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Avaliadores: Prof. Esp. Carlos Alexandre Gruber de Castro e Profª Ms. Marília Crispi de Moraes
CAPITU NA ATUALIDADE
JOINVILLE
2012
PATRÍCIA CRISTIANE SCHMAUCH
CAPITU NA ATUALIDADE
JOINVILLE
2012
PATRÍCIA CRISTIANE SCHMAUCH
CAPITU NA ATUALIDADE
_______________________________________________________________
Orientadora: Profª Ms. Valdete Daufemback Niehues
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Prof. Esp. Carlos Alexandre Gruber de Castro
_______________________________________________________________
Profª. Ms. Marília Crispi de Moraes
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 6
1 GÊNERO FEMININO ........................................................................................................ 15
1.1 REPRESENTAÇÃO .......................................................................................................... 22
2 TELEVISÃO ........................................................................................................................ 28
2.1 MINISSÉRIES ................................................................................................................... 35
3 CAPITU REPRESENTA A MULHER NA ATUALIDADE? ........................................ 42
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 56
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 59
ANEXO A – DVD COM CENAS DA MINISSÉRIE CAPITU .......................................... 69
INTRODUÇÃO
6
no qual foi inspirada a minissérie Capitu, fora dividido em mil pedaços. A ideia era que os
internautas de todo o Brasil pudessem ler os pedaços selecionados aleatoriamente pelo site e
gravá-los. No final da brincadeira, todo o livro Dom Casmurro foi enviado em mil partes, em
formato de áudio e vídeo ao site. Para iniciar a promoção, artistas como Fernanda
Montenegro, Camila Pitanga, Regina Duarte e Ferreira Gullar gravaram os trechos do livro
Dom Casmurro.
No dia seguinte acessei o site e gravei o trecho que foi sorteado para mim. Ao
pesquisar sobre a minissérie descobri que cópias de um DVD com imagens da produção
seriam distribuídas em cinco capitais brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,
Brasília e Recife). Dois mil exemplares desse material foram deixados em locais públicos e,
quem os encontrasse receberia instrução para assistir à minissérie antes da sua estreia, além de
ser convidado a opinar sobre a obra no site www.passeadiantecapitu.com.br e repassar o
vídeo a outras pessoas, criando, assim, uma corrente cultural e interativa.1 Infelizmente, por
não residir em nenhuma das capitais contempladas com este jogo pedagógico, aguardei até o
dia 9 de dezembro para assistir ao primeiro capítulo da minissérie.
Assim, de 9 a 13 de dezembro de 2008 a minissérie Capitu foi transmitida pela rede
Globo de Televisão. A produção fazia parte do denominado Projeto Quadrante, um conjunto
de quatro minisséries, em poucos capítulos, exibidas uma a cada ano, após o horário nobre,
com previsão arrojada de detalhes e de alto custo de produção. De acordo com o diretor da
minissérie Capitu, Luiz Fernando Carvalho (2008), este trabalho é uma releitura do clássico
livro Dom Casmurro, de Machado de Assis, impresso em 1899 em Paris, e divulgado em
1900 no Rio de Janeiro.
Esta obra, além de ser campeã de vendas, mesmo passado mais de um século da sua
publicação, é também um dos marcos da literatura brasileira e faz parte das discussões
acadêmicas e do imaginário dos leitores de todas as idades. De acordo com o site da
minissérie Capitu, a escolha da obra Dom Casmurro como fonte de inspiração para a
produção da minissérie aconteceu como uma homenagem ao centenário de morte do escritor
Machado de Assis, autor do romance.2
A história do livro Dom Casmurro inicia em 1857 e se passa no Rio de Janeiro. O
próprio Bentinho, conhecido como Dom Casmurro ou Bento Santiago, um dos protagonistas
do enredo, é o narrador da história, enquanto lembrança das memórias ao se aproximar a
1
Informações disponíveis em: http://oglobo.globo.com/revista-da-tv/minisserie-capitu-tem-inovadora-estrategia-
de-lancamento-3604673
2
Disponível em: http://capitu.globo.com
7
velhice. Órfão de pai e criado com desvelo pela mãe, dona Glória, Bentinho pertencia a uma
família com muitas posses e bens, protegido pelo círculo doméstico e familiar, sua mãe, sua
tia Justina, seu tio Cosme e um agregado da casa, José Dias. Aos 15 anos, descobre sua
paixão por Capitolina, conhecida como Capitu, vizinha e amiga, que não pertence à alta classe
da sociedade. José Dias, o agregado, percebe a paixão entre Capitu e Bentinho e,
inocentemente, conta à dona Glória, mãe de Bentinho. Como o primeiro filho de dona Glória
nascera sem vida, no nascimento de Bentinho, dona Glória prometeu que o menino se tornaria
padre, caso vingasse. Diante do conhecimento da paixão de Bentinho, após a informação de
José Dias, Dona Glória tratou de garantir a sua promessa e envia Bentinho ao seminário.
Bentinho permaneceu no seminário durante alguns meses, onde conheceu Escobar,
que se tornaria seu melhor amigo. Escobar sugere que um escravo da família seja ordenado
padre no lugar de Bentinho. José Dias faz a proposta à dona Glória, que aceita, e envia o filho
Bentinho à Europa para estudar as Leis. Depois de alguns anos, Bentinho voltou formado em
Direito e estreita a amizade com o amigo do seminário, Escobar, o qual se casa com a melhor
amiga de Capitu, Sancha, enquanto Bentinho se casa com Capitu, realizando o seu sonho que
alimentava há algum tempo.
Após alguns anos de casamento, Bentinho e Capitu tiveram um único filho, Ezequiel,
por sinal, muito parecido com Escobar, o que para Bentinho é a prova de traição da sua
esposa, Capitu.
Escobar, acidentalmente, morre no mar e, no velório, Bentinho percebe que Capitu
chora diante do cadáver do amigo, o que aumenta o seu ciúme. A partir daí, a desconfiança de
Bentinho só aumenta e chegou a planejar o assassinato da esposa e do filho, seguido pelo seu
suicídio, mas não teve coragem de realizar o seu intento. A tragédia dilui-se na separação do
casal. Capitu viajou à Suíça e morreu algum tempo depois. Ezequiel foi estudar Arqueologia
nos países do Oriente Médio e morreu de febre tifoide.
Toda a história acontece sob a ótica masculina do narrador-personagem, Bentinho, em
que Capitu é a construção de imagem e memória de uma mulher sedutora, dissimulada e
misteriosa, que talvez tenha traído Bentinho com seu melhor amigo. Entretanto, a possível
traição da personagem não é objetivo desta análise, embora este tema ainda renda calorosas
discussões no mundo acadêmico ou fora dele, pelo imaginário que a sociedade machista
alimenta em torno da submissão feminina e dominação masculina, colocando a mulher como
transgressora dos princípios da moral familiar patriarcal.
A minissérie aborda a mesma história do livro, no contexto o século 19. Entretanto, o
seu formato desvia dos padrões televisivos brasileiros em relação à estética, produção,
8
técnicas e custos, além do reflexo junto aos espectadores, ao incorporar elementos do teatro,
da cultura pop e modernidade, com cenas do Rio de Janeiro do século 21. Além do mais,
Capitu é tatuada com uma flor no braço direito. Portanto, as imagens não representam em sua
totalidade, o século 19, mas nele é inspirado. Esse choque de estilo, gênero e liberdade
artística adotados aflorou no telespectador um simbolismo peculiar, resultantes das condições
de vida verossimilhantes do Brasil no século 19.
A minissérie Capitu foi escrita por Euclydes Marinho, com a colaboração de Daniel
Piza, Luís Alberto de Abreu e Edna Palatnik, sob a direção de Luiz Fernando Carvalho, o qual
sempre esteve à frente de projetos pouco convencionais na televisão, como em 2005, as duas
jornadas de Hoje é Dia de Maria. A título de curiosidade, a minissérie Capitu recebeu o
prêmio Leão Cannes, em 2009, na categoria novas mídias. As cenas da produção foram
gravadas no prédio do Automóvel Clube do Brasil, que, segundo o diretor Carvalho (2008,
p.82) “praticamente em ruínas, decadente e abandonado, infelizmente, mas que serviu como
uma luva às nossas necessidades de produção da minissérie”.
Para Carvalho (2008, p.76), na minissérie Capitu há uma mistura de tendências, mas o
texto original foi mantido de acordo com a linguagem de Machado de Assis:
em seus textos [de Machado de Assis], não encontramos apenas uma mera
reprodução dos costumes da época, mas, se por um lado sua leitura nos traz as
contradições do mundo social do século XIX, por outro, me parece evidente que sua
literatura vai muito além dessas questões. Como diretor de uma minissérie, não me
interessa levantar uma simples reconstituição da época, porque isso não é o mais
importante do texto.
por conta disso, defino o trabalho feito na minissérie como uma aproximação. Por
isso optei por outro título, “Capitu”, diferente de Dom Casmurro, portanto. Assim a
ideia de uma aproximação ficaria mais clara, revelando não se tratar apenas de uma
tentativa de transposição de um suporte para outro, e sim de um diálogo com a obra
original. E por sua vez, nasce daí também uma outra tentativa: o diálogo com a
personagem Capitu, que no próprio texto do Machado é tão misteriosa e enigmática
(CARVALHO, 2008, p.75).
9
obra, que às vezes sobressai ao próprio título, e mais conhecida do público do que o
protagonista, Bentinho. Importante ressaltar que confluem para esta alteração, questões
técnicas e mercadológicas, pois a própria sonoridade e memorização da palavra “Capitu” são
mais fáceis do que “Dom Casmurro”. Além disso, a Globo construiu um distanciamento do
aspecto casmurro que parte da população atribuía ao clássico, evidenciando o mistério em
torno da personagem feminina que pulsa no desejo e imaginário de Bentinho. “Capitu”
também é um nome comum no cenário cultural brasileiro, algo mais próximo do público, já
que está integrado a músicas e, frequentemente, nomeia personagens de novelas.
A minissérie Capitu conseguiu alavancar a média de 15 pontos de Ibope nos cinco
capítulos3, um número que não alcançou a exibição de “Hoje é Dia de Maria”, uma das
minisséries de maior sucesso da Rede Globo. A exibição da minissérie Capitu superou o
Ibope da primeira minissérie do projeto Quadrante, “A Pedra do Reino” e principalmente, das
emissoras concorrentes durante o mesmo horário.
Dessa forma, a minissérie Capitu individualiza a Rede Globo de seus concorrentes, já
que segue o Padrão Globo, conhecido por determinar moldes que obrigam as produções da
emissora a ser mais onerosas do que as produções das concorrentes. A vantagem financeira da
Rede Globo permite as melhores contratações e acaba polarizando o quadro de artistas
brasileiros. Sobre a questão, acrescenta Bolaño (2005, p.22):
A minissérie Capitu foi ao encontro da tendência exposta por Bolaño (2005), que não
apenas se faz distinto dos demais programas da emissora, mas também individualiza a
emissora em relação às suas concorrentes. Com o projeto Quadrante, o diretor Luiz Fernando
Carvalho não mostrou apenas que a Rede Globo é distinta, mas também que o faz de um
modo inusitado. Isso se mostra ao utilizar, na minissérie Capitu, atores desconhecidos do
grande público em papéis de destaque, a exemplo de Michel Melamed (Dom Casmurro),
Letícia Persiles (Capitu jovem) e Pierre Baitelli (Escobar). Por isso, o público pode até não
gostar, mas a minissérie Capitu destoa dos padrões tradicionais.
3
Dados da FOLHA online. “Capitu” lidera audiência em com um ponto de diferença. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u477523.shtml. Acesso em: 5/9/2011.
10
Assim, diante desta obra repaginada, inspirei o objeto de pesquisa para o meu
Trabalho de Conclusão de Curso.
Ao assistir o primeiro capítulo da minissérie Capitu, percebi a força da personagem
Capitu como mulher, mais evidente na produção audiovisual do que no livro. Com isso,
iniciei uma série de questionamentos sobre a condição feminina do século 19 e se havia
resquício desta época que condicionava à conduta da mulher na atualidade.
É indispensável ressaltar que, apesar da minissérie ter sido exibida em 2008 com
elementos da modernidade, o contexto social continuou sendo o do século 19, época em que
as mulheres eram figuras secundárias, de acesso restrito à educação, à vida pública e
submetidas a uma sociedade patriarcal, na qual a figura masculina era representada pelo pai,
sogro, avô, marido ou conselheiro. A personagem Capitu quebra os padrões estabelecidos pela
sociedade por meio de comportamentos ousados e corajosos (GUALDA, 2011).
