalhadora. Fala-se, também, em coesão, em sindicato. E, ainda, os termos a gente e
companheiros localizados no campo nocional nós. É apenas em entrevista que concede no
Programa Livre SBT ao apresentador de auditório conhecido por Serginho Groisman que se
nota pela primeira vez a ocorrência do termo povo em seus discursos. É possível que haja,
antes, o emprego do termo, mas este é o ano do material mais antigo encontrado em que há
ocorrência de povo como categoria política de discurso.
Este é apenas um exemplo do caráter participativo do pensamento de Darcy Ribeiro.
Não pensemos que é mero acaso ou ocorrência casuística a sua inserção no caldo social e sua
atitude participativa. Não se pode medir os limites ou o grau de consciência de um autor com
precisão exata, mas é evidente em seus textos que seu exercício e postura como intelectual
participante é fruto de decisão consciente e de esforço no exercício reflexivo, como fica
evidente no excerto citado e no seguinte, no qual afirma que, além de uma “teoria de base
empírica das classes sociais, tais como elas se apresentavam no nosso mundo brasileiro e
latino-americano”, a nós “faltava, por igual, uma tipologia das formas de exercício do poder e
de militância política, seja conservadora, seja reordenadora ou insurgente. Toda politicologia
copiosíssima de que se dispõe é feita de análises irrelevantes ou de especulações filosofantes
que nos deixam mais perplexos do que explicados.”
A afirmação da proximidade da postura intelectual de Darcy Ribeiro à de José
Bonifácio, Karl Marx e Cícero não é, tampouco, por acaso. Há razões nos trabalhos do
antropólogo – e não apenas antropólogo como pensador político, por exemplo – brasileiro
que nos permite entendê-lo desta maneira. O próprio autor afirma, ainda no prefácio à
quarta edição venezuelana d’ O Processo Civilizatório, concluindo que “o herdeiro de Marx
sou eu”, após fazer uma crítica à escolha dos critérios sobre os quais se baseia o filósofo
alemão para a enformação da história. Estes são a luta de classes como motor da história e a
evolução os modos de produção como definidores dos marcos da evolução social. Darcy
propõe em seu livro uma divisão da História baseada no desenvolvimento da tecnologia
como critério básico de construção do esquema de evolução sócio-cultural. A razão que o
leva a colocar sua elaboração intelectual em uma linha sucessória que encontra antecedência
em Marx, é, no fundo, sua postura participativa, como já ficou claro nos trechos supracitados

