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[IsSTp r e ito r
v— \
UNIVER SID ADE DE SÃO PAULO
Jacques M arcovitch
Adolfo José M elphi
vic e -re ito r
INSTITUTO DE ESTUDOS BR AS ILE IR OS
M uriIlo M arx
d ire to r
Yêdda Dias Lima
vice-diretora
Av. Prof. M ello M oraes, Trav. 8, n. 140
Cidade Universitária "Armando de Salles Oliveira”
05508-900 - São Paulo, SP - Brasil
Telefones: (01 1) 818.3227 - 818 3199
e mail - difu sã o@ieb.usp br
volume 1
Alcir Pécora
João Adolfo Hansen
Paul o Ca s t a g n a
Sé r g i o A l c i d e s
coordenação
J o a c i Per ei r a Fur t ado
c a d e r n o s do i eb
cursos & conferências
C a de r n os do IEB
editora
J o a c i P ereira Furtado
M a r i a C e c í l i a F e r r a z de C a s t r o C a r d o s o
comissão e d ito r i a l
Mayra Laudanna
Antf i ni o Vi ei ra
1999
Sumário
sobre os autores 97
Apresentação
9
Argumentos afetivos
nos sermões fúnebres
do Padre António Vieira
A lc ir P é cora
U N IC A M P
11
cadernos do ieb
1Idem. p. 394.
4As metáforas cultas trazem à lem brança a matriz gongórica da tópica da cad ucidad e da rosa, pre
sente, por exemplo, neste conh ecido poema, que G racián dá c o m o m odelo de d e se m p e n h o do
c o n c e p to a gud o, em sua Agudeza y Arte de Ingenio: “Ayer naciste, y morirás m a n a n a;/p ara tán
breve ser, ?quién te dio vida?/para vivir tan poco, estás lucida,/y para nada ser, estás lozana.//Si tu
herm o sura te e ngano más vana, /bien presto la verás d e svan ecida,/p orq ue en esa h e rm o su ra está
escondid a/la ocasión de m orir m uerte t e m p r a n a . // Q u a n d o te co rte la robusta m an o ,/le y de la agri
cultura perm itid a,/gro sero aliento acabará tu su e rte ./N o salgas, que te aguarda algún tirano, dilata
tu nacer para tu v id a,/que anticipas tu ser para tu m u e rt e ”
5Figuras referidas à p. 395, do sermão e edição antes referidos.
6Idem. p. 396.
Idem. p. 397.
*Idem, ibidem.
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A ntónio Vieira - o im perador do púlpito
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que, com o diz, “o m orrer não foi perder, foi m elhorar a form o
sura 11 A ssociando o a rg u m e n to às tópicas seiscentistas do
d esengano e da vanitas, de m odo algum exclusivas da oratória
sacra, V ieira propõe ainda que, não fora a troca vantajosa da
beleza corporal pela espiritual, a m orte prem atura teve adem ais a
vantagem de livrar a jovem Ataíde da inexorável ruína da beleza
ao longo dos anos: “O s prim eiros tiranos da form osura são os
anos, e a sua prim eira m orte é o tem po” 12
Por fim , a “D iscrição” tam bém não teria razão de queixa,
pois a maior, ou “verdadeira”, com o afirm a, “não consiste em
saber dizer, consiste em saber m orrer” 13 Só à m orte se conhece
de fato o discreto, pois apenas nas eleições definitivas observa-se
o acertado ou o erróneo delas. Eis com o o diz:
" I d e m . p. 404.
l2Idem. p. 405-
"I d e m . p. 406.
"I d e m . p. 407.
" I d e m , ibidem.
14
António Vieira o im perador do púlpito
l6Idem , ibidem.
l7Idem. p. 408.
' “C onstituc io nes.In: O bra s C om pletas, de Santo Inácio de Loyola. M adrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1982. Citação à p. 562.
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2,Cf. m eu estudo introdutório à A rte de M orrer de A ntónio Vieira. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
2,íSermão nas Exéquias do Sereníssimo Infante de Portugal, Dom Duarte, de dolorosa m em ória (1 649).
O p . cit. v. 5, t. 15. Citação à p. 2 19.
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António Vieira o im perador do púlpito
adm itir que o príncipe ou grande que m orre age agora com m uito
m aior eficácia, jun to a Deus, em benefício dos vivos e do corpo
místico do Reino. Assim, em relação à m orte de D . D uarte, Vieira
obriga a concluir que, com o diz,
[...] nessa mesma perda temos igual razão de nos consolar; por
que se foi grande para o sentimento, foi necessária para o remé
dio: perdendo a sua assistência, ganhamos o seu patrocínio. Em
Milão, como estava ausente e preso, não nos podia acudir; no
Céu, como está livre e poderoso, pode-nos patrocinar.33
23
cadernos do ieb
,sIdem , ibidem.
“ Idem. p. 278-9.
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Vieira e a agudeza
J o ã o A d o lfo H a n se n
U SP
N
as cortes europeias do século X V II, um labirinto figurado
em um a grande mesa redonda representava o giro da Terra
e, nele, um pequeno cam inho serpenteante conduzia ao cen
tro, o Inferno, havendo na extrem idade um a Porta, que era o
alvo a ser atingido. N o cam inho, encontravam -se assinalados os
principais lugares-com uns aplicados p or A riosto em O rla n d o
Furioso: a Selva de Angélica fugitiva; a fatídica G ruta de M erlim ;
o Castelo de Atlas, cárcere de heróis; a E rm ida de D alin d a p e n i
tente; a Ponte defendida pela giganta Erifila; o delicioso Jardim
de Alcina... Em cada lugar, vinha escrito um verso do poeta, com o
m ote indicando o que fazer para quem aí caía.