Três anos depois, ao iniciar o direcionamento a um tema de pesquisa para o Trabalho
de Conclusão de Curso, pensei em revisitar os meus pensamentos da condição feminina
representada na personagem Capitu, compreendendo que as experiências vividas são o que
definem os nossos objetivos. Após alguns ensaios em direcionar o trabalho por caminhos
viáveis, pautada nas minhas observações no que tange à figura feminina, decidi estabelecer
um elo de identificação de características comuns entre a personagem Capitu e a mulher atual,
em especial no que se refere à dominação masculina. A questão de gênero parecia ser um
caminho possível para estabelecer um diálogo entre a personagem Capitu e a mulher na
atualidade.
Assim, defini como objeto de pesquisa, a personagem Capitu. Conforme Bourdieu
(2006, p.27), a construção do objeto
Diante disso, percebi que autores como: Gilberto Pinheiro Passos, estudioso em
Literatura Brasileira, em especial sobre Machado de Assis e Linda Catarina Gualda, estudiosa
e professora efetiva de Português e Inglês na Rede Estadual de Ensino na cidade de Limeira,
em São Paulo4 consideram a personagem Capitu da obra Dom Casmurro como uma mulher à
4
Um dos artigos de Gualda que evidenciam a personagem Capitu como uma mulher à frente do seu tempo está
disponível em http://www.cedae.iel.unicamp.br/revista/index.php/seta/article/view/566/438.
11
frente do seu tempo. Esta observação foi decisiva e relevante para empreender a presente
pesquisa, pois se Capitu estava à frente de sua época, diante das condições femininas impostas
pela sociedade patriarcal, poderia esta personagem representar a mulher brasileira na
atualidade?
Considerei pertinente discutir este tema, sob a perspectiva de gênero, que remete a
uma problemática que, ao mesmo tempo pertence ao tempo passado, porém, relevante se for
levado em consideração os resquícios herdados da sociedade patriarcal ainda comum na
atualidade.
As mulheres, na história, foram excluídas enquanto seres pensantes, com autonomia e
vontades, pois se esperava delas um comportamento submisso diante da dominação
masculina. Este trabalho monográfico não tem a pretensão de traçar novos tratados sobre a
condição feminina, mas, tão somente, desenvolver uma reflexão sobre os valores presentes na
sociedade atual a partir da visão histórica dos valores patriarcais que submeteram a mulher
aos ditames da submissão e, ao mesmo tempo, da resistência e luta feminina para conquistar
direitos de igualdade na diferença.
Durante a trajetória de pesquisa me deparei com situações que estavam correlatas ao
meu tema de pesquisa, muitas vezes em fatos que, aparentemente, não relacionados.
Conforme Mills (1975, p.21), “as pesquisas no campo das ciências sociais são como um
ofício”. Isso porque o tema acompanha e se mescla à sua vida pessoal e profissional,
tornando-nos sensíveis ao assunto e ouvindo referências que remetem a ele em grande parte
das nossas experiências. Este é o momento em que passamos a viver a monografia em sua
forma mais intensa.
A partir disso, comecei a organizar um arquivo digital em formato de texto no decorrer
das disciplinas de Pesquisa em Comunicação e Monografia I, com o objetivo de guardar as
minhas experiências pessoais, profissionais e, sobretudo, acadêmicas, ponto de partida para o
desenvolvimento desta monografia. Neste arquivo estão fichamentos, bibliografia, capítulos
de livros, notas pessoais e possíveis delineamentos de estudos. Com a execução deste estudo
monográfico, os rascunhos contribuíram para a organização das ideias em tópicos e
construção de um raciocínio sistemático. Conforme Mills (1975, p.213), “desenvolvendo o
arquivo, podemo-nos experimentar como escritor e, assim, como se diz, desenvolver nossa
capacidade de expressão. Manter um arquivo é empenhar-se na experiência controlada”.
Por meio das observações e experiências diárias com livros, artigos, teses, dissertações
e outros materiais relacionados aos temas Gênero e Televisão, estruturei minhas ideias em
uma sequência lógica de fatos. Frequentemente, relia, rabiscava e reorganizava meu arquivo
12
digital, revendo e readequando o “estado de problemas e planos” (idem, p.214), acrescentando
novas perspectivas.
Ressalto neste trabalho a importância da imaginação sociológica no percurso
metodológico como base ao trabalho do artesão, para além das experiências e observações
pessoais a fim de compreender o tema da pesquisa. De acordo com Mills (1975, p.240),
Neste sentido, é imprescindível tomar cuidado para não fazer julgamento de valor, mas
analisar à luz de teorias, embora o pesquisador precisa fazer suas escolhas, que não deixam de
estar imbuídas de valores, de acordo com sua cultura (GOLDENBERG, 2000). Para Bourdieu
(2006), a pesquisa é algo demasiadamente sério e demasiado difícil para se poder tomar a
liberdade de confundir a rigidez, que é o contrário da inteligência e da invenção, com o rigor.
Assim, a presente pesquisa segue o caminho da prudência, bom senso e vigilância para evitar
armadilhas da interpretação e análise pautadas em visões pessoais.
Assim, na pretensão de fazer uso da imaginação sociológica para sistematizar a
monografia, me identifiquei nesta trajetória com o conceito “artesão intelectual” elaborado
por Mills (1975), apesar do receio de sair da convenção tradicional de delimitar uma
metodologia à priori. Porém, senti confortável na minha decisão ao ler o texto monográfico de
Sarita do Nascimento (2011), a qual fazendo uso da citação de Bourdieu (2006, p. 26),
sinalizou: “é proibido proibir” ou “livrai-vos dos cães de guarda metodológicos”. No entanto,
a liberdade de expressão metodológica tem a contrapartida do bom senso na utilização das
técnicas empregadas.
Assim, a monografia está dividida em três capítulos:
O primeiro capítulo, “Gênero”, aborda uma reflexão plural a partir da compreensão
dos estudos de gênero sob uma ótica sócio-histórica e entendimento de conceitos como
dominação masculina, relação entre os sexos e desigualdade entre gêneros.
O segundo capítulo, “Televisão”, aborda uma reflexão sobre a história da televisão e
sua importância e discute o conceito de minissérie, Padrão Globo de Qualidade e projeto
Quadrante.
13
O terceiro capítulo, “Capitu na atualidade”, destina-se ao estabelecimento do diálogo
entre o conteúdo das cenas da minissérie e a teoria apresentada nos capítulos anteriores, no
sentido de analisar se a personagem Capitu representa a mulher da atualidade.
Espero que essa pesquisa possa contribuir para o desenvolvimento de outros trabalhos
acadêmicos que buscam a reflexão sobre gênero.
14
1 GÊNERO FEMININO
a ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a
dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho,
distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de
seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar
de assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às
mulheres; ou, no interior desta, entre a parte masculina, com o salão, e a parte
15
feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada, o
ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura, masculinos, e longos
períodos de gestação, femininos.
16
questionar a noção de que homens e mulheres fazem parte da mesma identidade, trazendo,
assim, a discussão sobre a diferença sexual.
A partir disso, no mundo inteiro iniciou-se um trabalho meticuloso, pontual, de crítica
a todas as estruturas do patriarcado e da sociedade de classes, seja do ponto de vista prático,
vivencial, como da perspectiva teórica. “Em um primeiro momento, a categoria começou a ser
utilizada para mostrar a descriminalização da mulher em todos os níveis: no econômico, no
político, no social, etc.” (MURARO; PUPPIN, 2001, p.7).
Estudos sobre o feminino constituem um tema instigante que continua despertar
interesse em pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, pois conforme Lipovestky
(2000, p. 11), “sem dúvida, nenhuma revolução social de nossa época foi tão profunda, tão
rápida, tão rica de futuro quanto à emancipação feminina”.
Assim, até o final do século 18, geralmente a mulher estava confinada ao papel de
filha, esposa, mãe e irmã, sujeita às escolhas do pai ou do marido para a sua vida e precisando
conviver com o analfabetismo, sem a perspectiva de outras possibilidades profissionais que
não fossem o próprio lar e o cuidado dos filhos (DEL PRIORE, 1997). Importante mencionar
que com a consolidação do capitalismo, o número de trabalhadores disponíveis era menor do
que a quantidade necessária de operários nas fábricas, o que abriu espaço para que as
mulheres exercessem as mesmas atividades, porém, com uma dupla jornada de trabalho, já
que continuavam cuidando dos filhos, do marido e do lar e, no entanto, recebiam um salário
mais baixo (BRITO; OLIVEIRA, 2007).
Além de ser mão de obra barata, as operárias passaram a sofrer uma série de doenças
físicas e psicológicas devido ao trabalho insalubre, que antes não eram tão corriqueiras, como
a depressão.
Importante lembrar que na segunda metade do século 19, as mulheres que ocupavam
as profissões de datilógrafas, telefonistas, professoras primárias, secretárias, balconistas,
pequenas representantes de roupas femininas, consideradas prestadoras de serviços, eram
mais valorizadas do que as operárias (BRITO; OLIVEIRA, 2007).
Desta forma, salienta-se que a partir da Segunda Guerra Mundial a mulher encontrou
condições propícias para criar uma independência psicológica em relação ao sexo masculino,
uma vez que consegue assumir sozinha, as responsabilidades da casa, da educação de seus
filhos, além de obter o próprio sustento da família, sem falar no sentimento de liberdade que a
fez lutar para não ter que voltar à vida doméstica com o término da guerra e o retorno dos
homens ao mercado de trabalho (BRITO; OLIVEIRA, 2007).
17
No entanto, um número substancial de mulheres, quando a guerra terminou, retornou
aos cuidados do lar para que os homens pudessem voltar a ocupar os cargos nas fábricas.
Apesar da sua atuação, a mulher foi colocada no mercado de trabalho por uma necessidade da
sociedade e retornou ao lar por uma necessidade do homem (REIS, 2002).
O maior impulso às reivindicações de igualdade entre homens e mulheres veio a partir
da luta pelo direito ao voto. No entanto, a grande conquista feminina ocorreu com a
descoberta da pílula anticoncepcional, a qual permitiu que a prática sexual fosse tratada não
mais apenas como uma questão moral, mas como algo prazeroso e que proporcionava bem-
estar (DEL PRIORE, 1997).
A conquista feminina não parou por aí. Em alguns países, como a Inglaterra e os
Estados Unidos, a luta avançou para que o aborto não fosse considerado crime. Porém, por
questões religiosas, muitos dos países, inclusive o Brasil, a prática do aborto continua
proibida, exceto quando a mãe corre risco de vida ou quando a gravidez é resultado de
estupro.
Em 1967, um grande passo foi dado em favor da liberdade feminina, com a
proclamação da Declaração Universal dos Direitos da Mulher. Pelo menos na teoria o
preconceito e a discriminação contra a mulher deixaram de existir. Dez anos depois, no Brasil,
a Lei do Divórcio foi aprovada, garantindo à mulher e o homem o direito de se desfazer de um
casamento mal sucedido.
Pode-se afirmar que no Brasil a questão de Gênero como categoria, incorporado ao
feminismo da diferença, consolidou-se no final da década de 1970 (FARAH, 2004). A ideia
do feminismo da diferença era quebrar o paradigma do discurso de que as mulheres são iguais
aos homens, por isso centrou suas discussões em evidenciar a subordinação feminina na
esfera pública. Neste sentido, enfatizavam que as mulheres não podiam ser tratadas como
homens, a reivindicação deveria ser pela igualdade de direitos na diferença.
Entre os critérios que definem o lugar dos homens e das mulheres em relação um ao
outro, existe um passado cultural vinculado, quase exclusivamente, à ideia de superioridade e
do domínio masculino. De acordo com Bourdieu (1999), o corpo assinala a primeira
característica identitária quando nasce e o sexo determina a vivência do indivíduo como
dominante ou dominado:
18
ordem social exerce sobre as mulheres (e os homens), ou seja, às disposições
espontaneamente harmonizadas com esta ordem que as impõem (p.50).
O autor confere uma lógica no sistema/ordem social de dominação que não exclui a
imposição masculina nem a submissão feminina. Por outro lado, os estudos de gênero
questionam a ideia de naturalização do feminino (e masculino) e reforçam a concepção de que
as características atribuídas à mulher e ao homem são, na verdade, socialmente construídas.
Assim, a noção de sexo (a dimensão biológica dos seres humanos) e gênero (uma construção
cultural) são categorias diferentes.
