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derrota.
impregna de sentidos íntimos e pessoais, mas que, paradoxalmente, são uma e outra
vez compartilhados.
Colômbia1, há, numa vitrine, um peinetón: um grande pente convexo de tartaruga que,
rendas. A legenda sob a vitrine diz: Peinetón usado por una mujer que danzó con el
bela mulher (tem que ter sido bela), dos salões iluminados com velas. O pente é quase
uma antiguidade, mas o que importa não é seu desenho, nem o material do qual está
feito, nem a ocasião em que foi usado, nem sequer a identidade dessa mulher que
1
Devo essa informação ao Dr. Adolfo Cifuentes.
dançou com o libertador. O significado da bela peça decorada está todo nesse homem:
uma pessoa considerada santa, el peinetón es una relíquia pois, de acordo com o ritual
2º. Grau: Um fragmento da roupa ou de algo que o santo usara durante sua
vida, e
3º. Grau: Qualquer objeto que tenha sido tocado pelo santo.
Uma relíquia, então, de quarto grau, porque Simón Bolívar dançou, apertou a
Sem encarnar a divindade das relíquias, todos os objetos que usamos ao longo
da vida nunca perdem o encanto que nos fez deseja-los; esse encanto, porém, se
parece se desprender das coisas velhas, não das antiguidades, das coisas velhas: as
cassete.
ser frequentados pelos pobres para, pouco a pouco, atrair jovens estudantes, neo-
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Mas a reabilitação e o uso desses objetos, a meio caminho entre cadáver
histórico sobre o passado por um olhar político, tal como queria Walter Benjamin. De
acordo com o filósofo, os surrealistas descobriram como, nos objetos fora de moda e
2
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.
p. 25.
3
Idem.
4
Cf. FOSTER, Hal. This Funeral is for the Wrong Corpse. In: Design &Crime. London: Verso, 2002.
p.139.
3
Oriental, da União Soviética, … A cultura contemporânea parece estar sempre em
II.
Santos que governou o país entre 1882 e 1886. Trata-se de uma residência luxuosa no
meio de amplos jardins onde se encontra um pequeno castelo que servia de casa de
triste fama, pavilhões para criação de pássaros exóticos, uma gruta artificial
atravessada por corredores labirínticos e iluminada com luz de gás, fontes, estátuas,
cascatas artificiais...
materializa em uma coleção de objetos residuais que, por sua modéstia extrema,
parecem ser indignos de ocupar qualquer vitrine. Abundam as fotos, muitas vezes
causa mais emoção, entretanto, o que marca mais o breve passo do tempo são os
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Um poço onde o ditador criava leões e, dizem, costumava jogar seus opositores.
4
Vitrine 1: esferas de rolimã, bolinhas de chumbo, uma garrafa de vidro com
Vitrine 2: Cinto masculino de couro sobre um diário onde se lê: “El drama de
Vitrine 3: Uma pequena caixa de latão que contém um caderninho escrito com
letra diminuta. A legenda diz: “Hojas donde se escribió, copiado, el libro 'Historia
pelos presos políticos: uma cruz, uma aliança, uma agulha, uma pulseira, um anel de
que lhes confere um encanto inicial, pois estamos longe da aridez de um museu
eu) viveram esse passado sem nunca esperar ver tais objetos elevados à categoria de
resistentes — não são espadas, nem fuzis, nem metralhadoras — e, ainda que
reconheçamos sua modesta eficácia, passa rapidamente por nossa mente a pergunta
5
sobre seu possível uso no século XXI. O coquetel molotov evoca o espectro de um
III.
relações entre passado e presente, e se podem ser utilizados como ferramentas para a
transmissão da memória.
contextualiza.
Duas vezes vestígio, porque restos e porque fotografias, o que a página exibe
são fotos de objetos deixados pelos militantes mortos ou desaparecidos e que são
estimados como relíquias por seus parentes e amigos. Essas imagens — fotos de
peronista — encerram e ativam a memória pessoal e afetiva que muitas vezes está
7
http://www.memoriaabierta.org.ar/vestigios
8
Idem (trad. nossa).
6
IV.
Inocência é também o nome do último romance do autor, que narra a historia do amor
impossível de Kemal, filho de uma rica família burguesa, por Füsun, sua prima
distante, muito mais nova que ele, bela e pobre. No final do longo relato, Kemal, que
roubar: o brinco que ficou entre os lençóis no dia do primeiro encontro, o saleiro que
ela, uma vez, tocou, o pequeno cachorro de porcelana que ficava encima do televisor
da sua casa, o triciclo que a família de Kemal emprestou aos parentes pobres, o
ralador de marmelo, 4.213 guimbas de cigarro, 237 fivelas de cabelo, 419 bilhetes da
da amada.
Lembro com imensa alegria que uma vez tome com meu
garfo uma das pequenas almôndegas morenas do seu prato
e a pus na boca, quando falando disto ou daquilo, me
perguntou ”quer prova-las? “ e outra, de novo induzido por
ela, as azeitonas que apartava ao lado do prato, cujos
caroços exponho aqui9.
9
418
7
ordinários em 83 vitrines, que correspondem a cada um dos 83 capítulos do romance.
Negar Azimi, editora chefe de Bidoun, uma revista sobre arte e cultura do Oriente
Médio, sediada em New York, relata que Pamuk lhe disse que necessitava desses
ordinárias. Mi romance honra os museus onde ninguém vai, aqueles nos quais você
hüzün. Em Istambul12, Pamuk dedica um capítulo a palavra turca hüzün, que costuma
ser traduzida por melancolia. Hüzün, que tem origem árabe, carrega em si um
ainda mais de Deus. Como a melancolia, hüzün é um estado de alma sombrio, entre
isolados do relato, libres talvez dele, estão a contar, não somente a história de Kemal
10
PAMUK, Orhan. Apud AZIMI, Negar. The Objects of the Exercise. New York, The New York
Times, November 1, 2009.
