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C ONTOS MÍNIMOS

1999

Há alguns anos, um avião japonês sofreu uma pane a dez mil metros de altura. Todo o sistema entrou
em curto e os motores simplesmente pararam de funcionar. O avião começou a cair. Mas não se
descontrolou, não deu reviravoltas no ar, nem se partiu em pedaços ou pegou fogo. E isso foi o mais
terrível. Simplesmente começou a cair – lentamente.
Descia quase flanando, com suavidade, embora mergulhasse de forma inexorável rumo ao choque
com o chão. E, enquanto isso, todos a bordo viviam, durante vários minutos, a angústia da morte
próxima. Se não me engano, foram vinte minutos. Vinte minutos de espera até a explosão final.
O que faziam, o que será que pensavam? Alguns com certeza entraram em pânico, outros, paralisados
de medo, na certa rezaram. Outros, ainda, bêbados de terror, devem ter falado alto e até cantado.
Mas depois, quando tudo estava terminado, uma surpresa: as equipes de resgate encontraram, entre
os destroços calcinados, pedaços de cadernetas e até guardanapos com anotações de vários
passageiros, que tentaram registrar aqueles minutos terríveis ou deixar uma última mensagem, como
se fossem náufragos, condenados e sem esperança, numa ilha deserta.
Na época, li com arrepio o noticiário sobre o assunto, e até hoje sinto um frio na espinha quando
penso no que podem ter sido aqueles momentos finais. Lembro-me também que o impulso daquelas
pessoas – de, diante da morte, procurar deixar alguma coisa escrita – foi comparado ao dos artistas
da humanidade: escritores, pintores, músicos, todos os que tentam, através da arte, deixar marcas de
sua passagem sobre a terra, na esperança, quase sempre vã, de driblar a finitude da vida.
É a pura verdade. Somos todos – não só artistas, mas todos nós – como aqueles japoneses
desesperados. Vivemos tentando deixar nossas pegadas, apressados entre o início e o fim da viagem,
sem saber ao certo o que acontecerá. E a vida passa num sopro, uma rajada, não dura mais do que
alguns minutos diante do arco da eternidade.
Parece um conto mínimo.

A revolta do mar
(23/5/1999)

As pedras na praia do Arpoador tinham desaparecido, mais uma vez. As areias também. E igualmente
o sol. A paisagem não era mais aquela velha conhecida: já não havia a beleza do mar transparente,
deixando entrever as pedras e sua verdura submarina, nem a espuma rosada quebrando mansa na
praia. Agora, era só vento e frio – e fúria.
Empurradas pelo sopro sudoeste das tempestades, as vagas erguiam-se como cabeças de víboras,
atirando-se em sucessivos botes contra a amurada. Dava para sentir o chão estremecer.
– Parece um terremoto — disse alguém.
As pessoas, escondidas atrás dos quiosques, encolhidas em seus agasalhos de náilon, apreciavam o
espetáculo da ressaca. Havia nos semblantes um misto de excitação e medo. A cada onda que
explodia como o jorro de um gêiser, os borrifos d’água impregnavam o ar, encharcando roupas e
cabelos. Mas ninguém ia embora.
De repente, alguma coisa inchou no seio do mar. Lá fora, para além da ponta do Arpoador, formou-
se uma onda gigantesca, fechada em si mesma, parecendo a corcova de um monstro submarino, que
afinal se ergueu, mostrando os dentes de espuma amarelada. E a massa colossal atirou-se contra a
amurada com enorme estrondo.
Foi tudo muito rápido. O troar das ondas confundiu-se com o ruído de cimento e pedra sendo
rasgados, desfeitos, criando o som de centenas de trovões, enquanto na calçada larga as pedras
portuguesas pareciam prestes a saltar do chão, tal a trepidação. Os corrimões de madeira da rampa
de acesso à praia ainda se agitaram por um instante acima da superfície, como num último aceno,
antes de serem tragados pelo mar furioso. E junto com eles a própria rampa. Em poucos segundos,
tudo tinha desaparecido na boca do monstro.
As pessoas, assustadas, dispararam em direção à rua, mas sem tirar os olhos do mar. Hipnotizadas
ante tamanho poder, não conseguiam dizer nada. Até que um rapaz, muito jovem, falou:
– Nunca vi uma ressaca assim.
E um velho, com mãos de pescador, que estivera todo o tempo espiando de longe, cauteloso,
concordou:
– Jogaram tanta imundície que o mar decidiu se vingar.
O mistério do chafariz
(30/5/1999)

A verdade é que senti uma sensação estranha assim que penetrei na praça. A General Osório estava
deserta naquele dia e apenas alguns mendigos dormitavam sobre os bancos. Junto de um deles, na
grama rala, um cão todo branco, com um dos olhos vazados, ergueu as orelhas à minha passagem.
Aquilo me inquietou. Aquilo ou qualquer outra coisa, não sei. Mas segui em frente.
Ainda de longe, avistei, ao fim de uma das aléias, bem no centro da praça, o velho chafariz de pedra,
por muitos anos seco e abandonado. Enquanto me aproximava, lembrei que, dias antes, folheando
um livro sobre o Rio Antigo, vira uma foto dele em tempos melhores: plantado em outro ponto da
cidade, cercado por senhoras em vestidos negros, com delicadas sombrinhas. Na foto, sua amurada
de pedra abrigava um espelho d’água e, no alto da coluna central, sobressaíam os pássaros de bronze
que lhe justificavam o nome: Chafariz das Saracuras. Fiquei pensando se as aves ainda existiriam.
Cheguei mais perto. O leito redondo contido pela amurada estava seco, como eu esperava. Grandes
blocos de granito, parecendo seixos gigantes, preenchiam o espaço antes ocupado pela água. Mas,
para minha surpresa, no alto da coluna central, lá estavam as aves: várias delas, esguias, equilibradas
em suas pernas altas, com o metal escurecido pelo tempo, porém intacto.
Fui embora satisfeita. A sensação ruim se desvanecera.
Dias depois, passando outra vez por aquele pedaço de Ipanema – e talvez movida pela satisfação de
ter encontrado as saracuras no lugar –, decidi, novamente, cruzar a praça por dentro. Dessa vez,
tinha a alma leve, despreocupada. Já nem me lembrava da inquietação que sentira no outro dia. Mas,
chegando junto ao chafariz, veio a surpresa: as aves tinham desaparecido.
Fiquei ali parada, sem saber o que pensar, olhando a coluna de pedra nua, apontada para o céu como
uma lança. O que teria acontecido?
Talvez tivessem sido roubadas, justamente naquela semana. Mas eu teria visto alguma coisa nos
jornais. Talvez tivessem sido retiradas para algum reparo. Mas era um procedimento incomum.
Pareciam tão perfeitas. Como era possível?
Afastei-me, intrigada, pensando que, mais cedo ou mais tarde, tudo seria explicado.
Só que os dias se passaram, e as semanas também. Sempre que posso, cruzo a praça e olho com
inquietação para a lança de pedra, no centro do chafariz. Mas só encontro, de vez em quando, um ou
outro pombo, de carne e osso. Das pequenas aves de bronze, nem sinal.
Se alguém souber o que aconteceu com as saracuras, por favor, me diga. Ou serei obrigada a acreditar
que aquilo que vi eram seus fantasmas.

O menino e a catedral
(6/6/1999)

O menino olhou em torno para ter certeza de que não estava sendo observado e ergueu devagar a
toalha de renda. Em seguida mergulhou, desaparecendo.
A enorme mesa de madeira escura da sala de jantar, com pés de bolas sobrepostas, estava sempre
coberta com uma toalha de renda que ia até o chão. Sob a renda, havia uma espécie de forro, um
pouco mais curto, feito de um tecido adamascado que barrava a luz, transformando o espaço debaixo
da mesa num perfeito esconderijo. E era ali que o menino costumava passar as manhãs, escondido,
quando todos na casa pensavam que estava lá fora brincando.
Ele agora olhava em torno com seus grandes olhos castanhos, tão escuros quanto os pés da mesa. O
sol brilhava no quintal e a casa inteira vivia grande agitação, por conta da festa do dia seguinte, mas
ali naquela sala raramente aberta – e mais ainda dentro de seu esconderijo – fazia sombra e silêncio.
Precisou de algum tempo para se acostumar à penumbra. Só então começou a perceber as ranhuras
do chão de tábuas corridas, os desenhos na madeira, as pequenas imperfeições. Isso era uma coisa de
que gostava naquele seu observatório. Dali, podia ver o avesso das coisas: as entranhas da mesa, com
seus encaixes onde a madeira não fora bem polida, o ponto onde o chão era mais gasto, encerado com
menos capricho. Entrava em contato com a intimidade dos objetos, com seus segredos.
De repente, uma porta se abriu.
E o menino ficou imóvel, à espera.
Estranho que entrassem na sala de jantar em dia de semana. Nunca faziam isso. Ouviu primeiro os
passos, depois o ruído dos ferrolhos da janela, bem perto de onde estava. Continuou quieto. Talvez
fosse por causa da festa no dia seguinte. Com certeza iam abrir a sala para arejar. Agora, um barulho
surdo, como um soco. Em seguida, o estalo das janelas contra as paredes externas. E o sol inundou a
sala, num segundo.
O menino piscou os olhos, atordoado.
Depois abriu-os bem. E sorriu, com surpresa.
Um raio de sol varava a renda, despejando-se no chão, onde estava ajoelhado. A luz, incidindo sobre
o tecido do forro, tornara cor de pêssego o ar à sua volta, onde voejavam grãos de poeira, como se
fossem pássaros num templo abandonado. Seu pequeno mundo – o mundo onde as coisas existiam
pelo avesso – brilhava.
O esconderijo se transformara numa catedral de luz.

Um dia, um gato
(13/6/1999)
Tudo aconteceu muito rápido. Só me lembro de ter ouvido um estrondo, depois um tremor imenso,
um grito em algum lugar distante – foi só. E o mundo acabou.
Estava dormindo quando aconteceu. Ou adormeci depois, não sei. Acho que desmaiei. Mas é possível
que o mundo tenha mesmo acabado porque a verdade é que agora abro os olhos, arregalando-os com
toda força até senti-los secos e, ainda assim, não vejo nada.
Tento mover meus músculos. Estico as costas com cuidado e, no silêncio enorme que me cerca, ouço
os pequenos estalos das vértebras. Assim. Estou conseguindo. Devagar. Sinto alguma coisa fria –
parece uma parede – colada à lateral do meu corpo, mas acho que se me arrastar para a frente
conseguirei sair daqui. O chão está úmido, como se encharcado por uma substância viscosa. Talvez
signifique perigo. Mas não devo pensar nisso agora. O importante é que o chão escorregadio facilita
meu deslocamento. Vou em frente, esgueirando-me por espaços ínfimos, menores que meu corpo.
Sou bom nisso.
Após alguns minutos de esforço, sou recompensado. Percebo ao longe, como se ao fim de um túnel,
uma claridade.
Agora, aqui está. Mais este obstáculo e estarei livre. Empurro a pedra com o corpo. É uma lasca de
cimento, afiada, que me raspa a orelha. Sinto uma dor aguda. Acho que me feri. Mas não vou desistir.
A luz explode em meus olhos, seu clarão quase me cega. Sinto o ar frio de primavera nas narinas – e
sei que este é o cheiro da liberdade. Mas, assim que minhas pupilas se ajustam à luz do dia, tomo um
susto: a poucos passos de mim há um homem, segurando uma estranha máquina preta. Será que vai
me matar?
***
O cinegrafista ajeita sua câmera e começa a rodar. Diante dele, os escombros de uma casa nos
arredores de Pristina, capital do Kosovo, na Iugoslávia. Mais uma casa destruída pelos bombardeios
– apenas mais uma, entre tantas.
De repente, alguma coisa se move entre os escombros. Ele ajeita o foco, atento.
E vê, com surpresa, surgir de trás de uma lasca de concreto um gatinho branco, os olhos azuis
piscando muito ante a claridade do dia. Sua orelha sangra, o pêlo do pescoço está escuro, as patas
também, como se sujos de graxa, mas ele dá um salto para a frente, com grande agilidade. E depois
fica parado, olhando o cinegrafista com sua máquina.
Parece perplexo. Seus donos com certeza estão mortos. Muita gente está morta. Mas ele saiu ileso do
bombardeio. Emerge daquele cenário de destruição, com seus olhos azuis cheios de perguntas. É um
sobrevivente da fúria dos homens.
Medo do escuro
(20/6/1999)

Aconteceu comigo – logo eu, que sempre gostei de histórias de assombração. E foi na noite do
blecaute. Aquele. Eu estava chegando ao prédio onde moro, no Leblon, quando de repente a
escuridão se fez. Senti uma inquietação. Não tenho medo do escuro, mas havia algo de incomum
naquela treva. E logo, pelo rádio de pilha do porteiro, soube da gravidade da situação.
Ainda esperei por quase meia hora, mas acabei decidindo subir, mesmo morando em andar alto. Não
ia ficar ali embaixo a vida toda. Meus olhos se acostumariam. Era só segurar o corrimão e ir contando
os lances para não me enganar de andar. Fui.
Nos primeiros degraus, em curva, ainda recebia a luminosidade que emanava da vela sobre a mesa da
portaria. Mas no segundo lance, não. A partir dali, o mundo desapareceu. Arregalei os olhos, inúteis.
Restavam-me apenas pés e mãos. Arrastei-os, lentamente, os primeiros sobre os degraus, as outras
sobre o corrimão, únicas provas da existência do universo. Nunca, nem nas fazendas da infância, vira
uma escuridão assim. Singrei o espaço como se fosse uma cunha, fendendo a treva densa, palpável. E
o silêncio. O silêncio que formava, junto com a escuridão, uma matéria negra e macia, envolvendo-
me à medida que subia.
De repente, entre o sexto e o sétimo andar, ouvi um ruído. Meu coração deu um salto. Será que outra
pessoa se aventurava por aquele mundo da cor do nada? Dei mais uns passos, pisando o chão liso do
pequeno hall. E ouvi o ruído outra vez. Agora nitidamente, a poucos passos de onde estava. Um ruído
furtivo, abafado, como um roçar de panos ou o ofegar de uma respiração.
Se era alguém enfrentando o escuro, como eu, por que, percebendo minha aproximação, não dizia
alguma coisa? O que quer que estivesse ali, parecia à espreita.
Senti os pêlos dos braços se eriçarem. Tive ímpetos de correr. Mas como? Estava aprisionada pela
escuridão. Os dedos crispados sobre o corrimão frio, pensei em gritar – mas nesse exato instante a
luz voltou.
Olhei o hall à minha frente. Não havia ninguém.
Disparei escada acima, pulando os degraus de dois em dois, respirando aos arrancos. Nunca mais,
nunca mais, pensei, ao fechar a porta do apartamento.
Desde então, tenho dormido mal. Parece bobagem, mas passei a ter medo do escuro e deixo sempre
um abajur aceso na cabeceira, madrugada adentro. Mesmo assim, às vezes sonho com uma presença
assombrada, que ronda meu quarto, à espreita. Não sei o que quer, mas tenho a impressão de que
está à espera do dia em que, distraída, eu acabe cometendo o erro de apagar a luz.

Cristal e chumbo
(27/6/1999)

A mulher observa a taça que tem entre as mãos. A delicadeza da haste, facetada, abrindo-se em
seguida para formar o bojo de matéria finíssima, sulcada de pequenos arabescos. Contra a luz, o
vinho cor de sangue só faz realçar a delicadeza dos desenhos escavados na substância transparente.
E ela pensa nas palavras que ouviu sobre a feitura do cristal. Para se chegar a ele, para se obter sua
transparência e leveza, quase impalpáveis, é preciso acrescentar chumbo ao vidro.
Sim. Chumbo.
É o chumbo, matéria grosseira e pesada que, adicionada à pasta de vidro quente, dá a maleabilidade
necessária para que esta se transforme em cristal. Mãos também grosseiras, brandindo garras de
ferro, sob o calor do fogo, farão o resto. E, assim, o cristal, com sua beleza quase beatífica, nada mais
é que a mescla de chumbo, músculos, suor, ferro e fogo. Elementos brutais unidos, num cenário de
escuridão e calor, para compor – através de um sopro – a forma mais delicada do vidro.
Pensando nisso, a mulher depõe a taça sobre a mesa, com um sorriso triste.
Em seguida, ergue-se. E dá com a própria imagem, refletida no espelho que cobre toda a parede da
sala. Os cabelos castanhos encaracolados descendo até os ombros, o rosto redondo, os olhos muito
abertos, brilhando.
Talvez tenha sido melhor assim, pensa. De certa forma é bom estar novamente sozinha. A dor do
amor, sua velha conhecida, ali está, de volta, envolvendo-a mansamente. Mas não faz mal. Sabe que,
como das outras vezes, irá em frente, ainda mais forte. As lágrimas são apenas um tempero, o sal da
vida. Gotas poderosas que, como o chumbo no vidro, criarão nova matéria, cheia de uma beleza
renascida.
Caminha devagar até a janela e olha a paisagem lá fora.
Através dos quadrados de vidro da varanda, o crepúsculo despeja suas cores sobre a Lagoa, que
transborda de dourados e lilases. Ao fundo, nas montanhas azuladas, a noite já chegou, mas as águas
ainda guardam muita luz em sua superfície brilhante.
Lá estão os remadores. Remar, assim como pescar, é coisa que geralmente se faz nas horas de
transição, quando o dia vira noite ou vice-versa. Hoje, os barcos são muitos. Mas – coisa curiosa – há
em cada um deles apenas um remador. Várias solidões sobre o espelho d’água mais lindo do Rio.
A mulher sorri outra vez, caminhando de volta para o centro da sala. Debruça-se sobre a mesa e
recolhe a taça, ainda com umas gotas de vinho. E, agora sem tirar os olhos da própria imagem no
espelho, ergue o cristal finíssimo, num brinde:
– Ao chumbo.

O perfume do Rio
(4/7/1999)

Eu estava na praia quando caiu o temporal. Era um meio de tarde, não mais de quatro horas, e
lembro-me de que estava deitada de frente para o mar do Leblon, lendo. De repente, senti uma
chicotada nas costas. A areia me fustigou com tal violência que a revista me foi arrancada das mãos.
Tapei os olhos, esperando que a ventania passasse. Mas não passou. Depois de me levantar com
dificuldade, enquanto o vento me empurrava em direção ao mar, recolhi minhas coisas como pude e
virei-me em direção à rua – justamente de onde vinha o vento. Enfrentei-o, caminhando quase
agachada e ouvindo a algazarra dos banhistas que, sem exceção, corriam para se abrigar.
Num brevíssimo intervalo entre duas lufadas, olhei para cima. O céu, por trás dos prédios, era de um
negro profundo, parecia saído de um filme de ficção científica. Um raio e um trovão simultâneos me
fizeram baixar a vista e apertar o passo.
Não tinha ainda alcançado o outro lado da Delfim Moreira quando a chuva caiu. Uma chuva
desalmada, de instintos assassinos, que me ensopou em segundos.
Corri para uma das ruas transversais, procurando abrigo. A rua estava deserta, ninguém à vista. Nem
qualquer lugar que pudesse me servir de refúgio. No Rio, os prédios se cercaram todos de grades de
ferro e suas marquises ficaram para além das lanças pontiagudas, em território proibido. Já não
servem a ninguém em dia de chuva.
Eu estava a poucos quarteirões de casa, mas água e vento me batiam com tamanha violência que eu
mal podia caminhar. Não havia alternativa a não ser parar em algum lugar e esperar passar a
tormenta. Lembrei-me, então, do pequeno largo, um recuo, do lado direito da rua, que imaginei
abrigado, senão da chuva, pelo menos da força do vento. Ainda com dificuldade e sentindo a água me
açoitar as costas nuas, caminhei até lá.
O largo, cercado de prédios baixos e amendoeiras, me acolheu. De fato, ali ventava menos. Tremendo
de frio e susto, esperei que a chuva passasse, encostada ao muro de um prédio antigo, cujas pedras
ainda emanavam o calor da tarde. Abraçada à minha bolsa de lona, tão molhada quanto eu, fiquei ali,
pensando em toda sorte de histórias sobre raios fulminantes.
Foram muitos minutos até que a tormenta recuasse. Mas, quando isso aconteceu, foi como se o
mundo emergisse de uma paixão avassaladora e respirasse, salvo. Fechei os olhos.
E foi então que o cheiro das amendoeiras me invadiu.
Um cheiro ácido, verde, úmido – a alma das árvores delas se desprendendo, leve e lavada. Um aroma
que a chuva acentuara, sem dúvida, mas que eu reconheci porque já o sentira antes, muitas vezes,
sem que disso me desse conta. Agora ele estava apenas mais forte, mas a verdade é que sempre
estivera lá. O cheiro das amendoeiras.
É esse o perfume do Rio.

No aeroporto
(11/7/1999)

Estava tomando café no aeroporto Santos Dumont com uma sensação de apocalipse na boca do
estômago. Não sabia bem por quê. É verdade que tinha lido, ao acordar, uma notícia no jornal sobre a
profecia de Nostradamus, segundo a qual o mundo ia-se acabar por aqueles dias. Verdade também
que sempre tive medo de avião, mesmo de vôos curtos, entre Rio e São Paulo, por exemplo. Verdade,
ainda, que a cidade amanhecera envolta numa névoa tão baixa que eu tinha a impressão de poder
cortá-la com faca, se quisesse. E, além da névoa, chuva. Claro que o aeroporto estava fechado. E claro
que as pessoas andavam de um lado para o outro do saguão como feras enjauladas, gritando em seus
celulares, enquanto outras tentavam falar nos orelhões, sem saber que para o sistema de telefonia do
país o fim do mundo já tinha chegado.
Mas nada justificava a estranha sensação que me afligia. Suspirei. Tinha pedido um expresso com
creme, que veio fumegante. O café me faria bem.
Mal tinha acabado de dar o primeiro gole, quando ouvi a voz do vendedor de bilhetes, fazendo seu
pregão. Continuei tomando o café, sem me virar. Nunca dei sorte com loteria. Mas, de repente,
quando estava bem atrás de mim, o vendedor disse:
– 1952!
Parei com a xícara no ar. Era o ano do meu nascimento. Estranho. Coincidência. Seria um aviso?
Bobagem. Mas que havia alguma coisa estranha acontecendo, havia. O dia parecia tocado pelo sopro
do sobrenatural. E se eu comprasse o bilhete? Que nada. Dei outro gole no café, resistindo à tentação.
Não olhei para trás.
Terminado o café, caminhei até a fileira de cadeiras, percebendo que um homem cheio de embrulhos
se levantava. Pronto. Sentada, lendo o livro de Carlos Fuentes que carregava comigo, a espera seria
fácil. Além do mais, do lado de fora, o tempo começava a clarear.
Os minutos se passaram enquanto eu, distraída, mergulhava através das fronteiras de cristal de
Fuentes, esquecida do mundo. De repente, algo me chamou a atenção. Era a voz do vendedor de
bilhetes, outra vez.
– 1939. É a certa de hoje!
Silêncio.
– 1970 – insistia ele. Virei para trás e observei. Estava passando diante das pessoas sentadas. Vinha
em minha direção. Baixei a vista, sem querer ser molestada. E o vendedor, ao passar bem diante de
mim, disse:
– 1955.
Sorri, abraçada ao livro, compreendendo tudo. Ele observava as pessoas e, por seu aspecto, calculava
num segundo o ano do nascimento. Assim, atraía a atenção do freguês. Doce malandragem carioca.
Dei um suspiro, a sensação de sobrenatural se desvanecendo. O dia não seria tão mau assim. Afinal,
entre o cafezinho e o saguão, eu tinha remoçado três anos.

Passando batom
(18/07/1999)

A mão alva, de dedos longos e unhas bem cuidadas, mergulha na bolsa de couro cru. Tateia em seu
interior, provocando ruídos roucos, abafados e depois um tilintar de chaves. Tateia um pouco mais.
Agora, sim. Encontrou. A mão retorna à superfície, os dedos finos surgindo das entranhas da bolsa de
couro e carregando o pequeno objeto procurado. É um objeto cilíndrico, forrado de tecido brilhante,
adamascado. Pouco maior do que seu dedo. Agora, ela segura-o com as duas mãos. E, fazendo uma
pequena pressão, abre a tampa. É um estojo, um estojo diminuto, que guarda outro objeto cilíndrico,
de metal prateado: um batom. A tampa do pequeno estojo tem em seu interior um espelho mínimo,
retangular, capaz de enquadrar em sua superfície apenas a imagem de uma boca, mais nada.
Sua boca. Lábios carnudos e sensuais que se entreabrem, deixando à mostra o branco perfeito dos
dentes. Abre-os um pouco mais, mas torna a fechá-los, pois que abertos eles já não podem ser
captados por inteiro pelo ínfimo espelho. Sorri. Seus dentes surgem, quase agressivos em sua beleza.
E uma vez mais cerra os lábios, pousando-os com naturalidade um sobre o outro.
Com a mão direita, os dedos em pinça, tira de dentro do estojo o batom prateado. Destampa-o,
torcendo-lhe a base e fazendo surgir, num movimento ascendente, a matéria vermelha. O olhar volta
a fixar-se no espelho. Os lábios se preparam para receber a tintura cor de sangue, esticando-se sobre
os dentes. Ela pinta primeiro o lado esquerdo, depois o direito e em seguida une os lábios para depois
soltá-los, como num beijo.
Um beijo.
É nesse instante, nesse exato instante, que a verdade a trespassa.
Por alguns segundos nada faz, imóvel ante a revelação que se lhe apresentou, transparente. Tardia.
Continua fitando aquela boca pintada de vermelho, uma boca perplexa e muda. Só ela ali impressa,
na superfície espelhada.
Logo sorri com amargura, quase com pena de si mesma, pensando em como fora tola por jamais ter
pensado naquilo antes.
Ele dizia que não gostava de vê-la de batom. E, durante anos, todos os anos em que convivera com
aquele homem, ela evitara pintar os lábios – para agradá-lo. Anos e anos de madrugadas passadas
sozinha, de fins-de-semana atirada na cama provando o gosto amargo do chocolate que a fazia
lembrar-se de que ele estava em casa com a família. Anos feitos de domingos, de feriados, de natais,
de festas de fim de ano temperados pelo travo da solidão e do ressentimento. Só agora, de um jato,
ela compreendia tudo. Entendia afinal a verdadeira razão que o levara a pressioná-la para que jamais
pintasse os lábios.
Assim ele não se arriscaria. Nunca chegaria em casa com a camisa manchada de batom.

Esculturas de gelo
(25/7/1999)

Fui certa vez a uma exposição de esculturas de gelo. A céu aberto, num parque, à noite, os artistas
trabalhavam nelas, ferindo os imensos blocos com seus martelos e cinzéis. Tremendo de frio, o
casacão de lã apertado contra o corpo, assisti ao lento nascimento das formas: homens, pássaros,
navios, que foram surgindo pela mão dos artistas, cuidadosamente trabalhados, cada ângulo, aresta,
côncavo, convexo, tudo sendo escavado no cristal gelado.
Um trabalho árduo, como talvez deva ser o de qualquer obra de arte. Árduo porém vão – mais vão do
que nunca. Depois de tanta lida, assim que estivessem prontas, as esculturas começariam a derreter.
Gota a gota, como se pranteassem a si mesmas, elas se desfariam e em pouco tempo seriam apenas
uma poça d’água no chão do parque.
Fiquei olhando aquelas mãos enluvadas, enrijecidas pelo frio, que trabalhavam, incansáveis, por
horas e horas arremetendo os instrumentos contra os blocos gelados, concentrando nesses gestos
toda sua força, seus sentimentos, sua beleza – para nada. Apenas por um momento efêmero em que
as esculturas brilhariam, nuas, sob as luzes do parque, antes de começar a morrer. Depois, observei
os olhares das pessoas que cercavam os artistas. Pensei ver neles uma chispa de medo, uma urgência,
uma agonia, quase como se todos ali temessem que os blocos de gelo derretessem antes que as figuras
estivessem prontas.
Sei que há outras formas de arte transitória, feita com flores, água, vento, fogo. Experiências
sensoriais, onde a obra de arte não passa às vezes de um calor, um toque, um cheiro. Mas aquelas
esculturas geladas me comoveram, pois eu sabia que, por um instante, quando estivessem prontas –
apenas por um instante –, elas seriam reais. Palpáveis, concretas, suas formas estariam ao alcance de
nossas mãos, ainda que nos queimassem os dedos com sua matéria gelada.
E, de repente, sozinha no parque, fiz uma estranha associação de idéias. Pensei nessas pessoas que,
numa mesa de bar, são capazes de contar tantas e tão ricas histórias, sem jamais escrevê-las.
Histórias que nunca se transformarão em crônicas, nem habitarão as páginas de um livro. Alguns
dizem que Otto Lara Resende era um pouco assim, que jamais chegou a escrever com a mesma força
com que contava histórias em rodas de amigos. Outros reclamam que Albino Pinheiro não escreveu
tudo o que sabia sobre o Rio, sobre nossa música popular. Não sei. Mas sei de figuras como o
fotógrafo Paulo Garcez, com sua agudíssima crítica social, ou como Ivan Lessa, esse verdadeiro livro
vivo, que teima em não ancorar tudo o que sabe no papel. Conversar com eles é um pouco assim, é
ter diante de si momentos de pura arte, ainda que transitória. Eles são nossas esculturas de gelo.