Além de envolver o feminino e o masculino, o gênero também diz respeito à família,
sexualidade, relações pessoais, instituições sociais e as amplas relações que acontecem em
toda a sociedade. Nessa perspectiva, o conceito de gênero não oculta as diferenças entre os
sexos, até porque, as representações de gênero são construídas a partir das características
biológicas, conforme sugerido por Beauvoir (1970). Nesta mesma direção conceitual, Joan
Scott (1995) afirma que a construção de gênero se dá a partir dos discursos, relações sociais
estabelecidas e representações culturais construídas em torno dos aspectos físicos e não pelo
órgão sexual.
De acordo com Sabat (2003) nos estudos de gênero, homem e mulher são categorias
de análise que só funcionam se compreendidas de forma relacional, ou seja, dentro de uma
perspectiva sociocultural. Salienta-se que a mulher começou a aparecer no cenário da
historiografia a partir de vertentes teóricas feministas que construíram uma história paralela
àquela escrita sob a ótica masculina.
Para Butler (2003), gênero não é uma categoria fixa, e sim, uma repetição estilizada de
atos, ou seja, algo temporário e performativo, pois a força política do feminismo deixa de
residir em uma essência pré-discursiva para se concentrar na desnaturalização das práticas de
significação. Manter uma relação de gênero menos opressiva é manter a capacidade de se
representar como sujeito, considerando as especificidades históricas e as múltiplas diferenças.
De acordo com Lauretis (1984) gênero faz parte da teoria foucoaltiana, pois, mais do
que uma representação, é a sua própria construção. Isso porque, a teoria crítica feminina
contemporânea parte do pressuposto de que as convenções linguísticas estão intimamente
ligadas às hierarquias estabelecidas pelo sistema social do sexo, ou seja, as convenções
discursivas tendem a perpetuar as relações sociais naturalizadas pelo senso comum,
equivalente ao que se constrói da mulher.
Pierre Bordieu (1999) corrobora com Lauretis (1984) ao afirmar que “a dominação
masculina está suficientemente assegurada para precisar de justificação” (p.137), uma vez que
19
se reafirma por meio de outras formas de masculinidade que vem ganhando visibilidade em
diversas instâncias midiáticas, sociais e culturais, sobretudo nas últimas décadas.
Por sua vez, Hollanda (1992), amplia a discussão e afirma que o feminismo interpreta
a identidade feminina não somente como linguagem e/ou escrita, mas também como relações
de raça e de classe. Nesta linha de pensamento, Muraro; Puppin (2001, p.111) sinalizaram que
“gênero pode ser conceituado como igualdade ou equidade de ambos os sexos, seus direitos
públicos e privados, reconhecendo a participação da mulher na superação das desigualdades
sociais”.
Como visto, há séculos que a figura da mulher está inserida em um contexto de
estratificação social que a coloca como inferior ao homem. Para Estés (1994), a mulher fica
ancorada em crenças, mitos e símbolos, que muitas vezes propicia à vivência de entraves
psicológicos pela falta de valorização da sua intuição, intelecto e sentimentos, todos
resquícios do sentimento de inferioridade feminina em relação ao masculino. Essa exclusão
social contribui para a apoderação da fragilidade feminina pelo poder masculino. E esta
compreensão só é possível a partir da reflexão sobre gênero.
De acordo com Bourdieu (1999, p. 50-51), “a força simbólica é uma forma de poder
que se exerce sobre os corpos, diretamente, e como que por magia, em qualquer coação física.
[...] O trabalho de construção simbólica tende a excluir do universo do pensável e do factível
tudo que caracteriza pertencer ao outro gênero”. Assim, a dominação masculina resulta da
violência simbólica, suave, insensível e invisível a suas próprias vítimas, sendo exercida pela
comunicação e pelo próprio conhecimento.
No entanto, a ideia de que as mulheres são inferiores pode se reverter contra o
universo masculino. Segundo Bourdieu (1999, p. 63), “se as mulheres, submetidas a um
trabalho de socialização que tende a diminuí-las, a negá-las, fazem a aprendizagem das
virtudes negativas da abnegação, da resignação e do silêncio, os homens também estão
prisioneiros e, sem se aperceberem, vítimas”.
Neste sentido, se for trilhado pelo caminho da representação, é possível afirmar que,
homens e mulheres são personagens constituídas historicamente e que desenvolvem papéis de
acordo com o contexto em que são inseridos, com valores sociais e culturais de cada tempo e
lugar. Como a cultura é um fator relevante na constituição humana e um aspecto que longa
duração em termos de perspectivas de mudança, é compreensível a permanência de certos
hábitos que, depois de serem mudados, pareciam tão insignificantes e sem sentido e até
mesmo, ridículos para existirem durante tanto tempo. A mudança advém de uma série de
condições, econômicas, sociais, políticas, como fora na revolução cultural.
20
De acordo com Muraro; Puppin (2001), nas últimas décadas do século 20 as mulheres
emergiram como sujeitos sociais, históricos e econômicos. Em menos de trinta anos elas se
tornam a metade da população economicamente ativa mundial, na medida em que a sociedade
de consumo criou mais máquinas do que “machos”. Depois de oito mil anos de invisibilidade,
as mulheres começam a exercer um papel cada vez mais determinante nas estruturas políticas,
sociais e econômicas.
Assim, novas concepções são delineadas nas relações sexuais e sociais.
1.1 REPRESENTAÇÃO
22
A reflexão sobre gênero traz para si a necessidade de uma discussão sobre
representação, com o intuito de subsidiar teoricamente a representação feminina na minissérie
Capitu.
O conjunto de representações exibidos na mídia reflete uma tendência à
homogeneização e à reprodução de estereótipos. Aqui, parece importante tratar o conceito de
representação enquanto produção de significados construídos por meio da linguagem e
trocados entre os membros de uma cultura, considerada por Hall (1997) como os valores
compartilhados por um grupo ou sociedade. Para o autor, a representação é a prática que
possibilita conferir significado ao mundo e compartilhá-lo com o outro, levando-o a pertencer
à mesma cultura e a construir um mundo social.
As primeiras teorias sobre representações sociais surgiram em 1961, com a obra “A
psicanálise, sua imagem e seu público”, de Serge Moscovici, que hoje serve de base para
diversos trabalhos científicos e de análise no campo das ciências sociais. Jodelet também deu
sua contribuição a este tema com obras “As representações sociais” e “Loucuras e
representações sociais”, editadas em 2001 e 2005, respectivamente.
Pode-se afirmar que o comportamento social de pessoas pertencentes a determinados
grupos são percebidos a partir do estudo de representações, por ser uma forma de
conhecimento que se manifesta por meio de elementos cognitivos. Imagens, conceitos,
categorias e teorias socialmente elaboradas e compartilhadas contribuem para a construção de
uma realidade comum, pois possibilitam a comunicação entre as pessoas e modelam seu
comportamento (JODELET, 2005).
As práticas discursivas produzidas pela mídia são formas simbólicas que veiculam
noções existentes na sociedade, reproduz crenças, valores e identidades sociais, retrata
alterações históricas e contribui para a perpetuação ou transformação das relações sociais.
Esses contextos sociais são constitutivos da produção das formas simbólicas e dos modos
pelos quais essas formas são recebidas, entendidas e valorizadas, contribuindo para a sua
interpretação.
Assim, ao analisar produtos televisivos é preciso entender que nesse lugar em
específico, sujeitos sociais são constituídos e constitui-se para os meios de comunicação.
Focault (1993) reconhece que na mídia se constroem representações de direitos para exercer a
sexualidade feminina, mas ainda existem muitos elementos patriarcais nos discursos
televisivos, os quais colocam a mulher em uma condição permanente de culpa. Se por um
lado, na televisão as mulheres superaram muitos obstáculos, adquiriram liberdade sexual e
ampliaram a noção de amor feminino para além da vida doméstica, por outro, a herança
23
patriarcal ainda a prende ao ideal do amor romântico e ao pudor sexual. Baseada em
diferentes identidades e, ao mesmo tempo, agindo sobre a formação das diversas
personalidades da mulher contemporânea, as representações femininas refletem a
multiplicidade de comportamentos situados entre a independência e o ideal do amor
romântico.
Para Jodelet (2005), as representações sociais são “uma forma de conhecimento
socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a
construção de uma realidade comum a um conjunto social.” São leituras e interpretações
sobre a realidade, as quais se referem à dimensão da relação (comportamentos, práticas
sociais, discursos) dos sujeitos com a cultura e seu universo simbólico, e dos sujeitos entre si.
A sua origem está nas relações sociais e, portanto, é uma produção coletiva que opera entre o
individual e o coletivo. Dentro dessa perspectiva, as representações sociais são imagens
construídas sobre o real, pontos de vista elaborados a partir de uma determinada posição no
espaço social. Porém, não se pode incorrer no risco de reduzir a realidade à concepção do que
os sujeitos fazem dela. Portanto, a representação de um grupo social é uma representação
sobre a realidade. Neste contexto, insere-se também a categoria gênero.
Para Scott (1995), gênero está diretamente ligado às representações por ser
caracterizado como um elemento constitutivo das relações sociais fundada sobre as diferenças
percebidas, e implicam em quatro aspectos: 1) símbolos culturalmente disponíveis que
evocam representações simbólicas; 2) conceitos normativos que põem em evidência as
interpretações do sentido dos símbolos expressos nas doutrinas religiosas, educativas,
políticas e cientificas; 3) instituições e organização social; e 4) a identidade subjetiva. Dentro
disso, a mídia pode ser considerada uma instituição que normatiza o simbólico ao construir
representações femininas em uma minissérie.
Goffman (2003) teoriza a relação entre a representação de um eu e o respeito às
normas e costumes sociais. Trata as identidades como construção de um contato real cotidiano
e que pode fornecer importantes insights sobre como as pessoas tendem a representar um eu
nas mais diversas situações em que se encontram. O autor constrói sua reflexão tomando o
espaço social como cenário de uma representação teatral. Assim, o indivíduo estaria sempre
representando uma personagem dentro de um contexto e social determinado. Neste sentido, ao
representar uma personagem, o indivíduo busca convencer o público de que o cenário
apresentado constitui a realidade. Segundo Goffman (2003, p.22) “representação refere-se a
toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença
24
contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma
influência”.
Mas o que se pretende, segundo Goffman (2003, p.25), é estudar a crença do indivíduo
na impressão de realidade que busca dar àqueles que o estão observando. “Ao representar um
papel o indivíduo busca convencer seu público que a personagem que está ali naquele
momento possui os atributos que aparenta possuir. Que as coisas são geralmente o que
parecem ser”.
Com isso, pode-se firmar que as ideias que circulam sobre determinados temas não são
apenas reflexos da realidade, mas, são também a expressão concreta de uma relação social
que deve ser inserida em um contexto histórico que a torna compreensível. A esse respeito,
convém acrescentar que a produção simbólica e as representações que engendradas são
formas de expressão de poder que se exerce “essencialmente pelas vias puramente simbólicas
da comunicação e do conhecimento, ou mais precisamente, do desconhecimento, do
reconhecimento ou, em última instância, do sentimento (BOURDIEU, 1999, p.7). Esse é um
poder que é distribuído de forma desigual nas sociedades e que privilegia representações
sociais positivas de alguns grupos em detrimento de outros.
Apesar de não ser possível afirmar que existam limites precisos entre imagem e
representação, pode-se admitir a força afetiva e emocional da imagem, fazendo-a incidir sobre
a constituição de identidades, a motivação para comportamentos e formação da subjetividade.
Segundo Woodward (2000, p.17):
25
especial dos conteúdos simbólicos dessa realidade e da imagem que a sociedade e os
diferentes grupos sociais fazem de si mesmos e dos outros. Assim, apresentam e difundem
ideias, imagens e representações de uma visão de mundo que indicam maneiras adequadas de
comportamento, vivência, da noção de correto e de impróprio, diante de expectativas, assim
como a diferença entre o possível e o utópico, enfim, atuam, ao lado de outras instâncias,
como importantes construtores das subjetividades.
Representação é a maneira que a memória encontra para lembrar algo. A representação
midiática é a lembrança que temos de algo irreal, mas, de certa forma, nos remete a uma
realidade. A representação origina-se da ação transitiva de um sujeito que, ao advertir um
objeto, dele constrói uma imagem. Na atualidade, uma forma determinante de fixar e de
difundir a memória acontece por meio das representações midiáticas, que considera,
inicialmente, que tanto o processo referido como o produto de tal ação é chamada de
representação (SILVEIRA, 2001). Ao assistir ou presenciar algo uma cena de novela,
absorvemos e armazenamos informações que consideramos relevantes, as quais ficam
guardadas como representações até a hora em que serão ativadas novamente.