E m torno da mesa, sentam -se alternadam ente cavalheiros e
dam as, representando os principais personagens do poem a: aqui
Angélica, ali B radam ante, lá O rlan d o , acolá Ruggiero, que su
cessivamente jogam o dado; conform e o núm ero, o jogador c o n
tinua no cam inho, m arcando os lugares com pequenos sim ula
cros do personagem representado; nos lugares principais, segun
do o tem a e o verso de A riosto, fica-se preso ou se avança, recebe-
se trib u to , sofre-se de amor, com põe-se um verso, espera-se a
vez, faz-se penitência, desengana-se, contem pla-se etc. Q u e m cai
no centro, o Inferno, não pode sair e perde o jogo, segundo o
verso “C he n elf Inferno è nulla redentione” Vence-o quem a tin
ge a Porta por prim eiro, tam bém conform e o verso do últim o
canto, “V enuto al fin di cosi lunga via”
A agudeza do jogo, ch am ad o L a b irin to de A riosto, c o n
sistia em ser cada jo g ad o r um sím bolo h eró ico e to d o lance de
dados um acaso da F o rtu n a ; cada acid en te de percurso era
u m a alegoria, grave ou ridícula, com um verso com o m o te ; e
cada m o te fornecia ao en g en h o dos jogadores um a rg u m e n to
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***
V ieira e seu tem p o acreditavam que D eus goza com o Po
eta fab u lad o r de conceitos2 N o Portugal do século X V II, o d i
vino era a C ausa P rim eira da vária n atureza e da tu m u ltu ad a
h istó ria, p o r isso tu d o q u a n to havia de engenhoso no m undo
era tid o com o D eus ou de D eus. T ratando do estilo divino, o
p re c e p tista ita lia n o do c o n c e p tism o e n g en h o so , E m an u ele
T esauro, escreve que os preceitos necessários à salvação foram
ditad o s nas Escrituras em estilo chão e claro. D eus é para todos
e N ã o matarás soa universalm ente tan to à orelha rústica q u a n
to ao in telecto agudo. Este é o sentido literal. N a história sacra,
p o rém , o estilo divino tam bém p roduz a m aravilha e a venera
ção. Isso ocorre p o rq u e os enigm as da Bíblia p in ta m as coisas
sublim es em claro-escuro, com três m aneiras de Sím bolos Figu
rados, o u sen tid o tropológico, alegórico e anagógico. M etáfo
ras tro p o ló g ic a s e n sin a m v e rd a d e s m o ra is. P or ex em p lo ,
“Q u ic q u id obtuleris sacriFicii sale condies”3, onde D eus indica
que ain d a na liberalidade é necessária a prudência, figurada no
sal. M etáforas alegóricas representam m istérios da Fé relativos
a coisas terrenas. C om o esta: “E gredietur virga de radice lesse:
et fios de radice eius a s c e n d e t4. M etáforas anagógicas elevam
ao C éu as alm as, pois Figuram algum segredo das Coisas eter
nas. Por exem plo: “Beati qui lavant stolas suas in sanguine agni;
u t Fiat potestas eorum in ligno vitae 5
Cf. T E S A U R O , Emanuele. II Cannocchiale Aristotelico. 5. ed. Torino: Zavatta, 1670. p. 54-5.
2. Este fragm ento estiliza T E S A U R O , E. O p. cit. p. 60-2.
T udo q u a n to retirares do sacrifício c o n d im e n ta rás com sal.
Nascerá um a vara da raiz de Jessé; e a flor dessa vara florirá.
\ Beatos os q u e lavam suas túnicas no sangue do cordeiro; para que se faça o p oder deles no lenho
da vida.
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António Vieira - o im perador do púlpito
Para D eus, é sim bólico o m esm o m ote que foi literal para
Caifás: a blasfém ia é um oráculo e o sacerdote profetiza, quando
delira. N a “C arta A pologética” enviada da Bahia, em 30 de abril
de 1686, ao Pe.Iquazafigo, Vieira tam bém propõe que “Caifás
sacrílego” é profeta, explicando que a graça da verdadeira profe
cia — com o as outras, cham adas de gratis datas pelos teólogos —
não supõe necessariam ente santidade ou virtude. Ela pode m an i
festar-se tam bém em um sapateiro7 com o Bandarra.
D eus age agudam ente tam bém em ações físicas. Por exem
plo, C risto nasce em um presépio, entre jum entos m udos, q u a n
do o Planeta lum inoso, brilhando nos A ntípodas, abandona o
6. T E S A U R O , E. O p . cic. p. 62.
V IE IRA, Pe. A. “C arta Apologética” . In: D A Z E V E D O , João Lúcio de. Cartas do Padre A ntónio
Vieira. C o im b ra : Im p rensa da Universidade, 1928. t. 3, p. 755.
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u . Idem , ibidem . p. 17
'* H O B B E S , T h o m a s . Leviathan. L on don : E verym ans Library, 1973. C a p VIII.
31
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***
A consideração de um a atividade produtiva ou técnica —
com o poiesis, techné, ars, artificium — e de o u tra diretiva ou
prudencial — com o ética, etiq u eta, m oral, v irtu d e — deve ser
feita, no caso, para se especificar a particularidade da representa-
M G R A C I Á N , Baltasar. El Discreto. In: Obras de Baltasar Gracián. M adrid: Aguilar, 1960.
