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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS
MESTRADO EM LETRAS NEOLATINAS

LINGUAGEM E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ALUNOS BRASILEIROS EM


MOBILIDADE GEOGRÁFICA E LINGUÍSTICA NO CONTEXTO DA FRONTEIRA
BRASIL/VENEZUELA

ANCELMA BARBOSA PEREIRA

Rio de Janeiro
2012
Linguagem e construção identitária de alunos brasileiros em mobilidade
geográfica e linguística na fronteira Brasil/Venezuela

Ancelma Barbosa Pereira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade
de Letras, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Linguísticos Neolatinos, opção: Língua
Espanhola).

Orientador: Prof. Dr. Pierre François G. Guisan

Co-Orientadora: Profa. Dra. Déborah de Brito A. P.


Freitas

Rio de Janeiro
Setembro de 2012
TERMO DE APROVAÇÃO

Linguagem e construção identitária de alunos brasileiros em


mobilidade geográfica e linguística na fronteira Brasil/Venezuela.

Ancelma Barbosa Pereira


Orientador: Prof. Dr. Pierre François G. Guisan
Co-Orientadora: Profa. Dra. Déborah de Brito Albuquerque Pontes Freitas

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras


Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos
Linguísticos Neolatinos – Opção: Língua Espanhola).

Examinada por:

_________________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Pierre François G. Guisan – UFRJ

_________________________________________________
Profa. Dra. Leticia Rebollo Couto – UFRJ

_________________________________________________
Profa. Dra. Telma Cristina Almeida Silva Pereira – UFF

________________________________________________
Profa. Dra. Maria Mercedes R. Quintans Sebold – UFRJ, Suplente

________________________________________________
Prof. Dr. Xoán Carlos Lagares Diez – UFF, Suplente

Rio de Janeiro
Setembro de 2012
Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)
Biblioteca Central da Universidade Federal de Roraima

P436l Pereira, Ancelma Barbosa


Linguagem e construção identitária de alunos brasileiros
em mobilidade geográfica e linguística no contexto da
fronteira Brasil/Venezuela / Ancelma Barbosa Pereira. – Boa
Vista, 2012.
123 p. ; il.
Orientador: Prof. Dr. Pierre François G. Guisan.
Co-orientadora: Profa. Dra. Débora de Brito A. P. Freitas.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas.

1 – Linguagem. 2 – Identidade. 3 – Fronteiro. I - Título. II –


II – Guisan, Pierre François G. (orientador). III - Freitas,
Déborah de Brito Albuquerque Pontes (co-orientadora).
CDU: 801:37(81:87)
RESUMO

Linguagem e construção identitária de alunos brasileiros em mobilidade


geográfica e linguística na fronteira Brasil/Venezuela.

Ancelma Barbosa Pereira


Orientador: Prof. Dr. Pierre François G. Guisan
Co-Orientadora: Profa. Dra. Déborah de Brito Albuquerque Pontes Freitas

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção: Língua Espanhola).

Entre os diferentes ambientes que compõe a diversidade linguística e cultural do


estado de Roraima está o cenário desta pesquisa, a fronteira Pacaraima-BR/Santa
Elena-VE. Sob a ótica de que o mundo transcultural em que vivemos hoje carece
cada vez mais de questões sobre linguagem e identidade, sobretudo em contextos
de fronteira geográficas ou imaginárias, o objetivo deste estudo qualitativo foi
compreender como as diversas representações das línguas, espanhol e português,
interagem na construção identitária de brasileiros alunos de uma escola estadual no
município de Pacaraima-RR, em contexto de mobilidade geográfica e linguística na
fronteira Brasil/Venezuela. À luz do aporte teórico/metodológico da Linguística
Aplicada, os registros foram coletados através de diário de campo, atividade de
grupo focal – GF (gravada em vídeo) e entrevistas (gravadas em áudio), que em
seguida foram transformados em dados para serem analisados a partir de teorias de
distintas áreas – Linguística Aplicada, Sociolinguística Interacional e Estudos
Culturais, por assim citar. A análise feita propõe que o tratamento dado à variedade
venezuelana no sistema escolar parece ser de desprestígio quando esta é
comparada à língua portuguesa e à variedade peninsular, porém, no que diz respeito
a esta última, tal atitude não é compartilhada pelos participantes da pesquisa. De
modo geral o comportamento linguístico dos participantes está condicionado: a) pela
função externa da língua marcada por dois ambientes, a escola e o comércio em
Santa Elena, onde, neste segundo, o espanhol prevalece; e b) pela necessidade de
marcar a identidade, logo o pertencimento a um dos lados da fronteira, outros
símbolos extralinguísticos também são usados com este intuito.

Palavras-chave: língua(gem), identidade e fronteira

Rio de Janeiro
Setembro de 2012
RESUMEN

Linguagem e construção identitária de alunos brasileiros em mobilidade


geográfica e linguística na fronteira Brasil/Venezuela.

Ancelma Barbosa Pereira


Orientador: Prof. Doutor Pierre François G. Guisan
Co-Orientadora: Profª Dra. Déborah de Brito Albuquerque Pontes Freitas

Resumen da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação


em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção: Língua Espanhola).

Entre los diferentes ambientes que componen la diversidad lingüística y cultural del
estado de Roraima está el escenario de esta investigación, la frontera Pacaraima-
BR/Santa Elena-VE. Bajo la visión de que el mundo transcultural en que vivimos hoy
carece cada vez más de cuestiones sobre lenguaje e identidad, principalmente en
contextos de fronteras geográficas o imaginarias, el objetivo de este estudio
cualitativo fue comprender cómo las diversas representaciones de las lenguas,
español y portugués, interactúan en la construcción identitaria de alumnos brasileños
de una escuela estadual en el municipio de Pacaraima-RR, en contexto de mobilidad
geográfica y lingüística en la frontera Brasil/Venezuela. Ala luz dela aporte
teórico/metodológico de la Lingüística Aplicada, los registros fueron colectados a
través de diario de campo, actividad de grupo focal – GF (gravada en video) y
entrevistas (grabada en audio), que enseguida fueron transformados en datos para
ser analizados a partir de teorías de distintas áreas – Lingüística Aplicada,
Sociolingüística Interacional y Estudios Culturales, por así citar. El análisis hecho
propone que el tratamiento dado a la variedad venezolana en el sistema escolar
parece ser de desprestigio cuando ésta es comparada a la lengua portuguesa y a la
variedad peninsular, pero, en lo que se refiere a esta última, tal actitud no es
compartida por los participantes de la investigación. De manera general, el
comportamiento lingüístico de los participantes está condicionado: a) por la función
externa de la lengua marcada por dos ambientes: la escuela y el comercio en Santa
Elena, donde, en este segundo, el español prevalece; e b) por la necesidad de
marcar la identidad, por lo tanto la pertenencia a uno de los lados de la frontera,
otros símbolos extralinguísticos también son usados con esta intención.

Palabras-claves: lengua(je), identidad y frontera

Rio de Janeiro
Setembro de 2012
ABSTRACT

Linguagem e construção identitária de alunos brasileiros em mobilidade


geográfica e linguística no contexto da fronteira Brasil/Venezuela.

Ancelma Barbosa Pereira


Orientador: Prof. Dr. Pierre François G. Guisan
Co-Orientadora: Profa. Dra. Déborah de Brito Albuquerque Pontes Freitas

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção: Língua Espanhola).

Among the several environments which form the linguistic and cultural diversity of the
state of Roraima was found the scenario for this research, which is the border
between Brazil and Venezuela, more specifically the cities of Pacaraima, BR and
Santa Elena, VE. Under the optics that the nowadays transcultural world we live in,
demands ever more questionings about the language and identity, especially in
environments of geographical or imaginary bordering. The purpose of this qualitative
study was the comprehension on how the many representations of the languages,
Spanish and Portuguese, interact in the identity construction of Brazilian students in
a State school in the city of Pacaraima, RR, in the context of the geographical and
linguistic mobility on the border Brazil/Venezuela. Under the light of the theoretical
and methodological support of the Applied Linguistics, the records were collected
through field diary, focal group activity – GF (filmed) and interviews (recorded), which
were after transformed into data to be analyzed based on theories of distinct areas –
Applied Linguistics, Interactional Sociolinguistics and Cultural Studies, as they can
be cited. The performed analyses points out that the treatment given to the
Venezuelan variant in the school system seems to be of disregard in detriment of the
peninsular variant and the Portuguese Language, although in respect to the attitude
of the participants, such position is not sustained, once they demonstrate worries in
the usage of the Spanish language with the Venezuelans, which possibly
demonstrate a valuing to the neighbor`s variant. In a general sense the linguistic
behavior of the participants is conditioned: a) by the external function of the language
marked by the two environments, which are the school and the commerce in Santa
Elena, where, in the second, Spanish surpasses; and b) by the necessity of an
identity mark, in face of the belonging to one of the sides of the border, though other
extralinguistic symbols are used for that purpose as well.

Key-words: language, identity, border

Rio de Janeiro
Setembro de 2012
Dedicatória

A minha querida irmã, hoje eu, amanhã você.


Àquela que sempre esteve comigo, que admiro e amo
incondicionalmente, minha mãe.
Ao meu sobrinho que trouxe mais alegria a minha vida.
Agradecimento

Ao Pierre Guisan, meu orientador, pelos diálogos prazerosos que tivemos durante as
disciplinas e no período em que estive no Rio de Janeiro.

À minha querida co-Orientadora, Déborah Freitas, não apenas por sua competência
e orientação que me ajudaram a amadurecer enquanto pesquisadora, mas,
sobretudo, pela dedicação, amizade e companheirismo; pelas nossas conversas que
sempre me tranquilizaram e incentivaram a continuar.

À UFRJ, UFRR e CAPES pela viabilização do mestrado.

Aos professores da UFRJ pelas disciplinas ministradas, em especial à professora


Mercedes Sebold, pela recepção e apoio ao grupo do MINTER no Rio de Janeiro,
pelas contribuições e palavras de incentivo via e-mail; e à professora Leticia Rebollo
pelas conversas iniciais que me incentivaram a iniciar a pesquisa em campo e pela
colaboração para oficialização da minha defesa.

Aos colegas do MINTER, sobretudo, Duí, Maria Francisca, Geusa, Francisco e


David, este último pela paciência de ouvir minhas inquietações e pelas inúmeras
discussões teóricas que tivemos ao longo do curso.

Às colegas da UFRR, Silva e Lúcia; e da UFRJ, Mariana e Rachel pelas conversas e


incentivo.

A Aline, Darlete, Erich, Mara Gardeane e Naiara pela amizade e pelas contribuições
no momento final da redação da dissertação.

À todos os colegas, amigos e parentes pela torcida e incentivo.

A minha família que sempre me apoiou e me fortaleceu com seu amor.

Àquele que sempre me guia mesmo nos momentos em que estou distante do seu
caminho.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 01
CAPÍTULO 1 – CONTEXTUALIZANDO A FRONTEIRA BRASIL/VENEZUELA: AS
DIFERENTES IMPLICAÇÕES …………………………………………....................……... 05
1.1 Aspectos históricos e socioeconômicos …………....…………………….............… 05
1.2 Representações do outro ...................................................................................... 11
1.3 Cenário educacional: algumas questões ............................................................... 14
CAPÍTULO 2 – PENSANDO NUMA ABORDAGEM PARA ALÉM DAS
FRONTEIRAS................................................................................................................... 19
2.1 Língua(gem), identidade e o papel da representação ........................................... 19
2.2 As línguas ditas nacionais como representações identitárias ............................... 35
2.3 O sujeito de/em duas línguas ................................................................................ 44
2.4 A linguagem no entre-lugar: algumas perspectivas de fronteiras ......................... 53
CAPÍTULO 3 – DESENHO DA PESQUISA ................................................................... 59
3.1 Uma perspectiva transdisciplinar ........................................................................... 59
3.2 Procedimentos de geração dos registros e sistematização dos dados ................. 61
3.2.1 Diário de campo ............................................................................................. 62
3.2.2 Grupo Focal ................................................................................................... 63
3.2.3 Entrevistas individuais ................................................................................... 65
3.3 Definindo os sujeitos da pesquisa e a mobilidade geográfica ............................... 68
CAPÍTULO 4 – UM OLHAR SOBRE SUJEITOS ENTRE-LÍNGUAS E ENTRE-
CULTURAS....................................................................................................................... 71
4.1 Cenário de investigação e a ressignificação dos seus sujeitos ............................. 71
4.1.1 Santa Elena: “é melhor de se viver” ............................................................... 71
4.1.2 Representações do cenário educacional ....................................................... 73
4.2 Mito linguístico: um território, uma língua! ............................................................. 77
4.3 Primeiras impressões na língua do outro: “não! no começo... Ave Maria!” ........... 84
4.4 Representações linguísticas do indivíduo na (da) fronteira ................................... 88
4.5 Espanhol ou castelhano?... “aqui é falado o castelhano não é o espanhol” ......... 104
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 110
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS .................................................................................. 113
ANEXOS .......................................................................................................................... 118
1

INTRODUÇÃO

Começo este texto tentando recuperar a motivação inicial para o


desenvolvimento desta pesquisa e os distintos caminhos que, posteriormente,
contribuíram para a delimitação e redefinição do tema. Neste intuito, retomo alguns
fatos antecedentes à construção da proposta desse trabalho que me ajudaram a
organizar e canalizar as minhas ideias no sentido de definir o que de fato me
interessaria pesquisar, já que esta era uma tarefa totalmente nova para mim.

Em primeiro lugar, lembro-me que durante uma oficina sobre elaboração de


projetos de pesquisa1 promovida pela professora Profa. Dra. Déborah Freitas,
atualmente minha co-orientadora, discutíamos sobre a inquietação que nos leva a
pesquisar determinado assunto. Na ocasião, a professora dizia que às vezes essa
inquietação surge de uma experiência pessoal em um contexto, ou de uma
curiosidade sobre algo novo, de uma observação sobre determinada situação, não
necessariamente sob orientação de leituras específicas, e, outras vezes, poderia
partir de leituras teóricas, de discussões, interrogativas e propostas de pesquisas.

Da minha parte, vivenciei um pouco de cada coisa, pois enquanto professora


de língua espanhola do ensino público fundamental e médio e do ensino tecnológico
numa instituição privada do estado de Roraima, não haveria como não refletir sobre
o ensino do espanhol como língua estrangeira (doravante ELE) num cenário de
grande diversidade linguística e cultural ocasionada, principalmente, por três fatores:
a posição geográfica do estado, pois pertence a uma tríplice fronteira com os países
Venezuela e República Federativa da Guiana; as inúmeras imigrações nacionais e
transnacionais; e a grande variedade de línguas indígenas presentes no estado2.

Durante visitas feitas à fronteira Pacaraima-BR/Santa Elena-VE,


especialmente a Santa Elena de Uairén (doravante Santa Elena), não apenas na

1
Oficina promovida pelo Programa de Educação Tutorial – Letras (PET-LETRAS) da Universidade
Federal de Roraima – UFRR, no primeiro semestre de 2010.
2
Segundo Aryon Rodrigues (2002), Roraima possui 12 línguas indígenas faladas em seu território:
Makuxi, Ye’kuana ou Maiongong, Taurepang ou Pemóng, Patamona, Sapará, Wai-Wai, Waimiri-
Atroarí, Ingarikó –que pertencem à família linguística Caribe; Yanomami, Sanumá e Yanomama –
família Yanomámi; Wapixana – família Aruak.
2

condição de turista, mas também como profissional em visitas técnicas3 ou com o


intuito de adquirir materiais didáticos, passei a olhar a fronteira não apenas como um
espaço de limitações territoriais, mas como um espaço geográfico e imaginário de
encontros e desencontros resultantes do intenso contato entre línguas e culturas ali
existentes4. A partir de então, vendo que este contexto me interessava, passei a
fazer leituras sobre fronteira5 que me foram substancialmente instigadoras,
sobretudo, a pesquisa de Braz (2004)6, primeiro trabalho de cunho linguístico
realizado na fronteira Brasil/Venezuela, desenvolvida no cenário escolar de
Pacaraima.

De conhecimento do cenário escolar de Pacaraima sob a perspectiva de


Braz (2004) e de discussões com outros profissionais, particularmente da área da
linguagem, passei a direcionar o foco para a situação de mobilidade geográfica e
linguística dos alunos brasileiros que, por motivos econômicos, residem em Santa
Elena7, desenvolvendo suas vidas sociais, em grande parte, no território
venezuelano ambiente onde prevalece o uso da língua espanhola. Dessa maneira,
percebi que as questões de língua e identidade eram pontos que careciam de
estudo.

Para considerar um entendimento mais próximo da realidade desse


contexto, dos fenômenos que ali estão ocorrendo, não pude ignorar as mudanças
significativas que as novas paisagens culturais do mundo têm apresentado,
motivadas, principalmente, pela globalização e novas tecnologias que tem
aumentado o número de línguas e culturas em contato proporcionando novas
práticas culturais e linguísticas hoje. Enquanto educadora e, agora pesquisadora,
entendo que essa diversidade de língua e cultura em interação não pode ser
desconsiderada nas pesquisas e práticas educativas, devendo ser esta uma

3
Atividade desenvolvida como parte das minhas atribuições enquanto professora de língua espanhola
em escolas de idiomas e no curso Tecnólogo em Secretariado e Comércio Exterior da Faculdade
Estácio Atual, esta última a qual ainda pertenço.
4
Informações detalhadas sobre a fronteira serão fornecidas no capítulo “contextualizado a fronteira
Brasil/Venezuela: as diferentes implicações”.
5
Alguns dessas Leituras estão no Capítulo Teórico.
6
Monografia apresentada ao curso de Especialização em Ensino-Aprendizagem de Língua e
Literatura, do Centro de Comunicação, Educação e Letras da Universidade Federal de Roraima
intitulada “O contato linguístico em área de fronteira Brasil/Venezuela, o português e o espanhol nas
escolas de Pacaraima”.
7
Detalhes sobre essa mobilidade serão apresentados no primeiro e terceiro capítulo.
3

preocupação inclusive para aqueles que não fazem pesquisa na área de


multilinguismo e multiculturalismo, o que não é o caso deste estudo.

Tendo em conta que a situação de deslocamento geográfico e linguístico


desses brasileiros contribui de forma acentuada para o cenário sociolinguísticamente
complexo da fronteira, esta pesquisa teve como objetivo compreender como as
diversas representações das línguas, espanhol e português, interagem na
construção identitária de brasileiros alunos de uma escola Estadual no município de
Pacaraima-RR, em contexto de mobilidade geográfica e linguística na fronteira
Brasil/Venezuela.

Para dar conta desse objetivo busquei responder a seguinte pergunta de


pesquisa que norteia este trabalho: De que forma as diversas representações das
línguas, português e espanhol, interagem na construção identitária de
brasileiros, alunos de uma escola estadual no município de Pacaraima-BR, em
contexto de mobilidade geográfica e linguística na fronteira Brasil/Venezuela?
A pergunta maior se completa nas subperguntas a seguir: a) Enquanto sujeitos
residentes em Santa Elena-VE e estudantes em Pacaraima-BR, como os alunos
brasileiros se sentem nessa mobilidade geográfica e linguística que vivenciam?; b)
Em quais contextos e com quais interlocutores os estudantes brasileiros interagem
em língua portuguesa e espanhola?; c) Como se dão as práticas linguísticas dos
alunos brasileiros na fronteira enquanto resultado do contato linguístico e
intercultural entre os venezuelanos e brasileiros?; e d) Que relação os indivíduos em
foco estabelecem entre a fronteira geopolítica e as línguas, ditas oficiais, faladas
nela?

Esta dissertação está organizada em quatro capítulos. No capítulo 1,


exponho um breve contexto histórico e socioeconômico da fronteira
Brasil/Venezuela. Em seguida, no capitulo 2, apresento a fundamentação teórica
que dá embasamento a este trabalho. Na primeira parte, focalizo a questão da
representação, a forma como a linguagem participa do processo de significação e
este, por sua vez, justifica a impossibilidade de ainda se compreender a identidade
nos moldes tradicionais: como, homogênea, estável e imutável. Esta discussão se
fez necessária não só para problematizar algumas limitações da noção de sujeito
enquanto falante de uma determinada língua, mas também para contemplar as
4

muitas possibilidades que uma língua pode criar para seu usuário. Para tanto,
proponho a discussão das noções de língua(gem), cultura, identidade e
representação, à luz dos teóricos dos Estudos Culturais e da sociologia, como, Hall
(2000, 2006) e Silva (2000 e 2006) e Woodward (2000), Bauman (2005); da
Linguística Aplicada Maher (2007), Cox e Assis-Peterson (2007), César e Cavalcanti
(2007) e Rajagopalan (2002, 2006). Em seguida discorro sobre as línguas nacionais
como forma de representações identitárias, que, além de alguns teóricos já
apontados acima, estão: Anderson (2008), Berenblum (2003) e Guisan (2007, 2009).
Por último, levanto questões sobre a subjetividade dos sujeitos bilíngues à luz das
concepções teóricas, sobretudo, de Heller (1995), Maher (2007), Mello (1999),
Savedra (2009) e Salgado (2009) e encerro com contribuições de algumas
pesquisas realizadas em fronteira, com Amorim (2007), Braz (2009), Couto (2009),
Pires Santos (2004), Santo (2011) e Sturza (2006).

O capítulo 3 refere-se à fundamentação teórica e metodológica recorrendo


aos respectivos autores da Linguística Aplicada e da Etnografia: Freitas (2007b),
Almeida Filho (2007), Rajagopalan (2006), Denzin e Lincoln (2006). Ainda nesta
seção apresento os procedimentos de geração de registros e a sistematização dos
dados, o cenário de investigação e o perfil dos participantes da pesquisa. Reservo
ao último capítulo a análise dos dados coletados em campo no período entre julho
de 2010 a julho de 2011. Depois da análise, deixo minhas considerações finais e em
seguida, incluo as referências e os anexos.
5

CAPÍTULO 1

CONTEXTUALIZANDO A FRONTEIRA BRASIL/VENEZUELA: AS


DIFERENTES IMPLICAÇÕES

Inicialmente, para que se tenha uma visão aproximada do cenário de


pesquisa desta dissertação apresentaremos algumas informações históricas e
socioeconômicas da fronteira Brasil/Venezuela. Tais informações são de suma
importância para a compreensão de algumas posturas e representações relatadas
no decorrer deste trabalho.

1.1 Aspectos históricos e socioeconômicos

O município de Pacaraima localiza-se ao Norte do Estado de Roraima, a 215


km da capital Boa Vista, fazendo fronteira com cidade de Santa Elena-VE. Limita-se
ao Sul com os municípios de Boa Vista e Amajari, ao Leste com Normandia e
Uiramutã e ao Oeste com o município de Amajari, conforme demonstra o mapa a
seguir:
6

8
Figura: Mapa do Estado de Roraima

Pacaraima, exceto a sede, está inserida nas reservas indígenas de São


Marcos e Raposa Serra do Sol, esta última recentemente demarcada em 2009,
tendo uma área de 8.063,9 Km2 (3,58% da área total de Roraima), sendo a maioria
das terras de domínio indígena com participação de 98,81% em relação ao total do
Município (SANTOS, 2010).

O município possui uma população de 10.433 habitantes segundo


informações do Censo de 2010 (IBGE9) e uma renda baseada no serviço público e
na produção de alguns produtos agrícolas. No caso das comunidades indígenas, o

8
Fonte: Lemos, 2012.
9
Fonte: http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/webservice/frm_urb_rur.php?codigo=140045.
Acesso em: 15 de maio de 2012.
7

potencial produtivo concentra-se na criação de gado bovino de corte e na agricultura


baseada nos produtos básicos10. Além disso, Braz (2010) aponta que o comércio
turístico é entendido pelos brasileiros que vivem na cidade como a atividade
econômica de maior importância.

Conforme Santos (2010), a cidade onde hoje é Pacaraima nasceu de uma


vila criada na década de 1930. Essa vila era o ponto final de uma estrada mal
construída que permitia o translado de tropeiros, vaqueiros e garimpeiros de Boa
Vista para Santa Elena e vice-versa. Ao que parece, pela descrição a seguir, essa
estrada surgiu, principalmente, com o propósito comercial:

Essas viagens eram feitas sobre o lombo de animais de sela e de carga


(bois e cavalos). Em Santa Elena efetuavam a venda de carnes e de gado
bovino, suíno e outros, além dos produtos como ouro e diamantes que
saíam do Brasil sem qualquer fiscalização, e eram negociados naquela
cidade venezuelana onde os brasileiros compravam mercadorias que eram
vendidas em boa vista e nos garimpos da região. A única construção
existente no local do divisor era uma cerca de arame e uma porteira
[rústica], implantadas exatamente na linha que divide as duas fronteiras. Do
lado do Brasil inexistia qualquer controle de fiscalização de entrada e saída
de pessoas e mercadorias. Mas do lado venezuelano já existia, na época,
um posto de fiscalização nas proximidades da cerca [puesto de vigilancia],
que espedia ‘licenças’ para os brasileiros que se destinavam ao distrito de
Santa Elena, então conhecido como centro de comércio ‘brasileño-
venezolano’ da ‘Gran Sabana’. (SANTOS, 2010, p. 362)

O relato acima nos permite constatar não só que a história de criação de


Pacaraima está relacionada à própria história do comércio na fronteira, mas também
que, assim como acontece atualmente, já existia um maior controle na fronteira por
parte dos venezuelanos para a entrada dos brasileiros em seu território. Braz (2010)
também apresenta relatos sobre a criação do município de Pacaraima, porém num
período posterior a década de 30, remete a relatos após a construção da BR-174, ou
seja, a partir da década de 7011. Segundo a autora, esse foi um período onde se
solidificou a migração populacional para a região fronteiriça e as atividades de

10
Segundo informações da página eletrônica oficial do estado de Roraima.
11
Período em que foi construída a rodovia por meio do convênio assinado entre o Departamento
Nacional de Estradas e Rodagem (DNER) e o Ministério do Exército, tendo como objetivo ligar
Roraima ao restante do país e este à Venezuela, conforme informa a página do ministério público
Federal. Além disso, conforme Rosa (2003) a rodovia permite aos produtos brasileiros não só o
acesso ao mercado venezuelano, mas também uma saída para os portos da região do Caribe.
8

mineração em ambos os países o que “impulsionava a economia e propiciava a


atividade comercial” (BRAZ, 2010, p. 45), além disso, ainda conforme Braz (id.), foi o
comércio voltado para os clientes venezuelanos que “possibilitou a fixação dos
brasileiros na região”.

Do outro lado da fronteira brasileira está Santa Elena, capital de Gran


Sabana que é município do Estado de Bolívar. A cidade foi fundada em 16 de
setembro de 1923 por Lucas Fernandez Peña, atraído pelo auge diamantífero do
território12. Sua população está estimada em 29.795 habitantes (Censo de 2006)
composta não só por venezuelanos, mas também por brasileiros, chineses,
japoneses e outras nacionalidades hispano-americanas, além de etnias indígenas. A
economia consiste na atividade do comércio, turismo ecológico e extração de
minério. Segundo Rodrigues (2006), os municípios da fronteira Brasil/Venezuela, ou
seja, Pacaraima e Gran Sabana, apresentam características muito parecidas quanto
a inclusão regional e ocupação dos territórios estaduais e nacionais, nas palavras da
autora: “são municípios de projetos de expansão agrícola, áreas de intensa
exploração mineral ao longo de suas histórias, e possuem um grande contingente de
população indígena” (id., p.5)

Rodrigues (2006) observa que a emigração de brasileiros para Venezuela


está relacionada, principalmente à atividade de mineração, embora hoje esse
cenário tenha se modificado um pouco, constituindo outros perfis de migrantes
brasileiros.

A autora aponta três grandes momentos desse movimento emigratório. O


primeiro ocorre no final da década de 1970 e início de 80 em consequência da
queda da extração de diamantes em Roraima, os brasileiros que emigraram nesse
período instalaram-se no Estado Bolivar, na capital Ciudad Bolivar, Maturin e Santa
Elena, cidade fronteiriça com o Brasil, que serviu como suporte básico para a
atividade de mineração. O perfil dos imigrantes dessa década se caracterizava em
sua maioria por homens sozinhos, nascidos na região Nordeste do Brasil, que
deixavam suas famílias em Boa Vista ou no estado de origem (RODRIGUES, 2006).

12
Fonte: http://www.lagransabana.com/santaelena.htm Acesso em 13.07.2010.
9

Na década de 90, ainda em consequência do declínio da garimpagem em


Roraima somado à demarcação das terras indígenas Yanomami em 1991, surgiu o
segundo movimento migratório composto por um grupo bastante heterogêneo,
podendo ser dividido em três grupos: o primeiro era formado por homens e mulheres
sozinhos ou acompanhados por seus parceiros, as mulheres trabalhavam como
cozinheiras e lavadeiras; o segundo consistia em mulheres e homens entre os 20 e
30 anos que se instalaram na fronteira para atuar nas mais distintas atividades
comerciais, trabalhando em lojas, lanchonete, restaurantes ou como autônomos
(manicure, depiladora e dançarina); já o último grupo de imigrantes caracteriza-se
por pequenos empresários e comerciantes autônomos (RODRIGUES, 2006).

O último período de grande deslocamento teve inicio em 2000, logo após a


transformação da Vila BV-8 em município de Pacaraima, pela Lei Estadual nº 096 de
17 de outubro de 1995, e a cogitação de criação de uma Área de Livre-Comércio na
fronteira. As atividades de mineração diminuíram bastante para a Venezuela neste
período devido às reivindicações das organizações ambientalistas e indígenas para
proibir a extração de minérios nas principais áreas de exploração nas proximidades
da bacia Orenoco e Caroní, fazendo com que o governo venezuelano instituísse
uma política de remanejamento dos venezuelanos para outras atividades e expulsão
dos demais trabalhadores estrangeiros, logo, dos brasileiros (RODRIGUES, 2006).
Esse processo desencadeou o que a autora chama de migração de retorno, pois
muitos brasileiros regressaram para Santa Elena, para trabalharem em serviços
diversos, alguns para os garimpos da República Guiana-GY e outros para Boa Vista-
RR. Além dessa migração de retorno houve outro tipo, que permanece nos dias
atuais, denominado migração para o trabalho que consiste em:

brasileiros e brasileiras que vivem em Pacaraima ou Boa Vista e cruzam a


fronteira para trabalharem em Santa Elena, tanto diária, semanal ou
mensalmente, como periodicamente (trabalho por empreitada, contrato
temporário, etc.). Esse movimento migratório caracteriza-se pela
constituição do trabalhador transfronteiriço, aquele que vive de um lado da
fronteira e trabalha no outro, fazendo na verdade esse um espaço contínuo.
(RODRIGUES, 2006, p. 9)

Com relação à situação de mobilidade dos brasileiros que saíram de


Pacaraima para residirem em Santa Elena, Braz (2004) relata que se configurou por
10

diversos fatores, entre eles a situação de incerteza quanto a permanência da sede


de Pacaraima fora das áreas indígenas já demarcadas aliada a demissão em 2004
de muitos funcionários estaduais não concursados. Além disso, ainda segundo a
autora, essa incerteza motivou os poucos habitantes que chegavam ao município,
em grande parte, recém-funcionários admitidos em concursos públicos, a não
constituírem moradias fixas, passando a viver de aluguel, o que ocasionou a
extinção das vendas de casas e o encarecimento do aluguel, motivo, somado aos
anteriores, pelo qual, alguns brasileiros passaram a viver em Santa Elena, já que
esta apresentava um custo de vida mais barato devido a desvalorização da moeda
venezuelana (BRAZ, 2004).