De acordo com (SANTOS, 2008) as dicotomias impostas pelos folhetins no tratamento
do texto narrativo, predominaram, em boa parte da história, da telenovela no Brasil: os ricos e
os pobres, os bons e os maus, o herói e os vilões, os mocinhos e os bandidos e,
principalmente, na idealização do modelo feminino e das questões de tratamento da realidade
psíquica das personagens femininas atravessadas, na maior parte das representações, pelo
modelo tradicionalmente patriarcal e preconceituoso que divide mulheres legítimas e
ilegítimas, decentes e indecentes, da vida e de família. Mesmo quando as telenovelas
assumiram conflitos que as aproximaram de temas políticos e sociais, as questões femininas
ficaram alijadas das tramas. As personagens femininas nas telenovelas e minisséries
brasileiras, em especial, do horário nobre, tendem ser representadas e definidas como vilã e
mocinha, cujo caráter é bem definido pelo autor e pelo público. Ou mulheres trabalhadoras,
provedoras do lar em algumas tramas, porém o seu perfil psicológico deve ser bem definido e
essas personagens devem se posicionar pelo lado do bem ou do mal.
Desta forma, para Mattos apud Sifuentes (2009), a concepção do gênero feminino não
trouxe as vantagens pretendidas pelas mulheres, ocorrendo uma masculinização do feminino:
as mulheres não parecem ter descoberto uma forma expressiva de vivenciar sua
condição, colocando em xeque os pontos centrais da dominação, mas sim, parecem
ter tomado o modelo masculino como o modelo a ser seguido. Desta maneira, não se
toca na estrutura da dominação, mas se luta para deixar de ser o pólo dominado para
passar a ser o pólo dominante (MATTOS apud SIFUENTES, 2009, p.158).
26
A teoria das Representações Sociais é, antes de tudo, uma teoria que se propõe
examinar como se formam os conhecimentos, como pensamos, a partir do que pensamos e
como fazemos isso. Entretanto, para compreender essa teoria é necessário entender o conceito
de representação. Guareschi apud Jovchelovitch (2000) afirma que todos os seres humanos
“representam” e têm a capacidade de pensar sobre objetos, falar sobre eles e até mesmo se
relacionar com eles sem a necessidade premente da presença física dos objetos materiais.
Ressalta-se que não existe separação entre o objeto conhecido, o sujeito que conhece e a
representação mental dele, como acreditava Descartes, que separou o mundo material do
mundo psíquico de forma bastante enfática.
Segundo o autor, é impossível conhecer sem representações, e estas implicam
dimensões simbólicas e sociais. Para tornar mais claro esse ponto, o autor cita Guareschi apud
Jovchelovitch (2000, p.28) que afirma que “a partir de Piaget, Vygotsky e Moscovici, pode-se
ver que o status da representação é, ao mesmo tempo, epistêmico, social e pessoal; e a análise
dessas três dimensões pode explicar por que as representações não são uma cópia do mundo lá
fora, mas uma construção simbólica dele”. Ou seja, é por meio das representações que
construímos, reconstruímos e produzimos sentido para o mundo material e imaterial.
27
2 TELEVISÃO
29
Em 1960 chegou ao Brasil o videotape para atender à necessidade de mostrar a
inauguração da nova capital, Brasília, principalmente às duas principais metrópoles do país,
Rio de Janeiro e São Paulo. O videotape foi importante para a construção das redes de TV,
pois as emissoras tinham apenas que transmitir o que já estava gravado e, comprando
programas de sucesso não gastavam recursos financeiros com produções locais. Essas redes
foram criadas a partir do eixo Rio-São Paulo, já que as emissoras dessas cidades
concentravam as melhores equipes técnicas e artísticas da época. Infere-se que nessa época
foram criadas duas importantes emissoras: a TV Cultura e a TV Excelsior. Em 1965 entrou no
ar no Rio de Janeiro, a TV Globo, que adquiriu a TV Paulista, em 1966. No ano seguinte foi
inaugurada a TV Bandeirantes. A construção de redes de TV foi impulsionada em 1969
quando o governo militar inaugurou a Rede Básica de Microondas que interligava diversas
regiões do Brasil através de sistemas de telefonia e transmissões de TV e rádio. Os programas
ao vivo podiam ser transmitidos em tempo real para diversas partes do país (BORELLI;
PRIOLLI, 2000). Então, em 1969, o Brasil recebeu as primeiras imagens via satélite e a TV
Globo iniciou suas transmissões em rede com o Jornal Nacional.
A primeira novela em cores, o Bem Amado, de Dias Gomes, foi exibida pela Rede
Globo em 1973. Três anos após, em 1976, o apresentador de TV, Sílvio Santos, comprou o
Canal 11 no Rio de Janeiro e inaugurou em 1981 o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT),
com 18 emissoras. Nesta época a Rede Globo já contava com emissoras espalhadas em várias
partes do país.
A cobertura da televisão, em nível nacional, foi incrementada em 1985, com a
introdução dos satélites Brasilsat. Assim, o controle de venda dos programas passou a ser
mais rígido, já que as emissoras geradoras passaram a exigir fidelização das emissoras
compradoras, o que fez com que somente poucas redes de TV aumentassem seu poder no
mercado das telecomunicações, afunilando ainda mais a existência das mesmas (BORELLI;
PRIOLLI, 2000).
Atualmente, há seis redes de TV abertas no país: Globo, SBT, Record, Rede TV,
Bandeirantes e Cultura (pública) e diversos canais de TV. Só na cidade de São Paulo existem
20 e no Rio de Janeiro, sete canais. A maioria das emissoras pertence a empresas privadas
que receberam concessões do Estado para entrarem em operação com as transmissões. O
Brasil possui uma emissora pública, a TV Brasil, localizada no Rio de Janeiro, que se destaca
frente às demais com uma programação voltada basicamente ao telejornalismo, debates,
entrevistas e programas educativos.
30
Por outro lado, as telenovelas, os programas jornalísticos e de variedades são os
formatos mais exibidos pela maioria das emissoras abertas. No entanto, essas emissoras
concentram o maior número de espectadores, que de acordo com os dados apresentados por
Pellegrini (1999), em 2000 estavam na casa dos 160 milhões.
Para Figueiredo (2003) a primeira narrativa seriada para a televisão no Brasil, ainda
sem ser reconhecida como novela na década de 50, Sua vida me pertence, foi ao ar pela TV
Tupi em dezembro de 1951, escrita por Walter Foster, que também participava como herói da
história ao lado de Vida Alves, a heroína. A novela exibiu 20 capítulos, veiculados duas vezes
por semana, com duração de 20 minutos. O sucesso da novela foi reconhecido que houve a
necessidade de sua permanência diária na programação da TV. O então diretor artístico da TV
Excelsior, Edson Leite, importou da Argentina, em 1963, a telenovela Ocupado, exibida no
canal 9 de São Paulo e canal 2 no Rio de Janeiro.
Pode-se considerar que o período da Ditadura Militar marcou o impulso da televisão
brasileira. A TV Globo, a partir de subsídios do governo, foi inaugurada em 1966 e, e, poucos
anos, a emissora já possuía larga audiência, pois direcionou sua programação às camadas
socioeconômicas mais baixas da população, com telenovelas, programas de concursos e
filmes importados dos Estados Unidos. Segundo Mattos (2002, p.96), “a consolidação da TV
Globo como Rede Nacional começou em 1969, quando seus programas passaram a ser
transmitidos simultaneamente em várias cidades através de microondas”.
De acordo com Távola apud Mattos (2002, p.96):
um dos fatores do crescimento da Rede Globo foi o de jamais haver desdenhado sua
relação com o mercado real. Se a classe C constitui a base da audiência, nela se dá a
decisão majoritária; também em sua função devem ser montados os padrões de
produção e mercadológicos. Só depois de obtido esse amálgama poder-se-á cogitar
do atingimento dos padrões artístico e cultural.
31
A censura aos veículos de comunicação, sobretudo durante a época da ditadura militar,
além de facilitar a manipulação da opinião pública limitou o crescimento da produção adotada
pelas próprias emissoras. Mesmo assim, foi produzida a primeira novela colorida brasileira,
“O Bem Amado”, com a direção de Régis Cardoso.
A televisão passou a ser o veículo de comunicação que oferecia entretenimento e
informação. Além das novelas, que movimentava as conversas entre amigos e vizinhos,
também as notícias internacionais, como a chegada do ser humano na lua em 1968, em preto e
branco, a Festa da Uva, em Caxias do Sul em 1972, primeira transmissão oficial em cores.
A partir de então, a televisão passou a dar mais espaço ao jornalismo e consolidou o
gênero telenovela. As produções surgiram dos folhetins, passando de maneira marcante pelo
rádio até se adaptarem ao formato televisivo atual, com tramas que retratam o cotidiano da
sociedade brasileira, próximas da realidade do público, de fácil compreensão, linguagem
simples e acessível à maior parte da população. Por sua vez, a partir da telenovela,
originaram-se outros formatos como os seriados e as minisséries (Figueiredo, 2003).
Para Maciel (1995), devido aos ruídos a televisão possui uma característica dispersiva.
Além do mais, o espetáculo televisão torna o veículo superficial exigindo um ritmo constante
para fixar a atenção do telespectador. Para se tirar maior aproveitamento da televisão é preciso
buscar o equilíbrio entre a informação e emoção e envolver o público pela sedução. De acordo
com Paiva (2006), a televisão procura saciar o apetite do telespectador e realimenta a sua
eterna avidez pelo caminho mais curto, utilizando-se de formatos, citações, adaptações,
releituras e a intertextualidade de meios, gêneros e linguagens.
De acordo com Figueiredo (2003, p.20),
Por outro lado, Stam (2006, p.143) compara o cinema à televisão como dois sistemas
vizinhos, pois os dois veículos se utilizam da linguagem audiovisual, apesar do emprego
diferenciado do uso de tecnologias para a sua transmissão, dos diferentes públicos e formas de
recepção:
32
As narrativas televisivas têm como objetivo entreter, informar e educar. De acordo
com Figueiredo (2003), a imagem, desde a fotografia até a televisão, sempre foi considerada
um objeto importante na formação das fantasias e do imaginário dos seres humanos. Muitas
vezes, as narrativas audiovisuais antecipam a revolução dos costumes.
Deste modo, no cinema, como ponto fundamental para o sucesso dos meios massivos, está
a narrativa, pois, “na ficção televisual abriga estruturas antigas, já consagradas em outras artes,
que convivem com formas novas e são revitalizadas por novos modos de recepção e veiculação”
(BALOGH, 2002, p.52). Cabe destacar que as estruturas colaboram no entendimento da
interpretação da história, ou seja, para que um objeto cultural constitua uma narrativa é necessário
ter um começo, meio e fim e, assim obter um efeito de sentido e um esquema de personagens: o
protagonista versus antagonista, o bandido versus o mocinho, o detetive versus o criminoso, além
das personagens qualificadas para as ações que irão realizar ao longo da história, por exemplo:
bandido malvado e trapaceiro versus mocinho bondoso e lutador, ou detetive durão versus
bandido malvado.
Comparatto (1983) observa que a linguagem audiovisual, paralela à linguagem
cinematográfica, introduziu uma nova concepção de tempo e espaço na reprodução do mundo.
É possível voltar ao passado com os flash backs e revelar o futuro, em uma fronteira que
separa realidade e ficção: “Ficção é uma realidade inventada” que vem do latim Fictione, que
significa “imaginar, compor, modelar, inventar” (p.76).
Para Balogh (2002), o que se rotula como ficção televisual é o resultado de várias
atividades culturais, cuja origem se perde no tempo. Os formatos ficcionais da televisão são
herdeiros de formas narrativas e dramaturgias prévias como a narrativa oral, literária, radiofônica,
teatral, pictórica, fílmica e mítica, além da literária que é a mais consagrada e bem dotada de
instrumentos de análise. Nesse sentido, o termo ficção está entrelaçado ao termo literatura em um
universo que muitas análises quase se confundem. Apesar de que alguns estudiosos admitem o
mundo real sendo a matriz do ficcional, a autora pondera que a ficção não se refere de modo
imediato ao mundo real, sendo dotada de uma realidade própria.
como é óbvia, essa convivência com o real já existia na literatura e no cinema, nas
biografias romanceadas e nos docudramas, entre outros; é; no entanto, na TV, que as
formas de convivência do real com o ficcional adquirem aspectos mais ambíguos,
interferindo de forma clara nos modos de expressão ficcional, sobretudo no formato
33
novela. No tocante à recepção, na TV podemos ver os artistas chegando de
limusines, vestindo grifes famosas e ostentando jóias de valor inestimável,
tranquilamente sentados no sofá de roupas caseiras e chinelos surrados. O cenário
mais cintilante se mescla com o cotidiano mais chocho do mundo (BALOGH, 2002,
p. 37-38).