As chamas de Woodstock
(1/8/1999)

O homem vê as chamas de Woodstock, diante do aparelho de TV. E afunda na poltrona, o coração


acossado por um sentimento desconhecido. É como se estivesse ali, no epicentro da destruição,
queimando naquele fogo, ardendo com os pedaços de ferro calcinados, pilhando, saqueando,
soltando uivos selvagens, seu coração uma brasa latejando em meio às chamas.
Woodstock.
Ele estava com 20 anos quando o outro, o verdadeiro, aconteceu. Na época, trancado em seu quarto,
lendo Rimbaud, sentiu uma vaga inquietação ao ver as imagens dos jovens nus, cobertos de lama e
flores, com olhos de desvario. Não fazia parte daquela juventude. Não adotava seus gestos, suas
bandeiras, vivia imerso num mundo próprio, feito de solidão e silêncio. Era pária, apátrida,
forasteiro. Pior do que isso, era um velho – aos 20 anos. E não podia haver sina pior do que ser um
velho nos anos 60. Foi talvez por isso, por não fazer parte daquela euforia, que sentiu, ao saber do
primeiro festival, um estranho presságio.
Havia ali, naqueles rostos, em sua loucura frenética, um sinal. A revolução da contracultura, feita
pelos jovens do pós-guerra, nos anos 50 e 60, chegava a um clímax radical. E diz a História que uma
revolução, quando se radicaliza, mergulha no Terror.
Percebeu isso com toda a certeza, tomado por absurda lucidez. E a lucidez, assim como a velhice, era
também um pecado naqueles tempos. Mas não pôde evitar.
Só anos depois compreenderia o quanto estava certo – quando o mundo fosse tomado pela
brutalidade, quando o sistema digerisse toda a alegria e liberdade, cuspindo-as de volta na cara dos
jovens. Matando-os. A euforia inocente das drogas transformada em cartéis milionários cujas garras
se estenderiam sobre o mundo. O sexo livre gerando a banalização e a Aids. A estética da destruição
tomando conta de tudo.
Era simbólico que, 30 anos depois, a reedição, comercial e falsa, do festival terminasse em violência,
fogo e destruição. A imagem perfeita de um sonho que não acabou – foi vendido.
Com um suspiro, ele aperta o botão do controle remoto. Fica por um instante imóvel, no silêncio da
sala, tentando entender a sensação desconhecida que lhe tomou o peito. E de repente percebe que,
afinal, não é um sentimento ruim. Talvez aquelas chamas sejam uma espécie de purificação, um
exorcismo de fantasmas que o assombraram 30 anos antes, quando era apenas um menino-velho,
com idéias próprias. E, dando de ombros, ele se levanta. Está sorrindo. Afinal, sabe que hoje é muito
mais jovem do que era em 1969.
Barcelona
(8/8/1999)

O rapaz acordou aos poucos, sem saber bem onde estava. Olhou em torno, esfregando os olhos – e
viu a mulher diante do espelho. Estava envolta na luz da manhã, que penetrava no quarto pela
cortina entreaberta, despejando devagar seus raios no chão de madeira clara. Havia naquela cena
tanta beleza e lentidão que o rapaz, por um instante, se perguntou como era possível a luz viajar a
300 mil quilômetros por segundo.
Mas logo entendeu. Não era a luz. Era ela. Na mulher, em seus gestos diante do espelho, é que se
concentrava todo o vagar e toda a beleza, fazendo com que a luz, tímida, estancasse seus raios.
Sentada na penteadeira, escovava os cabelos negros, erguendo e soltando as mechas sem pressa,
deixando que escorressem sobre os ombros. Estava pronta, vestida para sair, a blusa branca de
algodão, quase severa, de punhos abotoados. Talvez estivesse com pressa. Mas seus gestos lentos
eram um contraponto, pareciam querer retê-la ali.
– Onde você vai? – perguntou o rapaz, esfregando mais uma vez os olhos.
A mulher voltou-se, sem sorrir. No mesmo segundo, começou a escovar os cabelos com mais energia.
– Barcelona – respondeu.
O rapaz sentou-se na cama, franzindo a testa. Sabia pouco sobre ela. No bar, onde a encontrara,
tinha-lhe dito que era aeromoça. E ao irem juntos para o apartamento dela, ele estivera certo de que
seria apenas por uma noite. Apenas por uma noite. Mas agora…
– Mas… agora?
– Tenho de ir – disse ela, escovando os cabelos cada vez mais rápido. E fazendo-lhe a concessão de
um mínimo sorriso:
– É a escala.
O rapaz remexeu as cobertas, como se fosse levantar-se, mas não o fez. Simplesmente continuou
olhando a mulher, em silêncio. Barcelona. Tinha a sensação de já ter vivido aquela cena antes.
Um déjà vu. Ou talvez houvesse naquela mulher, diante do espelho, qualquer coisa de especial, que o
perturbava. O silêncio cresceu entre eles, palpável. E, muitos segundos depois, ele falou:
– Quero que você fique.
Ela abriu os braços, indefesa.
– Não posso. É a escala – repetiu, uma tentação cintilando no olhar.
E de repente o rapaz se lembrou. Barcelona. Era o título de uma música americana, sobre um
encontro assim.
– Não estou falando de ficar no Rio – disse ele, levantando-se.
A coberta, que até então o cobria, foi ao chão. E ali ficou, a seus pés, como um fantasma derrotado.
– Quero que você fique comigo.

Gostei mais do outro


(15/8/1999)
Era uma menina, ainda, de seus 8 ou 9 anos, e tinha acabado de chegar ao Rio de Janeiro. Vinha de
Curitiba, onde vivera alguns anos com a família, e se instalou numa pensão, numa rua transversal de
Copacabana. Mas, nos primeiros dias, mal pôde aproveitar as belezas da cidade à sua volta, pela
simples razão de que vivia em pânico: com medo do fim do mundo. Era um medo infantil, irracional
e avassalador, desses que fazem a criança sofrer muito e que se realimenta de si mesmo,
transformando-se em obsessão, em monomania. A menina estava obcecada. E o medo crescia
alimentado não só pelas fibras íntimas do pavor, mas também pelas conversas que se sucediam à sua
volta. Porque todos diziam e repetiam que o mundo ia acabar. E a menina não conseguia pensar em
mais nada.
À noite, era ainda pior. À noite, como se sabe, os medos crescem. Os pavores tomam forma, ganham
consistência. Num pequeno quarto de pensão, sozinha enquanto todos dormiam, que fantasmas não
assombrariam a menina vinda de longe? De olhos abertos na penumbra, ela tentava adivinhar o
formato das sombras, vendo entrar pela janela as luzes difusas da cidade grande, do mundo
desconhecido – esse mundo que tinha seus dias contados. Mas quando seria? Essa, a angústia maior.
Daquela vez, não havia um dia marcado. O fim poderia acontecer a qualquer momento.
Até que, numa madrugada, aconteceu.
A menina tinha adormecido. Há dias vinha tentando manter-se em vigília, com medo de que o
mundo acabasse enquanto dormia, mas justamente naquela noite fora vencida pelo sono. E dele
despertou em meio ao mais completo pavor. No primeiro segundo após abrir os olhos, crispou as
mãos na borda do lençol, estremecendo. Ouvia estrondos. Baques, correrias, gritos. O chão tremia.
Pronto. Só podia ser o fim do mundo. A hora era chegada.
Levantou-se, mal sustentando-se nas pernas. Queria fugir, mas não conseguia despregar os olhos da
janela, de onde vinham os ruídos assombrosos. E, amparando-se nas paredes, foi até lá. Espiou. E o
que viu foi, de certa forma, o apocalipse.
Era a feira, que estava sendo armada na rua.
***
Foi Rossella Terranova quem me contou essa história. Aconteceu com ela em 1950 – fato curioso,
pois nunca soube de rumores de fim de mundo no meio do século. Quando conversamos, eu já estava
cansada de toda aquela história de Nostradamus, eclipse solar e de pessoas se reunindo em Brasília
ou no castelo do Drácula (o que dá quase no mesmo) para esperar o mundo acabar. Mas, com o relato
de Rossella, dei boas risadas. E, agora que a semana passou, posso dizer: em matéria de fim de
mundo, gostei mais do dela.

Em cima do piano
(22/8/1999)

A sala é grande, de pé direito alto e assoalho encerado, com grandes vasos de barro trabalhado junto
à janela. Deles saem arbustos de folhas muito lustrosas, cujas sombras são projetadas no teto pelos
fachos de luz que emanam do chão. Os sofás brancos, de tecido rústico, contrastam com o colorido
dos livros nas estantes, que cobrem todas as paredes – exceto a do piano. É um piano de parede,
castanho escuro, quase negro, cujo topo encontra-se recoberto por um pano rendado, antigo. Bem no
centro, sobre o pano de renda, há uma estatueta de cerâmica porosa, de forma indefinida mas
lembrando vagamente a figura de uma mulher. À esquerda da estatueta, está o gato.
É preto e gordo, de pêlo curto, porém de cauda vistosa e felpuda que o envolve como se o abraçasse.
Enrolado sobre si próprio, ele mantém as patas dobradas para dentro enquanto cochila
gostosamente. Abre uma nesga de olhos assim que a moça entra, mas logo volta a dormir, com um
suspiro profundo.
Os minutos se passam sem que nada aconteça. A empregada que atendera à porta desapareceu. A
moça espera pela dona do apartamento. Vira o anúncio pela manhã e, ao entrar ali, sentira que era
aquele o lugar onde gostaria de morar. Espera ansiosa pela dona da casa, querendo simpatizar com
ela para que o negócio se concretize. Há uma vaga para alugar na casa.
Caminha até a janela. A empregada não volta. Nada acontece. Deixam-na ali, sozinha, ela e o gato.
Vira-se. Olha para o piano, mas ele agora está vazio. Até o gato desapareceu.
De repente, surge na sala uma senhora. É uma mulher de porte imponente, vestida com uma túnica
que lhe deixa à mostra o colo branco e farto. Sorri para ela, estendo-lhe a mão. Aponta-lhe o sofá.
Sentam-se. Mal começam a conversar e surge na sala uma gatinha ruiva, de olhos amarelos, muito
abertos. Caminha até junto da moça com seu passo elegante e, sem cerimônia, pula no colo estranho,
aninhando-se. A moça sorri, acariciando a cabeça da gata.
– E onde está o outro, aquele gato preto que estava dormindo em cima do piano? – pergunta.
A dona da casa olha-a em silêncio, como quem não compreende.
– Gato preto?
A moça faz que sim, virando-se para olhar o piano. Mas antes que diga alguma coisa a outra recomeça
a falar.
– Eu tinha, sim, um gato preto. E ele gostava de dormir em cima do piano.
Vacila um pouco e em seguida completa, com um estranho sorriso:
– Mas ele morreu há oito anos.

A prova
(29/8/1999)

Uma pequena morte. Fazia dois dias que terminara de ler o livro de Robert Silverberg e o título ainda
dançava em seu pensamento. Abriu a pasta de couro preto e espiou de relance. Aproveitando a
viagem de trabalho a São Paulo, levava o livro para devolver à amiga que o emprestara. Era
despretensioso, parte de uma coleção de ficção científica, e narrava a história de um tal David Selig,
com seu dom, delicioso e maldito, de ler a mente humana. Mas, por alguma razão, deixara-a
impressionada.
Fechando a pasta, olhou através da janela oval do avião. Lá fora, o céu era uma só massa cinzenta,
que apenas deixava vislumbrar o tapete escuro e crespo das matas, os aglomerados urbanos em
manchas cada vez maiores, uma ou outra curva de rio. Mas logo o trançado das casas ganharia
volume e se ergueria em prédios mais e mais altos. E a cidade surgiria, repentina como um tumor,
tomando tudo.
Endireitou-se na poltrona, com a vaga sensação de estar sendo observada. Olhou em volta, espiando
os passageiros que estavam em seu ângulo de visão. Alguns conversavam, mas a maioria estava de
cabeça baixa, lendo ou preparando-se para a chegada. E, sem saber bem por quê, ela voltou a pensar
no livro de Silverberg.
Será que existiam pessoas como David Selig, capazes de ler pensamentos? Pessoas comuns, que
pudessem estar sentadas ali, a bordo de um avião, a caminho de São Paulo? Afinal, no livro, Selig era
um homem como outro qualquer. O dom lhe trouxera mais maldição do que delícia, pois, embora
lesse os pensamentos dos outros desde criança, não sabia direito o que fazer com aquilo. Vivia uma
vida medíocre e a verdade é que a telepatia só lhe rendera uma forte sensação de inadequação diante
do mundo.
Suspirou, colocando o encosto da poltrona na posição vertical. Num instante, os prédios já quase
pareciam raspar o bojo do avião e a cabeceira da pista surgia, como gigantesco tabuleiro de xadrez.
Fechou os olhos, esperando o impacto das rodas no chão, seguido da freada sempre interminável.
Mas, enquanto crispava mãos e pés para ajudar o avião a parar, continuava pensando em Selig.
Será que existiam pessoas como ele?
Quando o estalar simultâneo de dezenas de cintos de segurança sendo desafivelados soou em seus
ouvidos, ela se levantou, curvando-se para não bater com a cabeça no bagageiro, a pasta preta na
mão. E seu olhar foi atraído para o de um homem, vestindo um terno escuro, de pé no corredor do
avião. Encarava-a, sorrindo.
– Existem, sim – disse, olhando-a nos olhos. E, antes que ela pudesse dizer alguma coisa, seguiu em
direção à porta do avião, desaparecendo junto com os passageiros mais apressados.

A morte da pedra
(5/9/1999)

Primeiro, um estrondo. Como se uma enorme panela de pressão explodisse, de repente, liberando o
ar furioso, aprisionado. Depois, o chicotear estrondoso do ar comprimido sendo liberado, durante
muitos, intermináveis, segundos, talvez minutos, como se um balão de gás – imenso, sem fim –
volteasse no céu, enlouquecido, chicoteando para fora seu conteúdo. Vozes de homens gritam ordens,
em meio a sons metálicos, estilhaçados, de engrenagens que se põem em marcha. E de repente,
terminada a introdução, surge de uma só vez, o troar único, compacto, uníssono da sinfonia dos
horrores: o metralhar simultâneo de dez ou 15 britadeiras que, com rigorosa simetria de sons, uns
agudos, outros mais graves, mas todas trabalhando ao mesmo tempo, se manterão no ar não por
segundos ou minutos – mas por muitas horas. O martelar ensurdecedor do metal devorando a pedra,
soltando faíscas, lascas, pedaços, pó. Partículas de pedra morta, finíssimas, em tudo penetrando,
suspensas no ar e afinal caindo à terra, fazendo toda a paisagem nos arredores parecer nevada. Mas
toda essa massa de sons e poeira será suplantada, de tempos em tempos, por um terror maior: o
monstro vermelho de garras compridas, o guindaste ou trator que, como um bate-estacas acelerado,
vai se atirar sobre a pedra com fúria, quebrando os pedaços já lascados em blocos cada vez menores,
perfurando-a como se fosse uma imensa broca de dentista. O som é aterrador e de tão poderoso
parece espancar o ar com socos gigantescos. Mas de quando em quando, surgem também guinchos
mais agudos, silvos. E é como se a pedra gritasse. A pedra, que ali estava há milhares de séculos, que
de poeira e água e ventos se formou – dia após dia, ano após ano, era após era – e que hoje está sendo
agredida, assassinada, retalhada.
***
Esse é o meu despertar. Minhas manhãs e meus dias. É a minha vida. É com isso que convivo, eu e
todos os meus vizinhos, de segunda a sexta, das 8h da manhã às 5h da tarde, há quase dois anos – há
setecentos dias. Diante da minha janela, no Leblon, junto ao Jardim de Alá, estão desmontando um
morro de pedra, uma pedreira da altura de um prédio de quatro andares, ocupando uma área
equivalente a quase um quarteirão. Ali, vão construir um shopping.
Mesmo aos domingos ou à noite, quando não há barulho ou poeira, é triste ver a paisagem devastada.
Outro dia, alta madrugada, acordei. E fui à janela. Vi a enorme sombra da pedra moribunda, na noite
sem lua. E, naquele instante de triste contemplação, ouvi – pois o dia já quase começava a nascer – o
som de um pássaro cantando, numa amendoeira. Um pássaro solitário, que escolhera ficar para trás,
quando todos há muito haviam fugido daquele cenário de horrores. E seu canto persistente me
comoveu. Apesar de tudo, apesar do homem, é difícil dobrar a natureza.

Domingo no Maracanã
(12/9/1999)

Era um rapaz tímido. Muito tímido. Quase não falava e, quando o fazia, era como se saísse de sua
boca um sopro, um arfar. As palavras vinham ventiladas por um permanente sussurro, como se o
rapaz, em vez de falar, suspirasse. Era franzino de corpo e, desde pequeno, pelas ruas do subúrbio
onde morava, sua fraqueza física recebia por troco a crueldade sem par dos adolescentes. Era
execrado. Cuspido, espancado, corrido de um lado para outro, como se fosse um morfético. Os
meninos que jogavam bola na rua – e todos jogavam – faziam dele, sempre, o seu alvo principal. Era
só o rapaz despontar na esquina e a pelada era suspensa. Todos saíam correndo para bater nele.
A família tentava relevar aquele temperamento estranho. A mãe, uma mulata gorda e de braços
fortes, protegia o menino o quanto podia. E o pai, homem de boa natureza, há muito estava
conformado com aquele filho esquisito. Apenas uma mágoa, secreta, guardava do rapaz. Saber que o
filho não gostava de futebol. Sempre que ia ao Maracanã para ver o Flamengo jogar, convidava o
rapaz, sabendo que ele sopraria um não diminuto como resposta. Mas continuava a fazer o convite,
embora sem esperança, domingo após domingo, ano após ano.
Um dia, enquanto enfiava pela cabeça a camisa rubro-negra, já na porta do quintal, fez a pergunta de
sempre. E, espantado, pensou ter ouvido o sopro sair da boca do rapaz em forma de ‘quero’. Apurou o
ouvido. Perguntou de novo. Seu queixo caiu. O filho concordava. Queria ir com ele ao Maracanã!
Foram. O pai não cabia em si de contente. Nem foi de geral. Achou melhor comprar arquibancada.
Acomodaram-se bem no meio da torcida, um mar de balões coloridos. O rapaz estava circunspecto,
mas pelo menos olhava em torno com curiosidade. Isso deixou o pai satisfeito.
Tudo correu sem sobressaltos até que o juiz deu um pênalti a favor do time adversário, lá pelos 40 do
primeiro tempo. Gritos, palavrões, braços agitados, rostos suados fazendo esgares. O pai do rapaz,
fanático, mordeu a bainha da camiseta, furioso. E o filho só olhando em volta, silencioso. Enquanto o
jogador ajeitava a bola no gramado, diante do goleiro solitário, fez-se um enorme silêncio no estádio.
A torcida se transformou numa só massa de ansiedade. Mas, nesse exato instante, uma voz cortou o
silêncio.
– Todos! – gritou o rapaz, de repente.
O pai olhou para ele, boquiaberto. Nunca, em toda a vida, ouvira o filho falar alto daquele jeito. A
palavra saíra de um jato e seu som, forte e claro, chamara a atenção das pessoas que estavam em
volta. Mas a surpresa foi ainda maior quando o rapaz completou a frase aos berros, com olhos rútilos
e um sorriso desvairado:
– Minha vingança é que daqui a cem anos, todos – absolutamente todos! – que estão agora aqui,
neste estádio, estarão mortos!

Sintomas
(19/9/1999)

Os primeiros sintomas foram externos. Um dia, ao acordar, sob a luz clara que penetrava pela janela
aberta (era dia alto, era um domingo), a mulher percebeu que o ouro de seu anel estava avermelhado.
Virou a palma da mão para cima, para observar melhor. Depois, intrigada, juntando os dedos da mão
esquerda em pinça, retirou da mão direita o anel largo, que venceu a custo as dobrinhas do dedo
médio.
O olhar dela se fixou primeiro no dedo, na marca de sol que o anel lhe deixara, pois não o tirava
nunca. Sem a jóia, sua anatomia parecia vã, um membro assombrado pelo fantasma do anel, aquela
marca branca da pele intocada pelo sol. Depois, só depois, a mulher observou a parte interna da jóia.
Viu, com surpresa, que ali o ouro ganhara uma tonalidade ainda mais sangüínea. À luz da manhã, o
côncavo avermelhado brilhava, apresentando manchas mais escuras, semelhantes às máculas que o
suor de algumas pessoas deixam nos metais. Mas isso nunca havia acontecido com ela.
Levantou-se, inquieta. Tinha tido sonhos estranhos na madrugada e, pelos caminhos formados no
lençol, podia ver que sua noite fora agitada – nela percorrera estradas misteriosas, das quais já não se
lembrava. Foi até a penteadeira antiga, junto à janela, e sentou-se, olhando-se nos olhos. As íris
refulgiam ao redor das pupilas negras, dilatadas, pulsando como se pertencessem a um animal
selvagem. Passou de leve a ponta dos dedos pelos lábios. Estavam ressecados. Por dentro, a garganta
parecia feita de fogo. Mal podia deglutir. Os dedos desceram para o pescoço, deslizando na pele
quente, febril. Aproximando-se do espelho, observou o cordão finíssimo de ouro que não tirava
nunca. Seus aros mínimos também eram agora vermelhos.
Engoliu em seco. O que estaria acontecendo? Que estranha alquimia estaria transformando ouro em
sangue?
Ela não sabia, por enquanto. Mas, por dentro, os sinais da transformação eram ainda mais
espetaculares. Poucas horas antes, a visão de um rosto se estampara em seu córtex visual,
provocando imediatamente alucinados sinais para a amígdala e para os córtices pré-frontais. No
mesmo instante, o estímulo fora avaliado e respostas fulminantes haviam sido enviadas para todo o
corpo e de volta para a amígdala, que por sua vez mandara sinais para o hipotálamo e o tronco
cerebral. Estes, tinham informado aos córtices somato-sensoriais sobre os sinais recebidos,
desencadeando uma tormenta que logo seria decodificada por todos os circuitos neurais de seu corpo.
Ela não sabia, ainda, mas estava condenada. O sangue começara a ferver em suas veias, ameaçando
aflorar à superfície, banhando a pele de um suor desconhecido, causando palpitações, febre, confusão
mental, loucura.
Ela não sabia, ainda. Mas estava apaixonada.

Os ventos
(26/9/1999)

O telefonema pegou-a de surpresa. Atendeu com impaciência, os olhos presos a um livro que tinha
nas mãos, uma história policial que não conseguia parar de ler. Era bom estar sozinha, lendo um livro
de suspense numa noite de ventania. O sábado já estava quase no fim e ela ali, presa naquelas
páginas. O som do telefone era uma intromissão, um estorvo. Atendeu a contragosto.
A princípio, ouviu apenas um chiado, um ruído ondular, como se a ventania tivesse penetrado no
aparelho. Depois, um silêncio. Repôs o fone no gancho, dando de ombros, os olhos novamente fixos
nas páginas que a chamavam. Mas, assim que recomeçou a ler, o telefone tocou novamente. Atendeu.
O ruído, outra vez. Desligou, já irritada. Pensou em tirar o fone do gancho, mas resistiu. Não gostava
de fazer isso. Voltou à leitura, já um pouco desconcentrada. Leu e releu o mesmo parágrafo três vezes,
na certeza de que o telefone voltaria a tocar. E tocou mesmo. Mas, dessa vez, havia uma voz. De
homem.
– Siroco, Zonta, Norte. Você sabe o que é isso?
– O quê??
– Siroco, Zonta, Norte. Você já ouviu falar deles? – insistiu a voz. Falava num sussurro.
Ela franziu a testa, olhando o fone. Só faltava isso. Um maluco passando trote.
– Olha aqui, meu amigo…
– São nomes de ventos.
Ela largou o livro no colo. Estranho. Tinha a impressão de já ter ouvido aquela voz.
– Como? – perguntou.
– Siroco, Zonta, Norte. São nomes de ventos.
Um maluco, só podia ser um maluco. Ia desligar, quando ele recomeçou:
– Alguns ventos vêm do deserto, outros do oceano, mas em sua trajetória eles varrem montanhas,
despejando chuvas, e tornam-se muito secos, cheios de eletricidade. Saiu isso outro dia no jornal.
A mulher olhou para a janela. Lá fora, a copa da amendoeira dançava, enlouquecida. E o vento
começava a gemer nas frestas, como se quisesse entrar.
– Quando chegam às cidades, esses ventos elétricos provocam alterações no sistema nervoso das
pessoas – disse a voz. – E sabe o que acontece?
Ela continuou muda.
– As pessoas enlouquecem.
Instintivamente, a mulher levantou-se e caminhou em direção à janela, que estalava com os
primeiros pingos de chuva. Olhando por entre a copa fechada da amendoeira, viu a sombra de
alguém na calçada. Um homem, com uma capa escura. E, no mesmo instante, ouviu a voz ao telefone
dizer:
– É por isso que eu estou aqui.