Embora outros processos sobre a demarcação das terras indígenas estejam


em aberto, no que diz respeito à área Raposa Serra do Sol, recentemente em
200913, foram resolvidas as incertezas quanto à permanência da sede do município
de Pacaraima fora dessa área, fato que motivou o crescimento populacional da
cidade, apesar de muitas situações ainda se mantêm como, o encarecimento do
aluguel, a falta de diversidade de renda financeira e a opção de brasileiros em
residirem em Santa Elena por motivos profissionais: ofertas de emprego
principalmente como vendedor nos diferentes ramos comerciais; atividades
autônomas como lojistas, comerciantes, proprietários de restaurantes, bares,
lanchonetes, salões de beleza; e o benefício quanto ao custo de vida.

Todas as informações apresentadas até o momento foram levantadas na


intenção de compreender as causas e a forma como se deu o processo que motivou
a grande concentração de brasileiros residentes em Santa Elena, e
consequentemente contemplar alguns aspectos da história de migração de cada
participante desta pesquisa, enquanto imigrantes brasileiros, na maioria, filhos de
imigrantes brasileiros, na análise dos diferentes discursos propagados na coleta de
dados.

13
Supremo Tribunal Federal, Pet 3388, Relator Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em
19.03.2009, DIVULG DJe-120 de 30.06.2010.
11

1.2 Representações do outro

Na fronteira, as cidades Pacaraima-BR e Santa Elena-VE são separadas por


uma distância de aproximadamente 15km, na divisa entre os dois territórios os
postos de controles dos respectivos países permitem o fluxo de pessoas das 6h às
22h. Embora exista uma relativa distância entre as duas cidades, a movimentação
diária de um lado para o outro é bastante intensa devido a grande concentração de
brasileiros e venezuelanos que vivem em Pacaraima ou Santa Elena e atravessam a
fronteira para trabalharem no país vizinho, sendo essa situação mais comum entre
os brasileiros, como já foi mencionado anteriormente. Outras situações contribuem
para essa relação entre as duas cidades: o trânsito livre de taxis venezuelanos em
Pacaraima; a opção de uma parte significativa de brasileiros e venezuelanos
residentes em Santa Elena em estudar nas escolas brasileiras; a presença constante
de turistas na fronteira, principalmente dos boa-vistenses que atraídos pelos valores
mais em conta das mercadorias venezuelanas e pela considerável diferença de
preço do combustível aproveitam para fazer compras e abastecerem seus carros,
além disso, Santa Elena é rota para os turistas brasileiros que vão à região de Gran
Sabana e Isla de Margarita.

Embora a convivência na fronteira pareça harmoniosa, há alguns discursos


estigmatizados a respeito dos brasileiros e venezuelanos que foram construídos ao
logo desse intenso contato entre os dois povos na zona fronteiriça. Esses discursos
são diversificados e estão por todas as partes. Por exemplo, os venezuelanos se
queixam que os brasileiros são “um povo abusado” no sentido de querer sempre
reivindicar algo. No que diz respeito às mulheres, embora seja perceptível a união
matrimonial de brasileiras com venezuelanos, há indícios de que em algumas
situações sejam vistas como prostitutas, sobretudo se trajam roupas mais curtas,
essa representação é construída principalmente devido ao grande número de
brasileiras que emigram para a Venezuela para trabalhar em casa de shows ou
prostíbulos, inclusive em Santa Elena.

Da parte dos brasileiros, não é raro ouvirmos, em Boa Vista e Pacaraima,


críticas a possível falta de educação dos venezuelanos, principalmente no que diz
respeito à passagem no posto de controle fiscal venezuelano e durante as compras
12

no comércio em Santa Elena. A publicação de uma notícia jornalística14 sobre a


iniciativa da câmara de produção e comércio do município de Gran Sabana (VE) em
desenvolver estratégias para melhorar o relacionamento entre os turistas brasileiros
e os militares venezuelanos é um indício visível desse discurso. No antepenúltimo
parágrafo da notícia a presidente da câmara do comércio venezuelano, a locutora
brasileira Fátima Araújo, que vive em Santa Elena há 20 anos, diz:

Queremos acabar com esse estigma de que os venezuelanos sejam apenas


pessoas más, que maltratam os turistas ou que somente estão ali para
cobrarem propinas. É claro que fatos parecidos podem acontecer em
qualquer lugar do mundo. Independente de ser no Brasil ou na Venezuela,
ambos precisam um do outro. Os brasileiros colaboram muito com a nossa
economia (ver anexo 1).

O fragmento acima é bastante elucidativo quanto à forma como os


brasileiros veem os venezuelanos e como o comércio na fronteira viabiliza essa
questão, principalmente no que diz respeito ao status de um grupo para com o outro.
A relação consumidor/fornecedor existente respectivamente entre os brasileiros,
sobretudo os boa-vistenses, e os venezuelanos é representada de forma diferente
pelas partes envolvidas, pois de um lado os venezuelanos acham que estão fazendo
um favor aos brasileiros por venderem seus produtos a preços mais em conta que os
praticados em Boa Vista e, por outro lado, os brasileiros reclamam que são
maltratados pelos venezuelanos apesar de estarem contribuindo com uma das
principais fontes de arrecadação da cidade venezuelana que é o comércio.

Outro ponto que compõe este cenário é o contrabando de gasolina de Santa


Elena para Boa Vista. Devido esta situação, atualmente é comum a fiscalização e
cobrança na barreira venezuelana para que os carros brasileiros entrem no território
vizinho com o tanque relativamente completo. Santa Elena possui dois postos de
combustível, mas os brasileiros apenas podem abastecer seus carros no posto
internacional que se localiza logo após a Receita Federal, já em território
venezuelano. Neste posto o combustível é vendido por um preço bastante inferior15

14
Publicada na “Folha de Boa Vista”, um dos jornais de maior comunicação do Estado de Roraima,
em 27 de maio de 2010.
15
A gasolina, por exemplo, é vendida atualmente aos brasileiros por R$ 0,55/litro.
13

aos de Boa Vista e relativamente superior aos do segundo posto localizado após o
centro da cidade de Santa Elena, onde, a princípio, somente os venezuelanos
podem abastecer. Na tentativa de diminuir o contrabando de combustível, segundo
informação do delegado da Polícia Federal Nelson Kneip16, criou-se um sistema de
rodízio de placas para o abastecimento dos veículos, onde cada veículo pode
abastecer duas vezes por semana, no caso de não coincidir a placa do carro de
turista com a do dia estabelecido no rodízio, preenche-se uma ficha de autorização
na Polícia Federal para a liberação do abastecimento. Ainda assim esse processo de
abastecimento é demorado, podendo durar até quatro horas de espera, formando
filas muito extensas, conforme podemos visualizar nas imagens a seguir:

17
Imagem: Fila de carros para abastecimento na fronteira Brasil/Venezuela .

16
Em uma notícia jornalística, sobre o contrabando de gasolina venezuelana em Roraima, publicada
no dia 29 de fevereiro de 2012, em http://www.portalamazonia.com.br/ editora cidades/cresce-
contrabando-de-gasolina-venezuelana-em-roraima. Acesso em 31 de maio de 2012.
17
Acervo pessoal da pesquisadora.
14

18
Imagem: Posto de gasolina da fronteira Brasil/Venezuela no território venezuelano .

Além das consequências do processo histórico de migração, já relatado,


este cenário complexo de contato cultural, e consequentemente linguístico, mediado
por interesses, sobretudo, econômico na fronteira Brasil/Venezuela, também
influencia na análise das representações constituídas pelos participantes desta
pesquisa a respeito das práticas linguísticas e identitárias resultantes da interação
entre os dois povos, já que o reconhecimento do diferente implica refletir sobre as
representações que circulam em uma determinada comunidade a respeito das
culturas e línguas que a contextualizam.

1.3 Cenário educacional: algumas questões

Uma parte da coleta de registro foi realizada na Escola Cícero Vieira Neto,
fundada na sede de Pacaraima em 2001 pelo decreto 4197/E. A instituição atende
alunos do primeiro segmento do ensino fundamental regular (334 alunos), ensino
médio regular (169 alunos) e da modalidade de educação de jovens e adultos - EJA
(321 alunos) que estão distribuídos nos três turnos. Possui um quadro de funcional

18
Acervo pessoal da pesquisadora.
15

composto por 101 funcionários, dentre os quais estão: 02 diretores, 02


coordenadores pedagógicos, 01 orientador educacional e 50 professores.

O cenário educacional aqui em foco, bem como de outras escolas de


Pacaraima, é composto por alunos brasileiros e venezuelanos, dentre os quais
alguns são indígenas, residentes na sede de Pacaraima ou de Santa Elena, sendo
disponibilizado um ônibus escolar pela secretaria de educação do estado de
Roraima, nos três turnos, para atender os alunos que vivem na Venezuela. Na
escola é frequente uso do espanhol nos corredores entre os alunos venezuelanos e
até mesmo entre venezuelanos e alguns brasileiros moradores de Santa Elena.

Com relação à normatização que regula o ensino da língua espanhola na


escola, reiteramos algumas observações já mencionadas por Braz (2004) e Silva
(2011) em suas respectivas pesquisas na escola aqui referida. A língua espanhola é
ensinada na escola, sendo uma disciplina da parte diversificada do currículo escolar
conforme o Parecer CEE/RR Nº 111/07 do Conselho Estadual de Educação de
Roraima. Tal parecer cumpre as exigências da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece um
conjunto de componentes curriculares, disciplinas e estudos que formam a base
nacional comum e a língua estrangeira que integra a parte diversificada a partir do 6º
ano/5ª série do ensino fundamental19. Além disso, dentre as orientações fornecidas
pelo parecer estadual destaca-se:

Tanto as diretrizes curriculares nacionais quanto as estaduais para o ensino


fundamental e médio, para a educação escolar indígena ou para a
modalidade de educação de jovens e adultos buscam oferecer parâmetros
básicos, princípios, fundamentos e procedimentos gerais, norteadores de
uma formação comum e garantia da diversidade e autonomia da proposta
pedagógica de cada escola. (p. 2)

19
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser
complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte
diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da economia e da
clientela. Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série,
o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da
comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição. (Lei Federal nº. 9.394, de 20 de
dezembro de 1996).
16

No que diz respeito à parte diversificada da matriz curricular deste parecer a


indicação é que cada escola desenvolva seu programa de acordo com as suas
necessidades, porém este deve ser apresentado no Projeto Político Pedagógico da
instituição, no caso da escola em questão o projeto ainda não foi concluído. Neste
caso, conforme afirma Silva (2011), os professores de língua espanhola desta escola
elaboram a listagem de conteúdos da disciplina de acordo com “sua expectativa e
experiência em sala de aula” (id., p. 33), ainda segundo a autora, a coordenadora
pedagógica da escola ao ser questionada sobre o assunto simplifica sua resposta
dizendo apenas que os conteúdos a serem trabalhados estão de acordo com a
realidade dos alunos e que apesar dos professores não serem habilitados na área
“falam fluentemente a língua espanhola” (id., p. 36).

A escola é constituída por um ambiente bilíngue, devido à composição dos


alunos que a frequentam e por estar inserida num contexto de fronteira, o que
pressupõe a presença do espanhol venezuelano na escola. Entretanto, segundo
Braz (2010), há indícios de seja o espanhol peninsular a variedade ensinada no
cenário escolar de Pacaraima:

As evidências parecem indicar que a língua estrangeira à qual a escola


atribui prestígio e legitimidade e que compõe a matriz curricular, não é a
mesma língua materna do alunado que ela abriga: o que está posto no
currículo parece não ter relação alguma com o contexto tão peculiar da
instituição escolar. (p. 5)

Durante a coleta de registros da pesquisa que aqui se apresenta


apareceram alguns relatos que indicam tal suposição descrita na citação acima.
Outra questão que não pode deixar de ser mencionada é a invisibilização desse
contexto bilíngue e, inevitavelmente, dos alunos bilíngues que o compõem, uma vez
que não existe, até o momento, nenhum projeto desenvolvido na escola que
contemple de fato essa situação, sendo todos os alunos tratados como falantes de
uma suposta língua homogênea, a língua portuguesa.
17

Embora as escolas da fronteira Pacaraima-BR/Santa Elena-VE pertençam,


desde 2009, ao Projeto Escola Intercultural Bilíngue de Fronteira (PEIBF20), criado
em 2005 por uma ação bilateral Brasil/Argentina, atualmente, o projeto está
desativado. Segundo informações de uma das coordenadoras responsável pelo
PEIBF na fronteira Brasil/Venezuela, Socorro María Lopes, o projeto estava sendo
desenvolvido incialmente na escola municipal Alcides da Conceição Lima em
Pacaraima e na escola integral bolivariana El Salto e escola bolivariana indígena
Santo Antonio de Morichal em Santa Elena. Em 2010 o projeto paralisou por uma
série de problemas, dentre eles: a greve na Venezuela neste período, a falta de
transporte para atender os alunos e professores no translado de uma cidade para a
outra e a diferença no horário de funcionamento das escolas envolvidas, ou seja, as
escolas venezuelanas funcionam período integral e as brasileiras apenas um
período. Além disso, a coordenadora ressalta dois dos diversos problemas
encontrados durante o período em que o projeto estava em vigor que precisam ser
analisados com maior prudência, são eles: a diferença de 30 minutos no fuso horário
entre as cidades e a diferença no calendário escolar das duas cidades, pois em
Pacaraima o período letivo inicia-se em fevereiro e finaliza em dezembro, já em
Santa Elena começa em setembro e encerra em Julho.

Conforme já foi mencionado, esta pesquisa tem como foco a linguagem e a


construção identitária de brasileiros, alunos do ensino médio da escola Cícero Viera
Neto, residentes em Santa Elena. Com o objetivo de compreender como as diversas
representações das línguas, espanhol e português, interagem na construção
identitária dos alunos nesse contexto de mobilidade geográfica, este trabalho está
embasado no pressuposto teórico/metodológico da Linguística Aplicada (doravante
LA), portanto foi usado mais de um procedimento para a coleta de registros, a saber:
diário de campo (DC), grupo focal (GF) e entrevista individual (EI). Foram realizadas
06 visitas à fronteira Brasil/Venezuela: 03 no mês de julho de 2010, à escola de
Pacaraima, para selecionar os participantes que contemplavam o perfil estabelecido
para a pesquisa e, posteriormente, realizar a atividade de Grupo focal com os alunos

20
O Projeto Escola Intercultural Bilíngue de Fronteira (PEIBF) tem como objetivo promover a
integração entre professores e estudantes brasileiros e professores e alunos dos países vizinhos
que pertencem ao Mercosul. As escolas da fronteira Pacaraima-BR/Santa Elena-VE passaram a
fazer parte do projeto no início de 2009. Atualmente o projeto contempla 26 escolas de cinco países
(Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela).
18

selecionados; e 03 no mês de julho de 2011 para efetuar as entrevistas individuais


com os participantes em suas respectivas residências em Santa Elena. Durante todo
o processo de coleta foram feitos registros no diário de campo a partir da
observação participante. Os dados selecionados para esta pesquisa foram
sistematizados a partir da triangulação dos registros gerados nos três procedimentos
de coleta de forma a encontrar confirmações e contestações, nos depoimentos dos
participantes, que direcionaram a análise dos dados.
19

CAPÍTULO 2

PENSANDO NUMA ABORDAGEM PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS

Sendo esta pesquisa de caráter transdisciplinar, neste capítulo


proporcionamos uma discussão teórica recorrendo a diferentes áreas de estudo com
o intuito de conseguir alcançar os objetivos expostos anteriormente. Na primeira
parte, apresentamos uma discussão sobre a definição e relatividade do termo língua,
focalizamos a questão da representação, a forma como a linguagem participa do
processo de significação e este, por sua vez, justifica a impossibilidade de ainda se
compreender a identidade nos moldes tradicionais. Depois, discorremos sobre a
relação língua e nação como resultado dos discursos políticos e ideológicos
construídos a partir de projetos nacionais da era moderna. Em seguida expomos
algumas definições que tratam sobre o bilinguismo e o indivíduo bilíngue e
encerramos essa seção com contribuições de algumas pesquisas realizadas em
fronteira.

2.1 Língua(gem), identidade e o papel da representação

A língua por si só gera grandes discussões quanto à sua definição, já que é


frequente ter-se em conta uma relatividade no que diz respeito ao seu conceito.
Crystal (2005) cita alguns acontecimentos desencadeados no decorrer dos séculos
XIX e XX que provocaram mudanças significativas no propósito e no objeto de
estudo da ciência da linguagem, como: a) a coexistência de várias teorias
linguísticas e, consequentemente, de diferentes formas de se conceber o fenômeno
da linguagem; b) a redescoberta das línguas minoritárias e a criação da política de
preservação da diversidade linguística no mesmo momento em que o inglês se
converte em uma língua universal; c) as novas formas de tecnologias de
comunicação e com elas um novo tipo de comunicação via internet que, segundo o
20

autor, não é considerado nem linguagem escrita, tampouco falada, mas que desafia
as regras do mundo da escrita com abreviações de palavras e diversos recursos
gráficos para “tornar vivo e falado o que está na tela do computador” (Crystal, 2005,
p. 9).

Além disso, o autor chama a atenção para as mudanças linguísticas que


marcaram a década de 1990 e que só foram percebidas após duas décadas
seguintes. Um dos casos citados por Crystal (id.) que contribuiu para essas
mudanças, entendido como início de uma revolução linguística, foi o decreto de
criação do “Dia internacional da Língua Materna”, pela UNESCO em 21 de fevereiro
de 1999, que faz alusão à morte de cinco estudantes em protesto para que o bangla
fosse reconhecido como língua nacional do antigo Paquistão - hoje Bangladesh. O
autor considera esse episódio como uma tentativa de “promover a diversidade
linguística e a educação multilíngue” (id., p.14). Em 2001 outros dois eventos como a
escolha do “Ano Europeu das Línguas” e o estabelecimento do dia 26 de setembro
como o “Día Mundial das Línguas” enfatizaram, respectivamente: a importância da
língua como expressão de identidade cultural no sentido de entendimento
internacional e nacional viabilizando que indivíduos e países se voltassem para um
mundo cultural e comercialmente mais amplo; e o direcionamento das pessoas para
a importância do multilinguismo e do aprendizado de línguas (CRYSTAL, 2005).

A combinação desses acontecimentos, conforme afirma Crystal (id.), produz


mudanças radicais de consciência e comportamento o que nos faz deparar com “a
visão de um futuro linguístico radicalmente diferente do que existiu no passado... no
qual precisamos revisar muitos conceitos criados, relacionados ao modo de pensar e
trabalhar com as línguas” (id., p.17). Ao problematizar os constructos de língua,
linguagem e identidade, Rajagopalan (2006) sugere a integração de forma relevante
das inferências do multilinguismo e do multiculturalismo na formulação de uma
perspectiva mais produtiva de categorias básicas da linguística teórica, a conhecer,
o conceito de “língua” e de “falante de uma língua”. Neste sentido, o autor questiona,
ao revisar a literatura de alguns teóricos como Saussure (1956), Chomsky (1972),
Sapir (1921), Moulon (1969) entre outros, a despreocupação de sucessivas
gerações de linguistas com o fato de não terem apresentado ainda “uma definição
satisfatória que utilizasse apenas critérios linguísticos do que seja ‘uma língua’”
(RAJAGOPALAN, 2006, p.22). Antes de prosseguir com o questionamento, parece
21

necessário esclarecer que: o que Rajagopalan define como “uma língua” se opõe ao
termo “língua” (sem o uso do artigo) para caracterizá-la no sentido individualizante,
opondo-se ao termo língua no sentido genérico ou abstrato (RAJAGOPALAN, 2002;
2006). Esta última, objeto de estudo priorizado pelos “típicos linguistas teóricos” (id.,
p.22), nas palavras do autor, tratar-se de um “todo autocontido”, logo um objeto
menos complexo para análise. Tendo em conta esses esclarecimentos, retomo o
posicionamento de Rajagopalan (2006) no que diz respeito às questões
epistemológicas e conceituais do termo “uma língua”, sendo esta representada, na
maioria das vezes, apenas por uma vaga definição geopolítica enquanto o termo
“língua” pode ser explicado “de modo formal ou funcional, em termos behaviorísticos
ou mentalistas ou em termos de quaisquer uma das outras conhecidas posições
binárias cujas discussões lhes tomam [aos linguistas] uma parte enorme do tempo”
(RAJAGOPALAN, 2006, p. 25)

Seguindo convicções similares às de Rajagopalan (id.), Cesar e Cavalcanti


(2007) propõem uma discussão sobre o conceito de língua 21 na tentativa de produzir
transformações significativas no sentido de diminuir a distância entre os construtos
teóricos das línguas e as origens socioculturais dos fenômenos linguísticos, assim
como os participantes envolvidos, num momento em que as noções de
tempo/espaço e de território estão intensamente modificadas. Por isso, segundo as
autoras, faz-se necessário repensar a língua considerando novos paradigmas, como:

os diversos tempos ao mesmo tempo, os corpos em suas múltiplas


interações, emblemas cambiantes, fragmentados, contraditórios, que
respondam também por identidades contraditórias, constituídas num mundo
de mesclagem cultural, linguística, onde as correntes migratórias e os
movimentos sociais procuram (sic) definir outras relações, inclusive de
poder. (CESAR E CAVALCANTI, 2007, p. 60)

Mas, para as autoras, ainda hoje, os estudos realizados na tentativa de


definir a língua encontram dificuldades em considerar esses novos parâmetros e a
linguagem inserida neste contexto, permanecendo assim, a manutenção da
complexidade dos usos linguísticos simplificada a formulações neutralizadoras das

21
A distinção entre os termos “uma língua” e “língua” apresentadas no parágrafo anterior por
Rajagopalan (2007) não é estabelecida pelas autoras Cavalcanti e Cesar.
22

diferenças, ou seja, “uma totalidade reificada e reificadora de fatos da linguagem”


(CESAR E CAVALCANTI, 2007, p. 47). Esses estudos têm sido desenvolvidos num
primeiro momento com foco na linearidade estabelecendo categorias redutoras, por
exemplo, oral/escrito, variedades diatópicas/diastráticas/diacrônicas, norma
culta/não culta, língua materna/língua estrangeira; e num segundo momento passou-
se a adotar a noção de continuum, que inicialmente funcionou como um moderador
da tensão entre as dicotomias, mas que não escapa da estrutura linear que
categoriza o imaginário linguístico (CESAR E CAVALCANTI, 2007). Este continuum
é estabelecido por representações linguísticas diversas a partir de uma escala que
perpassa por dois extremos, onde o ponto de interseção, conforme afirmam as
autoras, muitas vezes ignora “a rede de interseções, que constitui simultaneamente,
qualquer ato de linguagem, atravessada... por um conjunto de variável, interseções,
conflitos, contradições, socialmente constituído ao longo da trajetória de qualquer
falante” (CESAR E CAVALCANTI, 2007, p. 61). Para conceber a língua nesta
perspectiva transitória, Cesar e Cavalcanti (id.) nos remetem a metáfora do
caleidoscópio, descrevendo-o da seguinte maneira:

Sendo feito por diversos pedaços, cores formas e combinações, é um jogo


de impossibilidades fortuitas e, ao mesmo tempo, acondicionadas pelo
contexto e pelos elementos, um jogo que se explica sempre fugazmente no
exato momento em que o objeto é colocado na mira do olho e a mão o
movimenta; depois, um instante depois, já é outra coisa... formam-se
desenhos complexos a partir de movimentos de combinações (id., p. 61)

Essa metáfora ajuda a compreender a impossibilidade de conceber a noção


de língua de forma estática, e por extensão, conceber o desmembramento das
noções de língua da concepção de nação e território que foram “estabilizadas
politicamente e de níveis hierárquicos, num caso e num outro, totalidades que se
mantêm como ‘grande narrativa’, justamente por conta de um arcabouço teórico
anacrônico” (CESAR E CAVALCANTI, 2007, p. 61). Nesta emblemática tentativa de
definir língua, Cox e Assis-Peterson (2007) também partem de uma perspectiva
dicotômica da linguagem, baseada na concepção estruturalista saussureana de
língua (langue) e fala (parole), e gerativista chomskiana de competência e
desempenho, onde, em ambos os modelos, o objeto de estudo privilegiado, a língua
(langue) e o desempenho – como havia afirmado anteriormente Rajagopalan (2006)
23

- representam uma concepção de língua desvinculada dos usos reais, e


consequentemente, da “infinita variação em que resulta a língua ao ser usada por
seus falantes” (id., p. 38).

Em seguida, surgem as ideias da Sociolinguística laboviana, introduzidas por


volta da década de 1960, onde a língua, ao invés de ser postulada como um sistema
monolítico, passa a ser concebida como um sistema de variantes relacionada às
necessidades coletivas de uma comunidade (COX e ASSIS-PETERSON, 2007). Na
concepção das autoras, essa perspectiva define a língua como “... um mosaico, um
compósito de normas que se correlacionam probabilisticamente a fatores sociais...
não é mais um central, mas a justaposição de vários uns setorizados” (Id., p. 39).

Uma vez estabelecida a heterogeneidade da língua, Cox e Assis-Peterson


(2007) problematizam a coexistência e a convivência das variedades linguísticas que
nela residem, apoiando-se na concepção teórica sociológica de: Durkheim (1978)
que estabelece uma relação entre as estruturas sociais e as estruturas linguísticas
sendo estas últimas consideradas dependentes das primeiras onde a aceitação da
concepção de língua enquanto sistema variacionista apenas transfere o conceito de
correção para adequação linguística; e Weber (1979) para quem postula a ideia, nas
palavras de Cox e Assis-Peterson (2007), de que “a vida em sociedade precisa... ser
pensada como uma espécie de harmonia conflitual, resultante da interação e
negociação entre os atores sociais nas práticas cotidianas, e não como consenso
resultante das estruturas normativas preexistentes” (p. 40). Neste sentido, as autoras
sugerem que ambos os teóricos, Durkheim (1978) e Weber (1979), questionam a
atitude de adequação aos padrões coletivos preestabelecidos na sociedade e,
consequentemente, nas estruturas linguísticas, prevalecendo a ideia de que a
realidade social é constituída pelo próprio processo interativo, sendo esses
pressupostos a base para a Sociolinguística Interacional.

Isto está muito de acordo com a crítica de Bakhtin, comentada por


Rajangopalan (2006), ao estruturalismo, mais especificamente à linguística
sincrônica saussureana, por não direcionar a atenção necessária ao sujeito
“concreto localizado no tempo e no espaço” (id., Daniel3), ou seja, para Bakhtin,
ainda nas palavras de Rajagopalan, o estruturalismo não tem como objeto de estudo
24

“a língua real... aquilo que falam os homens e as mulheres reais” (RAJAGOPALAN,


2006, p.33), sendo esses homens e as mulheres reais indivíduos socializados.

Cox e Assis-Peterson (2007) entendem o termo “línguas” considerando


também as variedades. Neste sentido, adotam uma postura linguisticamente
relativista por entenderem as línguas como “únicas, cada uma na sua estrutura
interna” (id., p.41) ao invés da concepção iluminista que, segundo as autoras,
defende a diferença entre as línguas civilizadas e bárbaras. Para Cox e Assis-
Peterson (ibid.), o relativismo estimula “o discurso do direito à diferença, da
tolerância e da democracia na sociedade. Também alimenta o discurso
preservacionista”. Dessa maneira, trazem o conceito de multilinguismo para
trabalhar a diversidade linguística e o tratamento dado a ela no âmbito das fronteiras
do estado, diferenciando a língua majoritária das línguas minoritárias, mas
defendendo a igualdade entre elas. Cavalcanti (1999), na companhia de teóricos
como Bortoni (1984) e Bagno (1999), entende por línguas minoritárias as línguas
usadas por falantes indígenas, por imigrantes, por comunidades falantes de
variedades consideradas desprestigiadas do português, sendo estas últimas uma
maioria tratada como minorias. Com relação aos termos minoria x maioria a autora,
apoiada nas concepções de Hornberger (1998), afirma que “esta distinção está mais
relacionada a poder [e prestígio] do que à quantidade (números), ou seja, uma
maioria de excluídos significa -poder e -prestígio. Uma maioria de elite tem +poder e
+prestígio”. Além disso, ainda conforme a autora, estas noções trazem a ideia de
homogeneidade, camuflando a diversidade e a heterogeneidade dos grupos sociais,
logo, das línguas também.

Cavalcanti (1999) considera o tratamento dado às minorias linguísticas


muitas vezes invisibilizado tanto por quem dele faz parte quanto pela comunidade
envolvente. Para a autora, em conformidade com Cox e Assis-Peterson (2007),
devemos pensar no contexto bilíngue não só como bilíngue, mas também como
bidialetal, uma vez que se contempla alguma variedade de baixo prestígio de uma
determinada língua lado a lado à sua variedade considerada padrão. Assim, os
contextos bilíngues resultam em contextos multilíngues, dando o devido status às
variedades ou dialetos falados em uma determinada comunidade. A propósito disso,
tanto Cavalcanti (1999), embasada nas concepções teóricas de Grosgean (1982) e
Romaine (1995), como Rajagopalan (2006), citando Jakobson (1953), Gumperz e
25

Wilson (1971) e Romaine (1989), defendem que, apesar do monolinguismo ainda


prevalecer como base dos estudos linguísticos, o multilinguismo não é uma exceção
à regra, pois, conforme Romaine (1995 apud CAVALCANTI, 1999), o número de
línguas existentes é trinta vezes maior que o número de países, o que implica que o
bilinguísmo está presente na maioria dos países do mundo, ou seja, o
monolinguismo deveria ser considerado um caso a parte, sendo o bilinguismo a
norma22.

Como citado no início desse segmento, Rajagopalan (2006) ao questionar a


definição de “uma língua” também aponta como problemático o conceito de “uma
pessoa que conhece uma língua” no sentido de que: quando se afirma que alguém é
falante de uma dada língua não se questiona que possa haver qualquer problema
para determinar quem pertence ou não ao grupo que se pretende caracterizar. Ao
apontar o estudo de caso, relatado por Pandit (1975), de uma criança criada num
meio multilíngue onde usa diferentes línguas considerando o contexto de fala e o
seu interlocutor, Rajagopalan (2006, p.26 ) faz as seguintes considerações:

Na realidade, parece que o que temos é um individuo composto, ou, melhor


ainda, um indivíduo proteiforme cujas reivindicações de ser um falante desta
língua e não daquela se baseiam sobretudo em certos fatores como
lealdade linguística que por sua vez tem a ver com uma possível simpatia
do indivíduo em questão [falando da criança no caso relatado] por um dos
vários partidos políticos sectários ou nacionalistas, com a intensidade de
sua identificação com este ou aquele grupo religioso.