Assim, os personagens são responsáveis por guiar a narrativa. Puhl (2001) cita que a
palavra personagem deriva de persona, a máscara do teatro romano que esconde o caráter
arredio dos personagens. A autora, com base nos estudos de Marcos Rey, cita que o
personagem é o elo entre o autor e o público, constituindo a alma das histórias. O personagem
é o responsável pelos diálogos, além da história. A relação do público com os personagens
ficcionais está na relação com os atores reais, pois assim é possível reconhecer as ações e
34
conflitos com os quais o telespectador ou leitor entra em contato no momento em que
visualiza a narrativa.
Para Reis; Lopes (1988) o personagem é a categoria fundamental da narrativa, seja na
narrativa literária, no cinema, na história em quadrinhos, no folhetim ou na telenovela, sendo
considerado o eixo no qual gira a ação. Assim, o personagem é uma unidade difusa de
significações construída progressivamente pela narrativa formada pela soma das informações
sobre o que ela é e faz. No entanto, Reuter (1996, p. 57) considera que “toda história é história
das personagens”, pois elas determinam as ações vivenciando-as dando origem a um sentido.
Para refinar a análise das personagens na narrativa é preciso levar em consideração (seu
“fazer” e seu “ser”), como também utilizar critérios que permitam mostrar suas diferenças e
sua hierarquia.
2.1 MINISSÉRIES
35
Para Figueiredo (2003), as minisséries são reconhecidas como um caminho
comprometido com a obra e com o público por meio do uso técnico de produção e pela
dimensão social. Através da ficção, a minissérie gera conhecimento sobre o tempo histórico,
conduzindo o telespectador a repensar a própria realidade. Paiva (2007) compartilha com esse
pensamento ao afirmar que as minisséries brasileiras são uma modalidade arte-técnica que,
por meio de rigorosas pesquisas e modulação de narrativa, mesclam imaginação ficcional e
realidade histórica.
De acordo com Paternostro (1999), além da produção de minisséries pela rede Globo de
televisão, outras emissoras como Manchete, Bandeirantes, Rede Vida e Rede Record também
produziam minisséries. Entretanto, a Globo é a emissora que mais se preocupa com as adaptações
literárias e romances transcodificados nas minisséries, sobretudo de autores nacionais,
principalmente na época de ditadura militar, quando existia a exaltação ao exacerbado
nacionalismo. A produção das minisséries ao longo das décadas refletiu diretamente o momento
histórico, social e político pelo qual passava o Brasil: fim da ditadura militar, mudança de
costumes e diminuição da censura foram alguns dos temas mais explorados.
A primeira minissérie brasileira a ser exibida foi Lampião e Maria Bonita, em 1982,
pela Rede Globo de Televisão. Isso aconteceu depois da experiência com outras obras de
ficção televisiva seriada, precursoras deste novo formato: as teleficções chamadas de novelas
das dez, os telerromances da TV Cultura e as séries brasileiras, que englobavam os seriados
Malu Mulher (1979 a 1980, Daniel Filho), Carga Pesada (1979 a 1981, Gonzaga Blota e
Milton Gonçalves) e Plantão de Polícia (1979 a 1981, Marcos Paulo, José Carlos Piéri, Jardel
Mello, Luís Antônio Piá, Antônio Carlos Fontoura). De acordo com Pallottini (1998), o
sucesso de Lampião e Maria Bonita garantiu o investimento no novo formato, que viria a
ocupar o horário nobre da televisão (a partir das 22 horas).
Segundo o site Memória Globo5, até fevereiro de 2012 a emissora produziu 86
minisséries, sendo 36 adaptações de textos literários, a maioria de autores dos séculos 19 e 20.
Com isso, a emissora se consolida como uma poderosa agente de construção de identidade
nacional, com produções que refletem um olhar na essência do fazer ficcional caracterizado pela
transformação da experiência empírica e mudança.
Em menos de dois anos após o lançamento de minisséries no Brasil, os autores
começaram a adaptar obras da literatura brasileira (1984), como Jorge Amado e Érico
5
Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,5273-p-19368,00.html.
36
Veríssimo. Tanto a história quanto a literatura possuem um papel importante na composição
das tramas das minisséries porque ambas contribuem na construção de representações sobre a
população brasileira. Na década de 1990 a sociedade acabava de sair da ditadura militar,
período em que as produções culturais foram paralisadas e aprimorou uma mova linguagem
televisiva, amplamente experimental, transgredindo o discurso e as técnicas tradicionais.
Figueiredo (2003) diz que a história da minissérie no Brasil, na década de 1980, inicia em
decorrência da falência da TV Tupi (1981). Com isso, surgia um novo cenário televisivo nacional
com a prevalência dos programas de auditório na TV Manchete (1983), mas que também
enfrentaram a falência. As telenovelas também não alcançavam mais os patamares dos 60% ou
70% de audiência e o formato minissérie apareceu como uma alternativa. De acordo com o autor,
a minissérie foi confirmada como formato mais promissor para captar o interesse do telespectador
no horário nobre por não se tratar de uma obra aberta como a novela e por suas características de
produção.
37
Hoje, as minisséries apresentam moldes de obra fechada, cuja trama já estava definida
e escrita. Sua extensão varia entre cinco e 25 capítulos ou mais, estes interdependentes entre
si, pois a serialidade que lhe marca solicita a compreensão da história a partir desta relação,
uma vez que sua unidade se verifica na totalidade de seus capítulos e pelo assunto abordado
ao logo do programa. “A minissérie é, na verdade, uma mininovela – história curta mostrada
em episódios, em seqüência, cujo conhecimento total é necessário [...]. A minissérie é uma
ficção televisiva que se fecha, clausurando totalmente a história” (PALLOTTINI, 1998, p.
53).
Para Balogh (2002), minisséries são produtos diferenciados dentro dos formatos
ficcionais da televisão por características como o horário de veiculação e o público para o
qual são destinadas. Neste sentido, colaboram para que seja feita uma produção mais
elaborada em relação às séries e novelas e que os índices de audiência não sejam cruciais para
o desenvolvimento e continuação da obra. Por ser menos esquemáticas que as demais obras
ficcionais da televisão e ter uma estrutura praticamente pronta antes de ir ao ar, a minissérie
pode se tornar “um espaço para testar os limites do televisual e enfrentar o desafio de inovar a
linguagem ou ultrapassar as próprias servidões da linguagem televisual” (BALOGH, 2002,
p.17).
Quanto à narrativa, as minisséries se desenvolvem a partir de um único conflito bem
definido e que será desenvolvido ao longo da sua exibição, com acréscimo de de
acontecimentos menores. Dessa maneira, pode-se afirmar que o número de tramas, subtramas
e sets ou locações são menores em relação à telenovela (formato próximo da minissérie, como
a microssérie). Assim, tem-se um acontecimento que aciona as engrenagens que movem a
história, envolvendo seu protagonista e, consequentemente, os personagens que tem relação
direta com as peripécias que irá sofrer ao longo da trama.
Com relação ao capítulo, a minissérie apresenta configuração semelhante à da
telenovela, geralmente dividida em três blocos intercalados por pausas comerciais, cuja
ligação se dá pelo gancho, que está no princípio do capítulo e que mantém progressão
narrativa com o capítulo anterior e as demais partes, assim como no final da sua exibição
diária, criando a expectativa para o que virá depois. Apresenta-se, dessa forma, uma
modulação, uma progressão narrativa entre altos e baixos para garantir o seu ritmo e
andamento por meio da apresentação e da solução de problemas. Ainda na estrutura geral do
capítulo, percebe-se a presença da vinheta e dos créditos após o primeiro bloco a ao no final
do último bloco.
38
Figueiredo (2003) considera o formato minissérie como uma maneira positiva de levar
cultura ao povo com rotinas intensas, contrapondo as oscilações das novelas. Neste sentido, a
minissérie seria uma forma mais séria e responsável com suas histórias para com os
telespectadores. Essa categoria televisiva detém maior qualidade artística e está mais próxima da
função poética do que os demais formatos ficcionais, porém, pouco recorre ao recurso da estética
da repetição. A estrutura da minissérie a liberta das invasões ao texto ficcional das novelas, do
merchandising político, social e o comercial. O autor afirma que os próprios diretores, autores e
atores reconhecem a minissérie como um caminho comprometido com a obra e com o público por
meio de técnicas de produção e pela dimensão social, fatores que traduzem a sua qualidade
artística, além de gerar um conhecimento sobre o tempo histórico e conduzir o telespectador para
repensar a própria realidade.
Para Balogh (2002), as minisséries são fruto de longa pesquisa prévia de seus
idealizadores. Por outro lado, também permite que as etapas de produção sejam bem
elaboradas, o que confere à minissérie uma qualidade técnica a uma narrativa superior à
maioria dos outros produtos televisuais. Neste sentido, tem um pouco mais de proteção diante
do ritmo acelerado da produção industrial das telenovelas. Assim, o formato minissérie
contribui para a adaptação de assuntos mais densos, como biografias, acontecimentos
históricos e romances, como é o caso da minissérie Capitu, objeto de pesquisa deste trabalho
monográfico. A minissérie faz parte do projeto Quadrante, cujo objetivo é percorrer todo o
país de norte a sul, leste e oeste, para adaptar obras literárias e transformá-las em séries curtas
de até cinco capítulos. O projeto foi constituído pelas obras: A Pedra do Reino, de Ariano
Suassuna; Dois Irmãos, de Milton Hatoum; Dançar Tango em Porto Alegre, de Sérgio Faraco;
e Dom Casmurro, clássico de Machado de Assis.
A primeira minissérie do projeto, A Pedra do Reino, no decorrer de seus cinco
capítulos alcançou uma média de 12 pontos no Ibope, índice considerado baixo para os
padrões do horário. Na ocasião, a Globo ficou na terceira colocação do Ibope, ficando atrás da
Record e do SBT:
a microssérie dirigida por Luiz Fernando Carvalho estreou com média de 12 pontos
no Ibope. No horário, a Record alcançou o topo por 31 minutos com a novela Vidas
Opostas. Na quarta-feira [segundo dia de exibição], registrou apenas 9,4 pontos, 2,6
a menos do que na estreia. No horário, a Record voltou a ser líder, com 13,6, com
filme O Guru do Sexo6.
6
Disponível em: <http://exclusivo.terra.com.br/interna/0,,OI1690342-EI1118,00.html>.
39
Capitu, a segunda minissérie exibida pelo projeto Quadrante, conseguiu alavancar a
audiência. A média dos programas exibidos pelo projeto Quadrante ficou em 15 pontos,
superando as emissoras concorrentes do mesmo horário. Em sua estreia, atingiu 17 pontos,
próxima às emissoras Record e SBT7.
O idealizador do projeto Quadrante é o cineasta e diretor de televisão, o carioca Luiz
Fernando de Carvalho, formado em letras e arquitetura. Atuou como diretor assistente de
diversas minisséries, como “O Tempo e o Vento” e “Grande Sertão: veredas”, escreveu e
dirigiu o curta metragem “À espera”, baseado no livro “Fragmentos de um discurso amoroso”,
de Roland Barthes, obra que recebeu os prêmios de melhor filme, atriz e fotografia no Festival
de Gramado, melhor curta metragem (Concha de Oro) no Festival de San Sebastian da
Espanha e o prêmio especial do júri no Festival de Ste Therése do Canadá.
Na televisão, entre os principais trabalhos de Fernando de Carvalho, estão a minissérie
“Riacho Doce” e as novelas “Pedra sobre pedra”, “Renascer”, “O rei do gado”, “Irmãos
Coragem” e “Esperança”. Seu primeiro longa metragem foi “Lavoura Arcaica”, com a
participação dos atores Selton Mello, Raul Cortez e Simone Spoladore. Para manter fidelidade
ao estilo narrativo revolucionário proposta por Raduan Nassar, produziu o filme sem roteiro
prévio, apoiado apenas no texto do livro e na preparação dos atores em uma fazenda por
quatro meses.