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***
N o sermão de Nossa Senhora do Ó , pregado na Bahia em
1640, Vieira cita o “E t concipies et paries” (“E conceberás e pari
rás”) do anúncio feito pelo Anjo a M aria. E diz “E ntre a conceição
e o parto não m eteu o Anjo mais que um et” O enunciado é
agudíssimo e brutal, devido à m aterialidade da conjunção et que,
substantivada, duplica ou visualiza o meteu da Potência erótica do
Verbo do Pai com u n icad a pelo A njo. A conjunção et é u m a
hipotipose, um a visualização especular, que então m aravilhava
com o síntese engenhosa e quase obscena da ortodoxia católica.
C om o diz Pallavicino, é a vista, não o intelecto, que tem
necessidade de beleza para sentir prazer. O que é penoso de se ver
e ouvir é gostoso de se saber, mais ainda quando é artificioso, pois
admira-se o engenho que o produz. Por exemplo, Pallavicino cita
o verso de Petrarca: “N è piu beve del fium e acqua, che sangue”
C ertam ente causaria horror ver um hom em beber a água de
um rio infecta de sangue; mas a novidade da form ulação do verso
agrada, porque a m aravilha dele dá sabor ao conceito15 O m esm o
ocorre com o ridículo, o “feio não doloroso” de Aristóteles, que é
conceito: um a observação maravilhosa recolhida em um dito bre
ve16, não im porta a baixeza da matéria. A desproporção é feia e má,
mas a proporção aplicada à produção do seu efeito m onstruoso é
racional. O et tam bém evidencia a racionalidade do artifício e dá
prazer aos que são aptos para entendê-lo com o agudeza.
P A L L A V IC IN O , Sforza. A rte dello Stile, ove nel cercarsi l ’I deal dello scrivere insegnativo. Bologna:
G. M o n ti, 1647. Cap. II.
If>. Idem, ibidem.
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Uma abordagem m usicológica
da produção literária de António Vieira
( 1608- 1697)
Paulo Castagna
U N E S P e Faculdade Santa M arcelina
Introdução
A
produção literária de A ntonio Vieira contem algum as infor
mações im portantes sobre a prática m usical no Brasil e em
Portugal. Tais referências são interessantes não apenas para a
com preensão do m ovim ento musical nesses dois países, mas tam
bém para a com preensão dos próprios escritos de Vieira. O s p rin
cipais textos nos quais o orador se refere à m úsica são quatro de
suas cartas—3 0 set. 1626, 2 2 mai. 1 6 5 3 , c.22 mar. 1 6 5 4 e lO jun.
1 6 5 8 —, o Sermão das exéquias D E I Rei D. João I V (1656?), a
Visita do P. António Vieira ao Colégio do Pará (1658) e a Relação
da Missão da Serra de Ibiapaba (1 6 5 9 ).1
1 C ita m o s apenas os textos nos quais e n c o n tr a m o s referências substanciais à prática musical. Textos
c o m o o Serm ão gratu lató rio e panegírico pre gado na m a n h ã de Dia de Reis (1 669 ), qu e utiliza as
palavras do h in o Te D e u m laud am us em discussões de interesse exclusivam ente religioso e literário,
não foram considerados neste trabalho.
2 VIE IRA, A n to n io . Serm ão das Exéquias d ’El-Rei D. João IV o anim oso, o invicto Pai da Patria, de
i m m ortal m em ória. I n : _______ . Sermões: revistos pelo Rev. Padre G onç alo Alves. Porto: Lello &C
Irmãos, 1951. v. 15, p. 3 0 7 -2 5 . Em nota à p. 307, G o n ç a lo Alves informa que este Serm ão foi
e n c o n tr a d o j u n to c om o utros papéis avulsos qu e apareceram após a m orte do ora dor e que foi
publicado pela prim eira vez por A n d ré de Barros (Vozes saudosas.... Lisboa, Miguel Rodrigues,
1736). Trechos desse serm ão tam b é m foram re produzido p o r Iza de Q u e iro z Santos em: Os grandes
vultos da polifonia vocal em Portugal nos séculos XVI e XVII: C o nferencia realizada pela ilustre
Professora Iza de Q u e iro z Santos no salão nobre do Liceu Literário Português, em a noite de 22 de
Agosto de 1940, com a colaboração de um côro c o n stitu íd o po r frades beneditinos e franciscanos e
um g ru p o de senhoras e professores, os quaes vocalisaram composições dos c o n tra p o n tis ta s das
escolas de Evora e Vila-Viçosa. Rio de Janeiro: Liceu Literário Português, s./d. p. 42-44.
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1 VIE IRA, A n to nio. Sermão das Exéquias d ’EI-Rei D. João IV... Op. cir. p. 317.
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10 VIEIRA, A ntónio. Cartas do Padre A n to n io Vieira coordenadas e anotadas por J. Lucio d Azevedo.