Denúncia
(3/10/1999)

Era um sobrado do início do século, com sacadas, pé-direito alto e uma escadaria em curva, cujo vão
formava o espaço do oratório, cheio de imagens barrocas. Foi nesse vão, iluminado pela luz mortiça e
vermelha das lâmpadas dos santos, que o rapaz se escondeu naquela noite. Ali, diante das imagens
que para ele eram apenas estátuas de gesso ou madeira – mais nada –, ficou imóvel, à escuta.
Esperando.
Ao longe, no corredor dos fundos da casa, ouviu ainda o pisar arrastado da velha ama, a caminho do
quarto. Depois, mais nada. Aos poucos, a casa mergulhou em escuridão e silêncio. O rapaz olhou a
própria imagem refletida no vidro do oratório, envolta pela luz carmim que parecia pulsar, como seu
desejo. E de repente ouviu a gargalhada.
Era ela.
A menina proibida, sua paixão secreta, delírio e loucura de noites insones. Era ela. O riso viera do
quarto de hóspedes, onde ela dormia com a prima. A gargalhada era o sinal. Ela ia fugir até a copa,
para encontrar-se com ele.
O rapaz segurou no corrimão da escada, preparando-se para dar o primeiro passo no corredor. Sua
mão estava suada. Já antevia a silhueta da menina na penumbra da copa, encostada ao aparador,
onde os vasos de metal martelado, com tufos de samambaias, brilhavam no escuro. Uma sombra
arfante, à sua espera.
Com a garganta fechada, deu o primeiro passo. Sabia dos perigos que o aguardavam naquela
travessia sobre as velhas tábuas corridas, que gemiam a cada passo. Tomaria todo o cuidado.
Principalmente quando passasse diante do quarto da avó, no fim do corredor. Com seu olhar severo,
acentuado pelo cabelo preso em coque e pelas roupas sempre escuras, a avó parecia farejar sua
paixão pela menina. Não os deixava a sós um instante.
Devagar, ele foi em frente. Pisava as tábuas com enorme cuidado, sentindo a textura da madeira nos
pés descalços. Amparava-se na parede, para aliviar o peso do corpo, tentando quase flutuar acima do
chão. E afinal, ao ultrapassar a porta do quarto da avó, respirou fundo. Sabia que, dali em diante,
seria fácil. Antes da copa, o corredor se abria num pequeno vestíbulo de chão de ladrilhos, com
losangos desenhados. E, ali, ele estaria seguro. Ladrilhos não rangem.
Quando tocou o chão do vestíbulo, o frio do ladrilho ardeu em seus pés como uma chama. Tinha
urgência, agora. E já nenhum medo. Com pressa, deu o primeiro passo. Mas o caminhar descuidado
provocou um forte estalo – tinha esquecido que seus pés estalavam quando corria! – e um segundo
depois ouviu a voz rouca da avó:
– Quem está aí?
Parou, como se alvejado, enquanto uma gota de suor lhe descia devagar pela têmpora. Tinha sido
denunciado pelos próprios ossos.
Angra
(10/10/1999)

Eu estava em Angra, sozinha. Tinha ido passar uns dias na casa que me fora emprestada por uma
amiga. Não sei se vocês já fizeram isso. Ir para um lugar sem televisão ou telefone – absolutamente
sozinho. Não é qualquer um que tem coragem. Mas vale a pena. O isolamento traz uma sensação de
poder, uma euforia desconhecida, uma estranha embriaguez. Era como eu me sentia, naquela tarde
quieta de um dia de semana.
Saíra bem cedo. Pegara a estrada, vendo o asfalto rolar e desaparecer sob a pequena bolha de solidão
que era meu carro, com os vidros fechados, o ar ligado e o som tocando baixinho jazz instrumental.
Ao chegar, o sol já queimava a pele. Fui direto para o mar. A casa de minha amiga fica na ponta de
uma baía de nome singelo, Pingo d’Água, para lá da entrada de Angra e já quase na altura da usina. É
uma baía intocada, ainda. A casa, pendurada na encosta, quase desaparece por entre as árvores e
uma escada de pedra leva a um deque, lá embaixo, para onde fui, assim que cheguei.
E agora, sentada ali, sozinha, olhava o céu, o mar, as montanhas à minha volta. Tudo era imenso,
quieto, desabitado. O céu, de um azul sem nuvens, fundia-se no horizonte ao mar aberto, que se
descortinava à direita. E, diante de mim, do outro lado da baía, as montanhas exibiam seus diferentes
tons de verde, azul e cinza, as mais próximas com a vegetação tão nítida que eu podia discernir o
desenho das copas das árvores. Sob o deque, o mar sussurrava entre as pedras, sonolento e manso.
Deitei de costas sobre as ripas de madeira quente, usando como travesseiro o jornal que trouxera
comigo e que nem chegara a ler, talvez meu único elo com o mundo que deixara para trás. E fechei os
olhos.
Estava assim, de olhos bem fechados, quando senti o tremor.
Um primeiro estremecimento, de dois ou três segundos, pouco mais do que uma vibração. E em
seguida uma explosão surda, subterrânea, que fez estremecer as ripas de madeira sob meu corpo.
Arregalei os olhos, mas não me ergui. Por alguma razão, continuei pregada ao chão, as mãos junto ao
corpo, imóveis. Apenas meus olhos correram nervosos de um lado para outro, em busca de uma
explicação para o estranho tremor. E foi quando vi, no céu azul, por trás dos morros que cercavam a
baía, uma nuvem em forma de cogumelo.
A usina!
Um grito escapou de minha garganta, enquanto eu me erguia de um salto. Apenas para ver, à minha
frente, o mesmo céu azul de antes, as montanhas silenciosas, o mar sereno. Sorri, trêmula. Tinha sido
um sonho.
Ainda sorrindo, esfreguei a nuca, enquanto meus olhos pousavam no jornal dobrado sobre o deque. E
só então a notícia no alto da primeira página me chamou a atenção: Japão sofre acidente nuclear.
Logo eles, que guardam na pele as feridas de Hiroshima, pensei. Logo eles, que são tão organizados.
E, instintivamente, meus olhos se voltaram para o céu acima do morro, na direção da usina. Se no
Japão pode acontecer, imagine aqui. Tomara que meu sonho não tenha sido uma premonição.
O jardim
(17/10/1999)

Acordei bem cedo e decidi dar uma caminhada. Minha idéia era seguir direto até a praia, mas, por
alguma razão, virei à esquerda na Ataulfo de Paiva, indo em direção ao Jardim de Alá. O sol oblíquo,
mal acabado de nascer, despejava-se por cima dos prédios de Ipanema, incidindo diretamente em
meu rosto. Era um sol fraco, é verdade, um sol de inverno, mas ainda assim capaz de me toldar a
vista. Caminhando com aquele sol nos olhos, toda a paisagem parecia forrada de algodão. Além do
mais, fazia frio. E assim baixei os olhos, fixando-os nas pedras portuguesas do chão, e fui em frente,
com o pensamento longe dali.
Só quando afinal desemboquei na beira do canal do Jardim de Alá é que ergui o rosto. O sol pareceu-
me subitamente quente, e não mais inclinado. O frio também se fora, embora houvesse brisa. De
repente, era meio-dia. E era primavera. As águas do canal, sempre lodosas, tinham um verde
profundo e sua superfície brilhava em tremulinas sob os raios de sol. Comecei a atravessar a ponte, já
notando, à distância, que as grades do jardim haviam sido pintadas de novo. Junto a elas, uma fileira
de ciprestes balançava ao vento, deixando cair seus finíssimos ramos, usados pelos passarinhos para
fazer ninho. Desci a escada e cruzei o portão, que estava aberto.
À minha frente, sobre o gramado bem aparado, vi os caramanchões de madeira branca, com seus
medalhões ovais onde, em criança, eu enfiava a cabeça para tirar retrato. A madeira, também pintada
de novo, estava quase encoberta pelas flores vermelhas de um pé de buganvília. Junto ao canal, as
árvores estavam igualmente floridas e um grupo de crianças brincava de escrever seus nomes no
gradil, prendendo nos espaços do arame as flores amarelas, de miolo escuro, que catavam no chão.
Outras, ali perto, faziam grande algazarra nos balanços e escorregas coloridos. Aliás, havia crianças
por toda parte. E mães e babás. E velhinhos conversando nos bancos sombreados. Caminhando pela
aléia central, fui em frente.
No meio de um grande espaço gramado, em cujas pontas havia estátuas de pedra em forma de tigres
e leões, ficava o lago. Com suas bordas de pedra, o lago tinha as águas muito claras e nelas, mesmo de
longe, pude ver a sombra vermelha das carpas. Mas foi o que havia em torno do espelho d’água que
me chamou a atenção. Um grupo de jovens, vestindo uniformes, cuidava dos canteiros. Havia uma
cerca viva, formada por pés de bela-emília, e canteiros de flores rasteiras, parecendo onze-horas.
Cheguei mais perto. Os jovens sorriram para mim, com seus rostos suados, seus olhos espertos.
Conversando com eles, fiquei sabendo que todos moravam ali perto e que cada um tinha o seu
canteiro para cuidar. Carentes, tinham assim a chance de se profissionalizar.
Satisfeita, saí caminhando. E, seguindo o exemplo dos mais velhos, sentei-me à sombra de uma
amendoeira. Era hora de descansar. Ou talvez de acordar.

Passos
(24/10/1999)

Não que eu desejasse sua morte. Não, não, de jeito algum. Apenas queria que ela dormisse. Explico:
há mais de vinte anos morando no mesmo lugar, tenho por vizinha uma mulher insone, que passa as
noites caminhando. Eu própria tendo um sono muito leve, aquele caminhar permanente –
madrugada adentro, noite após noite – é um tormento para mim. A horas altas, acordo ouvindo
passos. Estremeço. E, no silêncio, me pergunto: para onde será que ela vai? Que lugar ermo é esse
que a mulher solitária busca de forma incessante, entre as quatro paredes de seu apartamento?
Porque a verdade é que, quando começa a andar, ela não pára mais. Como se buscasse algo esquecido
nos recônditos de sua memória, ou de seus armários, segue de um lado para outro com passos firmes,
determinados – mas que parecem nunca levar a lugar algum. E a madrugada se esvai nesse caminhar
sem fim, para mim e para ela.
Às vezes, tenho pena. Sei que ninguém tem culpa por não conseguir dormir. Mas o fato é que ela
podia, ao menos, parar um pouco, olhar a paisagem da janela, ler, ligar a televisão. Ou podia, ainda,
usar um chinelinho de pano e não aquele de salto, tec-tec-tec a noite toda nos tacos do chão. E mais:
num gesto de deferência, num aceno de paz, ela podia ao menos mandar acarpetar o apartamento!
Mas não. Nunca fez nada disso. Por todas as noites, nesses mais de vinte anos, ela caminhou – e só.
De dia, reina a mais absoluta quietude em seu apartamento. Nunca a vejo sair. Pouco sei sobre ela,
nem lembro bem como é seu rosto. Conheço apenas seus passos, que assombram minhas noites. Mais
nada.
Mas agora devo confessar uma coisa a vocês: estou narrando no tempo verbal errado. Porque a
verdade é que tudo está terminado. Há pouco, no fim da tarde, chegando do trabalho, dei com o
pedaço de papel pregado na parede do elevador. O enterro foi hoje, às cinco da tarde. Não, não, por
favor, não me interpretem mal! Eu jamais desejei que ela morresse. Sabia que era uma mulher de
mais de 70 anos, de saúde frágil, com certeza minada pelas noites insones. Mas, repito, não desejei
sua morte, jamais. Queria apenas que ela dormisse.
E agora quem vai dormir sou eu. Dormir! Uma noite inteira, como não faço há décadas. Preparei tudo
para esta ocasião especial. Tirei do armário meus lençóis de cetim. Tomei um banho de banheira e
me perfumei com a água de colônia alemã, a verdadeira, que tem efeito calmante. Vesti minha
melhor camisola de seda e, depois do jantar, bebi um cálice de vinho do Porto. E agora estou aqui,
pronta. Mas, antes de apagar a luz, queria dizer ainda uma vez que estou celebrando meu sono, não a
morte dela. Não me entendam mal.
Apago a luz. E, no mesmo segundo, antes mesmo que a escuridão me envolva por completo, ouço –
com toda a força e nitidez – o som de passos no andar de cima.

Nunca mais
(31/10/1999)

Sozinha dentro do carro, na esquina da São Clemente, a mulher olhou as copas centenárias por trás
dos muros de um casarão, enquanto esperava o sinal abrir. As folhas das árvores eram de um verde
profundo e brilhante, que lhe transmitiam uma sensação de prazer. Estava assim, distraída e
relaxada, quando, sem qualquer razão especial, baixou os olhos das árvores para a calçada.
Ali, junto ao granito do meio-fio, estava um homem. De pé, no ponto de ônibus, com um menino pela
mão. Nada havia nele de incomum, sequer era bonito, mas, por alguma razão, os olhos dela se
fixaram nele. E, no mesmo instante, o homem, como se atraído pelo olhar da estranha, virou-se e
olhou-a também. Houve um choque. Um tremor, um rasgo na realidade. O encontro daqueles dois
olhares foi uma tormenta inexplicável. A mulher estremeceu, crispando as mãos no volante. Por quê?
Não saberia dizer.
Enquanto, atônita, buscava uma resposta para a sensação indecifrável, um ônibus chegou ao ponto e
o homem subiu nele. No mesmo lapso de tempo, o sinal abriu. E a mulher arrancou atrás.
Seguiu-o pela São Clemente, os dedos suados apertando o volante cada vez com mais força. À sua
frente, dentro do ônibus, já não via o menino, que se sentara, desaparecendo. Mas o homem estava
lá. Ficara de pé, diante do vidro traseiro – e olhava-a, de forma acintosa. Olhava-a como se, ele
também, tivesse sido atingido pela misteriosa tormenta há pouco desencadeada. Olhava-a com o
mesmo olhar avassalador do primeiro instante, o olhar que a desnudara. A mulher via perfeitamente
seu rosto através do vidro do ônibus, que o sol, varando as árvores, manchava de sombras
enlouquecidas. Quem era? E o que estava acontecendo? Não tinha idéia.
Continuou atrás do ônibus por vários quarteirões, olhos pregados no homem, um soco congelado na
boca do estômago. A cada ponto em que o ônibus parava, ela ficava atrás, esperando, em sua
instantânea obsessão. Sabia que não podia perdê-lo de vista – não agora que o encontrara. Era sua
única chance. Se o perdesse, jamais descobriria uma razão para o que estava acontecendo.
Até que, sem qualquer aviso, o ônibus deu uma guinada para a esquerda e entrou na rua Real
Grandeza. A mulher tentou fazer o mesmo, mas suas mãos suadas atrapalharam-se ao volante. Freou
o carro, mas um carro quase bateu atrás dela. Houve um estrondo de buzinas e alguém gritou um
palavrão. Nervosa, ela tentou engatar a primeira, mas deixou o carro morrer. Por alguns segundos,
ainda viu o rosto do homem, seu olhar febril através do vidro sombreado do ônibus, devorando-a até
o último segundo, antes de desaparecer na rua Real Grandeza. E, trêmula, ela ficou ali, um estorvo no
trânsito da rua São Clemente, atormentada pela certeza de que jamais saberia quem era aquele
homem, esmagada pela realidade de uma pequena frase. Nunca mais.

As árvores
(7/11/1999)

Era um homem que amava as árvores. Não plantas ou flores, mas árvores somente. Em suas
caminhadas ao redor da Lagoa, mal olhava a paisagem. Para ele, o perfil azulado das montanhas, o
espelho d’água duplicando os barcos, a vegetação de mangue com suas garças – nada existia. Só tinha
olhos para as árvores.
Passava pelas pessoas sem vê-las. As formas humanas, com seus movimentos sempre apressados,
exasperavam-no. Gostava da fixidez das árvores, de seu crescimento lento, de sua paciência.
Concentrava-se nelas de maneira quase obsessiva: as amendoeiras, com suas folhas de múltiplos
tons; os flamboyants, cujas folhas, rendadas, já guardavam, durante o resto do ano, um pouco da
beleza das flores que um dia desabrochariam; e até as paineiras, cujos troncos, grossos e repletos de
espinhos, abriam-se de repente na delicadeza de galhos finos, sustentando chumaços de algodão.
Sonhava em ir um dia à Nova Inglaterra, não para conhecer cidades mas sim seus bosques. E que
fosse em outubro, para ver a beleza das árvores tingindo-se de vermelho, laranja, ocre e amarelo,
todos os matizes que tomam as florestas do hemisfério Norte no outono. É o tempo em que as árvores
se despojam, se decompõem e – ao contrário dos humanos – se põem nuas para enfrentar o inverno.
Era essa entrega, essa humildade que o fascinava.
E foi no que pensou quando, um dia, atravessando a Atlântica – fora de seu caminho habitual –, uma
enorme árvore chamou sua atenção. Era estranha. Tão incomum que ele se perguntou como nunca
havia reparado nela antes, mesmo passando pouco por ali. Tinha o tronco muito grosso e os galhos
baixos, com sua folhagem espessa lembrando os do ficus, embora num tom ligeiramente mais escuro.
Mas sua característica mais marcante era a de que crescera na horizontal. Vergada, com certeza, pelo
vento do mar, quando ainda era apenas um arbusto, fora aos poucos se esquivando, se encurvando, e
adulta se consolidara numa árvore acuada e fugidia. Parecia absurdo que seu tronco, agora forte e
formado por grossos nós, permanecesse naquela posição, submisso diante da brisa impalpável.
E, olhando as próprias mãos, o homem refletiu por um instante. Observou os nós dos dedos, como
galhos saindo de um tronco. E pensou no quanto ele próprio guardava, na pele, as marcas da
humilhação. No quanto, por anos e anos, sofrera com a tirania do pai, que sobre ele soprara como um
vendaval, exigindo do menino tímido, de gestos femininos, que fosse um homem. Pensou também em
como resistira, em como se recusara a sucumbir, a desesperar. E, voltando a olhar a árvore, percebeu
de repente que por trás daquela submissão havia a majestade da resistência. E concluiu que, afinal,
ela se parecia um pouco com ele próprio. Vergado, sim – porém íntegro. E imenso em sua delicadeza.

Segredos
(14/11/1999)

Sempre me chamou a atenção, aquela senhora. Ela almoça no mesmo restaurante que eu. Todos os
dias, à mesma hora, vejo-a entrar, sozinha, elegante em sua roupa escura, quase sempre de gola rolê,
os cabelos muito brancos presos num coque. Pisa o chão de lajotas com passos incertos, o corpo
muito magro um pouco encurvado, como se carregasse um peso invisível – ou um segredo. Sim,
porque os segredos vergam as costas, pesam como fardos. E, ao olhar para ela, desde a primeira vez,
fui tomada pela sensação de que tinha algo a esconder.
Outro dia – um dia de sol, de primavera, com o ar impregnado de luz – ela chegou à porta do
restaurante com um andar diferente. Passos mais rápidos. E, antes mesmo que entrasse, notei,
através do vidro, que se dera alguma transformação. Fiquei observando. Entrou e passou com seu
andar mais leve. Sentou-se a poucos metros de mim, mas num ângulo que não me permitia ver seu
rosto, apenas o perfil e as mãos. Estavam trêmulas, mais do que de costume. E, enquanto esperava a
chegada do garçom, ela tirou da bolsa alguma coisa que seus dedos nervosos trouxeram para cima da
mesa. Inclinei-me para a frente e pude ver: era uma carta.
Nesse instante, ela se virou e, ainda com o envelope nas mãos, olhou o dia lá fora. Vi então, com toda
a clareza, que seu olhar carregava um brilho novo, febril. E aquilo atiçou minha imaginação. Sem
dúvida, a carta a transtornara. E eu poderia jurar que tinha alguma relação com seu segredo – fosse
qual fosse. Os olhos traem, revelam. Nas mulheres muito velhas, são eles que exibem as marcas de
antigas paixões. Por trás dos cabelos brancos, das rugas, da pele ressecada, cintila muitas vezes, nos
olhos, um brilho traiçoeiro – porque é ali que os desejos cavam sua última trincheira.
***
Muitas semanas se passaram. Todos os dias, à mesma hora, ela continua chegando para
almoçar, os olhos novamente apagados, o passo outra vez mais lento, o tremor das mãos apaziguado.
Parece que o efeito da carta passou. Sei que nunca saberei o que estava escrito ali. Sei que a velha
senhora nunca falará comigo, nem com ninguém. Mas há pelo menos um segredo de seu passado que
já conheço. Por mero acaso. Aconteceu ontem. Ela se sentou na mesa ao lado da minha. Nunca antes
isso acontecera. Era a chance para observá-la bem de perto. Vestia, como de costume, uma blusa de
mangas compridas, de malha de lã, escura. E, sob o facho de luz que incidia sobre sua mesa, pegou o
cardápio. Ao fazê-lo, a manga da blusa franziu-se um pouco em direção ao cotovelo, deixando à
mostra uma parte do antebraço. E foi então que eu vi, no pulso muito branco, a cicatriz.
Um dia, ela quis morrer. E tenho certeza de que foi por amor.

As gravuras
(21/11/1999)

Quando saltou do carro, diante do casarão, a mulher se entusiasmou. Estava certa de que faria um
bom negócio. Dona de antiquário, acostumada a comprar coisas antigas, tinha uma intuição que lhe
fazia farejar, à distância, os locais onde encontraria coisas interessantes. O anúncio falava em móveis
e gravuras de moda, mas era a respeito das gravuras que estava curiosa. E a fachada da casa, em
frente ao cais da Urca, prometia. Era um daqueles casarões neo-clássicos, parecendo um palacete
francês à beira-mar, com muros baixos e um jardim delicado na frente. Quem quer que tivesse
morado ali, tinha bom gosto.
Entrou pelo pequeno portão de ferro, que estava apenas encostado, e tocou. Uma senhora distinta,
sem dúvida a governanta, veio atender. Como já tinham acertado a visita por telefone, foi logo
conduzindo-a à saleta onde estavam as gravuras. A mulher ficou encantada. Havia desenhos de todos
os tipos e tamanhos, alguns em álbuns, alguns soltos, outros emoldurados e dispostos pelas paredes,
mostrando a moda na virada do século. Por toda parte, mulheres sorridentes exibiam suas
anquinhas, seus vestidos cintados, seus chapéus extravagantes.
– São lindas – disse a mulher após algum tempo. – Vou ficar com o lote todo. Quantas são?
A governanta olhou-a, parecendo indecisa. Demorou um pouco a responder:
– São… 150.
– Ótimo – disse a mulher. – E como faço para acertar os detalhes? A dona da casa…
– A dona da casa morreu – disse a governanta, rápido. – É a filha dela que está vendendo tudo. A
senhora pode ligar para esse telefone aqui.
A mulher agradeceu, tomando o cartão com o telefone, mas continuou encarando a governanta.
Tinha a impressão de que ela queria lhe dizer alguma coisa.
– A senhora… a senhora não gostaria de levar também algum móvel? – disse a governanta de
repente, em tom casual. Mas seu olhar traía algo mais. Parecia aflita. – Essa cadeira, por exemplo.
Só então a mulher reparou na bela cadeira de espaldar alto, com assento de palhinha, atrás da mesa
com as gravuras.
– Era aí que minha patroa gostava de se sentar, todos os dias, para apreciar a coleção. Fez isso
durante anos, até o dia de sua morte – disse a governanta. E, depois de vacilar um pouco, continuou:
– A senhora talvez não acredite em mim, mas… todos os dias, de tardinha, quando estou fechando as
janelas da casa, eu a vejo. Sentada nessa cadeira, olhando os desenhos.
A mulher abriu a boca, mas não chegou a dizer nada. E a governanta completou, com ar cândido:
– Eu, se fosse a senhora, comprava a cadeira também. Talvez, assim, minha patroa possa continuar
junto das gravuras de que tanto gostava…

Marinha
(28/11/1999)

Primeiro, os pés dela tocaram a pedra. Parou, por um instante, sentindo a aspereza e o frio, sorvendo
num segundo os milhões de anos daquela matéria que estava ali, talvez, desde o início dos tempos.
Depois, caminhou. Mas precisou fazê-lo com muita lentidão e cuidado, pois mantinha os olhos
baixos, quase fechados. Apenas seus pés lhe transmitiam a delicada transformação da pedra, a
umidade crescendo à medida que se aproximava do mar, de seus perigos.
Levou algum tempo até encontrar o ponto exato. Foi só quando já podia sentir, na sola dos pés, um
princípio de maciez, os primeiros sinais de limo, que parou e ergueu o rosto. Mas ainda manteve os
olhos fechados por um momento. Então, respirando fundo, abriu-os – muito e de uma só vez. E
olhou a paisagem.
O mar tinha, naquele fim de tarde, todos os matizes de verde que sua imaginação podia conter. À
esquerda, em torno das ilhas, era quase musgo, mas à medida que avançava rumo à praia tornava-se
mais e mais claro, até tocar a espuma com uma transparência de pedra preciosa. Quase não havia
ondas e as águas se despejavam devagar sobre a areia, como se temessem quebrar o silêncio da praia
vazia. Parara de chover pouco antes e, na areia deserta, poucas pessoas pontilhavam a paisagem,
onde o sol surgira, intruso, furando as nuvens. À direita, na calçada debruçada sobre o Arpoador, um
gato solitário dormia. Belo e forte como um tigre, seu pelo cinza, rajado, quase confundia-se com as
pedras portuguesas. Ao fundo, o perfil dos morros já ia sendo aos poucos contaminado pelas sombras
azuladas do crepúsculo, mas a fileira de prédios ainda recebia com força o sol oblíquo,
transformando-se em caixas de luz. A areia também. A areia ofuscava, espreguiçando-se em curva,
cor de sorvete de baunilha.
Ela sorriu. Impregnada de luz, Ipanema se derramava inteira à sua frente.
Guardaria aquele instantâneo, como já guardara tantos outros, apreendidos em manhãs ou tardes,
em dias de sol ou nuvens.
Gostava de fazer isso. Caminhar de olhos baixos, quase fechados, postar-se em algum lugar e abri-los
de uma vez, para apreender a paisagem inteira, como um quadro. Tinha uma memória visual
prodigiosa. Suas retinas precisas lhe transmitiam cada contorno, cada tonalidade e nuance do que
via. Depois, mantinha essas imagens armazenadas na mente e era capaz de reproduzi-las, em
pensamento, nos menores detalhes, sempre que quisesse. Era só evocá-las. Formavam sua coleção
particular. As imagens não se repetiam, nunca. Como impressões digitais, como desenhos na íris dos
olhos, os crepúsculos de Ipanema eram únicos – cada um deles, todos eles. Embora ela viesse
fazendo aquele pequeno ritual havia muitos anos. Era sua fixação. Tinha o estranho hábito de pintar
com os olhos.
A alma das coisas
(5/12/1999)

Sempre tive uma relação estranha com os objetos inanimados. Olho-os muitas vezes com a impressão
de que sofrem, como nós, de que sentem frio, cansaço, solidão, cãibras.
Quando era menina e estudava no Colégio Andrews, havia, no canteiro central da Praia de Botafogo,
uma estátua que me intrigava. Era uma mulher, deitada, com um bebê nos braços. Na verdade, estava
apenas recostada, no ângulo em que ficamos quando estamos numa dessas espreguiçadeiras de
jardim. Seu corpo de mármore, porém, não estava recostado em lugar algum. Ficava solto, encostado
ao nada, naquela posição incômoda, como se fizesse um exercício abdominal que nunca tinha fim. E o
pior, com um bebê nos braços. Sempre me preocupei com ela. Anos e anos depois, continua lá, na
mesma posição. Até hoje, quando passo pela Praia de Botafogo, não posso deixar de observá-la. E
meu olhar toca seu corpo imóvel com imensa carga de solidariedade.
Há alguns anos pensei muito nela, nessa mulher de pedra, ao ler um conto da escritora americana
Joyce Carol Oates, que me deixou sem ar. Era narrado na primeira pessoa por uma santa, no altar.
Com o menino Jesus nos braços, aquela imagem da Virgem falava de sua imobilidade, dos anos e
anos passados ali, sem sequer poder virar o rosto para mirar o bebê que carregava nos braços,
suportando os olhares aflitos dos fiéis sem ter como lhes falar. Prisioneira do gesso de que era feita.
Pode parecer estranho, mas essas coisas me impressionam, muito. É verdade. Vivo assim, a pensar na
alma das coisas. Desde criança, quando cuidava que as bonecas estivessem em boa posição, para não
morrerem sufocadas.
Minhas preocupações são muitas. Como por exemplo o tubinho de pasta de dentes que está
encravado no asfalto, perto do lugar onde trabalho. Sinto por ele uma ternura enorme. Todos os dias,
ao atravessar a rua, vejo-o ali, imóvel, descorado, ostentando apenas o revestimento de metal, seu
colorido há muito desfeito. Pisoteado, coberto de poeira, às vezes afogado em chuva, ele me parece de
uma solidão imensa.
E agora me aparece o tal de Saci. Nosso pobre satélite, lançado ao espaço. Li que está perdido, algo
saiu errado e ele não faz contato. Ninguém sabe por onde anda. Será que já o encontraram e eu não
fiquei sabendo? Tomara. Porque me causa pena. Em certas noites quietas, olho para o céu e penso
nele, vagando no vazio, seu pequeno corpo de metal, esférico ou cilíndrico, enfrentando a solidão
gelada. E ainda por cima com esse nome, Saci, meio pobre-coitado, meio vira-lata. Mais um anti-
herói brasileiro. É, acho que é por isso que me inspira tanta compaixão. Ele se parece um pouco com
o Brasil, que às vezes, quando desesperamos, também nos dá a impressão de estar assim – perdido
no espaço.