Enquanto finalizava o longa metragem, em 2001, foi diretor da minissérie “Os Maias”,
baseada no romance de Eça de Queirós. Quatro anos depois, em 2005, produziu as duas
edições de “Hoje é dia de Maria”, que também possuía uma linguagem inovadora para uma
minissérie de televisão. Em 2007, foi um dos propulsores do projeto Quadrante e produziu as
quatro minisséries especiais para a Rede Globo.
Nota-se, portanto, que na sua bagagem, Luiz Fernando Carvalho carrega uma maneira
inusitada e um estilo próprio de produzir narrativas audiovisuais. Construiu uma proposta de
elaboração de produtos audiovisuais diferenciada, a qual promoveu uma revisão das tradições
históricas e mitológicas percorrendo os símbolos do país e da cultura brasileira. A partir disso,
a televisão, como veículo de comunicação de massa, chegou a uma audiência ampla. Assim,
mostrou que as diferentes culturas são capazes de conviver juntas.
7
Disponível em:<http://cultureba.com.br/2008/12/16/%E2%80%9Ccapitu%E2%80%9D-da-mais-audiencia-
que-%E2%80%9Capedra-do-reino%E2%80%9D/>.
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Segundo Candido (2007, p.53-54), “o enredo existe através das personagens; as
personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do
romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam”.
Sendo assim,
a Capitu de uma fita de cinema nunca seria essencialmente olhos e cabelos, e nos
imporia necessariamente todo o mais, inclusive pés e cotovelos. Essa definição
física completa imposta pelo cinema reduz a quase nada a liberdade do espectador
nesse terreno. Num outro, porém, o da definição psicológica, o filme moderno pode
assegurar ao consumidor de personagens uma liberdade bem maior do que a
concedida pelo romance tradicional. A nitidez espiritual das personagens deste
último impõe-se tanto quanto a presença física nos filmes; ao passo que em muitas
obras cinematográficas recentes e, de maneira virtual, em grande número de
películas mais antigas, as personagens escapam às operações ordenadoras da ficção
e permanecem ricas de uma indeterminação psicológica que as aproxima
singularmente do mistério em que banham as criaturas da realidade (CANDIDO,
2007, p.108).
A produção diferencia-se dos padrões televisivos brasileiros por destoar das linhas
convencionais em toda a sua produção e estética, inclusive no seu reflexo junto aos
espectadores. Capitu se desprende dos padrões da obra original e promove diálogos com o
público, mesclando passado e presente com uma estética que mantém o texto original
machadiano.
A minissérie foi escrita por Euclydes Marinho, com a colaboração de Daniel Piza,
Luís Alberto de Abreu e Edna Palatnik e exibida pela Rede Globo de Televisão, empresa
hegemônica no setor de TV aberta que possui uma grade que compreende desde telenovelas
até programações voltadas a um público segmentado. Esta minissérie pode ser considerada
uma transcodificação da obra Dom Casmurro, pois utiliza um código como base (literário)
para a produção de outro código (audiovisual). De acordo com Comparatto (1983), a
adaptação do código literário ficcional para a linguagem audiovisual é uma transcrição de
linguagem que altera o suporte linguístico utilizado para contar a mesma história.
Isso significa que a recriação da obra Dom Casmurro leva em consideração a
linguagem própria do meio para o qual se está produzindo, como é o caso de Capitu, adaptada
para a televisão. Como uma personagem forte, a Capitu perpassa do final do século 19 para o
início do século 21, saindo do livro para as telas, com uma intensidade de público, não
somente pelo cenário, mas por tratar de um tema atual.
41
3 CAPITU REPRESENTA A MULHER NA ATUALIDADE?
Este capítulo objetiva analisar se Capitu da minissérie que leva o mesmo nome e que
foi ao ar em dezembro de 2008, pela Rede Globo, representa a mulher brasileira na
atualidade, considerando que a personagem criada por Machado de Assis na obra Dom
Casmurro, escrita no final do século 19, estava à frente de seu tempo por romper padrões
sociais e culturais da época.
Se Capitu estava à frente de seu tempo diante das condições impostas pela sociedade
patriarcal, poderia esta personagem representar a mulher brasileira na atualidade? Este
questionamento parecia relevante para empreender uma pesquisa.
Como já conhecia o romance desde aos 13 anos, a partir das aulas de literatura,
embora na época não tenha suscitado inquietações referentes à condição feminina, quando a
minissérie foi ao ar percebi a força feminina que Capitu representava. A partir de então
despertou uma série de questionamentos sobre a autonomia e ousadia da personagem e que
suscitaram reflexões sobre a condição feminina na atualidade.
Ao iniciar o direcionamento a um tema de pesquisa para o Trabalho de Conclusão de
Curso, logo pensei em revisitar meus questionamentos da condição feminina representada na
personagem Capitu, cujas imagens passadas na minissérie, transmitidas pela Rede Globo,
ainda ecoavam no meu pensamento. Por isso, pautada nesta minissérie, queria estabelecer um
elo de identificação de características comuns entre a personagem Capitu e a mulher atual, em
especial no que se refere à dominação masculina. A questão de gênero parecia ser um
caminho possível para estabelecer um diálogo entre a personagem Capitu e a mulher na
atualidade.
Para tanto, foi necessário estudar teoricamente autores como Bourdieu (1999),
Beauvoir (1970), Butler (2003), Muraro e Puppin (2001) e Del Priore (1997). Assim, de
acordo com Minayo (1994, p.19), para “trilhar a carreira de pesquisador, temos de nos
aprofundar nas obras dos diferentes autores que trabalham os temas que nos preocupam”.
Imbuída dessa preocupação, no intuito de compreender uma problemática relacionada à
questão de gênero, a partir da minissérie transmitida pela televisão, iniciei a pesquisa da
pesquisa a partir de uma busca na internet.
Maldonado; Bonin (2008, p.31) destaca que “a pesquisa da pesquisa é literalmente o
revisitar, interessado e reflexivo, das pesquisas já realizadas sobre o tema/problema a ser
investigado, ou próximos a ele”. Isso significa adentrar nos espaços, congressos e grupos de
42
estudos que trazem pesquisas referentes ao tema gênero, representação e televisão, deparando-
me com estudos de programas de graduação, pós-graduação, artigos, dissertação de mestrado
e tese de doutorado. Muitos destes estudos não estão publicados em livros, mas encontram-se
disponíveis na internet.
Em consultas a diversos materiais disponíveis em sites e repositórios referências como
Intercom, Scielo e Google Scholar, identifiquei que a partir do momento em que a minissérie
foi transmitida, em 2008, houve uma vasta produção acadêmica relacionada à temática,
principalmente a transposição da narrativa literária para a audiovisual, elementos
contemporâneos presentes na minissérie e adaptações visuais, mudanças e inovação referente
à linguagem, estética e imagem da minissérie.
Como etapa seguinte, realizei pesquisa exploratória, a qual “implica um movimento de
aproximação à concretude do objeto empírico, buscando perceber seus contornos, suas
especificidades, singularidades” (MALDONADO; BONIN, 2008, p.35). Reuni notas,
resumos e fichamentos, de acordo com os objetivos estabelecidos. Por isso, adquiri uma cópia
do DVD produzido em 2008 pela Globo Marcas, por se tratar de um material completo da
minissérie, sem recortes. A título de informação, tive dificuldades para conseguir o DVD
porque já havia se passado três anos da produção da minissérie e, mesmo na internet, o
material estava em falta. Assim, na segunda metade de 2011, momento em que defini meu
objeto de pesquisa, finalmente encontrei-o nas Livrarias Curitiba, em Curitiba.
O recorte deste trabalho monográfico, pautado na questão de gênero, foi reforçado
durante o desenvolvimento do projeto de pesquisa, no primeiro semestre de 2012.
Iniciei o estudo do DVD Capitu a partir do exercício de “Leitura Flutuante”,
denominado por Minayo (2008), que consiste em estar em contato intenso com o material que
se pretende avaliar. Dessa forma, o contato passa progressivamente a ser mais sugestivo,
ultrapassando a sensação do caos inicial provocado por 300 minutos da minissérie e mapeei
conteúdos pertinentes à análise, observando detalhes relativos à representação de gênero.
Dessa forma, ao assistir várias vezes o DVD da minissérie Capitu, selecionei,
inicialmente, nove cenas para serem analisadas, utilizando os indicativos da metodologia
qualitativa, que trabalha com um universo de significados e relações de valores
representativos (MINAYO, 1994). Destas, após uma análise das possibilidades de
interrrelação dos aspectos que aproximam a personagem de ficção Capitu à mulher na
atualidade, foram escolhidas seis cenas sob a perspectiva gênero.
Assim, as cenas, além de destacar valores da sociedade patriarcal do século 19,
também evidenciam a resistência feminina em se subjugar à dominação masculina,
43
características da mulher contemporânea, como a liberdade, autonomia, independência e
ousadia, de acordo com as reflexões de Bourdieu (1999), Beauvoir (1970), Del Priore (1997)
e Goldenberg (2007), já discutidos no capítulo Gênero. Relembrando que de acordo com
Reuter (1996), ao se falar de personagens em uma narrativa é preciso levar em consideração o
seu “fazer” o seu “ser”, além de utilizar critérios que permitam contextualizar suas diferenças
e hierarquias.
De acordo com Beauvoir (1970), a mulher não nasce mulher. A mulher é uma
construção sócio-histórica que está além dos atributos físicos e biológicos. Butler (2003)
recuperou vários autores clássicos como a própria Beauvoir (1970) para desconstruir o
conceito de gênero cunhado da teoria feminista, a qual naturaliza o sexo como definidor das
diferenças entre homem e mulher e reconstruí-lo na perspectiva cultural. De acordo com
Butler (2003, p.26), o sexo é natural e o gênero é construído: “nesse caso, não a biologia, mas
a cultura se torna o destino”.
Para Scott (1995, p.3), enquanto categoria de análise, gênero, se refere “às origens
exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres”. Sendo assim,
gênero é uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. Os estudos de gênero não
pressupõem representações a partir da constituição biológica dos seres humanos, mas sim, por
meio da construção social de significados. Neste sentido, há possibilidades de romper com
essas ideias construídas precipitadamente sobre a identidade feminina. Pode-se inferir,
portanto, que Capitu viveu este conflito e batalhou por uma trajetória de vida construída a
partir de seus próprios desejos e valores.
Assim, conforme a faixa 1 recortada do DVD da minissérie (em anexo), a primeira
cena selecionada para análise tem como pano de fundo o enterro de Escobar, amigo de
Bentinho. O destaque é a chegada de Capitu ao velório, que cumprimenta a esposa enlutada,
Sancha, e para diante o cadáver de Escobar, olha-o fixamente e chora por sua morte.
Bentinho, ao observar os olhos da esposa fitando Escobar, deduziu que ela havia lhe traído
com o seu melhor amigo.
Importante ressaltar que apesar da minissérie Capitu ter sido produzida em 2008, a
história manteve-se fiel ao contexto da narrativa do livro, no século 19. De acordo com
Figueiredo (2003), já abordado no capítulo Televisão, por meio da ficção, as minisséries
geram conhecimento sobre o seu tempo histórico, conduzindo o telespectador repensar a
própria realidade. Assim, por exemplo, o telespectador tem a possibilidade de entender de que
forma exclusões e dominações históricas sustentam situações de desigualdades sociais,
principalmente relacionados a alguns grupos da sociedade.
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Dessa forma, a mulher do século 19 estava submetida a um conjunto de valores da
sociedade patriarcal e que exercia o controle sobre sua vida desde o seu nascimento (DEL
PRIORE, 1997). O triunfo do patriarcado não foi um acaso, nem o resultado de uma
revolução violenta, apenas privilégio biológico. A diferença biológica evidente entre os sexos
foi motivo de rebaixamento em todas as formas de desenvolvimento feminino na sociedade.
Isso porque as mulheres eram submetidas à dominação masculina (BOURDIEU, 1999), vista
como outro ser, o segundo sexo.
No contexto de século 19, a personagem Capitu ao destoar do comportamento da
sociedade patriarcal e expressar com espontaneidade o seu sentimento no velório de Escobar,
despertou ciúme e desconfiança em Bentinho, que a julgou com os valores sociais da época
idealizados pelo pensamento machista. As lágrimas que Capitu derramou pela morte de
Escobar balizaram a representação social da diferença de gênero, apontada por Beauvoir
(1970), pois, com o choro pela morte de outro homem, visto como sinônimo de traição pela
sociedade da época, Bentinho teve a certeza da traição de Capitu.