Esse exemplo apontado por Rajagopalan (2006) não deixa dúvidas de que
os falantes de uma determinada língua estão longe de serem considerados falantes
“ideais” pertencentes a uma comunidade de fala homogênea. O debate em torno de
uma língua implica, antes de qualquer coisa, considerar seu usuário enquanto
individuo composto por uma identidade fluída, mutável pertencente a uma
determinada comunidade com realidades específicas. Para Rajagopalan (id.), se nos
voltarmos para as teorias de fenômenos como multilinguismo, pidgins, crioulos,
línguas de sinais etc., perceberemos que a permanência da concepção de

22
As colocações sobre bilinguismo ou multilinguismo apontadas até agora foram necessárias para
consolidar as ideias que vinham sendo desenvolvidas, porém serão retomadas mais
detalhadamente em outro segmento deste capítulo teórico.
26

identidade, tanto do individuo quanto de uma língua, como pura, unificada e


autossuficiente tem contribuído apenas para deturpar o entendimento dos
fenômenos em questão.

No mundo em que vivemos onde a informação está pronta e é dirigida


através dos meios de comunicações de massa, onde os meios de transportes
favorecem o deslocamento da população, e, as línguas, como qualquer outra
manifestação humana, também entram em contato e estão em constante movimento
(APPADURAI, 2001), o estudo das práticas de linguagem predetermina uma revisão
dos usuais conceitos de cultura e identidade.

Conforme Hall (2006), a partir do fenômeno da globalização, a sociedade se


distancia do modelo clássico e sociológico de um sistema bem delimitado. Esse é
substituído por uma perspectiva que se centra na forma como a vida social está
ordenada ao longo do tempo e do espaço. Assim, no que diz respeito à identidade, o
autor aborda essa questão a partir do argumento construído em torno das velhas
identidades que estabilizaram o mundo social, mas que estão em decadência; e o
aparecimento de novas identidades fragmentadas, em consequência da chamada
“crise de identidade” entendida, por Hall (id.), como sendo parte de um processo
mais amplo de transformações, que está “deslocando as estruturas e processos
centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam
aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (HALL, 2006 p. 7).

Para entender melhor o processo de construção identitária, Woodward


(2000) sugere organizá-lo dicotomicamente nas seguintes perspectivas: a)
essencialista, que vê o deslocamento do indivíduo tanto de seu lugar no mundo
social e cultural quanto de si próprio – até então idealizado como ser integrado –
como sendo uma perda para a sociedade e consequentemente uma crise nas
identidades; b) não essencialista, perspectiva orientada por concepções da pós-
modernidade, que relativiza a noção de identidade fixa e de pessoa humana como
sujeito totalmente centralizado.

Os paradigmas essencialistas, segundo a autora, podem fundamentar suas


afirmações tanto na história quanto na biologia, por exemplo, “certos movimentos
políticos podem buscar alguma certeza na afirmação da identidade apelando seja a
‘verdade’ fixa de um passado partilhado seja a ‘verdades’ biológicas” (WOODWARD,
27

2000, p. 15). A exemplo do essencialismo cultural temos os mitos fundadores que


tendem a fixar as identidades, étnicas, religiosas ou nacionais.

Com relação a estas últimas, Bauman (2005), apoiando-se nas concepções


de Giorgio Agamben (2000), salienta que o nascente estado moderno faz do
nascimento o alicerce da sua própria soberania, ou seja, “... o nascimento [nascita]
vem à luz imediatamente como nação, de modo que não pode haver diferença
alguma entre os dois momentos” (GIORGIO AGAMBEN, 2000, apud, BAUMAN,
2005, p. 25). Neste sentido, a ideia de identidade, mais especificamente de
identidade nacional, não surgiu de forma “natural” através das experiências
humanas, ao contrário, ela foi uma ficção criada pelo estado-nação a partir da crise
do pertencimento e do empenho que esta estabeleceu para “erguer a realidade ao
nível dos padrões estabelecidos pela ideia- recriar a realidade à sua semelhança”
(BAUMAN, 2005, p. 26). Dessa forma, a identidade passou a ser tratada como um
dever, sendo o estado-nação o responsável por tornar esse dever obrigatório a cada
pessoa que se localizava em um determinado território, estabelecendo uma relação
de obediência dos seus indivíduos e colocando-se como “o futuro da nação e a
garantia da sua continuidade” (id., p. 27). Essa exigência de fidelidade exclusiva ao
estado foi uma estratégia de coerção na construção e manutenção da nação, por
isso, nas palavras de Bauman (id.), “a ‘naturalidade’ do pressuposto de que
‘pertencer-por-nascimento’ significa, automática e inequivocamente, pertencer a uma
nação foi uma convenção arduamente construída” (id., p. 29). Portanto, a identidade
era terminada pelo nascimento do sujeito e não havia espaço para se pensar no
“quem sou eu”.

Hall (2006) observa ao longo da história algumas concepções existentes


para o conceito de identidade, atribuindo ao sujeito três momentos bem marcados: o
sujeito do Iluminismo, cujo centro essencial era a identidade única da pessoa, sua
essência; o sujeito sociológico, definido a partir de sua posição em sociedade; e o
sujeito pós-moderno, cuja identidade não é fixa, mas sim fragmentada, em fluxo e
negociável.

A tradição racionalista do sujeito do Iluminismo do século XVIII está


relacionada aos paradigmas essencialistas que compreendem o indivíduo numa
concepção individualista “dotado das capacidades de razão, consciência e de ação,
28

cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o
sujeito nascia e com ele se desenvolvia ao longo da existência do indivíduo” (HALL,
2006, p. 10).

Para o autor, a concepção essencialista ainda permanece na noção de


sujeito sociológico, entretanto diferencia-se do sujeito do iluminismo por contemplar
uma reflexão acerca da complexidade do mundo moderno e da consciência de que o
núcleo interior do indivíduo não era autônomo, mas sim formado na relação com
outras pessoas importantes para ele. Assim, nesta concepção, o sujeito ainda é
considerado como tendo um núcleo autossuficiente, porém que vai transformando-se
à medida que interage com outros mundos culturais “externos” e,
consequentemente, com as identidades que estes oferecem. “A identidade, então
costura ... o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos
culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e
predizíveis” (HALL, 2006, p. 12).

O terceiro tipo de sujeito apresentado por Hall (id.) surge frente a grandes e
rápidas transformações onde os sujeitos de identidade unificada e estável, citados
anteriormente, não se sustentam no mundo contemporâneo. Estas transformações
produzem o sujeito pós-moderno portador de uma identidade fragmentada, não
unificada ao redor do indivíduo como núcleo autossuficiente, como podemos ver
mais detalhadamente na citação abaixo:

A identidade plenamente unificada, completa, segura e corrente é uma


fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiantes de identidades possíveis, com
cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos
temporariamente. (HALL, 2006, p. 12)

A propósito da multiplicidade dos sistemas de significação e representação


nesses tempos de pós-modernidade, Silva (2006), menciona um aspecto ainda mais
incisivo, uma suposta “crise da representação” que consiste em uma
desestabilização das epistemologias que conduziram, “com tanta segurança” (id.,
p.31), as premissas de domínio da natureza, do mundo e da sociedade. Isso implica
dizer que as grandes narrativas, que deram suporte as “verdades incontestáveis”
29

que constituíram o mundo moderno, encontram-se em descredito, uma vez que suas
afirmações, explicações, proposições, legitimações vão de encontro com os fatos
ocorridos nos tempos de hoje.

Por considerar que a noção de epistemologia implica na concepção de


representação, ou seja, na relação entre “de um lado, o ‘real’, e a ‘realidade’ e, de
outro, as formas pelas quais esse ‘real’ e essa ‘realidade’ se tornam presentes para
nós” (SILVA, 2006, p. 32), Silva (id.) atribui à crise da representação a
responsabilidade desse processo de desestabilização epistemológica vivenciada nos
últimos tempos. Nas palavras do autor, “A crise de legitimação que está no centro
das nossas formas de conhecer o mundo está, pois, indissoluvelmente ligada à
“crise” no estatuto da representação” (id. p. 32).

O conceito de representação tratado nessa pesquisa advém dos estudos


culturais e das perspectivas pós-estruturalistas. Segundo Silva (2000; 2006) e
Woodward (2000), a representação pós-estruturalista é concebida como um sistema
de significação, mas rejeita quaisquer pressupostos mentalistas ou aspectos
relacionados a uma possível interioridade psicológica, ou seja, é concebida
unicamente “em sua dimensão de significante, isto é, como sistema de signos, como
pura marca material” (SILVA, 2006, p.90).

É precisamente por compreender a linguagem, e por extensão o sistema de


comunicação, como um domínio instável e indeterminado que a noção de
representação do pós-estruturalismo questiona o conceito clássico de representação
(id.). Apesar de usar os termos da linguística estruturalista para explicar que o
processo de representação estabelece uma relação entre um significado (conceito,
ideia) e um significante (uma inscrição uma marca material), Silva (2006) aponta os
questionamentos de Derrida ao processo de significação estruturalista de Saussure
quanto à característica de correspondência entre significado e significante. Segundo
a autora (id., p. 40), embasada nos pressupostos de Derrida, “o significado não
existe como representação mental separada, anterior e independentemente de sua
expressão material, visível/audível, como marca, como traço, como inscrição”. De
certa maneira, Foucault (2007) também discorda da proposta de Saussure, ao
menos no que diz respeito à forma como se dá o vínculo entre significado e
significante, para o autor essa relação só pode ser estabelecida “no elemento geral
30

da representação: o significado e o significante só são ligados na medida em que um


e outro... são representados e em que um representa atualmente o outro”
(FOUCAULT, 2007, p.92). É importante ressaltar que os questionamentos apontados
por Derrida e Foucault (id.) sobre a noção de significado do estruturalismo linguístico
não implicam no cancelamento do termo para explicar o processo de significação.

O conceito de discurso desenvolvido por Foucault (2007) está estritamente


relacionado à noção de representação apresentada aqui. Segundo Silva (2006),
passou-se a responsabilizar às proposições pós-estruturalistas a noção de que “a
realidade é construída discursivamente”, mas, o que interessa de fato à análise
cultural é “eleger como seu objeto de análise aquelas instancias e formas sociais
que são construídas discursiva e linguisticamente” (SILVA, 2006 p. 42), o que não
implica dizer que sejam apenas constituídas pelo discurso, mas sim que, no caso da
noção de representação, são o ponto principal da análise cultural (id.).

A noção de discurso estabelecida por Foucault (2007) consiste em enxergá-


lo não como um mero registro ou descrição de objetos que são anteriores a ele, ou
seja, não se deve ver o discurso apenas como “conjuntos de signos (elementos
significantes que remetem a conteúdos ou representações), mas como práticas que
formam sistematicamente os objetos de que falam” (id, p.55). Nessa afirmação, o
autor não nega que o discurso é feito de signos e que esses designam os objetos e
as coisas, mas enfatiza que é algo mais, que os signos, assim como o discurso, não
só nomeiam as coisas, mas também as criam. Conforme Silva (2006), é
precisamente essa perspectiva de cunho produtivo do discurso defendido por
Foucault que os Estudos Culturais tomam para a noção de representação: “Os
signos que constituem as representações focalizadas pela análise cultural não se
limitam a servir de marcadores para objetos que lhes sejam anteriores: eles criam
sentido” (SILVA, 2006, p.44).

Segundo Woodward (2000), as identidades são construídas por meio da


marcação da diferença, sendo esta veiculada tanto pelos sistemas simbólicos de
representação quanto por meio de forma de exclusão. Esta diferença simbólica e
social é estabelecida através dos sistemas classificatórios que “aplica[m] um
princípio de diferença a uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la
(e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos” (id., p. 40), ou
31

seja, estabelecem ordem a vida social. Em um exemplo sobre a religião citado por
Durkheim (apud WOODWARD, 2000), o autor argumenta que a vida social em geral
é construída por tensões sobre o sagrado e o profano sendo o sentido produzido por
meio de rituais. Para o filósofo “Não existe nada inerentemente ou essencialmente
“sagrado” nas coisas. Os artefatos e ideias são sagrados apenas porque são
simbolizados e representados como tais”. (id., p. 40). Assim, a marcação da
diferença distingue uma identidade da outra, na forma de oposições, tornando-se
componente indispensável nos sistemas de classificação (WOODWARD, 2000).

Dessa maneira, entende-se que a identidade, seja individual, seja coletiva,


somente pode ser compreendida numa cadeia discursiva de diferenças, ou seja, nas
palavras de Silva (2006), “aquilo que ‘é’ é inteiramente dependente daquilo que ‘não
é’... (id, p.47). A identidade e a diferença são constituídas na e pela representação,
não podem ser compreendidas fora do sistema e significação no qual adquirem
sentido, são resultado da cultura e dos sistemas simbólicos que as constituem.
(SILVA, 2006, 2008). Como já foi mencionado anteriormente, com Bauman (2005), e
agora citando Hall (2006), nada há de natural na construção identitária. Conforme
Silva (2006), até mesmo as características pelas quais os grupos sociais se definem
devem ser representadas, logo, devem ser construídas por meio de alguma forma de
representação, ou seja, são resultado de “um processo de criação de símbolos, de
imagens, de memórias, de narrativas, de mitos que ‘cimentam’ a unidade de um
grupo, que definem sua identidade” (id., p. 47).

Entendendo a identidade como uma maneira de representação, e esta de


caráter produtivo, sendo, precisamente, o poder que lhe confere este caráter, Silva
(ibid.) argumenta a forma como os distintos grupos sociais direcionam essa
representação para construir as suas identidades e as dos demais grupos sociais.
No entanto, esse processo de significação, ou seja, de representação, nem sempre
ocorre de forma equilibrada, consequentemente, nem todos os indivíduos de uma
determinada comunidade estão autorizados a representar. Para Silva (2008), aquele
que possui o poder de representar possui também o poder de estabelecer e
determinar a identidade. Nesse desequilíbrio, por meio do que autor chama de
“política de identidade”, os grupos sociais e culturais desprestigiados reivindicam o
seu direito à representação e questionam o caráter de normalidade das identidades
dominantes (SILVA, 2006). Essa asserção contempla de forma perspicaz a
32

problematização da noção de cultura e de língua, proposta por Cox e Assis-Peterson


(2007), à luz da teoria de Duranti (1997), enquanto ao seu caráter redutor que
converte as complexidades sócio-históricas em manifestações simples, omitindo as
controvérsias morais e sociais existentes em determinados grupos:

Nada menos apropriado para lidar com as interações culturais e linguísticas


desencadeadas nos cenários das migrações e da globalização do que fazê-
lo a partir de um ponto de vista purista e conservador, interpretando a
relação entre a cultura e a língua do centro e as culturas e línguas das
periferias como uma sentença de morte para as últimas. (Cox e Assis-
Peterson, 2007, p. 28)

As autoras, após uma breve revisão de seis teorias sobre a noção de cultura
– entendida como “algo distinto da natureza, como conhecimento, como sistemas de
signos, como mediação de práticas e como participação” (op. cit., p.33), à luz de
autores como, Duranti (1997), Goodenoug (1964), Geertz (1989), Max Werber
(1979) e Bourdieu (1983) – concordam que cada um dos conceitos vistos contempla
alguns aspectos e outros não. Assim, Cox e Assis-Peterson (2007) compartilham da
seguinte noção sobre cultura:

pensar a cultura como conjunto colidente e conflituoso de práticas


simbólicas ligadas a processos de formação e transformação de grupos
sociais, uma vez que por esse ângulo, podemos aninhar a heterogeneidade,
o inacabamento, as fricções e a historicidade no âmago do conceito. (p. 33)

Essa perspectiva do conceito de cultura também é compartilhada por


Hanciau (2010) ao postular que estamos num momento em que “o espaço e o
tempo, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão se cruzam para
produzir figuras complexas de diferença e identidade” (id., p.136). Para contemplar
essas realidades misturadas e transitórias e os processos culturais gerados a partir
das práticas e interações de fronteira existentes atualmente, Clifford (1999, p. 33)
propõe a metáfora da viagem:

Se pensarmos a cultura e a sua ciência, a antropologia, em termos de


viagem, a tendência orgânica, naturalizante, do termo cultura – vista como
um corpo enraizado que cresce, vive e morre – é questionada. Põem-se em
33

relevo vêem-se mais claramente as historicidades construídas e disputadas,


bem como os locais e deslocamento, interferência e interação.

Ou seja, habitualmente entende-se a “residência” como o pilar do convívio


grupal e a viagem como seu complemento. Clifford (id.) inverteu essa concepção
questionando se as práticas de deslocamento não poderiam aparecer como
elementos constituintes de significados ao invés de sua simples extensão. Segundo
Cox e Assis-Perterson (2007), a metáfora da viagem representa de maneira ajustada
os processos culturais atuais interpretando os lugares como “locais de trânsito, de
circulação de fluxos, de interação face a face ou mediatizada” (id., p. 35).

González (2010) salienta, embasada na metáfora da viagem de Clifford


(1999), que essa concepção de cultura fundamentada no deslocamento estabelece
uma relação com a noção de identidade compreendida na esfera da mobilidade: “a
identidade não se refere somente a um local; está necessariamente relacionada ao
deslocamento e à relocalização, por isso não é única, mas plural e multifacetada”
(id., p, 111). Para a autora, a análise das identidades, atualmente, implica considerar
uma perspectiva de que “não existe culturas ou tradições antigas” (ibid.), mas sim
que os sujeitos criam, provisoriamente, suas realizações locais por meio de
“passados recolecionados, recorrendo a meios, a símbolos e a linguagens
estrangeiros” (ibid.).

Neste processo de mudança conhecido como “globalização”, as


perspectivas não-essencialistas embasadas na instabilidade recorrente permitem
uma concepção da problemática do indivíduo pós-moderno, não mais compreendido
como um ser unificado, mas, cada vez mais fragmentado, constituído por
identidades estabelecidas através da negociação que se dá nas interações sociais.
Bauman (2005) também compartilha dessa perspectiva ao considerar que o mundo
em nossa volta está “repartido em fragmentos mal coordenados, enquanto as
nossas existências individuais são fragmentadas numa sucessão de episódios
fragilmente conectados.” (id., p.18). Esse momento vivido atualmente é denominado
pelo autor como era “líquido-moderna”.

Nos últimos parágrafos, foram relatados alguns pressupostos teóricos sobre


os meios pelos quais a linguagem participa do processo de representação e este,
por sua vez, justifica a impossibilidade de ainda se compreender a identidade nos
34

moldes tradicionais: como, homogênea, estável e imutável. Esta discussão se fez


necessária não só para problematizar algumas limitações da noção de sujeito
enquanto falante de uma determinada língua, mas também, como vimos nos
primeiros parágrafos desse seguimento, para contemplar as muitas possibilidades
que uma língua pode criar para seu usuário. A propósito dessa relação, língua e
indivíduo, Rajagopalan (2006) apresenta o argumento de que “A identidade do
individuo se constrói na língua e através dela” (id., p. 41), porém, para o autor, essa
construção identitária do indivíduo na língua “depende de a própria língua em si ser
uma atividade em evolução e vice-versa... as identidades da língua e do indivíduo
tem implicações mútuas” (id., p. 41), neste sentido, as identidades, do indivíduo e da
língua, encontram-se sempre em estado de fluxo. Entretanto, a esta altura, é
importante salientar que a proposição do autor, assim como desta pesquisa, não se
refere à função da língua enquanto elemento homogêneo e ideológico usado para
forjar um sentimento de coletividade, ao contrário, o autor alerta que “nem todas as
coletividades são... ‘naturais’” (id., p. 33).

Assim, reiterando as colocações a respeito do termo língua(guem) nas


palavras de Berenblum(2003), à luz das concepções teóricas de Williams (1980),
Franchi (1977) e Geraldi (1993; 1999), onde apresenta respectivamente as
seguintes noções: a) “uma atividade humana constitutiva e histórica e socialmente
constituinte, isto é, o homem produz a linguagem e, ao mesmo tempo, é por ela
constituído” (BERENBLUM, 2003, p.23); b) “mas do que ser para a comunicação é
para a elaboração” (id., p.23), ou seja, a linguagem é um sistema simbólico que
consente agir sobre a realidade; e c) é um processo simbólico, um exercício
histórico e constitutivo. Sob esta última perspectiva teórica, a autora coloca que a
língua se constitui na atividade de interlocução: “construindo-se e reconstruindo-se
na própria atividade linguística” (ibid.). Portanto, durante essa prática, “o sujeito
constitui a linguagem na interação com os outros, ao mesmo tempo em que é
constituído pela linguagem, a partir dessas interações” (BERENBLUM, 2003, p.23)

A partir desses pressupostos teóricos, que concebem a atividade


linguística como um processo social, Berenblum (id.) salienta que se levarmos em
consideração a realidade social como “atravessada por contradições entre grupos
que não ocupam as mesmas posições” (id., p. 24), devemos conceber os processos
de significações “como a luta dos diferentes grupos para impor os significados
35

considerados válidos” (id., p. 24). É através dos processos históricos de significação,


segundo Orlandi (1988, APUD, BERENBLUM, 2003), que se institucionaliza o
sentido dominante e, com ele impõe-se o sentido legitimado, oficial. Essa
institucionalização é retratada na história da língua, portanto, “a história dos sentidos
cristalizados é a história do jogo de poder da/na linguagem” (BERENBLUM, 2003
p.24). É precisamente neste ponto que propomos a interseção entre língua(gem),
identidade e papel da representação: por pensarmos que de outra forma não haveria
a possibilidade de contemplar nem compreender a realidade linguisticamente
complexa dos sujeitos envolvidos nesta pesquisa.

2.2 As línguas ditas nacionais como representações identitárias

Atualmente, conforme Guisan (2009), muitos estudiosos, principalmente na


área da sociolinguística, têm enfatizado tanto a função da língua enquanto elemento
constitutivo da identidade de um indivíduo e da sua comunidade como a
necessidade de averiguar os elementos que direcionam essa língua na elaboração
de mitos sobre os quais se embasariam as identidades coletivas. A discussão em
torno da língua, ainda conforme o autor, está além dos conflitos sobre a concepção
de língua como faculdade humana ou da sua diversidade nas realizações do mundo.
Trata-se principalmente do mito de uma língua unificada estabelecido pelos
processos políticos e ideológicos construídos a partir da criação do estado nacional.
Para Guisan (GUISAN, 2009, p. 18) “o Outro preenche um papel essencial na
definição da identidade do próprio sujeito (...) a língua do outro terá uma função
primordial na delimitação do domínio da língua já que é considerada como elemento
de identidade coletiva”.

Segundo Rajagopalan (2002), autores como Oakeshott (1991) e Hobsbawm


(1987) concordam, embora tenham pressupostos ideológicos divergentes, que a
noção de nação surgiu e fixou-se no século XIX, sendo considerada como objeto
natural, ou seja, “as nações eram fruto de um determinismo naturista, isto é, suas
identidades eram asseguradas de uma vez por todas, graças a uma serie de fatores
que as caracterizavam como distintas e diferentes umas das outras”
(RAJAGOPALAN, 2002, p. 79). Porém, longe dessa concepção essencialista,
36

Anderson (2008) – dentro de um espírito antropológico – propõe o conceito de nação


como uma comunidade politicamente imaginada e, por extensão, intrinsicamente
limitada e soberana.

é imaginada porque mesmo os membros das mais minúsculas nações


jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria dos
seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da
comunhão entre eles... [É] limitada porque mesmo a maior delas... possui
fronteiras finitas... para além das quais existem outras nações... [É]
soberana porque o conceito nasceu na época em que o iluminismo e a
Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico
de ordem divina... é imaginada como uma comunidade porque,
independente, da desigualdade e das explorações efetivas que possam
existir dentro dela, a nação é sempre concebida como uma profunda
camaradagem horizontal (ANDERSON, 2008 p. 34)

Para Anderson (id.) o fenômeno do mercado editorial vernáculo ganhou


maior impacto devido a três grandes fatores externos dos quais os dois últimos
contribuíram para as origens da consciência nacional, a saber: a mudança no caráter
da língua latina, “O latim que agora eles queriam escrever era cada vez mais
ciceroniano, e, além disso, cada vez mais afastado da vida eclesiástica e cotidiana”
(ANDERSON, 2008 p. 73); o impacto da Reforma de Martin Lutero; e a difusão de
determinadas línguas consideradas vulgares (hoje conhecidas como línguas
vernáculas) como ferramenta de centralização administrativa.

O autor mostra ainda que, no final da idade média, a Europa pode ser
comparada a uma “colcha de retalhos” no sentido de que não havia uma definição
precisa de língua dominante, já que o latim era considerado uma língua sacra e não
a língua oficial do Estado, menos ainda dos seus indivíduos. A imprensa, recém
chegada, passou a editar seus textos nas línguas consideradas vulgares para
aumentar as vendas de suas edições. Dessa maneira, essas línguas foram aos
poucos sendo utilizadas no mundo dos negócios e nas relações de Estado, embora
não fossem consideradas ainda línguas nacionais. É precisamente neste sentido
que Anderson (2008) atribui à imprensa o papel de engrenagem para o avanço do
capitalismo e, consequentemente, o aumento de leitores monolíngues, difundindo
pelo mercado as bases da consciência nacional e delimitando uma espécie de
língua de poder.
37

Para o autor, se torna mais fácil criar nações quando uma dada língua
escrita “se converte em um acesso privilegiado para a construção de verdades
antológicas” (ANDERSON, 2008, p. 13), desempenhado com êxito essa função na
medida em que “ permite a unificação da leitura, a manutenção do suposto de uma
antiguidade essencial, e, sobretudo a partir do momento em que se torna oficial” (id,
p.13). Em suma, a aliança entre o capitalismo e a tecnologia da imprensa exerceu
sobre as diversas línguas a criação de uma forma inicial de comunidade que logo
depois viria a ser o moderno estado-nação. Sendo também, essa aliança, a
responsável pelos “meios técnicos ideais para ‘re-presentar’ o tipo de comunidade
imaginada a que corresponde uma nação” (ANDERSON, 2008 p.12).

Essa comunidade imaginada era constituída por meio de varias formas de


representação, identificada a partir de uma serie de símbolos. Um desses símbolos é
a língua que, segundo Berenblum (2003), passa a ser entendida, após a criação do
estado nacional, como uma questão de cidadania: “com a fusão de Estado e Nação
se constroem as bases para a unificação linguística e cultural num território
particular” (id., p.24). Isto é, criou-se a ideia da necessidade da existência de uma
unidade cultural e linguística que possibilitasse a identificação do sujeito como
cidadão.

É claro que essa ideia era apenas uma forma de construir um discurso
dominador que promovesse o desejo de pertencimento dos sujeitos, através da
língua e de outros mitos, a uma determinada nação com o intuito de fortalecer o
conceito de estado nacional. Pois, segundo Berenblum (2003), embasada nas
teorias de Cannivez (1991) e Hobsbawn (1998), a língua não pode ser considerada
como o elemento aglutinante dos cidadãos, pelo menos não exclusivamente. As
razões para tal afirmação são inúmeras e, inclusive, algumas já até foram
apontadas, no tópico anterior, ao ser relatado o mito do monolinguismo nacional e a
existência de uma língua falada em varias nações. Mas, reiteramos os motivos pelos
quais essa assertiva se cumpre levando em consideração o argumento de
Habsbawn:

As línguas nacionais são sempre, portanto, construtos semi-artificiais e, as


vezes, virtualmente inventados [...] São o oposto do que a mitologia
nacionalista pretende que sejam – as bases fundamentais da cultura
38

nacional e as matrizes da mentalidade nacional. Frequentemente essas


línguas são tentativas de construir um idioma padronizado, através da
recombinação da multiplicidade de idiomas realmente falados, os quais são,
assim, rebaixados a dialetos – e o único problema nesta construção é a
escolha do dialeto que será a base da língua homogeneizada e
padronizada. (1998, apud, BERENBLUM, 2003, p. 25)

Segundo Berenblum (2003), Hobsbawn (1998) argumenta que a chamada


língua nacional, da forma como a tratamos hoje, não existia no período anterior à
implantação dos sistemas nacionais de educação, o que havia eram apenas
adequações das línguas literárias e da administração. Neste sentido, Berenblum (id.)
observa que “a língua não poderia ser na época o critério de existência das nações,
já que para os setores não instruídos, ela era algo tão natural que não oferecia
demasiados problemas” (Berenblum, 2003, p. 26). Neste período, ainda segundo a
autora, havia duas possibilidades de contexto linguístico: grupos monolíngues nos
quais a língua não era considerada um critério de pertencimento a uma determinada
comunidade, e os grupos multilíngues, onde a diversidade linguística já era uma
prática comum. Ainda assim, tanto em um contexto como no outro, a língua “não
tinha ainda uma função política marcada” (id., p. 26).

Consonante com essa concepção e, por extensão, com a ideia de criação


do sentimento de pertencimento do sujeito a uma nação através da língua, Guisan
(2007) salienta que: ao contrário do que se pensa hoje, os acontecimentos históricos
apontam que a função identitária das línguas nem sempre é o fator de coesão para
as comunidades humanas, assim, “essas línguas sob o pretexto do seu valor como
alicerce de identidade, serviram muito mais para separar do que para unir” (GUISAN,
2007 p.83). Conforme o autor, a diversidade linguística que existia em pequenos
povos, até a época do Renascimento, não era motivo de conflitos e divisões, porém
com a criação das línguas oficiais e, consequentemente, da demarcação dos
territórios onde essas línguas eram faladas surgiram os estados nacionais e com
eles a necessidade de caracterizar uma língua unificada como instrumento de
opressão na história do nacionalismo e do colonialismo, embora essa não fosse a
característica de um determinado povo, território ou estado nacional conforme vimos
na citação de Habsbawn (1998).

Segundo Berenblum (2003), a propagação da nação enquanto organização


geopolítica consta a partir do final do século XVIII a meados do século XIX, sendo o
39

estado o responsável por assegurar a homogeneidade cultural e linguística usando


como ferramenta chave o sistema educacional. A propósito, essa assertiva está
bastante de acordo com as colocações de Hall (2006):

A formação da cultura nacional contribuiu para criar padrões de


alfabetizações universais, generalizou uma única língua vernacular como
meio dominante de comunicação em toda a nação, criou uma cultura
homogênea e manteve instituições culturais nacionais, como por exemplo,
um sistema educacional nacional. (id., 49)

Além disso, Hall (2006) salienta que as culturas nacionais não são
compostas apenas por instituições culturais, senão por símbolos e representações
que, ao produzirem significado sobre a nação, constroem as identidades nacionais.
Estas não devem ser entendidas como “coisas com as quais nós nascemos” (id.,
48), mas sim como criadas e recriadas no interior da representação, ou seja, “As
pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da ideia
da nação tal como representada em sua cultura nacional” (id., p. 49). Da mesma
maneira, Berenblum (2003, p. 32) argumenta que a identidade nacional “se constrói
historicamente e adquire determinados sentidos ao longo das próprias histórias das
nações... cada uma [nação] cria e recria os seus mitos de origem e seus símbolos,
seus próprios laços de solidariedade e lealdade” (id., p. 32).

