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MULHERES
Nós mulheres, o proletariado
Andrea D’Atri
@andreadatri
Celeste Murillo
Argentina | @rompe_teclas
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*Título traduzido livremente de El patriarcado del salario.
Ilustração: Hidra Cabero
Desde meados do século XIX e até as primeiras décadas do século XX, a incorporação
das mulheres ao trabalho fora do lar - propiciado, no início, pelo desenvolvimento
capitalista e logo reforçado pela “escassez” da força de trabalho masculina gerada pela I
Guerra Mundial -, chocou-se contra a falta de direitos políticos para as mulheres. A relativa
igualdade com os homens no mercado de trabalho, a qual as massas femininas eram
empurradas pelo capital (como também acontecia, em plena revolução industrial, com as
crianças), colocava em destaque ou tornava mais contrastante sua desigualdade na
sociedade civil. Poderíamos dizer que a relativa e nova “igualdade perante (alguns
aspectos) a vida” fazia insustentável a inadequada e antiquada “desigualdade perante a
lei” entre homens e mulheres. Nesta contradição, pode-se pensar que embebe a luta pelos
direitos civis e fundamentalmente pelo sufrágio feminino, encabeçada por mulheres
instruídas na Inglaterra e outros países avançados e acompanhada por grandes setores de
trabalhadoras.
Nos anos 1970, a segunda onda feminista colocou em evidência a relação entre o pessoal
e o político. Desfazendo essa mistificação, as mulheres estavam questionando,
imprescindivelmente, aquilo que o capital tinha conseguido institucionalizar e naturalizar
como discordância desde meados do século XX: a separação entre o público (produção,
trabalho assalariado) e o privado (reprodução, trabalho não remunerado). Os primeiros
debates sobre o trabalho doméstico e seu papel no modo de produção capitalista se
remontam nesses anos. O trabalho doméstico produz mais-valia? Há um modo de
produção patriarcal - sustentado no trabalho doméstico - diferenciado do modo de
produção capitalista ou há um só sistema capitalista-patriarcal no qual a reprodução da
força de trabalho está determinada e subordinada à produção de valor de troca?
Em 1972, a autonomista marxista feminista Mariarosa Dalla Costa publica na Itália e na
Grã-Bretanha, simultaneamente, O poder da mulher e a subversão da comunidade, com a
colaboração da norteamericana Selma James. Ali assinalam que o trabalho reprodutivo é
fundamental para o funcionamento do capitalismo e que seu caráter essencial está
invisibilizado pela ausência de retribuição salarial. Junto com Silvia Federici em Nova York
e Brigitte Galtier em Paris, fundam o Coletivo Feminista Internacional para promover esse
debate e coordenar ações em diversos países através de uma rede de comitês “pelo
salário para o trabalho doméstico”.
Entre muitos outros textos com diferentes enfoques que firmaram esse debate, em 1983
surge “O marxismo e a opressão às mulheres. Por uma teoria unificada” da
norteamericana Lise Vogel. Enquanto avançava a contraofensiva neoliberal,
enclausurando o período de radicalização de massas da década anterior, Vogel postulava
que a ordem de gênero do capitalismo se apoia estruturalmente na articulação social entre
o modo de produção capitalista e os lares da classe trabalhadora, em vez de em um
patriarcado anacrônico ou em um modo de produção doméstico separado radicalmente do
que estabelecem as relações entre capital e trabalho.
Serão essas manifestações o prelúdio de uma nova recomposição subjetiva dessa classe
trabalhadora do século XXI que tem mudado de rosto? Surgirá, dessa nova configuração
da classe trabalhadora, um feminismo anticapitalista e socialista - que hoje apenas
representa pequenas frações do movimento de mulheres internacional - que seja capaz de
organizar amplos setores dessas massas femininas? Não podemos antecipá-lo mais que
com nossa ação militante nessa perspectiva. Em todo caso, seja qual for o resultado desse
ressurgimento do movimento de mulheres com um proletariado muito diferente do que se
configurava na década de 1970, impõe-se uma releitura e atualização dos debates já
clássicos entre feminismo e marxismo sobre a relação entre patriarcado e capitalismo e
como esta se manifesta no trabalho reprodutivo, majoritariamente realizado pelas
mulheres.