As representações sociais, compreendidas como fruto de uma produção de
comportamentos e implicações que se referem tanto a valores como a conceitos em um estilo
de discurso próprio, destinavam-se à interpretação e à construção da realidade feminina sob a
ótica masculinizada. Para Jodelet (2002), a representação social é uma forma de
conhecimento elaborada socialmente e compartilhada, com um objetivo prático e que
contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Neste sentido,
representado pela televisão, Bentinho estava inserido no contexto de dominação masculina
que lhe deu autonomia para interpretar o choro de Capitu como uma prova da traição
imaginada por ele. Isso porque, de acordo com os valores que submetem a mulher ao marido,
não seria aceitável, em nenhuma situação, que a esposa chore ou sofra por outro homem, sob
o risco de indeferir a constituição do casamento. Na relação conjugal, a mulher perde a
liberdade e torna-se súdita do marido em uma união monogâmica e indissolúvel (RUSSEL
apud LINS, 1997). Importante relembrar que é por meio da ficção que a minissérie conduz o
telespectador a repensar a própria realidade por meio da inserção dos elementos da ficção no
seu cotidiano, conforme os apontamentos de Costa (2002).
Capitu e Bentinho estavam casados sob os preceitos religiosos e como tal, teriam que
levar a conduta moral instituída da época, ou seja, uma relação vertical de poder e
subserviência. A dúvida de Bentinho sobre o grau de intimidade de Capitu e Escobar foi um
indicativo suficiente para ter uma certeza presumida sobre a traição.
Nesta cena, Capitu bem que poderia ter agido de acordo com os padrões da época e
45
evitado esta desconfiança que lhe causou dissabores, mas seu espírito ousado permitiu
expressar livremente suas emoções por alguém que não era seu marido. Tais atitudes não
eram permitidas dentro dos princípios machistas, pois a virilidade masculina poderia ser
afetada. Por uma questão de honra, Capitu deveria ser punida porque as regras eram rígidas
para as mulheres. Afinal, as mulheres eram regidas pela dominação masculina, a qual atribuía
ao feminino o desejo de traição.
Stuart Mill (1869) parte do mesmo princípio que Beauvoir (1970), ao afirmar que a
desigualdade de direitos entre homens e mulheres não tem outra fonte senão a lei dos mais
fracos. A sujeição da mulher não é natural, mas desvirtuada de acordo com os anseios dos
outros. Sendo assim, uma das maiores conquistas das sociedades modernas foi perceber que
os seres humanos são livres para usar suas faculdades e oportunidades para viverem conforme
desejarem, o que também deveria se aplicar às mulheres.
A personagem Capitu representa uma mulher moderna, à frente da mulher descrita por
Beauvoir (1970) e Mill (1869), no entanto, ela se vê criticamente inserida nessa situação, mas
não se submete inteiramente aos valores morais determinados pela sociedade e, por isso,
busca romper com determinados padrões de convivência.
A Capitu do século 19 era uma mulher ousada para a época. A demonstração de afeto
a pessoas fora da relação familiar poderia ser interpretada como atitude vulgar, o que
significava um rompimento com os valores sociais vigentes. Capitu antecipou as tendências
comportamentais que despontaram a partir da revolução cultural em meados do século 20. As
conquistas femininas, por meio dos movimentos sociais, abriram caminho para a participação
das mulheres na esfera pública. A dominação masculina sobre o corpo feminino começou a
ser questionada. No campo jurídico, o direito e domínio sobre a mulher como se fosse
propriedade privada foi, aos poucos, se desmontando. A legítima defesa de honra que permitia
ao homem o julgamento moral e o direito de condenação sobre a mulher, por ter a sua
imagem manchada pelo pecado da traição feminina, mesmo que presumida, conforme o
Código Penal de 1940, foi desqualificada com os avanços dos movimentos feministas e
sociais na década de 1970, sendo abolida na Constituição Federal de 1988, por considerar que
homens e mulheres têm direitos iguais.
Se Capitu representava a vanguarda de comportamentos femininos evidenciados a
partir das conquistas de direitos à igualdade entre homens e mulheres, isso não significa que
culturalmente a condição feminina tenha, como um todo, alcançado este estágio de
autonomia. Sair de uma relação em que a desconfiança é uma companhia cotidiana, como fez
Capitu, ao deixar Bentinho, conforme a cena 2 (conforme DVD em anexo) ainda não se
46
constitui uma prática rotineira na vida das mulheres.
Nesta cena, em um tom mal humorado Bentinho altera a voz para dizer que não é o pai
de Ezequiel. Capitu exige uma explicação e alega que não está mais suportando o seu
comportamento. Assim, na busca por sua individualidade, incomodada pelos constantes
ataques de ciúmes do marido, sugere a separação. Prefere, portanto, a vida livre do que a
submissão imposta pelo casamento. Considerando a época do episódio, Capitu teve uma
atitude ousada, inovadora, porque não era comum a mulher pedir a separação da união
matrimonial, uma vez que esta atitude implicaria no abandono de todos os bens, inclusive na
perda da guarda do filho. Além do mais, o marido poderia, por força de lei, ou da força física,
exigir o retorno da esposa para o lar (MILL, 1869).
No contexto da vida de Capitu, o divórcio, uma das linhas centrais da minissérie, não
existia. Como apontado no capítulo Gênero, o divórcio foi uma conquista marcante para a
construção da individualidade feminina. Conforme Mill (1869), durante o século 19, a mulher
não possuía direitos do divórcio e a mulher separada era totalmente discriminada,
independente do motivo, mesmo que a separação tivesse partido do marido.
De acordo com Beauvoir (1970, p.120),
A personagem Capitu foge dos padrões descritos por Beauvoir (1970) e Mill (1869).
Independente dos valores vinculados à excessiva dominação masculina imposta pela
sociedade, Capitu toma a iniciativa da separação. Em 2004 e 2005, de acordo com uma
pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 70% dos casos de
separação e divórcio no Brasil partem da vontade da mulher. No mundo todo, conforme os
estudos, 72% dos pedidos de separação são femininos de Féres-Carneiro (1998).
Neste sentido, estes dados indicam um reflexo da emancipação feminina a partir da
Revolução cultural, quando os valores da sociedade patriarcal começaram a ser fortemente
questionados e refutados. Mas na prática, as leis vigentes ainda mantinham a insolubilidade da
união conjugal. No entanto, foi uma questão de tempo para que o Congresso Nacional
reconhecesse os anseios da sociedade e levasse à votação a Emenda Constitucional, de autoria
do Deputado Nelson Carneiro, que instituiu o divórcio no Brasil, em 1977. A sua votação
gerou polêmicas em torno da indissolubilidade do casamento religioso e mudanças no
contrato civil. A Igreja e os parlamentares se enfrentaram, discutindo a manutenção e
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reprodução dos valores familiares vigentes. Enquanto a Igreja Católica lutava pela não
aprovação do divórcio, os divorcistas propunham o casamento como forma de manter a honra
da mulher, recolocando-a nos papéis de gênero. A princípio, o divórcio foi interpretado como
um mecanismo de liberdade masculina.
Nos dias atuais, a separação conjugal e o divórcio fazem parte da vida dos homens e
das mulheres. Não é mais de se estranhar que a mulher tome a iniciativa no processo de
separação conjugal, afinal houve uma luta por meios dos movimentos feministas para alcançar
a conquista da independência e autonomia feminina. Essa realidade é diferente do século 19,
quando uma separação representava o fim da dignidade feminina, mesmo que fosse uma
iniciativa masculina, pois, considerava-se que se o homem abandonasse a mulher era por
razões justificadas. A culpa pelo abandono sempre recaia na mulher. Assim, além de ser
abandonada ainda sofria a discriminação, também por parte de outras mulheres, tornando-se
uma “mulher mal falada”.
Hoje, há muitos exemplos de mulheres que se divorciaram ou apenas se separaram e
nem por isso são mal faladas, ao contrário, são consideradas guerreiras, corajosas, pois lutam
pela independência financeira e emocional, além de conciliar a vida profissional com os
afazeres da casa e o cuidado dos filhos. Mas não são todas as mulheres que tem esta condição
de requerer a liberdade, pois ainda existem resquícios da sociedade patriarcal que obriga a
continuidade da representação da vida social conjugal.
Desta forma, pode-se considerar que a maior ousadia de Capitu foi a coragem de
romper com o casamento e os padrões da época em uma sociedade tradicional que a colocava
na condição de filha, esposa e mãe. No entanto, a ousadia de Capitu em alimentar desejos que
vão além da aposta no casamento e na maternidade e de não permitir a castração sexual e
emocional, ainda está reservada a um público restrito de mulheres. Ocorre que o
comportamento feminino assumiu contornos modernos diante das condições de submissão
colocadas pela dominação masculina. A cultura patriarcal ainda persiste, embora Kehl (1998)
afirme que surgiu uma nova mulher, que deixou de ser filha e que não se identifica apenas
como mãe ou esposa.
Sim, esta mulher independente está no mundo do trabalho, da política, nos meios
sociais, porém, dentro dos valores culturais e estigmas ainda machistas que colocam as
relações afetivas no campo da exclusividade e fidelidade. Isto, para Goldenberg (2006),
mostra a contradição da cultura ocidental, pois há um desejo de ser o único e, ao mesmo
tempo, não se quer ter um único. A liberdade de escolhas e opções para realizá-las é um
atributo da atualidade, motivado pelos movimentos feministas, apesar de ter que conviver
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com a herança de uma cultura machista que impõe, veladamente e psicologicamente,
restrições às oportunidades na autonomia.
Na mesma proporção da liberdade de escolhas, a mulher corre o risco de ser julgada
por escolher um caminho não convencional com as convenções sociais, pois de acordo com
Bourdieu (1999), as sociedades ainda são organizadas segundo uma diferenciação entre os
gêneros, que dispõe o masculino como preponderante. Pode-se afirmar, portanto, que a
mulher não é mais a criatura subserviente e assexuada do século 19, mas também não é ainda
totalmente livre e emancipada, uma vez que as diferenças de gênero ainda são marcadas pela
educação que assume aos valores machistas de longa duração como condição moral de
equilíbrio social. Assim, as configurações do século 19 ainda permanecem insufladas na
mente de mulheres e homens.
Na atualidade, a mulher ocupa espaços que no passado eram considerados apenas de
direito masculino. O mercado impôs novos desafios na relação de gênero masculino e
feminino. Porém, ao que parece, no campo que se constitui a vida afetiva, portanto, na esfera
considerada privada, há barreiras na conquista feminina, pois às mulheres recai a
responsabilidade da observação da conduta moral. No entanto, o momento oferece
expectativas e possibilidades de relacionamento e novas experiências. Esta questão remete à
contradição abordada por Goldenberg (2006) acima citada, pois se há maiores oportunidades
de envolvimento amoroso é porque homens e mulheres estão dispostos a novas experiências,
embora cada qual deseje fidelidade do cônjuge.
Neste sentido, o mundo de Capitu era um pouco diferente do mundo da mulher atual,
pois havia um só caminho de mão única em que as obrigações de fidelidade representavam
compromisso apenas da mulher. Para Costa (1992), no passado, bastava a desconfiança de
infidelidade conjugal por parte da mulher para que a sociedade a punisse pelo pecado da
desonra. Mas, submetidas à dominação masculina, a esposa aceitava a traição marido, já que
era sinônimo da virilidade masculina. No momento em que a união conjugal passou a agregar
no seu conjunto de valores o amor romântico, a exclusividade nos relacionamentos tornou-se
uma exigência. Assim, o discurso do amor sublime passou a predominar sobre o ardor sexual
(GIDDENS, 1993).
Na contemporaneidade, de acordo com Turkenicz (1995), no campo amoroso os
relacionamentos se dividem em “aberto”, “pegar”, “ficar”, “rolos”, namoro e casamento. Em
todas essas formas há espaço para a intimidade, mas, individualidade, exclusividade e
compromisso não são fundamentais nessas relações, exceto no namoro e no casamento.
Assim, a superficialidade nos relacionamentos hoje pode ser atribuída à conquista da
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liberdade feminina e sua constante busca pela satisfação sexual. Para Goldenberg (2006,
p.210), a “exclusividade sexual é vista como necessária ao casal e um desejo natural de quem
ama e quer preservar a relação”. Este princípio está arraigado à condição feminina.