A hora
(12/12/1999)
Ele era um homem muito prático, desses que só acreditam no que vêem e que estão sempre querendo
controlar tudo à sua volta. Certa noite, depois de um dia de muito trabalho, voltou cansado para casa,
onde morava sozinho. Deitou-se com o corpo moído e a cabeça vazia, adormecendo quase que de
imediato. Mas, no meio da noite, acordou. Isso não era de seu feitio. Acordou de súbito, sem qualquer
motivo e, sentado na cama, ficou à escuta. Só ouviu o silêncio. No escuro, olhou o mostrador
iluminado do relógio digital, marcando exatamente 3:18.
Dando de ombros, voltou a deitar-se e, enfiando o rosto no travesseiro, fechou bem os olhos. E
adormeceu. Ou talvez não. Não tinha certeza. Mas, passado algum tempo – quanto tempo? – viu-se
outra vez acordado, os olhos abertos no escuro. Aquilo o irritou. Não era dado a insônias. E no dia
seguinte ia acordar cedo, para mais uma jornada de…
Parou, de repente. Começara a virar-se na cama, mas reteve o gesto. Seus olhos tinham acabado de
pousar no mostrador do relógio à sua direita, na cabeceira.
Eram 3:18.
O relógio tinha parado, pensou. Mas relógio elétrico só pára quando é desligado ou falta luz. E aí o
mostrador se apaga. Franziu o rosto no escuro. Com certeza, se enganara.
Voltou a deitar-se, agora apertando o travesseiro ainda com mais força contra o rosto, tentando a
todo custo dormir. Rolou e rolou na cama, sentindo um incômodo, uma inquietação, com a vaga
sensação de que evitava virar-se para o lado do relógio. Mas, ao fim de um tempo, desistiu. E jogando
o travesseiro para o lado, sentou-se outra vez na cama.
E seus olhos, muito abertos, não puderam evitar os pequenos números luminosos – que marcavam
3:18.
As horas tinham parado de correr.
Devia haver uma explicação lógica, mas, por alguma razão, a visão daqueles números vermelhos teve
sobre ele um efeito imediato e paralisante. Não ousou mover-se. Tinha a sensação de que qualquer
movimento seria perigoso.
Tentou controlar-se, a custo. Fechou os olhos durante um ou dois minutos, contando em pensamento
o passar dos segundos, e tornou a abri-los – apenas para dar de novo com os mesmo algarismos
assombrados. 3:18.
E o suor frio porejou de todo seu corpo, num átimo. Ele, o homem prático, estremeceu. Ele, que não
era dado a imaginações, viu-se assaltado de repente pela poderosa certeza de que estava diante do
desconhecido. E, com um arrepio, pensou que talvez aquele relógio marcasse a hora de sua morte.

Madrugada
(19/12/1999)

A primeira coisa que ele viu, ao abrir os olhos, foram as luzes. Luzes que se multiplicavam, piscando a
intervalos irregulares, interpenetrando-se num jogo indecifrável. Por um segundo, um segundo
apenas, ofuscado e zonzo, não soube dizer o que era aquilo. Logo, lembrou-se. Eram-lhe familiares,
as luzes. Mais do que isso, eram parte de sua vida. Mas a verdade é que, naquele despertar, sentira
uma estranheza imediata por trás do espetáculo conhecido.
Sentou-se, esfregando os olhos. Era madrugada. Aparentemente estava tudo em ordem. As luzes
piscavam à sua volta, com seus dourados e azuis, em ondas repetitivas e hipnóticas. Mas, pelo rumor
das amarras, podia sentir que o vento crescia, provocando uma certa instabilidade. Talvez fosse uma
tempestade. Fora um dia muito quente.
Ficou de pé, a custo. O chão oscilava. Espiou lá fora. E viu. No céu, por cima dos morros, o dia que
deveria raiar fora barrado por uma parede de nuvens negras, ameaçadoras. Era mesmo uma
tormenta.
Encostou-se a um dos cabos e esperou. Em poucos minutos, o vento que arremessava contra os fios
transformou-se num troar assustador e a chuva começou a cair, primeiro em pingos grossos,
espaçados, depois em massas d’água, que se despejaram sobre as luzes como chicotadas. O homem,
ensopado, a tudo assistia com o semblante pesado de preocupação, as mãos crispadas em torno do
eixo central. À sua volta, cabos e fios rangiam, enlouquecidos, enquanto as águas embaçavam a
cortina de luzes. Ele não era um covarde. Fora, desde criança, acostumado à vida difícil, às
intempéries. Mas estava impressionado com a força daquela tempestade. O chão, sob seus pés, era
cada vez mais instável. Caminhando com enorme dificuldade, verificou as amarras, os cabos, os fios,
lutou o quanto pôde contra a força do vento e da chuva, até cair exausto, sabendo que nada mais
poderia fazer a não ser esperar. E foi o que fez. Esperou, rezando baixinho.
***
A primeira coisa que viu, ao abrir os olhos, foram as luzes. Estavam intactas. A tempestade se fora.
Da mesma forma inesperada e instantânea com que surgira, dava agora lugar à calmaria.
Caminhando até a extremidade da base, o homem olhou, através da cortina de luzes, os prédios em
volta da Lagoa, com suas janelas de presépio. Só agora, passada a tormenta, vencido o perigo, sentia
o isolamento em que se encontrava. Há tantas semanas dando plantão dentro da árvore de Natal e
nunca se importara. Era a primeira vez que se sentia assim.
E, de repente, olhando para aquelas janelas acesas, no mundo real para além da margem, ficou
pensando se haveria alguém que, observando a árvore da Lagoa, parasse um pouco para pensar que,
por trás daquelas luzes, ali dentro, sozinho, muitas vezes com medo – estava um homem.

C ONTOS MÍNIMOS

2000

Na sala, agora silenciosa, você observa os destroços da festa. Cinzeiros cheios, copos vazios, pedaços
de papel espalhados pelo chão, fitas coloridas, restos de bolas de gás. A árvore de Natal, apagada,
tornou-se uma sombra cravejada de olhos vermelhos, que parecem observar você, com seu brilho
escuro, toldado pela penumbra. Em cada um desses pequenos espelhos convexos, sua imagem está
refletida. Só a sua, pois todos se foram. Ou todos dormem, não importa. Apenas você está aqui –
insone e só.
Ao fundo, para além do tique-taque do relógio de parede, você ouve o som distante de uma sirene.
Por um momento, pára, à escuta. Depois caminha até a janela, para olhar a noite. A madrugada vai
alta e, por trás dos morros, as primeiras estrias vermelhas começam a surgir no céu. Mas seu olhar se
prende à imensa árvore de Natal, no meio da Lagoa. O cone brilhante, com suas luzes inquietas,
douradas e azuis, está plantado sobre a água como se fosse um templo. Até a estrela posta em seu
cume se parece, de longe, com uma cruz. Essa imagem lhe transmite uma sensação de plenitude –
mas também de solidão.
E, de repente, um pensamento lhe ocorre. Embora sempre olhe para a árvore, todas as noites desde
que foi acesa, só agora pensa que ali dentro, sozinho, deve estar um homem. Você ouviu falar que há
sempre alguém ali, um técnico em eletricidade talvez, de plantão para alguma eventualidade. E hoje,
noite de festa, com certeza ele está lá.
Você aperta os olhos. Sim, agora observando melhor, quase pode enxergar sua silhueta por entre as
luzes que se movem. Um homem. Sozinho numa bolha de silêncio, pairando sobre as águas escuras
em seu barco mágico, feito de luzes ilusórias – que em breve serão apagadas.
Alguém como você. Como todos nós.
E, num instante, a paisagem deserta, o céu estriado, a quietude imensa do espelho d’água da Lagoa, o
som distante da sirene que morre aos poucos, tudo isso se junta às luzes da árvore para formar um só
sentimento, que cai sobre você como um manto, corporificando-se, materializando-se
instantaneamente. Com imensa lucidez, você percebe num segundo o ser único que é, o ser cativo,
prisioneiro, condenado a viver sozinho no mesmo velho e conhecido corpo, pela vida inteira,
plantado sobre um planeta que vaga no espaço sem fim, em meio a alegrias e tristezas que se
alternam, como luzes piscando.
E, afastando-se da janela, você suspira. Mas não, não está triste. Apenas consciente – mais do que
nunca – de sua própria individualidade. E, nessa madrugada, em que ainda paira no ar o espírito das
Festas, você sorri, pensando: a solidão é uma dor limpa.

Planos
(9/1/2000)

“Hoje é dia 9 de janeiro de 2000”, pensou ela, entrando na cozinha. “9 de janeiro de 2000 e eu
continuo aqui.”
Divorciada, dois filhos, com um trabalho de que gostava, poucos problemas e nenhuma doença, ia
levando a vida. Não tinha do que se queixar. Mas a verdade é que se sentia um pouco frustrada.
Afinal, o ano 2000 era um marco. E ela, desde muito jovem, fizera planos para a data – planos bem
diversos da vidinha que levava agora.
Nunca falara a ninguém de seu projeto, na certeza de que não a levariam a sério. Mas, lá no fundo,
continuara acalentando a idéia em segredo, durante anos, muitos anos.
Tudo começara quando era ainda uma menina, dos seus 14 anos. Sem saber muito bem do que se
tratava, fora assistir ao filme “2001, uma odisséia no espaço”, de Stanley Kubrick. E saíra do cinema
com uma sensação estranha na boca do estômago. Estava indócil, mordida por uma inquietação que,
à noite, não a deixaria dormir. Por horas e horas, ficara deitada na cama, olhos arregalados no escuro,
sentindo ainda nas retinas a vertigem dos mundos coloridos percorridos no filme, ouvindo o zumbido
misterioso do monolito. Demorara a entender a razão de seu desassossego. O filme havia provocado
nela um desejo avassalador, quase irracional, de viver em outro mundo, em algum lugar diverso,
longe dali – no futuro, talvez.
Sim, era isso, decidira afinal. Queria viver no futuro. Não em 2000 ou 2001 (que naquele tempo
ainda eram o futuro), mas muito, muito além. E fora assim que, deitada em sua cama de menina,
tomara a decisão: quando estivesse na meia idade, por volta do ano 2000, seria congelada. Já havia
lido reportagens sobre o assunto, sobre os primeiros centros de congelamento que estavam sendo
criados nos Estados Unidos. Muitas pessoas com doenças incuráveis já estavam lá, mantidas vivas em
ambientes de temperatura baixíssima, como se hibernassem, à espera de um despertar futuro,
quando suas doenças já tivessem cura. Na certa, dali a algumas décadas, por volta do ano 2000, o
congelamento já seria uma coisa comum. E as pessoas, mesmo sãs, seriam congeladas para viver no
futuro.
Estava decidido. Era o que ela faria. Quando estivesse com pouco mais de 40 anos, perto do ano
2000, seria congelada. Deixaria ordens expressas para só ser reanimada no fim do século XXI. Como
a Bela Adormecida, dormiria cem anos. E acordaria para um novo mundo.
Abriu a porta do freezer e, sentindo o ar frio na pele do rosto, espiou. Ainda restava uma caixa de
almôndegas. Era o que faria para o almoço. Enfiou a mão e tentou puxar a caixa, mas ela estava
grudada no fundo. Fez mais força. Depois de várias tentativas, a caixa se desprendeu. Estava toda
coberta de gelo. E de repente, ali, no meio da cozinha – no dia 9 de janeiro de 2000 – ela pensou,
com um sorriso triste: “Era eu que devia estar assim”.

Contato
(16/1/2000)

Continuo sem entender muito bem. Hoje passou por mim um ser de sexo indefinido, que me deixou
ainda mais confuso. Seu aspecto era muito estranho. Tinha um rosto delicado, um nariz pequeno, os
lábios bem delineados, mas não muito grossos, formando, no conjunto, o que aqui se chama de
mulher bonita. Os cabelos, muito escuros e lisos, eram também femininos, compridos, bem tratados e
lustrosos. Mas, assim que se fechava em ponta a linha do queixo, dava-se a transformação: o pescoço,
largo e musculoso, era estriado de veias, parecendo inflado a ponto de rebentar. O tronco, imenso e
forte, abria-se para os lados em braços espetaculares, rígidos, com gigantescos nós de músculos
sobrepondo-se uns aos outros e formando uma curva um pouco semelhante à que encontramos em
certos primatas. As pernas eram igualmente brutais, levemente arqueadas devido ao volume dos
músculos, dando ao andar uma cadência que em tudo se parecia com o dos seres do outro sexo.
Já havia visto algumas criaturas um tanto indefinidas por aqui, mas esta me pareceu um exemplo
extremo. Não pude classificá-la.
Aliás, tenho tido grande dificuldade para fazer as classificações. Tudo me parece de difícil
compreensão. Esse pequeno território que nos serve de amostragem traz incoerências que me deixam
atônito. Para dizer a verdade, as contradições são muitas, infinitas, não tendo havido ainda um
registro lógico capaz de explicar tantas coisas de que já lhe falei, como as discrepâncias na ocupação
do espaço, para dar apenas um exemplo.
Mas a verdade é que, de todos os absurdos a que tenho assistido nesse primeiro contato, nenhum me
deixou mais espantado do que o seguinte: como civilização razoavelmente evoluída em termos
tecnológicos, eles parecem ter centrado boa parte de sua pesquisa científica na busca do conforto.
Inventaram pequenos aparelhos, bastante engenhosos, que lhes facilitam a vida, tornando-os cada
vez mais ociosos e aos quais dão nomes variados, como automóveis, computadores, celulares,
controle-remoto etc. Tudo parece ter sido inventado com um único objetivo: o de levá-los a fazer
menos esforço físico. Pois muito bem: você acredita que, nas chamadas horas de lazer, eles correm
pelas ruas feito loucos, de um lado para o outro, suando em bicas, sem parecer querer chegar a lugar
algum? E mais: concentram-se também em locais que chamam de academias e lá se dedicam,
sozinhos ou em grupos, às tarefas mais extenuantes e inúteis, muitas vezes atados a aparelhos de
tortura, os quais parecem buscar por livre vontade, e não forçados, como já vimos acontecer com
outros povos bárbaros. Chegam a caminhar sobre esteiras, sem sair do lugar! Não lhe parece o maior
dos absurdos?
Bem, continuarei observando e tentando entender. Espero estar de volta em breve, na paz de nossa
querida Andrômeda – e longe deste planeta louco.

A biblioteca
(23/1/2000)

Ergo os olhos e admiro a estante. Deste ângulo, vista assim, de baixo para cima, ela é de uma beleza
quase opressiva. As prateleiras de madeira preta, com frisos dourados já um tanto gastos, dividem a
parede na horizontal, cortadas pela presença de uma enorme escada, também de madeira escura,
presa a um trilho. E, dispostos sobre as prateleiras, por toda parte – os livros.
São inúmeros, e todos antigos. Há alguns raros, talvez, mas na maioria são apenas velhos, o que, de
toda forma, lhes confere uma aura de importância. Gosto dos livros usados. Têm alma. Deles se
desprendem os eflúvios das pessoas que os tocaram, com suas dores, alegrias, esperanças,
inquietações. Gosto especialmente quando me deparo com nomes, datas, dedicatórias, quase sempre
escritas com caneta tinteiro, naquela caligrafia delicada e floreada de outros tempos. Observo
também os livros encadernados, com suas lombadas de couro, vermelhas, pretas ou cor de caramelo,
muitas marcadas por títulos de um ouro velho, tendo rolotês de couro como acabamento.
Estou assim, absorta na observação da estante, quando, subitamente, uma certeza me assalta. A de
que há mais alguém aqui. Olho em torno e encontro a resposta que já conhecia. Estou só, na sala
silenciosa. Não há ninguém. Caminho até o centro do aposento, olhando agora para as outras
paredes, também forradas de livros, e sinto crescer a impressão de uma presença.
Cruzando os braços à frente do corpo, fecho os olhos. A sensação aumenta. Há quase um zumbido,
um burburinho, como se a sala estivesse cheia de gente. Sinto-me zonza.
Fico assim por alguns instantes, imóvel. Não sinto medo, apenas curiosidade, embora perceba que
meu coração bate um pouco rápido demais. Se há um fantasma aqui, é um fantasma amigável, penso.
E, de repente, surge em minha mente a imagem do rosto de Borges que, já velho, encara-me
benevolente com seus olhos vazios, sorrindo o sorriso infantil dos cegos.
E então eu compreendendo. É isso. Eles estão aqui.
Abro os olhos e inspiro fundo. Em meio ao cheiro adocicado que impregna o lugar (livros antigos,
mofados, têm às vezes um cheiro doce, como as flores murchas e os cadáveres), percebo que a
presença pressentida nada mais é do que os espectros de Borges, Eça, Lúcio Cardoso, de tantos
outros. E sorrio. O sobressalto passou. É um privilégio estar aqui, sozinha neste lugar, neste templo
sombrio e úmido, onde pairam tantos e tão doces espíritos atormentados.

As flores
(30/1/2000)

Ontem, voltei a vê-lo. Elegante, como sempre, discreto em seu terno escuro, o colarinho branco
impecavelmente limpo contrastando com a pele morena, a gravata borboleta cor de sangue. Na
cabeça pequena, os cabelos muito brancos, cortados baixinho. Nas mãos, morenas também, e um
tanto calosas, a cesta de flores. Não trazia rosas coloridas dessa vez, apenas vermelhas. Cada uma
delas envolta num pedaço de papel laminado, tendo junto ao cabo um raminho verde que me pareceu
avenca.
O velhinho que vende flores.
Há muito não o via. Mas sempre que o encontro, devo confessar, renova-se o impacto. E dessa vez
mais ainda – porque ele estava diferente. Assim que entrou no restaurante, notei-o muito
circunspecto, mais do que de hábito, e vi que trazia nos olhos escuros uma chispa de tristeza. Fiquei
olhando-o, enquanto oferecia suas flores, na varanda do restaurante. Uma mesa ruidosa, onde oito
pessoas pareciam celebrar alguma coisa, ocupou-se dele por alguns instantes, as mulheres esticando
os braços para tocar os botões, escolhendo os mais bonitos. Enquanto isso, o velhinho, que nessas
horas costuma ser falante, estava mirando através do vidro da varanda, os olhos perdidos na noite.
Nesse instante, o garçom, meu conhecido – e que sabe do meu interesse por aquele vendedor de
flores –, chegou a meu lado e disse:
– Está fazendo trinta anos hoje.
– É mesmo?
– É – respondeu o garçom, ele próprio um senhor, trabalhando naquele mesmo restaurante há mais
de vinte anos.
– Como você sabe?
– Ele me disse, ontem. Às vezes conversa comigo. A senhora não notou como ele está estranho?
– É verdade – respondi, baixando a voz, porque o velhinho deixava a varanda e se aproximava de
minha mesa. O garçom, discreto, se afastou.
Chegando junto a mim, o vendedor estendeu sua cesta, sem dizer palavra. Havia uma ponta de
sorriso congelada em seu rosto, mas os olhos tinham um brilho insano. Ele me olhou como se me
varasse. E compreendi que o garçom dissera a verdade. A história, eu já conhecia. Só não sabia que,
naquela data exatamente, fazia trinta anos que acontecera. Aquele velho, um homem bem nascido,
que tinha posses, um dia, por ciúmes, matara a mulher que amava. Fora preso, cumprira pena e, ao
sair da prisão, tornara-se vendedor de flores. Assim, expiava seu pecado.
Tirei uma rosa da cesta e ergui, com uma mesura, como quem faz um brinde.
– Às flores – disse.
E ele sorriu. Em sua loucura, ele sabia, tanto quanto eu, que as flores eram sua redenção.

Tarde demais
(6/2/2000)

Eu caminhava pela rua deserta, numa noite de chuva fina. Mas não estava com frio. Nem sentia
qualquer outra sensação desagradável, fosse medo ou solidão. Ao contrário. Seguia com passos
firmes, o ar fino da noite batendo-me no rosto como se fosse um bálsamo. Estava feliz, revigorada.
Tinha, como já tivera em outras ocasiões, uma sensação de domínio, de poder. Sempre que viajo,
sempre que me vejo numa cidade estranha, gosto de caminhar assim, horas e horas sem rumo pelas
ruas desconhecidas, embora isso às vezes me cause uma espécie de tontura, algo como o doce torpor
dos maratonistas, deixando-me num estado híbrido entre vigília e sono.
Tudo parecia real à minha volta: os prédios clássicos, com seus telhados de ardósia molhados de
chuva, o asfalto brilhante das ruas, as calçadas de pedras largas, gastas pelos passos de muitos
séculos. Mas a verdade é que, no fundo, em algum ponto dentro de mim, havia a dúvida sobre se eu
estaria desperta ou sonhando. Só que isso não importava. Havia lucidez e havia euforia. Eu estava
bem.
Até que de repente, pouco depois de virar uma esquina, tudo o que eu sentia, aquele conjunto de
sensações boas – felicidade, vigor, domínio –, tudo desapareceu de um jato, dando lugar a um
sentimento de pânico, imediato e inexplicável. Num primeiro momento, não entendi por quê. Algo
causara a transformação. Sabia que houvera uma intervenção, a presença súbita de um elemento
exterior ao cenário se fazendo sentir, de forma avassaladora. Precisei de alguns segundos até
compreender que era um som. O som de passos.
Passos atrás de mim, na rua deserta.
Estanquei o andar, o estômago fechado como um punho. E esperei.
Virei-me devagar, muito devagar. E, ao fazê-lo, vi, por trás de uns latões na calçada – uma sombra.
No mesmo segundo soube, como só sabemos em sonho, que era a mim que aquela sombra queria. O
vulto estava em meu encalço. E essa constatação, em vez de aprofundar meu terror, foi um alívio.
Porque tamanha certeza era a prova de que eu sonhava. E, assim encorajada, movi-me em direção
aos latões. Era o melhor a fazer. Enfrentar o pesadelo e assim acabar com ele. Nos sonhos, quando
chega o momento do pavor maior, sempre acordamos. Era o que eu queria.
Com passos firmes, caminhei até a calçada e, juntando toda a força de que era capaz, chutei um dos
latões. Ele foi ao chão, com estrondo. E, diante de mim, vi erguer-se o vulto, seus olhos loucos, o
rosto muito pálido marcado por uma cicatriz. Real, dolorosamente real. E, só então, com terror
inominável, percebi – tarde demais – que não sonhava.
Tirania
(13/2/2000)

Sentada sozinha em sua cadeira de praia, quase junto ao mar, a mulher, já madura, observa. É uma
manhã clara de verão, verão com ar de primavera, e o sol é quase uma carícia, pois passa pouco das 8
horas. Ela vê quando a moça desponta na areia, ao lado da babá e de dois filhos pequenos, trazendo
consigo uma bolsa enorme, uma barraca com capa de plástico pendurada no ombro e um balde em
forma de joaninha repleto de apetrechos de praia. Observa enquanto ela se aproxima, as pernas
musculosas e morenas vencendo a areia fofa, trazendo um dos filhos, o maior, pela mão. O outro vem
no colo da babá.
Param ali perto e começam a dispor suas coisas. É a moça que faz tudo. A babá apenas espera,
brincando com os meninos. A jovem mãe, que parece ter menos de 30 anos, movimenta-se sem parar
durante vários minutos, incansável. Vai até o mar, enche o balde, pendura as coisas na barraca, tira
da bolsa uma garrafinha d’água e dá para o filho menor, que está fazendo manha. Não pára um
segundo. Quando tudo parece estar pronto e todos satisfeitos, ela finalmente estende a toalha para se
deitar ao sol. Só então tira a camiseta e o shortinho. Tem um corpo perfeito. Tudo no lugar, nem uma
só gordurinha, o biquíni azul-turquesa contrastando com o moreno da pele, lisa e sem manchas. É
uma moça linda.
De sua cadeira, a mulher, que a tudo observa, suspira. Pobre moça, pensa. Deve pagar um preço alto
por tudo isso.
Sente uma pena enorme dessas jovens mães, pois tem certeza de que elas sofrem muito. Fazem tudo
o que as mães de antigamente faziam, só que agora também trabalham fora. E o que é pior: precisam
ser bonitas, sempre. Não poderão envelhecer nunca.
Que fardo terrível não será ter de estar sempre bonita e jovem, sofrer com a balança e suar na
academia, não poder descuidar um segundo, não poder relaxar – e isso quando já se tem tantas
outras preocupações, trabalho, casa, marido, filhos.
Sim, elas sofrem muito.
Uma onda vem lamber os pés da cadeira de onde a mulher observa a jovem mãe. A verdade, conclui,
é que hoje lutamos uma batalha perdida. Nossa luta – de todos nós, homens e mulheres – é contra
um destino estabelecido desde o início dos tempos, algo que é parte mesmo de nossa essência. E essa
luta vai contra a natureza, que nesse ponto é implacável, invencível. É isto. É irônico, pensa a mulher,
com um sorriso triste. As gerações que nos anos 60 e 70 fizeram a revolução dos costumes,
derrubando os velhos valores e decretando a liberdade a qualquer preço, acabaram por criar a pior
das prisões: fizeram nascer um mundo marcado pela tirania da beleza e da juventude, onde é
proibido fazer aquilo para o qual estamos predestinados – envelhecer.

Sete vidas
(2/2/2000)
T. S. Eliot diz em um de seus poemas que um mistério ronda o nome dos gatos. Segundo o poeta,
além daquele pelo qual atendem, os gatos têm ainda um outro nome, secreto, que só eles próprios
conhecem e que nenhum ser humano poderá jamais adivinhar. Deve ser verdade, pois gatos são
criaturas muito especiais e, por isso mesmo, cheias de segredos. Eu mesma acabo de descobrir mais
um – um mistério que outro dia me foi revelado, por puro acaso.
Estava eu passeando por entre as estantes de uma livraria quando, de repente, meus olhos pousaram
sobre uma pilha de folhinhas temáticas, dessas de parede. Havia de tudo: uma folhinha com fotos de
bebês, outra sobre design, uma com diferentes paisagens de Paris. E, finalmente, uma de gatos. Era
uma das últimas da pilha e seu título me chamou a atenção: “I gatti di Roma”. Curiosa, tirei-a de sob
a pilha. E imediatamente parei, como se sacudida por um choque. A capa exibia o pé gigantesco de
uma estátua romana, o mármore marcado pelos sulcos do tempo, uma enorme rachadura quase
decepando o segundo dedo. E, sobre esse dedo, deitado porém com os olhos muito atentos para a
câmera, um gato. Segurei a folhinha com as duas mãos, sem acreditar. Era ele. O gato da fotografia,
que ali estava, deitado sobre uma estátua romana, não era um gato qualquer. Era o meu gato – morto
no ano passado.
Não que fosse apenas parecido. Era igual. Como não reconhecer cada detalhe? Cada curva das listras
que marcavam seu pêlo rajado, os sinais escuros no focinho e em torno dos olhos, o formato das
orelhas, a largura das patas, tão grandes já, para um corpo tão jovem – não faltava nada. E mais: o
olhar. O olhar que me fitava de dentro daquela fotografia não era outro senão aquele que eu conhecia
tão bem. Não podia haver dúvida. Era ele.
E foi assim que compreendi. É por isso que se diz que eles têm sete vidas. Quando os gatos morrem e
desaparecem, na verdade ressurgem em outro lugar do mundo, instantaneamente. Lá, nesse outro
lugar, o mesmo gato ressurgido, o mesmo “eu” felino, a mesma individualidade, viverá uma nova
vida. E outras sucessivas, em outros lugares, até que se complete o ciclo de sete, ou até mais, porque
na verdade tudo isso é um grande mistério. E, em cada lugar onde renascer, o mesmo gato será
novamente ele próprio – exibindo o mesmo olhar, um perfil idêntico, um jeito igual de esfregar-se
contra as quinas dos móveis, tudo. Lá estará ele, outra vez, com a altivez de sempre, a mesma
sutileza, a mesma meiguice, toda a ética e toda a dignidade que lhe foram peculiares na vida anterior,
essa retidão que os gatos têm e que tem sido tão incompreendida ao longo dos séculos.
A descoberta me deixou feliz. Meu gatinho não morreu. Ele vive em Roma, agora. Corre solto por
entre os velhos monumentos, galgando muros de hera. À tarde, deita-se ao sol sobre imensos blocos
de mármore, rajado como seu pêlo, e adormece ouvindo o murmúrio das fontes. Tem outro nome, é
verdade. E desse nome nada sei, pois que, como já se disse, nomes de gatos são um mistério que nem
os poetas conseguem desvendar. Mas isso não tem importância.