Ressaltamos, mais uma vez, tendo em conta que no tópico anterior já foi
mencionada a importância do conceito de representação e, inevitavelmente, de
significação, para compreender a discussão que aqui se propõe. Pois, ao
considerarmos os mitos de criação do estado-nação, no caso específico deste
estudo o mito linguístico, como grandes narrativas, nos direcionamos para o caráter
produtivo do processo de representação que cria e recria discursos tomados como
verdades universais, ou melhor, como define Orlandi (2003), discurso fundadores.
Para a autora, estes se caracterizam por criar “tradição de sentidos projetando-se
para frente e para trás, trazendo o novo para o efeito do permanente” (id., p. 13),
eficaz na produção do “novo que se arraiga no entanto na memória permanente...
Produz desse modo o efeito familiar, do evidente, do que só pode ser assim” (id., p.
14). Neste sentido, os mitos fundadores, conforme observa Berenblum (2003), ao
40

colaborarem para naturalizar a origem, funcionam como “respostas ‘imaginárias’ a


conflitos e tensões ‘reais’” (id., p. 61).

Para Guisan (2007), não resta dúvida de que os mitos exercem grande
influência sobre a história do indivíduo e da sua cultura, embora constituam
invenções na maioria das vezes irracionais. Alguns exemplos apontados pelo autor
ilustram o quanto pode ser instável a representação que constrói a noção de língua
no imaginário coletivo, a saber: 1) a forma como a ortografia se converteu em um
elemento essencial na cultura francesa, a partir da segunda metade do século XIX,
no sentido de apontar o grau de cultura de um sujeito, ou melhor, deste,
dependendo da posição social em que está inserido; 2) a representação do alemão
como língua dos sentimentos, “do inefável, da infinita doçura face aos rigores da
razão implacável... tal suavidade germânica era tida como o produto de um clima
físico que favorecia nevoeiros, os quais tornavam a visão de mundo mais relativa”
(GUISAN, 2007, p. 81); e 3) o julgamento subjetivo do escritor francês Henri Michaux
(1931) a respeito da língua majoritária falada na índia, o hindi:

Eu me encontrava em pleno interior “caipira”: tal era o efeito que o hindi


produzia sobre mim, essa língua com palavras beatas pronunciadas com o
jeito bonachão camponês e lento, muitas vogais bem espessas, com uns
‘âââ’, uns ‘ôôô’, como uma espécie de vibração de ronco muito pesado, ou
contemplativamente arrastada e enojada, uns ‘îîî’, e sobretudo uns ‘êêê’:,
tão abestalhados! Um autentico ‘bêêê’ de vaca. Tudo isso volumoso,
enjoativo, confortável, eunucóide, satisfeito de si, desprovido de qualquer
sendo do ridículo (MICHAUX, 1931, apud GUISAN, 2007, p. 82)

Para Guisan (id.), as representações de uma dada língua são construídas


muitas vezes a partir de produções literárias, dos comportamentos sociais, ou
mesmo, através da interpretação que se tem desses comportamentos, o autor cita o
caso da lusofonia e da francofonia. Quanto a este último, parece haver a
necessidade de reformulação quanto ao seu conceito, pois de um lado tem-se a
ideia de um grande grupo formado por subgrupos políticos e culturais baseados em
uma língua em comum, no caso a língua francesa, mas, do outro, há o fato da
palavra francofonia ser vista como um termo negativo. O texto “Manifesto contra a
Francofonia” causou muito impacto na concepção de língua francesa uma vez que
se estabeleceu a ideia de que o centro está na periferia, ou seja, em todos os
41

espaços ditos francófonos, e que a periferia esta no centro, portanto, reivindicando


uma verdadeira representação coletiva da língua francesa baseada nas diferenças
dos países pertencentes à Francofonia (GUISAN, 2007).

Guisan (id.), embasado na ideia, já exposta, de que a diversidade linguística


existente, até o Renascimento, não estava a serviço das divisões, salienta ainda que
os projetos como os da francofonia ou lusofonia não deveriam propagar o discurso
que “nós temos algo em comum a defender contra os outros” (id., p. 85), embora, o
autor entenda que essa noção não deixa de ser uma postura um tanto
compreensível, uma vez que a identidade se delimita pela diferença, isto é, pelo que
não somos. Ainda assim, propõe que esses projetos sejam “instrumentos através
dos quais podemos expressar a nossa singularidade, e ao mesmo tempo nos definir
dentro deste grande continuum sem fim que nos torna tolerantes e solidários com a
diferença que acabamos integrando como sendo nossa” (GUISAN, 2007, p. 85).

O processo descrito por Berenblum (2003) de criação histórico-política do


sentimento de identidade nacional, assim como das línguas nacionais como símbolo
de nacionalidade no surgimento das nações europeias e americanas, é um segundo
exemplo histórico concreto que ajuda a compreender essa relação entre língua e
identidade nacional. No primeiro caso, a criação das nações europeias,
contemplamos no início deste texto ao relatarmos o processo de criação do estado
nacional. No segundo caso, o nascimento das nações latino-americanas, mais
precisamente levando em conta o caso da Argentina e do Brasil, segundo
Berenblum (id), apesar de que no período colonial algumas diferenças se destacam
no processo de formação dos estados nacionais nos modelos lusitanos e hispânicos,
ambos compartilham semelhanças, por exemplo, “a criação de um estado central no
qual se concentra a autoridade, a afirmação de uma soberania territorial, e a
‘nacionalização’ e homogeneização da cultura, realizada principalmente através da
escola” (BERENBLUM, 2003, p.77), resultando, em relação à questão das línguas
nacionais, numa defesa constante de um purismo linguístico que se manifestou ao
longo da história da construção de ambas as nações.

No que diz respeito à política de homogeneização da língua espanhola,


alguns fatos, levantados por Paraquett (2009), são apontados neste texto. Para a
autora, no ano de 1492, no período da colonização, a expulsão dos judeus e mouros
42

do território espanhol, a publicação da Gramática de la Lengua Castellana, escrita


por Elio Antonio de Nebrija, e a “Descoberta da América” não foram fatos isolados,
mas, ao contrário, “deixam clara a política de nacionalização e formalização
linguística dos reis católicos, Fernando e Isabel” (PARAQUETT, 2009, p.117). Ainda
conforme Paraquett (id.), a Gramática de Nebrija foi uma maneira de tentar
consolidar os diferentes falares e garantir “aos castelhanos o lugar de imperadores”
(id., p. 118), sendo a língua trazida pelos espanhóis à América uma representação
de “poder preocupado com as questões de dominação, fosse elas de cunho
religioso, étnico ou linguístico” (id., p. ).

Tal política se apresentou de forma novamente enfática no século XX com a


imposição do General Francisco Franco, que comandou o país por 40 anos, para
que somente o espanhol (ou castelhano) fosse considerado língua oficial na
Espanha, descartando a existência das demais línguas, o catalão, o galego e a do
país Basco-euskera, decisão que, segundo Paraquett (2009, p. 122), justifica “a
postura de linguistas do século XX, que assumem a hegemonia do Espanhol oficial,
tentando eliminar ou menosprezar outras variantes utilizadas na América”. Uma das
consequências, no Brasil, da presença deste discurso dominante é a construção de
crenças e atitudes estereotipadas, sobretudo no cenário educacional, a respeito da
dualidade espanhol/castelhano. Conforme aponta Botana (2006), no Brasil existe um
imaginário social distinto para as diferentes nomenclaturas, sendo na maioria das
vezes o castelhano a nomenclatura não legitimada pelos aprendizes de língua
espanhola, fenômeno que segundo a autora:

residiria no fato de no Brasil utilizar-se o termo espanhol para designar a


variante de prestígio, o espanhol correto, puro, em suma, o europeu. Ao
contrário, o termo castelhano seria utilizado para designar a variante
hispano-americana, isto é, o espanhol impuro que descompõe a língua
oficial. (id., 2006, p.30)

Com relação à língua portuguesa, é importante ressaltar que, antes da


consolidação da nação brasileira, no período da chegada dos portugueses, havia
aproximadamente 1.200 línguas indígenas faladas no atual território, essa
diversidade tornou inviável, inicialmente, a imposição da língua portuguesa e o uso
da língua latina para a catequese, contexto que contribuiu para o surgimento da
43

língua geral23 propagada pelos jesuítas. A Coroa Portuguesa, frente à progressiva


difusão do tupi como ameaça para implementação da língua portuguesa, num
período caracterizado pela consolidação das línguas nacionais na Europa Ocidental,
ordenou a obrigatoriedade do ensino da língua portuguesa aos indígenas. O que
tornou o cenário linguístico da Colônia ainda mais complexo, uma vez que se passa
a considerar as variantes da língua portuguesa e a modalidade escrita e falada. Este
panorama, acrescido das línguas africanas, marcou o contexto linguístico nos dois
primeiros séculos do Brasil Colônia (BERENBLUM, 2003).

Com a independência do Brasil e a proposta de criação do estado nacional,


não houve espaço para essa heterogeneidade cultural e linguística surgindo a
necessidade de criar uma nova identidade brasileira fundamentada “num passado
comum, a partir do qual se edificaria o futuro” (BERENBLUM, 2003, p. 67). No que
diz respeito ao processo de unificação linguística, o sistema nacional de educação
teve um papel fundamental para que a língua portuguesa fosse convertia em língua
materna, imposta como “‘modelo’ de língua a ser seguido” (id., p.71) e, por
conseguinte, invisibilizando as demais e fortalecendo o mito linguístico como forma
de representação para a criação e manutenção do estado nacional.

É neste sentido que Cavalcanti (2007) argumenta que existe no país uma
tensão entre os interesses de uma nação considerada homogênea e os interesses
das sociedades minoritárias24 que convivem sobre o mesmo território, pois, embora
o Brasil seja intitulado um país monolíngue, não se pode ignorar os contextos de
minorias bilíngues, uma vez que o cenário brasileiro é composto pelas comunidades
indígenas em quase toda a extensão do país, principalmente, na região Norte e
Centro-oeste; comunidades, na região Sul e Sudestes, de imigrantes alemães,
italianos, japoneses, poloneses, ucranianos, etc; comunidades de brasileiros
descendentes de imigrantes; comunidades de falantes nas fronteiras, em grande
parte com países hispano-falantes; sem contar com as comunidades de surdos.

23
A língua geral surgiu das línguas em contato, ou seja, línguas francas – de base indígena que eram
usadas para fins de comunicação entre “os diversos grupos indígenas, os missionários, e as
famílias português estabelecidas no Brasil” (BERENBLUM, 2003)
24
A autora considera como comunidades, sociedades ou grupos minoritários “populações que estão
distante das fontes do poder hegemônico, embora algumas vezes, numericamente sejam
majoritárias em relação à sociedade ou grupos dominantes” (op. cit. p. 45).
44

Ainda assim, o país insiste na ideia de nação monolíngue tornando invisíveis


suas minorias linguísticas e socioculturais existentes nesse cenário. É neste
contexto que “se instala o prestígio de determinada norma da língua portuguesa e o
apagamento das línguas nacionais minoritárias” (Cavalcanti,1999, p.50). Segundo
Cavalcanti (id.) as sociedades tendem a supor que o monolinguismo representa um
ideal natural e que o bilinguismo representa uma condição anormal, logo, esta visão
é extremamente eficaz para a manutenção do monolinguismo no Brasil, para “uma
imagem de estado ideal, longe do perigo, de qualquer condição temporariamente
anormal provenientes de situações de bi/multilinguismo (CAVALCANTE, 1999, p.
397). Outro fator complicador para a sobreposição desse mito linguístico à realidade
do sistema, conforme afirma Guisan (2009), é a utilização ideológica da língua
enquanto sistema homogêneo que se toma como elemento crucial na constituição
do indivíduo e da sua comunidade. Além disso, como já vimos, a construção
identitária remete, de alguma forma, a um processo ideológico que está vinculado a
questões de interesse e de poder.

2.3 O sujeito de/em duas línguas

Sendo distintas as definições que tratam sobre bilinguismo e indivíduo


bilíngue, cabe problematizar algumas questões sobre o tema para, a partir de então,
delimitar a perspectiva usada para compreendermos esse sujeito. No entanto, antes
disso, apenas por curiosidade, parece interessante instigarmos, pautados nos
questionamentos de Coracini (2003), se o termo usado até então, bilinguismo, seria
o mais adequado para esta discussão. Para Coracini (id.) o termo bilinguismo
propõe, de certa forma, a dualidade entre língua materna e língua estrangeira.
Vendo assim, nos parece um tanto controverso este termo uma vez que estamos
partindo do pressuposto de que o falante, o sujeito desta pesquisa, está imerso num
entre-línguas, isto é, numa relação estreita entre as línguas, onde sua subjetividade
é construída. Contudo, como não vamos nos aprofundar nesta distinção, pelo menos
não neste momento, continuaremos usando o termo bilinguismo.

Os estudos de bi/multilinguismo tem percorrido uma longa trajetória, no


entanto a razão pela qual tem sido tomado como objeto de análise não diz respeito
45

ao fato deste fenômeno ser fundamental para as dominantes ideologias políticas e


sociais, ao contrário, decorre do desafio de ter apresentado ideologias dominantes.
Portanto, enquanto o monolinguismo tem sido fundamental para a expansão imperial
ou a construção de estados-nação, o multilinguismo é visto, por conseguinte, como
um problema a ser compreendido através de pesquisas científicas e, portanto,
controlado. (HELLER, 1995)

Como já foi mencionado nos tópicos anteriores com Cavalcanti (2007) e


Rajagopalan (2006) o multilinguismo está presente na maioria das nações do
mundo, porém segundo Mello (1999) essa assertiva ainda soa surpreendente para
muitas pessoas e nações, sendo dois os motivos básicos para que isso ocorra:
primeiro o fato do conceito sobre bilinguismo ser bastante complexo e de difícil
compreensão, visto que existem inúmeras abordagens e critérios distintos para
caracterizar o fenômeno; depois não há interesse dos países e instituições mundiais
quanto ao tema, ainda que esses países vivenciem diretamente essa realidade.
Assim, permanece o discurso dominante de língua hegemônica e, logo, de
monolinguismo.

Outra questão importante observada por Mello (2009), embasada nas


concepções de Romaine (1995), refere-se à imprecisão dos registros estatísticos
dos censos demográficos para caracterizar uma situação de multilinguismo na
sociedade, visto que não há um estudo detalhado, como acontece nas pesquisas
etnográficas, que leve em consideração a situação sociolinguística das
comunidades, por exemplo, “a rivalidade entre os grupos linguísticos, as atitudes dos
falantes em relação às línguas, o status dos falantes e das línguas que falam, os
interesses políticos, o grau de bilinguismo dos indivíduos, etc.” (id., p.31).

Freitas (2007a) traz um exemplo claro dessas questões ao analisar o


contexto escolar bilíngue dos Makuxi na Maloca da Raposa25. A autora observa que
a situação sociolinguística dos Makuxi na Raposa é instável, ou seja, “...não é
estável, como tantos apregoam dizendo que ‘lá todos falam Makuxi’, inclusive
usando a Raposa como um exemplo de uniformidade de um conjunto de falantes de
ideais bilíngues” (id., p.21). Ao contrário, segundo Freitas (id.), as línguas estão em

25
Maloca é o termo usado na região do estado de Roraima para designar aldeia (FREITAS, 2007)
46

constante mudança onde seus falantes criam e recriam suas competências


linguísticas. Assim como Romaine, Mackey (1972, apud MELLO 1999) ressalta que
para obter-se uma noção significativa, em termos de qualidade e quantidade, deste
fenômeno não há como tratá-lo a partir, apenas, de abordagens linguísticas, mas
também de uma perspectiva teórica da psicologia, da sociologia, da etnografia, da
antropologia entre outras correntes correlacionadas. Cabe observar que esta
perspectiva transdisciplinar é dada aos estudos da linguagem pela Linguística
Aplicada.

Conforme Lyons (1987), embora haja alguns países considerados


oficialmente bilíngues ou multilíngues, no sentido de que falam duas, ou mais,
línguas consideradas oficiais, ou seja, segundo o autor, “designada[s] pelo governo
para uso oficial” (id., p. 208), a maioria dos países do mundo apesar de não serem
reconhecidos como oficialmente bilíngues ou multilíngues, possuem duas ou mais
línguas faladas em seus territórios. Além disso, Mello (1999) ressalta que em países
intitulados monolíngues existe uma grande porcentagem de indivíduos bilíngues,
enquanto isso uma nação considerada oficialmente bilíngue não implica, na maioria
das vezes, que todos os seus falantes sejam bilíngues, isto é, “as fronteiras
geográficas raramente refletem as fronteiras linguísticas” (MELLO, 1999, p. 32).

A aceitação e a oficialização de duas ou mais línguas não assegura uma


política multilíngue consistente suficiente para que os sujeitos se tornem bilíngues,
mas não se pode negar que deve ser o primeiro passo para o reconhecimento das
minorias linguísticas26 existentes em determinados países (MELLO,1999). Além do
Brasil, como já relatamos em no tópico anterior, existem outros países como
Alemanha, Estados Unidos, França, Japão, etc. que apesar de serem considerados
monolíngues, possuem inúmeras minorias linguísticas ativas, ou seja, “fazendo uso
regular de línguas e de variedades diferentes daquelas eleitas como oficial ou
padrão” (MELLO, 1999, p. 33). A autora compartilha o mesmo entendimento de
contextos bi/multilinguismo definido por Cox e Assis-Peterson (2007) e Cavalcanti
(1999, 2007) onde também se incluem as variedades consideradas de baixo
prestígio de uma dada língua.

26
Termo esclarecido na seção “Língua identidade e o papel da representação”
47

Embora Mello tenha apontado a necessidade de uma política linguística que


garanta ao sujeito a condição bilíngue, curiosamente, Maher (2007), parece analisar
essa questão, especificamente abordando casos da educação formal dos falantes
de línguas minoritárias no Brasil, por outro ângulo, porém não aniquilador da
perspectiva de Mello (1999). Maher (2007) fala da obrigatoriedade de tornar-se
bilíngue aos alunos falantes de línguas minoritárias, ou seja, “enquanto para a
maioria dos alunos das escolas brasileiras o bilinguismo é facultativo, para os
indígenas, surdos e de comunidades de imigrantes o bilinguismo é compulsório” (id.,
p. 68), isto é: estes são obrigados a dominarem a língua considerada majoritária,
neste caso a língua portuguesa, na maioria das vezes, sendo cobrado a variante
considerada padrão, e tornarem-se bilíngues. Este dado, segundo a autora, aponta
“uma relação desigual de forças, de poder” (MAHER, 2007, p. 69) que deve ser
sempre considerada nas reflexões teóricas e práticas educativas que envolvam
esses falantes bilíngues, caso contrário, estaríamos propondo uma discussão
passiva, inapropriada, inútil.

No que concerne à situação de bilinguismo no cenário mundial, Mello


(1999) aponta como um total descaso quanto à adoção de políticas linguísticas que
atendam as particularidades dos grupos étnicos envolvidos, invisibilizando os
contextos de bilinguismo devido a questões econômicas, ideológicas, políticas e
sociais, ou seja, nas palavras da autora: “a falta de uma política educacional oficial,
com base em um planejamento linguístico que leve em consideração o
reconhecimento, a compreensão e o respeito pelo contexto bilíngue, faz com que se
acentue ainda mais a situação estigmatizante na qual minorias se encontram” (
MELLO, 1999, p. 39).

Até aqui abordamos questões relacionadas ao bilinguismo na sociedade por


entendermos que seria inapropriado separá-lo do bilinguismo individual,
principalmente quando diz respeito às representações e atitudes dos sujeitos
bilíngues, no caso desse estudo, falantes de mais de uma língua num contexto
sociolinguisticamente complexo de fronteira. A seguir nos ocuparemos em apontar
algumas noções do sujeito bilíngue.

Iniciamos pela conhecida concepção de Bloomfield (1933, apud, MELLO,


1999) sobre o bilinguismo perfeito, entendido como o controle nativo em duas
48

línguas. Essa proposição soa bastante imprecisa, pois: como mensurar o grau de
perfeição de um falante, sendo o conhecimento de uma língua nativa variável de
acordo com cada sujeito? Por exemplo, conforme Mello (id.), há falantes com mais
registros de variedades consideradas padrão e outros com mais registros de
variedades consideradas não-padrão; assim como há sujeitos que falam sua língua
nativa, mas não a escrevem ou não a leem; em outros casos falam e leem, mas
possuem alguma limitação na escrita. Pois, se essas questões podem acontecer
com um nativo, também poderão acontecer com um não-nativo (MELLO, 1999). Isso
nos leva ao questionamento de Savedra (2009) ao afirmar que: se entendermos por
bilíngue apenas os sujeitos com controle nativo em duas línguas inevitavelmente
excluiremos a grande maioria dos bilíngues existentes. Além disso, na concepção da
autora, estaríamos dispensando a oportunidade de estudar casos que apresentam
contextos mais interessantes a serem problematizados, discutido e analisados.

Nessa mesma linha de pensamento, no que se refere ao questionamento da


concepção de bilíngue perfeito, Salgado (2009), embasada na teoria de Meyrs-
Scotton (2006), problematiza que o repertorio linguístico de um falante não é
composto por todas as variantes de uma dada comunidade, tampouco as pessoas
falam as mesmas variantes, logo “os indivíduos tem repertório linguístico
individualizado” (SALGADO, 2009, p. 144). A autora acredita que não há muitos
bilíngues que apresentam igual competência linguística, pois “ou adquiriram uma
língua mais completamente que a outra, ou porque usam uma língua mais
frequentemente que as suas outras, que certamente foram adquirias em graus
variados” (SALGADO, 2009, p.144). Já na concepção de Macnamara (1969), citado
por Appel & Muysken (1996), o bilinguismo é entendido através das habilidades
linguísticas de fala, a saber: audição, leitura, escrita e compreensão, sendo
considerado, pelo autor, um bilíngue aquele que possui, ainda que em proporção
pequena, pelo menos uma dessas habilidades.

Mello (1999), em uma breve revisão literária, aponta algumas definições que,
segundo a autora, embora sejam questionáveis em alguns aspectos, apresentam
uma perspectiva de interação maior entre o sujeito, a língua e a sociedade. Tais
definições pertencem aos autores Mackey (1972), Weinreich (1968) e Grosjean
(1982) que defendem, respectivamente, as seguintes proposições sobre o
fenômeno: “o uso alternado de duas ou mais línguas pelo mesmo indivíduo”; “a
49

prática de se usar duas línguas alternadamente”; “o uso regular de duas ou mais


línguas” (apud, MELLO, 1999). É curioso ressaltar que, segundo Salgado (2009),
nos últimos tempos a definição sobre bilinguismo tem sido concebida pelos
pesquisadores por uma óptica mais flexível, que entende o fenômeno como “uma
condição humana comum, possibilitando ao indivíduo operar, em algum nível, em
mais de duas línguas” (SALGADO, 2009, p. 143). Savedra (2009), também
coincidente com esta perspectiva menos rígida, define o bilinguismo como um
fenômeno relativo, ou seja:

uma condição particular, identificada pelo contexto e forma de aquisição


das duas línguas, bem como pela manutenção e abandono das mesmas.
Com esta condição particular, os indivíduos bilíngues apropriam-se de dois
códigos distintos e os utilizam em determinadas comunidades de fala, em
diferentes ambientes comunicativos” (SAVEDRA, 2009, p. 121)

No que concerne à relatividade do termo, Mackey (1972, apud, MELLO,


1999) está de acordo com a Savedra (2009), já que, para o autor, não é possível
saber exatamente em que momento alguém se torna bilíngue, reafirmando a ideia
do bilinguismo ser uma questão de alternância de língua. Neste sentido, coloca
alguns pontos importantes que devem ser levados em consideração na
caracterização de um individuo bilíngue, tais como: o grau de conhecimento que o
individuo possui em relação às línguas que usa; a função para a qual a usa; como
acontece a alternância de código entre essas línguas, com que frequência e em que
circunstancias ocorre; e até que ponto uma língua influencia na outra. No que diz
respeito à função da língua o autor classifica em duas partes, externa e interna. A
externa pode ser determinada pelo local onde ocorre a interação, pela duração,
frequência e pressão que o falante sofre do meio em que convive, podendo ser de
cunho político, econômico, cultural, religioso, etc. Quanto à função interna está
associada à forma de uso, por exemplo, se o sujeito está escrevendo, cantando,
rezando, e, além disso, a outros pontos como idade, sexo, memoria, motivação e
atitude que o usuário de uma determinada língua tem em relação à mesma.

Quanto a este último ponto, Fernández (1998), ao falar sobre a língua e seu
uso social, afirma que a atitude linguística é resultado da atitude social dos sujeitos.
Para o autor, tem-se dado destaque à atitude e ao uso linguístico na medida em que
50

se percebe a língua não só portadora de uma determinada forma estrutural e


atributos linguísticos, mas também, e principalmente, como transmissora de
significados e conotações sociais. A esse respeito, é importante também ressaltar,
como já citado em outros momentos desse referencial teórico, e agora com
Fernández (1998), a relação entre língua e identidade, sendo esta não só uma
manifestação das atitudes dos falantes frente a determinadas línguas e seus
respectivos usuários, como afirma o autor, mas também das representações que
esses sujeitos constroem das línguas que falam, a partir de relações de interesse, de
poder, de elementos internos e externos que criam e impõe significados particulares.

Uma variedade linguística, ainda conforme Fernández (1998), pode ser


interpretada como uma característica determinante da identidade, neste sentido é
que as atitudes sobre grupos com uma determinada identidade são em parte
atitudes das variantes linguísticas usadas por esses grupos, ou seja, são reflexos
das atitudes psicossociais. Já que as línguas possuem significados e conotações
sociais, nada mais lógico que sejam avaliadas levando em conta o status ou
caraterísticas sociais dos seus falantes. Neste sentido, torna-se complexo definir
onde termina a atitude relacionada a uma determinada variedade linguística e onde
começa a atitude relacionada ao grupo ou falante desta variedade. O que se pode
observar, através das pesquisas, segundo o autor, é que a diferença de atitude em
relação às línguas frequentemente está associada à posição social e etnolinguística
dos seus usuários (FERNÁNDEZ, 1998).

Fernández (id.) cita duas hipóteses para essa situação, formuladas por Giles
e seus colaboradores: a primeira diz respeito à “hipótese do valor inerente” que
consiste na possibilidade de comparar duas variantes sendo uma dessas
consideradas de maior prestígio que a outra; a segunda, “hipótese da norma
imposta”, mantém a ideia de que uma variante pode ser valorizada, por si mesmo,
como melhor que outra se é falada por um grupo de maior prestígio. Conforme
Fernández, o estudo de Giles mostra que a mesma variante pode ser objeto de
atitudes positivas ou negativas dependendo do valor que se dê ao grupo que a usa,
sendo as atitudes linguísticas, na maioria das vezes, manifestações das preferências
e das convenções sociais acerca dos status e prestígios dos falantes. Neste sentido,
o autor ressalta que o mais comum é que os grupos sociais mais poderosos
economicamente sejam os que estabeleçam o modelo da atitude linguística das
51

comunidades de fala, por isso as atitudes sobre a língua, os usos e as


características de falantes em uma posição social mais alta são consideras, na
maioria das vezes, positivas. (FERNÁNDEZ, 1998, p. 181)

Porém, vale ressaltar, que a abordagem que damos ao sujeito, neste


trabalho, não é de forma alguma passiva, ou seja, não o consideramos como um
sujeito assujeitado, mas sim um sujeito da perspectiva dos estudos culturais, poroso,
criativo, com certa autonomia que lhe permite construir um contra discurso, que
subverte, que resiste a sua formação ideológica, logo, aos discursos dominantes.

O nível de estandardização e de vitalidade são dois fatores que contribuem


decisivamente na formação das atitudes linguísticas que se manifestam tanto à
variante e aos usos linguísticos próprios quanto aos alheios. Há casos em que os
próprios falantes de línguas consideradas minoritárias, como já citado em parágrafos
anteriores – com Cavalcanti (1999) e Mello (1999) – têm uma atitude negativa da
própria língua. Isso, geralmente, acontece, quando as próprias línguas não lhes
permitem “um acesso social, uma melhora econômica ou quando lhes impossibilita o
movimento por lugares ou círculos diferentes dos seus27” (FERNÁNDEZ, 1998, p
181), o que não significa que estes falantes não valorizem em absoluto sua própria
língua.

Para que se entenda essa contradição, ou seja, a possibilidade que um


falante ou determinado grupo tenha uma atitude negativa da própria língua e ao
mesmo tempo a valorize de alguma forma, deve-se estabelecer, conforme o autor,
uma distinção entre as várias características da língua e considerar que são
definidas por razões diferentes as quais, normalmente, são sociais, subjetivas e
afetivas. Dessa forma, os sujeitos criam atitudes linguísticas levando em conta uma
serie de fatos, linguísticos e sociolinguísticos da língua ou variedade a qual
pertencem, que os afetam, logo, “a consciência linguística é um fenômeno
estreitamente ligado à variedade linguística – sobretudo nas comunidades bilíngues

27
Tradução livre: “un ascenso social, una mejora económica o cuando les imposibilita el movimiento
por lugares o círculos diferentes de los suyos”
52

e em território onde se fala mais de um dialeto – e ao estrato social28”


(FERNÁNDEZ, 1998, p. 182).

É perceptível que essas questões apontadas sobre a atitude linguísticas são


mediadas por relações de poder que produzem discursos dominantes impostos à
sociedade como verdades, como normas como elementos não marcados. Uma
consequência dessa situação é o uso do termo bilinguismo associado às línguas de
prestígio no que se convencionou denominar bilinguismo de elite, conforme ressalta
Cavalcanti (1999). Neste mesmo sentido, Maher (2007), ao discutir sobre a
avaliação social do aluno bilíngue, relata atitudes distintas para o mesmo fenômeno,
pois: se o que esteve em questão forem línguas consideradas de prestígio, o
bilinguismo é concebido como algo positivo que deve ser incentivado, porém se as
línguas envolvidas forem avaliadas como de pouco prestígio, como as indígenas,
então o fenômeno é visto negativamente, como “um ‘problema’ a ser erradicado”
(Maher, 2007, p.69). Além disso, nesta distinção, o que conta, segundo a autora,
não é penas o status da língua, mas também o prestígio dado às variedades
dialetais, a exemplo, nas palavras da autora: “Uma coisa é um individuo ser capaz
de se comunicar em português e na variedade padrão do alemão; outra coisa é
alguém ser capaz de fazê-lo em português e no dialeto alemão de alguma das
comunidades rurais do Paraná” (MAHER, 2007, p. 69). Para a autora, este último
seria percebido como uma desvantagem no processo de educação, já o primeiro
como uma vantagem.

Todos esses pontos discutidos até o momento devem se levados em


consideração para tentar compreender algumas questões concernentes aos sujeitos
dessa pesquisa, como já sabemos, falantes de mais e uma língua em um contexto
sociolinguísticamente complexo. No entanto, cabe-nos esclarecer que não nos
deteremos em uma perspectiva puramente linguística, mas sim, propomos uma
discussão sobre a relação sujeito e línguas que aborde aspectos identitários da
construção desse sujeito, formada a partir de representações que constrói das
línguas que fala e convive e da trajetória construída com cada uma delas, ou seja, a
partir da perspectiva da Linguística Aplicada.