12
(quando afirma que seu trabalho visa corrigir uma imprecisão fundada na falta da empiria
para a elaboração da teoria das classes sociais).
Sua proximidade com Bonifácio se dá fundamentalmente, assim como a com os
demais, pela postura participativa, mas há um outro aspecto que os aproxima: o
reconhecimento da necessidade de consideração da formação de um povo para que possa
haver êxito, a nação brasileira. José Bonifácio menciona a noção contida no termo povo ainda
no discurso que profere na Assembleia Constituinte, embutindo, em um contexto de recém
proclamação da Independência Brasileira, a noção de autonomia nacional, uma vez que se
refere aos demais povos como unidades independentes e insere a autorreferência nacional
neste campo de reflexão. A preocupação de Bonifácio em extinguir a escravidão era
exatamente no sentido de formar uma nacionalidade. Ele leva em consideração, e explicita-a,
a interioridade do País, o que, neste campo nocional, remete diretamente à nacionalidade,
quando refere-se à “sábia política de não ter inimigos caseiros”.
Finalmente, Darcy aproxima-se de Cícero em um ponto particular, para além de sua
dupla ocupação oficiosa, a tradição do pensamento cristão português que chega ao Brasil
logo no início da colonização portuguesa com Padre Antonio Vieira. com escritos de Padre
Antônio Vieira, História do Futuro, onde projeta nas novas terras portuguesas um Quinto
Império do Mundo, remetendo-se à profecia bíblica da estátua de Nabucodonosor. Fernando
Pessoa retoma esta construção no início do século XX e Darcy assimila-a em seu pensamento
afirmando o Brasil como uma Quarta Roma. Cada um deles constrói uma linha sucessória.
Antônio Vieira coloca os Assírios sucedidos pelos Persas, pelos Gregos e pelos Romanos,
sucessivamente. O quinto deles seria o Império Português. Fernando Pessoa constrói a linha
sucessória com origem no Mundo Grego, sucedido pelo Império Romano, pelo Cristianismo e
pela Europa. O seguinte seria o Português. O que há afirmado no pensamento de Darcy
Ribeiro é o Brasil como uma Quarta Roma, tendo sido, a primeira, a própria, o Império
Romano; a segunda, Constantinopla, o Império Romano do Oriente; a terceira, Moscou, da
Rússia; e a quinta, o Brasil.
O que tem-se tentado mostrar no curso das últimas linhas é que há um gênero de
intelectuais, de pensadores, inseridos e movidos pelo espírito de seu tempo, pelas paixões e
possibilidades presentes. E quem fundados nelas, forjam sua visão de mundo, criando um
léxico próprio que, ao mesmo tempo que dialoga com o léxico comum de seu tempo, procura
transcendê-lo – no sentido fraco da palavra – colocando-se, então, como parte de um
continuum evolutivo.
A questão que se colocará em resposta é a seguinte: não são todos os intelectuais, os
pensadores e, num limite, todas as pessoas, participantes do “espírito de seu tempo”? Será
13
lógico pensar deste modo. A conclusão é óbvia. E nos parece correta. Mas não é
contradizendo-a que se busca dar forma a este gênero de intelectuais. A diferença que se
pretende colocar está no exercício consciente e no esforço de racionalizar, e, assim, tornar
inteligível, a sua própria condição. Este gênero de intelectuais são aqueles que procuram ser
expressão da tensão entre passado e futuro. O presente como eixo de confronto entre tudo o
que foi e tudo o que pode ser. Da evolução do passado, extrai-se uma direção, um sentido.
Diante do futuro, a liberdade ampla de possibilidades: da ruína à edificação, do
esquecimento à memória. O presente é então o ponto de amálgama resultante da tensão de
toda a experiência pregressa com aquilo que ainda não foi experimentado. O gênero de
pensadores que se pretende dar forma aqui é aquele que, em parte, exprime esta tensão,
uma vez que se preenche deste espírito para trabalhar, e, em parte, porque se faz parte
obrigatória e não mero contemplador. Participa como agente social de transformação e
preservação da cultura. São intelectuais que fazem de seu próprio viver, do exercício
minucioso de seu pensamento e de suas atitudes, a obra de sua vida. Conhecem o passado e,
por isto, opinam quanto ao futuro: rompem, assim, através do exercício presente de si, o véu
do desconhecido, dos tempos que hão de vir. Nas já mencionadas palavras de D. Ribeiro: “é
indispensável observar, comparar e interpretar de olhos postos no trânsito entre o que foi e
o que pode ser, e com a predisposição de conhecer para intervir e influir, no sentido de que
venham a se concretizar na história, amanhã, as possibilidades mais generosas dela.”

3. Indústria: as diferentes acepções do termo

Como já exposto no final da primeira parte e no início da segunda, o termo indústria


na história do Brasil assume significados diversos ao longo do tempo. Entendemos que há,
então uma dupla motivação: por um lado o contexto histórico em que se inserem sendo
distintos, muito provavelmente o conteúdo semântico será igualmente distinto; por outro
lado, a escolha pessoal de quem o aplica. É claro que são razões complementares, mas valerá
a distinção. Exemplificando o primeiro motivo, imaginemos um português no século XV que,
ao referir-se a uma cadeira pensa em um objeto de madeira, sobre o qual pode repousar a
massa de seu corpo de modo a descansar suas pernas sem, no entanto, precisar se deitar. Um
brasileiro no século XXI irá se referir à mesma função valendo-se do nome cadeira, porque,
de maneira genérica, refere-se a um mesmo objeto. Mas o valor semântico difere caso-a-caso,
pois no segundo, possivelmente a cadeira será de um material sintético ou metálico, estofada

14
segundo os novos preceitos das modernas concepções estéticas do design que conotarão
toda uma outra gama de significados, mesmo que muito sutilmente diferenciados.
O mesmo ocorrerá com o termo indústria. José Bonifácio, quando emprega indústria o
emprega em referência à cadeia produtiva existente na colônia, como já vimos. Darcy
Ribeiro, por sua vez, emprega-o referindo-se a uma realidade brasileira ainda desconhecida
do estadista português, e, para referir-se ao mesmo estado de coisas, emprega moinhos de
gastar gente. Foi dito, também, que quando José Bonifácio faz seu discurso à primeira
Assembleia Constituinte do Brasil, a Revolução Industrial já estava em curso na Europa,
continente muito bem conhecido por ele em seus tempos de estudante das ciências naturais
e humanas11 12. No decorrer do século XIX o emprego do termo indústria não refere-se
exatamente ao emprego atual do termo de um modo geral. Perdigão Malheiro, em seu ensaio
histórico-jurídico-social A Escravidão no Brasil13 (1866/67, especialmente o volume III,
1867) emprega o termo com dois significados distintos: como cadeia de atividades, ou seja,
um conjunto de atividades exercidas por um conjunto de pessoas que, em sua coordenação,
podem ser reconhecidas como partícipes de uma mesma grande atividade, abrangente das
atividades individualmente exercidas, tal como emprega José Bonifácio; e como a própria
atividade individualmente exercida, nuclearmente caracterizada como a própria
transformação da matéria. A primeira acepção fica evidente em “A paz tem trazido o
desenvolvimento da indústria e do comercio lícito.” E a segunda, tanto em “a expansão da
atividade humana exige imperiosamente, para o maior desenvolvimento da indústria e
portanto da produção e da riqueza, a liberdade no exercício dessa atividade”, onde percebe-
se que a noção remetida por indústria está embutida nas ideias de produção e riqueza, o que
a aproxima da ideia de um atividade isolada; quanto, e aqui mais evidente ainda do que no
primeiro excerto, em “O seu bem-estar material depende então da sua liberdade de
contratar, e de exercer a sua indústria, a sua atividade”, onde indústria é explicitamente
empregado como sinônimo de atividade [individual]. Assim, fica evidente que o emprego do
termo extrapola a escolha pessoal discursiva, sendo, assim, mesmo que com um intervalo de
aproximadamente 50 anos entre os excertos coletados de José Bonifácio e de Perdigão
Malheiros, um valor semântico do léxico vigente nos meios sociais nos quais estão inseridos
os falantes.