Tempo
(27/2/2000)

Li outro dia sobre a formação das estalactites e estalagmites. É algo tão lento que são necessários cem
anos para que elas aumentem um centímetro. Cem anos para um centímetro. Gota a gota, a água irá
pingar, carregando seus minerais, que se sedimentarão, década após década, ao longo de uma vida
inteira – mais até que uma vida.
Isso me lembrou um livro que eu folheava quando adolescente, na biblioteca de meu pai. Era um livro
sobre a história da humanidade, cuja página de abertura trazia um texto inquietante. Dizia o texto
que, numa terra distante, chamada Svithjod, há uma enorme montanha de pedra, com mil milhas de
altura e mil milhas de largura. Uma vez a cada mil anos, continuava o texto, um pequeno pássaro vai
até essa montanha afiar o bico na superfície de pedra. E concluía: “Quando a montanha for
inteiramente gasta e desaparecer, um único dia da eternidade se terá passado”.
Eu lia aquilo com um aperto no estômago, os olhos brilhando de fascínio. Acho que foi por causa
desse texto que decidi, na época, fazer faculdade de Filosofia. Depois acabaria desistindo, ao saber
que quem se forma em Filosofia não vira filósofo e sim professor. Aquilo me desanimou um pouco. E
acabei no jornalismo. Mas a verdade é que minha fascinação por esse tipo de assunto continuou e
tem continuado, pela vida toda.
Tempo. Essa coisa desconhecida e onipresente, que passa por nós, através de nós, a despeito de nós –
mas que passa conosco. Esse algo que ganhou ainda mais estranheza neste século em que Einstein
nos provou sua relatividade, mostrando que o tempo passa mais devagar para um astronauta no
espaço.
Tempo. Encontro uma amiga e ela me diz que, quando está chateada, olha para os bancos de pedra da
praia. “Olhando para eles, tenho certeza de que os problemas existem, mas que um dia tudo passa”.
Encaro-a, sem compreender. “Por quê?”, pergunto. “Porque os bancos de pedra não mudam nunca”.
Aquilo que é perene dá, assim, a medida do que é transitório. Sorrio e me despeço dela. Acho que está
certa.
E, por fim, lembro de um outro texto que há muito me inquieta, escrito por Marguerite Yourcenar,
em seu posfácio de “Memórias de Adriano”. Nessas notas, Yourcenar explica como fez para se
transportar para a mente de um homem que viveu há vinte séculos (o livro é narrado na primeira
pessoa). E, ao analisar o quão distantes estamos do Império Romano, a escritora chega a uma
conclusão surpreendente: a de que precisamos de apenas 25 velhos de mãos dadas, “uma cadeia de
duas dúzias de mãos descarnadas”, para nos ligar a Adriano. Bastaria somar suas idades. É curioso
quando encaramos dessa forma: vinte e cinco velhos de 80 anos, juntos numa sala, formam 2.000
anos.
O Tempo é mesmo muito estranho.

Confete
(12/3/2000)

A menina se olhou no espelho e suspirou, contente. Não fosse pela pinta à direita, feita com o lápis de
sobrancelha da mãe, estaria tudo perfeito. Que fazer? A pinta era horrível, mas a mãe insistira. O
resto estava ótimo. Os olhos contornados de preto, o batom vermelho, o cabelo preso pela tiara de
pedras cor-de-rosa, com dois tufos de plumas, um de cada lado. E, acima de tudo, a roupa. Era a mais
linda fantasia de bailarina que sua mãe lhe fizera nos últimos anos. A malha cor-de-rosa fora bordada
de canutilhos e lantejoulas em diferentes tons de rosa e prata, formando um desenho de coração bem
na frente. Tudo combinando com as meias finas e as sapatilhas, iguais às de uma bailarina de
verdade.
Saiu do quarto e foi até a cômoda que ficava junto à janela da sala. Em cima do móvel, como já sabia,
estava o saco de filó cheio de confete e o embrulho comprido, de papel, contendo as rodelas de
serpentina. Lança-perfume, não. Podia cair no olho e arder. Sua mãe não deixava. Tampouco
deixava-a ir à praça. Lá, o Carnaval dos clóvis e dos mascarados era muito perigoso. Melhor era
mesmo fazer o que faria agora: vestir a fantasia e ir para o muro da casa, apreciar o movimento.
Desceu a ladeira até o portão. Era um portão alto, que vivia fechado, sombreado por uma imensa
mangueira, que nessa época do ano estava carregada. O muro de pedra também era alto, mas perto
do portão ele se abaulava numa espécie de mirante, uma balaustrada redonda, à qual se tinha acesso
através de uma pequena escada, também de pedra. Foi ali que a menina subiu, para em seguida
sentar-se na amurada, com as pernas para fora, balançando. E esperou.
Esperou.
Nada. A rua estava deserta. Nem carros, nem pessoas. Não passava ninguém. Depois de um tempo, as
pernas da menina começaram a doer. O contato com a pedra, suas irregularidades e asperezas,
incomodava. E agora? Em quem a menina iria jogar o confete, a serpentina? Bem que ouvira a mãe
comentar que a abertura da nova estrada desvalorizaria o lugar onde moravam. Ninguém mais
passaria por lá. Só o tempo continuava passando.
Até que de repente…
Talvez ela tenha cochilado, não saberia dizer. O fato é que, sem aviso, ali estava: diante dela, um
homem. De pé na rua, os dois braços estendidos, quase tocando-a, como se pedisse alguma coisa.
Vestia o uniforme azul dos internos do asilo, que ficava ali perto. E, além disso, seu olhar o
denunciava. Era um louco.
Assustada, a menina encolheu as pernas, rasgando a meia. Mas no mesmo instante parou. Percebeu
que o homem não olhava para ela, mas para o saco de confete. E sorria.
E foi assim que, devagar, ela se debruçou outra vez sobre o muro. Abriu o saco de confete e,
lentamente, começou a atirar os fragmentos coloridos sobre o rosto do homem. Ele abriu um sorriso
ainda maior. Um sorriso sem dentes. Logo, seu rosto suado estava todo grudado de confete, máscara
multicolorida onde sobressaíam os olhos desvairados, formando uma visão terrível. Mas a menina
não teve medo. E sorriu, também.
Afinal, era Carnaval.

Assombração
(19/3/2000)

Tinha mania de perseguição. Embora não fosse exatamente um maníaco, era bastante cismado e
esquisito. Na rua, caminhando pelas calçadas, achava insuportável a idéia de que alguém caminhasse
atrás dele. O mero som de passos em sua retaguarda o deixava tão transtornado que imediatamente
atravessava a rua ou parava para fingir amarrar o cordão dos sapatos, a fim de deixar que o
‘perseguidor’ o ultrapassasse. Em casa, sozinho, tinha um problema quando lia revistas. Se na página
havia a fotografia de uma pessoa olhando para a câmera, ele logo se sentia observado. Aquele olhar o
trespassava. Era como se sua vida íntima estivesse sendo devassada por um estranho. Mas sem
dúvida a maior de suas agonias era ouvir passos atrás de si.
Estava com pouco mais de 30 anos quando recebeu uma oferta de emprego numa cidade pequena, no
Sul. Decidiu ir. Lá chegando, foi ver uma casa para alugar. Achou o preço incrivelmente baixo e quase
chegou a desconfiar que houvesse alguma coisa errada com o lugar, mas sorriu quando uma vizinha
lhe disse que a casa estava fechada há tempos porque tinha fama de mal-assombrada. Ele podia ter lá
suas esquisitices, mas não acreditava nessas bobagens. E alugou a casa.
Nos primeiros dias, nada aconteceu. Até que, num fim de tarde, ao voltar do trabalho, achou a casa
especialmente quieta. Estranhou que nem o cachorro latisse, mas não ligou. Dando de ombros, tirou
o paletó e, afrouxando o nó da gravata, foi até a cozinha pegar uma cerveja. A cozinha ficava nos
fundos da casa, ao final de um corredor sombrio, com chão de tábuas corridas cuja madeira, velha,
rangia sob os pés. O homem deu alguns passos pelo corredor, mas de repente parou, como se
atingido. No mínimo lapso de tempo entre uma passada e outra, tivera a clara impressão de ouvir a
madeira do assoalho ranger atrás de si. Deu mais uns passos. Seu coração batia feito louco. O som se
repetiu. Era como se alguém caminhasse atrás dele. Pensou em virar-se, mas não teve coragem.
Continuou imóvel, o suor já lhe brotando das têmporas. Tornou a andar e aconteceu de novo. Passos.
Passos perseguindo-o.
Ficou parado, no meio do corredor, com os pêlos eriçados, aterrorizado demais para fazer qualquer
coisa. Era como se todos os seus temores se condensassem num só instante. Aquilo o imobilizara.
Mas, ao mesmo tempo, sentiu subir de dentro de si, como um rumor, uma sensação nova,
surpreendente, que a princípio não pôde compreender. Ao final de algum tempo, entendeu. Deu mais
uns passos, apenas para certificar-se. Lá estava. Outra vez, atrás dele, o ruído de passos. E de novo,
também, a sensação. Era euforia. Uma estranha euforia. Seu olhar brilhou, com uma chispa de
loucura. Chegara a hora do acerto de contas. Era isso. A sensação de ser seguido, que o acompanhara
e afligira por toda a vida, ganhavam enfim uma razão de ser. Seu horror se materializara – e era
melhor assim, pois já não precisaria fugir. E, lentamente, começou a virar-se. Sabia o que o esperava.
Estava prestes a se ver frente a frente com o próprio fantasma.

De mentira
(26/3/2000)

Correu pelos dedos o colar de pérolas, sentindo a textura acetinada e fria das pequenas esferas. Ela
havia recebido aquele colar de presente dos pais ao completar 15 anos. Fazia tempo isso. Lembrava-se
que, naquela época, as pessoas ainda falavam de pérolas naturais e cultivadas. Nunca entendera bem
a diferença. Até que um dia, há não muito tempo, vira na estante de um sebo um belo livro
encadernado, um dos volumes de uma enciclopédia. Folheando o livro ao acaso, dera com um verbete
sobre pérolas e começara a ler.
No início do século, um japonês chamado Kokichi Mikimoto, filho de um fabricante de macarrão,
conseguira fazer o que até então parecia impossível: cultivar pérolas. Antes disso, as pérolas eram
algo raro e caríssimo. Os caçadores de pérolas abriam centenas e centenas de ostras até encontrar
uma que tivesse produzido, dentro de sua concha, o pequeno objeto nacarado, resultado de uma
espécie de calcificação. Mas as pérolas encontradas só tinham valor se fossem redondas e perfeitas –
o que era ainda mais raro. Aperfeiçoando um método que já vinha sendo testado por outros
pesquisadores, Mikimoto conseguira fazer com que as ostras por ele manipuladas produzissem
pérolas perfeitas, através da introdução, no corpo dos moluscos, de um núcleo redondo extraído da
concha de um determinado tipo de ostra.
A mulher lera aquilo com uma pontada de inquietação. E agora, com seu colar de pérolas nas mãos,
preparando-se para sair, voltava a sentir a sensação de estranheza. Aquelas pérolas, com toda a
certeza, eram cultivadas. Feitas com a intervenção do homem. Porém perfeitas. Tão perfeitas quanto
qualquer pérola natural. A invenção de Mikimoto provocara uma revolução. Depois dele, nada mais
fora como antes. Uma vez patenteado e disseminado o novo método, as pérolas se tinham
transformado na coisa mais comum do mundo. Simplesmente porque é impossível determinar a
diferença entre a cultivada e a natural.
E é isso, pensou, o que a inquieta. O fim da diferença. Num mundo em que o falso é cada vez mais
perfeito, em que o virtual se expande como um câncer, tomando conta da realidade, em que
computadores, biotecnologia, transgênicos, clones e provetas fazem do homem uma espécie de deus,
as diferenças entre o que é e o que não é real se tornam cada vez mais sutis, quase imperceptíveis.
Perigosamente imperceptíveis.
E, já com o colar no pescoço, a mulher se olhou no espelho, tentando sorrir. Mas não pode deixar de
ver o brilho triste que lhe embaçava os olhos, denunciando-a. No fundo, ela sabia: seu sorriso
também era de mentira.

Vício solitário
(2/4/2000)

Eu estava parada no sinal, com as mãos descansando sobre o volante, quando a vi. Era uma mulher
de meia idade, cabelos grisalhos um pouco desfeitos, cacheados, usando saia e blusa de algodão. Sua
roupa era despojada, porém limpa, e embora ela estivesse sentada quase no meio da rua, no degrau
mais baixo da escada de um velho sobrado, de forma alguma poderia ser tomada por uma mendiga.
Estava encurvada sobre alguma coisa, tendo a seu lado três cães vira-latas, todos de coleira e
parecendo bem tratados. Olhei mais atentamente e vi o que ela trazia nas mãos. Era um caderno,
onde escrevia alguma coisa. O sinal abriu e eu fui embora. Mas a mulher dos cães me ficou na cabeça,
sem que eu soubesse bem por quê.
No dia seguinte, por acaso, passei outra vez pela mesma rua. E lá estava ela. O mesmo lugar, sentada
com seus cães e seu caderno de anotações. Escrevendo. O sinal abriu num instante mas, desta vez,
decidi observá-la melhor. Parei junto ao meio-fio, do outro lado da rua, diante de uma garagem. E
fiquei espiando. Só então notei sua extrema concentração, o cenho franzido, a maneira vigorosa com
que segurava o lápis – pois era a lápis que escrevia –, parecendo centrar todas as forças naquela
tarefa.
Pude ver com clareza que às vezes parava para reler o que escrevera, voltava atrás, fazia emendas. Em
outros momentos, com o lápis na boca, mirava o infinito, pensativa, como se em busca de inspiração.
E tive então certeza. Ela não fazia anotações ao acaso. Eu estava diante de uma escritora.
Fascinada, soltei as mãos do volante e cruzei os braços. Quem seria e o que estaria escrevendo? Que
força levava aquela mulher a debruçar-se assim sobre o papel, com tanta urgência e tanto desvelo?
Será que alguém leria, algum dia, aquelas linhas? E pensei na frase ouvida certa vez de Carlos Heitor
Cony: “Eu escrevo e ninguém toma providências”.
Aquela mulher escrevia e ninguém fazia nada. O mundo passava por ela, indiferente, seguindo seu
curso apressado, repleto de objetivos, enquanto ela continuava lá – escrevendo, simplesmente. Mas,
afinal, por quê?
O som de uma buzina interrompeu meu devaneio. Alguém queria entrar a garagem. E ali estava eu,
no meio da rua, paralisada diante de uma mulher e sua pena. Manobrando, fui embora. E ela ficou
para trás. Solitária, perdida em seu mundo silencioso, com o lápis na mão, tendo apenas os cães por
companhia.
Nunca mais passei por lá, mas penso nela, às vezes. E, ao relembrar seus gestos, concluo: ela
continuará escrevendo, sempre. Deve ser sua sina, a expiação necessária, vício solitário que a
condena e escraviza, mas que também a redime, salvando-a da morte e da loucura. Sim, ela seguirá
escrevendo, podem estar certos. Porque é preciso.
Coisa de louco
(9/4/2000)
Falar sozinho era um velho hábito seu. Filho único, fora uma criança solitária e, desde pequeno,
cultivara amigos imaginários. Já adulto, continuara travando longos diálogos consigo mesmo,
chegando muitas vezes a empolgar-se, falando em voz alta, fazendo gestos, franzindo o cenho de
indignação ou dando risadas. Considerava o chuveiro um bom lugar para conversas desse tipo. O
barulho da água caindo abafava as palavras e, do lado de fora, ninguém podia ouvir o que ele estava
dizendo.
Mas não havia nada melhor do que falar sozinho no carro, dirigindo. Com o automóvel fechado e o
ar-refrigerado ligado, a acústica era perfeita, podia ouvir o som da própria voz com toda a clareza.
Mas uma coisa o afligia: a crença generalizada (e absurda, em sua opinião) de que falar sozinho é
coisa de maluco. Ficava furioso toda vez que, em meio a uma deliciosa conversa ou a uma discussão
acalorada – consigo mesmo, é claro –, era atrapalhado pela chegada de um estranho (sendo estranho,
no caso, qualquer pessoa que não ele próprio).
De vez em quando, entrava no banho e esquecia de trancar a porta do banheiro. Então, geralmente
quando estava no meio de um gesto, tentando convencer seu interlocutor imaginário de alguma coisa
importante, ouvia o som terrível da maçaneta. Era sua mulher, pedindo para dar uma entradinha. Ele
disfarçava, pigarreava, esfregava a cabeça com vigor e abria mais o chuveiro, tentando deixar a
intrusa na dúvida sobre se o que ouvira fora mesmo uma voz ou simplesmente o ruído da água. Em
geral, a mulher entrava e saía do banheiro sem fazer perguntas. Mas aquelas interrupções o deixavam
amargurado.
No carro, quando parava num sinal, era um problema: estava no meio de uma conversa solitária e, de
repente, olhando para o lado, via a cara de espanto ou indignação do outro motorista. Com isso,
precisava batucar no volante para disfarçar, fingindo estar cantando, o que considerava
extremamente humilhante.
Até que, um dia, tudo isso mudou. Ele – assim como todas as pessoas que sempre falaram sozinhas –
ganhou um álibi, uma desculpa, um poderoso aliado: o telefone celular. Todos os seus problemas
foram resolvidos. Deixou de falar no chuveiro, é verdade, mas em compensação perdeu qualquer
cerimônia na hora de conversar sozinho dentro do carro.
Agora, quando, no sinal, o motorista do lado o encara, fala ainda mais alto e com mais vigor, para não
deixar dúvidas de que a conversa é pelo viva-voz – a coisa mais natural do mundo. E sua libertação
definitiva se deu com a chegada dos celulares pequenos, que cabem no fundo da palma da mão, sem
necessidade de se falar no bocal: agora, ele coloca a mão em concha junto ao ouvido e pronto, sai
pelas ruas falando sozinho, feliz da vida. e quem vai poder dizer que ele é maluco?
Os ratos
(16/4/2000)

Estava um pouco nervosa. Aquela seria sua primeira sessão de análise. Da janela do ônibus, olhava as
calçadas de Copacabana cheias de gente e lia os nomes das ruas com atenção. Tinha medo de saltar
no ponto errado. O consultório do psicanalista ficava na Santa Clara, no quarteirão da praia. Ainda
bem que viera mais cedo, porque o trânsito estava horrível, quase parado. E, no fim de tarde de
verão, o ar opressivo e o céu cada vez mais escuro eram uma ameaça: ia cair um temporal.
Sua esperança era chegar ao consultório antes. Mas foi só esperança. Lá pela altura da Colombo, o
temporal desabou. Ao foi uma chuva qualquer, foi quase um fim de mundo. Os primeiros pingos
caíram com força, fazendo barulho na carroceria do ônibus. E logo a água já descia pelos vidros das
janelas, numa torrente. Com tudo fechado, estes ficaram embaçados e ela, aflita, esfregava-os com a
mão, tentando enxergar em que altura estava.
O ônibus seguia, encharcado e lento. Depois de um tempo imenso, ela percebeu que estava no
quarteirão anterior à Santa Clara e resolveu saltar. Indo a pé, chegaria mais rápido e, estado com o
guarda-chuva, não se molharia tanto assim. Mas estava ensopada quando chegou à esquina. E ali teve
a pior surpresa.
A água que vinha do morro no alto da Santa Clara descia em direção à praia como um rio barrento e
caudaloso, que já transbordava de seu leito de asfalto e começava a tomar a calçada de pedras
portuguesas. Era impossível atravessar a rua. E, por azar, o consultório do psicanalista ficava do
outro lado. Com um suspiro de desalento, ela esperou, junto com dezenas de pessoas, sob a marquise
da esquina. Mas a chuva não parava e as águas continuavam a subir.
Lentamente, a calçada foi sendo tomada, a tal ponto que as pessoas debaixo da marquise – ela
inclusive – subiram no degrau da entrada de uma loja, espremendo-se no estreito espaço limitado
pelas portas de ferro, que tinham sido arriadas. A chuva diminuíra, mas a enxurrada que vinha do
morro engrossava e, em pouco tempo, as águas barrentas já lambiam o degrau. E foi então que ela viu
os ratos. Eram muitos, e grandes. Tinham saído dos bueiros e olhavam para o degrau onde estavam
as pessoas. Eles também queria fugir das águas.
Houve um princípio de pânico, mulheres gritaram. E ela, assistindo a tudo, paralisada. De repente,
sentiu-se tomar por um estranho fascínio. Olhou bem para aqueles ratos. Eles eram um símbolo.
Eram seus medos, seus piores pesadelos, a materialização de tudo o que sairia dos subterrâneos,
agora que tomara coragem e decidira fazer análise.
Precisava enfrentá-los. Chegou mais à beira do degrau e começou a bater o guarda-chuva no chão
com toda a força. Bateu tanto e com tanto vigor que ficou com as mãos vermelhas. Ao parar, viu que
os ratos tinham desaparecido. As pessoas olhavam para ela, admiradas. Respirou fundo, enxugando o
rosto com as costas da mão. E só então olhou para a rua. Lentamente, as águas começavam a baixar.

O elevador
(13/4/2000)

Sempre adorei histórias de assombração. Não histórias óbvias de fantasmas agressivos ou mesmo de
vampiros, com banho de sangue, explosões e gritaria. Mas sim aquelas de um terror sutil, abstrato,
impalpável, que nos deixam na dúvida, sem saber se ali há mesmo algo sobrenatural, desconhecido,
ou se tudo não passou de alucinação ou coincidência. Quando era criança, costumava sentar à noite
na sala do nosso sítio, para ouvir os casos assombrados que minha avó contava. Eu adorava. E nunca
tive medo. Ouvia aquelas histórias – muitas delas apresentadas como verdadeiras – com toda a
atenção, mas jamais com temor e sim com excitação e delícia. Nem mesmo depois, já deitada na
cama, sozinha no escuro, a memória das assombrações me voltava com sobressalto.
Mas, agora, tantos anos passados, sinto que isso está mudando. Estou começando a sentir medo. E
mais: devo confessar que o temor começou justamente depois que passei a escrever minhas próprias
histórias de terror.
Não sei bem como se deu essa transformação. Talvez tenha sido por causa de alguns depoimentos
que li, de autores dizendo que escrever é, por si só, uma coisa meio mal assombrada e que muitas
vezes aquilo que botamos no papel acontece. O escritor americano Paul Auster contou numa
entrevista que passou meses escrevendo sobre muros em seu romance “A música do acaso” e que, no
dia em que botou o ponto final, caiu o Muro de Berlim. “Toda vez que penso nisso, fico arrepiado”
disse. A valer essa lógica, precisamos tomar cuidado. Se o que escrevemos pode acontecer, é bom não
mexermos muito com o desconhecido – pois ele pode aparecer de repente, diante de nós.
Foi o que aconteceu comigo.
Passo os dias trabalhando sozinha num pequeno estúdio, que fica num prédio antigo, em Ipanema. É
um prédio calmo, com pouco movimento, e muitas vezes volto para casa tarde, quando todos já estão
recolhidos e os corredores, desertos. Foi o que aconteceu naquela noite. Tinha passado o dia
escrevendo um conto assombrado, que se passa num elevador. Não estava nem pensando no assunto
mas, ao chegar ao hall e apertar o botão para chamar o elevador, é claro que me lembrei da história.
Dei uma risadinha, mas não pude evitar uma olhada em torno, escrutinando o hall, longo e
silencioso. Depois, voltei os olhos para o mostrador luminoso acima da porta do elevador, para ver se
ele estava vindo. Vi que estava parado no nono andar. Achei estranho que, àquela hora, o elevador
não estivesse no térreo e, ao apertar novamente o botão, sentia-me inquieta. Voltei a olhar para o
pequeno algarismo vermelho, aceso no mostrador: 9. E só então descobri que estava com medo.
Ainda demorei alguns segundos para entender a razão, mas, quando isso aconteceu, foi com um
choque: meu prédio só tem oito andares.
Nem pensei duas vezes. Disparei pelas escadas.

Momento
(30/4/2000)

A menina enfiou pela cabeça o tubinho de seda azul, com flores de strass bordadas em torno do
decote e, ajeitando uma última vez os cabelos, olhou-se no espelho. Parecia uma mulher. Ninguém
diria que tinha só 14 anos. O penteado estava perfeito, os cabelos escovados e brilhantes, com as
pontas viradas para dentro depois de muitas horas presos, enrolados em torno da cabeça. A
maquiagem, também. No rosto, um pouquinho de pó apenas, além do batom, não muito vermelho.
Tudo na medida certa. Deu alguns passos atrás, diante do espelho de corpo inteiro. As pernas tinham
ficado mais bonitas, por causa da meia de náilon e dos sapatos de verniz preto, de saltinho. Estava
pronta.
Apressou-se, apanhando a bolsa minúscula, de verniz preto e com fecho de strass, que a mãe lhe
emprestara. E fechou a porta. Os primos já a esperavam na sala.
Chegaram à festa pouco depois das dez horas e o salão do apartamento já estava cheio. Era um
apartamento enorme na Senador Vergueiro, num prédio recuado, com jardins na frente e até um
pequeno lago. Em meio ao burburinho dos jovens, que riam em grupos – por enquanto, ninguém
dançava –, dois garçons passavam de um lado para o outro, com suas bandejas cheias de copos. A um
canto do salão principal, uma escada levava ao terraço, mas ninguém parecia interessado em ir até lá.
Minutos depois de chegarem, e como fazia muito calor no salão, a menina decidiu subir e dar uma
espiada. Foi sozinha, deixando os primos para trás. Bem, talvez não subisse apenas por causa do
calor. Talvez houvesse outra razão.
Assim que começou a subir a escada, sentiu no rosto o vento fresco da noite. Respirou fundo, pisando
os degraus devagar. Quando desembocou lá em cima, parou, por um instante.
Havia pouca luz no terraço, o que talvez explicasse por que estava tão deserto. A um canto, um casal
se beijava, sentado num banco. No outro extremo, mais dois jovens conversavam, olhando a
paisagem. Apesar do calor, a maioria preferia o salão, barulhento e cheio de vida. Ela, não. Sentia
uma súbita necessidade de estar sozinha. Era estranho. A festa, que há dias lhe provocava ansiedade
e excitação, perdera o brilho ao tornar-se realidade.
Caminhando lentamente, foi até o parapeito.
Olhou a paisagem, à sua volta. A massa escura pontilhada de luzes, o Cristo lá longe, figura solitária,
quase solta no espaço. Era um pouco como ela. Solitária. Solta no espaço. Baixou os olhos, fixando-os
nas copas das árvores, lá embaixo.
Mas depois de algum tempo sorriu. No fundo, gostava daqueles momentos – de estar só, no meio de
muitos. Era seu segredo, que ninguém conhecia. E quando se sentia assim, era como se abraçasse o
mundo. Sentir-se só dava-lhe uma sensação de poder. Era como estar em toda parte.

Lição de piano
(7/5/2000)

Todos os dias, bem cedo, ela começava. Era a hora da lição de piano. As notas pingavam, uma a uma,
na mesma cadência, e assim continuavam por horas a fio, no exercício. Eram sempre as mesmas,
dedilhadas pacientemente, dia após dia, semana após semana. Mesmo aos domingos, o som
monótono se fazia ouvir. No silêncio da manhã, eu escutava perfeitamente da janela de meu
apartamento e, se quisesse, seria capaz de reproduzir as notas, uma a uma, com um assobio, tantas
vezes ouvira a seqüência.
Às vezes, manhã já alta, aquele martelar constante chegava a me exasperar e eu fechava as janelas,
ligando o som para não ouvir mais. A tenacidade e a disciplina daquela moça me espantavam.
Embora nada soubesse sobre a pessoa que produzia aquele som – não conseguia determinar sequer
de que apartamento da vizinhança o som provinha – eu sempre pensava nela assim, como uma
mocinha. Quase uma menina. Uma menina fazendo sua lição de piano.
Os anos foram passando e nada mudou. Todas as manhãs, lá estava. O som do piano, em sua
monotonia. Dedos que me pareceram sempre solitários, ou até mesmo tristes, martelando as teclas
inutilmente, sem a recompensa de uma melodia. Para quê? No início, esperei que as lições
evoluíssem e que um dia eu ouvisse uma música inteira, tocada com beleza e força, algo que me
recompensasse por tantas horas de monotonia. Mas isso nunca aconteceu.
Até que um dia uma amiga me chamou para ir a um concerto. Um concerto de piano. Fomos.
Entramos no auditório enorme, de poltronas vermelhas, parecendo um daqueles cinemas de
antigamente. E esperamos, em silêncio. As luzes se apagaram e a concertista entrou. Era uma
senhora, já. Muito magra e elegante, imponente em seu vestido negro, os cabelos brancos presos num
coque, apenas um fio de pérolas no pescoço. Não tenho muita intimidade com a música clássica, mas
minha amiga me dissera que era uma das pianistas mais respeitadas do Brasil. E ela provou por quê.
Sentou-se ao piano e nos levou, a todos, em sua melodia, dedilhando-a com maestria, transformando
as notas em água, perfume e sonhos.
Quando acabou o concerto, minha amiga me levou ao camarim. Fui apresentada à pianista e,
encantada, ouvi-a falar sobre sua arte. E foi então, depois de alguns minutos de conversa que, por
algum motivo do qual já não me lembro, ela mencionou onde morava. Não demoramos muito para
descobrir a coincidência espantosa: era ela – e não uma mocinha, como eu supunha – quem fazia as
lições de piano que eu vinha ouvindo há anos.
Ela, a concertista famosa, capaz de nos transportar com sua música, era a mesma pessoa que
dedilhava, todas as manhãs, as notas insossas que eu ouvia em casa.
E foi assim que descobri qual a lição que aquele piano solitário ensinava. Paciência e humildade.