C oim bra : Im prensa da Universidade, 1925. v. I, carta 64, p. 3 1 7 -3 1 8 . Este trecho tam b é m foi
transcrito por José de Morais (História da C o m p a n h i a de Jesus na Província do M a r a n h ã o e Pará
[1759]. In: A L M E ID A , C â n d i d o M endes de. M e m ó ria s para a historia do extincto Estado do
M a r a n h ã o cujo territorio c o m p re en d e hoje as P r ovin da s do M a r a n h ã o , Piauhy, G rã o Pará e A m a z o
nas colligidas e annotadas p or [...]. Historia da C o m p an h ia de Jesus na extincta Prov inda do M aranhão
e Pará pelo Padre José de M oraes da m esm a C o m p a n h i a . Rio de Janeiro: Typ. do C o m m e r c io de
Brito e Braga, 1860. v. 2, . L. 3, Cap. 10, [§ 51], p. 28 4, que ta m b é m o resume desta maneira
(idem, p. 282): “Por tradição sabiamos, que o costum e de se rezar o Terço da Virgem S enh ora nas
nossas náos portuguezas fôra in tro d u z id o pelo Padre Vieira, nas m uitas vezes que a n d o u e m b a rc a
do, e po rqu e as vivas e efficazes razões com que se movia os h o m e n s do m ar lhes ficárão impressas
no coração, de h u m as para outras náos se foi c o m m u n i c a n d o esta suavissima pensão; po rq u e hu ns
aos outros sabião pro m o v er a devoção e cordial affecto á M ãi de D e o s.” Sobre a m esm a passagem,
A nd ré de Barros (Vida do A postó lico Padre A n to n io Vieira da C o m p a n h i a de Jesus, c h a m a d o po r
A n to n o m ásia O G ran de; acclam ado no m u n d o por principe dos oradores evangélicos, p régador
incomparável dos augustissimos reys de Portugal, veraõ esclarecidos em virtudes, e letras divinas, e
hum ana s; restaurador das missões do M a ra n h ã o , e Pará. D edicada ao Serenissimo S e n h o r In fan te
D. A n to n io pelo P. A nd ré de Barros da C o m p a n h i a de Jesus. Lisboa: Nova Officina Sylviana, 1746.
L. 5. Cap. 168, p. 595) c o m e n ta dessa m aneira o trecho da carta de Vieira: “ O a m o r a esta Senhora
o fez in trod uz ir a devaçaõ do Terço do Rosário Santissimo. Em todas as embarcações, q u e naõ eraõ
de Hereges, o fazia rezar todos os dias po r toda a gente da náo; e foy isto com tanta felicidade, que
os marinheiros, qu e tin ha õ navegado com o Padre VIEYRA, c o n tin u á ra õ em outras viagens a m es
ma devaçaõ, de que veyo pegar-se em todos os navios Portuguezes, assim m erc an tins, c o m o de
guerra, este Celestial contágio.
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11 V IE IR A , A ntó nio. O p . cit. p. 34 8-9. Este trecho ta m b é m foi transcrito p or José de M orais (Op.
cit. L. 4, C a p . 3, [§ 11], p. 326 -7). A n d ré de Barros (O p . cit. L. 2, § 34 e 35, p. 133-4) resume
desta m aneira as informações de Vieira: “Já parecia o u tro aquelle povo, revestindo-se a C id ad e nova
face: o Padre A N T O N I O VIEYRA, reconhecendo c o m o o C e o dava efficácias a suas vózes, e ás dos
seus, foy re p etin do as industrias, e bu scando em nóvos exercícios nóvos alentos á empreza. C h e g o u
o dia da A n n u n c iaç aõ ; (aquelle dia feliz, em que se abrio a p orta á fortuna do M u n d o ) e depois de
ter no p ú lp ito em pregada toda a alm a nas ponderações daquelle po rtento zo Mysterio, no fim do
Serm aó pub lico u, c om o daquella tarde por diante se dava principio á devaçaõ d o Rosário, c antando -
se a córos o Terço da S enhora naquella m esm a Igreja do Collegio, em que os Padres a veneraõ com
o titulo da S enhora da Luz.” ? “ Foy isto h u m attractivo, e reclamo agradavel áquelle povo: c o m eça
va-se ao fenecer do dia; e era tal o concurso, que de ordinário se enchia a Igreja com a m ultid aõ de
todos os estados. Assistiaõ por ley im posta os estudantes, que frequentavaõ as classes. C o m p o s t o o
altar com m uitas luzes á Im agem da Soberana M a y da Luz do M u n d o , davaõ principio dous moços
das melhores vózes, e n to a n d o son ora m ente, e re sp ond end o com devaçaõ notável a gente toda. Entre
os dou s músicos assistia com sobrepeliz o Padre A N T O N I O VIEYRA para a p o n ta r os Mysterios, e
para os concluir com as orações c om petentes. D aqui nasceo atear-se o fogo desta devaçaõ os m es
m os córos as familias, ouvindo-se soar h a r m o n ió z a m e n te em partes diversas este obsequiozo culto á
Rainha dos Ceos, e terra.” Mais adiante, A ndré de Barros volta a utilizar-se das informações de
Vieira em dois outros parágrafos (L. 5, Cap. 149, p. 595-6): “No M a ran h a õ acendeo tam be m este
Divino fogo, in stituind o cantar-se o m esmo Terço na Igreja da C o m p a n h i a de JE SU S, e o Padre
VIEYRA se fez Capellaõ da Senhora, assistindo „ elle com sobrepeliz para dizer as orações dos
Mysterios. Exhorto u a todos, a que em suas casas o rezassem, c o m o faziaõ, o u v in d o desde enta õ o
C e o estas vózes todas as noites em muitass partes, e ao m esm o tem po: p orq ue a senhora da casa com
filhas, e escravas de h u m a lado, e o senh or com filhos, e escravos do outro, entoavaõ á M a y de Deos,
este Angélico descante.’
