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Esta reflexão terá como objetivo problematizar a constituição do sujeito pela linguagem,
no contexto atual das discussões relativas à implantação de um ensino bilíngüe para surdos,
tema sobre o qual se tem discutido muito nos últimos anos. Como sabemos, na proposta
bilíngüe a língua brasileira de sinais (Libras) seria introduzida como primeira língua (L1) e
o português como segunda (L2).
Exposto à Libras, desde o início de sua vida, o sujeito surdo teria, assim, garantido seu
direito a uma língua de fato. A partir dela, o ensino do português (L2) seria facilitado pela
garantia de um funcionamento simbólico-cognitivo já ocorrendo de modo satisfatório.
Apresso-me a explicitar aqui que também defendo a Libras como L1 e o português como
L2. Fazer essa defesa já foi tema de um outro trabalho meu (Souza 1996), no qual dirigi
esforços na argumentação da importância do acesso à Libras pela relevância que adquire
no processo de construção da identidade da pessoa surda em todos os seus aspectos, a
saber, lingüístico, cognitivo e social. Na reflexão que ora inicio, aprofundarei minhas
reflexões sobre a indissociabilidade que se instaura entre "língua" e "sujeito". Minhas
argumentações, aqui, procurarão enfatizar o fato de que "ensinar" uma língua é mais do
que expor a criança a dados lingüísticos; muito além disso, é um processo de
(re)organização constante e dinâmica do "eu" e do "outro". Desse modo, em vez de
inscrever a língua no plano biológico (porque mental) vou situá-la no espaço dialógico
(porque social). Para tanto elegerei Bakhtin (1992a) como interlocutor teórico.
Para Bakhtin (1992a), a "verdadeira substância" da língua não está nem no sistema abstrato
das formas lingüísticas (no universo lexical, nos fonemas, nos morfemas, nas flexões etc.)
nem está alojada no psiquismo individual de cada pessoa. Sua essência não é nem o ato
psicofisiológico que a produz nem a enunciação monológica. A "verdadeira substância" da
língua é, por excelência, o ato dialógico em seu acontecimento concreto. Entretanto,
qualquer diálogo, além de ser ele próprio histórica e socialmente determinado, evidencia
uma outra história: a história da própria linguagem. Afirmar que a linguagem oculta e
explicita uma história supõe admitir a existência de regularidades, cristalizações de formas
e de certas fórmulas discursivas, de significados e de regras formacionais. Para Bakhtin, a
história de qualquer língua tem o mesmo núcleo gerador de um enunciado particular, isto é,
tem seu início na "faísca" produzida pelas interações sociais. Dito de outro modo, a língua
é produto do trabalho coletivo e ininterrupto de sujeitos socialmente organizados, cujo
processo instaura a construção, também coletiva, de conhecimentos e saberes sobre o
mundo. Homem e linguagem não são, assim, categorias estranhas uma à outra.
Para o objetivismo, o que faz da língua objeto de estudo é seu sistema de formas (fonéticas,
gramaticais, lexicais), uma vez que, segundo postula essa abordagem, são os traços
idênticos, normativos para qualquer enunciação, que garantem a unicidade de uma língua
dada e a possibilidade de estudá-la. Segundo o objetivismo, as leis que a regem são
imanentes do próprio sistema lingüístico e, portanto, completamente independentes das leis
ideológicas. A língua, nessa perspectiva, é concebida como uma instituição social que,
como tal, é normativa para o indivíduo, a quem cabe, apenas, aprendê-la.
Na base dos métodos de reflexão que levam à postulação da língua como sistema de
formas normativas, estão os procedimentos práticos e técnicos elaborados para o estudo
das línguas mortas, que se conservaram em documentos escritos. (Idem, p. 96)
Essa forma de abordar a língua afetou também a práxis pedagógica que seguiu os mesmos
passos dos formalistas. Considere-se, por exemplo, que o ensino escolar tende a reduzir a
língua ao léxico e à gramática. O "enriquecimento do vocabulário", quer dizer, os
significados cristalizados ou de dicionário das palavras, passa a ser uma meta pedagógica
em si mesma na tentativa de o professor garantir, por parte do aluno, a compreensão do
texto. Por outro lado, a sintaxe é desvinculada do discurso: não há problematização, com o
aluno, das transformações que as formas da língua sofrem no ato da enunciação. A língua
é, pois, fracionada. Seu funcionamento é reduzido a regras que, por sua vez, são
transmitidas aos alunos para que as memorizem.