Silvia Federici encontra, na definição de trabalho produtivo como gerador de valor, um viés
“masculino” que justificaria, como contrapartida, a gratuidade do trabalho reprodutivo
(majoritariamente feminino), um trabalho “desvalorizado” socialmente diante de outro
trabalho que é o único que o capitalismo considera como verdadeiramente útil.
“O que Marx não viu é que no processo de acumulação originária não só se separa o
campesinato da terra senão que também ocorre a separação entre o processo de
produção (produção para o mercado, produção de mercadorias) e o processo de
reprodução (produção da força de trabalho); esses processos começam a separar-se
fisicamente e, além disso, a serem desenvolvidos por distintos sujeitos. O primeiro é
majoritariamente masculino, o segundo feminino; o primeiro assalariado, o segundo não-
assalariado [3].”
Mas nem “produtivo”, nem “valor” têm, no contexto de O Capital de Marx uma valorização
moral. O fato de determinado trabalho não gerar valor não deve confundir-se com o fato de
que esse trabalho seja considerado inútil. De fato, o próprio Marx afirma que o caráter não
produtivo (quer dizer, não gerador de valor) do comércio e as finanças, que são vitais para
a circulação do capital, mas sem gerar mais-valia e sem ser produtivas e ninguém poderia
afirmar que por esta afirmação, o autor de O Capital, não reconheceu o rol indispensável
de ambas as atividades nesse modo de produção (ainda que nessas atividades a
diferença do trabalho doméstico sejam compensadas com creches).
Marx define como trabalho produtivo aquele trabalho que gera valor de troca: esta
definição é específica e responde à descrição da lógica de um modo de produção (o
capitalismo):
“...trabalho produtivo é uma determinação daquele trabalho que em si e para si não tem
absolutamente nada a ver com o conteúdo determinado do trabalho, com sua utilidade
particular ou o valor de uso peculiar no que se manifesta. Assim, um trabalho de conteúdo
idêntico pode ser produtivo e improdutivo [4].”
Marx não se ocupa especificamente das características desse trabalho reprodutivo, mas
sim “estabelece o vínculo necessário entre produção e reprodução mais além de sua
separação aparente” [5]. Na introdução dos Grundrisse, o monumental rascunho de 1857
de O Capital, estabelece como as categorias da economia capitalista - a produção,
circulação e reprodução (econômica) do capital - devem ser compreendidas dentro de um
socio-metabolismo muito mais amplo, que inclui todas essas atividades fundamentais para
a reprodução da sociedade a qual a economia política, com seu olhar excludente ao que
ocorre no mercado, deixa de lado. Nesse sentido, oferece as bases para entender como
entra o trabalho doméstico na totalidade do modo de produção, com sua produção de
valores de uso que não se convertem em valores de troca, e sim que se esgotem em um
“consumo produtivo” na mesma esfera privada na que são gerados, o que resulta em vital
para a reprodução da força de trabalho. Tithi Bhattacharya, intelectual feminista da
corrente denominada teoria da reprodução social, vê no trabalho humano, como Marx, a
“premissa da história humana” e que,
“...o capitalismo, entretanto, reconhece o trabalho produtivo para o mercado como a única
forma de “trabalho” legítimo, enquanto que a enorme quantidade de trabalho familiar,
assim como o comunitário que serve para sustentar e reproduzir a classe trabalhadora ou,
mais especificamente, sua força de trabalho, é naturalizada como não existente [6].”
O capitalismo relega às mulheres (hoje deveríamos dizer, para maior precisão, que as
sobrecarrega com) o trabalho reprodutivo não remunerado. Desta forma, o capitalista,
ainda não extrai mais-valia dessa atividade, por tratar-se de um trabalho que não gera
valores de troca (quer dizer, não é passível de ser trocado no mercado), conta com essas
tarefas levadas a cabo de forma não remunerada para a reprodução da força de trabalho.
Daí que o trabalho reprodutivo seja indispensável, ainda que não gere valor nem, portanto,
mais valia, é dizer, ainda desde o ponto de vista estrito da lógica do capital, seja um
trabalho não produtivo.
O trabalho reprodutivo é útil, ainda que não se defina como produtivo desde o ponto de
vista do capital e não é necessário buscar de que maneira podemos incorporá-lo à lógica
da extração de mais valia para que possa ser reconhecido e ‘’valorizado’’ socialmente.