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B etten d o rf, que tam bém p articip o u desses terços can ta
d o s 13, in fo rm a que os m esm os c o n tin u aram a ser praticados em
São Luís, no M aranhão, m esm o após a p artid a de Vieira em
1 6 6 1 ,4:
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16 “Após o jantar, com a ord em acima descrita e soadas as Avemarias, jun ta va m -se todos novam ente,
mas divididos em dois grupos (o m astro principal servindo de referência) e a coros se recitava em
língua p o rtug uesa, com todas as vozes em belíssimo c once rto cinco mistérios do Santíssimo Rosá
rio, com grandíssima devoção, silêncio e c o m p o s tu ra , com a cabeça descoberta, não o b sta n te esti
vessem a céu aberto, coisa de que se admirava, pelo espírito e se n tim e n to de Deus em gente, a m aior
parte do mar. ” (trad ução nossa)
17 C O R R E I A , F rutuoso. Relação da viagem qu e fez o Padre Frutuoso Correia m a n d a d o por ordem
de nosso Reverendo Padre Geral T irso Gonzales a ler Teologia ao M a ra n h ã o [São Luís, 26 m ai./
1696]. In: L E IT E , Serafim. História da C o m p a n h i a de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália/
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1949. T. 9, Apê ndice C, [§ 22], p. 392.
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O que ella logo concedeo, &Co mandou fazer, &Cse assentou o sino,
que se tange todos os dias ao Terço da Senhora, que lho dizem
cantando com muyta devoçaõ. Na segunda doença, lhe pedio a
Senhora a cera para arder enquanto se cantava o Terço28, [...]
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I. Mistérios gozosos
Anunciação
Visitação
N ascim ento de Jesus
Apresentação no Templo
Jesus é encontrado no Templo
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'16 N A N T E S , M a r tin de. Relation succinte et sincere de la mission du Pere M a rtin de Nantes,
Prédicateur C a p u cin , Missionaire Apostolique dans le Brezil paray les Indiens appellés Cariris.
Q u im p er: Jean Perier, s.d. [c. 1707]. “Seconde Partic’ [§ 17], p. 33-4.
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António Vieira - o im perador do púlpito
& aussi une Provôte & quatre Officieres, prenant toujours les
plus honnêtes & les plus devots de chaque sexe; de sorte quils
s’en font un honneur. Leur Officie est premierement de prési-
der à la Fête &C de pourvoir tout le necessaire, & pendant le
cours de 1’année, d’avoir grand soin qu’on soit ponctuel à se
trouver à 1’Assemblée pour chanter le Chapelet tous les soirs.4/
’i? A tradução de Barbosa Lima S obrin ho é a seguinte: “T ê m o c o stu m e de c antar todas as tardes a
coroa da Virgem, dividida em dois coros, cada um a para um sexo diferente, e isso depois da ceia, e
cantavam à maneira portuguesa, m u ito agradavelmente, com u m a espécie de falso bordão. Para
encorajá-los, fazíamos todos os anos u m a festa solene em cada aldeia e à qual não faltavam índios de
outras aldeias. Todos os anos se elegiam um preboste e qu atro oficiais e tam b é m u m a preboste e
q u a tro oficiais, aproveitando sem pre os mais honestos e os mais devotos de cada sexo, de sorte que
valesse por um a honra ria. A função era prim e iram en te a de presidir a festa e de prover o necessário
e, d u ra n te o correr do ano, a de cuidar que se comparecesse p o n t u a l m e n t e às assembléias para cantar
o terço todas as tardes.’’ Cf. N A N T E S , M a r t in h o de. Relação de u m a missão no rio São Francisco:
relação sucinta e sincera da missão do padre M a r t in h o de N an tes, pregador c ap u c h in h o , m issioná
rio apostólico no Brasil entre os índios cham ado s cariris. Trad. e com en tários: Barbosa Lim a S o b ri
nho. 2 . \ São Paulo, Ed. Nacional, 1979. p. 15 (Brasiliana, v. 368). A m elhor tradução para a forma
de cantar o Rosário ou a C o ro a da Virgem, talvez seja “divididos em dois coros, cada um para um
sexo diferente", e n q u a n to a m elhoir tradução para faux b o u r d o n seja, talvez, fabordão.
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António Vieira o im perador do púlpito
M VIE IRA , A ntónio. A n n u a ou Annaes da Província do Brasil dos dous anno s de 1624, e de 1625
[...]. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro publicados sob a a d m in istraç ão do directo r
Dr. José Alexandre Teixeira de Mello. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1897. p. 198.
VIEIRA, António. Cartas do Padre A nto nio Vieira coordenadas e anotadas por J. Lucio dA zevedo.
C oim bra : Im prensa da Universidade, 1925. v. 1, carta 66, p. 393.
v' Idem, ibidem. carta 80, p. 477-8.
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António Vieira o im perador do púlpito
índios da Serra assistiam horas a fio, para aprender. T a m b é m lhes ensinavam ‘a d an çar ao m o d o
po rtug uês que para eles era a coisa de mais gosto que p o de ser’ E na Festa da Assunção (15 de
Agosto de 1607) celebraram o dia com um a procissão, a prim eira festa naquela apartada Serra, com
um a dança e um diabrete, etc., o que tu d o causou ad m iração por ser para eles grand e novidade; e
depois dela, todos foram para suas casas a prantear, p o r verem que os seus antepassados m o rrera m
sem verem tanto b e m ’.” Cf. L E IT E , Serafim. A música nas escolas jesuíticas do Brasil no século
XVI. C u ltu ra , Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 29, jan./abr. 1949. Serafim Leite cita seus Livros Luiz
Figueira (Ed. cit. p. 30, 125, 129, 130) e H istória da C o m p a n h i a de Jesus no Brasil (Rio de Janeiro,
v. 4, 1934, p. 295), que não co nsu lta m o s para este artigo.
62 M O R A IS , José de. O p . cit. L. 1, Cap. 10, § 15, p. 76-7.
61 B E T T E N D O R F , João Felipe. O p. cit. L. 3, Cap. 3o. § 1, p. 96.
M Idem , ibidem. C a p. 1 I o, § 4, p. 123.