Zen
(14/5/2000)

Anoitecia. No templo budista, sempre silencioso, o cair da tarde era, mais do que qualquer outro, um
momento de quietude. Do lado de fora, em torno do lago de carpas e seixos, nem o salgueiro, batido
pela brisa, sussurrava. Apenas os pardais faziam a costumeira balbúrdia da hora de deitar,
arrumando-se nos galhos das amendoeiras.
O homem entrou em silêncio, tirando os sapatos e sentando-se em posição de lótus sobre uma das
muitas almofadas dispostas no salão. Era o primeiro. Ninguém chegara, ainda. Olhou em torno e
observou as outras almofadas dispostas pelo chão em círculo, quadrados de cor fúcsia destacando-se
sobre o assoalho de tacos, muito encerado e limpo. Nas janelas, a brisa balançava os conjuntos de
sinos, fazendo tilintar seus pequenos cilindros de cobre. Fechou os olhos e esperou.
Não sabe ao certo, mas talvez tenha adormecido, porque foi despertado de seu torpor pela presença
de um gato, que subira em seu colo. Abriu os olhos e acariciou-o, sorrindo. Conhecia muito bem
aquele gato. Era um dos dois animaizinhos que viviam no templo e que estavam sempre por ali. Ele
ouvira falar que eram mãe e filho. A mãe, uma gata mais volumosa, de pêlo tricolor, preto, marrom e
branco, e o filho – esse que acabara de subir em seu colo –, todo cinzento.
Só então, erguendo o rosto, o homem percebeu que as pessoas já haviam chegado para a reunião.
Estavam sentadas nas almofadas, formando um círculo quase completo. Cumprimentou-as com a
cabeça, sorrindo, um pouco sem graça por ter cochilado.
Nesse instante, o gato desceu de seu colo. Caminhou devagar até uma moça que estava sentada na
almofada mais próxima e, da mesma forma como fizera com ele, subiu no colo dela. Ficou alguns
segundos e depois saiu, indo subir no colo seguinte. E assim continuou, de colo em colo. Em cada um,
o gatinho pedia carinho, encostando a cabeça nas mãos das pessoas.
Todos olhavam a cena, curiosos. O mestre, que entrara pouco antes, também cumprimentara a todos
em silêncio e, em vez de começar a reunião, ficara quieto, observando o gato, como todo mundo. O
animal tornara-se de repente o centro das atenções.
Só depois de passar pelo colo de todos os presentes, o animal saiu da sala. Caminhou com seu passo
cadenciado, indiferente aos olhares, desaparecendo pela porta principal. E só então o mestre falou,
fazendo uma revelação: naquela manhã, a mãe do gatinho tinha morrido.

O sopro
(21/5/2000)

No início, ela pensou que fosse um defeito na geladeira. Tinha acordado no meio da noite,
contrariada. Estava sofrendo do que alguns médicos chamam “insônia terminal”, significando mais
ou menos o seguinte: deitava-se e adormecia imediatamente, sem problemas. Mas, algumas horas
depois, em plena madrugada, acordava. Seu despertar era algo repentino e inexplicável. Num
segundo, encontrava-se sentada na cama, de olhos abertos no escuro, sem que houvesse qualquer
razão para aquilo. Nem pesadelos, nem ruídos externos, nada. E o pior: assim que se via desperta, era
imediatamente tomada por uma sensação desagradável, difícil de definir, mas que beirava o medo.
Naquela noite, acontecera a mesma coisa. Aliás, eram raras agora as madrugadas em que o despertar
repentino não lhe acontecia. Acendera a luz, tentando afastar a sensação ruim. Chegara a ficar algum
tempo deitada, com o abajur aceso, para ver se o sono voltava. Tinha até pensado em ler um pouco,
mas desistira. Depois de algum tempo, vendo que o sono não voltava mesmo, resolvera ir até a
cozinha tomar um copo de leite quente.
E fora nessa hora, ao passar diante da geladeira, que sentira o frio estranho pela primeira vez.
Como um sopro – um sopro gelado.
A porta da geladeira estava bem fechada. Seria possível que o ar frio estivesse atravessando a porta,
por causa de algum defeito no revestimento? Examinou a geladeira, viu que estava perfeitamente
vedada. Passou a mão nas laterais de aço, sentindo o frio seco do metal. Não havia nada de anormal
ali. Deu de ombros e, abrindo a geladeira, pegou o leite. Esquentou-o numa panelinha e despejou-o
numa caneca de louça. Depois, encostou-se à pia e bebeu o líquido quente, com o olhar fixo nos
azulejos brancos à sua frente. E, quando terminou, decidiu se deitar.
Já estava junto à porta da cozinha, com a mão sobre o interruptor, quando sentiu novamente o sopro
estranho. Dessa vez, um frio ainda mais condensado, cortante, que se despejou sobre sua nuca, suas
costas. E agora sequer estava perto da geladeira.
Parou, os dedos congelados sobre o interruptor. Arregalou os olhos e só então se deu conta de que
estava no escuro. A sensação de frio chegara a ela tarde demais, quando a mão já recebera a primeira
mensagem, que lhe mandava apagar a luz. Agora era tarde. Estava no escuro. Sozinha no escuro com
aquele sopro sobrenatural. E só então compreendeu. As sensações estranhas, os sustos, o acordar no
meio da noite, tudo estava ligado àquilo que a ela se revelaria agora, àquele ar gelado que continuava
soprando, inexplicável, às suas costas. Ela teria a resposta. Assim que tomasse coragem e se virasse
para, no negror da cozinha, encarar o desconhecido.

O apartamento
(28/5/2000)
A mulher cruzou a soleira da porta e pisou o chão de cerâmica pintada, caminhando com a
circunspecção de quem entra num templo. O homem entrou atrás. O vestíbulo, de paredes forradas
de madeira, tinha iluminação embutida, filtrada através de placas de acrílico branco, leitoso. Os
desenhos delicados e multicoloridos da cerâmica, lembrando um mosaico, prenderam sua atenção
por um segundo. Depois, erguendo a cabeça, ela vislumbrou a sala, à direita. Uma sala espaçosa, toda
forrada de tapete branco, felpudo, com sofás e pufes rodeando uma grande mesa de centro, com
tampo de laca escura. Na sala contígua, um aparador tomava a parede inteira, por trás da mesa de
jantar, também de laca negra. E, separado das duas salas por amplas portas de vidro, ficava o
terraço.
Atravessou o salão e se dirigiu para lá, os olhos fixos no horizonte. Por trás da amurada, para além
das copas das árvores, os telhados e paredes cor de terracota se espalhavam até desaparecer na névoa
do horizonte. O ar frio chicoteou seu rosto, mas ela foi em frente. Precisava respirar. Ainda que por
um instante, apenas.
Estremeceu. Sentia-se enregelada por dentro. Pisara aquele lugar como se caminhasse sobre um lago
congelado, temendo que a crosta fina a qualquer instante se rompesse, a água mortalmente fria
tragando-a para sempre. Cada passo era eterno e definitivo, carregado de informações preciosas, que
lhe diriam tudo, tudo o que queria – ou não – saber.
Naquele apartamento – que ele alugara mobiliado, para lhe fazer uma surpresa –, naqueles poucos
metros entre a porta da rua e o terraço, ela sabia, estariam inscritos, de forma instantânea, seu
futuro, sua vida. Bastaria olhar em volta com atenção e tudo lhe seria mostrado de forma clara,
irretocável. Não haveria fuga possível. E tampouco adiantava ter medo.
Sentiu a mão do homem enlaçando-a pela cintura. Virou-se, observando a sala que acabara de
atravessar. E tremeu, ainda mais. Aquele toque não a aqueceu. Nada seria capaz de fazê-lo, agora.
Porque a verdade acabara de trespassá-la, sem disfarces.
Já não tinha dúvidas.
Olhando para aquelas paredes, para todos os cantos, espaços, quinas, vãos que seus olhos tinham
percorrido num segundo, percebera que tudo estava dito, pronto, terminado. E viu que o apuro, a
beleza e a sofisticação daquele lugar não significavam nada.
Tinha agora a certeza que queria evitar, mas que já pressentira, que vinha crescendo dentro dela nos
últimos meses. Seu amor estava acabado. E aquele não era o seu lugar.

O mal das montanhas


(4/6/2000)

Na encosta, recoberta por uma neve rala de verão, lá estava. Deitado de bruços, as costas, já despidas
da roupa – que o tempo ou os animais tinham arrancado –, brilhando ao sol com um estranho viço.
Parei olhando a fotografia, fascinada, embora sem entender ao certo o que havia ali que me atraísse
com tal força.
Era a foto de um alpinista, morto há muitas décadas enquanto tentava subir o Monte Everest. Por
causa de um verão especialmente forte, com temperaturas subindo mais do que de costume, seu
corpo – que há tantos anos a montanha vinha escondendo – tinha afinal sido encontrado. Sabia-se
que ele morrera ao tentar chegar ao cume, numa época em que ainda não havia roupas especiais nem
comunicações que tornassem minimamente segura a empreitada. Mas onde, não se sabia ao certo.
Agora, seu corpo, congelado em perfeitas condições, seria estudado.
Olhei ainda mais atentamente para a fotografia. A pele muito branca, intacta. Quase como se ele
dormisse – embora eu conhecesse bem a história de seu sono eterno, gelado. Não podia ver-lhe o
rosto, pois caíra de bruços. Os braços ainda estavam vestidos pelo que lhe restara das roupas. Mas
aquelas costas nuas me comoviam para além do que seria natural. Não conseguia passar a página da
revista. E sabia que o que sentia não era apenas curiosidade mórbida – era algo mais.
Olhei e olhei a foto, até que de repente me veio à mente a lembrança de uma frase, dita pelo
explorador inglês George Mallory, ao ser perguntado por que razão queria escalar o Everest. Ele (que
também acabaria morrendo na escalada do monte) respondera, simplesmente: “Porque está lá”. E,
ante a lembrança dessa frase, senti subir de dentro de mim uma sensação cujos rumores reconheci de
imediato. Uma sensação de encontro, de identificação.
É isso. Eu me sinto irmanada a esses exploradores que dedicam a vida às mais loucas expedições,
lançando-se montanha acima com seus corpos castigados, enfrentando o frio mais agudo, o vento
mais cortante, o ar rarefeito. Semanas, meses, anos de planejamento e dedicação, de tortura e terror,
encarando o medo e a morte, apenas para alcançar o topo – um momento efêmero, que mal pode ser
desfrutado, tamanho o cansaço, tamanha a adversidade das condições em que chegam lá em cima. E
tudo, para quê? Por quê?
Porque a montanha está lá.
E é aí, nessa resposta, que eu me encaixo. É ela que me faz irmã desses homens. Nós, escritores,
somos como eles. Deixando correr sobre o papel o sangue que se transformará em poemas, contos,
livros, para quê? Por quê? Não sabemos. Nunca saberemos. Escrever é igualmente vão, igualmente
louco – como essa febre que assola os exploradores, o mal das montanhas.

O mal, de novo
(9/7/2000)

Há não muito tempo, eu falava aqui do mal das montanhas, essa estranha doença que enlouquece
alguns homens. Acometidos dela, eles se metem nas mais alucinadas aventuras, enfrentando todo
tipo de obstáculo, afrontando o frio e o cansaço, apenas para chegar ao topo de uma montanha – sem
que ao menos saibam explicar por que o fazem. Cheguei a citar a famosa frase do explorador inglês
George Mallory que, perguntado por que escalaria o Monte Everest, respondeu com candura:
“Porque está lá”. Essa frase, que resume tudo, mostra que o tal fascínio exercido sobre algumas
pessoas é de fato uma febre. A montanha as chama e elas precisam ir.
Pois eu estava outro dia assistindo a um noticiário de televisão, quando me deparei com uma história
ainda mais extraordinária. O caso de um rapaz, americano se não me engano (pois quando liguei a
TV a matéria já estava no ar), que tinha perdido os dois pés e as duas mãos numa fracassada escalada
no Himalaia. Uma tragédia inominável que, como qualquer tragédia, é capaz de nos prender a
atenção de forma quase doentia. O rapaz era jovem, forte, cheio de energia vital e contava sua
aventura sem vacilar, olhando firme para a câmera, não parecendo muito abalado com seu horrível
destino. Acostumado desde muito jovem a escalar montanhas, já era um alpinista experiente quando
decidira subir o Himalaia. Partira para a expedição junto com outros alpinistas, mas o grupo fora
apanhado por uma tempestade de neve. Perdido dos companheiros, ele fora resgatado quando já era
dado como morto, mas seus pés e mãos tinham sido congelados a tal ponto que, sem circulação,
haviam necrosado, só restando aos médicos amputá-los. E o mais espantoso de toda a história ainda
estava por vir: passados alguns anos, o rapaz, já usando próteses especiais no lugar dos pés e das
mãos, reaprendera a se movimentar normalmente e – pasmem! – voltara a escalar montanhas.
A câmera o focalizava com suas roupas de alpinista, apoiando-se no bastão usado em escaladas, sobre
o fundo nevado de uma montanha, enquanto ele sorria, dizendo que, por enquanto, ainda estava
escalando picos mais baixos, mas que nada o deteria: tentaria voltar ao Himalaia. Um caso
impressionante de força de vontade, sem dúvida, mas, mais do que isso, uma prova de que não tem
cura esse mal das montanhas.
Eles sempre voltam. Porque elas estão lá.
Quando, há poucas semanas, eu comentei meu fascínio por esses exploradores, disse que me sinto
irmanada a eles, pois nós, escritores, sofremos de um mal semelhante. Escrevemos e escrevemos,
movidos por uma compulsão desconhecida, sem saber por que o fazemos – apenas porque é preciso.
E agora, após uma breve ausência, aqui estou. De volta, escrevendo. Por quê? Apenas porque o papel
em branco – como um pico misterioso e nevado – continua lá, me chamando. Ele é minha montanha.
Luas, estrelas e fantasmas
(16/7/2000)

A mulher olhou para o alto e observou as estrelas, pensativa. Tinha acordado de madrugada, como
lhe acontecia às vezes, sem qualquer razão. Desaparecido o sono, decidira levantar-se e caminhar um
pouco pela casa. Gostava de andejar pelos aposentos à noite, com as luzes apagadas, vendo o perfil
dos objetos rotineiros ganhar, com a penumbra, uma nova aura, um tanto misteriosa, talvez até
assustadora. Fora assim, passeando pela casa meio sem rumo, que fora acabar na janela, olhando
estrelas.
E agora ali estava, com os olhos fixos no céu. Não era como numa fazenda, muito ao contrário. Era
um céu urbano, onde os astros cintilavam sobre um fundo enevoado e sujo, em disputa com a
claridade que emanava dos luminosos de rua. Eram estrelas tímidas, quase acuadas. Mas isso não
importava. Ainda assim, eram estrelas.
E havia ali, entre aquelas estrelas quase apagadas, uma que era feita só de diamante. Não tinha um
nome glamuroso. Chamava-se BPM37093. Por uma razão qualquer, a mulher jamais esquecera a
combinação de letras e números usada para identificar a estrela. Era pequena, do tamanho da Terra,
mas quase toda feita de cristal de carbono – o que a tornava um diamante. Um diamante do tamanho
da Terra, flutuando no espaço.
E a mulher suspirou, pensando em como esse assunto a fascinava. Lia quase tudo que lhe caía nas
mãos sobre astros e estrelas. Lera recentemente um livro cheio de informações e curiosidades.
Falava, por exemplo, de uma das luas de Saturno, Japetus, dizendo que é um corpo celeste único. Em
sua órbita em torno de Saturno, Japetus cintila de forma desigual, sendo seis vezes mais brilhante
quando está de um dos lados do planeta. Essa lua misteriosa vem sendo estudada há mais de 300
anos sem que os astrônomos consigam compreender direito por que isso acontece.
O livro traçava ainda alguns paralelos interessantes. Dizia que o número de pessoas que já viveram
no planeta Terra, desde o início dos tempos, é de pouco mais de cem bilhões, número que se imagina
equivalente ao de estrelas existentes na Via Láctea – o que daria uma estrela para cada um de nós.
E dizia mais: dentro desse total, de mais de cem bilhões de almas, os mortos são em muito maior
número do que os vivos, claro. Os mortos de todos os tempos. Assim, cada um de nós, vivos, carrega
atrás de si um séquito de 30 fantasmas.
E de repente a mulher esfregou os braços, arrepiando-se. Quase podia sentir, na sala escura, atrás de
si, a presença maciça e silenciosa.
Mas não teve coragem de olhar para trás.

Um dia comum
(23/7/2000)
Apesar do frio, parecia um dia comum. Uma segunda-feira como qualquer outra. Amanhecera
nublado, chovendo fino, é verdade. E há algo de diabólico nas segundas-feiras de chuva. Mas, fora
isso, parecia mesmo um dia qualquer. A paisagem diante de sua janela era uma só massa
esbranquiçada, onde janelas turvas pareciam querer proteger as casas do frio que fazia lá fora. Os
morros dormiam, ainda, como envoltos em paina e nem os pássaros matinais pareciam dispostos a
cruzar o céu naquela manhã de preguiça.
Mas logo a névoa matinal se esgarçou um pouco e você se apressou, pois já se atrasara – como
acontece em qualquer segunda-feira.
Quando chegou à rua, viu que o frio continuava. E apressou ainda mais o passo, fechando o casaco de
náilon em torno do corpo. Enquanto você caminhava, evitando as poças d’água, ouvia o ressoar dos
próprios sapatos na calçada de pedras portuguesas. É estranho o Rio com frio, pensou. É estranho ver
uma cidade tão colorida e luminosa vestir-se de repente de cinza, fechar-se em casacos, em braços
cruzados, em ombros encolhidos e olhares baixos. É verdade. Sempre andamos de vista baixa quando
caminhamos no frio. E foi assim, olhando para o chão, que você o viu.
A princípio, pensou que fosse um monte de lixo. Era um volume irregular, coberto por papelões e por
um pedaço de plástico preto, muito sujo. Estava atrás de um canteiro, junto a um muro de pedras,
onde não havia marquise, nem portas. Você já ia passando pelo amontoado de sacos e talvez nem o
notasse se não tivesse sido colhido por aquele olhar. Um olhar fulminante. Um olhar pedinte, brilho
vivo que se cravou em você como duas brasas negras, parecendo querer saltar de dentro do corpo
decrépito.
Você estancou, o coração subitamente acelerado. Olhou mais atentamente. Viu um pedaço do rosto.
Entendeu que era um velho. Pensou em dizer alguma coisa, mas calou-se. E logo se refez, virando o
rosto. Lembrou-se de como já era tarde e seguiu em frente, fechando ainda mais o casaco, no frio que
apertava.
Voltou a ouvir o ressoar dos sapatos na calçada. Voltou a observar os próprios pés, driblando as
poças. Voltou a pensar no Rio, no frio, no dia que começava.
Mas já não era a mesma pessoa.
Você mal o vira. Fora apenas um olhar, um segundo. Mas, naquele instante, estabelecera-se entre
vocês um contato mudo, um mútuo entendimento. E agora você levaria consigo, colado às retinas, o
olhar de súplica daquele velho mendigo – pelo resto do dia. Um dia comum.

O boneco
(30/7/2000)
Eu caminhava pelos becos estreitos sem pensar muito bem aonde ia, querendo mesmo me sentir
perdida naquele emaranhado de ruas. Havia passagens tão mínimas que o alto das casas parecia a
ponto de se fechar sobre mim, lugares quase intocados pelo sol, cujas paredes transpiravam uma
umidade de muitos séculos. Somente nos andares de cima, as janelas pareciam respirar um pouco
mais e algumas delas ostentavam jardineiras com gerânios, mas estes nem de longe exibiam o mesmo
esplendor que eu vira nos espaços abertos, nas praças ensolaradas ou à beira dos canais.
Anoitecia e, naquela região úmida, já não havia quase ninguém nas ruas. Respirei fundo, sentindo
nas narinas o vento frio que começava a soprar por entre as vielas. E, apertando um pouco o passo,
levantei a gola do casaco para me proteger. Baixei a vista por um instante e, ao erguer os olhos,
percebi que enveredara por uma rua diferente das demais, pois seu traçado era curvo, não sendo
possível enxergar aonde levava. Segui por ela, curiosa. E, vários metros adiante, desemboquei numa
pequena praça.
Na verdade, era apenas um largo, um quadrado aberto entre as casas, como se ali colocado para
arejá-las. Não havia plantas ou flores, apenas um chão de cimento e, no centro, um poço, com suas
paredes de pedra terminando num tampo de bronze, muito antigo. Era sobre esse tampo que estava o
boneco.
Vestia uma vistosa roupa de palhaço, as mãos enluvadas envolvendo uma bola de gomos coloridos.
Na cabeça, levava um chapéu alto, sob o qual, em meio aos tufos de cabelos azuis, cintilava um rosto
muito branco, com uma bola vermelha no nariz. Era quase de tamanho natural, o que por um
segundo me fez pensar que fosse um homem de baixa estatura, um desses artistas de rua que se
fingem de estátua para ganhar dinheiro. Mas não. Sua imobilidade era tamanha, tão grande a palidez
de seu rosto, que não podia ser. Trazia os olhos fechados e suas pálpebras pareciam feitas de cera.
Não havia carne, nem músculos, nem vincos naquela face. Nem suas mãos ou seu corpo traíam
qualquer movimento, qualquer mínimo tremor. Além do mais, o que faria ali, naquele largo sombrio,
abandonado de transeuntes? Não. Só podia mesmo ser um boneco.
Fiquei parada, observando-o, fascinada.
E de repente um pombo – um dos muitos pombos que habitam essa cidade – surgiu por entre os
telhados, vindo pousar justamente na bola colorida que o palhaço tinha entre as mãos. Por um
segundo, o pássaro ficou ali, imóvel, ele também tornado estátua, como se contaminado pela
imobilidade do boneco. Mas no instante seguinte estremeceu as asas. E, em sincronia com o
movimento do pássaro, os olhos do boneco se abriram, movendo-se nas órbitas. Sua boca vermelha
se fendeu, pregueando os músculos que existiam sob a aparência de cera. E ele sorriu para mim.

O espelho e a máscara
(6/8/2000)

Tudo começou num lindo dia de sol, quando eu saía dos Jardins de Luxemburgo. Tinha justamente
cruzado o espaço central do parque, onde na manhã ainda fria reluzia a água do lago, quando,
atravessando um dos portões laterais, dei com uma rua larga, na qual nunca antes havia reparado.
Por sua largura e imponência, era diferente da maioria das ruas que contornam o parque – e assim
decidi descer por ela.
Escolhi por acaso o lado direito – pois ali havia mais sol – e caminhei devagar, observando os prédios
enfileirados, alguns tão antigos que suas fachadas eram inclinadas para a frente. De repente, por
alguma razão, parei, abrindo o livro que trazia, com informações sobre lugares de Paris onde haviam
vivido pessoas célebres. Aquela rua, com prédios tão antigos, certamente já devia ter abrigado alguém
famoso. Consultando o índice, pelos nomes das ruas, vi que justamente ali, naquela avenida que eu
escolhera por acaso, vivera Casanova. Pela numeração, percebi que estava a poucos metros do prédio
dele. E fui até lá.
O palacete onde Casanova morara um dia fora transformado num prédio de apartamentos. Apenas
uma placa oval, à direita da porta, confirmava que o famoso conquistador vivera ali. À esquerda,
havia uma espécie de vitrine ou janela francesa, cujo vidro ia até o chão. E embora estivesse coberta
por uma cortina fina, espiei através de uma fresta para ver o que havia lá dentro. Era uma sala vazia,
um tanto sombria, com o chão de pedras muito antigas, formando um mosaico do qual faltavam
várias partes, completadas com cimento. E, ao fundo, refletindo a luz filtrada pela cortina, um
espelho. Um imenso espelho que tomava toda a parede, parecendo mais antigo do que tudo, a
superfície já quase toda coberta por manchas douradas.
Voltei a consultar o livro. E, lendo-o, descobri espantada que aquela sala era um dos cômodos da casa
que restavam intactos, sendo aquele espelho o mesmo em que Casanova costumava se mirar.
Voltei para o hotel encantada com a descoberta.
Horas depois, sozinha no quarto e já esquecida do que vira, remexia as malas em busca de alguma
coisa, quando de repente meus dedos tocaram um objeto pontudo. E, num segundo, lembrei-me o
que era: a máscara veneziana, que eu escondera entre as roupas para que não se quebrasse. Já nem
me lembrava de tê-la comprado, tantas eram as emoções da viagem. Tirei o embrulho da mala e abri.
Não era uma máscara qualquer. Era justamente a ‘baúta’, a máscara usada por Casanova em seus
disfarces, a fim de facilitar suas conquistas. Entre tantas máscaras, eu escolhera aquela.
Observei-a, hipnotizada. Depois, fui até a frente do espelho e coloquei-a no rosto. Do fundo dos
buracos escuros, em meio àquele rosto fantasmagórico, semelhante a uma caveira de queixo pontudo,
vi então brilharem dois olhos – que não me pareceram os meus.

Pequenos heróis
(13/8/2000)

Eu subia distraída a escada rolante do metrô, quando ouvi a música. De imediato, meus ouvidos
ficaram em alerta. Havia na tristeza daquela melodia qualquer coisa de especial, um toque raro. Era
quase um lamento, aquele som sofrido que só os violinos são capazes de produzir – e que é como
seria a dor, se a dor fosse música. Era-me estranha aquela lamentação em forma de melodia, não só
por estar sendo expressada num lugar onde todos pareciam tão brutalizados em sua pressa, mas
também porque naquele dia, em particular, eu me sentia alegre e leve. Mas fiquei curiosa.
Paciente, esperei que os degraus onipotentes da escada rolante me levassem para cima, no ritmo
ditado por eles, mas queria chegar logo, alcançar a saída da estação e descobrir quem produzia a
música tão delicada.
Assim que desemboquei na galeria onde ficava a saída, eu o avistei. Era um homem de meia idade,
vestido com um terno preto já um pouco gasto, mas muito limpo, que ali estava, a cabeça debruçada
sobre o instrumento, os cabelos brancos e cheios estremecendo ante a vibração da música que ele
próprio produzia.
E parei para admirá-lo. Ali fiquei, por muitos minutos, sentindo o fluir daquele som tão especial,
cujas notas doloridas se perdiam em meio ao alarido de passos e vozes apressadas. Ninguém parava,
poucos olhavam para ele, mas o violinista continuava lá, vibrando seu arco, o cenho franzido na
concentração, dando tudo de si como se tocasse para uma multidão – ou como se não tocasse para
ninguém. Sim, era isso. Como se apenas ele e seu violino existissem.
Os músicos me comovem, sempre. Em qualquer show, no momento da apresentação dos músicos,
sou daquelas pessoas que se demoram nos aplausos, até quase sentir doer as mãos. E aquele
violinista, tão majestoso em sua solidão, me comovia talvez mais do que qualquer outro.
Foi então que me lembrei de ter lido em algum lugar que, todos os anos, a prefeitura de Nova York
realiza, com dinheiro público, um show com os artistas de rua da cidade. É um show de verdade,
dentro de um teatro, com cenário, iluminação e figurino. Chance rara de se apresentar num palco
para aqueles anônimos que, dia após dia, ganham a vida nas esquinas, nas praças e nas estações do
metrô, enfrentando o calor, a chuva e o vento – muitas vezes sem ter ninguém que lhes dê atenção. E
pensei em como seria bom se fizessem o mesmo aqui. Como seria bom se alguém desse uma chance a
esses pequenos heróis, que pontuam de melodia e cor nosso cotidiano tão massacrado e tão
massacrante.