11 P. P. da S. COSTA, José Bonifácio. (Col. A vida dos grandes brasileiros, vol. 2). São Paulo, Editora
Três, 1974.
12 A. SOUSA, Os Andradas (3 vols.). São Paulo, Typographia Piratininga, 1922.
13 A. M. PERDIGÃO MALHEIRO, A Escravidão no Brasil, Rio de Janeiro, 1867.

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José Bonifácio, sobre o mesmo núcleo nocional de transformação material, emprega
indústria como uma coordenação de atividades, uma cadeia produtiva. Quando emprega
indústria este, mais do que Perdigão Malheiro, tem a ideia de uma indústria moderna
(mesmo que o texto daquele anteceda o deste em 50 anos, o que deve ocorrer pela natureza
do texto: enquanto este escreve um ensaio, uma reflexão pessoal de um assunto nacional,
aquele está-se dirigindo à elite política nacional, ou seja, este, por mais que componha o
pensamento de sua época e que tenha ocupado cargos de poder, não seria cá classificado
como pensador participante, uma vez que seu texto procura ser, antes, um espelho, em uma
atividade reflexiva, do que um orientador ele mesmo; em outras palavras, o discurso de
Bonifácio exige mais concisão retórica, sintética, ao passo que o de Perdigão Malheiros
assume uma retórica analítica), o que se evidencia quando diz que “a introdução de novos
africanos no Brasil não aumenta a nossa população, e só serve de obstar [destaque nosso] a
nossa indústria”. Ora, quem diz para um grupo de legisladores constituintes que algo “só
serve de obstar a nossa indústria” deixa implícito em seu discurso um parâmetro de
comparação, que nesse caso só poderá ser a indústria, incipiente, mas já existente, em
Europa. Mesmo assim, ambos os empregos – o de José Bonifácio e o de Perdigão Malheiros –
estão muito mais próximos entre si, do que ambos estão do de Darcy Ribeiro.

4. Conclusão

Assume-se aqui como um princípio de uma boa comunicação científica, a


homogeneidade e a regularidade dos termos empregados. A conservação da língua se faz,
assim, um valor da academia. Mesmo reconhecendo a duplicidade da abordagem da língua
como objeto de estudo – a sincrônica, que enfoca o caráter estático da língua, e a diacrônica,
que enfoca a evolução da língua no tempo – tem-se que o léxico acadêmico, imbuído do valor
da precisão como essencial da linguagem científica acadêmica, é, via de regra, conservador.
Mesmo que haja uma transformação do léxico acadêmico em curso – o que deve ser
de certa forma constante para renovação do pensamento – esta deve ser operada com uma
dupla atenção: com olhos igualmente voltados ao léxico anterior e ao novo léxico que se
forma. Assim, entende-se que colocar em discussão a linguagem utilizada traz ganhos para o
exercício intelectual reflexivo e para a vida acadêmica mesma. Uma vez sendo um elemento
obrigatório, o linguístico, torna-lo evidente – e, portanto, consciente – aos que o exercem,
cultivando-se o hábito de investir esforços na precisão vocabular, deverá representar ganhos
para a academia e para aqueles que a compõem. Procuro expor o que se está aqui expondo
16
sem grandes pretensões, pois são questões, para alguns mais e para outros menos, obvias; e
com toda a modéstia que me cabe, porque vejo, nestas considerações finais, alguma
serventia e valor.
A conclusão à que se chega é que, em benefício da clareza na comunicação acadêmica
sejam entendidas como palavras distintas àquelas empregadas pelos juristas brasileiro ao
longo do século XIX e àquela empregada pela inteligência brasileira do século XX. E, assim,
sugere-se que haja, quando do emprego da antiga palavra indústria destaque-se sua
ocorrência e evidencie-se seu significado em nota de rodapé ou referindo-se à amplitude de
seu significado (latu senso), por exemplos. Ao invés, a moderna palavra indústria poderá ser
empregada indistintamente como parte natural do léxico corrente.
Ter a transformação semântica do termo indústria, tal como cá exposta, bem
enformada é, simultaneamente, ter compreendido uma nota distintiva da modernidade14. As
duas diferentes acepções apresentadas são, num limite, uma a espécie da outra. A indústria
pré-moderna15 é, assim, gênero, do qual a indústria [moderna] é espécie, uma vez que esta
não deixa de ter seu significado abrangido pela definição daquela. A indústria não deixa de
ser arte, engenho, atividade, “operações destinadas para transformar as matérias-primas em
produtos adequados ao consumo e a promoção das riquezas”16, mas tampouco deixa de se