M B A RRO S, A n d ré de. Vida do apostólico padre A ntónio Vieira, Ep. cit. L. 3, § 61, p. 300.
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O s ín d io s m úsicos de P e rn a m b u c o — N h e e n g a ra íb a s,
Tupinambás ou Tabajaras —observados de 1607 a c.1663, prova
velmente aprenderam música com os jesuítas em Pernambuco e,
após a extinção da maior parte das aldeias da costa, na transição
do séc. XVI para o séc. XVII, os poucos índios catequizados que
sobreviveram (entre eles os índios músicos) iniciaram a procura
por regiões menos habitadas, seguindo os jesuítas em sua m igra
ção para o centro e para o norte do país. Tais índios, descritos
por Vieira e outros autores do séc. XVII, eram já representantes
da fase de decadência do ensino musical jesuítico, cujo apogeu
ocorreu no Nordeste na segunda metade do séc. XVI, período ao
qual o escritor português alude frequentem ente ao discorrer so
bre a prática musical que defende.
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Novo M u n d o missão e melancolia,
S érgio A lc id e s
P U C /R J
1
Permanecem obscuras as circunstâncias políticas e religio
sas que levaram o padre A n tó n io Vieira a e m b arcar para o
Maranhão, em 1652, ao que parece sem o conhecim ento de D.
João IV . C onform e algumas versões, o m onarca fez o possível
para im pedir a jornada, mas quando suas ordens chegaram ao
porto, o navio já ia longe demais. “Enfim, Senhor, venceu Deus!
Para o M aranhão vou” escreveu o grande jesuíta ao príncipe D.
Teodósio, atribuindo à Providência a vitória das velas e, talvez,
do seu próprio desejo ou necessidade de partir.2
E u m a carta escrita a meio cam inho, do C abo Verde, c u m
pridos os prim eiros 30 dias de viagem. Nela, Vieira aplica toda
a p ru d en te eloquência que co nvinha à delicadeza da situação.
Mais do que justificar a partida, era preciso convencer o desti
natário de que ela não se dera por vontade própria, mas acima
de tud o por vontade de Deus. Acima de tudo , po rque tu d o o
que se passa ao nível da terra e do m ar é governado desde o
C o m u n ic a ç ã o apresentada ao C o ló q u io “A n tó n io Vieira, o i m p e rad o r do púlpito. 1 6 9 7 - 1 9 9 7 ”,
em 15 de m aio de 1997, no Institu to de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo
(USP), sob a coo rdenação de Joaci Pereira Furtado, a q ue m deixo aqui meus agradecim entos. T a m
bém sou grato a A nd réa Lisly Gonçalves, por seus c om entários e sugestões.
1 C arta ao Pe. Francisco de Morais, do M a ran h ã o , a 6 de maio de 1653; In: V IE IR A , Pe. A. O bras
escolhidas. Cartas. Lisboa: Sá da Costa, 1951. v. 1, p. 149-52; cit. da pág. 150. Todas as citações de
cartas de Vieira serão feitas a partir desta edição.
2 Idem, ibidem. C a rta ao Príncipe D. Teodósio, de C a b o Verde, a 25 de d ezem bro de 1652; v. 1, p.
145-8.
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Não sei, Senhor, que diga neste caso, senão ou que Deus não
quis que eu tivesse merecimento nesta missão, ou que se conhe
ça que toda ela é obra sua [...]5
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António Vieira - o im perador do púlpito
6 Idem, ibidem.
7 H e rn â n i C id a d e ten de a aceitar essa distinção, com base em o u tra carta a D. Teodósio, remetida do
M a r a n h ã o , na qual Vieira diz que agora sim começava a ser '“verdadeiro padre da C o m p a n h i a ”. H .
C id a d e [1964], Pe. A n tó n io Vieira: a obra e o h o m e m . Lisboa: Arcádia, 1979, p. 65. Seria preferí
vel, porém , q u e essa afirmação de Vieira fosse en te n d id a no contexto das representações aceitas para
os “tipos’ do em b a ixad or ( m u n d a n o e cortesão) e do m issionário (abnegado e pio) — já perfeita
m ente estereotipadas no século xvit. É difícil crer que Vieira concebesse um d ip lo m a ta mais bem
prep arado do que um verdadeiro padre da C o m p a n h i a ’’
8 P É C O R A , A. Teatro do sacram ento. A u nidade teológico-retórico-política dos sermões de A n t ó
nio Vieira. São P a ulo/C a m p ina s: E du sp/E dito ra da U n ic am p , 1994. p. 2 13-5 8. Ver, em especial, a
discussão sobre a "providencialização do Estado p o rtu g u ê s” p or parte de Vieira (p. 2 4 0 -2 ), na qual
Pécora trabalha o Sermão de Santo A n tó n io (1670).
9 C arta ao Príncipe D. Teodósio, c it., p. 148.
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10 É a versão c ontada po r C I D A D E , H . Op. cit., p. 64. A versão anterio r é a d m itid a por autores
c o m o S É R G I O , A. Prefácio a: V IE IR A , Pe. A. O p. cit. v. 1, p. xi-cviii, e F L O R E S,, L. F. Baêta
Neves. P o d e r e quotidiano. U m a antropologia política da ordem colonial. (Fotocópia) Rio de Janei
ro, s./d. p. 4.