28
Tradução livre: “la consciencia lingüística es un fenómeno estrechamente ligado a la variedad
lingüística- sobretodo en las comunidades bilingües y en territorio donde se habla más de un
dialecto- y al estrato social”
53

Conforme ressalta Heller (1995), algumas abordagens de cunho sociológico


e antropológico sobre o bi/multilinguismo estabeleceram uma relação entre padrões
multilíngues e as formas de organização social, no sentido de apontar
correspondência entre as diferentes variedades linguísticas e as diferentes situações
sociais nas quais estas variedades são usadas, assim como os diferentes valores
atribuídos às variedades das línguas. Embasado neste conceito central, alguns
estudos mais recentes abordaram que papel as línguas realmente desempenham no
desenvolvimento das estruturas e processos sociais. Ainda neste sentido, Heller (id.)
ressalta que alguns autores (Irvine, 1989; Kulick, 1992; Woolard, 1985; Hill, 1986)
exploraram temas como fronteiras sociais, identidades e relações de poder e de
solidariedade, relações entre práticas sociais e linguísticas, atitudes e valores. Tais
perspectivas implicam a construção de ideologias através da linguagem como uma
janela para o exercício do poder e o estabelecimento de relações sociais
hierárquicas como um lugar onde esse poder acontece.

Tal abordagem é altamente instrutiva no contexto de pesquisa deste estudo,


onde as práticas de línguagem na fronteira Brasil/Venezuela, resultantes da
interação entre os individuos que alí convivem – conforme nos lembra Couto (2009),
as línguas não possuem vida independente dos individos que as usam, pois “o que
entra em contato diretamente não são as línguas, mas os povos” (id., p. 50) – não
podem ser anlisadas considerando apenas a materialidade da língua, mas,
sobretudo, as representações e ideologias que servem a interesses dos sujeitos que
participam dessa comunidade de fala.

2.4 A linguagem no entre-lugar: algumas perspectivas de fronteiras

O conceito de fronteira que propomos para este estudo, considerando as


colocações de Hanciau (2010), vai além da noção de espaço geográfico. As
fronteiras são, sobretudo, produto da capacidade de representação do indivíduo
sobre a realidade a partir de “um mundo paralelo de sinais que guiam o olhar e a
apreciação, por intermédio dos quais homens e mulheres percebem e qualificam a si
mesmos, o corpo social, o espaço e o próprio tempo” (HANCIAU, 2010, p.136).
Souza (2009) aponta, numa perspectiva sociológica e visando a disputa pela
54

conquista de terra, a situação de conflito social como uma perspectiva mais


relevante para definir fronteira no Brasil. Para o autor é nesse conflito social que a
fronteira denomina-se como um espaço de alteridade, pois “À primeira vista, é o
lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si” (SOUZA,
2009, p.133) e, nessa descoberta do outro, torna-se também um lugar de
desencontros, sendo estes resultado de distintas formas de ver o mundo, ou seja, da
temporalidade histórica, pois cada grupo ou individuo está localizado diversamente
num tempo da história (id.).

Embora a fronteira seja lugar do encontro com o diferente não quer dizer que
sempre seja entendida como espaço de divergências e desencontros. Parece-nos
mais produtivo, principalmente levando em conta os tempos atuais, concebê-la como
uma zona porosa, permeável, flexível, singular, sem definições totalizadoras. Além
disso, pesquisá-la, como propõe Hanciau (2010), não garante solucionar essa
“problemática”, mas pelo mesmo nos permite compreender “o sentimento de
inacabamento, ilusão nascida da incapacidade de conceber o ‘entre-dois-mundos’, a
complexidade deste estado/espaço e desta temporalidade” (id., p.133). Nessa
dimensão, Pasavento (2001) caracteriza a fronteira num “ir-e-vir”, num estado de
deslocamento, não só de lugar, mas também de situação ou época, que possibilita
durante este processo a criação de algo diferente, novo, misturado, um terceiro
lugar. Neste sentido, os enfrentamentos na fronteira podem resultar em processos
tanto conflituosos quanto consensuais.

Para dar conta dos sujeitos dessa fronteira e da realidade misturada e


mesclada na qual se encontram, fazemos uso do conceito transculturalidade
apresentado por Cox e Assis-Peterson (2007). Diferentemente de transculturação
que implica a perda de uma cultura anterior, o termo transculturalidade é entendido
como a noção de tradução proposta por Hall (2006), no sentido de que não há perda
ou assimilação, mas sim negociação e mudança cultural, isto é: as pessoas são “o
produto de varias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e ao mesmo
tempo a varias ‘casas’... estão irrevogavelmente traduzidas” (id., p. 89). Este
conceito remete a formações identitárias de pessoas que atravessam e intersectam
as fronteiras naturais, que negociam com as novas culturas nas quais são inseridas.
55

Segundo Sturza (2006), no que diz respeito às fronteiras do Brasil com


países hispano-americanos algumas são marcadas por áreas de grande população,
como é o caso do sul do país, e outras por obstáculos geográficos naturais como
ocorre na região norte, onde, ainda segundo a autora, há pouca presença humana,
embora a fronteira Pacaraima-BR/Santa Elena-VE não se enquadre nesta
constatação, pois existe um fluxo grande de pessoas em ambas cidades
movimentado principalmente pelo comércio e turismo na fronteira.

Couto (2009), partindo de uma abordagem ecolinguística 29 leva em


consideração o ecossistema, “formado pelo agrupamento de pessoas que convivem
no lugar e suas inter-relações entre si e com o meio ambiente, sobretudo o território”
(id., p.160) para estudar os tipos de contato linguístico. Nesta perspectiva o autor
apontar a situação de fronteira como um quarto tipo de contato linguístico, porém
ressalta que as zonas de fronteira se distinguem em duas: aquelas onde ocorrem
acidentes geográficos, ou seja, separadas por rios, montanhas, etc., e os casos em
que não há. Embora o autor não deixe claro, parece considerar como quarto tipo de
contato somente os casos de fronteira onde há acidente geográfico. O quarto tipo de
contato implica a existência de dois povos com suas respectivas línguas e de dois
territórios, como elucida a figura abaixo proposta por Couto (2009):

Imagem: Quarto tipo de contato de línguas (Couto, 2009, p. 54)

A ideia é que cada um dos povos, ou parte deles, possa usar a própria
língua ao se deslocar para o território do outro, porém pode haver a predominância
de uma das línguas quando esta possui mais prestígio. Usando o exemplo da
fronteira Chui (Brasil)/Chuy (Uruguay), onde a única divisão física entre as duas

29
Área que estuda a relação entre as línguas e o meio ambiente.
56

cidades consiste em uma avenida, Couto expõe as razões pelas quais as fronteiras
inexistentes de acidente geográfico não se encaixam nesse quanto tipo de contato
de línguas. Para o teórico, considerando a concepção da ecolinguística, a fronteira
Chui (Brasil)/Chuy (Uruguay) se trata de uma única comunidade de fala, uma vez
que a considera constituída por “um território (T), uma população que não se divide
em duas (P) e uma maneira de se interagir verbalmente (L), mesmo que às vezes
em uma língua, às vezes em outra, ou até, em nenhuma delas, mas em uma terceira
alternativa, o portunhol” (COUTO, 2009, p. 161).

Outros trabalhos, assim como o de Couto (2009), exemplificam a


complexidade e relevância dos estudos das praticas linguísticas na fronteira. Na
região Norte, mais especificamente no estado de Roraima, existem poucas
pesquisas deste cunho, a saber: um estudo realizado por Amorim (2007) sobre as
interações orais entre comerciantes brasileiros e clientes venezuelanos com o
objetivo de analisar o fenômeno linguístico intitulado pela autora como portunhol,
onde constatou evidencias de alternância de código nas realizações orais devido às
estratégias dos informantes para facilitarem o comunicativo; o outro refere-se ao
trabalho de dissertação realizado por Braz (2010), que teve como objetivo analisar
as representações dos comerciantes brasileiros sobre as línguas e nacionalidades
que envolvem o contexto de fronteira. Uma das conclusões apresentadas pela
autora diz respeito às línguas concerne na política de homogeneização da língua
espanhola no Brasil como grande influencia na construção de representações de
variantes linguísticas não legitimadas do espanhol, que, segundo Braz (2010),
“corresponde ao falar da fronteira ou mesmo à América Hispânica” (id., p.105). Ainda
entre as constatações da autora, vale ressaltar, no que concerne as representações
identitárias de nacionalidade, que a identidade venezuelana é representada “como
sendo oposta a brasilidade, uma representação que corresponde a uma situação
concreta de oposição entre os dois países, em lados opostos da fronteira” (id., p.
105). O que nos permite observar, se levarmos em consideração as colocações de
Couto (2009) sobre a fronteira Chui (Brasil)/Chuy (Uruguay), quão singular deve ser
o tratamento dado a zonas de contato linguístico, visto que, embora os dois
contextos relatados aqui tenham em comum a inexistência acidentes geográficos e
abordem perspectivas teóricas distintas, os resultado são de alguma forma
divergentes, porém não excludentes.
57

Em um estudo sociolinguístico realizado com alunos de uma escola do


município de Oiapoque, Amapá, cidade que faz fronteira com a comunidade de
Saint-Georges na Guiana Francesa, Santo (2011) busca compreender como se dá a
interação entre as línguas, portuguesa, francesa, crioula de base francesa e
indígenas,30 na região. Em suas conclusões, a autora observou que devido às
condições política, econômica e social no qual o território guianense se encontra os
alunos brasileiros têm atitudes positivas em relação à língua francesa. Outro aspecto
interessante apontado neste estudo consiste na distinção da situação linguística
encontrada entre a fronteira Sul e a fronteira norte do Brasil, este representado pelo
contexto de pesquisa da autora. Segundo Santo (2011), as diferenças econômicas
sociais e linguísticas na fronteira entre o Oiapoque e Saint-Georges são mais
acentuados se comparadas às cidades fronteiriças do sul. Três questões principais
são apontadas como responsáveis por esta situação: a semelhança das línguas em
contato na fronteira do Sul, o português e espanhol; a situação econômica e social
do Brasil perante os países dessa fronteira não ser tão díspares, visto que, ambos
são territórios pertencentes ao Mercosul o que viabiliza acordos políticos que ajudam
nessa neutralização; e o peso da política linguística nas escolas bilíngues dessa
fronteira, uma consequência também dos acordos entre os países do Mercosul,
como é o caso do Projeto Escola intercultural bilíngue de Fronteira (PEIBF).

Na fronteira do Brasil com o Paraguai Pires Santos (2004), pesquisa, através


das práticas discursivas, aspectos identitários dos alunos “brasiguaios”, filhos de
brasileiros e descendentes, em sua maioria, de alemães e italianos. Esses alunos
foram alfabetizados no Paraguai e ao retornarem para Brasil tiveram dificuldade com
a língua portuguesa considerada padrão na modalidade escrita. Para Pires Santos,
essa situação fez com que os alunos se invisibilizessem na tentativa de “apagar sua
identidade híbrida e se identificarem com o grupo de maior prestígio, os
‘estabelecidos’ da comunidade escolar e do entorno social” (PIRES SANTOS, 2004,
p.8) o que, na visão da pesquisadora, elucida a manutenção do mito do
monolinguismo linguístico e, por conseguinte, do apagamento da realidade
multilíngue, multidialetal e multicultural do Brasil.

30
Quatro etnias habitam essa região de fronteira, segundo a autora: os Palikur, os Galili, os Wãiapi e
os Karipuna.
58

Todas essas questões sobre fronteira não podem ser compreendidas sem
considerar as consequências de um processo mais amplo, a globalização, onde
mudanças que atuam em uma escala global no mundo contemporâneo perpassam
as fronteiras geográficas, integrando e conectando as comunidades e organizações,
o que possibilita o surgimento de novas combinações de espaço-tempo, deixando o
mundo mais interconectado (Hall, 2006). Embora esse processo de globalização
propague um discurso de homogeneização cultural tal argumento não se cumpre,
tendo em vista que a globalização “é muito desigualmente distribuía ao redor do
globo, entre diferentes estratos da população dentro das regiões”, isto é, segundo
Doreen Massey, nas palavras de Hall (id., p. 78) tem sua “geometria de poder”. Além
disso, concomitante a essa tendência homogeneizadora há a fixação pelo diferente,
ou seja, “um novo interesse pelo ‘local’” (id., p. 77). Esse cenário, conforme ressalta
Pires Santos (2004), tem contribuído para novas configurações sociais econômicas e
políticas que não possuem embasamentos numa força unificadora, como os mitos
fundacionais, inexistindo, conforme afirma Hall (2006) “qualquer nação que seja
composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações
modernas são, todas, híbridos culturais” (p. 62).

Nesse processo de Globalização, as identidades culturais estão sendo, a


todo instante, revitalizadas pelo que Hall (2006, p 62) chama de “impacto da
compressão espaço-tempo” e o fenômeno da migração, fomentado na maioria das
vezes por questões econômicas, é um importante aspecto desse processo, já que
contribui para a construção de identidades complexas, marcadas pelo deslocamento,
ou também pelo “redeslocamento”, como é o caso, por exemplo, do contexto de
pesquisa deste estudo, que apresentaremos mais adiante..
59

CAPÍTULO 3

DESENHO DA PESQUISA

No presente capítulo, inicialmente exponho a fundamentação


teórico/metodológico que norteia esta pesquisa, em seguida detalho os
procedimentos para geração dos registros e a sistematização dos dados; e, por
último, defino os sujeitos da pesquisa e o contexto de mobilidade no qual estão
inseridos.

3.1 Uma perspectiva transdisciplinar

Este trabalho está embasado no pressuposto teórico/metodológico da


Linguística Aplicada (LA) por entender que esta perspectiva trata a linguagem numa
abordagem interdisciplinar e transdisciplinar agregando outros conhecimentos
quando necessário para explicar um determinado fenômeno que apareça na
pesquisa.

Segundo Freitas (2007b), quando se fala em uma perspectiva


transdisciplinar e interdisciplinar refere-se aos campos de conhecimento
pertencentes a determinado tema pesquisado a partir do fenômeno observado. A LA
além de abordar teorias de outras ciências também desenvolve suas próprias
teorias, conforme afirma Almeida Filho (2007): “...dentro dos sucessivos tratamentos
de problemas de ordem semelhante, instituíram-se em LA uma taxonomia e tradição
de pesquisas próprias que vem a refletir as bases teóricas crescentemente
consolidadas da LA contemporânea” (Id., p.15).

A LA estuda a linguagem em seu contexto real, pois entende que uma teoria
que compreende o social como questão secundária jamais terá êxito num campo de
prática que seja, antes de qualquer outra coisa, social. Além disso, parto do
pressuposto, na companhia de Rajagopalan (2006), de que não se pode descrever a
língua e seu uso fora do contexto, isto é, da sociedade na qual ela é utilizada. Neste
60

sentido, a LA tem como grande desafio compreender o processo da vida social


explorando a relação entre teoria e prática, sem separá-las, ou seja, parte de um
problema prático de uso da linguagem, busca teorias e retorna à prática. Abaixo
Freitas (2007b) expõe detalhadamente a forma como acontece este percurso da
pesquisa:

A discussão teórica prévia de um campo permite que a indução e a dedução


estejam sempre em constante diálogo. Dessa forma, as linhas de indagação
traçam o desenho da própria pesquisa. Esse traçado que funciona como
meio condutor, é flexível o bastante para acompanhar o desenrolar dos
acontecimentos no contexto, que é entendido de forma holística. Assim, é
possível que ocorra alguma mudança de foco se o pesquisador se deparar
em campo com outro fenômeno que lhe atraia, sem perder de vista, no
entanto, o seu objeto de estudo (id., p.100)

No contexto de LA, a pesquisa é feita a partir de leituras teóricas prévias,


porém as leituras específicas surgem da problematização detectada em um
processo de investigação do pesquisador. Cesar e Cavalcanti (2007) advertem que
as pesquisas em Linguística Aplicada devem estar cada vez mais compromissadas
com a complexidade das práticas sociais e discursivas dos nossos sujeitos de
pesquisa no sentido de frequentemente nos questionarmos sobre determinados
conceitos “muitas vezes contraditórios e insuficiente para fazer face às nossas
necessidades de reflexão” (id., p, 46). A pesquisa em LA, assim como em outras
áreas que abordam o contexto social, tem apresentado cada vez mais trabalhos de
cunho qualitativo, logo, interpretativistas, onde envolve, segundo Denzin e Lincoln
(2006, p. 17):

Uma abordagem naturalista, interpretativista, para o mundo, o que significa


que seus pesquisadores, estudam as coisas em seus cenários naturais,
tentando entender ou interpretar, os fenômenos em termos de significados
que as pessoas a eles conferem.

Geralmente na LA e, portanto, nas pesquisas interpretativas, trabalha-se


com mais de uma técnica de coleta de registros, pois, conforme Denzin e Lincoln
(2006, p. 17), cada instrumento permite uma observação diferente do contexto de
investigação. Essa opção metodológica é comumente conhecida como triangulação
61

que, segundo Alves (2001, p. 71), embasado pela teoria de Jakobsen (1999),
entende que a investigação de mesmo objeto “por meio de dados coletados e
interpretados através de métodos diferentes aumenta as chances de sucesso do
pesquisador em sua tentativa de observação, compreensão e explicação de um
determinado fenômeno”.

Na LA a coleta de registros é possibilitada na maioria das vezes por


instrumentos tais como: 1) observação participativa, que conforme Freitas (2007, p.
110) é entendida assim porque “o pesquisador ao interagir com a situação
analisada, interfere e sofre interferência dela; 2) construção de diário de campo; 3)
gravações; e 4) entrevistas. Este último instrumento é elaborado através de
indagações chaves possibilitando “a formulação de outras questões advindas das
respostas dadas... como uma conversa informal, deixando os entrevistados mais à
vontade e resultando em verdadeiras narrativas orais” (FREITAS, 2007b, p. 100).
Embora tenha lançado mão de alguns procedimentos de cunho etnográfico, dada a
brevidade da minha permanência em campo e um número pequeno de pessoas que
participaram da coleta, não caracterizo essa investigação como etnográfica. A
pesquisa apresentada nessa dissertação procede-se das seguintes partes: leituras
e discussões teóricas prévias de maneira a orientar parcialmente a proposta de
investigação; depois, a coleta de registros durante as visitas feitas à fronteira; e, por
último, análise dos dados – seleção dos dados e leituras teóricas específicas para a
discussão proposta pelo recorte – e a composição escrita deste trabalho.

3.2 Procedimentos de geração dos registros e sistematização dos dados

Seguindo os pressupostos da LA, faço uma distinção entre a coleta dos


registros e os dados da pesquisa, pois nem tudo o que é coletado em campo
necessariamente será usado para a análise. Portanto, os registros passam por uma
sistematização que resulta na seleção dos dados para a pesquisa. Devido à
complexidade do contexto deste trabalho, optei por três procedimentos de coleta de
registros, a saber: diário de campo – DC , atividade de grupo focal – GF (gravada em
vídeo) e entrevistas individuais semiestruturadas –EI (gravadas em áudio).
62

3.2.1 Diário de campo

Ao iniciar a pesquisa de campo na fronteira fiz uma primeira visita à


Pacaraima com o intuito de confirmar informações sobre o funcionamento das três
escolas públicas desse município no que diz respeito à faixa etária, nacionalidade e
residência do alunado que as compõem. Digo confirmar informações porque, apesar
de não conhecer as escolas da Pacaraima, já havia lançado, enquanto visitante e
professora do ensino da língua espanhola, vários olhares panorâmicos sobre
distintas situações nos respectivos municípios da fronteira. Além disso, nessa visita,
estabeleci a escola para a escolha dos meus sujeitos da pesquisa, realizei o primeiro
contato com a diretora e, posteriormente com a coordenadora pedagógica, para a
qual expliquei o motivo da minha visita, apresentando uma cópia do meu projeto e
uma declaração comprovando as informações dadas. A mesma direcionou-me a
secretaria escolar para que pudesse, através das fichas cadastrais, encontrar os
participantes que contemplariam o perfil estabelecido, logo: brasileiros com no
mínimo três anos de residência no município de Santa Elena, estudantes do ensino
médio numa escola de Pacaraima, filhos de pai e mãe brasileiros ou pelo menos pai
ou mãe brasileira. Devido às fichas cadastrais estarem incompletas ou com
incoerência de informações, não foi possível, através deste instrumento, determinar
os participantes. Numa segunda ida à escola dentre outras ações visitei a sala dos
professores, no intuito de estabelecer contato com aqueles que têm maior
aproximação com os alunos, em especial o professor de língua espanhola, o qual
me indicou alguns alunos que contemplavam os pré-requisitos estabelecidos,
conversei com os professores e expliquei o motivo da minha presença na escola e
solicitei informações que pudessem me ajudar a compor o quadro de participantes. A
partir dessa informação, durante toda a tarde, entre um intervalo e outro, nos
corredores, na cantina, na biblioteca, fui sondando, através de conversas informais,
os alunos, os assistentes de alunos e a bibliotecária, só então consegui compor o
quadro de participantes dessa investigação com 08 alunos dos quais 05 participaram
do grupo focal e 04 das entrevistas individuais.
63

Ressalvo que essas informações e outras que ainda aparecerão no decorrer


deste trabalho foram registradas como notas de campo no diário de pesquisa
durante todas as visitas feitas à fronteira. Tal instrumento foi de fundamental
importância não só para caracterizar o cenário da pesquisa e ajudar a compor o
perfil dos participantes, mas também para cotejar os registros gerados pelos demais
instrumentos.

A partir de então estruturei a coleta em dos momentos: no primeiro,


desenvolvi o grupo focal no mês de julho de 201031 e, no segundo, as entrevistas
individuais que aconteceram no mês de julho de 2011, somando um total de 06
visitas feitas à fronteira, 03 no primeiro momento e 03 no segundo.

3.2.2 Grupo Focal

O Grupo Focal é um instrumento frequentemente usado em pesquisas de


cunho qualitativo, indicado para obter informações relevantes de um determinado
grupo de pessoas. É uma técnica onde o pesquisador reúne uma determinada
quantidade de pessoas com perfis pré-definidos, com o objetivo de coletar, a partir
do diálogo e do debate, informações acerca de um tema específico (NETO, 2002).
Segundo Neto (id.), a principal característica da técnica de GF é a ideia de trabalhar
com a reflexão expressa pela fala dos participantes, admitindo que eles apresentem,
ao mesmo tempo, suas definições, impressões e ponto de vista sobre determinado
tema em debate.

O Grupo focal foi desenvolvido na terceira visita feita à escola. Em uma sala
reservada32, os alunos, sujeitos da pesquisa, convidados na visita anterior a
participar de uma discussão em grupo para relatar a experiência de viver na

31
Diário de pesquisa: Essa coleta aconteceu após cursar o primeiro semestre de disciplinas do
programa, em Boa Vista-RR, sob orientação da minha co-orientadora, pois por ser este um
mestrado interinstitucional – MINTER, as últimas disciplinas do semestre seguinte tiveram de ser
cursadas no Rio de Janeiro, momento em que aproveitei para compartilhar pessoalmente a coleta
de registro com o meu orientador. O segundo momento da coleta foi efetuado após cursar as
últimas disciplinas do programa.
32
Onde funciona a Universidade Virtual de Roraima - UNIVIRR que promove cursos de capacitação e
palestras com temas da atualidade para alunos, professores e comunidade em geral.
64

fronteira, se direcionaram ao local da atividade e nos dispusemos em semicírculo


para facilitar a interação entre os participantes e, em alguns momentos, com a
pesquisadora. A atividade foi gravada em vídeo e posteriormente transcrita. A
observação do registro transcrito foi efetuado em dois momentos: anterior à
realização das entrevistas individuais com os participantes e posterior às
roteirizações dessas entrevistas, procedimento este que será tratado na próxima
subseção. Como já disse acima, dos 08 alunos selecionados participaram do grupo
focal apenas 05. Dos 03 alunos que não participaram da atividade, 02 não
compareceram à escola neste dia e o terceiro estava realizando uma prova de
recuperação paralela.

Minha intenção não foi apenas gerar uma discussão a partir do tema
proposto, mas sim estimular os participantes a produzirem depoimentos da vivência
no contexto de mobilidade geográfica ao qual estão inseridos. Portanto, fiz algumas
alterações na execução da técnica de GF: em vez de começar com perguntas
direcionadas ao tema, optei por iniciar com a leitura de um texto jornalístico intitulado
“VE quer melhorar tratamento a brasileiros” (anexo 1), que serviu como elemento
provocador para a construção dos relatos orais. A escolha do texto tinha apenas
esse pretexto, sem a preocupação de verificar questões de leitura.

Para a compreensão e discussão do texto foram feitos três blocos de


perguntas, em cada bloco a primeira pergunta estava relacionada a uma informação
central que aparecia no texto e as outras complementavam essa informação, quando
oportuno lançava alguma pergunta que não estava prevista no roteiro. Cada bloco
foi verbalizado em um momento só, mas como se fosse uma conversa, como se eu
estivesse reformulando a pergunta ou acrescentando informação para relacionar
com o texto ou o contexto dos relatos dos alunos (anexo 2).

A atividade de GF foi realizada anterior à entrevista individual não só por


entender que os relatos dos participantes da atividade apresentariam indagações
chaves que me direcionariam na construção do roteiro da entrevista, mas também
por pensar que na entrevista teria a oportunidade de explorar mais detalhadamente
as questões que não tivessem ficado muito claras ou até mesmo algum ponto
importante que não tivesse sido mencionado no GF, como de fato aconteceu. No
grupo focal, suponho que devido à leitura do texto como elemento provocador, os
65

participantes se detiveram mais tempo em apontar questões de cunho


extralinguístico, conforme veremos na análise.

3.2.3 Entrevistas individuais

Esse terceiro procedimento ocorreu após a observação prévia dos registros


coletados no GF e o retorno às subperguntas de pesquisa no intuito de verificar que
direcionamento deveria dar a entrevista para que nos depoimentos dos participantes
fossem contempladas questões, sobretudo as de cunho linguístico, que não foram
mencionadas no GF. As entrevistas semiestruturadas individuais foram realizadas
em Santa Elena33, nas residências dos participantes. Antes da última visita para
realizar as entrevistas fui à fronteira Brasil/Venezuela duas vezes mais (4ª e 5ª
visita). Na 4ª visita coletei os endereços residenciais dos alunos em suas fichas
escolares e tentei localizá-los em Santa Elena, mas não consegui encontrar seus
endereços. Na 5ª visita, com a ajuda de um morador de Pacaraima, localizei os
endereços de 04 participantes que se dispuseram a realizar a entrevista na semana
seguinte. No que diz respeito ao participante que não realizou a entrevista consegui
localizá-lo apenas por telefone, o qual se negou a participar por falta de tempo. Na
6ª visita, após entrar em contato com todos os cinco participantes e confirma a
participação de 04 deles realizei o segundo momento da coleta.

Para a entrevista elaborei um roteiro de entrevistas com perguntas abertas


que contemplavam três eixos norteadores (anexo 3): 1) o sujeito da (na) fronteira; 2)
o processo de aquisição e ensino da língua no espaço fronteiriço e 3) uso,
frequência e função da língua portuguesa e espanhola. No momento da entrevista,
antes de iniciá-la, solicitei a cada participante que fizesse uma breve apresentação,
informado os dados pessoais, o tempo de residência na Venezuela e, de forma
geral, os familiares que ali residem com ele. Após a entrevista organizei quadros

33
Exceto a de JÚLIA, embora more em Santa Elena com as irmãs, foi entrevistada em Pacaraima-BR
na residência do pai.
66

individuais com a síntese dessas informações que me ajudaram a compor o perfil


dos sujeitos da pesquisa (anexo 4).

Em seguida fiz a roteirização das entrevistas, registrando a cada 5 minutos a


síntese dos pontos principais de cada eixo norteador que apareceram nos relatos
dos alunos, dentre os quais foram selecionados uma parte dos dados para a análise,
posteriormente transcritos. Adiante apresento uma amostra da roteirização para
ilustrar melhor a forma como sistematizei os registros coletados:

ROTEIRIZAÇÃO DA ENTREVISTA julho de 2011


IDENTIFICAÇÃO: DANIEL
MIN PONTOS RELATADOS TRIANGULAÇÃO
00 ...
1. O sujeito da (na) fronteira ■ Relatos que confirmam as vantagens
de morar em Santa Elena (EIJ e EIS)
■ Relato sobre as vantagens de morar ■ Relatos sobre as desvantagens de
em Santa Elena: morar em Santa Elena:
1. custo de vida; 1. cobrança de propina a brasileiros na
2. clima agradável; alfândega (GF, p. 9)
3. tranquilidade; etc 2. humilhação que brasileiros sofrem
em território venezuelano (GF, p. 10 e
15);
3. críticas à vestimenta brasileira (GF,
16 e 17)
1. O sujeito da (na) fronteira ■ Relação língua e nacionalidade:
1. falar espanhol com pronúncia de
■ Relação língua e nacionalidade: falar brasileiro = ser brasileiro (EIS)
bem espanhol e português = ser 2. falar português sem a pronúncia de
10
brasileiro e venezuelano brasileiro = ser venezuelano legítimo
(EIS).
3. Realizar fonema consonântico /r/ =
ser venezuelano (GF, p.12).
4. Realizar fonema consonântico /h/ =
ser brasileiro (GF, p. 12)
2. O processo de aquisição e ensino ■ Preferência pelas escolas brasileiras
da língua no espaço fronteiriço (DC, p. 2).
■ Representações do sistema escolar
■ Representação dos sistemas venezuelano (EIS):
escolares: 1. calendário escolar;
1. preferência pelas escolas 2. currículo escolar;
brasileiras. 3. normativa interna (cobrança do
2. localização das escolas em uniforme e do material didático).
relação ao comércio.
2. O processo de aquisição e ensino ■ Outros depoimentos de confirmação
da língua no espaço fronteiriço da diferença entre o espanhol da escola
e o espanhol de Santa Elena (EIJ, EIC e
15 ■ Espanhol ensinado na escola é IES).
diferente da variedade usada pelo
participante em Santa Elena:
1. relatos das diferenças lexicais;
67

2. variedade peninsular ensinada no


sistema escolar.
■ A língua como símbolo de ■ Outros símbolos que marcam a
identificação identidade:
1. território (GF, p.07);
2. moradia (GF, p.07)
3. marca fonética da palavra 4. arroz
(GF, p. 12);
5. vestuário (GF, p.17);
6. carro venezuelano (EIJ)
2. O processo de aquisição e ensino ■ Relatos das dificuldades iniciais na
da língua no espaço fronteiriço. utilização do espanhol:
1. episódios intitulados engraçados e
■ Relato da aquisição da língua constrangedores (EIC e EIS).
20
espanhola... 2. aquisição da língua na interação
(EIJ, EIC e EIS).
3. variação fonética e lexical (EIJ e
EIC).
...
Legenda:
EIJ: entrevista individual com Júlia;
EIC: entrevista individual com Camila;
EIS: entrevista individual com Sara;
GF: grupo focal;
DC: diário de campo

No quadro acima, a segunda coluna expõe o conteúdo da gravação em


áudio e na terceira fica um espaço reservado para outros registros do diário de
campo, do grupo focal e até mesmo das entrevistas dos demais participantes que
servem à triangulação do material roteirizado, que ao serem entrecruzados permitem
sua confirmação ou contestação e, consequentemente, a seleção dos dados para a
análise de forma a responder a pergunta de pesquisa desta investigação a qual
reitero a seguir:

De que forma as diversas representações das línguas, português e


espanhol, interagem na construção identitária de brasileiros, alunos de uma
escola estadual no município de Pacaraima-BR, em contexto de mobilidade
geográfica e linguística na fronteira Brasil/Venezuela?