Esse foi o caminho adotado por algumas teóricas feministas, que tentaram explicar que se
o trabalho reprodutivo “produzia” a mercadoria força de trabalho, então deveria ser
considerado como produtivo, só que a existência de uma opressão (ideológica, cultural)
patriarcal, o manteria submisso no interior dos lares particulares e realizado gratuitamente
pelas mulheres [7]. Mas como alerta Daniel Bensaid,
“...as regras entre um trabalho realmente submetido ao capital pelo entorno do mercado e
uma atividade privada são sem embargo dificilmente comparáveis (taylorização do
trabalho de cozinha e hotelaria). Os instrumentos de medida dependem de uma eleição
arbitrária insatisfatória: se trata de calcular o que uma pessoa poderia ganhar no mercado
de trabalho durante os lapsos de tempo consagrados às atividades domésticas (custo em
lucros potenciais), assim como calcular o que se deveria pagar no mercado para obter um
serviço equivalente (custo da compra no mercado) [8].”
Nessas décadas passadas, para os debates que enfrentam feministas e marxistas, não
podemos mais que compartilhar as palavras de Bensaid que afirmava que “a transferência
imprudente dos conceitos de Marx fora de seu campo específico, obscureceram
constantemente os problemas, como ilustra o manejo aproximativo das noções de valor de
troca e trabalho produtivo” [9].
(Re)produção familiar
Na mesma linha que sua leitura particular do “viés masculino” que tem a definição do
trabalho produtivo no capitalismo, Federici se pergunta,
Ainda que em O Capital não se aprofunde sobre a natureza desta produção particular da
mercadoria “força de trabalho”, é justo assinalar que se considera que a divisão sexual do
trabalho - característica das sociedades patriarcais - é prévia ao capitalismo e não surge
apenas após com sua acumulação originária. O patriarcado já estava ali; o que o fez
capitalismo foi adaptar essas relações a sua própria lógica e subordiná-las às suas
necessidades.
É que para Marx, o capitalismo é uma totalidade orgânica, um sistema cujo centro de
gravidade se encontra na geração de valores de troca e a extração de mais valia. Desde
esse ponto de vista, o funcionamento do modo de produção capitalista se centra na
exploração da força de trabalho, aquela mercadoria única e especial porque é capaz de
produzir valor de troca. E se o capitalismo se utiliza da exploração do trabalho assalariado,
não é porque não usufrua de outras formas de trabalho não assalariadas submetidas
àquela forma central que possibilita a extração de mais valia. Bhattacharya afirma que, em
O Capital, “Marx não teoriza este segundo circuito, mas que simplesmente coloca que ‘a
manutenção e a reprodução da classe trabalhadora permanece como uma condição
necessária para a reprodução do capital’” [11]
Nesse sentido, também é interessante o que afirma Lise Vogel sobre o rol da família, a
“unidade reprodutiva” por excelência, ainda que se trate de uma instituição pré-existente
ao capitalismo. Vogel outorga à família trabalhadora - quer dizer, aquela onde se reproduz
a força de trabalho - um rol indispensável no sistema capitalista e “prioriza a análise da
relação estrutural que a vincula à reprodução do capital, em lugar da estrutura interna e as
dinâmicas que caracterizam à família” [12]. Colocar a família no contexto das relações
sociais dominantes (capitalistas) permite ver o rol desta instituição pré-existente, ainda que
adaptada e com uma forma específica (família operária), e não isolar sua dinâmica interna,
na qual funcionam hierarquias de gênero e de idade, de sua funcionalidade no capitalismo.
“[...] a partir do final do século XIX, com a introdução do salário familiar, do salário operário
masculino (que se multiplicava por dois entre 1860 e a primeira década do século XX), foi
que as mulheres que trabalhavam nas fábricas foram repelidas e enviadas ao lar, de forma
que o trabalho doméstico se transforma em seu trabalho primordial e elas se convertem
em dependentes [14].”
Segundo Federici, o capitalismo criava as formas de uma família operária para apaziguar o
proletariado que havia se rebelado contra esta exploração sem medidas, garantindo a
existência de uma classe mais produtiva e menos desobediente. Em sua perspectiva estão
ausentes, no entanto, os processos contraditórios da luta de classes, já que, com uma
visão quase conspirativa, a classe dominante apareceria como portadora de um poder
ilimitado para impor as condições, não somente da exploração, como também da
reprodução da classe operária, sem obstáculos nem resistências.