14 Cabe a ênfase ao emprego do termo modernidade, tal como do moderna, que não foram discutidos
no presente trabalho. É todo um campo de discussão com vasta literatura historiográfica. Vale
apontar para a dificuldade da aplicação do termo no caso do Brasil, porque ao mesmo tempo que, na
divisão majoritária, que coloca a expansão maritime como fenômeno que divide as Idades Média da
Moderna, ou mesmo aquela, defendida por Jaques Le Goff, que põe termo ao Medievo no marco da
Revolução Francesa, o critério usado para a transição de um estado de coisas para outro tem
fundamento em uma longa tradição historiográfica que busca procura replicar formas de
importância para a evolução histórica daquele cosmo social específico. O fenômeno colonial é, em um
certo sentido, como já há quem coloque de tal maneira na Academia paulista, um fenômeno moderno.
O sentido de modernidade (e seus semelhantes) aqui diz respeito a uma ordem socio-econômica
interna e formas infraestruturais de organização da produção que tem como parâmetro a história e
as formas européias e sem levar em conta – o que é crítica crucial – as relações externas entre, por
exemplo, os continentes sulamericano, o norteamericano, o europeu, o asiático e o africano, para não
mencionar outras relações internacionais que seriam igualmente pertinentes. Por mais que haja as
críticas ao eurocentrismo, e que desenvolva-se a discussão brevíssimamente cá exposta, baseia-se na
ancestralidade européia da cultura predominante no que se pode chamar civilização brasileira.
15 Outro termo possível é indústria antiga, e poder-se-á pensar em diversas outras formar de referir-

se a ela. Considera-se, no entanto, que chama-la indústria colonial tem risco eminente de incorrer-se
em ruído, uma vez que o leitor poderá depreender que trata-se meramente da indústria, tal como a
conhecemos hoje, mas localizada em período colonial. O termo indústria pré-moderna foi o escolhido
para se referir ao significado amplo do termo em consonância com o que é posto no trabalho:
conhecer as diferenças de significado entre os termos indústria em seu sentido amplo e indústria em
seu sentido estrito é conhecer um traço distintivo da modernidade. Dando-se ênfase às formas
infraestruturais que a indústria moderna assume, se estabelece a modernidade como parâmetro, e
distingue-se, assim, a indústria pré-moderna (lato sensu) da indústria [moderna] (stricto sensu).
16 Op. cit. (p. 3).

17
resumir a isto. É uma nova forma de indústria, fenômeno, este, que tem, nos efeitos da
Revolução Industrial, sua primeira expressão na História.

Vídeos
G. Rocha, Terra em Transe: https://www.youtube.com/watch?v=S8l1lzr5mYE - (7:55 – 8:30)
D. Ribeiro, discurso: https://www.youtube.com/watch?v=aKjAovc7YC4 - (2:00 – 3:42)
Lula (1979): https://www.youtube.com/watch?v=k3MBXg3H-Sk
Lula (anos 80): https://www.youtube.com/watch?v=4jHJTVnFa8c
Lula (1996): https://www.youtube.com/watch?v=AfYlTtH8t3Q

Bibliografia
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Paulo, Cia das Letras, 1998;
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instituições da Grécia e Roma, São Paulo, Hemus, 1975;
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HAVELOCK, Eric A., Preface to Plato, Cambrige, Harvard University Press, 1963;
JAEGER, Werner, O pensamento filosófico e a descoberta do cosmos, Paideia, 6a Edição, São
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JUSTINIANUS, Flavius Petrius Sabbatius, Institutas do Imperador Justiniano, Bauru, EDIPRO,
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RIBEIRO, Darcy, O povo brasileiro, São Paulo, Cia das Letras, 2006;
RIBEIRO, Darcy, O Processo Civilizatório, 6a edição, Petrópolis, Vozes, 1981.

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