Conforme já mencionei essa pergunta de pesquisa se completa nas


seguintes subperguntas:
68

a) Enquanto sujeitos residentes em Santa Elena-VE e estudantes em


Pacaraima-BR, como os alunos brasileiros se sentem nessa mobilidade geográfica e
linguística que vivenciam?

b) Em quais contextos e com quais interlocutores os estudantes brasileiros


interagem em língua portuguesa e espanhola?

c) Como se dão as práticas linguísticas dos alunos brasileiros na fronteira


enquanto resultado do contato linguístico e intercultural entre os venezuelanos e
brasileiros?

d) Que relação os indivíduos em foco estabelecem entre a fronteira


geopolítica e as línguas, ditas oficiais, faladas nela?

As convenções para transcrição dos dados gerados pela atividade do GF e


pelas entrevistas foram adaptadas do projeto “Vertentes do português popular da
Bahia”34:

CONVENÇÕES PARA A TRANSCRIÇÃO


P. Participante
(inint) trecho ininteligível
[ ] trecho sobre qual não há certeza na audição
“ ” discurso direto produzido pelo participante.
{ } recursos não verbais empregados pelo
participante
... pausa e hesitações durante a fala.
(xxx) comentário da pesquisadora pertinentes para
compreensão do trecho.
MAIÚSCULA ênfase ou acento forte.
? Interrogação

3.3 Definindo os sujeitos da pesquisa e a mobilidade geográfica

Conforme já informei anteriormente, no mês de julho de 2010 realizei a


atividade de Grupo Focal com 05 participantes dos quais 04 se dispuseram a fazer a
entrevista individual em julho de 2011. Todos os participantes eram alunos
brasileiros com no mínimo três anos de residência no município de Santa Elena,

34
Lucchesi, 2012.
69

estudantes da 1º e 2º série do ensino médio em uma escola de Pacaraima e filhos


de pais brasileiros ou pelo menos pai ou mãe brasileira. Os participantes receberam
nomes fictícios para manutenção do seu anonimato e melhor compreensão da
análise. Na tabela a seguir apresento outras informações a respeito dos mesmos.

Nacionalidade dos

Nacionalidade dos

Lugar de origem
residência em

responsáveis.

imigração da
participantes
Identificação

Santa Elena
Tempo de

Motivo da

família
Idade
Sexo

Boa Trabalhar no
Pai brasileiro e Vista- garimpo
Júlia

03
F 16 Brasileira madrasta RR venezuelano
anos
venezuelana

Boa Trabalhar
Fernando

Vista- como
03 Pais RR autônomo
M 15 Brasileiro
anos brasileiros

Manau Não sabe


Padrasto
Daniel

15 s-AM informar
M 17 Brasileiro venezuelano e
anos
mãe brasileira

Boa Trabalhar no
Camila

05 Pais Vista- garimpo


F 16 Brasileira RR venezuelano
anos brasileiros

Alto Trabalhar no
Pai brasileiro e Alegre- garimpo
Sara

05 Brasileira e
F 16 mãe RR venezuelano
anos venezuelana
venezuelana

As famílias de Júlia, Camila e Sara imigraram para Santa Elena com o


objetivo de trabalharem nos garimpos da Venezuela. Embora o tempo de residência
desses participantes seja relativamente curto na Venezuela, seus pais já tinham uma
experiência longa de trabalho neste país. No caso das duas últimas participantes,
seus pais trabalhavam durante um período nos garimpos da Venezuela e
retornavam a Roraima para ficarem outro período com as suas famílias, tempos
depois decidiram mudar-se definitivamente para Santa Elena acompanhados de
suas respectivas famílias, momento em que as participantes passaram a ter contato
70

com a cultura e a língua venezuelana. Júlia, filha de pais separados, imigrou para
Santa Elena quando decidiu morar com o pai que já residia ali desde os 22 anos de
idade, sempre trabalhando com extração de minério. O pai da participante possui
residência nas duas cidades da fronteira, mas, atualmente, reside em Pacaraima.
Embora no caso de Fernando o processo da imigração de sua família não esteja
diretamente relacionado ao garimpo também se trata de uma mudança objetivando
melhoria de vida, pois os pais do participante trabalham como autônomos, são
proprietários de uma lanchonete.

Exceto os participantes Fernando e Sara, os demais possuem irmãos e


familiares de nacionalidade venezuelana, sobretudo, Daniel que pertence a uma
família bastante numerosa em Santa Elena na qual duas de suas irmãs são casadas
com venezuelanos. Na condição de moradores de Santa Elena e estudantes de
Pacaraima, todos os participantes atravessam a fronteira no geral 05 vezes por
semana, de segunda-feira a sexta-feira, por volta das 7h às 12h30, e
esporadicamente no horário da tarde quando precisam fazer algum trabalho ou
atividade escolar. Salvo essa situação, de modo geral, os participantes afirmam ir
poucas vezes ao município brasileiro, exceto Júlia e Sara. No caso de Júlia, a
participante informou que diariamente vai a Pacaraima para visitar o pai que ali
reside ou para fazer compras. Já Sara atravessa frequentemente para o outro lado
na intenção de usufruir dos serviços do posto de saúde, lojas de roupa e
restaurantes.
71

CAPÍTULO 4

UM OLHAR SOBRE SUJEITOS ENTRE-LÍNGUAS E ENTRE-


CULTURAS

Neste capítulo, os dados gerados para esta pesquisa, a partir da


triangulação dos registros do diário de campo, grupo focal e entrevistas, foram
sistematizados de forma a encontrar confirmações e contestações nas falas dos
participantes que sugeriram as discussões sobre a ressignificação e representação
dos sujeitos a respeito do contexto, das línguas e culturas no qual estão inseridos,
procurando responder, à luz da proposta teórica apresentada no capítulo 2, de que
forma essa representações contribuem para a construção identitária dos
participantes.

4.1 Cenário de investigação e a ressignificação dos seus sujeitos

Em concordância com o caráter teórico e metodológico dessa pesquisa onde


o sujeito não pode ser entendido fora do contexto social, a intenção desse tópico é
apresentar algumas impressões dos participantes sobre os contextos onde foram
coletados os dados para essa investigação, ou seja, a escola em Pacaraima e a
cidade de Santa Elena, para que mais adiante, em outros tópicos, possa justificar
como esses ambientes moldaram os sujeitos e, ao mesmo tempo, por eles foram
representados.

4.1.1 Santa Elena: “é melhor de se viver”

Os participantes ao serem indagados se gostavam de viver em Santa Elena


apresentaram repostas favoráveis, exceto Sara que manteve sempre um discurso
negativo a respeito da cultura venezuelana. Quase sempre o argumento mais
72

incisivo para justificar tal resposta estava associado ao custo de vida barato que a
cidade oferece. Outros argumentos secundários foram apontados, como a
tranquilidade, a segurança e o clima agradável, conforme, respectivamente, relatam
Júlia e Sara:

Assim, acostumei já né, é não me vejo mais morando em Boa Vista, já


acostumei já em Santa Elena, é mais tranquilo, é melhor de se viver (...)
assim na questão dos gasto né, porque muitas coisas ai, conta, muito
barato, assim a questão de água porque a pessoa não paga água, a luz
no mês a gente paga as vezes dez reais por mês, gás ai praticamente é
dado.

Olha aqui em Santa Elena é muito bom de se morar, mas assim pela
questão de estudo... aqui é muito bom assim de se viver ou seja por
custo assim a gente não paga agua, luz é barato, gás é barato, essas
coisas, o custo de vida é barato, mas assim a gente não tem um curso, a
gente não tem a oportunidade de fazer assim... tipo assim vestibular...
coisas assim que a gente pretende ter pro nosso futuro e aqui geralmente
não tem (...) aqui é bom pra se morar, o clima é muito bom, é calmo não
tem muita violência, geralmente, é muito raro você ouvir que roubaram
casa que mataram fulano, é muito raro ouvir aqui.

Dentre os participantes que afirmaram gostar de viver em Santa Elena,


destaco Daniel que, diferente dos demais participantes, os motivos que o levaram a
tal afirmação estão muito mais relacionados a um sentimento de pertencimento ao
local do que a uma opção de moradia visando um benefício, neste caso o custo de
vida mais barato. A seguir, apresento um relato do participante no qual, ao declarar
que gosta de morar em Santa Elena, ressalta inúmeras qualidades da cidade pelas
quais não pretende sair dali:
73

Eu gosto de mora aqui, eu não quero ir embora daqui não, porque eu já


fiz essa experiência e não quero, já morei em Boa Vista, já morei em
Manaus e não quero, aqui é um lugar muito bom da gente morar aqui,
apesar de ver... não é todo tempo que fica ruim assim pra gente trabalhar
essas coisas é só as vezes (...) eu gosto de morar aqui, eu sempre gostei
de morar aqui, por que aqui é muito bom, aqui a gente pode sair a hora
que a gente quiser na rua que não tem perigo de... se a senhora (a
pesquisadora) quiser, a senhora deixa o carro ai aberto e pode esquecer
que não tem perigo de nada, vai amanhecer do mesmo jeito que a
senhora deixou ai (...) não tem perigo de roubarem assim essas coisas,
uma vez ou outra que isso acontece, mas não é constante, a gente pode
sair na rua pode voltar a hora que for duas ou três horas da madrugada
que não tem perigo de nada é muito bom aqui, o clima também é bom
aqui também.

A história pessoal de Daniel enquanto brasileiro residente em Santa Elena


se distancia dos demais casos. Como o participante não vivenciou a migração para
outro país, pois desde pequeno já vivia ali, outras relações e representações estão
implicadas para este sujeito, por assim citar, o processo de aquisição da língua
espanhola, uma relação mais estreita com o povo venezuelano e uma família
bastante mesclada pelas duas nacionalidades. Os participantes, apesar de
afirmarem, a maioria, que gostam de viver em Santa Elena, se queixam dos maus-
tratos dos venezuelanos para com o povo brasileiro.

4.1.2 Representações do cenário educacional

É notória a opção dos brasileiros e venezuelanos em estudar nas escolas de


Pacaraima, quando questionados a respeito respondem que as escolas de
Pacaraima são melhores que as escolas de Santa Elena, discurso esse também
partilhado por alguns funcionários da escola onde os participantes dessa pesquisa
estudam, conforme pude observar em conversas informais durante as visitas feitas à
escola.

Esse pensamento possivelmente seja uma reprodução dos discursos dos


pais, uma vez que alguns desses alunos, brasileiros ou venezuelanos, são filhos de
74

pais brasileiros, pelo menos mãe ou pai brasileiro, embora existam casos também
em que os pais são ambos venezuelanos. Segundo Braz (2010, p. 2), “o cuidado
para com o aprendizado, ou a manutenção, da língua portuguesa” é o principal
objetivo dos pais desses alunos ao optarem pelo ensino das escolas brasileiras, o
que, na opinião da autora é um dos vestígios de que “o espanhol falado na região
não gozava de prestígio social” (id., p. 3).

Alguns depoimentos durante a atividade em campo também me a ajudam a


compreender a construção deste discurso, por exemplo, Sara ao opinar sobre a
preferência de estudar em Pacaraima expõe argumentos relacionados ao
componente curricular, ao calendário escolar e às normativas internas das escolas.
Segundo a participante, os conteúdos vistos, na escola em Pacaraima, nas últimas
séries do ensino fundamental maior são ministrados em Santa Elena apenas no
segundo ano do ensino médio. Além disso, a participante faz uma comparação entre
os dias letivos das respectivas escolas relatando que os alunos que estudam em
Santa Elena frequentam menos a escola que os alunos de Pacaraima devido aos
feriados prolongados e as extensas férias escolares, como sugere a participante no
fragmento a seguir:

(...) mas eu não gosto da escola daqui, não gosto da forma como eles
educa eu não gosto muitas vezes aqui, por exemplo lá no Brasil a gente
só tem férias duas vezes, 15 dias no meio do ano e 15 dias no mês de
dezembro, quando prolonga as férias é porque tão reformando a escola
ou por algum motivo, aqui não (em Santa Elena) (...) por exemplo dia do
santo fulano aí por exemplo uma semana de férias, por exemplo agora
era dia da independência tem quase um mês de férias os alunos daqui.

No que diz respeito ao período de férias escolares suponho que a


participante ao construir sua representação negativa sobre o sistema escolar
venezuelano não esteja levando em consideração a diferença entre o calendário
escolar venezuelano e o brasileiro, ou seja, conforme já havia mencionado no
capítulo 2, em Pacaraima o período letivo inicia-se em fevereiro e finaliza em
dezembro e em Santa Elena começa em setembro e encerra em Julho.
75

Esse tema exposto pela participante também foi relatado por um taxista
venezuelano35, numa conversa informal que tivemos durante o percurso de Santa
Elena a Pacaraima, que ao manifestar sua opinião sobre a falta de progresso da
Venezuela atribuiu parte da culpa ao precário sistema de educação do país. O
venezuelano relatou que os alunos de Santa Elena naquele momento, em julho de
2011, já estavam de férias e só retornariam às aulas em setembro, que nos meses
dezembro, janeiro e fevereiro também não haveria aula, neste sentido, o taxista
questionou-me como poderia um país progredir com um ensino onde os alunos
passam mais tempo de férias do que em sala de aula.

Outro ponto mencionado por Sara para embasar a sua escolha pelo ensino
brasileiro diz respeito à rigidez do sistema escola em Santa Elena quanto ao uso do
uniforme completo e a solicitação de grande quantidade de material escolar,
conforme expõe no fragmento a seguir:

(...) aqui (em Santa Elena) é muito rigoroso você só pode entrar na escola
se você tiver sapato preto (inint) o uniforme completo da cabeça aos pés
se não você não entra, sendo que lá no Brasil não, o mais importante é a
educação, não a forma como você entra vestido na escola claro que tem
seu limites né, mas aqui é muito rigoroso e as vezes aqui pedem muita
coisa, muita coisa mesmo, muito negócio de material, por exemplo se são
oito matérias você precisa ter oito cadernos pra cada, cada matéria um
caderno as vezes tem famílias que não tem condições (inint)
praticamente os alunos aqui perdem totalmente a educação, tem alunos
muitos alunos muitos amigos meus que eu já vi que desistiram de estudar
por causa que não tem condições de manter, ou seja, a família não tem
condições de manter na escola, eles pedem muita coisa pro estudo e o
estudo no final não é nada, a educação.

A participante coloca a cobrança do uniforme completo e do material escolar


como um ponto negativo da escola venezuelana, já que, segundo ela, muitas
famílias venezuelanas não têm como cumprir determinada normativa e tais
exigências não implica um ensino de qualidade, concluindo que “eles pedem muita

35
Informação extraída das notas de campo no período da coleta de dados.
76

coisa pro estudo e o estudo no final não é nada”. Sobre o assunto, Daniel diz nunca
ter estudado em Santa Elena, mas já ouviu muitas pessoas que estudam dizerem
que o ensino e “muito fraco”, neste sentido o participante afirma:

(...) o ensino lá (em Pacaraima) é mais forte do que aqui (...) a educação
é mais forte é mais... a gente aprende mais do que aqui, entendeu?

Outro aspecto levantado por Daniel para justificar essa assertiva acima diz
respeito à concentração de alunos venezuelanos fora da escola, ou circulando no
comércio em Santa Elena, em horário de aula, o que, conforme informa o
participante no fragmento a seguir, não ocorre em Pacaraima:

A nossa (escola de Pacaraima) agorinha tava passando negócio de briga


essas coisas (...) mas aqui (em Santa Elena) é pior aqui, os alunos saem
da escola vão andar no centro, quase, é difícil você passar ali na frente
daquela escola e vê todos os alunos lá dento estudando eles ficam mais
lá fora bagunçado, essas coisas, é muito difícil isso (...) lá em Pacaraima
não, até pelo fato de muitos alunos gazetar aula essas coisas, mais 90%
dos alunos estão dentro de sala estudando (...) aqui as duas escolas
particular (quis dizer públicas) ficam no centro.

No geral, as escolas públicas dos dois territórios estão localizadas de forma


diferente em suas respectivas cidades. As escolas de Pacaraima, sobretudo a
escola onde o participante estuda, estão distante do centro comercial se
comparadas às escolas de Santa Elena que se localizam no cento da cidade, onde
predomina a atividade comercial.
77

4.2 Mito linguístico: um território, uma língua!

Os dados gerados por essa pesquisa apontam uma tendência dos


participantes em determinar a nacionalidade do sujeito, seja a dele própria, seja a do
outro, ou terem as suas nacionalidades determinadas pelo outro, em função do
desempenho linguístico. Para contemplar essa questão, retomo a discussão
realizada no capítulo teórico – com Assis-Peterson e Cox (2007), Mello (2006),
Berenblum (2003), Cavalcanti (1999), Cavalcanti e Cesar (2007), Guisan (2007,
2009) e Rajagopalan (2006) – sobre homogeneização e nacionalização da língua e
sobre a definição e relatividade do termo língua, assim como de suas
representações. Na entrevista realizada com Daniel, ao ser interrogado sobre a
experiência de viver em Santa Elena – VE e estudar em Pacaraima-BR, obtive a
seguinte afirmação:

(...) eu me sinto bem por eu falar bem as duas línguas, praticamente já


me senti venezuelano e brasileiro entendeu?

Ou seja, o participante se permite pertencer às duas nacionalidades,


brasileira e venezuelana, por “falar bem” as duas línguas oficiais dos respectivos
territórios, logo, na representação de Daniel, o que determina a nacionalidade de um
individuo é o uso da língua oficial do país no qual habita. Tal representação parte de
um discurso bastante comum que tem como lema a equivalência um território, uma
nacionalidade, uma língua. Porém, ao contrário, as línguas se misturam em um
determinado espaço territorial, sem a necessidade de serem estabelecidas pelo
espaço fronteiriço. Essa relação entre língua e nação é resultado do processo de
construção do estado nacional que se consistiu basicamente na unificação das
variedades de uma língua em direção à norma aceita como paradigma, contribuindo
assim para a definição de fronteiras, de áreas linguísticas, e, consecutivamente, de
países ou estados nacionais. Neste sentido, a postura de Daniel pode ser
interpretada como resultado dos mitos linguísticos de nação monolíngue e língua
78

homogênea, fortalecidos através dos discursos políticos e ideológicos, construídos a


partir de projetos nacionais da era moderna com o intuito de moldar as
representações identitárias dos indivíduos dentro de uma determinada sociedade.

Embora oficialmente a maioria dos países seja considerada monolíngue o


multilinguismo está presente na maioria das nações do mundo, conforme afirmam,
principalmente, Cavalcanti (2007), Rajagopalan (2006) e Mello (1999), tal
contradição ainda se mantém nos dias atuais pelo fato do multilinguismo ser um
fenômeno de pouco ou talvez nenhum interesse para as ideologias políticas e
sociais dominantes. Além disso, ainda que se leve em conta uma nação monolíngue,
ou seja, um país, com uma língua, intitulada nacional ou oficial, usada pelas pessoas
que habitam esse território, seria ilusório pensar que essa língua é homogênea. E
por assim pensar é que reitero a proposta por Assis-Peterson e Cox (2007), na qual
as autoras, por compreenderem o termo língua considerando também as
variedades, apresentam o conceito de multilinguismo para contemplar a
heterogeneidade linguística e o tratamento dado a ela no âmbito das fronteiras do
estado, a saber: distinguindo as línguas majoritárias das línguas minoritárias, mas
defendendo a igualdade entre elas.

Em seus depoimentos Sara também apresenta situações onde essa


tendência de associar a língua à nação ocorre. De nacionalidade brasileira e
venezuelana, residente em Santa Elena há três anos, a participante, ao relatar as
dificuldades iniciais que teve com a língua espanhola, afirma que, atualmente, os
amigos venezuelanos a questionam quanto à legitimidade da sua nacionalidade
venezuelana em função do grau de proficiência que possui nesta língua:

(...) às vezes eu ainda me enrolo um pouquinho (...) eu tenho amigos que


falam muito rápido o espanhol as vezes eu não entendo aí eu falo “calma
vai devagar que é pra mim entender”, às vezes eles ficam bagunçando
comigo falando que eu sou venezuelana mas que eu não tenho condição
para ser venezuelana eles falam “não é possível uma venezuelana que
não sabe falar o espanhol”, eu falo assim “mas gente eu não fui criada
aqui” (...)
79

Durante a coleta de registro, tanto na atividade de grupo focal quanto na


entrevista individual, a participante sempre narrava episódios onde demonstra, para
a pesquisadora - uma falante não nativa, que não estava inserida no contexto
natural do uso da língua - que fazia uso do espanhol, inclusive em situações onde a
habilidade linguística era um elemento importante para a resolução de algumas
circunstâncias embaraçosas, por exemplo, num episódio descrito pela participante
sobre a desonestidade de um motorista venezuelano ao cobrar de uma brasileira um
valor acima do normal, segundo a narradora, por uma corrida de taxi de Pacaraima a
Santa Elena. Na narrativa deste episódio, Sara afirma:

(...) aí eu tava sozinha em casa, aí eu falei assim “mas como? De onde é


que ele trouxe a senhora?” “ele me trouxe de Pacaraima”, aí eu falei
“moço quanto é?” aí ele falou assim “não, é cinquenta” é... é comé? ... é
“a carreira é cinquenta” aí eu fiquei olhando assim pra ele aí ele
perguntou “ como é que vai ser, vocês vão me pagar ou não?” ele falou
em espanhol aí eu falei em espanhol assim “moço, o senhor tá ficando
doido, cinquenta bolívar, não é cinquenta bolívar de Pacaraima pra Santa
Helena”, aí ele ficou todo constrangido né (...)

O relato acima me permite perceber que a escolha do espanhol para a


interação verbal com o motorista não visa apenas o entendimento entre os
envolvidos no episódio, mas, representa, principalmente, o prestígio linguístico do
espanhol naquela circunstância e a utilização da língua como marca de poder que
autoriza Sara, enquanto falante da variedade venezuelana, a questionar o valor da
corrida estabelecido pelo motorista. Em outro momento, na entrevista individual, a
participante expõe a relação de proximidade que tem com a língua ao relatar sobre
seu uso no ambiente escolar em Pacaraima:
80

(...) às vezes eu falo espanhol (na escola) mas é com algum amigo
venezuelano as vezes a gente quer brincar ou então quer cantar alguma
música em espanhol a gente se reúne (...) as vezes sai alguns palavrões
em espanhol no caso de reunião de amigos bagunçando com alguém”
(...)

O cotejo dos três últimos fragmentos apresentados me permite um


questionamento: que critérios os amigos venezuelanos de Sara estabeleceram para
determinar a falta de domínio linguístico da participante, e consequentemente a “não
condição” para ser venezuelana? A proficiência linguística manifestada por Sara,
através do uso da língua para resoluções embaraçosas e para interações afetivas,
possivelmente, marcada como variedade diferente pelo acento ou prosódia da língua
portuguesa, não é a mesma requerida pelos seus amigos para a considerarem
venezuelana. A seguir apresento o único relato durante toda a coleta de registros no
qual a participante manifesta ter sentido algum nível de dificuldade, atualmente, na
língua espanhola:

(...) às vezes eu ainda me enrolo um pouquinho (...) eu tenho amigos que


falam muito rápido o espanhol as vezes eu não entendo.

O fato de que a participante em algumas interações tenha apresentado


dificuldades parece ser suficiente para que seus amigos questionem sua proficiência
linguística e, consequentemente, o maior ou menor pertencimento à nacionalidade
venezuelana. A nacionalidade dessa participante, como apresentei no detalhamento
dos sujeitos dessa pesquisa, caracteriza-se por ter nascido na Venezuela, porém,
passou a residir em Santa Elena-VE apenas aos catorze anos de idade, antes vivia
em Alto Alegre-RR. Embora Sara tenha tido algum contato com a língua, antes de
81

residir em Santa Elena, pelo fato da mãe36, responsável legal, ser venezuelana e
pelas visitas feitas ao território venezuelano, teve algumas dificuldades de
adaptação com o idioma, como exponho no fragmento abaixo:

(...) a gente veio pra cá pra ficar mais perto dele (pai), a gente comprou
uma casa, primeiro a gente morou um mês de aluguel, quando a gente
chegou, foi difícil porque a gente, por exemplo, eu não dominava bem a
língua, eu escutava a minha mãe falar assim aí eu fui meio que
aprendendo sotaque.

Apesar dos amigos venezuelanos de Sara questionarem a nacionalidade


venezuelana da participante devido ao que eles caracterizam por falta de
proficiência linguística do espanhol, ou seja, para eles, falta de domínio da língua
materna, o espanhol é para a participante a segunda língua, já que passou a ter um
contato maior e a usá-lo a partir dos catorze anos de idade, sendo a língua
portuguesa sua língua materna.

Interessante que Sara quando interrogada sobre o relacionamento entre


brasileiros e venezuelanos no ambiente escolar brasileiro, relata uma situação
parecida à que acabo de descrever. Conforme esclareço com o fragmento a seguir,
a participante explica que a percepção da fonética da língua espanhola na pronuncia
da língua portuguesa realizada pelos venezuelanos é um dos motivos que gera o
conflito entre os alunos das respectivas nacionalidades.

36
Relembrando, conforme vimos no detalhamento do perfil dos participantes, que a mãe e o pai
mencionados por SARA referem-se respectivamente a avó paterna e ao seu ex-companheiro, da
mesma forma os identificarei. .
82

(...) tem muitos alunos venezuelanos que são amigos de brasileiros, mas
tem alguns assim que sempre tiram sarro “ah que não sei o que seu
veneca” as vezes é amigo, mas fica tirando sarro porque as vezes a
maioria dos venezuelanos, os venezuelanos mesmo dos que moram aqui
e estudam lá não tem assim eh... não falam o português com a pronúncia
que nem nós (brasileiros) falamos, mas é por isso que eles (os
brasileiros) ficam tirando sarro (venezuelanos) dizendo que não sabem
falar direito, as vezes tiram sarro “o que tu tá falando fala com a boca” (...)
37

Para a participante, o venezuelano “legítimo” é aquele que não fala o


português com a pronúncia38 dos brasileiros, ou seja, como afirma Sara, “com a
pronúncia que nem nós”, no caso, provavelmente considerando a variedade local
usada em Pacaraima. Na narrativa anterior a esta, a possível ausência da
proficiência linguística no espanhol marcava o não pertencimento à nacionalidade
venezuelana e, agora no segundo momento, quando essa ausência diz respeito à
língua portuguesa a função linguística é o inverso, isto é, determina a legitimidade
dessa nacionalidade. No segundo caso, a ausência de sotaque39 é a marca da
diferença, é o elemento que desconstrói a aparente semelhança entre os alunos na
escola, distinguindo-os entre brasileiros, venezuelanos e venezuelanos “legítimos”.
Essa forma de falar, sem a pronúncia dos brasileiros, aciona no interlocutor todo um
dispositivo de representações e associações de quem é esse outro, como
acrescenta Berenblum (2003) em um relato pessoal, o diferente, o estranho, o
estrangeiro. Conforme detalhei no capítulo teórico, à luz das discussões de Silva
(2006), a identidade se define a partir de um processo de construção da diferença,

37
“Veneca” é um termo pejorativo usado na escola, em particular pelos alunos brasileiros, para se
referir aos alunos venezuelanos.
38
Neste trabalho alterno pronúncia e sotaque como sinônimos.
39
Sotaque (acento) – Um modo particular de pronunciar uma língua. Em qualquer língua que não
seja falada apenas por um punhado de falantes, há fortes diferenças sociais, regionais e individuais
no modo como a língua é pronunciada por diferentes pessoas; às vezes, essas diferenças são
impressionantes. Cada tipo distinto de pronúncia é chamado de sotaque. Dependendo de nossa
origem e da experiência que temos, seremos capazes de identificar sotaques diferentes do nosso
com maior ou menor precisão (...) falantes de qualquer língua têm essa mesma capacidade de
reconhecer sotaques. (...) Naturalmente cada um de nós considera certos sotaques como mais
próximos do que outros, ou como mais prestigiosos do que outros, mas essa é outra história:
apenas os sotaques que diferem fortemente do nosso próprio chamam mais a nossa atenção.
(TRASK, 2008, p. 281)
83

sendo esta não um produto da natureza, mas sim produzida no interior das práticas
de significação, no qual os significados são questionados, negociados e
modificados. Logo, a diferença, e, portanto, a identidade, não é um produto acabado,
finalizado, ou contrário, está sempre em processo de construção.

Nas duas situações apresentadas nos relatos de Sara, a diferenciação


linguística de um corpus em português e de um corpus em espanhol para designar a
proficiência de uma determinada língua, e consequentemente, o pertencimento a
uma determinada nação não parece ser de fato formal é muito mais política, no
sentido de reivindicar um grupo e excluir outro. Em algumas situações o que
diferencia uma língua da outra são outras questões que não a forma linguística, ou
seja, muitas vezes não é exatamente a forma linguística que conta, mas sim o nível
simbólico, a representação que se faz da língua. Esse argumento fica mais visível
em um episódio no comércio de Santa Elena, vivido e narrado por Júlia:

(...) aconteceu um caso comigo semana passada, eu fui comprar arroz,


cheguei e fui falar assim “boa tarde tem arroz?”... aí aí virou (o vendedor)
pra mim e falou assim “aRRoz” {faz um movimento com os ombros} aí eu
falei assim “eu sou brasileira com muito orgulho e é arroz... tem?

A disputa pela variante fonética da palavra arroz40, ou seja, mesma marca


gráfica para diferentes marcas acústicas, ilustra a vontade dos brasileiros e dos
venezuelanos em ignorar a compreensão entre ambos apenas para reafirmar a
identidade de ser brasileiro e de ser venezuelano. Essa atitude de se redefinir
enquanto sujeito pertencente a uma nação e falante de uma determinada língua
demonstra a utilização ideológica que os sujeitos da pesquisa fazem da língua na
construção da própria identidade e da identidade do outro, assim como das suas
respectivas comunidades. Retomando o que Silva (2006) diz a respeito do processo
de formação da identidade: “Sou o que o outro não é; não sou o que o outro é,

40
Refiro-me a realização da vibrante /r/ como consoante vibrante na variedade do espanhol da
Venezuela e da /h/ como consoante surda na variedade do português do Brasil.
84

identidade e alteridade são assim processos inseparáveis” (id., p.26). Por exemplo,
nos depoimentos acima observei que o discurso identitário dos sujeitos
venezuelanos a respeito de Sara e desta a respeito dos venezuelanos representa o
que ambos pensam um do outro, definindo o que eles mesmos não são, revelando,
conforme Guisan (2009), o próprio sujeito enunciador. As relações de alteridade
estão sempre estabelecidas por relações de poder, logo dependem de processo de
“exclusão, de vigilância de fronteiras, de estratégias de divisão” (Silva, 2006, p, 26).

4.3 Primeiras impressões na língua do outro: “não! no começo... Ave Maria!”

De modo geral, os participantes, exceto Daniel, relataram que não falavam a


língua espanhola antes de residir em Santa Elena, conforme afirma Júlia, Camila e
Sara nos respectivos fragmentos:

(...) eu não entendia nada nada nada nada podia me xingar de todo nome
que eu não sabia o que era (...) é muito ruim assim né a gente morar num
lugar onde a gente não sabe de nada, as pessoas fala com a gente e a
gente nunca entende nada (...)