Yara, uma surda que nos concedeu ricos depoimentos, é um exemplo do produto de uma
tal prática escolar. Impossibilitada de ter acesso "natural" à língua oral (pela ausência da
audição), foi-lhe imputado um ensino de língua portuguesa circunstanciado na
memorização e na automatização de regras gramaticais, com o pretenso objetivo de fazê-la
aprender o português. É interessante notar que esse era o modo adotado tanto pela escola
regular como pela escola especial, freqüentadas por ela de modo paralelo e simultâneo.
Como não conseguia se valer nem das regras nem das palavras que, não obstante, havia
decorado e cujos significados havia aprendido a identificar, não conseguia ocupar o lugar
de enunciadora. Era solitária, não possuía amigos:
eu era oralizada mas não tinha aquele vocabulário, por exemplo, tinha muito vocabulário
mas não sabia conversar, não sabia comunicar (…), parece meio frio, igual papagaio, (…)
saber falar mas não saber conversar, então, eu repetia tudo. (…) Só sabia imitar mas não
entendia profundamente o que eles estavam falando. (Yara)
No caso da pessoa surda, fracionar a língua, oferecê-la por partes aos alunos de modo
esquematizado, pasteurizado e asséptico, como se fosse possível "ensinar" uma língua da
mesma forma que um cirurgião separa órgãos, é também conveniente à escola.
Conveniente porque, pareadas e confundidas com ilustrações de murais ou convertidas em
objeto de técnicas de associação, as palavras e as regras são transformadas em coisas
passíveis de ser transmitidas fora da linguagem. Dito de outro modo, a percepção, a visão,
o tato, o olfato etc. passam a ser os canais de "transmissão" da "língua", já que o aluno não
ouve. Há aí uma certa contradição: o professor fala embora saiba que não possa ser ouvido.
Fala porque a fala é parte de si próprio, indissociada de sua identidade, do exercício de seu
papel. Parte de alguém que "aprendeu", nos bancos de cursos universitários, que seus
futuros alunos deveriam ser tratados todos iguais (mas a quem?) mesmo que soubesse que
não fossem. Diante da criança surda, percebe-se de imediato impotente: como ensinar, se
falar não pode ser mais o "meio"? Como "ensinar" sem linguagem? A única "saída" que
imagina ter é a redução de seu ato de "ensinar" à estimulação dos canais sensoriais
remanescentes como via de acesso à linguagem. Mas que linguagem seria possível brotar
de cada mente em particular em tal contexto de "ensino"?
Rosângela, surda, aproximadamente 25 anos, resolveu sair da escola quando estava na 3ª
série. Atualmente produz e distribui chaveiros para serem vendidos por outros surdos.
Quando explica por que saiu da escola sinaliza (tradução para o português feita por mim):
"Por quê? Eu não sou palhaça, não! A professora só dava papel para copiar, desenhar,
copiar palavra, copiar frase. Não conversava com a gente, ela ficava só lendo as revistas
dela. Eu não aprendia nada, perdia tempo. Saí, não sou palhaça!"
Bakhtin opta por um percurso diferente daquele proposto pela tradição formalista; isto é,
em vez de privilegiar a língua toma como objeto de análise a heterogeneidade da fala, vale
dizer, a complexidade dos múltiplos modos de ocorrência da linguagem que engendram
sentidos novos e não reproduzíveis. Esses múltiplos modos de ocorrência são, na verdade,
um efeito da "faísca" desencadeadora da linguagem: a interação verbal. Os elementos
principais de qualquer interação são: presença de um locutor, de um interlocutor (real,
suposto ou virtual), uma situação social dada, um contexto historicamente determinado, o
objeto de discurso e o desejo pela palavra. Como esses elementos variam sempre, na
totalidade ou em partes, cada ato enunciativo é um ato único de transformação das formas
da linguagem. De fato, qualquer mudança no processo, que o uso efetivo da linguagem
instaura, acarreta uma produção de novos sentidos.