O banquinho
(20/8/2000)

Tenho falado de artistas de rua, esses heróis esquecidos que exibem sua arte, seja ela qual for, não
importando se estão sendo admirados ou não. E me dei conta de que nunca contei aqui uma história
que me impressionou muito: a história do banquinho.
Aconteceu numa noite de festa. A sala do casarão, em Botafogo, estava cheia de gente conversando e
rindo. Havia música ao fundo. De repente, as vozes começaram a baixar de tom – e também a música
–, até que se fez um silêncio imenso. E todos os olhos convergiram para a porta principal. Ali, de pé,
muito sério, estava um rapaz, trazendo nas mãos um objeto inusitado: um banquinho de madeira.
Sem nada dizer, ele entrou. Muito sério, cravava o olhar nas pessoas que o cercavam e que logo foram
abrindo caminho para que passasse. Atrás dele, vieram outros. Todos jovens, rapazes e moças,
sempre com o mesmo olhar e o mesmo silêncio. E todos, como o primeiro, trazendo nas mãos um
banquinho.
Espalharam-se pela sala. No salão, os convidados aguardavam, sem saber o que pensar. Então, o que
entrou primeiro colocou no chão o seu banco – subindo nele em seguida. E assim, pairando um
pouco acima das pessoas que enchiam o lugar, começou a falar. Era uma fala teatral, cheia de beleza e
sabedoria, uma reflexão sobre a necessidade que o ser humano tem de se expressar através da arte,
seja ela feita de palavras, sons, cores ou formas. Todos ouvíamos, fascinados. Terminada sua parte, o
rapaz desceu do banco, voltando a segurá-lo entre as mãos, enquanto outro, subindo no seu,
retomava o texto de onde ele tinha parado. Cada um deles, rapazes e moças, sempre subindo em seus
banquinhos, recitou um trecho do texto – o tempo todo falando dessa luta permanente por deixar um
rastro sobre a terra, e de como ela é heróica e bela. Até que chegou a vez do último. E este, com o
olhar ainda mais brilhante que os outros, demorou-se um pouco antes de começar. Encarou, uma a
uma, as pessoas que estavam mais próximas. E só então falou:
- Todos nós devemos expressar a arte que carregamos em segredo. É essa nossa pequena
imortalidade. Por isso, convido cada um de vocês a, pelo menos uma vez na vida, seja de que forma
for, tomar coragem e subir no seu próprio banquinho.
E o salão inteiro explodiu em aplausos.
***
Levei algum tempo perguntando a um e a outro quem eram aquelas pessoas. Até que alguém me
disse: era o grupo teatral do diretor Márcio Vianna, que organizara o texto. Nunca mais esqueci
daquela cena e daquelas palavras, até que um dia, não muito tempo depois, fiquei sabendo da morte
de Márcio. Era uma triste ironia que alguém que organizara uma apresentação tão bonita, sobre a
efemeridade da vida e da arte, morresse assim tão jovem, pensei. Mas, logo, outro pensamento me
apazigou. A morte, ali, era o que menos contava. Afinal, Márcio cumprira sua parte.

Lili
(27/8/2000)

Na primeira vez em que a vi, percebi de imediato que era pouco mais do que uma menina. Eu saía da
casa de uma amiga na Avenida Atlântica e atravessava a calçada larga, de pedras portuguesas, com o
olhar preso ao chão, apertando o casaco contra o peito para me aquecer. Era uma noite fria, de chuva
fina e vento, passando um pouco da meia-noite. Andando a passos largos, preocupada, eu erguia de
vez em quando o rosto para espiar se havia algum perigo. Quando cheguei a poucos metros do
estacionamento, já tirando a chave da bolsa, eu a vi.
Estava encostada no capô do meu carro e, ao ver que eu me aproximava, olhou-me com ar de desafio.
Mas eu sorri – e isso a desarmou. Deu-me boa noite, sorrindo também, e afastou-se alguns passos.
Não foi embora. Enquanto eu abria a porta, observei sua figura esguia, toda vestida de negro,
parecendo uma mulher da década de 20, os cabelos muito escuros e lisos cortados rente ao queixo, os
imensos olhos amarelados, que brilhavam ante a aproximação dos faróis, como os olhos de um gato.
Mas, por trás daquele jeito de mulher fatal, vi que não teria mais do que 17, 18 anos.
Alguma coisa nela me marcou. Seu sorriso triste, o olhar felino. Ou talvez tenha sido a expressão de
seu rosto, um misto de desafio e tristeza, de quem muito cedo foi maltratada pelo mundo e luta para
sobreviver. E, criando para ela uma história, dei-lhe secretamente o nome de Lili.
***
Passaram-se meses.
Numa noite de verão e lua cheia, parando o carro no mesmo lugar – para apanhar a mesma amiga,
com quem iria a uma sessão de meia-noite no cinema – voltei a ver Lili.
Por um segundo, hesitei. Sabia que era ela, não só pela coincidência de lugar e hora, mas porque
usava a mesma roupa negra da outra vez, o mesmo cabelo cortado curto, os olhos pintados como os
de uma melindrosa. Mas estava tão mudada que precisei de um segundo olhar para me certificar de
que era mesmo ela. Muito magra, o vestido lhe caía frouxo sobre as formas. Os cabelos tinham
perdido o brilho e os olhos – reparei – já não faiscavam à passagem dos faróis. Estavam baços, sem
vida, assim como a pele, que perdera o viço. Era quase uma velha, de repente. Ao perceber a
aproximação de meu carro, ela ficara à espera. Mas, ao ver que não era ninguém que lhe interessasse,
dera-me as costas. E agora se afastava, devagar, como se andasse com dificuldade.
Mantive o olhar fixo nela, até que desaparecesse de vista. Sua figura, de costas, caminhando pela
Atlântica sob a luz da lua, me encheu de uma doce melancolia, como a cena final de um filme de
Chaplin.
E tive certeza de que não a veria nunca mais.
Presença
(3/9/2000)

Era a primeira vez que eu me hospedava naquele hotel, perdido numa ruazinha de Montparnasse.
Não o conhecia, nem tinha dele muita informação, mas gostei de sua fachada clássica, do saguão com
cadeiras de veludo escuro. E principalmente do elevador. Parecendo muito posterior ao prédio que o
abrigava, o elevador tinha uma característica: sua porta se abria sozinha. Não a interna, pantográfica,
que abre e fecha automaticamente em quase todos o elevadores. Mas a externa, de madeira. Assim
que o elevador chegava ao andar, a porta se abria em ângulo para a pessoa entrar. E na hora de sair
do elevador, a mesma coisa. Mal as grades se recolhiam e a porta externa se abria, como se mãos
invisíveis a tivessem empurrado. Certamente algum mecanismo automático com ajuda de ar
comprimido. Mas não importa. Aquilo me fascinou.
Assim que me instalei, saí (como devem fazer os viajantes) e só voltei horas depois – quando já era
noite. No saguão escuro, virei a chave na porta e entrei no quarto. Era pequeno, de teto inclinado
como uma mansarda, e aconchegante. Mas, por alguma razão, me senti estranha. Cansada, deitei-me,
com um livro nas mãos, na certeza de que o sono viria logo. Mas não veio. À medida que a noite
avançava, crescia a sensação indefinível, uma inquietação sem sentido, que me foi envolvendo de tal
forma que acabei por pular da cama e ir até a janela, como se buscasse ali uma resposta para o
estranho mal-estar. E na janela, de costas para o quarto, fui assaltada pela certeza de que havia
alguém atrás de mim. Virei-me, sentindo um arrepio na nuca. E, observando o quarto vazio, suspirei,
pensando em como estava sendo tola. Devia ser o cansaço da viagem.
Mas o fato é que passei quase toda a noite desperta, com a sensação nítida de que estava sendo
observada. Só adormeci quando o dia clareava, o corpo moído de me revirar na cama.
Já passando do meio-dia, levantei-me e saí. E foi ao fechar a porta que me deparei com a placa na
parede do saguão. Não a tinha visto na véspera. Uma placa de bronze burnido, dizendo que ali,
naquele andar, vivera durante um ano, em 1923, o escritor James Joyce.
Imediatamente lembrei-me das sensações estranhas que sentira. E, enquanto ia em direção ao
elevador, pensei em Joyce. Imersa em meus pensamentos, tomei um susto quando a porta do
elevador se abriu sozinha na minha frente.
Mãos invisíveis. Uma presença me espreitando – foi o que me ocorreu, num segundo.
Mas no instante seguinte sorri. E, entrando no elevador, enquanto a porta de madeira se fechava por
conta própria, disse em voz alta, desafiando meu próprio medo:
– Thank you, Mr. Joyce.

Os filhos do sim
(10 /9/2000)
A mulher estava sentada lendo um livro, na sala, quando ouviu o grito da filha. Depois, um estrondo
de porta batendo. Murmúrios, passos. E a mocinha apareceu na sala, com uma expressão terrível no
rosto. Tinha acabado de se pesar na balança do banheiro. Engordara um quilo. Um quilo! dizia, aos
gritos, a ponto de a mãe pedir que baixasse a voz, por causa dos vizinhos. E a menina saiu da sala,
com o rosto amarrado. Pouco depois, entrou o filho. Suando, chegava da academia. Tinha, também,
um ar atormentado. Entrou, cumprimentou a mãe e desapareceu, a caminho do chuveiro, parecendo
imensamente cansado.
E a mulher ficou outra vez sozinha na sala, pensando. Fechou o livro e levantou-se, caminhando até a
janela. Pensava no sofrimento dos jovens de hoje.
Filhos e filhas daqueles que fizeram a revolução da contracultura – dos hippies, loucos, guerrilheiros
– esses jovens poucas vezes ouvem um não na vida. É uma geração para a qual quase nada é proibido.
Os pais de agora, que foram jovens nos anos loucos, têm enorme dificuldade em impor disciplina.
Deixam os filhos fazer tudo. Chegar tarde, sair durante a semana, trancar-se no quarto e dormir com
a namorada ou o namorado – tudo. Talvez isso tenha criado um vazio na vida desses rapazes e moças,
refletiu a mulher, olhando as luzes da rua, com seus halos incertos.
Os jovens de hoje formam uma geração que pode tudo, com acesso livre a todas as informações, que
tem diante de si enorme variedade de ofertas de consumo. Biscoitos, por exemplo, pensou a mulher.
No tempo dela, só havia dois ou três tipos de biscoito doce. Hoje, em qualquer lojinha de posto de
gasolina, há prateleiras inteiras de biscoitos de todos os tipos, recheados ou não, com chocolate
amargo ou de leite, com nozes ou passas, tudo. Biscoitos demais. Mas, para quê? Inútil paisagem.
Não se pode comer. E quem proíbe? São eles mesmos, os jovens.
Eles mesmos inventaram aquilo que não se pode fazer. Precisaram criar suas próprias
impossibilidades – talvez pelo excesso de vezes em que ouviram um sim dos pais. Porque o ser
humano precisa do proibido. Então agora é proibido comer, é proibido não ter músculos, é proibido
ser feio, é proibido envelhecer. O padrão de beleza vigente é irreal. Parece ter sido criado apenas para
fazer sofrer – pois é inalcançável. Qualquer mocinha que não viva à base de alface e água – a não ser
as que, por natureza, tenham a sorte de ser excessivamente magras – vai se olhar no espelho e chorar
porque não tem aquele aspecto de campo de concentração que se vê nos anúncios de moda (incluindo
os olhares, tão tristes).
É essa a vida dos jovens, hoje – concluiu a mulher, dando de ombros. Coitados. São os filhos do sim.

Fronteiras
(17/9/2000)
Tenho refletido sobre fronteiras. Sobre a linha tênue e imprecisa que divide realidade e sonho,
sanidade e loucura. E me vêm à mente duas histórias.
A primeira é narrada por Otto Friedrich em seu livro “Going crazy” (Enlouquecendo). Ele diz que
andava um dia pelas ruas de Nova York a caminho do trabalho – como fazia todas as manhãs –
quando de repente, diante de um cruzamento, parou, assaltado por uma sensação desconhecida. Era
algo avassalador, a impressão exata de que algo se rompera, seguida de uma sensação de impotência
e pânico. Ficou ali na calçada, paralisado, sem saber o que se passava. Demorou alguns segundos até
compreender. Como fazia o mesmo percurso todas os dias, costumava andar totalmente desligado,
imerso em seus pensamentos, no “piloto automático”. Ocorre que, naquele dia, se deparara de
repente com um sinal de trânsito quebrado – um elemento estranho à sua rotina. E aquela “ruptura”
provocara uma espécie de curto-circuito em seu cérebro, justamente por estar num estágio de semi-
consciência, tal a sua distração. O sinal quebrado provocara uma pane em seu sistema de percepção.
Fora coisa rápida, não mais do que alguns segundos. Mas o que o perturbava era perceber que,
naqueles instantes, vivera numa fronteira: estivera à beira do que se convencionou chamar “loucura”.
A outra história é narrada pelo antropólogo americano Loren Eisely no livro “O despertar dos
mágicos”, de Louis Pauwels e Jacques Bergier. Eisely conta que caminhava a pé um dia por uma
estradinha perto de sua casa, em meio a uma densa neblina. Ia devagar, mal conseguindo enxergar o
caminho, quando de repente, a poucos palmos de seu rosto, surgiu a figura de um pássaro voando,
que por pouco não se chocou com ele, em meio a um piado horrível e a um farfalhar de asas. Era um
corvo. E Eisely diz que jamais, enquanto viver, se esquecerá da expressão que viu nos olhos daquele
pássaro. Era terror que havia neles. O antropólogo passou o resto do dia impressionado, sem
entender o que seu rosto tinha de tão terrível para provocar um olhar como aquele. Até que
compreendeu: com certeza, com a neblina, o pássaro julgava estar voando alto. E de repente se vira
diante do impossível – um homem no céu. Um homem que atravessara a fronteira do plausível e
caminhava no ar, pelo mundo dos corvos. Aquela era uma visão aterradora.
E Eisely se diz convencido de que aquele instante transformou o corvo para sempre: “Agora, quando
me vê, lá do alto, solta pequenos gritos e reconheço nesses gritos a incerteza de um espírito cujo
universo foi abalado. Já não é, nunca mais será como os outros corvos.”
Assim são as fronteiras.
Alguém já disse que os escritores são personalidades fronteiriças. É verdade. Nós, assim como talvez
os atores, vivemos no limite entre dois mundos, caminhando sobre o fio da lâmina, podendo resvalar
a qualquer momento para um dos lados. Sofremos de uma espécie de esquizofrenia – quase sempre
benigna.

A síndrome
(24/9/2000)

A mulher acordou cedo naquele domingo e foi preparar a mesa de café. Era um prazer que se
concedia nos fins de semana. Durante o resto do tempo, acordava sempre em cima da hora de sair e
comia alguma coisa em pé, na cozinha. Mas aos domingos era diferente. Mesmo morando sozinha,
gostava de saborear o café com toda a calma, lendo seu jornal. Sem pressa.
Abriu a toalha quadriculada de azul e branco, esticando-a com a palma da mão, para depois arrumar
a louça, os talheres, os descansadores. Fez café, despejando-o num bule, ao mesmo tempo em que
esquentava o pão. Este foi posto numa cestinha trançada, que ela arrumou na mesa ao lado de uma
faca serrilhada, de lâmina comprida, junto com os potes de manteiga e geléia, também estes um luxo
de fim de semana. E em seguida sentou-se, satisfeita.
Estava passando manteiga num pedacinho de pão quando reparou na notícia, numa das páginas
internas do jornal. Falava de uma doença misteriosa que vinha sendo estudada pelos cientistas, sem
que fosse possível estabelecer suas causas exatas. Fora assunto de debate durante um congresso
médico na Inglaterra. E tinha um nome curioso: Síndrome do Dr. Strangelove. O nome era uma
referência ao personagem de Peter Sellers no filme “Dr. Fantástico”, aquele cujo nazismo disfarçado
teimava em aparecer num movimento involuntário da mão, que se erguia fazendo a saudação a
Hitler, contra a vontade dele. Segundo os médicos, os portadores da doença exibiam sintomas
parecidos, já que suas mãos apresentavam movimentos súbitos, involuntários. A mulher continuou
lendo a notícia, fascinada. Os cientistas achavam que aquilo era provocado por uma espécie de curto-
circuito num dos lóbulos frontais do cérebro, mas admitiam que essas explicações físicas ainda eram
pouco consistentes. Ainda mais porque havia uma história de doenças psiquiátricas em quase todos
os pacientes. A mulher mordeu os lábios. E mexeu-se na cadeira, inquieta.
As pessoas acometidas da síndrome exibiam sintomas aterradores. Uma delas chegara ao consultório
de um médico com a mão amarrada atrás do corpo, dizendo temer que aquele braço anárquico
pudesse lhe fazer algum mal. Outro doente dizia que não podia comer peixe, porque a mão afetada
pela síndrome de repente começava a enfiar-lhe as espinhas na boca.
Ao ler aquilo, a mulher baixou o jornal, sentindo um arrepio subir-lhe pelas costas. Ficou paralisada.
Sentia uma súbita pressão na garganta, no peito. Por muito tempo, não moveu um músculo. Muito
tempo.
Até que, com os olhos injetados de horror e fascínio, viu a própria mão direita encaminhar-se
lentamente para a faca de pão, com sua lâmina comprida e brilhante.

Mensagem
(1/10/2000)

Ficou chocado quando recebeu o telefonema sobre a morte da amiga. Ele a conhecia havia muitos
anos e nunca soubera que tivesse doença alguma. Era uma mulher relativamente jovem, bonita, que
se cuidava. Muitas vezes caminhava com ele pela praia, sempre animada e contando casos
engraçados. Tinham estado juntos poucos dias antes. Como é possível, perguntou ao amigo comum
que lhe dava a notícia, ele também perplexo. Foi um mal súbito, respondeu o outro.
Mal súbito. A expressão ficou ressoando em seu ouvido. Era a junção de duas palavras fortes,
incontornáveis em seu sentido, que resumiam com tirania aquela morte para ele absurda. Mal súbito.
Não podia acreditar.
Passaram-se alguns minutos e ele ali, parado junto ao telefone, olhando para o aparelho como se
esperasse ver brotar de seus fios a explicação que buscava. De repente, tomou um susto. Tão confuso
ficara ao receber a notícia, que não havia perguntado nada sobre horário e local do enterro. Folheou
com dedos úmidos o caderno de telefones, procurando o número do conhecido que acabara de ligar.
E, sem querer, abriu justamente na página que trazia o telefone da amiga morta. Estremeceu,
olhando aquele nome, seguido de algarismos que já não faziam sentido. Seus olhos ficaram turvos.
Mas em seguida pensou que talvez fosse melhor ligar para a casa dela. Ela morava sozinha, é verdade,
mas com toda a certeza haveria alguém da família atendendo ao telefone, justamente para informar
sobre o enterro. Talvez, ligando para lá, ele soubesse mais alguma coisa, algum detalhe que o
ajudasse a aceitar o que acontecera.
Ligou. O telefone tocou uma, duas, três vezes e, em seguida, após um clique, ele ouviu a última coisa
que esperava ouvir – a voz da amiga.
Por um instante, ficou imóvel, apertando o bocal, os dedos muito brancos, enquanto a voz suave da
mulher morta falava com ele. Claro que num segundo se recuperou. Claro que percebeu logo ser
apenas a voz dela gravada na secretária eletrônica – que continuara ligada.
Mas, passado o primeiro susto, redobrou a atenção. Começou não apenas a ouvir, mas também a
escutar o que ela dizia. E constatou que não era uma mensagem comum, apressada, como as que são
gravadas pela maioria das pessoas. A amiga deixara na secretária eletrônica um recado lírico, como
um poema, que, curiosamente, até então ele nunca ouvira. No fim, ela dizia que não estava, mas que
logo voltaria – e eles se reencontrariam. E era como se houvesse, por trás de suas palavras, um
sorriso. Como se falasse de verdade com ele, a ele se dirigisse. E era como se dissesse que estava feliz.
Ele próprio sorria, também, ao repor o fone no gancho, os olhos ainda úmidos. Estava pacificado.

Pela janela
(8/10/2000)

Reparei pela primeira vez naquele apartamento quando passava de carro, enfrentando o trânsito
lento do fim de tarde, na Lagoa. Pelas cortinas entreabertas, conseguia ver apenas uma parede,
banhada pela luz indireta de um abajur. Mas nessa parede havia uma estante, que me chamou
atenção por sua beleza e solidez: estava repleta de livros, com sua lombadas multicoloridas. Alguns
eram encadernados, outros não. Muitos pareciam antigos. Mas o importante é que a estante não
tinha enfeites, nem plantas, nada – apenas livros.
Imediatamente, comecei a imaginar quem seria o morador daquele apartamento. Não sei por que,
mas achei que os livros pertenciam a um homem. E fui além. Pensei num historiador, um apaixonado
por pesquisa, alguém de mais de 40 anos, talvez ruivo, de cabelos encaracolados, usando óculos de
aro fino para leitura. Imaginei um homem sensível, mas um pouco ranzinza, sempre implicando com
a empregada por tirar do lugar os papéis da escrivaninha, e logo depois dizendo alguma coisa
engraçada, para que ela o perdoasse. Alguém que vivesse sozinho – e feliz.
Mas o sinal abriu lá na frente, perto da Fonte da Saudade, e eu segui, deixando para trás meu amigo
imaginário.
Desde então, sempre que passava por aquela pista da Lagoa, mesmo em velocidade mais alta, eu
aproveitava para espiar. Só dava certo se estivesse escuro. Esse tipo de observação precisa da noite
para acontecer. Quando a luz agressiva do dia se dissolve e surgem, através das janelas, as salas e os
quartos com sua luminosidade artificial – só então – é possível observar, captar fragmentos, compor
histórias. E penetrar um pouco na vida das pessoas, irmanar-se a elas, vencendo o isolamento das
paredes.
Mas como eu sempre passava pela Lagoa ao cair da noite, podia observar à vontade. A cortina estava
sempre entreaberta, no mesmo ângulo, o abajur aceso, e para mim aquele apartamento era apenas
isso: uma parede, a estante e seus livros. Jamais consegui ver o resto da sala. Nunca vi, tampouco,
alguém na janela. Mas meu amigo historiador continuou existindo, por meses e meses, em minha
imaginação, com uma clareza quase sobrenatural. Eu gostava dele, de sua solidão delicada, de seus
fins de tarde à meia-luz, na companhia dos livros. Porque, embora eu não o visse, sabia que estava ali.
Até que outro dia, passando por lá, tive um choque. Era crepúsculo, mas ainda havia luz e eu dera
uma olhada rápida, despretensiosa, sabendo que talvez não conseguisse ver nada. Mas vi. Vi, por trás
das janelas abertas, uma parede nua, onde restavam apenas as cicatrizes das prateleiras, único sinal
de que ali tinham estado por muitos anos. A estante já não existia. Tampouco os livros. Meu amigo se
fora.
Nesse instante, uma buzina vociferou atrás de mim. O carro da frente andara e eu ali parada,
atrapalhando o trânsito, sentindo-me traída, roubada – sozinha na tarde que caía.
Estranho mundo
(15/10/2000)

É um fim de tarde. Nem está escuro ainda, pois nestes dias de primavera já começa a anoitecer mais
lentamente. Mas, como a rua por onde você caminha, de volta para casa, é muito arborizada, há,
senão escuro, sombras. Sombras que as copas das árvores deitam sobre a calçada de pedras
portuguesas, fazendo com que a noite chegue um pouco mais depressa. É uma rua transversal, aquela
que você atravessa, e não muito movimentada. Você vai distraído, assobiando baixinho uma melodia
que se funde ao ruído dos pardais, recolhendo-se nos galhos das amendoeiras. Não há ninguém à
vista, nem mesmo os porteiros, alguns deles seus conhecidos, que costumam sair à calçada para ver a
noite cair.
De repente, em algum nível de sua consciência, você ouve um som. Um barulho indistinto, mas que
logo toma corpo – cresce. São risadas. Vêm de trás de você. E se aproximam. Tudo isso aconteceu
numa fração mínima de tempo. Tempo em que você esteve, ainda, mergulhado em seus
pensamentos, entretido com o próprio assobio, com a agitação dos passarinhos nas árvores. O som
das risadas, vindo de trás de você, chegava a seus ouvidos, mas parecia esbarrar em seu cérebro
embotado, que divagava longe dali. Até que, por fim, a idéia daquele som materializa-se dentro de
sua mente e, cristalizada, vira algo real. Você pisca os olhos, inquieto, pondo-se imediatamente em
alerta. Numa rua deserta, ao cair da tarde, um grupo de pivetes. Vão cercá-lo, vão pedir dinheiro e, se
você não der, poderão talvez assaltá-lo. Instintivamente, você apressa o passo. E só então olha para
trás.
No mesmo segundo sorri, aliviado. Eram apenas crianças brincando. Um grupo de meninos de dez ou
doze anos, um deles com uma bola de futebol debaixo do braço, a caminho de um folguedo qualquer.
Novamente assobiando, você segue em frente, os ombros outra vez relaxados. Vai para casa.
***
Chegando, você vai direto para o banho, como de costume. Mas, assim como aconteceu há pouco com
aquele som de risadas, há qualquer coisa lhe roçando a consciência de leve, batendo muito devagar,
mas batendo. E de repente as coisas se clareiam. No momento em que se olha no espelho – vendo o
próprio rosto através da névoa morna que sai do chuveiro quente – você sente vergonha. Sim,
vergonha. O sentimento lhe surge puro, sem meios tons, embora você demore algum tempo até
entender por quê. Mas afinal percebe. É vergonha por pertencer a um mundo assim estranho, de
valores tão tremendamente distorcidos, onde os adultos aprenderam a ter medo das crianças. Porque
se, ao ouvir às nossas costas um alarido infantil, o que sentimos é medo – isso é sinal de que alguma
coisa está profundamente errada com todos nós.
Presente
(22/10/2000)

Minha avó fez aniversário outro dia – 97 anos. Está lúcida, ainda, mas um pouco desanimada, com
um olhar meio perdido, um ar de cansaço. Sempre sentada em sua cadeira, as mãos repousando
sobre o colo, não parece fixar-se em nada. Olha para a televisão sem muito interesse, ouve nossa
conversa e dá um sorriso mínimo, como se o fizesse apenas por delicadeza. Sempre que vou visitá-la,
tento puxar conversa, mas ela responde apenas com monossílabos. É frustrante. No dia de seu
aniversário não foi muito diferente. Estava toda arrumada, os cabelos muito alvos e finos presos
atrás, num coque, mas seu olhar guardava o mesmo embotamento que já me acostumei a ver, um
olhar sem brilho, quase sem vida.
Ao vê-la, pensei instantaneamente na avó de meu tempo de menina, quando ela era ainda uma
senhora corpulenta, os cabelos começando a embranquecer. Naquela época, ela adorava contar
histórias – histórias assombradas. As noites no sítio, principalmente as noites de chuva – e chovia
muito à noite, porque era sempre verão na minha infância – eram passadas assim: nós, as crianças,
sentadas em torno dela, no sofá que ficava perto da janela, e ela contando, contando. Tinha um jeito
especial para prender nossa atenção.
E agora, décadas depois, ela estava ali, tão quieta, me olhando com seu quase sorriso. Eu mexia as
mãos, na cadeira a seu lado, sorrindo de volta para ela, mas sem saber o que dizer ou fazer. Até que
de repente me veio uma idéia.
Decidir fazer o que ela fazia quando eu era criança. Decidi contar-lhe uma história. Talvez assim
conseguisse prender-lhe a atenção. E não seria uma história qualquer. Seria o tipo de história de que
ela mais gostava e que é também meu tipo predileto: uma história de assombração.
Comecei. Escolhi justamente uma história que ela adorava me contar quando eu era criança e da
qual, com certeza, já não se lembrava. Era um caso que me assustava especialmente, porque minha
avó garantia ter acontecido de verdade. Continuei. Fui contando aos poucos, criando um clima de
suspense, dando detalhes, fazendo ruídos. E, de repente, bem diante de meus olhos, a transformação
aconteceu. Os olhos, aqueles olhos antes tão turvos, estavam agora muito abertos, brilhantes e
atentos, as pequenas íris negras fazendo movimentos quase imperceptíveis, como se acompanhassem
a trajetória das palavras no ar. A boca, antes entreaberta no sorriso vazio, estava agora crispada, em
atenção. Ela não perdia nada do que eu dizia. Pela primeira vez, em muitos anos, seu rosto, ainda que
descarnado, reassumia a expressão que eu conhecera tão bem, em outros tempos.
Eu conseguira. Quarenta anos depois, dera de volta para ela toda a emoção com que ela permeava as
noites de chuva da minha infância. Era – para nós duas – o melhor presente de aniversário.