(...) quando a gente resolveu morar pra cá aqui, quem mais vivia aqui era
meu pai, então meu pai é brasileiro (inint.), então quando ele chegava em
casa lá em Boa Vista ele só falava português com a gente né, não tinha
esse negócio(de falar espanhol), quando a gente veio morar pra cá todo
mundo era brasileiro ninguém entendia nada (...)
85

(...) eu não sabia escrever em espanhol falar muito menos eu não ia ter
condição (para estudar em Santa Elena), tipo assim, muito menos, mas
eu ia me sentir muito tipo assim fora de órbita, assim que muitas vezes eu
não conhecia a palavra o que as pessoas falavam (...)

Portanto, admitem que no início tinham algumas dificuldades para interagir


na língua do vizinho o que resultou em episódios intitulados pelos próprios
participantes como constrangedores ou engraçados. Por exemplo, na atividade do
GF, Camila relata:

(...) aí uma vez eu fui num comércio comprar bolacha né, aí pedi lá a
bolacha e fui pagar né, aí o homem pegou e me perguntou... não eu que
perguntei quanto era o preço, aí ele pegou e falou lá né, não entendi
nada não entendia nada de dinheiro assim, a quantidade quanto é que
era que não o que, aí eu dei o dinheiro lá, aí o homem “não mas tá
faltando” aí eu “sim sim” [risos] aí falou assim “não mas tá faltando” e eu
“sim sim sim” não sabia nem o que ele tava falando.

Ao ouvir esse depoimento, Sara relembrou um episódio que aconteceu com


a amiga, Camila, no supermercado em Santa Elena, no qual, por não entender como
funcionava a moeda venezuelana e não compreender a explicação em espanhol do
caixa sobre a quantia que deveria pagar, imaginou que estava sendo enganada:

(...) acho que foi ela que falou que chegou no comércio e pediu uma
quadribola né, um chiclete né, pequeno né, aí ela pediu aí ela falou
assim “quanto é?” aí ele falou assim “mil bolívar”, aí ela falou assim
“mil?” (inint) “mil, um chiclete um chiclete” aí ele disse “sim mil bolívar”
{risos} “você tá roubando” (inint.) “pai esse homem tá me roubando” aí o
pai dela começou a rir, aí uma amiga (mostrou pra ela) mil bolívar, aí
ele tirou tipo uma moeda (risos), aí depois ela “ah tá bom” ficou
constrangida (...)
86

Da mesma forma Camila relata dois episódios vivenciados pela sua mãe
que desconhece o significado das palavras ventana e apellido41:

(...) botaram uma janela lá em casa... aí janela lá (em Santa Elena) fala
“ventana” né (...) “não que a gente” (inint.), aí minha mãe “não, não é aqui
não, aqui não mora nenhuma ventana meu senhor, não é aqui” {risos}...
“mas é aqui o endereço”, “não o senhor tá enganado, eu me chamo Ana
Lúcia (...) não mora nenhuma ventana aqui não” (...)

(...) tava fazendo uma pesquisa lá (em Santa Elena ) não sei pra quê, aí
pediram o nome da minha mãe completo, aí que o sobrenome lá fala
“apellido” né, aí minha mãe “não mas eu não tenho apelido, não,meu
nome só é Ana, eu não tenho apelido” “não mas o seu apelido senhora,
seu nome é Ana o quê?” “não não tem mais apelido, só é Ana, meu nome
é Ana só Ana”, Aí eles ficaram assim, aí depois foi que uma amiga dela
chegou “não aquilo dali é sobrenome”, “ah tá” (respondeu a mãe) (inint.)
quando você não tem aquele conhecimento as vezes você se enrola
demais.

Notei, tanto no grupo focal quanto na entrevista individual, que Camila foi
uma das participantes que mais manifestou resistência quanto ao uso da língua e
aos elementos culturais do país vizinho. Como demonstro nos fragmentos
anteriores, as dificuldades iniciais no uso da língua podem ter contribuído para essa
situação, mas não só isso, possivelmente, também outros fatores de ordem
extralinguísticos. Não me deterei neste momento em esclarecê-los porque o farei na
próxima seção. Assim, reitero a forma como Camila conclui a sua experiência e da
sua família com os elementos culturais e a língua venezuelana: “quando você não
tem aquele conhecimento às vezes você se enrola demais”.

41
Os vocábulos, ventana e apellido, significam respectivamente em português janela e sobrenome.
87

A maioria dos participantes foi adquirindo a língua de maneira informal,


interagindo com amigos e algum membro venezuelano da família, por exemplo,
Daniel e Júlia afirmam não terem passado por muitas dificuldades porque sempre
foram auxiliados pelos cônjuges dos pais, no caso, o padrasto de Daniel e a
madrasta de Júlia. O caso de Daniel se distingue dos demais no que se refere à
aquisição da língua espanhola, pois vive em Santa Elena desde os dois anos de
idade, quatorze anos não ininterruptos, já que morou algum tempo em Manaus-AM,
cidade onde nasceu. Segundo o participante, o português e o espanhol foram
adquiridos na infância: “...com meus três quatro anos eu já falava as duas línguas...”.
Além disso, o fato de uma parte dos familiares (padrasto, irmãos, cunhado e
sobrinhos) ser venezuelana permitiu-lhe maiores oportunidades de interação em
espanhol, embora, conforme apresentarei em outro momento da análise, o
participante afirme fazer uso predominante da língua portuguesa nos três contextos
mais citados durante a coleta de registro, ou seja, no ambiente familiar, no comércio
em Santa Elena e na escola em Pacaraima. De modo geral, os participantes relatam
questões de variedade e estrutura da língua ao mencionarem alguma dificuldade no
uso do espanhol.

Júlia ressalta que no início, quando começou a interagir em espanhol, a


forma rápida como os venezuelanos se expressavam de alguma maneira a deixava
confusa e acabava tendo dificuldades para se comunicar:

(...) hoje em dia a gente entende tudo mas antigamente era difícil (...) a
forma de se expressar porque eles se expressam muito rápido né aí as
vezes a gente se enrola toda e não sai a palavra... até hoje eu ainda
tenho isso ainda comigo um pouco eu fico nervosa assim com medo de...
porque muitos deles bagunçam quando os brasileiros falam aí eu tenho
medo de falar e errar assim aí eu fico nervosa e enrolo tudo [hum] é ruim
o sotaque né.

Na descrição de Júlia, não parece haver um problema de incompreensão


linguística, mas sim de produção oral que ocorre pelo fato da participante querer
manifestar-se verbalmente com o mesmo desempenho de um falante venezuelano já
88

que a desaprovação do mesmo com a forma de falar dos brasileiros a deixa nervosa
ao se comunicar em espanhol. A participante afirma ter medo de falar errado, sendo
esse erro provocado pela rapidez com a qual seu interlocutor, o venezuelano,
interage na língua. Quando confessa “fico nervosa e enrolo tudo (hum) é ruim o
sotaque né” sugere que sua proficiência oral seja ruim ou inaceitável pelos
venezuelanos. Ao afirmar “tenho medo de falar e errar”, ao que parece, Júlia
representa o erro como a produção de “sotaque ruim”, ou seja, sem a pronúncia
característica da variedade linguística de Santa Elena. Da mesma forma, Camila
aponta um aspecto estrutural da língua que marca o processo de aquisição do
espanhol:

(...) não sabia falar nem uma palavra em espanhol nem uma palavra
mesmo... tive muita (dificuldade) porque tem uma palavras aqui que são
bem enrolada mesmo, pelo menos o “r” eles puxam o “r” que meu Deus
do céu. Aí tem uma palavras que tem uns sons diferentes da pronuncia
do Brasil entendeu por essa questão a gente tem sim dificuldade... até é
hoje eu não sei falar o espanhol BEM BEM BEM não (...)

A participante descreve a língua espanhola como “bem enrolada” e ressalta


a distinção fonológica para a mesma palavra em português e espanhol,
principalmente, no que diz respeito à pronúncia do fonema /r/, como um elemento
que marca sua competência linguística no sentido de tornar-se um complicador para
falar bem a língua. Embora não fique completamente claro o que Camila entende
por “falar bem a língua”, parece-me possível afirmar que, assim como no caso
anterior, se trata de dominar a variante venezuelana falada em Santa Elena.

4.4 Representações linguísticas do indivíduo na (da) fronteira

Respondendo a uma das subperguntas da pesquisa - em quais contextos,


com quais interlocutores e com que propósito os estudantes brasileiros em foco
interagem em língua portuguesa e espanhola? - o uso de uma determinada língua
89

pelos participantes é determinado pela situação em que se encontram, pelos seus


interlocutores, pelos temas discutidos nas conversas, com já era previsto, mas,
principalmente, no caso do uso da língua espanhola, pela postura de cada
participante em se sentir pertencente ou deixar-se pertencer ao espaço considerado
“país alheio”, mas onde, “já tem um pouco de direito” conforme relatam duas
participantes na atividade de GF referindo-se ao lugar onde residem, à Santa Elena-
VE. É claro que essa postura advém de vários fatores, como: o propósito da
emigração desses indivíduos ocasionado, principalmente, pela oportunidade de
trabalhos nos garimpos da Venezuela ou nos comércios de Santa Elena, logo, a
busca por melhores condições de vida; a forma como esse sujeito imigrante imagina
o olhar do outro, o venezuelano, sobre ele e, consequentemente, os conflitos
interculturais marcados por esses fatores. Todas essas questões estabelecem uma
rede de interseções que definem as práticas linguísticas desses sujeitos ao longo da
sua trajetória.

Além disso, é importante ressaltar alguns pontos observados durante a


coleta de registros que me ajudaram a compreender as práticas e representações
linguísticas dos participantes quanto ao uso e função das línguas em questão. No
primeiro momento, na atividade de GF realizada na escola em Pacaraima, todos os
participantes, talvez motivados pela leitura de um texto que abordava o
desentendimento entre os turistas brasileiros e os guardas venezuelanos na
alfândega venezuelana, se detiveram em apontar os conflitos socioculturais entre os
povos dos dois municípios, marcados, principalmente, pela cobrança de propina dos
guardas aos brasileiros, pela exigência dos venezuelanos para que os brasileiros
falem em espanhol, pela relação comercial entre consumidor (brasileiros) e
fornecedor (venezuelano) resultado, principalmente, do comércio em Santa Elena, e
pela necessidade de ignorar a compreensão linguística entre ambos, quando lhes
era conveniente. Todos esses conflitos foram apontados pelos participantes na
intenção de marcar a diferença entre ser brasileiro e ser venezuelano, demonstrando
certa rejeição à cultura vizinha e tentando manter sempre um discurso de
autoafirmação da identidade brasileira. Num segundo momento da coleta, as
entrevistas individuais realizadas nas residências dos participantes proporcionaram-
me a oportunidade de conhecer melhor as suas respectivas famílias, de observar
90

como acontecia a interação entre eles e, principalmente, de aproximar-me um pouco


mais dos sujeitos da pesquisa.

Como veremos a seguir, essa aproximação forneceu-me registros que em


alguns momentos reiteravam e, em outros, anulavam a postura dos participantes na
atividade de GF citada acima, principalmente quando se tratava de Daniel. Por
exemplo, no caso da segunda opção, em lugar de negação, distanciamento do outro
e da língua do outro, o estrangeiro; apareceu a afirmação, a aproximação, o nós.

Essas observações mostram como os participantes se constituíram e se


reconstituíram enquanto sujeito da pesquisa de acordo com o ambiente e a situação
aos quais estavam expostos, assim como os interesses envolvidos. Por exemplo,
pude perceber que a escola de alguma forma homogeneizou os sujeitos da
pesquisa. As informações fornecidas pela ficha cadastral escolar e pelos próprios
participantes num primeiro momento, durante observações e conversas nos
corredores da escola, foram suficientes para conhecê-los como o sujeito aluno:
brasileiro, estudante de Pacaraima, residente em Santa Elena, etc., assim como,
talvez, o local e o conteúdo do texto selecionado para realização do GF fizeram com
que os alunos se sentissem partidários do mesmo discurso. Mas, apesar de ter
traçado um perfil para a escolha dos participantes, me deparei nas entrevistas
individuais, como já mencionei, com a relatividade de algumas informações
adquiridas na escola e na atividade do GF, que não poderia contemplá-las na minha
análise sem considerar os participantes como sujeitos singulares que apenas se
deixaram revelar no segundo ambiente da coleta de registro, ou seja, nas suas
respectivas residências em Santa Elena.

Além das situações já abordadas até aqui, vejo necessário levantar uma
última questão antes de passar propriamente a interrogativa que norteia este
segmento. Essa questão refere-se a outra subpergunta da pesquisa, a saber:
enquanto sujeitos residentes em Santa Elena-VE e estudantes em Pacaraima-RR,
como os alunos brasileiros se sentem nessa mobilidade geográfica e linguística?
Confesso que essa forma de organização da análise, a princípio, causou-me alguns
receios, pois resisti muito em aceitar que os dados dessa pesquisa estejam tão
imbricados a ponto de não poder topicalizá-los completamente, no sentido de que
em vários momentos preciso retomar dados e informações que já foram
91

apresentados ou, como ocorre agora, antecipá-los quando seja necessário para o
entendimento do que está sendo discutido no momento.

Como já afirmei anteriormente a escolha de determinada língua para as


interações verbais depende, entre outras coisas, da forma como os participantes se
sentem nessa mobilidade geográfica e linguística. Considerar meus sujeitos de
pesquisa nesse espaço deslocado implicou a emblemática tentativa de definir
fronteira não só da perspectiva espacial, mas também como produto da capacidade
de representação do individuo. Como vimos, nas colocações de Hanciau (2010), as
fronteiras não só compreendem amplos domínios, mas também se mostram “tanto
reais como imaginárias, intransponíveis e escamoteáveis” (id., p.133) o que as
tornam mais complexas na tentativa de assimilá-las. Nesse “entre-dois-mundos”,
emprestando o termo usado por Hanciau (id.), espaço atribuído pela mobilidade
territorial e linguística vivenciada pelos participantes da pesquisa, surgem novos
discursos, novas práticas linguísticas, diferentes sujeitos constituídos por processos
culturais gerados a partir da interação entre os dois povos na fronteira. Para
compreender melhor as singularidades desencadeadas nesse espaço, relembro a
metáfora da viagem proposta por Clifford (1999) para sugerir as práticas de
deslocamentos como elementos constituintes de significados, ou seja, para o autor a
imagem de localização constitui-se a partir do ajuste entre o deslocamento e a
permanência.

Neste sentido, tentar compreender as nuances dos participantes neste


contexto de pesquisa implica considerá-los como um sujeito composto por uma
identidade flutuante, fragmentada, mutante, móvel, conforme vimos em Bauman
(2005), Hall (2006) e Silva (2000; 2006) definida através das negociações que
ocorrem nas interações sociais a partir da convivência, algumas vezes conflituosas,
entre brasileiros e venezuelanos. A ideia de que o individuo tenha uma identidade
fragmentada não significa que ele não tenha identidade, ou mesmo que não se
possa dar credibilidade à identidade do sujeito, mas sim que ele tem uma identidade
para coisas diferentes em diferentes momentos, ou seja: os participantes improvisam
realizações a partir de determinados contextos, recorrendo a representações que
constroem das línguas e nacionalidades envolvidas, assim como de outros símbolos,
por assim citar, o vestuário venezuelano, o horário de funcionamento dos
estabelecimentos públicos em Santa Elena, o sistema de ensino escolar e etc. No
92

fragmento a seguir, podemos ver como essa mobilidade é entendida por Sara ao
relatar como se sentia na dinâmica de residir em Santa Elena e estudar em
Pacaraima:

(...) é bem cansativo, mas ao mesmo tempo é legal porque você...


porque... por exemplo muitas vez a gente já brincou a maioria das vezes
a gente tá no mesmo lugar ao mesmo tempo (sic) aí a gente fica com
esse negócio assim mas... as vezes a gente confunde porque, tem hora
que a gente tá aqui a gente começa a falar em espanhol, tem hora que a
gente tá lá e enrola o espanhol com o português, aí a gente as vezes até
na escrita na escola se confunde também por exemplo esse negócio de
tá aqui tá lá, tá aqui tá lá, mas como já acostuma as vezes só cansa (...)

42

É curioso pontuar que as perguntas formuladas aos participantes na


entrevista individual não apontavam um aspecto específico dessa mobilidade,
deixando espaço para que pudessem relatar essa realidade abordando aspectos
linguísticos ou extralinguísticos. Reitero que tomei essa decisão levando em
consideração a experiência do primeiro momento da coleta de registros, onde havia
percebido, como citei antes, que o texto para atividade do GF de alguma forma
influenciou na postura dos participantes que se detiveram mais em apontar os
conflitos socioculturais entre os brasileiros e venezuelanos, deixando as questões
linguísticas num plano secundário, embora nesta pesquisa um aspecto esteja
intimamente associado ao outro. No caso do fragmento acima, podemos perceber
que Sara centralizou sua resposta na marca linguística ao relatar o comportamento
de alternância de código (code-swintching) na escrita e no nível fonológico.
Entretanto, a participante não parece dar muita importância ou mesmo parece vê
essa alternância como um fator negativo dessa situação de mobilidade. Claro que
essa questão, da alternância de código, não está precisamente determinada pela
mobilidade geográfica, pois esse é um fenômeno frequente em situações de

42
No fragmento “a gente tá no mesmo lugar ao mesmo tempo” imagino que a participante quis dizer
que estavam em dois lugares ao mesmo tempo, no sentido de que os dois territórios se tornaram
um só, a fronteira.
93

bilinguismo, sobretudo quando as línguas envolvidas são historicamente e


estruturalmente parecidas, como é o caso das línguas aqui em foco. O
deslocamento “tá aqui tá lá” narrado pela participante é visto enquanto desconforto
apenas pelo esgotamento que a participante sente ao ter que se deslocar de um
ambiente para o outro, ou seja, “como já acostuma... as vezes só cansa”, tendo em
conta a distância de 15 km entre as duas cidades e o fato desse deslocamento
acontecer, na maioria das vezes para os participantes, com a finalidade de
frequentarem a escola e, consequentemente, dependerem do ônibus escolar que
circula toda a cidade de Santa Elena antes do seu trajeto final.

Júlia, que possui residência nos dois territórios, vê com bastante


naturalidade a situação de mobilidade geográfica e linguística. Assim como no relato
anterior a participante também coloca em pauta o fenômeno da alternância de
código, como podemos ver no fragmento a seguir:

(...) assim quando eu acho que lá tá meio parado eu venho pra cá, só que
as vezes a gente se complica acostumado a falar diariamente assim o
espanhol quando a gente vem prá cá varias coisas a gente fala em
espanhol por exemplo quando eu vou no supermercado alguma coisa eu
penso primeiro em espanhol do que em português as vezes a gente se
enrola, uma vezes eu cheguei lá em Boa Vista e fui comprar pão eu falei
eu quero cinco mil bolívares de pão o homem olhou pra mim (a
participante riu) “não eu quero cinco reais”... “ah tá” (disse o homem), às
vezes a gente se enrola com isso mas eu acho bom [a mobilidade] (...)

As expressões “às vezes a gente se enrola com isso, mas eu acho bom”
no fragmento acima e “as vezes só cansa” no fragmento anterior apontam uma
atitude das participantes de neutralidade em relação não só à alternância de código,
mas também à própria fronteira enquanto espaço físico.

Considerando as colocações de Pasavento (2001), sugiro esse espaço


neutralizado como um lugar de “ir-e-vir” que possibilita o surgimento de algo novo,
de um terceiro lugar, onde as trocas linguísticas e socioculturais podem resultar
tanto em processos conflituosos como consensuais. Esse caráter bifronte vem
94

sendo detalhado, através de aspectos linguísticos e extralinguísticos, e se manterá


ao longo desta discussão. Portanto, essa postura de neutralidade quanto à
mobilidade geográfica apresentada acima pode converte-se em outro momento
numa forma acentuada de marcar a diferença. Um exemplo bastante elucidativo
desta situação ocorreu em uma das interações verbais durante o GF, que tratava
dos desentendimentos entre brasileiros e agentes venezuelanos na alfândega, onde
Camila expõe o não pertencimento ao “país alheio” como um elemento complicador
no julgamento da cobrança de propina a brasileiros:

Só que aí tem que ver que a gente está no país alheio... A gente critica,
claro tudo bem, a gente vê que isso está errado, mas a gente está no
país alheio (...)

Na concepção da participante, o lugar onde o brasileiro reside é o lugar do


outro, onde não se tem o direito a reivindicações. Contrariamente, Júlia reivindica o
direito que o pai brasileiro tem ao território venezuelano devido ao fato de viver ali há
muito tempo e ter filhos venezuelanos:

Mas tem que ver também (inint.) por exemplo o meu pai tem vinte anos
de Venezuela, aí né, ele já tem a identidade como residente daí, E tem
um filho venezuelano ou seja ele já tem um pouco de direito na
Venezuela (...)

Da mesma forma Daniel afirma:


95

É a mesma coisa da minha mãe também, minha mãe já tem vinte e


poucos anos morando aí, ela tem dois filhos venezuelanos, a maioria dos
meus irmãos mais velhos são todos nacionalizados venezuelanos (...)

Dessa relação, podemos entender que há uma tendência dos participantes


em acentuar os traços, através do modo de situar-se localmente, que marcam a
existência da fronteira estabelecendo a diferença entre os venezuelanos e os
brasileiros através do (não) pertencimento ao chamado “país alheio”, mas, ao
mesmo tempo, há um posicionamento de cancelamento dessa fronteira que se
caracteriza pela postura de reivindicação do território considerado “alheio”.

Couto (2009) caracteriza as situações de fronteiras como um quarto tipo de


contato linguístico. Porém classifica as fronteiras em dois tipos: o caso onde há
acidente geográfico, possibilitando uma situação na qual os falantes de uma
respectiva comunidade podem falar sua mesma língua quando se deslocam para a
comunidade vizinha; e a fronteira inexiste de acidente geográfico na qual haveria
uma espécie de convergência linguística intitulada pelo autor como portunhol. Como
exemplo desta última situação Couto (id.) citou o caso da fronteira Chuí/Chuy
afirmando que nessa comunidade usa-se o espanhol como língua dominante, o
português como língua secundária e uma terceira alternativa, intitulada por ele como
portunhol. Ao que tudo indica, embora o autor deixe restrições, o segundo tipo de
fronteira, dentro da abordagem ecolinguística, não se qualifica no quarto tipo de
contato linguístico uma vez que o autor considera que nesses casos há apenas um
território, composto por um povo – o da fronteira, brasileiros e uruguaios – e uma
comunidade de fala. Essa proposta parece ser bastante compreensível,
principalmente no que concerne a noção de território, se consideramos o exemplo da
fronteira Chuí/Chuy, embora não fique claro se o autor considera a fronteira como
um único território em todos os casos onde há inexistência de acidente geográfico
ou apenas no caso Chuí/Chuy.

Quanto à fronteira de Pacaraima/Santa Elena, inexistente de acidente


geográfico, pode ser caracterizada pela presença do português, do espanhol e da
mescla linguística entre estas duas línguas, nomeado pelos participantes da
96

pesquisa como portunhol. Embora o contato entre os falantes de ambos os territórios


esteja estabelecido, num contexto geral, principalmente pelas interações através do
comércio, há uma diferença entre a postura dos comerciantes brasileiros e dos
venezuelanos quanto à aceitação da língua do vizinho nas negociações comerciais.
Por exemplo, Braz (2010) ao referir-se sobre as línguas usadas no comércio de
Pacaraima afirma que o turista venezuelano motiva o comerciante brasileiro a tentar
usar o espanhol para se comunicar, embora o conhecimento da língua seja,
segundo a autora, “absolutamente contextualizado, que satisfaz uma necessidade
prática e imediata, puramente comercial” (id., p. 89). O mesmo parece não acontecer
com o venezuelano que possui uma resistência maior em tentar comunicar-se na
língua do brasileiro. Porém, essa atitude não impede que ambos falantes se
comuniquem em suas respectivas línguas quando estão em território vizinho. No
fragmento a seguir, Júlia, ao afirmar que prefere o uso da língua portuguesa para se
comunicar nos respectivos territórios, relata a insistência dos venezuelanos para que
os brasileiros falem em espanhol quando estão em Santa Elena:

(...) eu não sou muito assim de falar o espanhol eu falo quando realmente
é necessário, até porque eles entendem meio o português, agora quando
vem uma pessoa de fora (um venezuelano de outra cidade) pedir uma
informação que realmente não conhece Santa Elena a gente tem que
falar né, mas eu falo mais o português mesmo eu vou nos lugares e ele
brigam comigo “ah você tem que falar o espanhol” “não eu sou brasileiro
e vou falar o português e vocês tem o direito (dever) de entender porque
aqui é a fronteira e é as duas línguas eu entendo o espanhol vocês tem
que entender também o português.

Embora Júlia domine a língua espanhola, como vimos no fragmento anterior


ao relatar que realiza algumas alternâncias linguísticas do espanhol para o
português quando está em território brasileiro por falar diariamente o espanhol em
Santa Elena, a insistência da participante em usar a língua portuguesa em território
venezuelano para marcar a sua brasilidade e a desaprovação à exigência que os
venezuelanos fazem para que os brasileiros falem em espanhol são atitudes que
97

advêm dos fatores extralinguísticos citados anteriormente, principalmente no que diz


respeito ao primeiro fator, o propósito de imigração. No caso da participante, essa
postura está estritamente ligada à relação conflituosa que seu pai possui com alguns
venezuelanos devido à atividade profissional que exerce que consiste na extração
de minério nos garimpos venezuelanos. Uma consequência dessa relação, como
pude constatar nas anotações de campo, foi a decisão do pai em residir em
Pacaraima, embora as filhas permaneçam vivendo em Santa Elena. Dessa forma, a
participante manifesta um descontentamento à cultura venezuelana, atribuído por
ela aos maus tratos que os brasileiros imigrantes sofrem no território venezuelano,
como podemos ver na sua narrativa a seguir quando relata sobre a experiência de
morar em Santa Elena:

(...) mas tem a questão ruim também por causa da humilhação porque
brasileiro mora aí o pessoal quer... ontem a gente saiu no carro né os
carro da gente é venezuelano meu pai tava dirigindo aí passou um
brasileiro no carro e xingou o meu pai porque tava no carro ai meu pai
disse “o que você tá pensando que eu sou venezuelano eu sou brasileiro
só porque eu tenho um caro venezuelano pensa que sou venezuelano,
queria arrumar confusão eles implicam muito com a questão dos
brasileiros.

Embora a participante afirme que os brasileiros são humilhados, o episódio


narrado acima apresenta exatamente o inverso, ou seja, essa relação de rechaço
muitas vezes é reciproca entre as duas culturas. É curiosa a preocupação do pai da
participante em defender, naquela circunstância, a sua nacionalidade brasileira
apesar de em outros momentos ter seus direitos reivindicados pela filha ao território
venezuelano devido ao fato de viver ali há muito tempo e ter filhos venezuelanos.
Neste sentido, existe uma relação entre a identidade do sujeito e as coisas que ele
usa e possui, portanto, os símbolos carro, filhos, residência e território são
significantes importantes para a constituição do processo de significação de ser
venezuelano. De alguma forma, as diferentes representações do termo “identidade
como residente daí”, ou seja, ter identidade como residente da Venezuela, o
aproxima da cultura venezuelana e o permite ter direitos no país vizinho, como
98

residência fixa e carro, mas, por outro lado, também o deixa bastante confortável
para ser apenas um residente imigrante que insiste em defender sua brasilidade.

A análise da situação dos participantes enquanto indivíduos bilíngues se


encaminha, à luz da concepção teórica, principalmente, de Mello (1999), Savedra
(2009) e Salgado (2009), numa perspectiva que contempla a inter-relação entre
língua, indivíduo e sociedade, levando em consideração a situação em que os
participantes da pesquisa atuam como sujeitos bilíngues. Neste sentido, não há
como falar de indivíduo bilíngue sem falar de bilinguismo na sociedade, já que todo
individuo é um ser social, que influencia e é influenciável por um grupo, por isso a
relação entre o bilinguismo na sociedade e o individuo, principalmente tendo em
conta este contexto, é extremamente necessária para que eu possa considerar os
motivos que encaminham os participantes deste estudo ao uso de uma determinada
língua.

O uso da língua portuguesa é predominante para todos os participantes nos


dois municípios, quanto à língua espanhola, como já afirmado nos parágrafos acima,
a maior ou menor frequência de uso está condicionada ao sentimento que cada
participante tem de pertencimento ao território venezuelano, resultado de uma série
de fatores já relatados, mas que retomarei quando necessário. Daniel e Sara, apesar
de afirmarem que quase sempre usam o português nas suas atividades rotineiras,
narram alguns episódios que revelam também uma relação mais familiar com a
língua espanhola, motivados por um envolvimento maior com os venezuelanos e sua
cultura.

Por exemplo, Daniel vive há quatorze anos em Santa Elena e manifesta


bastante contentamento com o fato, possui uma família bastante numerosa,
composta por brasileiros e venezuelanos que vivem em casas vizinhas senão no
mesmo terreno, o cunhado venezuelano tem uma oficina mecânica ao lado da
própria residência onde há um grande fluxo de clientes venezuelanos, hispano-
falantes e brasileiros. Embora seja comum o uso das duas línguas entre os
familiares nesses ambientes, segundo o participante, o uso da língua portuguesa é
predominante:
99

(...) aqui em casa é muito difícil falar espanhol também porque todo
mundo entende o português e o espanhol, meu cunhado entende bem o
português só não fala bem mas entende (...) é muito difícil falar o
espanhol a gente fala mais é o português.

A entrevista com esse participante foi realizada na oficina mecânica do


cunhado venezuelano, uma nota interessante do diário de campo é que, antes de
começar a entrevista, ora o participante falava com o sobrinho em espanhol ora
conversava comigo ou com uma de suas irmãs em português e durante a entrevista
fomos interrompidos pelo cunhado venezuelano, dono da oficina, que interrogava
Daniel em espanhol sobre o que fizera na noite anterior, após essa pequena pausa
para a conversa dos dois em espanhol retornamos nossa entrevista em português.
Em casa, o participante fala espanhol com os dois cunhados venezuelanos e
português com as irmãs; no trabalho, numa serralheria, onde a maioria dos
companheiros de trabalho é brasileira, interage em português, mas quando precisa
conversar com algum cliente venezuelano o faz em espanhol. Esses dados me
levam a crer que a escolha do participante por uma das línguas está condicionada
ao local e aos interlocutores envolvidos nas interações do seu cotidiano. A
alternância dessas duas línguas é determinada pelo que Fishman e Romaine (1986;
1995 apud MELLO, 1999) chamam de domínios sociais, ou seja, uma situação
particular na qual ocorre uma determinada interação, essa noção permite localizar o
falante bilíngue em um contínuo situacional no qual ele alterna os seus modos de
fala.

O comportamento linguístico dos participantes também deve ser analisado


levando em consideração as funções externas que uma determinada língua exerce,
conforme apresentei no capítulo teórico, segundo as concepções de Mackey (1972
apud MELLO, 2006). Nos dados gerados para este trabalho essa função caracteriza-
se por dois ambientes, a escola e o comércio.