11
PAMUK, 2009.
12
Pamuk, 100
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8
V.
ano. O rapaz sorri, a criança olha assustada. Abrem-se outras: em uma, o jovem
abraça o menino contra seu peito; na terceira, a família completa: mãe e pai sorriem
vidro com uma mecha de pano, pregos dobrados ao meio e soldados em cruz,
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http://www.memoriaabierta.org.ar/vestigios/objeto.php?id=81 (trad. nossa).
9
contrário, bem triste, seu corpo maravilhoso e a intensidade
humana e a espiritualidade que nos maravilhavam trinta e
quatro anos justos depois que tomaram a fotografia.
- Por favor, ponga essa foto no seu museu Kemal Bey...15
aquele que está por cima mostra o retrato de um menininho, o seguinte deixa
marcos dourados. Não se sabe quem são essas crianças, onde estão; adivinhamos por
LOTE 16
EMPILHAMENTO DE PORTA-RETRATOS
D.O. MERCADO DE RUA [TIANGUIS] DE SANTA CRUZ,
CIDADE DO MÉXICO
P.P.P.O. 37,00
L.I. 130,00
5 PORTA-RETRATOS EM MATERIAIS DIFERENTES,
METAL E/OU MADEIRA FOLHEADA A OURO,
SOBREPOSTOS.
30X22X8 CM
VI.
Nos anos 1970, Christian Boltanski deu início aos seus Inventários. Tudo
começou com uma carta manuscrita que o artista enviou em janeiro de 1973 a vários
museus de história e ciências naturais e a vários curadores que conheciam sua obra.
que realizou o projeto e mostrou os objetos de uma mulher que tinha morrido
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641
16
Boltanski, 41.
10
ecentemente. Outras cinco versões foram montadas entre 1973 e 1974, entre elas
Modern Art, Oxford) e Inventário dos objetos que pertenceram a uma mulher de
as paredes e sobre uma mesa escalonada que ocupava o centro da sala. Cordões de
isolamento separavam os objetos dos visitantes. Cada objeto estava perfurado e por
esse furo passava uma corrente fina que sustentava uma plaqueta na qual se lia o
nome da artista, o nome da instalação e o lugar onde o objeto fora adquirido. Uma
placa na parede esclarecia que os objetos seriam leiloados em data próxima ao final
da 29ª Bienal, pelo leiloeiro oficial Aloísio Cravo, especializado em pintura brasileira.
imagem técnica. O que todos tinham em comum estar a venda nos mais humildes
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brinquedos infantis, bibelôs, frascos de vidro, mas também porta-retratos, visores
Em São Paulo, a artista montou 73 objetos nos quais usou como matéria-prima
pulgas mais pobres de dois continentes. Em suas derivas pelas feiras de Montevidéu,
Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa, pelos tianguis do México, por El Rastro de Madri
ou pelo marché aux puces de Paris, Rennó coletou câmeras fotográficas, carrosséis,
fotografias.
centro e a periferia da cidade para juntar o lixo dos que tem lixo para jogar.
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BAUDELAIRE,
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que Nadar descreve18 - nos fala Benjamin -, seria o passo do poeta que erra pela
cafarnaum da escória, os restos das catástrofes que flutuam atrás de nós em pura
perda. As coisas que o trapeiro resgata desse limbo, que nem sequer são ruínas, serão
transformadas pois, a diferença do colecionador, ele não amealha para si, apenas
recolhe e encaminha.
Acaso não é melancólico o sorriso que esboçamos ao ver aquela câmera fotográfica
que tanto desejamos décadas atrás, enclausurada em uma vitrine que a conserva e a
cerâmica vitrificada?
primeira percepção seja a escassa temporalidade das coisas em si, porém, a partir
desse dado, começam a brotar as memórias do uso, das condições de uso, do lugar
onde foi comprada, das imagens que quase sempre vêm junto, das situações
cotidianas nas quais se incluíram e, por fim — last but not least —, da preexistência
18
Cit. Em Firmin Maillard, La cité des Intellectuels, Paris, 1905, p. 362. Apud Passagens, 227.
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p.79
13
evocado. Nesse processo de sub-textualidade de “imagens mnemônicas anteriores”20,
passeiam pela fotografia do século XIX, pela fotografia surrealista, pela jornalística
constrói com elementos populares de sua geração: os abajures feitos com os carrosséis
de diapositivos dos projetores Kodak, coroados por cúpulas como as que se usavam
nas construções populares dos anos 80, ou os simulacros de televisores montados com
visores de meio quadro, como os que os fotógrafos de rua vendiam na mesma época.
Objetos simples que evocam o consumo de imagens da classe média baixa no saudoso
Ruinologia,
20
FOSTER, 2002. p. 67.
21
Texto de apresentação de Menos-valia (leilão) de Rosângela Rennó. Texto de parede na 29ª Bienal de
São Paulo.
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As ruínas que Rennó recupera são restos de um passado mas ou menos
próximo, resíduos da vida moderna que ainda parece existir e proliferar, cada vez
mais degradada, nas periferias pobres de nossas cidades opulentas. O que move a
artista é um sentimento melancólico que não se regozija no perdido, mas que aceita a
ameaça toda obra humana; mas essa falha na significância (essa insignificância)
indagação sobre sua própria origem; são lugar onde se confrontam estratégias de
reflexão que podem nos dizer mais sobre quem as olha que sobre o que é olhado.
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