A história
(29/10/2000)

Era um casal jovem, ainda, nessa época. Não tinham filhos. Ele, médico do Exército, fora transferido
para aquela pequena cidade da fronteira, onde deveria servir por alguns anos. Ela o acompanhara.
Alugaram uma casa boa, de dois andares, com tábuas corridas no chão e forro no teto, providenciais
para enfrentar o rigoroso inverno do Sul. Estranharam que o aluguel fosse tão barato, mas não deram
ouvidos para os rumores de que a casa estava fechada havia vários anos.
Logo na primeira noite, estavam no quarto, preparando-se para dormir, quando ouviram um ruído
estranho no andar de baixo. Da primeira vez, apenas o homem ouviu. Ou pelo menos foi ele que
ergueu o rosto. E logo o ruído se repetiu. Agora a mulher também ficou atenta. Mas não encarou o
marido. Apenas permaneceu alerta, as mãos que dobravam roupas brancas subitamente paradas no
ar. O ruído aconteceu pela terceira vez. Só então se entreolharam. Sem nem perceber o que fazia, a
mulher deu alguns passos em direção ao marido, que se voltava para a porta. Passaram-se muitos
segundos, a casa muda.
O homem voltou a virar-se para a mulher e já abria a boca para dizer alguma coisa quando o ruído
aconteceu pela quarta vez, agora mais forte. Com dois ou três passos, a mulher estava abraçada ao
marido, como a querer retê-lo, evitar que fosse lá embaixo ver o que era. Mas ele parecia tão
paralisado quanto ela. Já não fazia menção de mover-se em direção à porta. Aquele som os congelara,
aos dois, em seus lugares, porque havia nele qualquer coisa de incomum – de sobrenatural. Mas foi
só quando ele ressoou mais uma vez que o casal percebeu, com absoluta clareza, que se tratava de
uma chicotada.
O som fino de um açoite, seu assobio cortando o ar quase como um grito, seguindo-se o estalo
estridente no chão de madeira. E agora outra vez, e mais uma. As chicotadas repetiam-se num ritmo
cada vez mais rápido e se antes pareciam ressoar na sala, lá embaixo, agora explodiam na escada,
chegando cada vez mais perto.
Marido e mulher abraçaram-se com toda a força, de olhos fechados, ambos. E foi assim, cingindo-se
com braços trêmulos, que ouviram o chicote ir subindo as escadas – até retinir dentro do quarto.
Continuaram imóveis. Abraçados, os rostos enterrados um no outro, rezando baixinho. Enquanto
isso, as chibatadas estalavam sem piedade à sua volta, formando em torno deles um círculo de pavor.
Foi só muito depois – eles não saberiam dizer quanto tempo – que o som cessou e a casa voltou a
respirar em silêncio. Quando a mulher ergueu afinal o rosto do peito do marido, foi para dizer, num
murmúrio quase inaudível:
– É preciso mandar rezar.

Obs: Para quem leu meu conto anterior, essa é a história que minha avó me contava quando eu era
criança e que outro dia narrei para ela, numa inversão de papéis. Ela sempre me garantiu que
aconteceu de verdade, com seus sogros. Será? Não sei. O que importa é que essa história fez renascer
o brilho nos olhos de minha avó.

Esperança
(5/11/2000)

Foi um momento, apenas. Mas a cena ficou registrada em minha mente com extrema nitidez. Passava
um pouco das cinco da tarde – das quatro, na verdade, já que estamos em horário de verão – e eu,
sozinha em meu carro, acabara de parar no sinal de uma rua do Leblon. Era uma daquelas
transversais sobre as quais as amendoeiras se debruçam, as copas das árvores plantadas de um e de
outro lado da rua entrançando-se no alto, confundindo-se, transformando-se numa só cobertura,
túnel verde e filigranado que recebe e filtra a claridade do céu.
Fazia um desses dias perfeitos de primavera, de muito sol e vento fresco, quando o Rio é banhado por
uma luz excepcional, uma luminosidade branca, quase leitosa, que se despeja sobre a paisagem
transformando-a num cartão postal antigo e que talvez por isso tenha sido descrita por Tom Jobim
como a “luz de 1910”. Tudo, a areia da praia, as árvores, o mar, as pessoas – tudo – parece flutuar
numa nova dimensão, fixados por essa luz com cor de passado. E era essa a paisagem que eu tinha
diante de mim, para além do vidro do carro – como um fotografia.
O ar refrigerado enchia o interior do automóvel de uma atmosfera fria e fina, delicada também. E, no
rádio, ligado baixinho, um piano dedilhava com doçura uma melodia que eu depois ficaria sabendo
ser “Sonhos de amor”, de Liszt. Aquele momento se imprimiu em mim com a clareza da luz que se
descortinava à minha frente. Meus sentidos captaram em sintonia fina os sons, o ar frio, a paisagem
banhada pelo sol oblíquo do fim de tarde. E eu pensei em como o mundo pode ser belo, às vezes, e em
como eu gostaria de espalhar sobre ele a delicadeza daquele instante, de contaminá-lo, de
neutralizar-lhe os horrores com o bálsamo daquela luz.
Mas, como disse no início, tudo durou um momento, apenas. No instante seguinte, pensei com
tristeza em como minhas sensações eram apenas o resultado de um isolamento. Trancada no carro,
encerrada em minha bolha de silêncio, respirando toda aquela paz, quietude e beleza, eu apenas
fechava os olhos para a vida lá fora, que ricocheteava nas paredes e nos muros suas balas, seus gritos,
seu ódio.
Enquanto pensava nisso, minha mão esquerda se dirigiu quase instintivamente para o botão do vidro
elétrico. Eu queria deixar entrar o mundo real. E logo, junto com o chiado do vidro baixando, o
burburinho do fim de tarde penetrou no carro e se espalhou num segundo, como estilhaços. Mas, no
mesmo instante, a poucos centímetros de meu rosto, surgiu junto à janela uma borboleta amarela,
trazendo um toque de surpresa em seu voejar incerto. E eu pensei, com um sorriso triste, que o
mundo talvez ainda tome jeito, um dia. Às vezes, a esperança é amarela.

A linha azul
(12/11/2000)

Fui ao Paço Imperial ver as Imagens do Inconsciente e reencontrei um pedaço da minha infância. Foi
uma sensação estranha, inesperada. Claro que, se você se dispõe a ver uma exposição de arte feita por
pessoas supostamente loucas, já deve estar preparado para se deparar com a estranheza. Mas o que
eu não esperava era aquela súbita viagem ao passado. Vou contar tudo, do princípio.
O primeiro impacto já foi impressionante. O rapaz da bilheteria me indicou a sala por onde começar
e, como era um fim de tarde e já não havia quase visitantes, eu me vi de repente sozinha numa sala
escura – muito escura –, caminhando sobre um chão instável e macio, feito de alguma coisa que me
pareceu terra fofa ou pó de serragem. Foi como penetrar num mundo paralelo ao real. E havia um
personagem, nesse mundo novo. Era a Dra. Nise da Silveira. Diante de mim, numa tela enorme, a
imagem dela me dizia coisas, com seu jeito ao mesmo tempo suave e enfático, sobre seu trabalho com
os doentes mentais. Ouvi tudo com interesse e atenção e depois saí da sala escura, subindo a
escadaria antiga do Paço em direção à sala seguinte.
Era a sala com as obras de Arthur Bispo do Rosário. No centro dela, como se solto no ar, estava seu
manto, cheio de bordados, cordões, borlas e escritos. E, logo atrás, seus navios, feitos de madeira e
plástico, de pedaços de tecidos, bordados com a mesma linha do manto. Foi essa linha que me
chamou a atenção. Segui pelas salas silenciosas, observando todos aqueles objetos retirados do lixo
do cotidiano e ordenados por Bispo, por ele bordados e rebordados – sempre com a mesma linha
azul. Não era um azul qualquer. Era um azul desbotado, lavado, quase cinza, que me lembrava
alguma coisa distante, perdida no passado, embora eu não soubesse precisar o quê.
De repente, me lembrei. Aquele azul era a cor do uniforme dos internos da Colônia Juliano Moreira.
Claro. Eu já havia lido que Arthur Bispo do Rosário desfiava o próprio uniforme para, assim, obter a
linha para seus bordados. E ali estava a resposta: o azul daquela linha era o vínculo com meu
passado. Quando eu era pequena, passava as férias no sítio do meu avô, na Taquara, a pouca
distância da Colônia. E via, pelas ruas, os internos mais mansos, que tinham permissão para sair. Um
deles trabalhava no sítio ao lado do meu. Muitas vezes fiquei debruçada no muro, observando-o,
fascinada. Ele carregava água, o dia inteiro, para cima e para baixo, em dois latões presos nas pontas
de um bambu que colocava sobre os ombros. Lembro de sua silhueta encurvada, de seu uniforme
azul, de seu olhar. Menina, eu tentava entender o que havia nele de diferente. Daí o meu fascínio. A
mim, me parecia apenas um velho triste. E, até hoje, não consigo compreender bem o que nos separa
dessas pessoas, nem determinar onde, afinal, está a fronteira – essa linha azul, tão tênue – que
separa sanidade e loucura.
Na penumbra
(19/11/2000)

Queria falar um pouco mais sobre a exposição das Imagens do Inconsciente, no Paço Imperial. Na
semana passada, disse da minha perplexidade ao descobrir, na linha azul dos bordados do Bispo,
lembranças da minha infância em Jacarepaguá, onde convivia com os internos da Colônia Juliano
Moreira, muitos dos quais andavam soltos pelas ruas. Mas houve ainda outra parte da exposição que
me impressionou muito.
Foi com curiosidade que entrei numa das muitas salas do segundo andar, entre outras razões por
causa de sua iluminação peculiar. As paredes eram escuras e a luz muito tênue, direcionada, apenas
alguns focos concentrados sobre os quadros, dando ao visitante a impressão de mergulhar num
mundo de penumbra. Nessa sala, contígua àquela onde estão as obras do famoso Fernando Diniz,
notei de imediato que os quadros tinham um elemento comum, chamando a atenção: rostos.
Perplexos, com expressões tocantes, havia, em quase todos os quadros daquela sala, rostos. Rostos
que me olhavam do fundo das pinturas iluminadas, quase como se fizessem um pedido mudo de
socorro.
De imediato, eles me impressionaram. Passei por eles, um por um, sentindo cravados em mim
aqueles olhares pedintes, repletos de uma angústia indefinida. Repito: parecia que eles me pediam
socorro.
Como a sala era um pouco escura e eu não vira na entrada nenhuma indicação sobre a autoria
daqueles quadros, julguei que também fossem de Fernando Diniz, só que talvez pertencentes a uma
outra fase do pintor, já que eram em tudo diversos das obras da sala anterior. Mas achei-os, aqueles
quadros da sala imersa em penumbra, mais impressionantes que todos os outros.
Só quando cheguei ao fim da sala foi que dei com o painel na parede explicando a autoria deles. Não
eram de Fernando Diniz. Eram de uma mulher. Uma mulher de São Paulo, chamada Aurora Cursina
dos Santos, de quem eu jamais ouvira falar. Sempre me interessei pelo trabalho da Dra. Nise da
Silveira e pelas obras de arte produzidas por pessoas como Arthur Bispo do Rosário, Fernando Diniz
ou Emygdio de Barros. Mas aquele nome, Aurora, era novo para mim. Aproximei-me mais, para ler o
painel, banhado por um foco de luz. E li. Internada ainda jovem com problemas mentais, Aurora
demonstrara, desde o início, uma incrível aptidão para as artes plásticas. Chegou a fazer cursos de
pintura, sendo logo reconhecida por seu talento. Mas tudo isso aconteceu nos anos 50 e naquela
época havia um preconceito ainda maior a respeito das doenças mentais, até hoje tão estigmatizadas.
E o resultado foi que, apesar de seu reconhecido talento, em 1959 Aurora foi submetida a uma
lobotomia, a incisão no cérebro que torna a pessoa quase um vegetal. Senti um arrepio ao ler aquilo.
E não pude evitar olhar para trás. Do fundo de um dos quadros, um par de olhos me encarou, ainda
uma vez. E eu vi que não me enganara. Aqueles olhos pediam socorro.

O sonho
(26/11/2000)

Foi um daqueles sonhos que a princípio não se fazem recordar com clareza. Assim que acordou, ainda
deitada, a mulher sentiu-se tomada pela sensação do sonho – mas não por suas imagens. Era uma
doce inquietação, um rubor, qualquer coisa que lhe pareceu perturbadora, instigante. Uma sensação
forte, muito forte. Mas não conseguia recordar os fatos. Logo sentou-se na beirada da cama e, dando
de ombros, levantou-se, disposta a não pensar mais naquilo.
Mas, enquanto escovava os dentes, tomava banho, bebia seu café preto com torrada, a sensação a
acompanhou. Não como algo contínuo, mas em breves lufadas, sopros que a tomavam de repente,
inesperadamente, num misto de prazer e susto. Nessas ocasiões, parava o que estivesse fazendo e se
concentrava, o rosto franzido, as mãos crispadas, todo seu corpo em alerta, esperando a chegada da
imagem que afinal revelaria o sonho. Mas a imagem não vinha. Apenas a sensação, sempre. A cada
vez que isso acontecia, pensava que era tolice estar tentando recordar um sonho sem importância
(pois se tivesse importância, ela se lembraria). Mas, ao longo do dia, a sensação continuou,
envolvendo-a de quando em quando num doce sobressalto, que qualquer estímulo externo era capaz
de despertar, sem que ela conseguisse determinar por quê.
E era algo crescente. No fim da manhã, percebeu que a sensação deixada pelo sonho dera nova
dimensão a seu dia, preenchido por uma força desconhecida, uma euforia que a fazia sentir-se viva
como há muito tempo não acontecia. Na hora do almoço, estava alegre, leve. Saiu do trabalho a pé e
decidiu dar um pulo na livraria que ficava ali perto. Estava diante de uma estante, estendendo a mão
para apanhar um livro sobre arquitetura gótica, quando, por fim, recordou o sonho num átimo, com
toda a clareza. Sonhara que estava de pé, diante de alguma coisa que lhe prendia a atenção – como
agora –, mas não uma estante de livros e sim uma estátua de mármore, a figura de uma mulher nua,
de cabelos esvoaçantes, sendo enlaçada por um homem. Talvez Apolo e Dafne, de Bernini. Estava
parada, fascinada pela leveza daquelas figuras de pedra, quando alguém chegava por trás. Era um
homem, um desconhecido – ela sabia. Mas não tinha medo ou surpresa, nem mesmo ao perceber que
ele se aproximava muito, quase tocando-a, e sussurrava algo em seu ouvido. Não conseguia discernir
as palavras, mas a doçura daquele sussurro fazia seu sangue ferver. E, de olhos fechados, sentia os
lábios dele pousarem de leve em seu pescoço.
A sensação daquele beijo – suave, reverencial, apaixonado, mas ao mesmo tempo absurdo e
proscrito, por vir de um estranho – era a força motriz que transformara seu dia. Suspirou, retirando o
livro da estante. E já ia começar a folheá-lo, quando percebeu a sombra, aproximando-se por trás.
Imobilizou a mão sobre a página, o coração em sobressalto, enquanto a sombra aproximava-se mais e
mais, já quase a ponto de tocar-lhe a pele. E sorrindo ela fechou os olhos, à espera do beijo.

O perfume
(3/12/2000)

Não era uma manhã alegre. Eu acordara um pouco acabrunhada e, antes de sair, olhara pela janela, a
estreita janela do meu quarto, de onde vejo apenas telhados, paredes e uma nesga de céu, acima da
confusão de fios e antenas. No prédio bem em frente ao meu, o revestimento vibrava de luz, mas os
vidros refletiam um céu esbranquiçado, triste. Olhei para cima e vi que uma névoa engolira o azul,
deixando o mundo monocromático. Eu já estava atrasada para o trabalho e, como era dia de feira e
não haveria onde estacionar, teria de ir a pé. Portanto, não podia perder mais tempo. Foi assim,
portanto, sem muita cor nos olhos ou na alma, que saí de casa naquela manhã.
Com passos apressados, apanhei a correspondência no escaninho do correio, junto com a revista
americana que recebo toda semana. Depois de guardar as cartas na bolsa, dobrei a revista em dois, ao
comprido, e com ela debaixo do braço atravessei a porta de vidro. Assim que cheguei do lado de fora,
senti o perfume.
Inspirei fundo. Parecia jasmim. Engraçado. Não sabia que havia pés de jasmim por ali. E pensava que
os jasmins cheiram mais à noite. Inspirei de novo, mas no segundo seguinte lembrei que estava
atrasada e apertei o passo. O cheiro, porém, continuou. Sim, jasmim. Só que um pouco mais doce,
mais forte, talvez jasmim-do-cabo, daqueles grandes, que minha avó plantava no sítio, debaixo de sua
janela. Nunca soube de nenhum pé de jasmim naquela rua.
Segui em frente, dando de ombros. Dobrei a esquina. Já começava a pensar no trabalho que tinha
para entregar quando o cheiro me envolveu outra vez. Cheguei a parar, por um instante. Como podia
o cheiro continuar, tantos metros adiante? De que poderosa fonte viria? Olhei em volta. Talvez
alguém perfumado que caminhasse comigo pela calçada. Mas a rua estava deserta. Inspirei com toda
a força. Não, era mais forte que jasmim. Talvez fossem lírios. Ou angélicas. E pensei de repente no
amigo morto há muitos anos, que gostava do cheiro de angélicas. Na manhã de sua morte, ao entrar
em casa, eu sentira um perfume forte. Chegara a pensar que alguém já comprara as flores que
levaríamos para o enterro. Mas não havia flor alguma.
Recomecei a caminhar com passos mais lentos, sem saber o que pensar, fascinada pelo perfume e
pela lembrança. Até que, ao parar na beira da calçada para atravessar a rua, a revista americana que
eu levava debaixo do braço caiu ao chão. Abaixei-me para apanhá-la e o cheiro me invadiu, mais forte
do que nunca. Só então entendi. O cheiro vinha da revista. De um daqueles anúncios em que o
fabricante imprime uma gota de perfume numa página dobrada, para atrair o consumidor. O cheiro
de angélicas, envolvente, doce, quase sobrenatural, nada mais era do que um anúncio de revista.
E minha manhã – agora sem cor e sem perfume – voltou a ser apenas uma manhã comum.

A faca
(10/12/2000)

Seria um exame de rotina. Ele andava sentindo umas dores nas costas, um pouco de falta de ar, mas
acreditava – e o médico que o atendera também – ser apenas um mau jeito, misturado talvez com um
pouco de cansaço. De fato, andava muito extenuado. Pelas dúvidas, o médico sugerira que ele fizesse
um raio-X do tórax.
Foi até a seção de radiologia e sentou-se na sala de espera vazia. Começava a folhear uma revista
quando um enfermeiro, todo vestido de azul, veio chamá-lo. Seguiu o rapaz por um corredor
comprido e entrou na sala de raio-X. O enfermeiro ajudou-o a tirar a camisa e a encostar-se ao
aparelho, com as recomendações de praxe para que parasse de respirar e ficasse imóvel na hora em
que fosse batida a chapa. Ele fez tudo que lhe foi pedido, voltando para a sala de espera, onde em
seguida receberia o resultado.
Nem dez minutos tinham transcorrido quando a porta se entreabriu e o enfermeiro espiou,
desaparecendo um segundo depois. Tinha uma expressão estranha. Mais alguns minutos e a porta se
abriu de novo. Agora, era o médico que o atendera. Também o olhava de um jeito diferente. Sem
dizer nada, fez sinal para que o seguisse.
Ele se levantou e foi atrás.
– Surgiu um problema e vamos precisar repetir – disse o médico.
– Problema? – perguntou, quando já chegavam ao fim do corredor. Mas o médico não disse mais
nada. Entraram numa sala em cuja parede havia um quadro de luz. E nele uma chapa, pendurada. O
médico apontou para o quadro, ainda em silêncio.
Ele chegou mais perto. Seu coração estava acelerado. Era uma chapa de tórax. Muito provavelmente a
que acabara de tirar. Mas não uma chapa qualquer. Porque o raio-X mostrava, com toda a clareza,
uma faca atravessada em sua garganta.
– O radiologista me chamou, mas não encontramos explicação. A chapa de raio-X vem selada da
fábrica e não há como botar uma faca dentro do aparelho. Sabe que, por um momento, eu cheguei a
pensar que a faca estivesse realmente cravada no pescoço do senhor? É incrível! Nunca vi nada
igual…
Ele não disse nada.
– O radiologista garante que não pode ter sido na hora da revelação… – insistiu o médico, ele próprio
parecendo ainda mais perplexo do que o paciente. – Mas é claro que vamos entrar em contato com o
fabricante das chapas e…
Ele já não parecia ouvir o que o doutor dizia. Deu alguns passos para trás, o olhar vítreo, levando
instintivamente a mão à garganta. Num segundo, a falta de ar voltara – mais forte do que antes. E,
com um esgar, quase um arremedo de sorriso, ele pensou de repente na mulher que abandonara. Ela
jurara vingança.
Viagem
(17/12/2000)

Foi uma sensação repentina, que me pegou de surpresa. Um conhecido meu, dono de um sebo,
comprara de uma editora algumas caixas contendo dezenas de livros lançados nos anos 60, mas que
por alguma razão tinham ficado esquecidos num depósito, sem jamais chegar às livrarias. Eram,
assim, livros antigos porém novos, já que nunca tinham sido lidos – ou sequer abertos.
Ele me indicou o canto da livraria onde estavam e eu fui até lá espiar. Olhei para a estante, reluzente
de lombadas novas em meio ao caos sempre reinante em sebos, e dei logo com o título em letras
pequenas, como se datilografadas numa velha máquina de escrever: “A borboleta amarela”. Rubem
Braga. Tirei-o da estante com reverência, envolta por uma estranha sensação, por saber que aquele
livro tivera de esperar quase quarenta anos para ser tocado, aberto – lido.
Examinei primeiro a capa. O título e o autor também vinham em letras minúsculas, como se
datilografadas, e a asa de uma borboleta, com seus desenhos estriados, abria-se sobre o fundo
amarelo forte, quase mostarda, que continha ainda o nome da editora: Editôra do Autor. Assim
mesmo, com acento, como era antigamente. Fascinada com aquele visual gráfico dos anos 60, abri o
livro. E me vi, num átimo, transportada para um outro mundo.
A cor do papel, seu cheiro e textura, a tipologia usada na época, tudo me remetia a um tempo
passado. Eu já lera muitos livros antigos, usados, mas nunca um como esse, velho-novo, guardando
em suas páginas limpas o frescor de um objeto intocado. Por serem novas, aquelas páginas que eu
olhava tinham exatamente – exatamente – o mesmo aspecto de tantos livros que eu abrira um dia,
adolescente ainda, descobrindo os mistérios da leitura.
A sensação que me percorria era a mesma sentida quando, ao chegar de uma livraria, abria um
exemplar de Graciliano Ramos ou José Lins do Rêgo, mais de trinta anos antes. Ou quando esquecia
da vida dentro da biblioteca de meu tio, com suas poltronas de couro tacheado e as estantes forrando
as paredes, de alto a baixo. Lá fora, através da janela, eu via o azul sem igual do céu da Bahia, mas
nada – nada – me atraía para a rua. Gastava as tardes das minhas férias ali, entre aquelas paredes,
sentindo o cheiro dos livros.
E agora aquele mesmo cheiro estava de volta. Não o cheiro de um livro antigo – mas o cheiro de um
livro congelado no passado. E não apenas o cheiro. Tudo o mais. Todos os meus sentidos me
transmitiam a mesma mensagem. No exato instante em que meus dedos tocaram as bordas das
páginas, de recorte incerto, e meus olhos se fixaram naquele papel cor de creme, que se mantivera
novo, foi como se eu já não estivesse ali. Tinha sido transportada no tempo – instantaneamente.

O roubo da árvore
(24/12/2000)

Era um homem tímido e solitário – mas não triste, de jeito algum. E tinha fascínio pelo Natal. Dizem
que as pessoas sozinhas têm horror a essa época, quando a solidão se faz sentir de forma mais aguda.
Mas ele não. Adorava as festas de fim de ano. Vivia só num apartamento antigo, cercado de prédios
modernos que tinham crescido em torno como cogumelos, mas da janela da sala tinha a visão de um
bom pedaço do espelho d’água da Lagoa. E o melhor pedaço de todos – pois era bem ali que a
prefeitura armava a árvore de Natal.
Quando chegava novembro, ele – que já passava dos 60 – acompanhava a construção da árvore como
uma excitação infantil. A imensa estrutura metálica levava semanas sendo armada e, depois de
pronta, era deslocada até o meio da Lagoa, felizmente ainda dentro de seu campo de visão. Ali ficaria,
toda iluminada, até o Dia de Reis.
Este ano, a estrutura da árvore parecia ainda maior do que nos anos anteriores. Além disso, o homem
lera no jornal que ela teria uma iluminação ainda mais espetacular, com vários padrões de luzes
controlados por computador. Foi também através do jornal que ficou sabendo a data em que a árvore
seria acesa, em meio a uma chuva de fogos de artifício. E esperou, ansioso.
No dia marcado, acordou cedo e foi espiar para ver se a árvore já fora rebocada até seu lugar
definitivo. E então percebeu, com um choque, que ela havia desaparecido. Encostou-se ao parapeito
da janela, os olhos varrendo o espelho d’água em busca de uma explicação, algum sinal. Nada. O que
teria acontecido?
Após algum tempo, concluiu: com certeza este ano tinham decidido colocá-la um pouco mais para lá,
perto do Cantagalo, onde ele ouvira dizer que fora montado um palco, para um show. Se fosse isso,
não haveria jeito. Teria de se conformar. Mas sentia-se ofendido, perplexo. Aquele sumiço o atingia
pessoalmente. Tinham roubado sua árvore de Natal.
Torceu as mãos, ainda guardando a esperança de que, na hora da cerimônia, a árvore estivesse de
volta ao espaço onde sempre ficara. Mas, à noite, foi com os olhos úmidos que ouviu o espoucar dos
primeiros fogos da festa. Por cima dos edifícios altos, lá pelas bandas do Cantagalo, viu os clarões dos
fogos de artifício – apenas os clarões, mais nada. Àquela altura, sua árvore já devia estar toda
iluminada, cintilando no meio da Lagoa – mas para outros olhos, pensou. E foi dormir com o coração
triste.
No dia seguinte, evitou ir à janela. Andejou pela casa o dia inteiro, sem muito o que fazer, pois era
domingo. Remexeu em papéis velhos, leu um pouco, ouviu música, mas preferiu não assistir ao
noticiário da televisão. Já era de noitinha quando ouviu um barulhinho de chuva e, quase sem
perceber, foi até a janela espiar. Seus olhos de velho-menino então ficaram úmidos, como a noite lá
fora.
No meio da Lagoa, brilhando por entre as gotas de chuva, lá estava ela. Sua árvore de volta.

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