Por esse caráter dinâmico é que é impossível tomar a significação como um elemento à
parte do signo, independente da situação particular e do trabalho de cada personagem que
tece o discurso. Imerso no fluxo comunicativo, o locutor não trata a língua como sistema
imutável. Para ele, não se trata de agir de acordo com uma norma externa e coercitiva, mas
de produzir e compreender as novas significações que uma mesma forma adquire no
contexto. Quanto ao interlocutor, seu ato de compreensão não se reduz a um ato mecânico
de decodificação, pelo reconhecimento, de uma forma lingüística dada: esse é o "método"
utilizado apenas por alguém quando diante de uma língua estrangeira ou que pouco
conhece. Para aquele que acompanha atento o enunciado alheio o que de fato interessa é a
compreensão da novidade que o signo lingüístico adquire numa situação discursiva
particular, e não a avaliação de sua adequação à norma padrão (Bakhtin 1992a).
Mas há de se considerar também que o locutor não é um Adão que pela primeira vez
rompe com o silêncio de um mundo mudo (Bakhtin 1992b). De fato, cada enunciado é
mais "um elo na cadeia da comunicação verbal" (p. 308).
Os enunciados não são, pois, indiferentes uns aos outros: entre eles se ocultam relações
dialógicas inter e intratextuais. Refletem-se ou refratam-se mutuamente. Cada um deles
guarda a memória e os ecos de outros enunciados, aos quais se vincula. Acima de tudo é
uma réplica, uma resposta a eles: refuta-os, conta com eles, supõem-nos como já sabido,
concorda com eles, transforma-os. De tal perspectiva, todo aquele que enuncia ocupa,
segundo Geraldi (1993), dois papéis simultaneamente: o daquele que tece a réplica ao
enunciado que responde e o daquele que, ao fazê-lo, coloca-se na perspectiva do outro, na
tentativa de, ao presumir-lhe a resposta, restringir-lhe as possibilidades de oposição,
conquistar-lhe como aliado etc. Por outro lado, o outro não é um ouvinte ou leitor passivo.
Espera-se dele uma resposta, e é a essa resposta que o locutor se dirige. Sem ser
considerada a natureza dinâmica e dialética da relação "locutor-interlocutor" não se pode
realizar análises lingüísticas nem sobre o gênero, nem sobre o estilo do discurso, nem sobre
sua função na cadeia de enunciados sobre o objeto temático.
O objeto de discurso não é, pois, neutro, uma vez que já sofreu várias transformações pela
linguagem, em outras palavras, foi objeto de outros enunciados. Assim concebido, "um
enunciado é sulcado pela ressonância longínqua e quase inaudível da alternância dos
sujeitos falantes e pelos matizes dialógicos, pelas fronteiras extremamente tênues entre os
enunciados (…)" (Bakhtin 1992b, p. 318).
O eu está imerso no fluxo dessas contradições e se constitui com elas. Mas não de modo
passivo ou solitário, como se o processo de individualização se restringisse ao ato de
apropriação de conhecimentos já postos. É pela pluridimensionalidade desse processo, pela
presença simbolicamente marcada de todas as vozes alheias que o tecem, que o sujeito se
constitui como ser multifacetado ou possuidor de várias máscaras. E é pela/na ebulição das
vozes que essas máscaras fazem ecoar — ao longo da história do sujeito — que elas,
transformadas, se monologizam.