No ambiente escolar a função externa da língua é marcada pelos conflitos


interculturais entre os alunos brasileiros residentes em Pacaraima e venezuelanos
100

ou brasileiros, usuários da língua espanhola, residentes em de Santa Elena,


conforme relata Daniel:

(...) até o ano retrasado quando eu estudava de manhã era muita briga
por causo que “ah que os venezuelanos não sei o que e tal”... entendeu
todo tempo eles falavam isso (os brasileiros falavam mal dos
venezuelanos), muitos não gostavam por a gente porque muitas vezes a
gente se juntava o pessoal daqui de Santa Elena como todo mundo se
conhece muitas vezes a gente ficava conversando em espanhol, aí o
pessoal se sentia assim... aí muitos não gostavam.

Embora o local de interação, o ambiente brasileiro, e a pressão de uma


parte dos alunos conduzam o comportamento linguístico escolar para o uso da
língua portuguesa, Sara, durante a entrevista, afirma usar a língua espanhola na
comunicação com amigos na escola, quando estes são de nacionalidade
venezuelana, para desenvolver atividades muito particulares como cantar, dizer
palavrões, fazer brincadeiras ou falar sobre outros companheiros, como já
demonstrei em outro momento da análise, apesar de relatar que na maioria das
situações do seu cotidiano, seja em Santa Elena seja em Pacaraima, predomina o
uso da língua portuguesa:

(...) a gente só fala espanhol com amigo venezuelano que não entende o
português (...)

Essa postura também é compartilha por Daniel que, em ambiente escolar,


apesar de falar português na maior parte das vezes, usa a língua espanhola com os
amigos brasileiros que assim como ele residem em Santa Elena e usam as duas
línguas na comunicação:
101

(...) lá muitas vezes a gente fala o espanhol também aí porque a maioria


dos meninos que estudam lá (em Pacaraima) são daqui aí quase todos
falam espanhol (...)

Porém, para se comunicar com os amigos em uma lan house em Santa


Elena o participante usa a língua portuguesa. A língua falada por Daniel e pelos
seus amigos para interação entre eles na escola poderia ser o português, assim
como acontece quando estão em território venezuelano, mas, neste caso,
possivelmente, a escolha pela língua espanhola tenha o propósito muito mais de
identificação do participante como pertencente a um grupo, neste caso ao grupo dos
venezuelanos, do que estabelecer a comunicação entre os falantes. Quando Daniel
diz “a gente (...) o pessoal daqui de Santa Elena” refere-se a ele próprio e aos
companheiros brasileiros como sujeitos venezuelanos, entretanto, em outro
momento da coleta de registros, na atividade de GF, define, pelo vestuário, a si
mesmo e aos amigos como brasileiros, como diferente do outro, sendo este outro o
venezuelano. No fragmento abaixo exponho esta última informação:

(...) eu quando eu saio assim é só com os que estudam aqui (em


Pacaraima) né só que eles moram lá (em Santa Elena)... porque são
todos brasileiros e todos os que eu conheço lá... tudo (é) brasileiro, é
difícil eu andar com venezuelano e eu conheço vários só que é difícil
porque... até mesmo assim pelo jeito que eles se vestem (inint.) dá até
vergonha pelo jeito (...)

Na dinâmica de definir-se ou redefinir-se enquanto sujeito no discurso há um


jogo de diferença marcado por uma dada situação e pelos interesses envolvidos no
ato da fala, ou seja, num momento Daniel denomina-se como “a gente” incluindo-se
no grupo dos venezuelanos, noutro usa “eles” excluindo-se do grupo. Reitero que
essas duas formas de identificar-se enquanto sujeito, de algum modo, estão
associadas ao local onde foram coletados os registros, sendo o primeiro termo
usado nos depoimentos durante a entrevista em Santa Elena e o segundo nos
102

relatos do GF em Pacaraima. Ao relatar como os colegas brasileiros e venezuelanos


reagem à disciplina de espanhol no ambiente escolar Daniel demonstra uma terceira
forma de identificação que fortalece ainda mais esse jogo de diferenças:

(...) muitos estrangeiros (os brasileiros) não gostam por ter dificuldade de
aprender aí... mas outros já gostam já, praticamente os que moram aqui
já gostam.

Na primeira parte do fragmento o participante refere-se aos brasileiros que


vivem em Pacaraima como estrangeiros, logo, como diferente dele que é nativo,
venezuelano. Analisando essa postura é possível supor que o participante
compreenda o sujeito venezuelano em dois tipos de sujeitos: o primeiro refere-se ao
individuo que nasceu, sempre viveu em Santa Elena e se veste diferente do
brasileiro; o segundo indivíduo é de nacionalidade brasileira, que reside em Santa
Elena há muito tempo, que fala espanhol, que tem direito ao território venezuelano,
que se veste diferente do primeiro tipo de sujeito.

Já no segundo ambiente, no comércio de Santa Elena, a função externa da


língua está condicionada, na maioria das vezes, por questões de ordem econômicas
prevalecendo o uso do espanhol pelos participantes, como podemos verificar
respectivamente nos relatos da Júlia, Daniel e Camila:

Com a minha família eu sempre falo português né uma vez na vida a


gente fala uma palavra em espanhol assim né no dia a dia mas é difícil,
falo mais o espanhol quando eu vou pegar um taxi daqui pra lá né aí eu
falo no caso de eu ir também no supermercado assim aí eu falo também,
só nessas ocasião mesmo ou quando alguém liga no meu celular e fala
em espanhol aí eu falo né... a procura do meu pai é algum negócio aí eu
falo.
103

(...) no comércio todo tempo o espanhol porque aqui é uma coisa assim
se a gente for falar o português eles querem aumentar o preço de tudo,
entendeu? aí você tem que chegar lá falando logo o espanhol, porque até
pelo jeito que eu me visto eu todo tempo me vesti assim (como)
brasileiro, aí eles já sabem já (que é brasileiro), só que como a gente
chega falando tudo em espanhol eles não... [aumentam os preços] (...)

(...) uma vez eu sai com meu irmão, aí a gente viu lá né tava quinze
Bolívar aí a gente pegou aí na hora que a gente foi pagar no caixa a
gente deu a mulher vinte Bolívar e ficou esperando o troco, ela falou “não,
tá completo” peguei fui lá e falei pra ela “não aqui tá quinze Bolívar” ai eu
peguei e fui falando mais alto com ela aí ela “não desculpa que não sei o
que e tal”... aí pegou me deu os cinco bolívar de novo... aí depois eu ouvi
ela falando com um funcionário de lá né “ai eu pensei que era brasileiro
que não sei o que” (...)

(...) como a gente tem mais amigos brasileiros na família que entende o
português a gente não fala muito espanhol por exemplo assim a gente só
fala espanhol com amigo venezuelano que não entende o português ou
quando eu realmente preciso pra comprar alguma coisa más tá falando
frequentemente isso não (...)

Os dados acima me permitem supor que os participantes têm a língua


espanhola como um “elemento não marcado”, no sentido em que o termo é atribuído
na linguística, para as interações no comércio. Dada a circunstância, como afirma
Daniel, de que no comércio venezuelano há um aumento no valor das mercadorias
vendidas à clientes brasileiros quando a língua para a interação é o português,
parece ser obvio para os participantes que haja apenas a possibilidade da escolha
da língua espanhola no tratamento com os comerciantes uma vez que o uso da
língua portuguesa determinaria a nacionalidade brasileira do cliente e esta, por sua
vez, o encarecimento dos produtos.

Quando o participante relata “aí você tem que chegar lá falando logo o
espanhol... porque até pelo jeito que eu me visto eu todo tempo me vesti assim
(como) brasileiro” é possível constatar duas formas de identificação para o
participante: a primeira refere-se à forma brasileira de se vestir que representa a
104

identidade brasileira; e a segunda é determinada pelo uso da língua espanhola que


representa a identidade venezuelana. É notório que há um jogo de poder entre as
duas formas de identificação, onde, embora a vestimenta caracterize Daniel como
cliente brasileiro, o uso da língua espanhola na interação com os comerciantes
venezuelanos o permite receber tratamento de cliente venezuelano, pelo menos no
que se refere aos valores das mercadorias. Conforme vimos em Hall (2006, 2008),
Woodward (2000) e Silva (2006, 2008) as características comuns que definem um
determinado grupo são resultado de um processo de criação de símbolos, narrativas
e mitos que se consolidam representando e definido a identidade do grupo. Neste
sentido, é através da representação que surgem criações e imposições de
significados particulares que perpassam por relações de poder não equilibradas. É
precisamente o poder que promove o caráter produtivo da representação, permitindo
que uma dada situação seja ressignificada a partir de novos critérios de
pertencimento moldados de acordo com os interesses da comunidade.

4.5 Espanhol ou castelhano?... “aqui é falado o castelhano não é o espanhol”

Os participantes têm contato com as duas variedades do espanhol, já que


estudam a variedade peninsular na disciplina de língua estrangeira na escola em
Pacaraima e convivem e usam a variedade venezuelana em Santa Elena. Daniel
considera o espanhol venezuelano, no caso a variante falada em Santa Elena,
intitulada por ele como Castelhano, e a variante peninsular, referindo-se a esta pelo
termo espanhol, como línguas diferentes. A seguir, relata a diferença entre o
espanhol ensinado na escola e o falado em Santa Elena:
105

Existe (diferença) porque aqui eles (venezuelanos) não falam o espanhol


eles falam o castelhano que é muito diferente, porque o espanhol que
eles ensinam lá pra gente é praticamente muitas vezes o espanhol da
Espanha que é o espanhol que eles ensinam pra gente... muitas vezes...
e é muito diferente tem coisas tem palavras que eles ensinam do
espanhol que no castelhano não tem, porque aqui é falado o castelhano
não é o espanhol (...) não... não é a mesma coisa (o espanhol e
castelhano).

“A diferença nunca é apenas e puramente diferença”, diz Silva (2006) ao


tratar das relações de alteridade. Ela é principalmente hierarquia, valorização e
categorização que define o que é superior e inferior, determinada a partir das
relações de poder que se constroem no interior do processo de representação (id.).
Por exemplo, essa representação de línguas diferentes para as denominações,
espanhol e castelhano, é bastante exteriorizada pelos venezuelanos residentes em
Santa Elena43. De fato os hispano-americanos se referem ao espanhol como
castelhano, talvez essa seja uma maneira de mostrar sua resistência à língua que
lhes foi imposta pelos colonizadores, aos discursos dominantes que se apresentam
junto ao termo “espanhol”. Embora, conforme o dicionário normativo da Real
Academia Espanhola (1992)44, os termos sejam sinônimos, muitas pessoas pensam
que se trata de línguas diferentes. Por exemplo, como já foi mencionado na teoria,
Botana (2006) aponta a existência, no Brasil, de um imaginário social para cada uma
dessas nomenclaturas que estimula nos alunos brasileiros a dúvida quanto à língua
falada por professores hispano-americanos, ou seja: “espanhol ou castelhano?”.
Assim como Botana (2006), penso nessa dúvida como evidência de que para o
aprendiz as denominações se referem a objetos diferentes. Segundo a autora, esse
imaginário remete a um discurso onde o espanhol é considerado a língua europeia,
a variedade de prestígio e o castelhano a variedade hispano-americana, a língua

43
Informação adquirida pela minha convivência pessoal com os venezuelanos em Santa Elena
enquanto visitante, conhecida e cliente.
44
Español, la (Del Lat. Medieval hispaniolus, através del prov. Espanhol )adj. Natural de Espanã. Ú.
t. c. s. / 2. Perteneciente o relativo a esta nación/ 3. V. era pasta española. / 4. V. párrafo español.
/ 5. M lengua espanõla. / a La española. Locadv. de España. Diccionario de la Real Academia,
1992, p. 435.
Castellano, na (Del lat. Castellãnus) adj. Natural de Castilla. Ú t. c. s./ 2. Perteneciente a esta
región de España./ (…) 6. Español, lengua española. / 7. Dialecto românicoem Castilla La Vieja, del
que tuvo su origen La lengua espanõla./ 8. Variedad de La lengua española hablada modernamente
en Castilla La Vieja. Diccionario de la Real Academia, 1992, p. 890.
106

impura que contamina a língua oficial. No caso da assertiva de Daniel “aqui é falado
o castelhano não é o espanhol”, essa representação da língua não parece ser uma
consequência desse imaginário proposto por Botana (id.), mas, talvez, uma
incorporação do discurso propagado pelos venezuelanos, já que, diferente do
primeiro caso, o participante não demonstra um valor depreciativo pela variante
falada em Santa Elena em detrimento da variante espanhola, embora, o mais
comum, conforme Assis-Peterson e Cox (2007), Mello (2006), Cavalcanti e Cesar
(2007), Maher (2007) seja a atitude de se considerar algumas línguas ou variedades
como superiores ou inferiores dependendo da condição político-econômica do país
no qual essa língua é falada. Conforme Mello (2006), essa é uma questão evidente
de política de hegemonia linguística, na qual a variedade falada pelos grupos que se
posicionam no alto da pirâmide social adquire status de padrão.

Essa postura do participante comprova mais uma vez que a identidade,


portanto a representação, seja cultural ou linguística, é relacional, marcada por
meios de símbolos, neste caso, a língua. Em alguns momentos deste capítulo
apresentei relatos dos participantes onde a ausência do espanhol funcionava como
um elemento de distinção entre o brasileiro e o seu interlocutor, o venezuelano, logo
as línguas, português e espanhol, enquanto símbolos, são significantes importantes
da diferença entre os dois grupos. Porém, essa mesma língua espanhola que era
visto com símbolo que representava o outro, de certa forma, agora, intitulada
castelhano, funciona como significante da identidade brasileira de DANIEL, ou seja,
do brasileiro que aprendeu a falar o castelhano, não o espanhol que representa a
língua da escola, do outro, a professora. Portanto, posso afirmar que há um símbolo
para duas formas de significação que são estabelecidas a partir dos interesses dos
participantes envolvidos na negociação. É neste sentido que afirmo que a identidade
é negociável.

Num contexto geral, os participantes caracterizam o conhecimento da


diversidade linguística do espanhol pela oposição entre Venezuela e Espanha,
apoiando-se, principalmente, na distinção lexical entre as duas variantes, conforme
exponho na fala de Sara e de Júlia45:

45
Esclareço que, ao trazer estes fragmentos, não é meu propósito promover nenhuma discussão de
cunho metodológico e didático do ensino da língua espanhola para a educação básica. Não que
107

(...) o espanhol que eles dão na escola é o espanhol da Espanha é


diferente do espanhol venezuelano, tem assim por exemplo algumas
palavras que a gente não sabe a tradução, não é tão diferente mas tem
algumas palavras que são diferentes que a gente não entende.

(...) algumas coisas são diferentes na escola por exemplo assim porque a
professora sempre passa assim “traduza para o espanhol” ai muitas
vezes eu traduzo do jeito que eu aprendi lá né as vezes ela diz que tá
errado que ela vai conforme o dicionário... eh mas é da forma como eu
aprendi, aí as vezes é meio complicado isso porque a gente aprende
aprende falando de um jeito e na escola já é diferente mas a gente dá
um jeito, mas é um pouco complicado porque a gente aprende de um
jeito e depois pra aprender de outro, esquecer o que a gente aprendeu
né, é um pouco difícil, algumas coisas são diferentes as palavras assim
(...)

Os fragmentos apresentados acima além de validar a informação de que


muitas vezes os alunos brasileiros não entendem o significado de algumas palavras
em espanhol, ao que parece, da variante peninsular usada pela professora, também
demonstram a anulação da professora com relação à variante usada pelos alunos.
Como a atividade é de tradução os alunos a realizam usando a variedade que
dominam, que conheceram ali em Santa Elena, que vivenciam, que usam para
interagir com seus vizinhos hispano-falantes, mas que não parece ser suficiente para
a professora quando há uma distinção da forma lexical usada por ela. A postura da
professora representa, infelizmente, uma forma de se pensar sobre a língua reduzida
à oposição binária variedade de prestígio/ variedade sem prestigio, língua correta/
língua errada, língua culta/ língua popular, por assim exemplificar, concepção essa
que representa, segundo Rajagopalan, uma língua desvinculada dos usos reais, e

desconsidere a importância do tema, ao contrário, me parece de suma relevância, principalmente


considerando o contexto bilíngue no qual esta escola está inserida, mas por pensar que, dada a
extensão deste trabalho e o direcionamento que dei a minha análise, não é o momento oportuno
para fazê-lo.
108

consequentemente, da “infinita variação em que resulta a língua ao ser usada por


seus falantes” (2006, p. 38). Não estou dizendo que essas dicotomias não possam
mais ser pensadas, longe disso. O que proponho é que sejam discutidas e
resignificadas justamente para que em sala de aula, como também em qualquer
outro ambiente de interação, não sejam usadas como forma de anulação das
línguas ou variedades consideradas de menor prestígio.

Retomo, para sustentar essas ideias, algumas discussões teóricas que


propus no tópico “Língua(gem), identidade e o papel da representação”. Partindo da
perspectiva de que a língua é um processo simbólico46, um exercício que se constitui
na atividade de interlocução, logo, à medida que o indivíduo constitui a linguagem na
interação com os outros é por ela constituído (BERENBLUM, 2003), não há mais
espaço, talvez nunca tenha existido, para se pensar no falante de uma determinada
língua como um sujeito “ideal” que pertence a uma comunidade de fala homogênea,
sobretudo quando considero os tempos contemporâneos, no qual, segundo Hall
(2006), as mudanças que atuam em uma escala global perpassam todo tipo de
fronteira, geográfica, imaginária, linguística e etc, integrando e conectando as
distintas instituições, o que permite o surgimento de novas combinações de espaço
e tempo. Por não me contentar com a precisão da minha exposição, recorro
novamente às palavras de Cesar e Cavalcanti (2007) para caracterizar melhor essas
novas combinações:

os diversos tempos ao mesmo tempo, os corpos em suas múltiplas


interações, emblemas cambiantes, fragmentados, contraditórios, que
respondam também por identidades contraditórias, constituídas num mundo
de mesclagem cultural, linguística, onde as correntes migratórias e os
movimentos sociais procuram (sic) definir outras relações, inclusive de
poder. (id., p. 60)

É precisamente por pensar o espaço no qual os participantes deste estudo


pertencem como um lugar onde essas mudanças estão ainda mais intensificadas e
por entender que a discussão em torno das representações das línguas que ali

46
Ressalto que quando falo de processo simbólico me refiro ao processo de significação, neste
sentido “Os signos que constituem as representações focalizadas pela análise cultural não se
limitam a servir de marcadores para objetos que lhes sejam anteriores: eles criam sentido” (Silva,
2006, p.44).
109

estão requer considerar os seus falantes enquanto indivíduos composto por uma
identidade cambiante moldada a partir das interações com o outro, que aponto, à luz
das autoras Assis-Peterson e Cox (2007) e Cesar e Cavalcanti (2007), a
necessidade de se pensar em teorias e estratégias que sejam capazes de
contemplar as línguas e as realidades culturais dos falantes envolvidos no processo
linguístico. Claro que já existem várias manifestações e pesquisas nesta direção,
principalmente na área da linguística aplicada, que, não é por acaso, está bem
representada por um número significante dos teóricos que embasam este texto.
Porém, muitos discursos dominantes ainda precisam ser descontruídos, por assim
citar, o mito de língua homogênea e única, que representa a identidade nacional,
coletiva, pois, embora a língua seja um fator de coesão social, não é o propósito
desse trabalho se referir à função da língua enquanto elemento homogêneo e
ideológico usado para construir um sentimento de coletividade.

Dessa forma, encerro essa parte da dissertação, onde tentei submeter os


dados da pesquisa à discussão teoria proposta de forma suficiente a responder as
perguntas de pesquisa e atender o objetivo proposto neste trabalho. No capítulo
seguinte, deixo as minhas considerações finais, retomando o objetivo da pesquisa, e
as conclusões às que cheguei.
110

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na introdução ao retomar a motivação inicial que me levou a desenvolver a


presente pesquisa, relatei que as minhas experiências na fronteira Brasil/Venezuela
já me encaminhavam, de algum modo, a enxergar esse contexto como um espaço
não só territorial, mas também imaginário, de encontros e desencontros a partir do
intenso contato linguístico e cultural, porém o tempo dedicado à atividade em campo
e, posteriormente, à análise e escrita deste trabalho me fizeram perceber que a
complexidade deste espaço estava muito além das minhas impressões e
expectativas enquanto pesquisadora iniciante. A perspectiva de compreender os
sujeitos a partir das diferentes representações construídas pelas práticas de
linguagem vivencia nesse contexto de mobilidade me fez estabelecer um diálogo
constante entre a teoria e os fenômenos ali observados.

Durante a pesquisa, sobretudo, no momento da análise dos dados, partindo


da perspectiva de que cultura é uma forma particular de enxergar o mundo e de
atribuir sentido para as coisas, pessoas e acontecimentos que o compõe, tentei
interpretar as representações dos sujeitos a respeito das línguas e, inevitavelmente,
das culturas, aqui em foco, considerando os diferentes olhares de cada participante
sobre os diálogos entre venezuelanos e brasileiros na fronteira. Para tanto, embora
no decorrer da análise tenha justificado a retomada excessiva de dados
extralinguísticos, reitero que sem o reconhecimento da história pessoal dos
participantes e a relação destes com os contextos sociais nos quais estão inseridos
não seria possível propor uma compreensão mais próxima da realidade desses
sujeitos.

No que diz respeito às línguas consideradas nacionais nos territórios da


fronteira, os participantes falam o português e o espanhol, embora usem com mais
frequência o português em ambas as cidades. De modo geral o comportamento
111

linguístico dos participantes está condicionado: a) pela função externa da língua


marcada por dois ambientes, a escola e o comércio em Santa Elena, onde, neste
segundo, o espanhol prevalece; e b) pela necessidade de marca a diferença, logo, a
identidade, nas diferentes situações de interação.

Ainda com relação à língua, o tratamento dado à variedade venezuelana no


sistema escolar, assim como evidencia as pesquisas de Braz (2004, 2010), parece
ser de desprestígio em detrimento da variante peninsular e do português o que me
permite observa que as práticas educativas, pelo menos no que concerne ao
tratamento dado à língua espanhola como língua estrangeira, ainda estão sob
orientações de discursos homogeneizadores dominantes distantes das reais práticas
linguísticas e culturais que compõem a sala de aula. Por outro lado, todos os
participantes da pesquisa demonstraram certa preocupação, em maior ou menor
grau, com alguns aspectos fonológicos ao usarem a língua espanhola em Santa
Elena, pelo menos, quando seus interlocutores são venezuelanos, o que
possivelmente evidencia uma valorização da variante linguística do vizinho. Tal
tratamento dado à língua em território venezuelano se mantem, pela maioria dos
participantes, do lado brasileiro no ambiente de sala de aula.

Neste sentido, os dados coletados na pesquisa me permitem a análise de


que o indivíduo está localizado em uma escala ponderada pelo peso discursivo que
oscila entre a atitude polarizada de avivar e neutralizar a fronteira, marcada por
estratégias de proficiência linguística, de identificação nacional e pelo modo de
situar-se localmente dos participantes envolvidos na pesquisa, que revelam um
sujeito da(na) fronteira composto por uma identidade flutuante, construída através
das negociações nas interações sociais a partir da convivência, algumas vezes
conflituosa, entre brasileiros e venezuelanos.

Na maioria dos casos, os conflitos apresentados pelos participantes estão


marcados muito mais por questões de cunho econômico e cultural do que aspectos
propriamente linguísticos. Porém, quando é de interesse dos participantes
reivindicarem algum direito, como o território venezuelano ou uma das duas
nacionalidades da fronteira, a língua funciona como um símbolo mais forte que
qualquer outro no jogo de poder e identificação. Nesse processo de significação
outros símbolos, como vestuário brasileiro/venezuelano, escola
112

brasileira/venezuelana, carro com placa venezuelana, tempo de residência em Santa


Elena e filhos venezuelanos também são usados pelos participantes.

É através da representação dessas marcas que surgem criações e


imposições de significados particulares que perpassam por relações de poder não
equilibradas permitindo que uma dada situação seja ressignificada a partir de novos
critérios de pertencimento moldados de acordo com os interesses da comunidade.
Tal concepção me permite encerrar estas considerações sugerindo um
entendimento da fronteira Brasil/Venezuelana como um contínuo caracterizado pelo
“ir-e-vir” que possibilita o surgimento de algo novo no qual as trocas linguísticas e
socioculturais podem resultar tanto em processos conflituosos como consensuais.
113

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118

ANEXOS
119

ANEXO 1
TEXTO: ELEMENTO PROVOCADOR DA DISCUSSÃO NO GRUPO FOCAL

VE quer melhorar tratamento a brasileiros

Venezuelanos querem enaltecer a importância do turista brasileiro para a


economia deles

A Câmara de Produção e Comércio do Município de GranSabana, na cidade


de Santa Elena do Uairén, na Venezuela, está desenvolvendo estratégias para
melhorar o relacionamento entre os turistas brasileiros e os militares venezuelanos,
com o objetivo de fortalecer a integração entre os dois municípios. Segundo a
presidente da Câmara, a locutora brasileira Fátima Araújo, que mora em Santa
Elena há 20 anos, as novas medidas já estão sendo adotadas há 15 dias.
Fátima ressaltou que, a princípio, após um acordo imediato entre a
instituição e o Exército venezuelano, através do comandante Humberto Padron, três
funcionárias da Câmara já estão desenvolvendo as atividades na primeira alcabala,
após o parque aduaneiro, na fronteira entre os dois países.
A intenção da proposta é evitar constrangimentos não só para os brasileiros
que frequentemente viajam para a Santa Elena para fazer compras ou simplesmente
a passeio, como também qualquer transtorno para os militares que ali trabalham.
Através da abordagem, as funcionárias entregam folhetos informativos e
explicativos aos turistas dando conta da quantidade e quais os produtos que eles
podem comprar e trazer da Venezuela para o Brasil, além de divulgar o grande
potencial turístico presente no país vizinho. As funcionárias permanecem no local de
segunda a sábado, das 8h às 12h e das 13h às 17h. Aos domingos, somente até o
meio-dia.
“Queremos acabar com esse estigma de que os venezuelanos sejam
apenas pessoas más, que maltratam os turistas ou que somente estão ali para
cobrarem propinas. É claro que fatos parecidos podem acontecer em qualquer lugar
do mundo. Independente de ser no Brasil ou na Venezuela, ambos precisam um do
outro. Os brasileiros colaboram muito com a nossa economia”, afirmou.
A presidente disse ainda que, na próxima semana, outras novidades serão
divulgadas aos brasileiros, que virão para beneficiar ainda mais o ingresso dos
turistas naquele país.
Qualquer sugestão, dúvida ou denúncia pode ser feita através do endereço
eletrônico camaradecomerciogransabana@hotmail.com ou através dos telefones
00XX584149581538 ou 0289 995 1318 da Alcadia, prefeitura local.
120

ANEXO 2

ROTEIRO PARA O GRUPO FOCAL

1º momento – Recepção dos alunos


Organizar os participantes em semicírculo e retomar sinteticamente o
objetivo da discussão. Em seguida esclarecer a forma como procederá a atividade.
Do lado de fora do semicírculo estará uma ajudante que observará a atividade e fará
anotações que venham a ser importantes para compreender as narrativas dos
participantes e, consequentemente, a coleta de registro.

2º Momento – Motivação para a discussão


Entregar o texto jornalístico para os participantes e averiguar se conhecem o
meio de veiculação do texto, neste caso, a página Web do principal jornal de Boa
Vista “Folha de Boa Vista”, ressaltar a data da publicação por ser bem recente ao
momento da atividade. Pedir aos alunos que façam uma leitura silenciosa para
conhecer o conteúdo do texto. Ao finalizar a leitura deve ser feito dois blocos de
perguntas estruturas de forma que a primeira esteja relacionada às informações que
aparecem no texto e as demais complementem essa informação, porém estarão
mais direcionadas às experiências vividas pelos participantes na fronteira.
Verbalizar casa bloco em um só momento, mas como se fosse uma
conversa, como se a pesquisadora estivesse reformulando a pergunta ou
acrescentando informações relacionadas ao texto. A leitura do texto tem o propósito
de motivar os participantes a narrarem suas histórias. A pesquisadora deve deixar os
alunos interagirem entre si o máximo possível, interrompendo apenas quando
necessário. Para a atividade será usada uma linguagem informal.

PERGUNTAS APÓS A LEITURA


1º. Bloco: Vocês concordam com o texto que o comércio está
desenvolvendo estratégias para melhorar o relacionamento ente os turistas
brasileiros e os militares venezuelanos? Vocês sabiam desse movimento?
Isso foi divulgado aqui na fronteira? (1º, 2º e 3º parágrafo)
2º. Bloco: Os venezuelanos maltratam mesmo os brasileiros? Vocês já
ouviram alguém contar alguma história ou já viram alguma situação que
confirme esse boato? (4º e 5º parágrafo).

Em seguida, fazer outras perguntas para manter a discussão:


1) O texto fala que a intenção da proposta também é evitar alguns
transtornos para os militares venezuelanos. Que transtornos poderiam ser esses? Já
ouviu alguém falar sobre isso?
2) Vocês também já foram parados alguma vez na fronteira por algum
motivo?
121

3) Vocês acham que esses desentendimentos acontecem porque os


venezuelanos e brasileiros não se entendem por conta da língua?
4) Os brasileiros que vêm aqui fazer compras falam o espanhol? E vocês
tiveram dificuldades pra aprender o espanhol? Como foi essa experiência?

3º momento – Encerramento
Encerrar a atividade após as quatro últimas perguntas terem sido efetuadas
e discutidas, agradecer a participação de todos os presentes.
122

ANEXO 3

ROTEIRO PARA A ENTREVISTA

Apresentação inicial: idade, familiares com quem residem em Santa Elena-


VE, local de trabalho dos pais.

A) O sujeito da (na) fronteira.


1) Por que sua família veio morar em Santa Elena? Você gosta de morar
em Santa Elena? Por quê?
2) Você tem muitos amigos ou parentes venezuelanos?
3) Além de ir à escola, você vai com muita frequência a Pacaraima por
outros motivos? Quais?
4) Como é essa experiência de em um momento está em Santa Elena e no
outro está em Pacaraima, sente alguma diferença ao passar de um lado para o
outro, se sente bem nos dois lugares?

B) O processo de aquisição e ensino da língua no espaço fronteiriço.


5) Por que você estuda em Pacaraima e não em Santa Elena que fica mais
próximo da sua casa?
6) Como é a relação do espanhol aprendido na escola e o espanhol falado
em Santa Elena?
7) Você gosta de estudar o espanhol na escola? Como os seus colegas de
sala reagem às aulas de espanhol? Eles gostam, têm alguma dificuldade?
8) Como se dá a relação dos brasileiros e dos venezuelanos em sala de
aula, principalmente na aula de língua espanhola?

C) Uso, frequência e função da língua portuguesa e espanhola.


9) Quando você foi morar em Santa Elena você já sabia falar o espanhol?
Você fala o espanhol, teve alguma dificuldade no inicio para aprender o idioma? Em
que exatamente você sentiu dificuldade?
10) Em que momentos do seu dia, em que lugares e com quem você usa o
português e o espanhol para se comunicar?
123

ANEXO 4

QUADRO: SÍNTESE DA ORGANIZAÇÃO DOS DADOS RECOLHIDOS NA


ENTREVISTA INDIVIDUAL

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