Para a classe trabalhadora, a defesa dos laços familiares frente à voracidade da indústria
que não distingue entre homens e mulheres ou entre adulto e criança na hora da
exploração, também significou um enfrentamento com o capital para melhorar suas
condições de vida. Com o acesso massivo a escolas, hospitais e outros serviços públicos,
também melhoram as condições de vida do povo trabalhador e se transfere, da
privacidade do lar ao Estado capitalista, uma parte da carga do trabalho reprodutivo. Suas
consequências “benéficas” para a classe trabalhadora também podem ser compreendidas
pelo lado negativo: a privatização ou eliminação de serviços públicos sempre é resistido
pelas massas, já que sua consequência é um golpe ao “bolso” das famílias operárias e/ou
um aumento do trabalho reprodutivo dentro do lar, majoritariamente das mulheres da
família.
Nas últimas décadas, o capitalismo em sua forma “neoliberal” atacou aos sindicatos e
outras organizações próprias da classe operária assalariada para reestruturar a produção
incrementando a exploração por diversas vias. Mas também golpeou o processo de
reprodução social da força de trabalho, através da privatização de empresas públicas,
cortes e eliminação de distintos programas de amparo social, ajustes de orçamento que
deterioram a educação e a saúde pública, aumentos abusivos no transporte e outros
serviços essenciais que recaem sobre a economia familiar do povo trabalhador. Disto
falamos quando denunciamos que o endividamento dos países subordinados ao
imperialismo, traz junto a si políticas de ajuste que incrementam o trabalho reprodutivo
realizado gratuitamente por mulheres e meninas. A luta contra esta ofensiva do capital
sobre as massas “é também um esforço da classe para exigir sua porção de civilização”
[15].
Que a forma familiar regulada pelo “patriarcado do salário” também tenha um aspecto
funcional ao capitalismo, não significa que não coloque contradições seladas pela força
entre capital e trabalho e definidas pela luta entre as classes.
Neste vínculo inevitável está a necessidade de que a luta contra a opressão das mulheres
adquira uma perspectiva anticapitalista e mais precisamente, socialista e revolucionária; ao
mesmo tempo em que toda a luta da classe trabalhadora contra a exploração capitalista
não possa prescindir de um programa de ação contra a opressão feminina que, sob este
sistema, se ancora na naturalização da reprodução gratuita da força de trabalho.
A título de conclusão
Lutar contra a desigualdade de gênero não pode prescindir de refletir em quê sociedade
aspiramos viver uma igualdade plena. Queremos lutar para que haja quatro mulheres entre
as oito pessoas mais ricas do planeta e sejamos 50%, genericamente equitativo, das mais
pobres? Se o centro de gravidade do capitalismo segue sendo a exploração do trabalho
assalariado e a extração de mais valia, é possível pensar a emancipação das mulheres
ignorando este nó vital do funcionamento da sociedade que vivemos? Depois de tudo,
ainda que as lutas da relação capital/trabalho e as lutas dadas nos espaços de reprodução
social tenham suas especificidades, deveríamos buscar as formas de confrontar a divisão
e o antagonismo que a classe dominante impõe, de unir o que o capitalismo dividiu
historicamente. Hoje, mais que nunca, é possível construir este caminho, porque, talvez
pela primeira vez, podemos dizer que se trata de nós mulheres, o proletariado.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] Ver W. Z. Goldman, “Mulher, Estado e Revolução”, São Paulo, Iskra Edições, 2014.
[2] Lise Vogel, “Questions on the Woman Question”, Monthly Review 31, Nº. 2, Junho de
1979.
[4] Karl Marx, El Capital, Capítulo VI inédito, México, Siglo XXI, 1985, citado en Paula
Bach, “El sector servicios y la circulación del capital: una hipótesis”, Lucha de Clases 5,
Junho de 2005.
[5] D. Bensaïd, La discordancia de los tiempos, “El sexo de las clases”, p. 137 (inédito).
[11] T. Bhattacharya, “Reproducción social del trabajo y clase obrera global”, disponível em
vientosur.info, 17/02/2018.
[15] T. Bhattacharya, “Reproducción social del trabajo y clase obrera global”, ob. cit.
[16] Nancy Fraser, “Las contradicciones del capital y los cuidados”, New Left Review 100,
septiembre-octubre 2015.
[18] Tithi Bhattacharya, “Reproducción social del trabajo y clase obrera global”, ob. cit.
De: http://www.esquerdadiario.com.br/Nos-mulheres-o-proletariado
Em: 20180724