tudo que é dito, tudo que é expresso por um falante, por um enunciador, não pertence só a
ele. Em todo discurso são percebidas vozes, às vezes infinitamente distantes, anônimas,
quase impessoais, quase imperceptíveis, assim como as vozes próximas que ecoam
simultaneamente no momento da fala. (Grifo do autor)
Adotar essa concepção de linguagem implica ter que se desmanchar a tricotomia langue-
parole-langage. Pressupõe também que seja reconsiderada a clássica dicotomia língua-
discurso. A decorrência para a prática de "ensino" de língua, seja da L1 como da L2,
quaisquer que sejam, é que o processo de construção do objeto lingüístico não pode e não
deve ser reduzido à pura exposição das formas da língua, a um ensino descontextualizado,
desvinculado da historicidade da relação professor-aluno, como se a língua pudesse ser
reduzida à assimilação passiva de um sujeito em condição biológica para fazê-lo. Eis por
que, apesar da obrigatoriedade do ensino básico, a cada ano a escola vem produzindo uma
população de indivíduos que, apesar de falarem uma língua, fracassam na compreensão da
escrita e, em conseqüência, interrompem seu percurso escolar ainda no 1º grau. Todo
movimento da práxis pedagógica converte-se, assim, num mecanismo de "produção" de
estudantes que não aprendem, apesar de os discursos idealistas, tecidos no seio da
instituição de ensino, defenderem tese contrária.
Meu receio, e aqui devemos aproveitar a lição do propalado fracasso do sistema de ensino
comum, é que acabemos por reproduzir, na formulação de um programa de ensino bilíngüe
para surdos, os mesmos erros cometidos no "ensino" de língua escrita à criança ouvinte. De
fato, ao convertermos a Libras (e o português) em um conjunto de orações e regras; ao
postularmos que sua aquisição se reduz à presença de um usuário surdo fluente em sinais
— cujo papel seria, basicamente, o de oferecer dados lingüísticos a alunos surdos — não
estaríamos convertendo a Libras, como foi feito com o português escrito, em língua morta?
Em uma língua "fria", sem qualquer utilidade para os sujeitos, sem papel nenhum para a
construção de sua identidade?
Se Yara, a surda cuja voz fiz ecoar linhas acima, pôde entrar no fluxo vivo do português
foi porque ela se (re)construiu sujeito, aos 16 anos, pela Libras, língua que fundava as
relações de outros surdos na comunidade surda que começou a freqüentar. Mas a
linguagem de sinais não se apresentou a ela de modo transparente e sem mediação: "fiquei
emocionada mas não entendia nada".
Ao contrário, para que tivesse acesso àquela linguagem, Yara precisou ter recebido do
grupo de surdos um lugar no discurso e se valido dele para conquistar sua própria
argumentação, seu próprio discurso: "Aprendi a conversar também e aí aprender no mundo
social dos ouvintes melhorou muito por causa o que aprendi com os surdos a se
comunicar".
Foi no dinamismo, ou no movimento dialético que a dialogia funda, que o mundo fez
sentido para ela, não só o mundo externo mas aquele seu, interno; produto social, sua
consciência se organizou: "Ter minha própria personalidade, que foi para fora e não era
mais a imitação dos ouvintes."
Como nos diria Bakhtin (1992a, p. 33), porque um signo só pode se contrapor a outro
signo, "a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a
encarnação material em signos".
Bibliografia
BRAIT, B. "As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso". In: Barros, D.L.P. e Fiorin,
J.L. (orgs.). Dialogismo, polifonia e intertextualidade em torno de Bakhtin. São Paulo:
Edusp, 1994.
CHOMSKY, N. Diálogos com Mitsou Ronat. Tradução do francês por Álvaro Lorencini e
Sandra Margarida Nitrini. São Paulo: Cultrix, 1977.
GERALDI, J.W. Portos de passagem. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
LUJÁN, M.A. "As crianças surdas adquirem sua língua". In: Moura, M.C.; Lodi, A.C.B. e
Pereira, M.C.C. (orgs.). Língua de sinais e educação do surdo. São Paulo: Tec Art, 1993,
Série de Neuropsicologia, 3.
SOUZA, R.M. "O processo da construção da leitura e da escrita pela criança surda". In:
Ciccone, M. Comunicação total - Introdução, estratégia. A pessoa surda. 2ª edição revista
e ampliada. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 1996.
* Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação Prof. Gabriel Porto - Faculdade de
Ciências Médicas - Unicamp.