" Ver, a respeito da lógica figurai na tradição providencialista, o ensaio de A U E R B A C H , Erich
[1939]. Figura. In:_______ Scenes from the D ram a of European Literature. Gloucester, Massachusetts:
Peter S m ith, 1973. p. 11 -76; em linhas gerais, descreve-se aí o m ecanism o através do qual os Padres
da Igreja ‘c o n ec ta ra m ’ o A ntigo e o Novo Testamentos, de m o d o a que este não revogasse aquele, e
sim o completasse e ratificasse; o Antigo Testamento, assim, é figura do Novo: sem perder a sua
validade própria, apenas antecipa aquilo que receberá seu ‘pleno c u m p r i m e n t o ’ com a chegada do
Messias. Por extensão, pode-se p ro p o r um conceito de “figura” po r oposição ao de “alegoria”; neste,
trata-se de um a imagem ou abstração válida apenas e n q u a n t o representação de outra ideia, evento
ou pessoa. A figura, em contraste, está su bm e tida ao te m p o “real” da história, o que lhe garante um a
validade em si. in d e p e n d e n te m e n te da representação que traz implícita. Nas palavras de Auerbach:
“A interpretação figurai estabelece u m a conexão entre dois eventos ou pessoas, o prim eiro dos quais
não significa apenas a si próprio, mas tam b é m o segundo, e n q u a n to este abrange ou dá c u m p r i m e n
to ao primeiro. O s dois pólos da figura estão separados no tem po, mas am bos — c o m o eventos ou
figuras reais — estão imersos no tem po, no fluxo da vida histórica’ . p. 33.
12 C a rta ao Príncipe D. Teodósio. O p. cit., p. 147.
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António Vieira o im perador do púlpito
2
A ntónio Sérgio im aginou em que estado de ânim o não es
taria o pregad or da C ap ela Real d u ra n te a travessia p ara o
M aranhão. “D entro de um convés arfante”, diz o ensaísta, Vieira
aguardava o resultado da jornada, a meditar sobre os descaminhos
de seus últimos anos como hom em de Igreja metido no século, no
m undo da política e da diplomacia. António Sérgio salta do bio
gráfico para o psicológico, insinuando um a comparação entre o
convés do navio e o próprio peito do jesuíta, arfante ao sabor das
ondas do m ar/da vida, “m isturando a melancolia do seu devaneio
amargo à inquietação rumorosa do azul do Atlântico” 13
O retrato comove, mas não convence. Vieira melancólico?
O u melhor: um jesuíta melancólico? Se é que tem m esm o algum
cabim ento fantasiarmos o h u m o r desse viajante, na dem orada
travessia, mais verossímil seria a impaciência fleumática do que a
melancolia, enquanto ele contem plava as andorinhas e sonhava
com o avião.
Missão e melancolia são termos incompatíveis; u m traba
lha contra o outro, e o Novo M u n d o no século xvn era o teatro
paradigmático para esse embate. A tarefa de expandir a C ristan
dade, então, confundia-se com a necessidade de reformá-la, pro
m ovendo a sua regeneração. Esse em penho m arcou a própria
fundação da C o m p an h ia de Jesus, em 1540, poucos anos antes
de inaugurar-se o Concílio de Trento. O ím peto evangelizador
dos novos religiosos partia de um vigoroso apelo de pregação da
palavra de Deus, a ser distribuída aos povos de todo o m u n d o
por verdadeiros soldados da fé. Tal exército — com o todo exér
cito — dependia de um a disciplina rígida que imperasse acima
das vontades desordenadas de cada um. C ontrapunha-se, desde
sua origem, ao torpor melancólico que a tradição médico-astro-
lógica atribuía, de um lado, ao predom ínio da bile negra sobre os
demais hum ores corporais (sangue, fleuma e bile jalne), e de o u
tro, a influxos malignos de S a tu rn o 14. Renovava-se o com bate à
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A ntónio Vieira - o im perador do púlpito
19 Cf. D E L U M E A U , Jean. A civilização do Renascimento. 2v. Lisboa: Estam pa, 1964. v. 2, p. 83.
20 F U M A R O L I , M. O p . cit. 1984. p. 102.
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ção xxii o triste caso dos enfermos d ’alma. Afirma-se ali que exis
tem três tipos de homens: os que aspiram a seguir Jesus Cristo,
mas só “da boca para fora, e não de coração”; os que têm verda
deiro desejo de perfeição, mas sem a indispensável “vontade uni
versal e m agnânim a”; e os que de fato apresentam-se voluntario
samente dispostos e prontos para tudo em nom e do Senhor, com
toda a fortaleza necessária21 O s melancólicos, pela fraqueza de
espírito imposta por seu mal, só podem ser enquadrados nos
dois casos malogrados. Tal é a sina prevista para essas almas de
“um a vontade tão fraca” a menos que se decidam a praticar com
mais afinco a perfeição espiritual:
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António Vieira - o im perador do púlpito
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Ao que anda triste e melancólico, umas vezes lhes faz vir o de
mónio uma grande desconfiança e desesperação, como fez a Caim
e Judas. Outras vezes quando lhe parece que não tem por aí
bom jogo, os acomete com deleites mundanos; outras vezes com
deleites carnais e sensuais, com pretexto de que com aquilo se
livrarão da pena e da tristeza que têm [...]28
[...] daqui vem que, quando alguém está triste, lhe costumam
vir umas tentações acerca da vocação, porque lhe representa o
demónio, que lá no mundo viveria alegre e contente: a alguns
tem tirado da Religião a tristeza e a melancolia.29
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A ntónio Vieira - o im perador do púlpito
[...] o que muito comumente costuma ser causa e raiz das nossas
melancolias e tristezas não é o humor de melancolia, senão o
humor de soberba, que reina muito no nosso coração; [...] en
quanto reinar este humor no vosso coração, tende por certo que
nunca vos faltarão tristezas e melancolias, porque nunca falta
rão ocasiões, e assim sempre vivereis com pena e tormento.32
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N ã o faltam teste m u n h o s im pressionantes sobre a dispo
sição de ân im o dos m issionários jesuítas no Novo M un d o . O
tem a traz à m en te a im agem de N ó b re g a e A nchieta em suas
m archas pelos sertões, já com algum a idade, e em deploráveis
condições físicas. Além da inexistência de cam inhos até os
“tesouros de alm as” que buscavam , o m eio natural e h u m an o
da A m érica parecia o p ró p rio cenário da m elancolia, na sua
am bivalência entre Paraíso e In fern o, avesso à condição civil
do com ércio dos ho m ens. Nele, o peregrino se em brenhava
solitário pela n atureza escura e d esordenada, retirado do c o n
vívio h a rm o n io so com seus iguais, mas sob a p e rm a n en te vi
gilância de m ed o n h o s penhascos erguidos à sua frente, sem
lei nem p roporção, com o intransponíveis obstáculos. Essa re
presentação convencional, porém , quase sem pre encobria um a
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António Vieira o im perador do púlpito
'"V IEIRA, Pe. A ntónio. Relação da missão da serra de Ibiapaba” . In: Escritos instrum entais sobre os
índios. Seleção de textos: C lá u d io G io rd a n o ; ensaio introdutório: José Carlos Sebe B om Meihy. São
Paulo: L oy o la /E d u c /G io rd a n o , 1992. p. 122-90, cit. às pág. 146-7. (M em ória, 13).