Dados da pesquisa Infiel elaborada por Goldenberg (2006) demonstrou que dos
entrevistados, 60% dos homens e 47% das mulheres já tiveram relações fora do casamento,
portanto, infiéis, em uma variável de justificativas diferenciadas. Para Scott (1995), a
diferença de gênero é perceptível no sentido de que determinados comportamentos são aceitos
somente para homens e não para mulheres, principalmente em caso de traição. Este
comportamento de aceitação tendo a diminuir na atualidade, no entanto, de acordo com
Beauvoir (1970), a mulher ainda está presa a uma condição de inferioridade e quando deseja
dela sair, se depara com as dúvidas em relação ao seu poder de mudança.
Romper com os estigmas ainda parece ser um caminho a ser percorrido, após longa
jornada de características consideradas demoníacas atribuídas ao mundo feminino. Mas ainda
a mulher é responsabilizada pelo despertar do desejo sexual no homem. Nos contornos do
vocabulário amoroso atual, a “santa mãezinha” que reinava nos valores do passado enquanto
ideal de mulher, analisada por Beauvoir (1970) se transformou em “mulher para casar”, que
precisa ter um comportamento sexual restrito e pudico. E a “luxuriosa” a sexualizada,
despidas de pudor, é considerada no vocabulário masculino como “mulher pra pegar”, porém,
julgada e, por vezes condenada por seu comportamento.
Na visão de Beauvoir (1970), corpo e sexo são indissociáveis. Mulheres e homens
aparecem assim constituídos como evidência de sua materialidade biológica. Assim, a
representação social do ser humano investe os corpos femininos e os definem por um sexo
biológico, dando-lhes um lugar e funções, segundo os valores determinados pelas
significações do social.
Assim, ocorreu com a Capitu em que na minissérie foi-lhe atribuída característica
tipicamente da sociedade atual, de acordo com a cena 3 (conforme DVD em anexo). O
episódio mostra que pouco tempo depois de casados, Bentinho e Capitu foram a um baile. O
local da festa estava repleto de casais, mas Capitu era a única mulher que não estava vestida
de acordo com as demais, pois exibia “os braços nus”, ao invés de ter um figurino cuja manga
alcançava o pulso, conforme a moda editada pelos valores morais. A cena inicia ao som de
valsa e, posteriormente, passa para a música eletrônica, quando Bentinho fica enciumado com
a presença de outros homens.
As mulheres casadas de século 19, de acordo com Del Priore (1997), estavam restritas
à esfera privada, cumprindo os papéis de mãe e esposa. Quando, raramente, frequentavam a
50
esfera pública, precisavam ser discretas e submissas aos maridos. A sensualidade feminina de
Capitu mostrando os “braços nus” era reprovada e considerada responsável por despertar o
instinto sexual masculino, por isso, seria fundamental evitar todas as marcas de carnalidade da
mulher.
Vincular a mulher ao espaço privado, com exclusividade ao ambiente doméstico,
atenta aos cuidados com o marido, os filhos e com a função procriadora, caracterizava
atividades circunscritas ao lócus de atuação feminina. Para isso a mulher precisava ser
discreta e ter o corpo coberto.
Na atualidade espera-se que mulher deixe seu corpo à mostra enquanto objeto
receptivo, atraente e disponível, na tentativa de existir olhares alheios (BOURDIEU, 1999).
Assim, se por um lado o corpo feminino deixou de submeter-se à antiga servidão a algumas
regras, seja no âmbito da sexualidade e procriação, por outro, encontra-se hoje submetido à
ditadura da moda, que cria valores e obriga e entrar no imaginário estético das cirurgias
plásticas regulares, o que torna a mulher um produto com data de validade (REIS, 2002). Um
corpo considerado “escultural” se constitui uma das riquezas mais desejadas em todas as
camadas sociais. Para Goldenberg (2007), o corpo é um importante veículo de ascensão
social, além de ser um capital nos mercados de trabalho, casamento e sexual. Desta forma,
além de um capital físico, o corpo é um capital simbólico, um capital econômico e um capital
social, conforme sugere Bourdieu (1999). No entanto, este corpo como capital não é um corpo
qualquer: ele deve ser sexy, jovem, magro e em boa forma, conquistado com investimentos
financeiros, muito trabalho e uma boa dose de sacrifício.
Considerando a proporcionalidade de valores em relação ao corpo, significa que o
mundo de Capitu era menos complexo, porém, com menos recursos para atualizar a beleza do
corpo diante do passar dos anos e das funções da maternidade. Porém, independente das
épocas, o corpo feminino é um “corpo para o outro” e, mais que nunca, objetivado pelo olhar
e discurso do outro. A estrutura social dessa relação está na interação, nas reações, na
representação que um corpo provoca no outro. Sendo objeto de olhares, a mulher é tomada
pela lógica da dominação e passa a exercer, sob este olhar, uma contrapartida, na ideia de
atrair a atenção e agradar.
A partir da revolução cultural o corpo feminino se despiu. A mídia, a televisão e as
praias incentivaram o corpo a desvelar-se em público. A partir daí, o capital econômico, por
meio do mercado, passou a sugerir produtos para transformar este corpo em um capital físico,
condutor de perspectivas sociais e culturais. O corpo, então, passou a ter prioridade na escala
de investimentos. Porém, a mulher poderá desfrutar de sua liberdade para direcionar o seu
51
corpo. Com o advento de métodos contraceptivos, em especial, a pílula anticoncepcional, a
mulher pode ter um relacionamento sexual desvinculado da procriação, livre da
obrigatoriedade, do medo, ou da punição, apesar de que, o físico do prazer ainda esteja
arraigado aos valores machistas. Assim, a mulher, de alguma maneira, continua submissa, não
à procriação, mas à tríade do corpo que corresponde ao equilíbrio entre beleza, esporte e
juventude.
O desejo masculino da submissão feminina diante do matrimônio é evidenciado na
cena 4 da minissérie (conforme DVD em anexo). Já casados e em lua de mel, Capitu e
Bentinho conversam ao luar. Bentinho diz: “as mulheres sejam sujeitas aos seus maridos. Não
seja o adorno delas o enfeite dos cabelos ou as rendas de ouro, mas o homem, que está
escondido no coração”. E Capitu responde: “Sentei-me à sombra daquele que tanto havia
desejado”. Neste momento, pensando os valores da época, na primeira leitura tem-se a
impressão de que Capitu estava de acordo com o sentimento de Bentinho, mas, no contexto da
história, leva-nos a imaginar que se tratava de uma maneira dissimulada de não revelar os
seus sentimentos de rebeldia. Se o matrimônio era estratégico para o adestramento e controle
das mulheres, Capitu deveria ter subterfúgios para manter a sua lucidez de liberdade em seus
princípios.
Para Del Priore (1997) no século 19 a mulher casada só poderia sair de casa com a
permissão de seu marido, vivendo uma vida de confinamento. O amor conjugal, um valor
construído, pressupunha a desvalorização do corpo para a valorização do espírito. Assim, a
sexualidade feminina era facilmente controlada. O corpo da esposa era utilizado como objeto
de consumação e afastado dos mínimos prazeres sexuais. Desta forma, a mulher seguia
passiva na lógica da obediência e sujeição ao marido.
o desejo sexual erigia-se como um apanágio exclusivo dos homens, atributo, aliás,
confirmado pelo grande numero de emissores de um discurso sobre o corpo da
mulher, não havendo lugar para falas femininas sobre sua própria sexualidade (DEL
PRIORE, 1997, p.137).
não desejo, de modo algum, alegar que as esposas recebam um tratamento pior do
que os escravos; mas, nenhum escravo é escravizado na mesma proporção e no
sentido completo da palavra, como é uma esposa... dificilmente, qualquer escravo, é
um escravo de todas as horas e minutos.
Estas condições, apesar de causar desconforto à mulher, demoraram muito para ter
52
mudanças significativas. Beauvoir (1970) foi uma das defensoras na construção de um
pensamento crítico em relação à condição feminina diante da cultura masculina, a qual define
a mulher de acordo com seus valores. A soberania masculina impõe um princípio de
hierarquia entre o gênero masculino e feminino.
Há autores como Costa (1992), que afirmam que a mulher já está livre da submissão
masculina, mesmo dentro do casamento. Assim, o relacionamento conjugal se transformou
em uma escolha que pode ser modificada. A visão religiosa de obrigatoriedade e eternização
de um casamento foi substituída pelo conceito de companheirismo e vontade de estar juntos.
Para Berger e Kellner apud Féres-Carneiro (1998), o casamento é relevante enquanto
lugar privilegiado de relações significativas para estabelecer a criação de uma ordem entre
indivíduos perante a sociedade. Entretanto, aponta Delphy (apud SINGLY, 2007) que o
casamento é uma instituição na qual se permite que haja a extorsão de um trabalho gratuito da
categoria feminina ao se transformar em mãe e esposa. O seu trabalho nas lidas domésticas
não é remunerado. Dessa forma, a mulher continua sendo desvalorizada assim como no século
19, pois ao estar ligada a um homem, normalmente ao marido, assume tarefas que
historicamente lhe foi atribuída como função sua.
Para Bauman (2004, p.15),
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estão desarranjados com as conquistas femininas. Isso favorece para o rompimento do
contrato firmado anteriormente caso não haja satisfação de ambos, ou simplesmente de um
dos cônjuges, que poderá ser da mulher, diferente do passado que somente o homem tinha
este direito. Os valores estão flexíveis, o que favorece a busca de novas convivências e
satisfação afetiva e sexual. A sociedade reforça a ideia de que as pessoas são livres para optar,
escolher e construir seus estilos de vida e relacionamento (GOLDENBERG, 2007). À Capitu
era amputada esta possibilidade, sua obrigação era a convivência com Bentinho, independente
da sua vontade. Talvez por isso, para se separar do marido, Capitu foi viver na Suíça, longe de
quem sabia da sua história, pois se ficasse na sua cidade seria discriminada e não teria outra
oportunidade de relacionamento amoroso aceito pela sociedade.
Hoje, ao contrário do século 19, recomenda-se que a relação conjugal se mantenha
enquanto for prazerosa para os cônjuges. Os meios contraceptivos ampliaram as
possibilidades de prazer da relação conjugal dentro ou fora do casamento. A gravidez não se
constitui mais uma conseqüência de uma relação sexual em período fértil da mulher. Pode-se
programar a vinda de um filho ou optar em não tê-lo. Mas, durante muito tempo a
maternidade foi sinônimo da condição feminina e do casamento.
Capitu era mãe de um menino, como mostra a cena 5 (conforme DVD em anexo).
Bentinho entra no quarto segurando nos braços o primeiro o filho que acabara de nascer. O
ambiente está repleto de familiares e amigos, que parabenizam Bentinho na condição de pai
da criança. Ao prosseguir, a câmera foca Bentinho brincando com o filho e admirando a
criança. Este foi um momento raro de aparição de Capitu como mãe. Porém, mesmo assim, a
cena sugere um papel secundário a Capitu, pois evidencia Bentinho como pai. Para Badinter
(1985), a maternidade é exigência da sociedade patriarcal porque prova de virilidade
masculina. Durante milhares de anos a fertilidade era considerada dádiva divina e a
infertilidade, um castigo.
Lembrando que na história da família ocidental, o poder paterno sempre acompanhou
a autoridade absoluta e despótica do homem sobre os filhos e a esposa. À mulher era
recomendado observar um comportamento adequado à sua inferioridade, ou seja, modéstia,
submissão e silêncio. Para justificar toda essa autoridade, afirmava-se que o pai era
responsável perante Deus pelos filhos, sendo necessário dar-lhe os meios para assumir tal
responsabilidade. Assim se constituía a submissão dos papéis na relação de gênero.
Mas a submissão feminina não estava somente relacionada à mulher casada. Enquanto
solteira, a mulher era submetida rigorosamente ao poder paterno. Na cena 6 (conforme DVD
em anexo), quando adolescentes, Bentinho tenta beijar Capitu, quando são surpreendidos pela
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presença do pai de Capitu. Imediatamente, para contornar a situação, Capitu disfarça e
anuncia à mãe que seu pai chegou para jantar. O beijo não era permitido antes do
compromisso de casamento firmado pelo noivo com o pai da noiva. O chefe tinha autoridade
sobre as filhas. Mas Capitu sabia articular situações que a destacava na sua condição
feminina.
Para Gualda (2011, p.21),
Neste contexto, pode-se afirmar que existem muitos Bentinhos circulando no mundo
moderno, enquanto a Capitu real se repaginou e decide ser ela mesma, sem necessidade de se
mudar para outro país em caso de separação conjugal. Mas a dominação masculina não foi
eliminada, apenas as mulheres estão aprendendo a lidar com esta forma de poder.
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