" Cf. P É C O R A , A. O p . cit. p. 9 9-1 0 2 ; essa relação, para o autor, e n co n tra u m a m ediação retórica
naquilo que ele d e n o m in a , m u ito engenho sam ente , ‘m o d o sa c ram en tal”
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cadernos do ieb
Da altura destas serras não se pode dizer coisa certa, mais que
são altíssimas, e que se sobe, às que o permitem, com maior
trabalho da respiração que dos mesmos pés e mãos, de que é
forçoso usar em muitas partes. Mas depois que se chega ao alto
delas, pagam muito bem o trabalho da subida, mostrando aos
olhos um dos mais formosos painéis que porventura pintou a
natureza em outra parte do mundo, variando de montes, vales,
rochedos e picos, bosques e campinas dilatadíssimas, e dos lon-
ges do mar no extremo dos horizontes.
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António Vieira - o im perador do púlpito
[...] é qualidade destas areias que cada gota de água que lhes cai
se converte em um momento em enxames de mosquitos
importuníssimos, que se metem pelos olhos, pela boca, pelos
narizes, e pelos ouvidos, e não só picam, mas desatinam; e haver
de marchar um homem molhado [de chuva], a pé e comido de
mosquitos, e talvez morto de fome, e sem esperança de achar
casa nem abrigo em que se enxugar ou descansar, e continuar
assim as noites com os dias, é trabalho que se lê facilmente no
papel, mas que se passa e atura com grande dificuldade.55
Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não é isso o que vos
digo. Vós virais os olhos para os matos, e para o sertão? Para cá,
para cá: para a Cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os
Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de
cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele
M Idem, ibidem. p. 138; grifo meu.
Idem, ibidem. p. 186; grifo meu.
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E, pouco adiante:
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s o b r e os a u t o r e s
Al ci r Pécora
Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo
Professor do Departamento de Teoria Literária da Universi
dade Estadual de Campinas
Autor de Teatro do sacramento (Edusp), estudo sobre os ser
mões de Vieira Prémio Jabuti
Paulo Castagna
Doutorando em Historia Social pela Universidade de São Paulo
Musicólogo e professor do Departamento de Música
da Universidade Estadual Paulista.
Autor (em parceria com Flávia Camargo) de Música e jorna
lismo (Hucitec/Edusp)
Sérgio Alcides
Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro
Doutorando em Historia Social pela Universidade de São Paulo
Autor de Nada a ver com a lua (Sette Letras)
Publicações do Instituto de Estudos Brasileiros
Marta Rossetti Batista, Telê Porto Ancona Lopez e Yone Soares de Lima -
Brasil I otempo modernista - 1917-1929, 1972. (esg.)
Maria Odila Silva Dias - André fíebouças- Diário-A Guerra do Paraguai (1866)
1973.
Arlinda Rocha Nogueira - A imigração japonesa para a lavoura cafeeira
paulista (1908-1922). 1973. (esg.)
João Baptista Borges Pereira - Italianos no mundo rural paulista. 1974 . (esg.)
Ruth Brito L. Terra - A literatura de folhetos nos fundos Villa-Lobos, 1981.
Arlinda Rocha Nogueira, Heloísa Liberalli Bellotto e Lucy Maffei Hutter -
Inventário analítico dos manuscritos da Co/eção Lamego, 1983, 2v.
Yone Soares de Lima - A ilustração na produção literária: São Paulo, década
de vinte. 1985.
Telê Porto Ancona Lopez (org.) - Manuel Bandeira: verso e reverso. 1987.
Ana Maria Paulino (org.) - O poeta insólito: fotomontagens de Jorge de Lima
1987.
Arlinda Rocha Nogueira, Floripes de Moura Pacheco, Mareia Pilnik e
Rosemarie Erika Horch (org.) - Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra
1988.
Oneyda Alvarenga e Flávia Carmargo Toni (coord.). Mário de Andrade.
Dicionário musical brasileiro. 1989. Coed. Itatiaia / MEC / Edusp.
Rosemarie Erika Horch (trad.) - Cristóvão Colombo e Hans Staden: um diálogo
no Reino dos Mortos, 1992.
próximos lançamentos
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